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LUTA DE CLASSES, CRISE DO

IMPERIALISMO E A NOVA
DIVISÃO INTERNACIONAL
DO TRABALHO

Que cem flores desabrochem!


Que cem escolas rivalizem!
Cem Flores
Luta de classes, crise do imperialismo e a nova divisão internacional do
trabalho – Brasil, 2011. 316p.

http://cemflores.blogspot.com/
Sumário

Introdução5

Parte I 13
Convocatória para a reconstrução do partido
revolucionário do proletariado 15
Algumas teses para retomar o marxismo:
materialismo dialético 23
Algumas teses para retomar o marxismo:
materialismo histórico 56
Por que razão discutir a crise do marxismo? 84

Parte II 87
O Pós imperialismo é o socialismo. O que vivemos
é a crise do capitalismo. 88
Elementos para discussão da conjuntura 107
A crise do imperialismo expressa o agravamento
de todas as suas contradições 126
Luta de classes e crise do imperialismo 145
O mais recente crash financeiro. Uma análise
marxista-leninista da crise do imperialismo 151
Algumas lições da crise para a nossa luta 168
A crise do imperialismo é a crise da divisão
internacional do trabalho 176
A tarefa candente para os revolucionários em
todo o mundo é a de transformar a crise do
imperialismo em revolução 179

Parte III 187


E agora? 188
Formação econômico-social brasileira: regressão
a uma situação colonial de novo tipo 199
O papel do agronegócio na reconfiguração
da formação econômico-social brasileira: a
propósito de um artigo do MST 206
Aprofunda-se o processo de regressão 231
Do capitalismo utópico ao socialismo científico 243
Praticar a crítica teórica 250
Caleidoscópio de erros ou o «dernier cri» da
ideologia dominante 268
Quinze anos da chacina de Eldorado do Carajás 286
A alquimia do governo Lula: como transformar
trabalhadores brasileiros em chineses 301
Introdução

Após um longo período de atuação política e avaliando a conjuntura


da luta de classes no Brasil, um grupo de camaradas decidiu criar um lugar
na internet para travar a luta de classes em todos os campos. Quando
decidimos criar o blog “Que cem flores desabrochem! Que cem escolas
rivalizem!” (http://cemflores.blogspot.com/), nossa intenção era contribuir
para a retomada do marxismo para a reconstrução da teoria e do partido
revolucionários. Tínhamos à época, como hoje, a plena consciência que essas
tarefas só poderiam se dar em nossa prática militante na luta de classes e
no debate coletivo.
A partir da discussão no coletivo do blog “Cem Flores…” e da sugestão
de inúmeros camaradas que colaboram conosco com suas intervenções,
participando da discussão que travamos, decidimos trabalhar para inaugu-
rar um sítio na internet que, por aclamação, em razão de nossa análise da
conjuntura, concordamos que nada seria melhor do que batizá-lo de Que
Fazer? (www.quefazer.org).
O blog e o sítio foram criados em uma conjuntura em que era necessário
urgentemente fincar a bandeira vermelha de resistência à vaga de novas/
velhas versões do revisionismo e do reformismo e de falsificação da história
que coadjuvavam a ofensiva da ideologia das classes dominantes e seus
aliados. Bandeira vermelha que reunisse em torno dela todos aqueles que,
ousando pensar por si mesmos, defendessem o marxismo-leninismo, a teoria
revolucionária do proletariado. Convictos da importância de construir a
teoria de nossa prática concreta, o marxismo-leninismo como teoria cien-
tífica do proletariado 1, para a conformação do movimento revolucionário
do proletariado; que a luta de classes na teoria se expressa necessariamente
na luta contra o revisionismo, o reformismo, o ecletismo e o relativismo,
como nos mostrou Lenin, em Que Fazer?:
«sem teoria revolucionária, não há movimento revolucioná-
rio» e «só um partido guiado por uma teoria de vanguarda é
capaz de preencher o papel de combatente de vanguarda».
Pensamos em constituir estes espaços para enfocar tanto os temas can-
dentes de nossa conjuntura quanto as questões teóricas que os informavam,
um conjunto de questões correlatas que, a nosso ver, são indispensáveis
para o avanço de nosso conhecimento sobre a história e a situação concreta
do Brasil e do mundo hoje. A conjuntura da luta de classes no Brasil e sua
relação com a conjuntura da luta de classes em todo o mundo.
Centramos nossa atividade em aprofundar a pesquisa e o conhecimento
das questões que nos possibilitam elaborar uma análise concreta da situa-
ção concreta do imperialismo e da formação social brasileira, com toda a

1 Sobre a discussão do marxismo como ciência, ver texto Algumas teses para retomar o
marxismo: materialismo histórico.
complexidade que isto representa, e os textos aqui publicados são resultado
da luta que travamos para cumprir esta tarefa.
A coletânea de textos 2 que apresentamos nesta publicação está orga-
nizada em três partes:
·· Na primeira, procuramos discutir a importância da teoria, sistematizar
algumas teses para retomar o marxismo, com os textos que emprega-
mos como bases iniciais para nossos debates acerca da teoria marxista,
do materialismo dialético e materialismo histórico, e sua atualidade.
·· Na segunda, dedicada à conjuntura internacional, buscamos compre-
ender os principais conceitos do materialismo histórico e desenvolvê-los
para analisar a conjuntura mundial atual. Nesta parte, expomos nossa
análise do imperialismo como conceito central e da crise do imperia-
lismo e seus desdobramentos e contradições.
·· Na terceira e última parte, em que tratamos da conjuntura nacio-
nal, colocamos estes conceitos para trabalhar na análise da formação
econômico-social brasileira no sistema imperialista, a reconfiguração
nas condições de reprodução do capital no Brasil que conceituamos
como regressão a uma situação colonial de novo tipo.
Expomos a seguir os pressupostos para nossa análise, os quais estão de-
senvolvidos ao longo das três partes que compõe esta publicação. Estas três
partes estão organizadas para melhor exposição dos temas centrais de cada
uma delas, e compartilham dos pressupostos apresentados, não indicando,
necessariamente, uma hierarquia ou ordem de leitura.
A Análise Marxista da Crise do Imperialismo: explicitando nossos
pressupostos 3
Avaliamos que para a adequada apresentação desta publicação faz-se
necessário, em primeiro lugar, apresentar o que, a nosso ver, consideramos
os fundamentos da análise marxista da conjuntura atual moldada pela crise
do imperialismo. É evidente que por análise de conjuntura entendemos não
apenas os acontecimentos concretos recentes – o jornal do dia – mas o pe-
ríodo histórico mais longo que condiciona esses acontecimentos específicos
e os torna inteligíveis. Mais especificamente, para esta análise de conjuntura,
é imprescindível partir da conformação de uma economia mundial como
um todo contraditório, o sistema imperialista 4, para então focar no período
2 Foram feitas pequenas alterações na formatação de alguns textos, com o objetivo de
manter um padrão, na medida do possível, sem, contudo alterar seu conteúdo, exceto
onde indicado em nota, no próprio texto.
3 Esta parte da Introdução tomou como referência o texto Sobre a Crise do Imperialismo e
a Posição do Brasil. Resposta ao camarada Gabriel Harceia, de 27/08/2011, disponível no
blog “Cem Flores…”.
4 No texto E Agora?, mostramos que o conceito leninista de imperialismo consiste na “fase
do capitalismo resultante das tendências integrantes ao capital impulsionadas pela lei do
valor e inerentes ao processo de reprodução ampliada do modo de produção capitalista,
que resultam da propensão do capital à concentração/centralização industrial e financeira
no mundo e em cada formação social, [que] produz a tendência à constituição do modo
de produção capitalista à escala mundial, num sistema mundial, corporificado em um
pólo dominante e um pólo dominado e em relações econômicas, políticas e ideológicas
designadas pelos conceitos de colonização e imperialismo.”

6
a partir de meados dos anos 1970, quando eclode a crise do imperialismo
em que vivemos. É nesse cenário que se operam modificações na divisão
internacional do trabalho, que por meio de múltiplas determinações, condi-
cionam a reconfiguração da formação social brasileira, e também que se inicia
uma nova fase da crise do imperialismo – sua terceira grande depressão – a
partir de 2007 até hoje.
Abaixo procuramos avançar nossas formulações, ainda que provisórias, de
maneira sintética. Formulações às quais esperamos, nunca é demais repetir,
a rigorosa crítica marxista-leninista.
1 Para a análise científica do modo de produção capitalista 5 são fundamen-
tais dois conceitos teóricos definidos por Marx em O Capital: relações
de produção e reprodução.
São as relações de produção capitalistas, “a contradição principal, cuja
existência e desenvolvimento determina a existência e o desenvolvimento
das demais contradições ou agem sobre elas” (Mao Tsé-Tung, Sobre a
Contradição), que qualificam o modo de produção capitalista, relações
necessárias, que se caracterizam fundamentalmente pela oposição entre
duas forças em contradição, o proletariado e a burguesia, classes domi-
nadas e dominantes em uma luta de classes que se define a partir do
processo de produção capitalista.
Relações de produção capitalistas que são, portanto, essencialmente e ao
mesmo tempo, relações de exploração capitalistas. Relações de produção
que são o pólo dominante na contradição com as forças produtivas.
A reprodução das condições materiais da vida é, no capitalismo, fun-
damentalmente a reprodução das próprias relações de produção ca-
pitalistas – reprodução da maneira como essas condições materiais de
produção são produzidas e reproduzidas, tornando-as tanto pré-requisito
do processo de produção capitalista quanto resultado historicamente
determinado deste processo – e tem como resultado objetivo o desen-
volvimento contraditório, sob novas condições, da divisão, da luta de
classes proletariado/burguesia.
2 Partindo dos conceitos de relação de produção capitalista e da sua
reprodução pode-se, portanto, focar no aspecto principal do modo
de produção capitalista, no seu caráter essencialmente contraditório,
antagônico, fundado na luta de classes na própria produção.
Esta é a contradição principal no modo de produção capitalista, que o
funda, que o define, a contradição/luta entre as classes “dentro da fábri-
ca”, no processo de produção material, na produção de mercadorias, de
valores/valores de uso, em suma, de mais-valia.
É por isso que dizemos que a luta de classes proletariado/burguesia é
a característica distintiva fundamental objetiva do modo de produção
capitalista, por isso que essa é uma contradição inconciliável e insuperável
dentro do modo de produção capitalista. É essa contradição/luta que
define, molda tanto a dominação burguesa e sua ideologia (inclusive
nas suas expressões do reformismo e revisionismo), buscando borrar
5 Aqui só tratamos do modo de produção capitalista.

7
essa exploração/dominação e garantir sua reprodução, quanto a luta
da classe operária.
É por isso que a teoria científica e revolucionária do proletariado, o mar-
xismo, é inconciliável com qualquer teoria revisionista, ideológica, que
se funda na colaboração de classes (ou na defesa da subordinação do
proletariado à burguesia, qualquer que seja a desculpa para isso), como
é o caso dos nacionalismos, do nacional-desenvolvimentismo, versão
nativa do economicismo.
3 Luta de classes na produção na qual a burguesia busca sempre aumentar
a exploração sobre a classe operária, processo que tem como seu objetivo
primordial aumentar a taxa de lucro.
Nessa luta de classes na produção objetivando aumentar a exploração do
proletariado (no processo conjunto de extração de mais-valia relativa e
absoluta) e a taxa de lucro da burguesia se definem a tendência à redução
do valor da força de trabalho (bem como a busca, pela burguesia, de fixar
os salários abaixo desse valor) e à sua diminuição em relação ao capital
total, aumento da composição orgânica do capital, logo tendência ao
desenvolvimento das forças produtivas e da produtividade social do
trabalho.
Note-se que não se trata de desenvolvimento/autonomia das forças pro-
dutivas impulsionando mudanças nas relações de produção. São antes as
condições concretas da luta de classes na produção, dentro das relações
de produção capitalistas, a luta de classes da burguesia contra o proleta-
riado em seu objetivo de obter a maior taxa de lucro e a luta, resistência
do proletariado à exploração, que impulsionam (ou “travam”) as forças
produtivas. Forças produtivas que, portanto, constituem, no capitalismo,
a materialização das relações de produção/exploração capitalistas.
Essas tendências de desvalorização da força de trabalho, de aumento da
produtividade social do trabalho e da composição orgânica do capital
geram a tendência à queda da taxa de lucro como expressão das con-
tradições do modo de produção capitalista. Essas mesmas tendências
levam também, considerados os capitais em concorrência, ao aumento
da concentração e à centralização de capitais, ao monopólio capitalista.
Em suma, é a partir da contradição, da luta de classes, proletariado/bur-
guesia num sistema de produção historicamente específico, o capitalismo,
que se fundam as relações de exploração/produção especificamente
capitalistas e são definidas as condições do desenvolvimento das forças
produtivas, da exploração da força de trabalho, a taxa de lucro e a crise.
4 Crise do capitalismo – na etapa atual, crise do imperialismo – derivada
e consequência das próprias contradições do modo de produção e que
constitui a tentativa de reconfiguração das condições de acumulação e
de reprodução capitalista em uma economia mundial.
Crise que se manifesta na impossibilidade de manutenção dos ritmos
de acumulação à taxa de lucro vigente/desejada, na sobreacumulação
de capital expressa/materializada na tendência à sobreprodução de

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mercadorias. Crise que exacerba todas as contradições do capitalismo
e cuja “saída” passa, necessariamente, pela desvalorização (queima) do
capital e pela desvalorização da força de trabalho.
Desvalorização do capital que é a tendência geral para ultrapassar a so-
breacumulação mas que, no entanto, enfrenta a resistência dos capitais
individuais, se impondo mediante a falência, bancarrota, e resultando
no reforço da tendência à centralização dos capitais.
Desvalorização da força de trabalho, sinônimo de aumento da exploração
capitalista, que é o principal “benefício” da crise para a classe dominante.
Por esse ângulo, a crise resulta no rebaixamento dos salários (incluídos os
benefícios sociais e os direitos trabalhistas – rebaixamento do custo de
reprodução da classe operária), na ampliação do desemprego.
Crise que, mediante a queima de capitais e a redução dos salários, busca
contrarrestar a tendência ao aumento da composição orgânica do capital,
na tentativa de retomar, ou mesmo ampliar, a taxa de lucro.
5 Crise do capitalismo, crise do imperialismo, que modifica a divisão
internacional do trabalho, a reprodução das relações de produção
capitalistas no sistema mundial do imperialismo e em cada formação
econômico-social.
No sistema mundial do imperialismo – considerado como um todo
articulado e contraditório que engloba o conjunto da economia mun-
dial e cada uma das suas “partes” –, no processo de acumulação/crise,
são definidos os padrões internacionais de produção/exploração e de
acumulação de capitais, a partir do local no qual as condições são mais
favoráveis ao capital (maior taxa de lucro). Esses padrões (e sua redefini-
ção periódica) condicionam a reprodução do capital em cada formação
econômico-social, alteram a divisão internacional do trabalho estabelecida
e realocam o papel de cada formação econômico-social na economia
mundial (parqueamento).
Essas modificações na divisão internacional do trabalho, no entanto, são
condicionadas em última instância pelas contradições de cada formação
econômico-social, pelas suas condições materiais e pelo estado da luta
de classes. Em outras palavras, contradições que se manifestam em cada
formação econômico-social na situação concreta de uma dada divisão
internacional do trabalho.
Assim, tanto a transformação do sistema mundial do imperialismo
quanto a de cada uma das formações econômico-sociais que o com-
põem é o resultado concreto e objetivamente determinado de sua
própria história e das condições nas quais se dá o processo de repro-
dução das relações de produção/exploração capitalistas, do processo
de acumulação, da luta de classes. Portanto, essas transformações não
seguem uma trajetória (pré-)definida, seja ela linear ou não; não são,
tampouco, o resultado de uma tendência racional abstrata em direção
a futuros pré-definidos. Em suma, não há apriorismos ou teleologia no
materialismo histórico.

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6 Há que acrescentar um aspecto histórico fundamental, concreto, da
crise do imperialismo que vivemos nos últimos mais de 30 anos, desde
meados dos anos 1970.
Nas condições da luta de classes nesse período – caracterizadas, no
fundamental, pela defensiva da classe operária condicionando/condicio-
nada pela própria crise do imperialismo e pela hegemonia de posições
burguesas nos partidos que se atribuem o título de comunistas (refor-
mismo e revisionismo) no mundo inteiro e pela consequente derrota
das primeiras experiências de construção do socialismo, notadamente
na União Soviética e na China – o capital (aqui considerado o capital em
geral 6) tem conseguido, pela atuação de suas diversas instâncias (Estados
nacionais, seus Tesouros e bancos centrais; organismos internacionais,
etc.), evitar que a queima de capitais ocorra com maior magnitude 7.
Dessa maneira, a sobreacumulação de capitais como que se torna uma
tendência recorrente, um fato permanente, que implica a necessidade
de depreciação acelerada das mercadorias. O crédito tem acentuada
sua característica de elemento acelerador dos ritmos de acumulação
e de consumo, visando possibilitar essa realização das mercadorias. A
desvalorização contínua da força de trabalho, do valor de sua reprodu-
ção, é uma tendência acentuada pela possibilidade efetiva de mudança
de plantas industriais para locais de salários mais baixos e pela ainda
pequena capacidade de resistência da classe operária.
6 Queremos com isto dizer que este capital em geral não tem uma forma específica/única de
reprodução e ao mesmo tempo, se reproduz de todas as formas possíveis para garantir sua
valorização. Em determinados momentos chamamos de reprodução conjunta produtivo/
financeiro-fictícia do capital para assinalar a relação de unidade das múltiplas formas do
capital. Para não cair no pântano do oportunismo, a análise do imperialismo não pode
tomar apenas umas das formas do capital, por exemplo, o financeiro. Na medida em que
este se apresenta como capital, só pode ser entendido quando considerado perante o
movimento de reprodução do capital em seu conjunto que, por sua vez, está determinado
pela produção de mais-valia. Assim assinalamos no texto O mais recente crash financeiro.
Uma análise marxista-leninista da crise do imperialismo: “O que é importante ressaltarmos
nesse momento é que, uma vez consolidado esse processo, todo e qualquer capitalista
individual passa a incorporá-lo, ou seja, passa a haver a reprodução conjunta produtivo/
financeiro-fictícia de qualquer parcela individual de capital. Cada capitalista passa a repro-
duzir, conjuntamente, seu capital de forma produtiva e também fictícia. Não existe mais,
a não ser na imaginação dos reformistas, a figura do capitalista industrial puro, contra o
qual estaria oposto um puro especulador. Eles se interpenetram e, no limite, são um só.
O capitalista industrial (onde existisse só com seu capital aplicado à indústria) é levado
a, de forma crescente, aplicar suas sobras de caixa, seu capital de giro, em atividades
financeiro-fictícias para aumentar a taxa de lucro global do seu negócio. Logo em seguida,
não serão mais apenas as «sobras», mas a própria decisão dessa repartição, acumulação
produtiva/acumulação financeiro-fictícia, que será condicionada pelas condições da
reprodução/rentabilidade financeiro-fictícia. A separação acima mencionada, ideológica,
é a visão que os próprios capitalistas e seus defensores gostam de propagar de si mesmos,
quando necessário.”
7 É difícil fazer uma avaliação de qual seria a magnitude da queima de capitais necessária à
“saída” da crise e, mesmo, se a queima de capitais propiciaria uma saída da crise e o que
significaria esta saída. Só de uma coisa temos certeza, a crise do imperialismo abre para
o proletariado e para as classes dominadas em todo o mundo a possibilidade de uma era
de revoluções.

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7 Na conjuntura de crise do imperialismo, dos seus efeitos na conformação
de uma nova e específica divisão internacional do trabalho, aponta para
uma reconfiguração nas condições de reprodução do capital no Brasil
que conceituamos como uma “regressão a uma situação colonial de
novo tipo”.
A regressão a uma situação colonial de novo tipo não é e não deve ser
entendida, absolutamente, como uma “volta atrás”, um retorno ao passado
(nesse caso, necessariamente idealizado pelo pensamento burguês), ou
como um desvio em relação a um sentido histórico, a uma trajetória pre-
definida para as formações sociais capitalistas, ideologia que fundamenta as
noções de “subdesenvolvido”, “em desenvolvimento” e agora “emergente”.
Esta análise da realidade atual – de crise do imperialismo, de uma nova
divisão internacional do trabalho e da regressão a uma situação colonial
de novo tipo no Brasil – é, sem dúvida, uma mudança de terreno em
relação a uma interpretação dessa nossa história pregressa, feita com
base na ideologia do nacional-desenvolvimentismo, que a vê como um
processo que da colônia, através da industrialização (podemos dizer: do
desenvolvimento – autônomo – das forças produtivas, sem luta de classes)
o motor de uma pseudorruptura com uma “dependência”, passando pela
afirmação da soberania e do “Brasil grande potência” e, quem sabe até,
do “direito” de participarmos da exploração dos demais povos.
Dar uma conotação negativa à interpretação do “Brasil grande potência”
(considerada positiva pela burguesia e seus aliados) é jogar no campo do
adversário, validar sua ideologia. Em suma, participar do jogo da burguesia
e dos seus aliados revisionistas. Ou seja, o falso dilema do “Brasil grande
potência” das classes dominantes e do reformismo-revisionismo versus
a interpretação do “marxismo acadêmico”, de que o desenvolvimento
do Brasil, repetindo um processo obrigatório seguido por todos os países
capitalistas que compõem hoje o bloco imperialista, processo que levaria
o Brasil à condição de “grande potência”, o tornaria necessariamente um
país imperialista – em relação a seus vizinhos sul-americanos – revela
uma incompreensão do conceito marxista de imperialismo.
Em síntese, a análise marxista que avançamos coloca a luta de classes
no centro da dinâmica do modo de produção capitalista, portanto, da re-
produção de suas relações de produção. Essa análise se opõe radicalmente
a qualquer forma de economicismo, forma do pensamento revisionista, e
de determinismo.
A partir destes pressupostos, julgamos necessário fazer uma avaliação
crítica de nossas próprias posições, uma vez que é parte de nossa tarefa “pôr
para trabalhar” o marxismo-leninismo, logo, desenvolver e precisar suas
noções e conceitos e avançar em sua compreensão. A discussão de nossos
textos em conjunto, durante a preparação desta publicação, nos permitiu
identificar alguns dos nossos limites, incompreensões, que procuramos
ultrapassar ao longo desta difícil luta contra concepções equivocadas que
estão arraigadas em uma longa tradição marxista na qual nos inserimos.

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É por isso que, ao longo deste período em que travamos a luta de classes
da qual estes textos fazem parte e assim foram produzidos, fomos buscan-
do compreender mais precisamente alguns conceitos e noções centrais
do materialismo histórico (imperialismo/colonização, capital financeiro,
acumulação ampliada e reprodução do capital, concentração/centralização,
concorrência/monopólio, tendência à queda da taxa de lucro, crise/desen-
volvimento, ditadura do proletariado), assim como desenvolvê-los para
nossa conjuntura concreta (a reconfiguração/dominação/parqueamento
da formação econômico-social brasileira na atual divisão internacional do
trabalho conceituada como regressão a uma situação colonial de novo tipo,
que iniciamos a caracterizar e ainda precisamos avançar); conceitos estes que
expressam uma contradição/unidade de contrários, tendências que nunca se
realizam plenamente, ou melhor, sua realização, se é que podemos falar assim,
leva(ria) à superação da contradição. A publicação dos textos em conjunto
permite uma análise de como eles foram sendo modificados à medida que
fomos travando a luta para dominar a ciência do materialismo-histórico e
desenvolvê-la. A luta pela precisão dos conceitos é no essencial uma luta
política/luta de classes na teoria e, como tal, caracterizada por avanços e
retrocessos. Portanto, o desenvolvimento de conceitos e noções não é linear,
o que quer dizer que nem sempre as melhores formulações encontram-se
nos textos mais recentes e tampouco que não existam imprecisões.
Parafraseando Marx em seu Prefácio à primeira edição d’O Capital, pressu-
pomos camaradas que queiram pensar por si mesmos, dispostos a contribuir
para a crítica e avanço do marxismo, tarefa necessária e que cabe a todos
que estejam lutando para a construção de uma saída revolucionária para o
Brasil e o mundo. Esperamos dos camaradas a crítica mais rigorosa, crítica
científica, marxista-leninista, porque vamos trabalhar procurando nos situar
rigorosamente no campo do marxismo-leninismo. Estamos convencidos
de que a tarefa candente para os revolucionários em todo o mundo é a de
transformar a crise do imperialismo em revolução proletária.
E se a crise do imperialismo levar o capital à insanidade de uma nova
guerra mundial temos a certeza de que esta abrirá as portas da revolução
proletária por todo o mundo, dando ao proletariado o ensejo de cumprir
sua tarefa, de/como coveiros do capitalismo.

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Parte I
Convocatória para a reconstrução do partido
revolucionário do proletariado
Ou para ler o Que Fazer? Homenagem aos 100 anos de sua
publicação 1

Em princípio de 1902, Lenin publicava seu trabalho Que Fazer? com ob-
jetivo de, partindo da afirmação do caráter científico do marxismo, demolir
na teoria e na prática a corrente economicista de Martínov e os argumentos
das correntes oportunistas em geral, de direita ou de esquerda, demarcar as
limitações da luta de classes espontânea e, sustentando a unidade dialética
entre a teoria revolucionária e a prática revolucionária, afirmar que sem
teoria revolucionária e sem partido revolucionário guiado por esta teoria
não há revolução, não há prática revolucionária.
Lenin resume suas posições em duas frases de seu texto: “sem teoria
revolucionária, não há movimento revolucionário” 2 e “só um partido guiado
por uma teoria de vanguarda é capaz de preencher o papel de combatente
de vanguarda” 3.
Após o Que Fazer?, o que nos diz Lenin, e o que a prática do movimento
comunista provou nestes mais de cem anos de luta de classes sob o capi-
talismo e na própria luta pelo socialismo, é que para fazer a revolução e
construir o socialismo e o comunismo é necessário que haja um partido
revolucionário guiado pela teoria marxista-leninista e pelo estilo revolu-
cionário marxista-leninista.
A teoria é o guia da prática do partido revolucionário e se concretiza
nesta prática. Toda a prática de um partido revolucionário é a aplicação de
sua teoria, de sua política. Se o partido não aplica uma política justa, aplica
uma política equivocada.
Se nossa teoria e nossa política são justas, nossa prática tende a ser
justa e, assim, capaz de levar nosso povo, dirigido por nosso partido, a re-
alizar a revolução, construir o socialismo e o comunismo; se nossa teoria é
incorreta, nossa prática resulta equivocada e a classe operária e as massas
se afastarão de nós.
Hoje, passados dois anos do século XXI, encontramo-nos em nosso país em
situação análoga à de Lenin na conjuntura da Rússia de 1902. E como Lenin,
colocamos para nossa organização comunista a necessidade de reconstruir
o partido revolucionário do proletariado em nosso país e para isto cumprir
três tarefas fundamentais. Primeira, retomar o marxismo-leninismo no nível
do desenvolvimento em que se encontra hoje, em particular, a partir dos
ensinamentos das experiências da Revolução chinesa e das concepções de
Mao Tsé-Tung. Segunda, reconstruir o partido revolucionário, unidade in-
dissolúvel da teoria e da prática. Terceira, aprofundar nossas ligações com as

1 Texto de setembro de 2002.


2 Que Fazer?, Editora Hucitec, 1978, p. 18, linha 38.
3 Idem, p. 19, linha 26 e 27.
massas dentro do princípio de que só as massas dirigidas pela classe operária
e seu partido, armado da teoria revolucionária, podem fazer a revolução.
Desde o momento em que iniciamos esta nova etapa na luta de nosso
povo por sua libertação, analisando a conjuntura em que iniciávamos nossa
prática, avaliamos a necessidade de retomar, nas circunstâncias de hoje, as
tarefas colocadas por Lenin em Que Fazer? para enfrentar a tarefa central
em nosso país: forjar o partido revolucionário; forjar-nos enquanto partido
revolucionário.
Para isso, sabíamos que era necessário retomar a teoria revolucionária do
proletariado, o marxismo-leninismo. Retomar a teoria revolucionária que
une num todo único, na unidade dialética, a teoria e a prática da luta de
classes e rejeita igualmente, radicalmente, tanto a passividade, a colaboração
de classes, quanto o ativismo irrefletido, o esquerdismo, o aventureirismo.
Forjar o partido revolucionário na luta de classes, elaborando a linha
ideológica e política justa, isto é, dotando nossa organização da arma neces-
sária para dirigir o proletariado, os camponeses e as massas de nosso povo
e, assim, reconstruindo o partido do proletariado, retomar o movimento
de massas rumo à revolução.
Desde o início sabíamos que nos defrontaríamos, em nossa tarefa, com o
revisionismo, terreno ideológico onde medra tanto o oportunismo de direita
quanto o oportunismo de esquerda – o esquerdismo, tendências ou para
a colaboração de classes, para a submissão política e ideológica diante da
burguesia ou, inversamente, para o fechamento sectário e aventureiro, ambos
capitulação, rendição frente à tarefa incontornável de dirigir a imprescindível
ação revolucionária das massas e, principalmente, lutar contra as correntes
reformistas e social-democratas que hegemonizam o movimento de massas.
Como não existe meio termo entre o marxismo-leninismo e a ideologia
burguesa, o revisionismo expressa, na verdade, as concepções da burguesia,
quer o revisionismo de direita quer o esquerdismo. Ideologias reproduzidas
pela burguesia pela mesma razão: anular e debilitar o marxismo-leninismo,
teoria revolucionária da classe operária, dividir e enfraquecer seu partido e
sua prática revolucionária.
Sabíamos que enfrentaríamos o revisionismo e o reformismo, tendo em
vista não só a dificuldade histórica em dominar a teoria revolucionária e
estabelecer o caminho justo à prática revolucionária que as organizações
que foram se constituindo na vanguarda da classe operária apresentavam,
como também a herança que trazíamos: a subestimação da teoria, a subes-
timação do trabalho de massa, do princípio estabelecido por Marx e Engels
no “manifesto inaugural da Internacional”, de que a emancipação da classe
operária deve ser obra da própria classe operária.
É assim que, compreendendo que a teoria revolucionária é a união da
verdade universal do marxismo-leninismo com a prática concreta de cada
revolução concreta, assumimos que temos que dar respostas aos problemas
que a revolução brasileira coloca. Assumimos que temos responsabilidade de
desenvolver a teoria marxista-leninista a partir do princípio defendido por

16
Marx e Engels e todos os marxistas de que sem as massas não se pode fazer
a revolução. Que a libertação dos oprimidos é obra dos próprios oprimidos;
que a experiência revolucionária mostra que somente nos forjamos como
partido revolucionário lutando consequentemente por um longo período de
tempo junto aos operários, aos camponeses e às massas por seus interesses
e que só assim se mobilizarão, tendo à frente seu partido, para a revolução.
Esta nossa resolução se fundamenta na análise concreta do estado de luta
de classes no Brasil hoje. Conjuntura que resulta também do caminho árduo
e penoso que tem sido a história da construção do Partido Comunista no
Brasil, de fragilidade teórica e orgânica com que se forjou e se desenvolveu
o partido a partir de 1922, expressa nas oscilações de sua linha política, mas
que não o impediu que com uma posição mais justa ou mais equivocada
participasse dos principais embates da luta de classe.
É de fundamental importância a análise da história da formação da van-
guarda revolucionária no Brasil, seus acertos e erros. Análise que só podemos
fazer aqui de forma sumária, pois é sobre o terreno construído na luta de
classes por nosso povo e por todos os revolucionários que deram suas vidas
pela revolução em nosso país que temos de lançar os alicerces de nossa prática.
Não temos a menor dúvida do mérito daqueles que fundaram o Partido
Comunista em 1922. Fundaram o partido em difíceis condições históricas:
pouco conhecimento e difusão da teoria marxista no Brasil, uma classe operária
de formação recente, forte movimento reivindicativo das camadas médias, e
os prenúncios da crise mundial do imperialismo que vai eclodir em 1929, etc.
De sua formação até o início dos anos 30, o PCB teve sua ação revolucionária
determinada por uma compreensão equivocada e truncada do marxismo-
-leninismo; compreensão influenciada por ideologias pequeno-burguesas,
como o anarquismo, predominantes entre a incipiente classe operária.
No começo dos anos 30, em meio à recessão generalizada da economia
mundial, a regressão do processo de integração imperialista, a ascensão do
nacionalismo por toda a parte e o surgimento do fascismo e do nazismo, o
partido assumiu uma linha mais coerente com a conjuntura do momento,
dirigindo seu trabalho de massas a partir de uma política antifascista e anti-
-imperialista, a Aliança Nacional Libertadora (ANL).
A força da ANL esteve em uma política mais ajustada à conjuntura do
momento e sua fraqueza se expressou em sua composição: predomínio
da pequena burguesia, de jovens oficiais das Forças Armadas vindos do
movimento tenentista, com pequena participação operária e praticamente
nenhuma atuação no campo. Tanto o partido como a ANL se formaram,
principalmente, entre as camadas médias urbanas.
O movimento militar de 1935 foi o resultado da linha da frente que o
norteava e de sua própria composição. Sendo resumidamente uma tomada
dos quartéis pelos militares ligados ao partido e à ANL, restrito praticamente
a alguns quartéis no Nordeste e no Rio de Janeiro, movimento sem a partici-
pação da classe operária, dos camponeses ou mesmo das camadas médias,
as que mais amplamente se ligaram ao movimento.

17
A incapacidade do partido em dominar a teoria marxista-leninista e fazer
uma análise concreta da situação do Brasil naquele momento, elaborando
uma linha justa, possibilitou não só que, diante do levante militar, a ditadura
de Getúlio Vargas dissolvesse a ANL praticamente sem nenhuma reação
das massas, como também, que a repressão resultasse na quase integral
desorganização do partido.
A partir de 1945, com o fim da ditadura de Getúlio Vargas, o partido
que vinha já crescendo em razão de sua atuação na luta antifascista numa
conjuntura favorável com a derrota do nazismo e do fascismo e com o
papel nela desempenhado pela União Soviética, começa a se voltar para
o movimento de massas influenciado pela ideologia burguesa, passando a
atuar principalmente na legalidade, no terreno parlamentar, alimentando
ilusões com a democracia burguesa.
O fraco domínio do marxismo-leninismo, o peso da ideologia burguesa,
a incapacidade de analisar a conjuntura concreta e a correlação de forças
na luta de classes tanto interna como no terreno das contradições do im-
perialismo, faz com que novamente o partido seja golpeado sem conseguir
esboçar uma reação significativa e proteger sua estrutura.
Em 1947 o registro do PCB é cassado, seus deputados e senador perdem
o mandato, suas sedes e seus jornais são fechados e o partido vai para a
ilegalidade, perdendo outra vez milhares de militantes, despreparados ide-
ologicamente para a realidade da luta de classes. Como reação à repressão,
a partir do início da década de 50 com o Manifesto de Agosto, o partido
“radicaliza” sua linha política, para em seguida oscilar entre a defesa de uma
revolução pela luta armada encabeçada por setores das forças armadas
nacionalistas e o apoio acrítico à candidatura de JK, que defendia com o
seu plano de metas, de forma consciente, a inserção de forma subordinada
do Brasil à nova fase porque passava o imperialismo.
Com a vitória de JK e o período de semilegalidade que se seguiu, avança
o peso da ideologia burguesa dentro do partido, aprofunda-se a ilusão
ideológica do caráter da democracia burguesa, o partido superdimensiona
o caráter nacionalista e anti-imperialista da “burguesia nacional”. O que o
leva a defender na prática a possibilidade de uma revolução nacional, anti-
-imperialista, sob a direção da burguesia, na qual, em resumo, o partido e
as massas teriam o papel coadjuvante e que, portanto, poderia contar com
a simpatia e a participação de parcelas significativas das forças armadas.
Por todo este período, até o golpe militar de 1964, o partido não conse-
gue enfrentar o avanço do revisionismo, do reformismo. Daí não conseguir
definir uma linha justa para seu trabalho, determinar a ênfase justa entre
o trabalho de massas, a luta de massas e o trabalho parlamentar, entre o
trabalho legal e o trabalho clandestino.
Como expressão do predomínio do revisionismo e do reformismo, a divul-
gação e o estudo da literatura marxista - que se inicia com maior intensidade
no Brasil em meados dos anos 50 - se fazia debaixo do influxo da ideologia
revisionista que começava a predominar no movimento comunista sob a

18
influência da URSS com a edição dos manuais soviéticos, dos “Afanasievs”
e companhia, das digressões de Kruschev sobre a coexistência pacífica, a
transição pacífica, o estado de todo o povo, o fim da ditadura do proletariado
e a construção do comunismo na URSS sobrepondo-se à edição, difusão e
estudos da obra de Marx, Engels, Lenin, Stalin e Mao Tsé-Tung.
A comprovação da insuficiente assimilação do marxismo-leninismo,
mesmo pelos quadros dirigentes do partido, se dá frente às questões cru-
ciais colocadas para o movimento comunista pelo XX Congresso do PCUS:
o enfrentamento entre o marxismo-leninismo e o revisionismo. O partido
não percebe a luta que realmente se travava por trás da denúncia do “culto
à personalidade”, da “violação do socialismo”, dos “crimes e erros” de Stalin.
E não percebe porque já está imbuído do revisionismo, já vê a luta de classes
do ponto de vista do revisionismo.
A não percepção do que se escondia por trás das denúncias contra Stalin
vai levar a que a cisão do PCB em duas correntes nos fins dos anos 50 início
da década de 60 - a da maioria que vai abandonar a antiga denominação
para chamar-se Partido Comunista Brasileiro e a minoria que mais tarde
vai retomar o nome de Partido Comunista do Brasil - se desse em razão da
política abertamente reformista que começa a predominar na prática da
maioria do PCB e não em função de posições divergentes quanto ao debate
que dividia o movimento comunista no mundo todo.
Nenhuma das correntes vai se situar em razão das posições que se en-
frentavam no movimento comunista a partir do XX Congresso do PCUS; o
marxismo e o revisionismo, a defesa da teoria revolucionária, o marxismo-
-leninismo, contra o assalto do revisionismo, representado pela camarilha
que se reuniu em torno de Kruschev.
O predomínio do revisionismo e do reformismo no PCB, materializados na
defesa da transição pacífica para o socialismo em todo o mundo e também
no Brasil, na defesa da revolução nacional e democrática sob a direção da
burguesia, no predomínio da linha política que tornava exclusivo o caminho
eleitoral e legal, no abandono do movimento de massas substituído pela
construção de um complexo aparelho sindical-burocrático e a total incapa-
cidade de analisar o estado da luta de classes, ou seja, a conjuntura, como vai
comprovar o golpe de 1964, tornou o PCB incapaz de esboçar qualquer reação
diante da nova ofensiva das classes dominantes brasileiras e do imperialismo.
O golpe militar de 1964 significou a perda da hegemonia exercida pelo
PCB no movimento comunista e revolucionário até aquele momento. A partir
daí o partido vai perdendo sucessivamente militantes, sofrendo seguidos
fracionamentos em razão da reação de parte de seus dirigentes que, frente à
passividade do partido diante do golpe, reagem pelo caminho do esquerdismo,
criando organizações nas quais predominavam uma visão militarista da luta
de classes, que iniciam ações armadas nas cidades em busca de conseguir
estabelecer no campo um movimento guerrilheiro de concepção foquista.
Com o fim do regime militar, o PCB vai perder a pouca expressão que ainda
possuía fracionando-se em um grupo ainda mais à direita, já inteiramente no

19
campo da ideologia e da política-burguesa, o PPS, mantendo um pequeno
grupo a sigla PCB.
O grupo que se desliga do PCB no início da década de 60, que já vinha
discordando desde 1957 da estratégia e tática reformista para a revolução
brasileira, defendida pela maioria do CC, e que mais tarde vai assumir a de-
nominação PCdoB, também não revela uma maior compreensão da teoria
e, portanto, não detém condições para uma análise concreta do estado de
luta de classes naquela conjuntura.
Assim é que o manifesto-programa, resultado de sua Conferência Nacional,
em fevereiro de 1962, mesmo afirmando que “as classes dominantes tornam
inviáveis o caminho pacífico para a revolução”, faz a afirmação de que “Os
inimigos da revolução não possuem a força que aparentam ter” às vésperas
do golpe de 1964.
E mais, não faz nenhuma referência à questão que polarizava o movi-
mento comunista por todo o mundo: a luta entre o marxismo-leninismo e
o revisionismo expressa na questão sino-soviética que, ao contrário do que
alegam, já se dava com o conhecimento de todo o movimento comunista.
Ao invés, o documento, ao se referir a União Soviética, afirma que esta “mar-
cha para o comunismo”. Somente em documento de julho de 1963 é que o
PCdoB assume posição em seu documento Resposta a Kruschev, criticando
as posições da camarilha dirigente na URSS.
Nada mais seria preciso para comprovar a incompreensão pelo PCdoB do
marxismo-leninismo e das posições de Mao Tsé-Tung, além da linha política
seguida para a construção do movimento de luta armada no sul do Estado
do Pará, a Guerrilha do Araguaia.
Afastando-se dos princípios da guerra popular prolongada que defendia,
o PCdoB não desenvolveu nenhum trabalho político na região desde 1966,
quando transferiu para lá seus primeiros militantes, até 1972 quando se inicia a
luta armada; o que, somado ao evidente equívoco quanto à escolha da região
para iniciar o trabalho no campo, fez com que a luta empreendida com o obje-
tivo de desfechar a guerra popular reproduzisse no essencial a tática foquista.
Com a queda do CC do PCdoB, na Lapa, e a crítica feita pelo seu principal
dirigente às concepções de Mao Tsé-Tung, inicia-se os deslocamento contínuos
do partido em direção a posições abertamente revisionistas e reformistas:
abandono do marxismo-leninismo, da organização leninista do partido, do
trabalho de massas, a defesa da transição pacífica, da colaboração de classes,
do caminho eleitoral como único caminho para uma retórica tomada de poder.
Podemos dizer, hoje, que há mais de 20 anos não temos no Brasil um
partido que assuma o marxismo-leninismo com o desenvolvimento que a
ele trouxe a experiência da luta de classes. As organizações que reivindicam
o marxismo e que já haviam sido afetadas pela cisão do movimento comu-
nista pelo revisionismo a partir de 1956 e pela resposta equivocada ao golpe
militar de 1964, de meados da década de 70 para início de 80, começam a
se afastar cada vez mais das posições revolucionárias.
O PCdoB, em seguida à crítica a Mao Tsé-Tung, inicia um movimento

20
contínuo em direção às posições escancaradamente reformistas. O núcleo
dirigente do PCB volta do exílio ganho para posições reformistas e revisio-
nistas dominantes nas repúblicas populares da Europa. O MR-8, resultado
da fusão, nos anos 70, de várias correntes que defendiam o marxismo e a
necessidade da constituição do partido revolucionário no Brasil, a partir de
seu 3º congresso, em 1982, se torna mais e mais um grupo amorfo a reboque
de frações da classe dominante.
A desagregação final da União Soviética foi a pá de cal que soterra o
que restava de revolucionário nestas organizações: abandonaram o estilo
marxista-leninista de organização e o trabalho revolucionário entre as massas
e, com relação à teoria, resumem-se a uma reverência formal ao marxismo-
-leninismo, ficando, a partir dos anos 80, a maioria destas organizações a
reboque do PT e da CUT, organizações que hegemonizam a luta da classe
operária e dos trabalhadores.
A nosso ver, a primeira e principal razão do recuo das classes dominadas
na luta de classes é a longa ausência de um partido revolucionário e, em
contrapartida, a hegemonia política e ideológica sobre a classe operária e
trabalhadores do reformismo e do revisionismo, expressa no lugar ocupado
pelo Partido dos Trabalhadores e pela Central Única dos Trabalhadores sobre
a organização política e sindical das classes dominadas. Organizações que se
constituem num amálgama de reformismo, social-democracia e de correntes
ligadas à igreja, ao lado de grupos trotskistas - que têm na via eleitoral sua
única estratégia e tática. O que, além de minar sua unidade e disposição de
luta, facilitou a inculcação nelas da ideologia dominante - o individualismo,
o egoísmo, o estímulo à concorrência e por último às “vantagens” da globa-
lização e do neoliberalismo - num momento de crise econômica na qual a
resistência dos dominados está minada pelo desemprego, por um exército
de miseráveis, e pela ausência do partido revolucionário, o que significa,
portanto, a ausência da perspectiva revolucionária para sua luta.
Hegemonia do reformismo, de correntes social-democratas e da igreja
sobre a organização política e sindical das classes dominadas que se deu
numa conjuntura de ascenso da luta de classes que colocava em cheque o
regime militar - a partir das eleições de 1974, das greves de 1978 - e de enfra-
quecimento das organizações que reivindicavam o marxismo, feridas, por
dentro, pelo revisionismo. De maneira que a maioria destas organizações
ou se encerravam dentro do PT, ou procuraram abrigo a seu lado, coop-
tadas pela força da gravidade do reformismo. Evidentemente o PT nasceu,
cresceu, entre outras razões, no vácuo deixado pela ausência de um partido
revolucionário e pelos erros cometidos pelos comunistas.
A experiência recente da Argentina só vem comprovar a tese que de-
fendemos: nossa tarefa prioritária neste momento é reconstruir o partido
revolucionário, e para isto retomar o marxismo-leninismo combatendo o
reformismo e revisionismo.
Os camaradas argentinos não têm dúvidas em apontar o “Argentinazo”
do fim de 2001 e início deste ano como a coroação de um movimento de

21
massas de caráter fundamentalmente espontâneo, em razão de que, no geral,
as organizações políticas que se arrogam a responsabilidade de vanguardear
a luta de classes estão na maioria dos casos dominadas pelo reformismo,
pela social-democracia e pelo eleitoralismo.
Cumpre-nos aprofundar nossa compreensão da teoria marxista-leninista,
conclamar todo o partido a ler e reler o Que Fazer?. É necessário ler e reler o
Que Fazer? como militante, como revolucionário, a partir de nossa prática na
luta de classes. Ler não para aplicar mecanicamente seus ensinamentos, mas
para retirar a verdade universal de suas lições e saber aplicá-las à realidade
na qual travamos nossa luta. E, assim, lutar para reconstruir a vanguarda
da classe operária, aprender a lutar junto com as massas, aprofundar nossa
análise da conjuntura nacional compreendendo, como diz Lenin, que a
luta contra o imperialismo e seus asseclas internos é uma frase vazia se não
está indissoluvelmente ligada à luta contra o reformismo e o revisionismo 4.
A dominação e a exploração imperialista imposta com a participação
da grande burguesia brasileira, hegemonizada hoje pela fração financeira
nacional associada ao capital financeiro internacional, coloca ao povo bra-
sileiro, como tarefa incontornável, no caminho que leve ao socialismo e ao
comunismo: a luta anti-imperialista e democrática.
O Brasil não tem outro caminho para sair da crise que lhe impõe a
exploração imperialista se não aquele que o leva, sob a direção do seu par-
tido revolucionário, agente das classes dominadas na luta de classes, a um
poder que expresse uma nova aliança de classes que tenha no seu centro
a classe operária, o campesinato, aliados às camadas médias e a setores da
pequena e média burguesia, e que assim, possa romper com a submissão ao
imperialismo. E, após um período de transição determinado pelas condições
concretas na qual se realiza a revolução anti-imperialista e democrática,
iniciar a construção do socialismo e do comunismo.
Hoje, na conjuntura concreta em que se trava a luta de classes no Brasil,
o dever de cada revolucionário é o de reconstruir o partido revolucionário
do proletariado no fogo da luta de classes. Tudo o mais é tergiversação. Só
na luta de classes, de dentro da luta de classes é possível construir o Partido
capaz de dirigir a luta de nosso povo por sua libertação.
Esta é a tarefa que colocamos para nossa organização. Estas são as razões
porque convocamos a todos os comunistas brasileiros a se unirem a nós
na reconstrução do Partido Comunista, na revolução anti-imperialista e
democrática que vai libertar nosso povo, primeiro passo na construção do
socialismo e do comunismo.
O dever de todo revolucionário, na conjuntura concreta do Brasil, hoje,
é o de retomar o marxismo-leninismo, reconstruir o Partido Comunista
do Brasil e fazer a revolução.

4 Imperialismo, fase superior do capitalismo. Edições Avante, 1975, p. 146.

22
Algumas teses para retomar o marxismo:
materialismo dialético 1

1 Introdução
Como no início do século, vivemos uma época de “dispersão teórica”
(LENIN, 1955, p. 32) onde o “movimento” se debate entre o “oportunismo”
(LENIN, 1955, p. 28) de um lado e “a paixão pelas formas mais estreitas de
atividade prática” (LENIN, 1955, p. 32), por outro. Também, como naquela
época, podemos repetir: o que fazer?
E, como Lenin, responder:
Inicialmente, … retomar o trabalho teórico … sem um tra-
balho desta índole não era possível um aumento eficaz do
movimento. Em segundo lugar, … empreender uma luta ativa
contra a crítica legal [o oportunismo]. Em terceiro lugar, …
erguer-se vigorosamente contra a dispersão e as vacilações
no movimento prático, denunciando e refutando qualquer
tentativa de rebaixar, consciente ou inconscientemente,
nosso programa e nossa tática (LENIN, 1955, p. 28).
Contudo, poderiam alegar que não estamos em 1902 e levantar objeções
contra a importância de retomarmos a discussão do marxismo. Acreditamos
que é importante respondê-las. Desde Marx e Engels, mas, principalmente,
de Lenin, que compreendeu e defendeu incansavelmente a importância da
teoria, tem-se firmado para os marxistas-leninistas a necessidade da teoria,
não somente indispensável para o desenvolvimento da ciência marxista -
como ignorar que Marx afirma ter criado uma ciência -, como também
imprescindível para a análise concreta das situações concretas, forma de
existência da ciência marxista e, desta maneira, indispensável para a práti-
ca política da luta de classes. E só isto já seria suficiente para justificar que
retomássemos o marxismo-leninismo.
Porém, alguns podem objetar de que Marx, Engels, Lenin, Stalin ou Mao
já disseram e escreveram o essencial sobre o marxismo-leninismo e é preciso
responder-lhes.
Será que essa prodigiosa experiência da luta de classes após Marx e Engels,
Lenin e até mesmo Mao não tem nada de novo para nos ensinar? Será que
a prodigiosa experiência da Revolução Soviética, da Revolução Chinesa, das
revoluções na Ásia, na África, na América Latina, dos diferentes caminhos
da construção do socialismo, de todas as lutas operárias contra a burguesia,
das lutas das massas, a luta contra o fascismo, a luta de libertação nos países
dominados, nada têm a nos ensinar de novo?
Será que a experiência das grandes vitórias do movimento revolucionário
e suas derrotas, suas crises nada tem a nos ensinar?

1 Texto de abril de 2000.


Sabemos que estamos vivendo uma grave crise no movimento revo-
lucionário por todo o mundo, também sabemos que a crise que estamos
vivendo não nos deve fazer desconhecer uma outra crise infinitamente
mais grave e mais importante, a crise sem precedentes na qual se encontra
o imperialismo: a barbárie.
Se Marx soube tirar as lições da Comuna de Paris, de sua vitória e de seu
fracasso, se Lenin soube tirar lições da Revolução de 1905, desse ensaio geral
da criação do poder popular pelas massas, dos Soviets, como nós - diante
de toda essa monumental experiência, enormes vitórias, derrotas, fracassos
na construção do socialismo na União Soviética, na China Popular, da crise
do movimento revolucionário por todo o mundo, experiências estas que
estão a nossa disposição - podemos dizer que não temos nada a aprender
de tudo isso?
Será que já conseguimos tirar todas as lições do que nos deixou Marx,
Engels, Lenin, Stalin e Mao? Se foi assim, como explicar nosso fracasso na
construção do socialismo e a crise que vive hoje o movimento revolucionário
internacional?
Não vivemos “numa época de dispersão teórica” muito mais grave do que
aquela que fez Lenin afirmar que era necessário retomar ao trabalho teórico
sem o qual o crescimento do movimento não seria possível? (LENIN, 1955,
p. 28). E não afirmou Lenin que, naquelas circunstâncias, não seria demasiada
a insistência sobre a importância da teoria, qualquer que fosse ela? É impor-
tante voltarmos ao Que Fazer? (1955) já que algumas das condições com que
se batia o movimento naquele momento fazem sua aparição hoje de forma
diferente e mais perigosa: “o oportunismo” (LENIN, 1955, p. 28) o reformis-
mo, a “dispersão teórica”, “a paixão pelas formas mais estreitas de atividade
prática” (LENIN, 1955, p. 32). E como Lenin vai se posicionar diante disso?
Referindo-se à crítica de Marx ao Programa de Gotha,
… mas não barganheis com os princípios, não façais «con-
cessões» teóricas. Esse era o pensamento de Marx, e eis que
existem entre nós pessoas que, em seu nome, procuram
diminuir a importância da teoria! Sem teoria revolucionária,
não existe movimento revolucionário. Nunca será demais
insistir nessa idéia, numa época em que a propaganda em
moda do oportunismo anda de par com a paixão das formas
mais estreitas das atividades práticas (LENIN, 1955, p. 32).
É, portanto, necessário retomar o marxismo-leninismo, retomar o “tra-
balho teórico” e é necessário que se o faça agora.
Para isto, buscaremos delinear de forma bastante sumária e inicial os
contornos do que entendemos por marxismo e seu desenvolvimento do que
entendemos por materialismo histórico e materialismo dialético, como queria
Lenin, “expondo tanto quanto possível nossas idéias de maneira positiva sem
recorrer, ou quase sem recorrer, à polêmica” (LENIN, 1955, p. 10), no esforço
de corresponder a exigência, sempre repetida de Marx a Mao Tsé-Tung, de

24
construir a teoria de nossa prática concreta, estabelecendo assim a distinção
entre os que fazem o esforço arriscado de pesquisar e os que se contentam
em repetir o que leram mal e que menos aprenderam para se eximirem de
pensar por si mesmo. Contudo, esta breve incursão sobre a teoria deve ser
considerada provisória num duplo sentido: primeiro, porque como toda
formulação teórica, está sujeita a um processo permanente de retificação
e desenvolvimento; segundo, porque como toda formulação teórica ao ser
posta para trabalhar produz efeitos que resultam em desenvolvimento e
retificação tanto na teoria como em seu objeto 2.
1.1 Marxismo: teoria científica
Entendemos o marxismo – o materialismo dialético e o materialismo
histórico – como sistema que comporta duas disciplinas (usamos aqui dis-
ciplina no sentido de ciência, ramo do conhecimento científico), correlatas
e autônomas: a ciência da história ou o materialismo histórico e a filosofia
marxista ou o materialismo dialético. Ciências relacionadas uma a outra por
razões teóricas e históricas e diversas uma da outra em razão de que têm
objetos distintos, diferentes – ciências que demandam, requerem, impera-
tivamente, uma permanente tarefa de laboração/elaboração categorial e
conceitual exigida pelo processo de permanente transformação da realidade
objetiva, produção/elaboração que implica sua necessária articulação orgâ-
nica com os princípios fundamentais de seus corpos teóricos, elaboração
de conceitos e categorias que fazem corpo com a teoria.
Ou, dizendo de outra forma, tomamos partido da teoria de Marx e Engels,
o marxismo que, como toda teoria científica, traz inscrita no corpo teórico
de seus fundamentos a condição de sua vigência e de seu desenvolvimento
coerente e necessário e, assim, baliza o percurso de seu sentido e prescreve
limites a partir dos quais progride, como exigência do corpo de supostos
sobre o qual se assenta, de suas “piedras angulares” (LENIN, 1981, v. 4, p. 196),
como quer Lenin, e como requerimento tanto de suas contradições internas
enquanto teoria, como de suas contradições no permanente processo de
mudança da realidade da qual é parte; mudanças expressas na prática social
dos homens em suas diversas formas, entre elas, a prática científica, uni-
dade ciência/real. O conceito do qual partimos é o de que todo e qualquer
discurso, ideológico ou científico, possui uma lógica interna que implica
necessariamente que qualquer termo ou noção, conceito ou categoria faça
corpo com outros termos, noções, conceitos e categorias que não podem
ser suprimidos do conjunto sem alterar o funcionamento do discurso.
Quando falamos do papel desempenhado por um termo ou noção do
discurso ideológico entendemos que fazem corpo com uma formação
ideológica ou, quando falamos da elaboração de conceitos ou categorias
no discurso científico, entendemos que fazem corpo com uma formação
teórico-ideológica-científica, unidade e contradição.
A expressão “fazer corpo” implica que esses termos, noções, conceitos

2 Usamos “teoria” e “objeto” no sentido de facilitar a compreensão do texto, sem esquecer


a identidade entre teoria e seu objeto.

25
e categorias, nos diversos lugares que podem ocupar num discurso teórico
– fundantes, centrais, periféricos – não podem ser suprimidos do conjunto
sem alterar o funcionamento do todo.
Se admitimos como premissa que a teoria que assumimos é o marxismo,
na atual conjuntura histórica do estágio do desenvolvimento desta teoria,
temos que começar respondendo a uma questão: em que consiste o mar-
xismo? E qual o estágio de seu desenvolvimento? A tradição marxista à qual
nos filiamos defende que o marxismo comporta duas disciplinas científicas,
correlatas e autônomas: a ciência da história, ou o materialismo histórico e a
filosofia marxista ou o materialismo dialético, o método dialético, portanto
que o marxismo é ciência. Mas, vamos deixar falar o próprio Marx, para
encontrar nele o fundamento, a comprovação, do que afirmamos.
Marx inicia o Prefácio à 1a edição de O Capital (1983) afirmando que
“Todo começo é difícil; isso vale para qualquer ciência” (1983, v. 1, p. 11). Ora,
acreditamos que não seja possível outra interpretação desta afirmação se
não a de que, pelo menos do ponto de vista de Marx, com O Capital se
iniciava uma ciência.
No mesmo sentido, observa Marx na Carta a Maurice La Châtre, res-
ponsável pela edição francesa de O Capital, referindo-se às dificuldades da
leitura dos primeiros capítulos de sua obra: “Não há estrada já aberta para
a ciência …” (1983, p. 23) 3.
Ora, mas qual o objeto dessa ciência que Marx afirmava começar? Ele
mesmo nos responde quando diz que “… a finalidade última desta obra é
descobrir a lei econômica do movimento da sociedade moderna …” (1983,
p. 13). E mais adiante, “… meu ponto de vista, … enfoca o desenvolvimento
da formação econômica da sociedade como um processo histórico natural”
(1983, p. 13).
E admitindo o “modo tão acertado” (1983, p. 20) da crítica à edição russa
de O Capital, o transcreve no Posfácio à segunda edição:
O valor científico de tal pesquisa reside no esclarecimento
das leis específicas que regulam o nascimento, existência,
desenvolvimento e morte de dado organismo social e a sua
substituição por outro, superior. E o livro de Marx tem, de
fato, tal mérito (1983, p. 20).
O que Marx quer dizer com isto, quando aceita a afirmação de que seu
livro “tem … tal mérito”? Quer dizer que seu livro, sua teoria, tem o mérito
de ter esclarecido as “leis específicas que regulam o nascimento, existência,
desenvolvimento e morte de dado organismo social e a sua substituição por
outro, superior” (1983, p. 20), isto é, a ciência da história que se inicia com
O Capital, o que permite a Lenin, em uma nota em seus Cuadernos Filosóficos
(LENIN, 1986, v. 29), comentando a obra de Hegel, Lições sobre a Filosofia
3 Na edição de O Capital com a qual trabalhamos, da Abril Cultural (Marx,1983), há um
erro na frase citada: ao invés de “estrada” imprimiu-se “entrada”, como se pode constatar
na edição francesa: Il n’y a pas de route royale pour la cience … (MARX, Karl. Le Capital.
Critique de l’Economie Politique. Livre premier, Editions Sociales, Paris. 1977).

26
da História, dizer que Marx deu o maior passo à frente na constituição da
ciência da história:
En general, la filosofía de la historia da muy, muy poco; esto
es comprensible, porque precisamente aquí, precisamente en
este terreno, en esta ciencia [na ciência da história], dieron
Marx e Engels el más grande paso adelante. Aquí, más que
en ninguna otra parte, resulta Hegel envejecido y anticuado
(LENIN, 1986, v. 29, p. 290).
Que “… el más grande paso adelante” (LENIN, 1986, v. 29, p. 290) seria
este se não o início da ciência da história? Daí a oportunidade e a justeza
da posição de Plekanov quando, na primeira página, de sua obra Questões
Fundamentais do Marxismo (PLEKHÂNOV, 1956), afirma que o mérito da
formulação da ciência da história pertence a Marx e Engels, cunhando,
então, o conceito materialismo histórico para denominar a nova ciência.
O mérito principal na sistematização e formulação do ma-
terialismo moderno pertence, incontestavelmente, a Karl
Marx e a seu amigo Friedrich Engels. Os aspectos históricos
e econômicos dessa concepção do mundo, que se designam,
ordinariamente, com o nome de materialismo histórico, …
são quase exclusivamente obra de Marx e de Engels. A con-
tribuição de seus predecessores, nesse domínio, não deve ser
considerada senão um trabalho preparatório (PLEKHÂNOV,
1956, p. 7).
Conceito com que, daí por diante, se passa a denominar a ciência da
história iniciada por Marx e Engels a partir da elaboração de O Capital.
Contudo, em O Capital, no mesmo e único processo teórico e histórico
em que inicia a ciência da história, inicia também a produção/construção
de um método, como diz Marx, “meu verdadeiro método” (MARX, 1983,
p. 20), o método dialético.
Ora, se admitimos que Marx inicia em O Capital a ciência da história, para
sermos coerentes temos que admitir também que Marx inicia, no mesmo
movimento, a construção de seu método, científico, “la lógica de El Capital”
(LENIN, 1986, v. 29, p. 300), o método da nova ciência. E Marx, em vários
momentos, faz o anúncio de seu método dialético: esta dialética que “… é,
em sua essência, crítica e revolucionária” (MARX, 1983, p. 21).
Nesta questão é importante nos determos na formulação de Lenin quan-
do, no texto em que rascunha um plano da dialética de Hegel, reunido em
seus Cuadernos Filosóficos, nos fala da lógica de Marx:
Si Marx no nos dejó una «Lógica» (con mayúscula), dejó en
cambio la lógica de El Capital, y en este problema debería
ser utilizada a fondo. En El Capital, Marx aplicó a una sola
ciencia la lógica, la dialéctica y la teoría del conocimiento del
materialismo [no hacen falta 3 palabras: es una y la misma

27
cosa], que tomó todo lo que había de valioso en Hegel y lo
desarrolló (1986, v. 29, p. 300).
É importante utilizar a fundo esta valiosa indicação de Lenin para que
possamos estabelecer o estatuto desta lógica, deste método de Marx.
Porém, não se trata somente de expor o materialismo dialético e o mate-
rialismo histórico, de repor seu estatuto científico, de fazer ver e compreender
a ambos como ciência, mas de colocá-los em ação, na “análise concreta da
situação concreta” (LENIN, 1981, v. 3, p. 14).
Contudo, antes disso, temos ainda que responder outra questão. Por
que retomar e expor o estatuto científico do marxismo? Não está suficien-
temente exposto na obra de Marx, Engels, Lenin e seus continuadores? O
dogmatismo, o ecletismo e o revisionismo ainda ameaçam o marxismo? A
ofensiva ideológica do pensamento dominante conseguiu fazer recuar o
marxismo? A ideologia dominante, através do dogmatismo, do idealismo,
do ecletismo e, principalmente, do revisionismo, conseguiu passar por
marxismo o que só é dialética idealista; passar por marxismo um amálgama
eclético e inócuo. Portanto, trabalhar para repor a teoria marxista passa a
ser um requisito fundamental para nossa prática, para que não passem por
marxismo uma compreensão empobrecida, mecanicista, vulgar, tirada dos
manuais do revisionismo soviético ou uma compreensão também empo-
brecida, mecanicista, vulgar resultado da aplicação dogmática de textos mal
lidos e menos compreendidos.
Engels se contrapõe ao dogmatismo e ao ecletismo elaborando as “piedras
angulares” (LENIN, 1981, v. 4, p. 196) para o entendimento da progressão
infinita do conhecimento, da ciência, refutando Dühring e, – se permitem
repetir esta tópica que trouxe tantos problemas de interpretação – reco-
locando sob seus pés a dialética da verdade absoluta e da verdade relativa:
… a sabedoria do pensamento realiza-se numa série de
homens cujo pensamento é extremamente pouco sobe-
rano, e o conhecimento, estribado num direito absoluto à
verdade, numa série de erros relativos. Nem um nem outro
podem, porém, realizar por completo a não ser através da
duração infinita da vida humana… Neste sentido, o pensa-
mento humano é tão soberano como não soberano e sua
faculdade de conhecimento tão ilimitada como limitada.
Soberano e ilimitado pela sua natureza, pela sua vocação,
pelas suas possibilidades e pelo seu objetivo histórico final,
não soberano e limitado pela sua execução individual e pela
sua realidade singular (ENGELS, 1975, p. 168).
Lenin com clareza e concisão coloca a questão não só do desenvolvimento
do marxismo como também do desenvolvimento de toda a ciência. Aqui,
permitam-me repetir outra tópica: o edifício do desenvolvimento da ciência
é construído a partir de suas “piedras angulares” que balizam o sentido no
qual progride e determinam a necessidade de sua progressão.

28
No enfocamos, en absoluto, la teoría de Marx como algo
acabado e intangible; estamos convencidos, por el contrario,
de que colocó sólo las piedras angulares de la ciencia que
los socialistas deben impulsar en todas las direcciones, si no
quieren quedar rezagados en la vida (LENIN, 1981, v. 4, p. 196).
Não estamos dizendo com isso que são somente os elementos internos,
“piedras angulares” que determinam a necessidade e o sentido do desenvolvi-
mento de uma ciência, até porque a ciência é sempre a unidade contraditória,
teoria e prática, e é como expressão dessa unidade que se estabelecem essas
“piedras”. Sem essa compreensão converteremos a ciência num “dogma en
el mal sentido de esta palabra, en una cosa muerta …” (LENIN, 1983, v. 18,
p. 142), distinta e absolutamente separada da realidade.
Desde el punto de vista del materialismo moderno, es decir
del marxismo, son históricamente condicionales los límites
de la aproximación de nuestros conocimientos a la verdad
objetiva, absoluta, pero la existencia de esta verdad, así
como el hecho de que nos aproximamos a ella no obedece a
condiciones … Dirán ustedes: esta distinción entre la verdad
absoluta y la verdad relativa es imprecisa. Y yo les contestaré:
justamente es lo bastante «imprecisa» para impedir que la
ciencia se convierta en un dogma en el mal sentido de esta
palabra, en una cosa muerta, estancada, anquilosada; pero,
al mismo tiempo, es lo bastante «precisa» para deslindar
los campos del modo más resuelto e irrevocable entre no-
sotros y el fideísmo, el agnosticismo, el idealismo filosófico
y la sofistería de los adeptos de Hume y Kant. Hay aquí un
límite que no han notado, y no habiéndolo notado, han
caído en la charca de la filosofía reaccionaria. Es el límite
entre el materialismo dialéctico y el relativismo (LENIN,
1983, v. 18, p. 142).
Neste momento são necessárias algumas precisões: Lenin, em suas
anotações sobre a dialética (LENIN, 1986, v. 29), não nos vai dizer que as
contradições existem em todos os fenômenos e processos da natureza
incluídos os do espírito e da sociedade? Mao Tsé-Tung, repetindo Lenin,
não diz “que as contradições existem no processo de desenvolvimento de
todos os fenômenos … desde o princípio até o fim.”? (TSÉ-TUNG, 1975, v. 1,
p. 534) E a ciência não é um “fenômeno”, um fenômeno do “espiritu”? “La
identidad de los contrarios … es el reconocimiento … de tendencias con-
tradictorias, mutuamente excluyentes, opuestas en todos los fenómenos
y procesos de la naturaleza (incluidos el espíritu y la sociedad) (LENIN,
1986, v. 29, p. 322).
Portanto, a ciência, como todo fenômeno, admite em seu seio um con-
junto de contradições, a contradição ciência/ideologia e a contradição
teoria e prática, sem o que converteríamos a ciência em uma coisa morta e

29
estagnada. Um sistema de conhecimentos é tornado ciência pela dominação
de elementos científicos sobre os elementos de representação ideológica;
dominação determinada, poderíamos dizer, em última instância, pelo pro-
cesso de desenvolvimento e retificação imposto pela prática, prática que
revela/determina uma permanente defasagem entre a teoria e a realidade,
defasagem que requer permanente superação, destruindo e superando os
elementos de representação ideológica.
A teoria marxista, como toda ciência, não é dada de maneira definitiva,
tem a necessidade intrínseca de se desenvolver, de se enriquecer e de se
retificar na base de sua prática e de novas lutas que é chamada a travar.
Portanto, o marxismo, como toda ciência, tem contradições, caracterís-
tica intrínseca a toda ciência, conjunto de contradições que o conforma e
dá razão a seu desenvolvimento; desenvolvimento e não revisionismo, não
ecletismo, não dogmatismo.
E é sobre o marxismo e seu desenvolvimento que queremos falar para
deixar claro a que marxismo nos referimos, que marxismo temos a pretensão
de colocar para trabalhar.
Podemos dizer que o marxismo surge das mãos de Marx e Engels, em
1848, com o Manifesto do Partido Comunista – se queremos estabelecer
uma data de nascimento – enquanto fusão da teoria com o movimento
operário, como teoria científica da classe operária. A fusão da teoria mar-
xista com o movimento operário é o mais importante acontecimento do
desenrolar da luta de classes; portanto, o mais importante acontecimento
da história, entendida enquanto história da luta de classes, apesar de que
Marx tenha declarado no Prefácio, de 1859, à Contribuição à Critica da
Economia Política, que na Ideologia Alemã, de 1845-1846, havia ajustado suas
contas com sua “consciência filosófica anterior” (MARX, 1977, p. 25-26), e
alcançado seu principal objetivo, “enxergar claramente as nossas idéias”
(MARX, 1977, p. 25-26),
Friedrich Engels, com quem, desde a publicação do seu
genial esboço de uma contribuição para a crítica das ca-
tegorias econômicas nos Deutsch-Französische Jahrbücher,
tenho mantido por escrito uma constante troca de idéias,
chegou por outras vias (confrontar a sua Situação das
Classes Operárias na Inglaterra 4) ao mesmo resultado, e
quando, na primavera de 1845, veio se estabelecer também
em Bruxelas, resolvemos trabalhar em conjunto, a fim de
esclarecer o antagonismo existente entre a nossa maneira
de ver e a concepção ideológica da filosofia alemã; tratava-
-se, de fato, de um ajuste de contas com a nossa consciência
filosófica anterior. Este projeto foi realizado sob a forma de
uma crítica da filosofia pós-hegeliana. O manuscrito, dois
grandes volumes in-octavo, estava há muito no editor na

4 Acreditamos que aqui há um erro de impressão. O título da obra de Engels é A situação


da classe trabalhadora na Inglaterra e não “classes operárias”, no plural.

30
Vestefália, quando soubemos que novas circunstâncias já não
permitiam a sua impressão. De bom grado abandonamos
o manuscrito à crítica corrosiva dos ratos, tanto mais que
tínhamos atingido o nosso fim principal, que era enxergar
claramente as nossas idéias (MARX, 1977, p. 25-26).
Já neste momento - e à medida que de forma cada vez mais radical Marx
e Engels vão tomando partido da classe operária, assumindo o ponto de vista
da classe operária, lhes foi possível estabelecer um corte, mudar de terreno
e constituir uma ciência - tem o marxismo a necessidade histórica, teórica e
prática, qualidade intrínseca decorrente de sua situação de teoria de classe,
de se firmar criticando radicalmente as “teorias” que se lhe opõem, de ma-
neira geral as “ciências sociais”, as “ciências humanas”, “ciências da história”
ou “teorias” que tentam submetê-lo à revisão ou atualização.
1.2 A luta no campo da teoria
A necessidade de se firmar como ciência pela busca da exatidão, da
clareza, do rigor científico, este requisito de precisão, de apuramento te-
órico, ideológico e político, de travar a luta teórica, a batalha no terreno
ideológico, demarcar campo, esta obrigação de combater, criticar e derrotar
seus adversários ideológicos, característica de toda a ciência – que com o
marxismo se dá de forma mais intensa – resulta da exigência da luta de
classes na prática e na teoria.
É isto que vai explicar a diferença entre a disputa que travam entre si as
“ciências sociais” e “ciências humanas”, e a luta que todas travam contra o
marxismo. É que, enquanto as “ciências sociais” e “ciências humanas” travam
sua disputa num mesmo campo ideológico – enquanto “teorias” das clas-
ses dominantes – para verificar qual delas alcança maior correspondência
com os interesses de classe que representam, numa ou noutra conjuntura,
o marxismo se coloca em outro campo, no campo antagônico, enquanto
teoria da classe dominada; em campo diverso, diferente, enquanto teoria
científica que as supera.
Daí porque Marx e Engels diferem fundamentalmente de todos os teóricos
de sua época; pela exigência que se impunham de se demarcar, rigorosamente,
de todas as outras “teorias”, pelo rigor, precisão, apuramento teórico que
dedicaram à elaboração de sua ciência. Marx, no Posfácio à segunda edição
de O Capital, nos fala das condições que a luta de classes assumiu, na prática
e na teoria, como decorrência do ascenso da burguesia ao poder, mostran-
do que daí em diante deixava de haver possibilidade de uma ciência social
burguesa e de uma disputa científica imparcial. Agora, importa à burguesia
saber se tal e qual verdade serve ao capital, se é possível colocar tal e qual
verdade a serviço dele e, principalmente, fabricar as “verdades” que servem
aos interesses de sua reprodução:
A burguesia tinha conquistado o poder político na França
e na Inglaterra. A partir de então, a luta de classes assu-
miu, na teoria e na prática formas cada vez mas explícitas e

31
ameaçadoras. Ela faz soar o sino fúnebre da economia cien-
tífica burguesa. Já não se tratava de saber se este ou aquele
teorema era ou não verdadeiro, mas se para o capital ele era
útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, subversivo ou não.
No lugar da pesquisa desinteressada entrou a espadacharia
mercenária, no lugar da pesquisa científica imparcial entrou
a má consciência e a má intenção da apologética (MARX,
1983, v. 1, p. 17).
Marx e Engels atendem, portanto, a uma exigência incontornável da
disputa teórica ao dedicarem um esforço excepcional para elaborar sua
teoria científica e em delimitar, separar, traçar, com rigor e precisão, a linha
de demarcação que separa o marxismo do conjunto de “teorias” que ocupam
o espaço da ideologia dominante.
E é referindo-se à tradição marxista que Lenin, em Qué Hacer? (LENIN,
1982, v. 6), vai sustentar a importância central de se continuar a travar a luta
na teoria, condição indissociável da tarefa de continuar desenvolvendo o
marxismo:
Aduciremos las observaciones hechas por Engels en 1874
relativas a la significación de la teoría en el movimiento so-
cialdemócrata. Engels reconoce tres formas de la gran lucha
de la socialdemocracia, y no dos (la política y la económica)
– como es usual entre nosotros –, colocando también a su
lado la lucha teórica (LENIN, 1981, v. 6, p. 27).
E chama a atenção para o fato de que um erro, um desvio, pode levar a
que, da construção de uma ciência – que torna possível o conhecimento
da história e das leis que as rege, que comprovado pela experiência, pela
prática, tem valor de verdade objetiva – se acabe na elaboração de mais uma
“interpretação do mundo” e de uma nova/velha proposta para reformá-lo:
En estas condiciones, un error «sin importancia» a primera
vista puede tener las más tristes consecuencias, y sólo gente
miope pude considerar inoportunas o superfluas las discu-
siones fraccionales y la delimitación rigurosa de los matices.
De la consolidación de tal o cual «matiz» puede depender
el porvenir de la socialdemocracia rusa durante muchísimos
años (LENIN, 1981, v. 6, p. 26).
O que não quer dizer que o marxismo não se desenvolveu depois de Marx
e Engels, de que é um dogma. Muito pelo contrário, como toda a ciência,
o marxismo não pode parar de se desenvolver, sob pena de desaparecer.
Entendendo o marxismo deste ponto de vista, entendendo-o como o
início da ciência da história, começo inseparavelmente comprometido com
a construção de um método científico, o materialismo dialético, só ele capaz
de possibilitar a ciência da história, ciência que não tem nada a perder com
o avanço do conhecimento, pelo contrário, é que – e só assim – podemos

32
entender a impossibilidade intrínseca, inerente ao marxismo, de coabitar
com as teorias não científicas.
Analisando o desenvolvimento do marxismo em seu artigo Marxismo
y Revisionismo (1983, v. 17, p. 15), Lenin mostra que depois de Marx e Engels
a luta teórica passa a se fazer em outro patamar. De fato, até a década de
1890, o marxismo teve que lutar para se afirmar enquanto teoria científica,
combatendo “teorias” que lhe eram contrárias e que disputavam com ele
a consciência do proletariado; como as conceituava Lenin, “las doctrinas
vinculadas a la lucha de la clase obrera” (1983, v. 17, p. 18). Primeiro, posições
utópicas, sindicalistas, espontaneístas, depois anarquistas, proudhonistas
e outras. Diante do fracasso das tentativas de negar o caráter científico do
marxismo, a luta no campo da teoria passou a se dar de uma forma muito
mais sutil. Sob a palavra de ordem de defender o marxismo passa-se a de-
fender “atualizar” o marxismo, busca-se “revê-lo” ou “completá-lo”.
Pero cuando el marxismo hubo desplazado a todas las doc-
trinas más o menos coherentes que les eran hostiles las
tendencias albergadas en ellas buscaron otros caminos.
Cambiaron las formas y los motivos de la lucha, pero ésta
continuó. Y el segundo medio siglo de existencia del marxis-
mo (década del 90 del siglo pasado) comenzó por la lucha de
una corriente antimarxista en el seno del propio marxismo
(LENIN, 1983, v. 17, p. 18).
Buscava-se, como ainda hoje, anular o conteúdo científico do marxismo,
apresentando “la charca del envilecimiento filosófico de la ciencia” (LENIN,
1983, v. 17, p. 19) sob a capa do marxismo, introduzindo conceitos idealistas
e metafísicos, utilizando a aparência e a linguagem marxista.
En el campo de la filosofía, el dialéctica idealista iba a remol-
que de la «ciencia» académica burguesa… los catedráticos
repetían, por milésima vez, las vulgaridades de los curas
contra el materialismo filosófico, y los revisionistas, sonrien-
do con indulgencia, balbuceaban (repitiendo ce por be el
último manual) que el materialismo había sido «refutado»
hacía mucho tiempo. Los catedráticos trataban a Hegel de
«perro muerto» y, predicando ellos mismos el idealismo,
sólo que mil veces más mezquino y trivial que el hegeliano,
se encogían de hombros con desdén ante la dialéctica, y
los revisionistas se metían tras ellos en la charca del envi-
lecimiento filosófico de la ciencia, sustituyendo la «sutil»
(y revolucionaria) dialéctica con la «simple» (y tranquila)
«evolución» (LENIN, 1983, v. 17, p. 19).
Como afirma Lenin em Marxismo y Revisionismo (1983, v. 17), tenta-se
rever o princípio fundamental do marxismo, a dialética, e esta não é uma
questão superada, um debate ultrapassado – da mesma forma ainda hoje, e

33
com maior sucesso, tenta-se substituir a dialética marxista por uma dialética
da simples e inofensiva evolução.
Os marxistas não negam a necessidade de desenvolver o marxismo.
Muito pelo contrário, sabem da necessidade de desenvolvê-lo e que só
desenvolvendo-o darão conta dos novos problemas que a história vai colo-
cando. Porém, também sabem que o marxismo, enquanto ciência, só pode
se desenvolver mantendo seu método.
Isto nos leva a perguntar: pode-se manter e desenvolver uma ciência se
esta não se enriquece com as novas experiências advindas do desenvolvi-
mento de sua prática na realidade que é seu objeto? Com o marxismo, com
o método marxista, não é diferente. O marxismo requer seu enriquecimento,
seu aperfeiçoamento advindo do desenvolvimento de sua prática, man-
tendo seu método. Lenin, com clareza, profundidade e acuidade, já aponta
esta característica de fundo no marxismo, acentuada na conjuntura atual:
a questão central do marxismo, seu cerne, é seu método. “Todos ellos se
dicen marxistas, pero entienden el marxismo de una manera pedante hasta
el imposible. No han comprendido en absoluto lo decisivo del marxismo, a
saber: su dialéctica revolucionaria” (1987, v. 45, p. 394).
Da mesma forma, Mao Tsé-Tung, em 1957, determinou a questão que
o idealismo combate e procura contornar, em verdade quer destruir: a
“quinta-essência do marxismo”, seu método, o materialismo dialético: “Pero
lo que atacan es precisamente la quintaesencia del marxismo. Combaten
o tergiversan el materialismo y la dialéctica;” (TSÉ-TUNG, 1978, v. 5, p. 448).
A questão é que o “método” de Marx não se achava escrito em lugar ne-
nhum. Ou melhor, estava aplicado em suas obras; se encontrava em estado
prático em sua obras, como diz Lenin, “Si Marx no nos dejó una «Lógica»
(con mayúscula), dejó en cambio la lógica de El Capital” (1986, v. 29, p. 300).
E não poderia ser de outra forma. O objetivo de Marx era o de esclarecer
as “leis específicas que regulam o nascimento, existência, desenvolvimento
e morte de dado organismo social e a sua substituição por outro, superior”
(MARX, 1983, v. 1, p. 20). Neste mesmo e único processo lógico em que Marx
trabalha para esclarecer as “leis específicas que regulam … a existência …
de dado organismo social”, o processo que vai produzir a ciência da história
produz seu método, o método que vai tornar possível a ciência da história,
inseparável dela, parte dela. Marx não podia sistematizar o método que
estava criando, que não estava criado antes dele, sistematizá-lo a priori, ter
dele conhecimento no momento em que surgia na prática de criar a ciência
da história, seu objetivo.
Porém, Marx sentia a importância de sistematizá-lo. Daí porque vai re-
clamar várias vezes da necessidade de escrever sobre o seu método, sobre a
dialética materialista, sobre o materialismo dialético. Contudo, objetivamente
não lhe era possível redigir seu pequeno texto em dois ou três “pliegos”.
(Londres), 14 de janeiro de 1858
Si alguna vez llegara a haber tiempo para un trabajo tal, me
gustaría muchísimo hacer accesible a la inteligencia común,

34
en dos o tres pliegos de imprenta [un pliego = 16 páginas],
lo que es racional en el método que descubrió Hegel, pero
que al mismo tiempo está envuelto en misticismo… (MARX
e ENGELS, 1947, p. 119).
Mesmo sem conseguir escrever sua “pequena” brochura, Marx tem claro
que não pode deixar de demarcar campo com o idealismo, com a dialética
idealista, sente a necessidade permanente de delimitar campo com a dialé-
tica hegeliana. Sabia que daí vinha a possibilidade de esterilizar seu método
e, para não deixar espaço a tergiversação, afirma que sua dialética “é, em
sua essência crítica e revolucionária” (MARX, 1983, p. 21), daí as reiteradas
referências a ela em O Capital com o objetivo de caracterizá-la:
Por sua fundamentação, meu método dialético não só difere
do hegeliano, mas é também a sua antítese direta … Em
sua forma mistificada a dialética foi à moda alemã porque
ela parecia tornar sublime o existente. Em sua configuração
racional, é um incômodo e um horror para a burguesia e
para os seus porta-vozes doutrinários, porque, no entendi-
mento positivo do existente, ela inclui ao mesmo tempo o
entendimento da sua negação, da sua desaparição inevitável
(MARX, 1983, p. 20-21).
É importante e significativo notar que após estas linhas escritas em 1873,
nas quais Marx faz sua demarcação com Hegel, – sua diferença com Hegel,
a “antítese direta” entre seu método e o hegeliano, que inúmeras vezes qua-
lifica de mistificação, diferença que tenta expressar como inversão, método
que tenta explicar como resultante de um processo de extração do cerne
racional do método hegeliano, operação para a qual não encontra palavras,
“… até andei namorando aqui e acolá os seus modos peculiares de expressão”
(MARX, 1983, p. 20), dificuldade em encontrar a forma de como conceituar
o processo de produção de seu método, processo de elaboração de novos
conceitos e categorias de toda nova ciência e que é referido por Engels no
Prefácio à Edição Inglesa de O Capital:
Uma dificuldade persiste, no entanto, e dela não podemos
poupar o leitor: o emprego de certas expressões em sentido
diferente não só do uso na linguagem cotidiana mas também
na Economia Política usual. Isso era, porém, inevitável. Cada
concepção nova de uma ciência implica uma revolução nos
termos técnicos dessa ciência (1983, p. 32).
Somente após vinte anos se volta a afirmar a diferença radical entre a
dialética de Marx e a dialética de Hegel. Lenin, em um texto brilhante, escrito
quando tinha apenas 24 anos, vai recolocar esta questão quando, em 1894,
em Quienes son los «amigos del pueblo» (1981, v. 1), dedica uma dúzia de
páginas para afirmar a diferença entre a dialética materialista de Marx e a
dialética idealista de Hegel, resumidas em uma nota de pé de página onde

35
protesta “… cuán absurdo es acusar al marxismo de dialéctica hegeliana”
(1981, v. 1, p. 181). E, mais adiante, categoricamente:
Ahora nos limitaremos a señalar que todo el que haya leído
la definición y la descripción del método dialéctico que
ofrece Engels (en la polémica contra Dühring: Del socialismo
utópico al socialismo científico) o Marx (en varias notas de el
Capital y las palabras finales a la segunda edición, así como
en la Miseria de la Filosofía) habrá visto que para nada se
habla allí de las tríades de Hegel … (LENIN, 1981, v. 1, p. 172).
Que mais poderia dizer Lenin, totalmente submerso na tarefa de trans-
formar a Rússia? Que mais nos poderia deixar se não as precisas e preciosas
notas de seus Cadernos Filosóficos?
1.3 Algumas teses sobre o materialismo dialético
Anos depois, Lenin, em um pequeno texto, um comentário de leitura
escrito como uma síntese do estudo que vinha fazendo sobre filosofia,
entre 1914-1915 - quando lê Heráclito, Aristóteles, Feuerbach e Hegel, nos
dois primeiros anos da Primeira Grande Guerra, no período que medeia
a derrota da Revolução de 1905 e a vitória da Revolução de Outubro de
1917 e no momento da grave cisão representada pela social-democracia na
Segunda Internacional - significativamente, volta ao problema da dialética
marxista, expondo uma teoria que, partindo de Hegel, “La dicotomía de un
todo único y el conocimiento de sus partes contradictorias … es la esencia
.. de la dialéctica. Precisamente así plantea también Hegel” (LENIN, 1986,
v. 29, p. 321), se desloca para um outro/novo terreno inteiramente diverso.
É interessante notar como este notável texto de Lenin, estas notas de
leitura, permaneceram como um ponto morto ao olhar dos que tentaram
falar sobre a dialética. Como este esboço que resultava de uma enorme
capacidade de concisão e apontava o caminho de seu desenvolvimento
necessário restou ignorado até ser retomado por Mao Tsé-Tung em seu
trabalho Sobre a Contradição.
A leitura deste texto é indispensável quando se pretende discutir a dia-
lética materialista. Como podemos ver aqui, como dizia Lenin, não se fala
para nada das tríades hegelianas.
SOBRE EL PROBLEMA DE LA DIALECTICA 5
La dicotomía de un todo único y el conocimiento de sus partes
contradictorias (véase la cita de Filón sobre Heráclito, en el
comienzo de sección [I] (Sobre el conocimiento), en el libro
de Lassalle acerca de Heráclito) es la esencia (una de las «esen-
cias», una de las principales, si no la principal característica o
rasgo) de la dialéctica. Precisamente así plantea también Hegel
el problema (Aristóteles en su Metafísica pelea en torno de él
combate a Heráclito y las ideas heraclitanas).

5 Optamos pela edição em espanhol das Obras completas. Moscú: Progresso, v. 29, 1986.

36
La justeza de este aspecto del contenido de la dialéctica debe
ser verificada por la historia de la ciencia. A este aspecto de
la dialéctica (por ejemplo, en Plejánov) se suele prestar poca
atención: la identidad de los contrarios se toma como una
suma de ejemplos [«por ejemplo, una simiente», por ejemplo,
el comunismo primitivo. Lo mismo en Engels. Pero es «para
efectos de divulgación»…,] y no como ley del conocimiento
(y como ley del mundo objetivo).
En matemáticas: + y −. Diferencial y integral.
En mecánica: acción y reacción.
En física: electricidad positiva y negativa.
En química: combinación y disociación de los átomos.
En la ciencia social: la lucha de clases.
La identidad de los contrarios (sería más correcto, quizá,
decir su «unidad», aunque la diferencia entre los términos
identidad y unidad no tiene aquí mucha importancia. En
cierto sentido ambos son correctos) es el reconocimiento
(descubrimiento) de tendencias contradictorias, mutuamen-
te excluyentes, opuestas, en todos los fenómenos y procesos
de la naturaleza (incluidos el espíritu y la sociedad). La condi-
ción para el conocimiento de todos los procesos del mundo
en su «automovimiento», en su desarrollo espontáneo, en su
vida real es el conocimiento de los mismos como unidad de
los contrarios. El desarrollo es la «lucha» de los contrarios.
Las dos concepciones fundamentales (o dos posibles?, o las
dos que se observan en la historia?) del desarrollo (evolu-
ción) son: el desarrollo como disminución y aumento, como
repetición, y el desarrollo como unidad de los contrarios (la
dicotomía de un todo único en contrarios que se excluyen
mutuamente y su relación recíproca).
En la primera concepción del movimiento queda en la sombra
el automovimiento, su fuerza impulsora, su fuente, su motivo
(o se convierte dicha fuente en externa: Dios, sujeto, etc.). En
la segunda concepción, la atención principal se centra precisa-
mente en el conocimiento de la fuente del «auto»movimiento.
La primera concepción es inerte, pálida y seca. La segunda
es viva. Sólo la segunda proporciona la clave para el «auto-
movimiento» de todo lo existente; sólo ella proporciona la
clave para los «saltos», para la «ruptura de la gradualidad»,
para la «transformación en el contrario», para la destrucción
de lo viejo y el surgimiento de lo nuevo.
La unidad (coincidencia, identidad, acción igual) de los con-
trarios es condicional, temporal, transitoria, relativa. La lucha
de los contrarios que se excluyen mutuamente es absoluta,
como son absolutos el desarrollo y el movimiento.

37
NB: La distinción entre subjetivismo (escepticismo, so-
fistica, etc.) y dialéctica, de paso, consiste en que en la
dialéctica (objetiva) es relativa también la diferencia entre
lo relativo y lo absoluto. Para la dialéctica objetiva hay un
absoluto en lo relativo. Para el subjetivismo y la sofistica
lo relativo es sólo relativo y excluye lo absoluto.
En El Capital Marx analiza primero la relación más simple,
más ordinaria y fundamental, más común y cotidiana de
la sociedad burguesa (mercantil), una relación que se en-
cuentra miles de miliones de veces, a saber, el cambio de
mercancías. En ese fenómeno simple (en esta «célula» de la
sociedad burguesa) el análisis revela todas las contradicciones
(respective los gérmenes de todas las contradicciones) de la
sociedad moderna. La exposición nos muestra el desarrollo
(a la vez crecimiento y movimiento) de esas contradicciones
y de esa sociedad en la suma de sus partes individuales, de
su comienzo a su fin.
Igual debe ser también el método de exposición (respective
estudio) de la dialéctica en general (porque, para Marx, la
dialéctica de la sociedad burguesa es sólo un caso particular
de la dialéctica). Comenzar con lo más sencillo, con lo más
ordinario, común, etc.; con cualquier proposición: las hojas
de un árbol son verdes; Juan es un hombre; Chucho es un
perro, etc. Aquí tenemos ya dialéctica (como lo reconoció el
genio de Hegel): lo individual es lo universal (cf. Aristóteles,
Metaphysik, traducción de Schwegler, Bd. II, S. 40, 3. Kapitel
8-9: «denn natürlich kann man nicht der Meinung sein, dass
es ein Haus (una casa en general) gebe ausser den sichtbaren
Häusern», [«Porque, por supuesto, no se puede sostener la
opinión de que pueda haber una casa (en general) a la par
que casas visibles.»]
Por consiguiente, los contrarios (lo individual se opone a
lo universal) son idénticos: lo individual existe sólo en la
conexión que conduce a lo universal. Lo universal existe sólo
en lo individual y a través de lo individual. Todo individual
es (de uno u otro modo) universal. Todo universal es (un
fragmento, o un aspecto, o la esencia de) lo individual. Todo
universal sólo abarca aproximadamente a todos los objetos
individuales. Todo individual entra en forma incompleta
en lo universal, etc., etc. Todo individual está vinculado por
miles de transiciones con otros tipos de individuales (cosas,
fenómenos, procesos), etc. Aquí ya tenemos elementos, gér-
menes de los conceptos de necesidad, de conexión objetiva
en la naturaleza, etc. Aquí tenemos ya lo contingente y lo
necesario, el fenómeno y la esencia; porque cuando decimos:

38
Juan es un hombre, Chucho es un perro, esta es una hoja
de un árbol, etc., desechamos una cantidad de caracteres
como contingentes; separamos la esencia de la apariencia, y
oponemos la una a la otra.
Así, en cualquier proposición podemos (y debemos) descubrir
como en una «célula» los gérmenes de todos los elementos
de la dialéctica, y con ello mostrar que la dialéctica es una
propiedad de todo conocimiento humano en general. Y las
ciencias naturales nos muestran (y aquí, una vez más, es pre-
ciso demostrarlo en cualquier ejemplo simple) la naturaleza
objetiva con las mismas cualidades, la transformación de lo
individual en lo universal, de lo contingente en lo necesario,
transiciones, modulaciones y la vinculación recíproca de los
contrarios. La dialéctica es precisamente la teoría del cono-
cimiento (de Hegel y) del marxismo. Este es el «aspecto» del
asunto (no es un «aspecto», sino la esencia del asunto) al que
Plejánov, por no hablar de otros marxistas, no prestó atención.
El conocimiento es representado en forma de una serie
de círculos tanto por Hegel (véase la Lógica) como por el
moderno «gnoseólogo» de las ciencias naturales, el ecléc-
tico y enemigo del hegelianismo (ique no entendió!) Paul
Volkmann (véase su Erkenntnistheoretische Grundzüge, S.).
«Círculos» en filosofía: [es obligatoria una cronología de
las personas? No!]
Antigua: de Demócrito a Platón y a la dialéctica de
Heráclito.
Renacimiento: Descartes versus Gassendi (Espinosa?).
Moderna: Holbach - Hegel (a través de Berkeley, Hume,
Kant). Hegel - Feuerbach - Marx.
La dialéctica como conocimiento vivo, multilateral (con una
cantidad de aspectos que aumenta eternamente), con un
sinnúmero de matices de cada enfoque y aproximación a la
realidad (con un sistema filosófico que se convierte en un
todo a partir de cada matiz): he aquí un contenido incon-
mensurablemente rico en comparación con el materialismo
«metafísico» cuya desdicha fundamental es su incapacidad
para aplicar la dialéctica a la Bildertheorie [Teoría de la re-
flexión], al proceso y desarrollo del conocimiento.
El idealismo filosófico es sólo una tontería desde el punto
de vista del materialismo tosco, simple, metafísico. En cam-
bio, desde el punto de vista del materialismo dialéctico, el
idealismo filosófico es un desarrollo unilateral, exagerado,
überschwengeliches (Dietzgen) (inflación, abultamiento)
de uno de los rasgos, aspectos, facetas del conocimiento
hasta convertirlo en un absoluto, divorciado de la materia,

39
de la naturaleza, deificado. El idealismo es obscurantismo
clerical. Es cierto.
NB este aforismo. Pero el idealismo filosófico es («mejor
dicho» y «además») un camino hacia el obscurantismo
clerical a través de uno de los matices del conocimiento
infinitamente complejo (dialéctico) del hombre.
El conocimiento no es (respective no sigue) una línea recta,
sino una curva, que se aproxima infinitamente a una serie de
círculos, a una espiral. Todo fragmento, segmento, sección de
esta curva pude ser transformado (transformado unilateral-
mente) en una recta independiente, completa que, entonces
(si los árboles impiden ver el bosque), conduce al lodazal,
al obscurantismo clerical (donde la refrendan los intereses
de clase de las clases dominantes). El carácter rectilíneo y
unilateral, la rigidez y el anquilosamiento, el subjetivismo
y la ceguera subjetiva: voilá las raíces gnoscológicas del
idealismo. Y el obscurantismo clerical (= idealismo filosófi-
co), por supuesto, tiene raíces gnoseológicas, no carece de
fundamento; es sin duda una flor estéril, pero una flor estéril
que crece en el árbol vivo del conocimiento humano, vivo,
fértil, auténtico, poderoso, omnipotente, objetivo, absoluto.
[Escrito en 1915, publicado por primera vez en 1925, en la
revista Bolshevik, núm. 5-6]
Como vemos, depois de anunciar com precisão “la esencia” da dialética,
Lenin traça a linha intransponível que separa as duas concepções possíveis
“de todos los procesos del mundo” (LENIN, t. 29, p. 322). A linha intrans-
ponível que separa a concepção científica e revolucionária da concepção
idealista. Como diz Lenin, a linha que separa, portanto, as duas concepções
historicamente possíveis “das leis específicas que regulam o nascimento,
existência, desenvolvimento e morte de dado organismo social e a sua
substituição por outro, superior” (MARX, 1983, p. 20), do desenvolvimento
da história:
Las dos concepciones fundamentales (o dos posibles?, o las
dos que se observan en la historia?) del desarrollo (evolu-
ción) son: el desarrollo como diminución y aumento, como
repetición, y el desarrollo como unidad de los contrarios … .
La primera concepción es inerte, pálida y seca. La segunda es
viva. Sólo la segunda proporciona la clave para el «automo-
vimiento» de todo lo existente; sólo ella proporciona la clave
para los «saltos», para la «ruptura de la gradualidad», para la
«transformación en el contrario», para la destrucción de lo
viejo y el surgimiento de lo nuevo (LENIN, 1986, t. 29, p. 322).
Depois desta intervenção de Lenin, o silêncio sobre a dialética só é que-
brado em 1937 com o aparecimento dos textos de Mao Tsé-Tung, Da Prática

40
e Da Contradição (TSÉ-TUNG, 1975, v. 1), Sobre o tratamento correto das
contradições no seio do povo (TSÉ-TUNG, 1978, v. 5) nos quais, continuando
a teorização de Lenin nos Cuadernos Filosóficos, desenvolve uma concepção
da dialética totalmente diversa da concepção hegeliana.
Nada de semelhante aos conceitos essenciais desses textos pode ser
encontrado em Hegel: “desenvolvimento como unidade dos contrários”;
“contradição fundamental”, “contradição antagônica e não antagônica”;
“contradição principal e contradição secundária”; “aspecto principal e aspecto
secundário da contradição”; “lei da desigualdade do desenvolvimento das
contradições” (TSÉ-TUNG, 1975, 1978, v. 1 e 5).
É uma concepção completamente distinta da concepção hegeliana que
vê a história movida por uma “dialética” idealista na qual não há jamais
verdadeira ruptura.
Solo la segunda, [a concepção da dialética marxista] pro-
porciona la clave para el «automovimiento» de todo lo
existente; solo ella proporciona la clave para los «saltos», para
la «ruptura de la gradualidad», para la «transformación en
el contrario», para la destrucción de lo viejo y el surgimiento
de lo nuevo (LENIN, 1986, v. 29, p. 322).
São conceitos novos e fecundos que vão permitir o desenvolvimento da
dialética materialista e do materialismo histórico, permitindo a compreen-
são científica, pelos marxistas, da história. É Lenin quem primeiro vai nos
dizer, em seus Cuadernos Filosóficos, que Marx nos deixara seu método em
o O Capital, isto é, que nos tinha dado a dialética em estado prático em
O Capital e sabia também que era questão crucial enunciar tão rigorosamente
quanto possível esta dialética aplicada por Marx. Por isso a importância da
contribuição teórica de Lenin e de Mao Tsé-Tung explicitando com rigor a
dialética materialista, base teórica do marxismo - encontrada em estado
prático na obra de Marx e Engels e dos marxistas e da qual Lenin nos dá um
brilhante esboço no texto de seus Cuadernos Filosóficos.
A dialética materialista nada tem a ver com a tergiversação que passa
uma versão empobrecida da dialética de Hegel como marxismo. A dialética
materialista não fala da “negação da negação”, que reduz o método marxista
a uma dialética que conserva o negado. Não só se distingue radicalmente de
sua versão hegeliana, como traz conceitos de um campo total e radicalmente
diverso. Essa “confusão”, como dissemos, faz passar “Uma visão parcial e
simplista” (SILVA, 1985, p. 112) da dialética; faz passar a dialética hegeliana
por marxismo e trouxe e traz muitos problemas para uma análise científica
da história brasileira.
É, como mostra Sérgio Silva:
Uma visão parcial e simplista reduz a contradição à existên-
cia de pólos opostos que se excluem mutuamente, numa
concepção puramente estática, que inclui apenas dois mo-
mentos perdidos no tempo e no espaço: a dominação e a

41
negação dessa dominação. Elimina-se desse modo o essencial
da contradição: a luta constante entre os dois pólos, que
configura a unidade e determina o movimento (1985, p. 112).
O que Sérgio Silva critica é exatamente essa visão da dialética que nada
tem a ver com a dialética materialista; compreensão que vê a contradição
como contradição entre duas totalidades distintas, que se negam uma a
outra, porém que não dependem uma da outra, não estabelecem relação,
a não ser a da negação, que, efetivada deixa existente o outro pólo.
Como afirmam categoricamente Lenin e Mao, a unidade dos contrários
é um dos pontos mais importantes, fundamental, indispensável, que dá
constituição à dialética materialista.
A filosofia marxista dá um passo à frente ao desenvolver a dialética ma-
terialista, explicitando seu método; descobrindo, desenvolvendo, expondo
um conjunto de conceitos “novos” que já se encontravam em Marx e Engels,
mas que sem o trabalho teórico de Lenin, Mao e dos marxistas, não seria
possível encontrá-los. Trabalho teórico que “extrai o cerne” da teoria, a
dialética materialista, até então “invisível”, a formula e a expõe.
Lenin e Mao Tsé-Tung retomam e desenvolvem, a partir do patamar
construído por Marx e Engels, a questão fulcral para a dialética marxista,
questão em torno da qual se constrói a dialética materialista, “La dicotomía
de un todo único y el conocimiento de sus partes contradictorias … es la
esencia … de la dialéctica.” (LENIN, 1986, v. 29, p. 321-322) e “La identidad de
los contrarios”, “La justeza de este aspecto del contenido de la dialéctica …”
ao qual muitos, como já alertava Lenin, “… se suele prestar poca atención”
(1986, v. 29, p. 321) , “aspecto” sem a compreensão do qual, no entendimento
de Lenin, não era possível compreender, conhecer a realidade, já que todos
os processos do universo têm seu “desarrollo como unidad de los contrarios”
(1986, v. 29, p. 322).
La dicotomía de un todo único y el conocimiento de sus
partes contradictorias … es la esencia … de la dialéctica…
La identidad de los contrarios … es el reconocimiento …
de tendencias contradictorias, mutuamente excluyentes,
opuestas, en todos los fenómenos y procesos de la naturaleza
… La condición para el conocimiento de todos los procesos
del mundo en su «automovimiento», en su desarrollo es-
pontáneo, en su vida real, es el conocimiento de los mismos
como unidad de los contrarios (LENIN, 1986, v. 29, p. 322).
Unidade dos contrários, lei universal e geral, que implica a existência de
dois tipos de contradição, compreensão que é condição essencial para o
conhecimento “de todos los procesos del mundo” (LENIN, 1986, v. 29, p. 322).
La filosofía marxista sostiene que la ley de la unidad de los
contrarios es la ley fundamental del universo. Esta ley tiene
validez universal, tanto para la naturaleza y la sociedad

42
humana como para el pensamiento del hombre. Los lados
opuestos de una contradicción forman una unidad y a la vez
luchan entre sí, lo cual produce el movimiento y el cambio
de las cosas. En todas las partes existen contradicciones,
pero éstas tienen diverso carácter según sea la naturaleza
de las cosas. En cualquier cosa concreta, la unidad de los
contrarios es condicional, temporal, transitoria y, por eso,
relativa, mientras que la lucha entre los contrarios es abso-
luta. Esta ley la expuso Lenin con gran claridad (TSÉ-TUNG,
1978, v. 5, p. 428).
Como expõe Lenin,
La condición para el conocimiento de todos los procesos del
mundo en su «automovimiento», en su desarrollo espontá-
neo, en su vida real, es el conocimiento de los mismos como
unidad de los contrarios… La unidad … de los contrarios es
condicional, temporal, transitoria, relativa. La lucha de los
contrarios que se excluyen mutuamente es absoluta, como
son absolutos el desarrollo y el movimiento (LENIN, 1986,
v. 29, p. 322).
Não só a contradição é universal, no sentido de que ela existe na genera-
lidade dos fenômenos, em “todos los procesos del mundo”, mas também na
generalidade do tempo, isto é, do princípio até o fim do desenvolvimento do
fenômeno. Portanto, a transformação, o movimento, também e necessaria-
mente, são universais, absolutos e a unidade dos contrários é “condicional,
temporal, transitória, … relativa” (TSÉ-TUNG, 1978, v. 5, p. 428).
A universalidade ou caráter absoluto da contradição tem
um duplo significado: primeiro, que as contradições existem
no processo de desenvolvimento de todos os fenômenos;
segundo, que no processo de desenvolvimento de cada fenô-
meno, o movimento contraditório existe desde o princípio
até o fim (TSÉ-TUNG, 1975, v. 1, p. 534).
Mas, o que principalmente o idealismo não pode aceitar, quer negar, é
a existência da “contradição antagônica”, a contradição que implica em sua
superação radical enquanto contradição. E é avançando pela primeira vez
este conceito que Mao extrai do discurso de Marx, Engels e Lenin onde se
encontrava em estado prático, que era praticado mas nunca enunciado, que
a dialética materialista não deixa pairar dúvidas quanto a seu caráter radical-
mente distinto da dialética idealista, traçando a linha divisória, na teoria e
na prática, entre a dialética marxista e todas as versões da dialética idealista,
mostrando que nos fenômenos também estão presentes contradições anta-
gônicas, antagônicas, inevitavelmente, pela própria “natureza” do fenômeno.
Contrapondo-se aos que negam e não querem ver a realidade como um
processo – absoluto e universalmente – contraditório, o trabalho teórico dos

43
marxistas vai demonstrar de forma categórica que necessariamente existem
“dos tipos de contradicciones sociales” (TSÉ-TUNG, 1978, v. 5, p. 420): “Estos
dos tipos de contradicciones son de naturaleza completamente distinta”
(TSÉ-TUNG, 1978, v. 5, p. 420), já que existem, na natureza, fenômenos
completamente distintos;
La idea de que no hay contradicciones es una ingenuidad,
que no corresponde a la realidad objetiva. Existen ante no-
sotros dos tipos de contradicciones sociales: contradicciones
entre nosotros y el enemigo y contradicciones en el seno del
pueblo. Estos dos tipos de contradicciones son de naturaleza
completamente distinta (TSÉ-TUNG, 1978, v. 5, p. 420).
Antes, já em 1937, em Sobre a contradição, criticando Deborine que
também negava a universalidade da contradição, Mao afirma a existência
de dois tipos de contradições, “diferentes espécies de contradição” (1975, v.
1, p. 538), contradições de natureza diferente, expressão de fenômenos de
distinta natureza, mesmo que não tenha, na oportunidade, tratado mais
detalhadamente esta característica da contradição, como o vai fazer mais
tarde em “Sobre el tratamiento correcto de las contradicciones en el seno
del pueblo” (1978, v. 5). “Trata-se aí de diferentes espécies de contradições,
mas não da presença ou ausência de contradições. A contradição é universal,
absoluta;…” (TSÉ-TUNG, 1975, v. 1, p. 538).
E, em seguida, reafirmando com Lenin, a condição absoluta da luta dos
contrários, a condição universal da contradição e seu distinto caráter de
acordo com “la naturaleza de las cosas” (TSÉ-TUNG, 1978, v. 5, p. 428):
En todas partes existen contradicciones, pero éstas tienen
carácter diverso según sea la naturaleza de las cosas. En cual-
quier cosa concreta, la unidad de los contrarios es condicional,
temporal, transitoria y, por eso, relativa mientras la lucha
entre los contrarios es absoluta (TSÉ-TUNG, 1978, v. 5, p. 428).
E Lenin, “La lucha de los contrarios que se excluyen mutuamente es abso-
luta, como son absolutos el desarrollo y el movimiento” (1986, v. 29, p. 322).
A primeira contradição - porque não se fala mais em “negação” - a contra-
dição não antagônica é a que opera no processo de reprodução do fenômeno,
a contradição que reproduz, transformando, da qual Marx nos dá o exemplo
na análise da reprodução simples do capital. Porém, a dialética materialista
conhece um outro tipo de contradição, contradição que fundamenta todo
o processo de superação, constituindo-se no aspecto dominante da dialética
materialista e do materialismo dialético, a contradição antagônica, que se
resolve pela superação da antiga contradição e o início de nova contradição.
E, como já dissemos, é fundamental colocar esta distinção que se encon-
tra em estado prático nos textos de Marx e Engels porque só a contradição
antagônica, a contradição que leva à ruptura do desenvolvimento gradual,
à destruição do “velho” e ao aparecimento de uma nova contradição que

44
evidentemente nada pode ficar a dever à contradição “destruída”, e aqui se
fala em destruição e não de conservação, como tenta passar o revisionismo,
por exemplo em Afanasiev: “A compreensão dialética da negação parte
de que o novo não destrói totalmente o velho, mas conserva tudo que de
melhor estava contido neste” (AFANASIEV, 1968, p. 139).
Só a contradição antagônica,
… proporciona la clave para el «automovimiento» de todo lo
existente; sólo ella proporciona la clave para los «saltos», para
la «ruptura de la gradualidad», para la «transformación en
el contrario», para la destrucción de lo viejo y el surgimiento
de lo nuevo (LENIN, 1986, v. 29, p. 322),
para a história.
Porém, o materialismo dialético não afirma somente a existência de
dois tipos de contradição, mas sustenta também que a luta é universal,
absoluta, que a “resolução” das contradições se dá pela luta, “formas de
luta” diversas, conforme seu “caráter”, conforme o caráter da contradição.
Como se constata mais adiante, no texto de Mao quando, referindo-se à
existência de dois “tipos” de contradição, afirma que há diferentes formas
de resolvê-las – ou como as conceitua: diferentes “formas de luta” - colo-
cando que esses “métodos” variam segundo o caráter da contradição, seja
ela antagônica ou não antagônica;
As contradições e a luta são universais, absolutas, mas os
métodos para resolver as contradições, quer dizer as formas
de luta, variam segundo o carácter dessas contradições.
Certas contradições revestem o carácter dum antagonismo
aberto outras não (TSÉ-TUNG, 1975, v. 1, p. 581).
A dialética materialista compreende que todos os fenômenos se cons-
tituem em contradições, portanto, a existência de contradições inerentes
a todos os fenômenos e de que essas contradições têm caráter distinto
decorrente da natureza do fenômeno que constituem; contradições anta-
gônicas e não antagônicas. E de que é extremamente importante ter claro
esta “característica” da “natureza dos fenômenos”: em toda a formação so-
cial existem/coexistem contradições antagônicas e não antagônicas e estas
contradições se relacionam umas com as outras, determinam-se umas às
outras, sob a determinação da contradição principal.
Aqui é necessário trabalhar mais aprofundadamente os textos do ma-
terialismo dialético, para que se perceba porque, ao se explicitar a dialética
materialista, esta torna-se irredutível, tanto ao idealismo quanto ao dog-
matismo, estabelecendo-se um incontornável antagonismo com toda e
qualquer forma de idealismo, de dialética idealista, de mecanicismo e de
dogmatismo. Não é mais possível falsificar a dialética marxista.
Que significa a aparição de um novo processo? Significa
que a antiga unidade e os contrários que a constituíam

45
cederam o lugar a uma nova unidade, aos seus novos con-
trários, começando então o novo processo, que substituiu
o antigo. O processo velho conclui-se, o novo surge. E como
o novo processo contém novas contradições, ele começa a
sua própria história de desenvolvimento das contradições
(TSÉ-TUNG, 1975, v. 1, p. 538).
O materialismo dialético ao esclarecer como esta dialética da contra-
dição antagônica se “resolve” através do deslocamento ou superação da
contradição principal por uma nova contradição mostra que a dialética do
movimento real não produz nenhum tipo de síntese, produz a superação/
uma nova unidade/deslocamento da contradição que foi superada. A velha
contradição “cede lugar” à nova contradição, “o processo velho “conclui-se”,
acabou, findou, terminou. As novas contradições começam “a sua própria
história”, a história de um “novo processo”.
O que quer dizer que sem a superação do “velho”, da contradição supe-
rada, não é possível começar a “história do novo”, da nova contradição, do
novo sistema de contradições.
No conjunto de contradições que compõe uma formação social há sempre
uma contradição que lhe é fundamental, contradição que é sempre anta-
gônica, e é a luta de classes o motor que dirige os deslocamentos que fazem
suceder, “ceder lugar”, uma contradição fundamental à outra. A contradição
senhores/servos “cede lugar” a “uma nova unidade, aos seus novos contrários”,
à contradição burguesia/proletariado; da mesma forma que a contradição
senhores/servos sucedeu à contradição senhores/escravos sem que, em
nenhum momento, ao se “resolver” a contradição pela nova unidade e seus
novos contrários, a nova contradição que a substituiu conserve e desenvolva
os “aspectos positivos” da contradição superada, sem que nada “extraia do
velho”, sem que represente a síntese da contradição superada como quer a
dialética idealista com a negação da negação. Ao se resolver a contradição,
uma nova contradição com uma nova unidade de contrários que a constitui
e a caracteriza, substitui a antiga contradição e a antiga unidade de seus con-
trários, que também lhe é específica, que também a caracteriza; uma nova
unidade e seus contrários que não têm como trazer, conservar, desenvolver,
mesmo que sejam “aspectos” da “velha” contradição. Como explicita a dialética
materialista, com o deslocamento/destruição da velha contradição, a nova
“começa a sua própria história”, história do desenvolvimento de contradições
que necessariamente – como são outras contradições e, portanto, constituem
uma nova unidade – começam uma nova história.
No seu funcionamento a contradição fundamental é sempre antagônica e
constitui o aspecto dominante do movimento histórico já que é ela que com
sua resolução dá lugar ao novo, “a uma nova unidade, aos seus novos contrá-
rios” …”novas contradições” (TSÉ-TUNG, 1975, v. 1, p. 538) que começam “a sua
própria história de desenvolvimento das contradições” (TSÉ-TUNG, 1975, v. 1, p.
538). Enquanto reprodução/conservação, a contradição não antagônica, repre-
senta a reprodução, o desenvolvimento, com a conservação da contradição.

46
As teorias idealistas ou mecanicistas da história, de todo o tipo, procuram
não admitir, procuram contestar a inevitabilidade da contradição antagônica,
da superação, tratando de tornar absoluta a dialética da reprodução/con-
servação, reproduzindo a dialética hegeliana da tese-antítese-síntese, sob a
forma da negação da negação, a síntese entre o que nega e o que é negado.
Ou, dito de outro modo, o marxismo – o materialismo dialético e o
materialismo histórico – reconhece a realidade das duas contradições e
vai mostrar que somente sua articulação subordinada à contradição fun-
damental, opera o processo de superação que permite explicar o conjunto
do movimento histórico.
Nem a contradição fundamental, no processo de desenvol-
vimento dum fenômeno, nem a essência desse processo,
determinada por essa contradição, desaparecem antes da
conclusão do processo. Contudo, as condições diferem ge-
ralmente uma das outras, em cada etapa do longo processo
de desenvolvimento dum fenômeno. Eis a razão: se bem que
a natureza da contradição fundamental num processo de
desenvolvimento dum fenômeno, bem como a essência do
processo, permaneçam sem modificação, a contradição fun-
damental agudiza-se progressivamente em cada etapa desse
longo processo. Por outro lado, entre tantas contradições,
grandes e pequenas, que são determinadas pela contradição
fundamental ou se encontram sob sua influência, algumas
agudizam-se, outras resolvem-se ou atenuam-se temporária
ou parcialmente, enquanto que outras vão nascendo (TSÉ-
TUNG, v. 1, p. 549).
Toda a transição é produto desses dois processos, reprodução e superação.
Porém, esta não é uma síntese, é uma articulação dos dois tipos de contradi-
ção sob a hegemonia da contradição fundamental, contradição antagônica,
sem o que teríamos de admitir um fenômeno de desenvolvimento infinito,
ou o fim do desenvolvimento, o fim da história ou a história sem fim, por-
que sem história, já que a história é movimento. A dialética do movimento
real não produz nenhum tipo de síntese, produz a destruição/superação/
deslocamento da contradição que foi superada. E uma nova história.
A dialética materialista nos permite compreender as formações sociais
como uma “totalidade orgânica” (MARX, 1977, p. 217), estruturada por uma
contradição fundamental, implicando uma pluralidade de contradições que
se desenvolvem de forma desigual, desenvolvimento desigual de contradições
que vai designar a uma delas o lugar de contradição principal, lugar que
pode ser ocupado ou não pela contradição fundamental, e de contradições
secundárias, de um aspecto principal e um aspecto secundário nas contra-
dições e seus deslocamentos, onde uma contradição secundária por seu
agravamento pode assumir o papel de contradição principal ou o aspecto
secundário da contradição pode passar a aspecto principal.

47
Uma das questões centrais da dialética materialista é exatamente a de
compreender a desigualdade do desenvolvimento das contradições e os
deslocamentos que produzem, o que nos permite compreender como, no
interior de uma formação social existe sempre uma contradição fundamen-
tal e antagônica que é a contradição principal cuja resolução determina a
conclusão do processo de desenvolvimento do fenômeno, e contradições
secundárias, contradições fundamental e secundárias que, em seus desloca-
mentos, podem ocupar o lugar de contradição principal, contradição prin-
cipal determinando e sendo determinada pelas contradições fundamental e
secundárias e seus deslocamentos, resultado da realidade material, histórica,
que leva a que em determinadas circunstâncias uma contradição secundária
ocupe o lugar da contradição principal ou que o aspecto secundário passe
a aspecto principal na contradição.
No processo, complexo, de desenvolvimento dum fenó-
meno existe toda uma série de contradições; uma delas é
necessariamente a contradição principal, cuja existência e
desenvolvimento determinam a existência e o desenvolvi-
mento das demais contradições ou agem sobre elas (TSÉ-
TUNG, 1975, v. 1, p. 559).
Outro aspecto central negado pela dialética idealista é o da situação
subordinada do conjunto de contradições que constituem o processo - a
totalidade orgânica, a formação social – à contradição fundamental, con-
tradição antagônica que se agudiza progressivamente, cuja articulação
específica com o conjunto de contradições específicas que constituem a
formação social, seu desenvolvimento/agudização, dirigindo, dando o sen-
tido do desenvolvimento da totalidade da formação social, a caracteriza.
O privilégio dado à conservação, à insistência em acentuar a permanência
do “velho” no “novo”, a “compreensão” de uma “dialética da negação” na
qual o “novo” não destrói totalmente o “velho”, mas conserva tudo o que de
melhor estava contido neste, permite negar a necessidade da superação, a
necessidade de levar radicalmente até ao fim o processo do desenvolvimento
de uma contradição e sua substituição por outra.
Quando se diz que a dialética materialista tem seu centro na contradição
antagônica é porque a contradição fundamental é sempre antagônica e é
esta contradição que dirige o processo de transformação, subordinando as
demais contradições, dirige porque somente a superação da contradição
fundamental e da essência desse processo, determinada por essa contradi-
ção pode trazer a nova contradição, a nova unidade e seus contrários. Daí
que seja ao longo do processo a contradição fundamental, antagônica, a
contradição principal do processo, contradição principal porque na história
o processo de superação não remete a nenhuma síntese.
Esta é a tese central do materialismo dialético que rejeita absolutamente
a dialética da continuidade, da conservação, que é o centro da dialética
idealista e da ideologia burguesa expressa nas ciências humanas e sociais.

48
Quando se fala em superação da contradição fundamental refere-se ao
ápice de um processo de agudização com a substituição desta contradição
pela nova contradição. Contudo, o processo de resolução da contradição
fundamental, contradição antagônica, contempla um momento onde
pode se produzir uma ruptura nas relações de determinação dentro da
unidade que constitui a contradição fundamental, o aspecto secundário
passa a aspecto principal, o que determina um outro tipo de ruptura onde
se produz uma transformação nas relações de determinação e articula-
ção do conjunto de contradições que constituem o processo. O que não
significa que essa ruptura faça desaparecer imediatamente os elementos
que se relacionavam na contradição fundamental. O que se destrói ime-
diatamente não são os elementos da contradição, mas o modo destes se
relacionarem. A “velha” relação se substitui por um novo tipo de relação,
onde estes elementos se encontram inseridos. É isto que permite compre-
ender porque uma revolução não destrói imediatamente a possibilidade
de uma contra-revolução, apesar de haver destruído a relação existente
anteriormente entre as classes no interior da contradição fundamental.
A classe dominada passa a ser dominante, porém não destrói de vez a
antiga classe dominante.
Ao colocar o materialismo histórico para trabalhar, é importante reco-
nhecer que a cada momento do processo existe apenas uma contradição
principal que dá a direção desse processo.
Seja em que caso for, não cabe qualquer dúvida que, em cada
uma das etapas do desenvolvimento do processo, apenas
existe uma contradição principal que desempenhe o papel
diretor. Assim pois, se um processo comporta várias contra-
dições, existe necessariamente uma delas que é a principal e
desempenhe o papel diretor, determinante, enquanto que as
outra ocupam apenas uma posição secundária, subordinada
(TSÉ-TUNG, 1975, v. 1, p. 561).
Marx nos dá, na famosa Introdução à Contribuição Crítica da Economia
Política, de 1857, um exemplo de aplicação de sua dialética analisando um
processo social em sua unidade, suas contradições, suas relações, interações
e determinações recíprocas e sua determinação pela contradição principal,
o exemplo perfeito do desenvolvimento de um processo onde a contradição
principal desempenha “o papel diretor, determinante”, subordinando a si as
outras “várias contradições”;
Não chegamos à conclusão de que a produção, a distribui-
ção, a troca e o consumo são idênticos, mas que são antes
elementos de uma totalidade, diferenciações no interior
de uma unidade… Uma produção determinada determina
[aspecto principal] portanto um consumo, uma distribuição,
uma troca determinados, regulando igualmente as relações
recíprocas determinadas desses diferentes momentos. A bem

49
dizer a produção, na sua forma exclusiva, é também, por seu
lado, determinada pelos outros fatores. (MARX, 1977, p. 217).
Compreender como opera a dialética materialista nos permite realizar “a
análise concreta de uma situação concreta” (LENIN, 1981, v. 3, p. 14), compre-
ender as formações sociais como uma unidade, “uma totalidade” complexa
estruturada por uma contradição fundamental determinante, “regulando
igualmente as relações recíprocas” de uma pluralidade de contradições,
pluralidade de contradições que se relacionam e se desenvolvem de forma
desigual. “Totalidade” que se constitui na existência de uma contradição
fundamental, que em última instância, ao longo do processo, é também a
contradição principal e de contradições secundárias em suas determinações
recíprocas. Esta é, portanto, como já afirmamos, uma das questões centrais
da dialética materialista: a compreensão da desigualdade do desenvolvimento
das contradições e os deslocamentos que produzem, o que nos permite
compreender como no interior da unidade de uma formação social existe
sempre uma contradição dominante, a contradição fundamental que ao
longo do processo e, em última instância, ocupa o lugar de contradição
principal, determinando e sendo determinada pelas contradições secundárias
e seus deslocamentos, resultado da realidade material, histórica, que leva a
que em determinadas circunstâncias uma contradição secundária ocupe o
lugar da contradição principal ou que o aspecto secundário passe a aspecto
principal na contradição. E não é possível compreender esta questão se não
compreendemos a lei da unidade dos contrários, lei fundamental da dialética
que enuncia, nos permite entender, que em tudo os contrários estão em
luta e ao mesmo tempo conformam uma unidade, unidade inevitável sem
a qual não pode existir, nem se pode pensar a contradição, contrários que
estão em luta, que se excluem e ao mesmo tempo estão inevitavelmente
vinculados e em condições determinadas de agudização da contradição,
como já dissemos, se transformam um nos outros.
Se a burguesia e o proletariado não pudessem se transfor-
mar um no outro, como se explicaria que o proletariado se
transforme por meio da revolução em classe dominante e
a burguesia passe a ser classe dominada? (TSÉ-TUNG, 1978,
v. 5, p. 402).
Porém, não esqueçamos a observação de Lenin,
La unidad … de los contrarios es condicional, temporal,
transitoria, relativa. La lucha de los contrarios que se excluyen
mutuamente es absoluta, como son absolutos el desarrollo
y el movimiento (1986, v. 29, p. 322).
E, mais adiante,
En resumen, se puede definir la dialéctica como la doctrina
de la unidad de los contrarios. Esto encarna la esencia de la

50
dialéctica, pero requiere explicaciones y desarrollo (LENIN,
1986, v. 29, p. 201).
Outra característica central da dialética marxista, como apontam Lenin
e Mao Tsé-Tung tirando a lição de Marx, é de que é a contradição interna
que preside o desenvolvimento dos fenômenos, como podemos ver quando
Marx faz em O Capital algumas “Considerações históricas sobre o capital
comercial” (MARX, 1984, v. 3, p. 249).
O desenvolvimento do comércio e do capital comercial leva
por toda a parte a orientação da produção para o valor da
troca 6, aumenta seu volume, a diversifica e a cosmopoliti-
za, desenvolve o dinheiro tornando-o dinheiro mundial. O
comércio age por isso em todas as partes mais ou menos
como solvente sobre as organizações préexistentes da pro-
dução, que em todas as suas diferentes formas, se encon-
tram principalmente voltadas para o valor de uso. Até que
medida, porém, ele provoca a dissolução do antigo modo de
produção depende inicialmente, de sua solidez e articulação
interna. E para onde esse processo de dissolução conduz, ou
seja, que novo modo de produção entra no lugar do antigo,
não depende do comércio, mas do caráter do próprio modo
antigo de produção (MARX, 1984, v. 3, p. 249).
Como podemos ver, Marx nos dá neste pequeno trecho onde analisa
o mercantilismo, a expansão do capital mercantil, um belo exemplo da
ciência materialista - dialética da história. O desenvolvimento do comér-
cio, do capital comercial entra em contradição com as “organizações
preexistentes da produção”. Porém, à medida e a direção “para onde esse
processo de dissolução conduz” vai depender não da contradição exter-
na, “do comércio”, mas das contradições internas, o “caráter do próprio
modo antigo de produção”, “de sua solidez e articulação interna”. Como
se vê a contradição externa determina, “provoca a dissolução” do antigo
modo de produção, determina nos limites e formas determinados pelas
contradições internas. E esta é uma questão importante de retomarmos
ao se discutir o caráter de nossa formação social.
Mao vai assinalar esse aspecto da dialética materialista encontrado em
Marx.
A causa fundamental do desenvolvimento dos fenôme-
nos não é externa, mas interna; ela reside no contraditório
do interior dos próprios fenômenos. No interior de todo
fenômeno há contradições, daí o seu movimento e seu de-
senvolvimento. O contraditório no seio de cada fenômeno
é a causa fundamental do respectivo desenvolvimento,

6 Mantivemos “o valor da troca” como se encontra na edição com que estamos trabalhando.
O correto seria valor de troca.

51
enquanto que a ligação mútua e a ação recíproca entre os
fenômenos não constitui mais do que causas secundárias
(TSÉ-TUNG, 1975, v. 1, p. 529).
Prosseguindo em seu raciocínio, Mao nos alerta:
Na sociedade, as mudanças são devidas principalmente
ao desenvolvimento das contradições que existem no seu
seio, isto é, a contradição entre as forças produtivas e as
relações de produção, a contradição entre as classes e a
contradição entre o novo e o velho; é o desenvolvimento
dessas contradições que faz avançar a sociedade e deter-
mina a substituição da velha sociedade por uma nova. Mas
será que a dialética materialista exclui as causas externas?
De maneira nenhuma. Ela considera que as causas externas
constituem a condição das modificações, que as causas
internas são a base dessas modificações e que as causas
externas operam por intermédio das causas internas (TSÉ-
TUNG, 1975, v. 1, p. 530-531).
É a incompreensão desta questão que vai levar a muitos estudiosos da
formação social brasileira a, dando prevalência às determinações externas,
cometerem equívocos na determinação da relação contradições externas e
internas. Assim, resultam análises que superdimensionam as contradições
externas, dissimulando ou nela diluindo as contradições internas. Essas in-
terpretações logram deslocar o eixo da análise para a crítica da dominação
externa, dispensando o estudo da formação social concreta engendrada
nessa relação de dominação.
A dialética marxista mostra a necessidade de caracterizar a articulação
específica a cada formação social entre contradições internas e externas
nas quais umas, as contradições internas, determinam a forma e o limite
da subordinação de uma formação social às contradições externas geradas
pelo desenvolvimento do sistema capitalista mundial e suas relações de
dominação, contradições inerentes ao modo de produção vigente, numa
formação social que se articula de forma subordinada às contradições ge-
radas numa primeira fase pelo avanço das relações de dominação a partir
da formação de um mercado mundial e, mais tarde, com a formação de um
sistema capitalista mundial, o imperialismo.
É importante para nosso estudo assinalar, como Sérgio Silva aplica a
dialética materialista ao teorizar as relações contraditórias no conjunto de
contradições que conformam a economia capitalista mundial e sua relação
específica com cada formação social ao analisar a formação social brasileira.
… quando se trata de explicar o desenvolvimento do ca-
pitalismo em um país determinado, é necessário pôr em
evidência e examinar as suas contradições particulares, sem
perder de vista, é claro, que esse desenvolvimento faz parte

52
do capitalismo internacional (o que determina inclusive as es-
pecificidades desse desenvolvimento) (SILVA, 1985, p. 38-39).
Mas, é importante reproduzir o conjunto da análise:
O desenvolvimento das relações capitalistas em escala mun-
dial é muito desigual… A existência dessas desigualdades
decorre das características fundamentais do próprio modo
de produção capitalista; a profundidade dessas desigualda-
des entre as nações é uma das características fundamentais
do modo de produção capitalista dominante em escala
mundial. Entretanto, como a economia capitalista mundial
não existe em abstrato, as suas desigualdades explicam-se
fundamentalmente pelas características das diferentes eco-
nomias nacionais que a compõem. Em particular, quando se
trata de explicar o desenvolvimento do capitalismo em um
país determinado, é necessário pôr em evidência e examinar
as suas contradições particulares, sem perder de vista, é
claro, que esse desenvolvimento faz parte do capitalismo
internacional (o que determina inclusive as especificidades
desse desenvolvimento) (SILVA, 1985, p. 38-39).
O que queremos por em evidência é que o materialismo dialético e o
materialismo histórico são disciplinas ligadas necessariamente por razões
teóricas e históricas. Daí porque defendemos a necessidade teórica da pre-
sença do materialismo dialético para a construção da ciência da história para
a “análise concreta da situação concreta” (LENIN, 1981, v. 3, p. 14). Assim é que
apesar de que materialismo dialético e o materialismo histórico funcionem
juntos, numa relação/interação necessária, escolhemos tratar inicialmente
o materialismo dialético numa ordem que atendesse as razões teóricas
indispensáveis e também facilitasse a nossa exposição e a compreensão de
um tema por si só complexo. É a partir deste debate sobre materialismo
dialético que nos achamos em condições de discutir o materialismo histórico.
Bibliografia
AFANASIEV, V. Fundamentos de filosofia. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1968.
ENGELS, F. Cartas sobre el materialismo histórico. 1890-1894. Moscú:
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«amigos del pueblo» y como luchan contra los socialdemócratas, escrito
en 1894, p. 131 a 363)

53
LENIN, V. I.. Obras completas. Moscú: Progreso, v. 3, 1981. (“Prefacio
a la segunda edición”, escrito en 1907, p. 13 a 17, de “El Desarrollo del
Capitalismo en Rusia”, escrito de 1896 a 1899)
________. Obras completas. Moscú: Progreso, v. 4, 1981. (“Nuestro programa”,
escrito no antes de octubre de 1899, p. 194 a 198)
________. Obras completas. Moscú: Progreso, v. 6, 1981. (“Qué hacer”, escrito
en 1902, p. 1 a 203)
________. Obras completas. Moscú: Progreso, v. 17, 1983. (“Marxismo y
revisionismo”, escrito en 1908, p. 17 a 26)
________. Obras completas. Moscú: Progreso, v. 18, 1983. (“Materialismo y
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________. Obras completas. Moscú: Progreso, v. 29, 1986. (“Resumen del libro
de Hegel ‘Ciencia de la Lógica’”, escrito en septiembre-diciembre de 1914,
p. 75 a 216) (“Resumen del libro de Hegel ‘Lecciones sobre la filosofía de
la Historia’”, escrito en 1915, p. 281 a 291); (“Plan de la dialéctica (lógica) de
Hegel”, escrito en 1915, p. 298 a 303); (“Sobre el problema de la dialéctica”,
escrito en 1915, p. 321 a 328)
________. Obras completas. Moscú: Progreso, v. 45, 1987. (“Nuestra revolu-
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________. Que fazer. Obras Escolhidas, Rio de Janeiro: Editorial Vitória, v.
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MAO, TSÉ-TUNG. Obras escolhidas de Mao Tsetung. Pequim: Edições do
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________. Obras escogidas. Madrid: Fundamentos, v. 5, 1978. (“Discursos
en una conferencia de secretarios de comités provinciales, municipales
y de región autónoma del partido”, enero de 1957, p. 381 a 418) (“Sobre el
tratamiento correcto de las contradicciones en el seno del pueblo”, 27
de febrero de 1957, p. 419 a 458)
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. S. Paulo: Martins
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________. Le Capital. Critique de l’ economie politique. Paris: Editions Sociales,
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54
MARX, Karl y ENGELS, Federico. Correspondencia. Buenos Aires: Editorial
Problemas, 1947.
PLEKHÂNOV, G. Questões fundamentais do marxismo. Rio de Janeiro:
Vitória, 1956.
SILVA, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. S. Paulo:
Alfa Ômega, 1985.

55
Algumas teses para retomar o marxismo:
materialismo histórico 1

1 Introdução
Nosso objetivo nestas breves considerações sobre a ciência da história,
evidentemente, não é o de tentar uma sistematização do estado do mate-
rialismo histórico. Queremos somente colocar para trabalhar alguns de seus
conceitos básicos que acreditamos centrais para realizar a análise concreta da
realidade brasileira. Colocar para trabalhar conceitos como forças produtivas,
relações de produção, força de trabalho, instrumentos de trabalho, objetos
de trabalho, modo de produção, infraestrutura e superestrutura, Estado, luta
de classes, etc., um conjunto de conceitos que sabemos trabalham juntos,
dependem todos uns dos outros, daí que para tratar do materialismo dialético
seria necessário tratar de todos ao mesmo tempo, o que não nos é possível
fazer, daí nos aprofundarmos no tratamento de alguns conceitos e tratarmos
outros de forma sumária, insuficiente, insuficiência que reconhecemos que
só a continuidade de nossa prática, o trabalho destes conceitos na realidade
brasileira vai nos permitir suplantar.
E quando dizemos que é necessário colocar para trabalhar os conceitos
do materialismo dialético e histórico na realidade brasileira, queremos dizer
que buscamos fazer exatamente – não o contrário, o oposto, do que tem
sido praticado no Brasil – mas fazer a análise da formação econômico-social
brasileira de outra forma, de outro ponto de vista, de um ponto de vista
radicalmente diferente. Ou dizendo melhor, fazer a análise concreta da
formação econômico-social brasileira e não rotular, “construir à maneira
dos hegelianos” ,“…sem ulterior estudo, tudo e mais alguma coisa…” – como
aliás há mais de um século Engels alertava a nós todos em carta a Conrad
Smith, em 05 de agosto de 1890,
A palavra «materialista» [materialistisch], na Alemanha,
serve, em geral, a muitos escritores jovens de simples frase
com que etiquetam, sem ulterior estudo, tudo e mais alguma
coisa, isto é, colam esta etiqueta e, então, crêem ter resolvido
alguma coisa. A nossa concepção da história, porém, é, antes
de tudo, uma directiva [Anleitung] para o estudo, [não é]
nenhuma alavanca de construções à maneira dos hegelianos
[Hegelianertum]. A história toda tem de ser estudada de
novo, as condições de existência [Daseinsbedingungen] das
diversas formações sociais [Gesellschaftsformationen] têm
que ser investigadas em pormenor, antes de se tentar deduzir
a partir delas os modos de ver [Anschauungsweise] políticos,
de direito privado, estéticos, filosóficos, religiosos, etc., que
lhes correspondem. (MARX e ENGELS, Obras Escolhidas em
Três Tomos, Tomo III, Edições Avante, Lisboa, 1985, p. 543).
1 Texto de agosto de 2000.
Isto é, ao invés de rotular – ao contrário de pegar conceitos retirados da
análise de processos revolucionários ocorridos em outras formações sociais,
em outro momento histórico, em outras práticas concretas, “à maneira
dos hegelianos”, para resolver a questão da necessidade da análise concre-
ta; ao invés de indagar da natureza da revolução a partir de etiquetas, se
democrático-burguesa, nacional democrática ou nacional-anti-imperialista,
questão que se coloca para a prática de maneira irresolúvel já que implica na
tentativa de “colar etiqueta” – o que nos propomos é trabalhar o processo
histórico com os instrumentos teóricos do marxismo, para aí determinar a
melhor forma de qualificá-lo, de qualificar os processos de transformação que
estão latentes na situação concreta, aí “expor adequadamente o movimento
real”. (Marx, O Capital, livro 1, t. 1, Abril Cultura, 1983, p. 20).
A apreciação de um processo histórico de uma forma ou de outra so-
mente é possível depois de analisada a realidade. Marx e Engels não se
cansaram de repetir que nada mais fizeram do que analisar a realidade, do
que colocar os conceitos do materialismo dialético e histórico para trabalhar
na realidade, e isto é radicalmente diverso de analisar a realidade a partir
de conceitos elaborados para qualificar situações concretas ocorridas em
outro momento, em outras formações econômico-social como: revolução
democrático-burguesa, nacional democrática, etc.
“A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, anali-
sar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão
íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode
expor adequadamente o movimento real. Caso se consiga
isso, e espelhada idealmente agora a vida da matéria, talvez
possa parecer que se esteja tratando de uma construção a
priori”. (MARX, O Capital, Abril Cultural, livro 1, t. 1, 1983,
p. 21).
Poderíamos dizer que se vai à realidade não com os instrumentos de
análise, não com os instrumentos do método, da ciência, seus conceitos,
mas com conceitos resultantes da análise de processos concretos em outra
realidade, em outro momento histórico, exatamente a concepção metafísica
que a ciência da história condena quando Marx propõe que,
“O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas deter-
minações, logo, unidade da diversidade. É por isso que ele é
para o pensamento um processo de síntese, um resultado,
e não um ponto de partida, apesar de ser um verdadeiro
ponto de partida e portanto igualmente o ponto de par-
tida da observação imediata e da representação” (MARX,
Contribuição à Crítica da Economia Política, Martins Fontes,
1977, p. 218-219).
Assim, ao invés de realizar a “síntese” das “múltiplas determinações”
da realidade que queremos “estudar”, aplica-se o “resultado” do “estudo”

57
de uma outra totalidade, em outro momento histórico, e suas múltiplas
determinações e, simplesmente “colam esta etiqueta e, então, crêem ter
resolvido alguma coisa”. “A nossa concepção da história, porém, é, antes de
tudo, uma directiva para o estudo…”.
Não existe outro caminho para a ciência da história a não ser o de “ [in-
vestigar em pormenor] as condições de existência das diversas formações
sociais…, antes de se tentar deduzir a partir delas os modos de ver políticos,
de direito privado, estéticos, filosóficos, religiosos, etc., que lhes correspon-
dem” , colocar para trabalhar os conceitos do materialismo histórico nas
condições de existência das diversas formações econômico sociais.
2 ALGUMAS QUESTÕES PARA DISCUTIR O MATERIALISMO HISTÓRICO
Os marxistas sabem, desde as páginas da Ideologia Alemã, que toda
formação econômico-social para existir e subsistir precisa reproduzir as
condições de sua existência.
Devemos lembrar a existência de um primeiro pressuposto
de toda a existência humana e, de toda a história, a saber,
que os homens devem estar em condições de poder viver a
fim de «fazer história» … O primeiro fato histórico é pois a
produção dos meios que permitem satisfazer essas neces-
sidades, a produção da própria vida material; trata-se de
um fato histórico, de uma condição fundamental de toda
a história, que é necessário, tanto hoje como a milhares de
anos, executar dia a dia, hora a hora … (MARX, A Ideologia
Alemã, Presença, 1976, p. 33).
Assim, sabemos desde Marx e Engels que toda formação econômico-
-social necessita produzir as condições de sua existência e, necessariamente,
ao mesmo tempo que produz, e para produzir, necessita reproduzir as
condições de sua produção, “a produção dos meios que permitem satis-
fazer essas necessidades, a produção da própria vida material”, sem o que
não poderia existir e se desenvolver uma semana sequer, como diz Marx
à Kugelmann em carta de 11 de julho de 1868, “Qualquer criança sabe que
um país que parou de trabalhar, não digo nem um ano, mas umas poucas
semanas, morrerá” (MARX, O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, 1974, Paz
e Terra, p. 226), e alertam Marx e Engels na Ideologia Alemã: “Em qualquer
concepção histórica é primeiro necessário observar este fato fundamental
em toda a sua importância e extensão e colocá-lo no lugar que lhe compete”
(MARX, A Ideologia Alemã, Presença, 1976, p. 33), colocá-lo no lugar que lhe
corresponde na ciência da história. Daí porque até quase o fim de sua vida
Engels não se cansa de reafirmar que “… Segundo a concepção materialista
da história, o momento em ultima instância determinante [in letzter Instanz
bestimmende], na história, é a produção e a reprodução da vida real.”, em
carta a Jose Bloch, em 21 de setembro de 1890 (MARX e ENGELS, Obras
Escolhidas em Três Tomos, Tomo III, Edições Avante, Lisboa, 1985, p. 547).
Começaremos por este ponto a tratar do materialismo histórico.

58
Para viver, os homens devem produzir os bens materiais que consomem
e, para isto, ao mesmo tempo reproduzir as condições de produção destes
bens. E para produzi-los e reproduzir as condições de sua produção, esta-
belecem relações com a natureza nas formas das relações de cooperação
que estabelecerem entre si, relações de cooperação que são ao mesmo
tempo relações de trabalho, necessidade natural e condição indispensável
à produção e reprodução das condições de existência dos homens.
Relações com a natureza que não são relações entre homens isolados e a
natureza, mas relações entre homens cooperando em formas determinadas
de relações de trabalho; relações de produção que se dão ou entre homens
cooperando em condições de igualdade dentro de grupos – no período
do comunismo primitivo – ou através de relações entre classes, formas de
cooperação que se estabelecem para produzir a partir do surgimento da
divisão da sociedade em classes, relações de produção que dependem do tipo
de relação de propriedade que se estabelece sobre os meios de produção.
Portanto, para produzir os bens materiais indispensáveis à existência
material e à reprodução de uma determinada formação econômico-social,
se estabelece uma forma de produzir, um conjunto de processos de traba-
lho cujo sistema constitui o processo de produção do modo de produção
considerado, uma forma de produzir que é uma forma de trabalhar a na-
tureza para dela extrair os bens necessários à reprodução de determinada
formação social.
Assim, a produção é sempre, e em quaisquer condições, produção social,
produção que se realiza através de processos de trabalho que se dão/se fazem,
em relações de produção determinadas, em formações econômico-sociais
determinadas. “Assim, sempre que falamos de produção, é à produção
num estágio determinado do desenvolvimento social que nos referimos …”
(MARX, Contribuição à Crítica da Economia Política, 1977, p. 202).
Aqui um parêntese, Marx nos mostra não só em O Capital, mas já em a
Contribuição à Crítica da Economia Política a historicidade das categorias,
analisando detidamente a categoria trabalho que parece à primeira vista e do
ponto de vista idealista metafísico como uma categoria “universal”. Mostra
Marx que mesmo as categorias mais abstratas são produto de condições
históricas e só tem validade nelas:
Este exemplo do trabalho mostra com toda a evidência
que até as categorias mais abstratas, ainda que válidas –
precisamente por causa de sua natureza abstrata – para
todas as épocas, não são menos, sob a forma determinada
desta mesma abstração o produto de condições históricas
e só se conservam plenamente válidas nestas e no quadro
destas (MARX, Contribuição à Crítica da Economia Política,
1977, p. 223).
Mas, voltemos a nossa discussão sobre processo de trabalho. Processos de
trabalho que são sucessões de ações sistematicamente reguladas efetuadas

59
pelos agentes de produção que as exercem sobre objetos de trabalho de-
terminados (matéria bruta, matéria-prima, animais domésticos, terra, etc.),
utilizando para trabalhar instrumentos de trabalho também determinados
(ferramentas das mais primitivas, passando pela terra, às máquinas, etc.)
objetivando transformar os objetos de trabalho em produtos, valores de
uso, ou objetos de consumo destinados a satisfazer as necessidades hu-
manas diretas, ou em matérias-primas e instrumentos de trabalho, meios
de produção que vão garantir a reprodução do processo de trabalho, do
processo de produção.
Deste modo, poderíamos definir uma forma de produzir, um modo
de produção, como um conjunto de processos de trabalho em, ou sob,
determinadas relações de produção, cujo sistema – unidade contraditória
– constitui o processo de produção de um modo de produção concreto,
formas de trabalho em processos de produção determinados, em última
instância, pelo estágio de desenvolvimento dos meios de produção existentes
e, dentre eles, principalmente, dos instrumentos de trabalho.
Por conseguinte, um modo de produção constitui-se numa unidade
contraditória e complexa, onde determinadas relações de produção põem
em ação meios de produção e força de trabalho, forças produtivas ao mesmo
tempo para produzir e reproduzir as condições de produção. Marx expõe o
processo de reprodução ao discutir o processo de produção capitalista no
livro terceiro de O Capital:
Vimos que o processo de produção capitalista é uma forma
historicamente determinada do processo social de produção
em geral. Este último é tanto processo de produção das
condições materiais de existência da vida humana quanto
processo que, ocorrendo em relações histórico-econômicas
de produção específicas, produz e reproduz essas mesmas
relações de produção e, com isso, os portadores desse pro-
cesso, suas condições materiais de existência e suas relações
recíprocas, isto é, sua forma sócio-econômica determinada.
Pois a totalidade dessas relações, em que os portadores dessa
produção se encontram com a Natureza e entre si, em que
eles produzem, essa totalidade é exatamente a sociedade,
considerada segundo sua estrutura econômica (MARX,
O Capital, Abril Cultural, 1983, livro 3, t. 2, p. 272).
Marx mostra que o processo social de produção “… é tanto processo de
produção das condições materiais de existência … quanto processo que …
produz e reproduz” enquanto produz e reproduz as condições de existência
“essas mesmas relações de produção e, com isso, os portadores desse processo,
suas condições materiais de existência e suas relações recíprocas,”, quer dizer,
as classes, as condições de sua existência, as condições de dominação e a luta
de classes, “isto é, sua forma sócio-econômica determinada… a totalidade
dessas relações …”, a reprodução de uma determinada unidade de forças

60
produtivas e relações de produção, uma determinada formação econômico-
-social. Infra-estrutura e superestrutura como vai nos mostrar Marx.
Ora, o que são esses meios de produção, essa força de trabalho, essas
forças produtivas, colocadas em ação em relações de produção determinadas
no processo de produção?
As forças produtivas de um modo de produção constituem-se também
em uma unidade contraditória que reúne em si os meios de produção à
agentes de produção, meios de produção que, como já dissemos, se com-
põem de objetos de trabalho (matéria bruta, matéria-prima, terra, animais
domésticos, etc.), que são trabalhados por instrumentos de trabalho (das
ferramentas menos elaboradas às máquinas, etc.) de maneira que se trans-
formem, ou em produtos próprios a satisfazerem as necessidades humanas
diretas (alimentação, vestuário, moradia, etc.), ou em matérias primas e
instrumentos de trabalho destinados a garantir a continuidade do processo
de trabalho, do processo de produção; forças produtivas que são colocadas
em ação, dentro de relações sociais de produção determinadas, pelos agen-
tes de produção, pela força de trabalho, isto é, a capacidade do homem de
dispêndio de energia em atividades físicas e intelectuais.
Marx designa a unidade objetos de trabalho + instrumentos de trabalho
ou de produção através do conceito de meios de produção. E designa pelo
conceito de força de trabalho, o conjunto de formas de dispêndio de ener-
gia humana por intermédio dos meios de produção existentes, nas formas
concretas de cooperação existentes, ou, dizendo de outra forma, em relações
sociais de produção determinadas.
Portanto, a unidade forças produtivas se expressa na equação que reúne a
unidade meios de produção-força de trabalho, sob/em determinadas relações
sociais de produção, constituindo uma nova unidade, e é preciso lembrar,
unidade contraditória; o modo de produção. Ou dizendo de forma mais
clara: processos de produção que se dão sob relações sociais de produção
que são relações de classe, relações entre classes antagônicas, melhor dizen-
do, relações de luta de classes nas quais a classe dominante luta para, no
processo de produção, manter sua dominação e explorar a classe dominada
e a classe dominada luta por dar fim à exploração.
É novamente importante voltar a uma indicação preciosa nos deixada
por Marx em O Capital. Já dissemos atrás, definindo modo de produção, que
este compreende a unidade contraditória de formas de trabalho determi-
nadas em processos de produção determinados, sob determinadas relações
de produção, modo de produção determinado, em última instância, pelo
estágio de desenvolvimento dos meios de produção existentes, e dentre
eles, principalmente, os instrumentos de produção.
Como Marx vê esta determinação em última instância “de toda a constru-
ção social”, portanto, determinação de toda a formação social pelo estágio
de desenvolvimento dos meios de produção existentes, principalmente,
pelos instrumentos de produção, formação econômico-social que tem nas
relações de produção seu “segredo mais íntimo, o fundamento oculto de

61
toda a construção social e, por conseguinte, de forma política das relações de
soberania e de dependência, em suma, de cada forma específica de Estado”?
É sempre na relação direta dos proprietários das condições
de produção com os produtores diretos – relação da qual
cada forma sempre corresponde naturalmente a determi-
nada fase do desenvolvimento dos métodos de trabalho, e
portanto a sua força produtiva social – que encontramos
o segredo mais íntimo, o fundamento oculto de toda a
construção social e, por conseguinte, de forma política das
relações de soberania e de dependência, em suma, de cada
forma específica de Estado (MARX, O Capital, Abril Cultural,
1983, livro 3, t. 2, p. 251).
Como diz Marx, são nas relações de produção – “relação direta dos pro-
prietários das condições de produção com os produtores diretos”, relações
das quais, “cada forma sempre corresponde naturalmente a determinada
fase do desenvolvimento dos métodos de trabalho, e portanto a sua força
produtiva social”, isto é, são determinadas por eles – “que encontramos o
segredo mais íntimo, o fundamento oculto de toda a construção social”.
Unidade dialética, compreensão sem a qual nada podemos afirmar do
marxismo.
É importante ressaltar, neste momento, que em um modo de produção
concreto coexistem várias relações de produção, formas de produção, e seus
correspondentes instrumentos de trabalho, subsumidos, compreendidos,
no modo de produção dominante.
Contudo, introduziremos esta questão mais adiante.
Num modo de produção dado, as forças produtivas relacionam-se em
determinadas relações de produção, relações de classes antagônicas, relações
de luta de classes – e cremos que é importante enunciar assim para expressar
a unidade contraditória contida no conceito de modo de produção: a uni-
dade forças produtivas/relações de produção não é uma adição. A unidade
não é uma soma de partes, mas sim um tecido de relações objetivas que
transcende a particularidade de cada uma de suas partes, constituindo uma
totalidade unificada.
É necessário que não se conceba a totalidade nem como uma adição de
partes nem como absolutamente distinta de suas partes constitutivas, mas
que se entenda que a totalidade se define pelas relações específicas que se
estabelecem entre as contradições, fundamental, principal, secundárias, que
a constituem, que constituem a totalidade.
Esta concepção de totalidade é importante porque, de um lado, é a
totalidade que possibilita a determinação específica de uma contradição
particular e, de outro, são as relações específicas que se estabelecem entre
suas contradições que determinam a totalidade concreta.
De um lado, é a totalidade representada por uma formação sócio-eco-
nômica, a realidade concreta, que possibilita a determinação específica de

62
cada uma de suas contradições, enquanto são as relações específicas que se
estabelecem entre suas contradições intrínsecas que permite a determinação
da realidade concreta expressa na formação econômico-social, na totalidade.
Por exemplo, a contradição entre capital e trabalho, que é uma das con-
tradições próprias ao sistema capitalista, sua contradição fundamental, se
determina especificamente no Brasil na especificidade das relações que se
estabelecem, a cada situação concreta, no conjunto de contradições que
compõem esta formação econômico-social, esta totalidade econômico-social
concreta historicamente determinada.
Nesta situação concreta a classe dominante brasileira, burguesia bra-
sileira, detentora do capital, vai apresentar diante do sistema econômico
mundial do imperialismo uma posição que não é exatamente a mesma da
burguesia norte-americana; da mesma forma que o operariado brasileiro
vai apresentar um comportamento próprio que o individualiza entre o
operariado internacional, não obstante a que a contradição entre o capital
e o trabalho exista tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos.
Julgar que a análise concreta das particularidades que constituem cada
situação concreta, é um fato de menor importância, que pouco acrescenta
à compreensão concreta da realidade, não só é um desvio teórico, como,
na realidade, encaminha a análise para a elucubração metafísica ao retirar
da teoria a análise da situação concreta, fonte de sua vida, restando como
teoria um esquema formal, vazio, sem significação objetiva.
É importante aqui lembrar Marx quando criticava a estultice daqueles
que, presos a esquemas formais, estabelecem modelos, aplicando-os a
situações concretas distintas.
Mas todas as épocas da produção têm certas características
comuns, certas determinações comuns… No entanto, este
caráter geral ou estes traços comuns, que a comparação
permite estabelecer, formam por seu lado um conjunto
muito complexo cujos elementos divergem para revestir
diferentes determinações. Algumas destas características
pertencem a todas as épocas, outras apenas comuns a umas
poucas. [Algumas] destas determinações revelar-se-ão co-
muns tanto à época mais recente como à mais antiga. Sem
elas, não é possível conceber qualquer espécie de produção…
do mesmo modo, é importante distinguir as determinações
que valem para a produção em geral, a fim de que a unidade
– que se infere já do fato de o sujeito, a humanidade, e o
objeto, a natureza serem idênticos – não nos faça esquecer
a diferença essencial. Este esquecimento é o responsável por
toda a sapiência dos economistas modernos que preten-
dem provar a eternidade e a harmonia das relações sociais
atualmente existentes (MARX, Contribuição à Crítica da
Economia Política, 1977, Martins Fontes, p. 203).

63
Mas, voltemos à reprodução das condições de produção.
É só através das relações de produção que estabelecem entre si, que
os homens se relacionam, por meio de instrumentos de produção, com a
natureza, e que se realiza a produção. Marx e Lenin nos mostraram que a
utilização das forças produtivas (meios de produção-força de trabalho) seria
ininteligível, se não se compreendesse que ela só se efetua sob determinadas
relações de produção. Essas relações de produção podem ser de dois tipos:
as que se dão em formações sociais onde todos os seus membros gozam de
uma mesma condição; são agentes da produção; ou em formações sociais
onde existe uma divisão entre seus membros; uns, agentes da produção e
outros não agentes da produção, que, entretanto, intervêm na produção
pelo fato de que detém o domínio, a propriedade, dos meios de produção:
as formações sociais de classes. Portanto, relações de classe, relações através
das quais uma classe explora a outra.
Ou, dizendo de outra forma, formações econômico-sociais de classe,
como a formação social capitalista, onde não agentes da produção detêm
o domínio dos meios de produção e, a partir desta posição na produção,
se apropriam sem contrapartida de uma parte do produto do trabalho
dos agentes da produção, a mais-valia, isto é, apropriam-se do produto do
trabalho destes agentes realizando-o, do que – de sua realização – cedem
uma parte aos agentes da produção, para que possam se reproduzir en-
quanto agentes da produção, e ficam com a outra parte para si mesmos,
utilizando uma parcela da parte da qual se apropriam para seu consumo
e a outra para reproduzir os meios de produção de que necessitam para
continuar produzindo.
Como se depreende desta formulação, no modo de produção capita-
lista as relações de produção capitalistas são ao mesmo tempo relações de
exploração capitalistas, unidade que se expressa de forma completa neste
modo de produção.
Explicando melhor. Se o que afirmamos é verdadeiro para todas as
formações sociais de classe, nas formações sociais capitalistas assume uma
forma característica: é que o modo de produção capitalista produz, como
todos os outros, objetos de utilidade social consumidos individualmente,
coletivamente ou produtivamente, o que é verdadeiro para todo modo de
produção, só que, no modo de produção capitalista são produzidos em
relações de produção que são, ao mesmo tempo, relações de exploração.
A produção só pode se efetuar concretamente quando meios de pro-
dução: objeto de trabalho e instrumento de trabalho, são colocados para
trabalhar, no processo de produção, pela força de trabalho. Meios de pro-
dução e força de trabalho que só são meios de produção e força de trabalho
dentro de relações de produção determinadas, que são, no mesmo processo,
relações de exploração determinadas. Justamente, essa relação dos meios de
produção com a força de trabalho que torna efetiva a produção material, se
dá no regime capitalista unicamente segundo essas relações: de um lado, a
propriedade dos meios de produção e, por outro, de não propriedade dos

64
meios de produção pelos agentes da produção, o que permite aos que tem a
propriedade dos meios de produção se apossem, sem contrapartida, do valor
produzido pela força de trabalho. O que tornam as relações de produção
capitalistas ao mesmo tempo relações de exploração.
Podemos verificar, analisando as questões centrais do modo de produção
capitalista, que, de forma diferente dos modos de produção anteriores, este
não tem como objetivo principal a produção de objetos de utilidade social
para lograr com eles lucro na esfera da circulação. O modo de produção
capitalista tem como objetivo principal a produção da mais-valia, a produção
do próprio capital na produção.
E esta é uma característica central do modo de produção capitalista na
qual devemos deter nossa atenção.
Podemos dizer, buscando uma formulação rigorosa, que o modo de
produção capitalista é a produção necessariamente crescente, ampliada,
da mais-valia, do capital, por meio da produção dos objetos de utilidade
social, de mercadorias, e, portanto e necessariamente, da exploração cres-
cente, “ampliada”, da força de trabalho, por meio da produção. Modo de
produção onde as relações de exploração subordinam, necessariamente, as
relações de produção.
Nunca é demais repetir a importância de chamar a atenção para esta
característica do modo de produção capitalista revelada por Marx: o modo
capitalista de produção é um sistema no qual a produção está subordinada à
exploração. Desta forma podemos dizer que tudo numa formação social ca-
pitalista, sua superestrutura, está determinada pela base material das relações
de produção capitalistas que são ao mesmo tempo relações de exploração
capitalista, isto é, um sistema de exploração no qual a produção ampliada
do capital, à reprodução ampliada do capital, e portanto a superestrutura
que lhe corresponde está subordinada à exploração.
Anteriormente tivemos a oportunidade de dizer que toda forma de
produção é uma totalidade na qual se dá a unidade de um conjunto de re-
lações de produção sob a dominação de relações de produção dominantes
e características do modo de produção dominante, relações de produção e
formas de trabalho, conjunto de relações de produção que exigem agentes
da produção qualificados para executar operações definidas, em uma ordem
definida, a partir de formas de trabalho definidas. Uma “divisão técnica”
do trabalho definida a cada situação concreta de um modo de produção
concreto.
Marx nos mostra, e a luta de classes comprova contra toda evidência,
que a divisão, organização e direção técnicas do trabalho resultam de uma
impostura ideológica e de que todas as formas de divisão e organização
técnicas do trabalho são resultado, direto e indireto, das relações de pro-
dução dominantes e, portanto, das relações de exploração, e, consequen-
temente que, toda divisão técnica do trabalho é, no concreto, uma divisão
do trabalho determinada pela divisão de classes. Aqui precisamos fazer um
esclarecimento: seguindo a indicação de outros marxistas propomos utilizar

65
o conceito de divisão social do trabalho em um sentido diferente daquele
empregado por Marx.
Marx emprega em O Capital a expressão “divisão social do trabalho”
para designar a divisão do trabalho entre os diferentes ramos da produção
social: indústria e agricultura e, em seguida, diferentes ramos da indústria.
Propomos usar para isto a expressão “divisão do trabalho social” e deixar a
expressão “divisão social do trabalho” para expressar o efeito das relações de
produção/relações de classe/relações de exploração, no interior do processo
de produção capitalista. E é neste sentido que vimos utilizando o conceito
de divisão social do trabalho.
Marx e a tradição marxista nos dizem que são as relações de produção que
determinam a divisão e a organização técnica do trabalho e que, no modo de
produção capitalista, são as relações de produção/relações de exploração capi-
talista que determinam, sob formas específicas, as relações técnicas da divisão
da organização do trabalho. O que quer dizer que as relações de produção/
relações de exploração capitalista não determinam somente a extração da
mais-valia, mas que as relações de produção/relações de exploração exercem
outros efeitos específicos na produção, pela divisão social do trabalho.
Porém, toda a forma de produção se faz pela co-existência de vários
processos de trabalho e, consequentemente, pela distribuição da força
de trabalho entre os diversos postos de trabalho nos vários processos de
trabalho necessários à realização, coordenação e direção do processo de
produção; divisão definida, em última instância, pela unidade objetos de
trabalho/instrumentos de trabalho.
E como se dá no capitalismo essa divisão da força de trabalho pelos di-
ferentes postos de trabalho? Aparentemente, a divisão da força de trabalho
pelos diferentes postos de trabalho necessários ao processo de produção se
dá em função da correspondente habilitação dos agentes do trabalho que
os ocupam. Essa resposta, debaixo de sua “evidência técnica” tem a função
de encobrir a realidade, na sociedade capitalista os postos de trabalho, o
lugar que cada um ocupa na produção, são distribuídos em razão de uma
divisão de classes implacável e intransponível, insuperável.
Esta linha insuperável, traçada pela divisão de classes que demarca, distri-
bui a força de trabalho pelos postos de trabalho, em um posto de trabalho
e não noutro – é encoberta por outra linha de demarcação que a justifica
no mesmo processo que a esconde: a divisão pelos postos de trabalho a
partir da capacitação técnica.
Isto é, da divisão baseada em que uns possuem o monopólio de determina-
da qualificação e outros são, não só impedidos de ter acesso, objetivamente,
a essa qualificação, como são segregados, encaminhados para outras qualifi-
cações. Assim, a divisão pelos postos de trabalho não resulta de um processo
que se dá dentro da fabrica, empresa – consequência de uma divisão técnica
do trabalho, resultado da unidade técnica entre instrumentos de trabalho e
objetos de trabalho – mas de um processo exterior a ela, processo que faz
corpo com a divisão de classes e o processo de produção que esta implica.

66
O que queremos mostrar é que, no capitalismo, diferente do escravismo
e de outros modos de produção, estas capacidades, isto é, a qualificação da
força de trabalho não é da responsabilidade da fábrica, da empresa – usamos
o termo empresa de forma abrangente para referir as diversas organizações,
das quais a principal é a fabrica, privadas ou estatais que, no capitalismo,
produzem ou participam da produção de bens e serviços, com vista, à
obtenção de lucros – mas de um sistema exterior a ela, o sistema escolar
que qualifica de forma diferente a força de trabalho em razão de seu meio
de origem, através de mecanismos que reduplicam os obstáculos práticos,
econômicos e ideológicos que distribuem antecipadamente, a partir de uma
base de classe, os indivíduos pelos diversos postos de trabalho na produção.
Sistema exterior à empresa, sistema escolar capitalista que já predispõe a força
de trabalho para a distribuição que irá se efetuar na empresa pelos diversos
postos de trabalho, e que não pode ser nenhum outro visto que corresponde
ao sistema de exploração capitalista e não pode ser diverso do que é.
Assim, a divisão do trabalho, já apontada por Marx, entre o trabalho
braçal e trabalho intelectual, revela a divisão de classe real que determina/
estabelece o lugar, designa o local, que cada agente da produção vai ocupar
dentro do processo de trabalho, no processo de produção.
Tendo em vista que as relações capitalistas de produção são, ao mesmo
tempo, relações da exploração capitalistas e que estas relações expressam-se,
reduplicando os efeitos da luta de classes que reina no interior do processo de
produção, resulta a dominação da divisão social do trabalho, divisão que é efeito
da divisão de classes, sobre uma falsa divisão puramente técnica do trabalho.
É evidente que as relações de produção capitalistas funcionam para de-
terminar o lugar de cada agente na produção, porque além do proletariado
não possuir meios de produção, e é por isso, obrigado a vender sua força de
trabalho, passando a apêndice da máquina, ele, também, pensa na/pensa
a, ideologia dominante, ideologia que diz que o trabalho é pago segundo
o seu valor e que, portanto, deve o operário respeitar o contrato que fez
ao vender sua força de trabalho, e junto com isto, deve também respeitar
o conjunto de regras impostas pela fabrica, pela empresa, pelo “mundo do
trabalho”, já que é da natureza técnica do processo de trabalho a existência
de postos de trabalhos diferentes, ocupados por indivíduos de qualificação
diferente, qualificação a que ele não teve acesso por condições “naturais”
suas e da “sociedade”.
Neste ponto é importante nos deter em uma questão que, infelizmente
não podemos desenvolver: primeiro, as relações de produção capitalistas
não são relações determinadas por razões puramente técnicas, mas são,
ao mesmo tempo e, principalmente, relações da exploração capitalista;
segundo, as relações de produção capitalistas, relações de classes, relações
de exploração entre classes antagônicas, são apresentadas como relações
“naturais”, expressas como relações jurídicas “naturais”.
Diferente do escravismo e do feudalismo, o modo de produção capitalista
não assegura à classe dominante a apropriação do excedente exercendo sua

67
dominação sobre o trabalho e o consumo dos trabalhadores desde o exterior,
fora do processo de produção imediato, como, por exemplo, a apropriação
do produto do trabalho pelo dono do escravo no escravismo, ou o tributo
pago pelo servo no feudalismo. No capitalismo, a apropriação do excedente
se dá no processo de produção imediato com a incorporação da força de
trabalho enquanto mercadoria no processo de produção.
No capitalismo, a força de trabalho é consumida no processo de pro-
dução sob a forma capitalista; melhor dizendo, a força de trabalho é
consumida no processo de trabalho no qual se dá o consumo produtivo
material dos meios de produção já capitalizados. Assim, podemos identi-
ficar no valor das mercadorias produzidas pelo capital três frações: a que
corresponde ao valor dos meios de produção consumidos; a que corres-
ponde ao valor da reposição da força de trabalho consumida; e, por fim,
a fração que representa um excedente, resultado do consumo produtivo
dos meios de produção materiais pela força de trabalho, no processo de
trabalho/processo de produção, que excede o valor necessário para repor
a força de trabalho.
Portanto, esse novo valor que provém do fato de que a força de trabalho
foi gasta de forma capitalista, quer dizer, no consumo produtivo dos meios
de produção materiais aparece como resultado natural do processo de
produção, como consequência da organização capitalista do processo de
produção e das relações capitalistas de produção.
Enquanto no escravismo, o proprietário do escravo se apropria do produto
e, portanto, do excedente porque é dono do escravo, ou no feudalismo, o
senhor se apropria do excedente através da cobrança do tributo ao servo,
cobrança de tributo sobre uma produção que nem de longe participa, no
capitalismo a produção do excedente se dá no seio do processo de produção,
no processo que faz do trabalho excedente, da necessidade de produzir o
trabalho excedente máximo, a mais-valia máxima, a condição do trabalho em
geral e, portanto, da tendência à superexploração uma característica central
do capitalismo na unidade processo de produção/processo de exploração.
O processo de produção capitalista é sempre e necessariamente o pro-
cesso no qual se tende a limitar ao máximo a parte do trabalho necessário
e a se estender ao máximo a parte do trabalho excedente.
O que nos permite afirmar que o processo de produção capitalista é, ao
mesmo tempo, o processo de exploração capitalista, e que o processo de
produção capitalista tende sempre e permanentemente à superexploração.
Assim, a produção da mais-valia é sempre o resultado da luta de classes
onde a classe dominante busca organizar o processo de produção sempre
de forma a produzir a mais-valia máxima em cada situação específica e a
classe operária luta para resistir a este processo.
Deste modo, a mais-valia não é uma forma de exploração capitalista
dentre outras; é a forma de produção e de exploração capitalista em um
mesmo processo, na unidade contraditória de um mesmo processo, é a luta
de classes no processo de produção.

68
Está assim clara a constatação de Marx, por onde começamos este traba-
lho, a de que a condição última da produção é a reprodução das condições
da produção: reproduzir as forças produtivas e as relações de produção
existentes. Nenhuma formação social conseguiria sobreviver se não fosse
capaz de reproduzir as condições da produção ao mesmo tempo que produz,
e é por aí que devemos analisar cada formação econômico-social concreta,
cada situação concreta.
Ou, dizendo de outra forma, ao reproduzir as condições de produção
cada formação econômico-social, reproduz necessariamente as forças pro-
dutivas e as relações de produção; portanto, reproduz a força de trabalho
enquanto força de trabalho qualificada, tecnicamente e ideologicamente,
para as condições de produção específicas a cada formação social concreta.
Não é difícil perceber como se dá a reprodução dos meios de produção –
instrumento de produção e objetos de trabalho – entre as forças produtivas,
condição básica para a reprodução de uma formação social.
O que importa agora é discutir como se dá a reprodução da força de
trabalho.
De forma diferente do processo de reprodução dos meios de produção, a
reprodução da força de trabalho, no capitalismo, se passa, no fundamental,
fora da empresa, através do salário, meio material de reproduzir a força de
trabalho, valor necessário à reposição da força do trabalho do operário e
que lhe permite estar em condições de trabalhar no dia seguinte, diferente
do escravismo ou da servidão no feudalismo, onde a reposição do necessário
a reprodução da força de trabalho se dá pela aplicação de uma sua fração
a produção dos meios necessários a sua reprodução.
E este é o exemplo da impossibilidade de transpor a análise de uma
situação concreta para outra e a necessidade do estudo das condições his-
tóricas singulares e, por isso mesmo, necessárias, que regem a constituição
das formações econômico-sociais concretas, isto é, as relações sociais que
constituem a estrutura das formações sociais determinadas.
Toda a obra de Marx é um exemplo da análise concreta e todos os
marxistas insistem nesta questão central do marxismo, “a análise concreta
da situação concreta”, como pede Lenin. Marx nos alerta contra qualquer
generalização, mesmo que formações econômicas sociais tenham “a mesma
base econômica”, o modo de produção capitalista, por exemplo, se geram
formações econômico-sociais distintas o que requer sua análise concreta.
Isso não impede que a mesma base econômica – a mesma
quanto às condições principais – possa devido a inúmeras
circunstâncias empíricas distintas, condições naturais, rela-
ções raciais, influências históricas externas, etc. exibir infinitas
variações e graduações em sua manifestação, que só podem
ser entendidas mediante análise dessas circunstâncias em-
piricamente dadas (MARX, O Capital, Abril Cultural, 1983,
livro 3, t. 2, p. 251-2).

69
Por exemplo, nas relações de trabalho escravistas estabelecidas na colo-
nização do Brasil, os donos de engenho tendiam a adquirir os meios neces-
sários para reproduzir a força de trabalho escrava fora do engenho, isto é,
preferiam adquiri-los fora do engenho a deixar que os escravos mesmo os
produzissem, como resultado de uma forma específica de produção que,
sob relações de trabalho escravistas, produzia mercadoria para o mercado
externo, europeu, o que implicava que, para maximizar o excedente, se
tendesse a não despender forças produtivas para garantir a reprodução da
força de trabalho, nem a consumir força de trabalho nem meios de produção,
neste caso a terra, para garantir a reprodução da força de trabalho.
Contudo, para reproduzir a força de trabalho no capitalismo como força
de trabalho não é suficiente o salário, o meio material capaz de garantir sua
reprodução, não basta garantir à força de trabalho as condições materiais
de sua reprodução. Para que a força de trabalho se reproduza, enquanto
força de trabalho, para uma dada forma de produção, esta deve ser dotada
de uma competência, de uma habilitação, ou seja, estar apta a ser utilizada
no sistema complexo do processo de produção, nos postos de trabalho e
nas relações de produção correspondentes.
O desenvolvimento das forças produtivas e o tipo de unidade historica-
mente constituído das forças produtivas em determinado momento exigem
que a força de trabalho deva ser habilitada e diferentemente habilitada e,
portanto, reproduzida como tal. Diversamente habilitada para atender as
exigências da divisão social-técnica do trabalho, em seus diferentes “postos”
e “empregos” e meios de produção.
Assim, a reprodução da qualificação da força de trabalho, no regime
capitalista, ao contrário do que ocorria nas formações sociais anteriores,
escravistas e servis, tende, porque se trata de uma tendência no capitalis-
mo, a dar-se não mais pela aprendizagem na própria produção, no local de
trabalho, porém, cada vez mais, fora da produção, através do sistema escolar
capitalista e de suas outras instâncias e instituições, segundo as exigências
diversas colocadas pela divisão social-técnica do trabalho.
Qualificação diversificada e específica da força de trabalho, específica
porque atende a uma relação – unidade – específica das forças produtivas,
unidade constituída historicamente dentro de uma divisão social-técnica do
trabalho, nas/e sob relações de produção também historicamente definidas,
isto é, relações de classes antagônicas, relações de luta de classes.
Qualificação específica que se faz através da aprendizagem na escola de
habilidades diversas que designam o lugar, fazem a locação diversificada da
força de trabalho no processo da produção de acordo com esta habilitação,
qualificação que não é só técnica – profissional, igualmente ideológica, já que
aprende-se, ao mesmo tempo e junto com essas técnicas e esses conheci-
mentos que funcionam como a aprendizagem de determinadas habilidades,
as regras de boas maneiras, de convivência no mundo do trabalho que todo
agente do trabalho deve observar, segundo o lugar que lhe é destinado na
produção e fora dele. Dizendo de forma clara, regras de conduta e respeito, à

70
divisão social – técnica do trabalho e, no final das contas, regras de respeito
a ordem estabelecida pela dominação de classe.
Ou melhor, em uma formulação ainda mais precisa e mais clara, diremos
que a reprodução da força de trabalho exige não só a reprodução de sua
habilitação, mas, ao mesmo tempo, a reprodução de sua submissão às regras
da ordem estabelecida, isto é: de parte dos operários, a reprodução de sua
submissão à ideologia dominante; e por parte dos agentes da exploração e
da repressão, a reprodução de sua capacidade para manipular bem a ide-
ologia dominante a fim de que garantam ‘pela palavra’ ou pela repressão a
dominação de classe.
Explicitando, a reprodução da qualificação da força de trabalho é ga-
rantida nas formas e sob as formas da sujeição ideológica, sujeição que é
mais que mero respeito ou obediência, porém a aceitação como natural e
verdadeira da ideologia dominante.
O que queremos reter, demonstrar aqui, é que no capitalismo, num
determinado estágio do desenvolvimento das forças produtivas e do tipo
de unidade historicamente constitutiva das forças produtivas e sob relações
de produção determinadas – unidade diferente em suas determinações em
cada formação social, e ainda diferentes em países imperialistas ou formações
sociais dominadas – a reprodução da força de trabalho, enquanto força de
trabalho, nestas condições e para estas condições, tem a tendência de se dar
cada vez mais fora da produção, pelo salário e pela escola – ensino básico e
médio, escolas técnicas, profissionais, etc. – que reproduz sua qualificação
tanto enquanto reproduz a habilitação técnica, tanto enquanto reproduz
esta habilitação técnica nas formas e sob as formas da sujeição ideológica
à ideologia dominante.
É necessário explicar o que entendemos por esta habilitação da força de
trabalho, característica a cada formação social, diferente para dominantes e
dominados, e ainda, específica à inserção específica de cada país dominado
na economia mundial, habilitação que pode não ultrapassar a aprendizagem
de técnicas simples, saber ler, escrever, contar, situar-se em uma cronologia,
identificar objetos, realidades, etc. e, ou, elementos relativamente apro-
fundados de conhecimento científico, resultados científicos, métodos de
raciocínio e de demonstração, essencialmente, se desenvolver em técnicas
de manipulação e utilização de certos métodos e resultados científicos para
resolver problemas e executar trabalhos práticos completamente desligados
do conhecimento das ciências.
Para nós é importante ressaltar esta questão porque subsidiará o desen-
rolar do nosso trabalho quando formos colocar a teoria para trabalhar sobre
a formação social brasileira, colônia e depois semicolônia, país dependente
e dominado sob o imperialismo, e suas contradições específicas, formação
social concreta, num dado nível de desenvolvimento das forças produtivas e,
consequentemente, num tipo de unidade das forças produtivas em relações
de produção historicamente constituídas, num largo período de transição
de colônia ao capitalismo.

71
Sabemos, com as indicações que nos dá Marx, de que nas formações
sociais escravistas e servis a habilitação técnica da força se dá no decorrer
do processo de produção, nas formas e sob as formas da sujeição ideológica
à ideologia dominante. Sujeição que tem no Aparelho religioso seu instru-
mento dominante, sujeição à ideologia dominante resolvida na e pela Igreja.
Portanto, o problema que se coloca à análise da situação concreta da
formação social brasileira a partir da colonização é a necessidade de analisar
uma formação social concreta, historicamente constituída e, não impor-lhe
modelos universais-formais como modelos explicativos, portanto, analisar
as condições históricas singulares nas quais se formou, num dado nível de
desenvolvimento de forças produtivas que lhe corresponde e, consequen-
temente, um tipo específico de unidade dessas forças produtivas, corres-
pondendo a determinadas relações de produção, também específicas, que
determinam, em última instância, uma superestrutura também específica
a unidade forças produtivas – relações de produção, seu desenvolvimento
e as condições históricas singulares nos quais se deu. Isto é, numa formação
social concreta – num dado nível de desenvolvimento de forças produtivas
e num tipo específico de unidade dessas forças produtivas, correspondendo
a determinadas relações de produção, portanto uma infraestrutura espe-
cífica, corresponde uma superestrutura, quer dizer, uma superestrutura
específica a esta infraestrutura, nos limites desta infraestrutura que é por
sua vez determinada por ela, pela sua superestrutura.
Portanto, no caso da formação social colonial brasileira, formação social
constituída sobre o trabalho escravo com o fim de produzir bens a serem
realizados no mercado externo, a partir da agroindústria canavieira, necessita
para se reproduzir de uma forma singular/específica de sujeição da força
de trabalho que implica em uma forma específica de divisão de classes, de
repressão, de autoritarismo, de obscurantismo, correspondente a uma forma
específica de superestrutura, forma específica de unidade infraestrutura
superestrutura.
Portanto, uma forma específica de obscurantismo, de autoritarismo, de
elevados níveis de repressão, uma separação de classes radical, passa a ser
política “natural” do governo colonial, forma específica de funcionamento
da superestrutura que dispensava a educação ou qualquer forma de es-
clarecimento da classe dominada, da massa escrava, ou mesmo mestiça e
branca pobre, esclarecimento que se constituiria numa irrealidade, deslocada
na formação social colonial brasileira assentada em relações de produção
escravistas.
Assim, as relações de produção escravistas cobravam formas específicas
de dominação, formas específicas de autoritarismo, repressão, divisão de
classes, formas ideológicas específicas, que implicavam na prática de polí-
ticas com o objetivo de impedir o esclarecimento da classe dominada, de
reprovar ou de se opor a seu esclarecimento por considerá-lo um perigo
para a sociedade. Constituir uma sociedade ignorante.
Por quase 300 anos, até a fuga da família real para o Brasil, não tem lugar,

72
na colônia, para a imprensa, a circulação de jornais e livros é escassa, mesmo
entre a classe dominante, e a escola seria um corpo estranho nesta formação
determinada por sua contradição principal; a contradição que opõem os
senhores colonizadores aos escravos, na unidade da totalidade das contra-
dições que a compõem: a contradição principal que estrutura a formação
social colonial brasileira e que determina a existência e o desenvolvimento
das demais contradições. Repetindo o que já assinalamos:
No processo, complexo, de desenvolvimento de um fenô-
meno, existe toda uma série de contradições; uma delas é
necessariamente a contradição principal, cuja existência e
desenvolvimento determinam a existência e o desenvolvi-
mento das demais contradições ou agem sobre elas (MAO
TSÉ-TUNG, 1969, Obras Escolhidas, v. 1, p. 559).
Podemos dizer que no processo complexo do desenvolvimento de uma
formação social concreta é a contradição principal, “cuja existência e de-
senvolvimento” determina “existência e o desenvolvimento das demais
contradições ou agem sobre elas” (MAO TSÉ-TUNG, 1969, v. 1, p. 559).
Seja em que caso for não cabe qualquer dúvida que em cada
uma das etapas do desenvolvimento do processo apenas
existe uma contradição principal que desempenhe o papel
diretor. Assim, pois, se um processo comporta várias contra-
dições, existe necessariamente uma delas que é a principal e
desempenha o papel diretor, determinante, enquanto que as
outras ocupam apenas uma posição secundária, subordinada
(MAO TSÉ-TUNG, 1969, v. 1, p. 561).
E mais, a contradição principal, que determina o caráter do desenvolvi-
mento de uma formação social concreta nas condições de determinação
recíproca entre o conjunto de contradições que compõem sua unidade, é
interna e, mais ainda, é uma contradição antagônica. E as contradições ex-
ternas vão determinar o desenvolvimento desta formação social nas formas
e limites determinados por suas contradições internas.
Nossa afirmação tem dois aspectos, quando aplicada no caso concreto
e específico da formação colonial brasileira.
Se a reprodução da formação social brasileira constituída com a colo-
nização e que mantém, no fundamental, suas características até os fins do
século XIX, tem como um de seus requisitos o obscurantismo, o autorita-
rismo, formas específicas de divisão – separação – de classes e repressão, na
reprodução do submetimento das classes dominadas à classe e à ideologia
dominante, diferentemente de outras formações sociais escravistas ou feu-
dais, tem a necessidade de qualificar de forma específica a classe dominante
colonial, isto é, a fração da classe dominante que estava na colônia, tem de
qualificá-la fora da colônia em formas de ideologia, poderíamos dizer, alheias
e desligadas da colônia.

73
E vamos avançar aqui uma tese.
Quando dizemos que a colonização, a formação social historicamente
constituída aqui – no momento e parte do processo de transição de um
conjunto de países da Europa para o capitalismo e, portanto, em um dado
nível de desenvolvimento de forças produtivas que lhe corresponde e um tipo
específico de unidade dessas forças produtivas, correspondendo a relações
de produção escravistas – faz-se em razão da necessidade de acumulação
de capital mercantil nas mãos da burguesia mercantil européia, em função
das exigências estabelecidas pela produção e reprodução do processo de
transição para o capitalismo, representado pelo mercantilismo, processo
historicamente determinado, queremos dizer que a formação social colonial
brasileira se conforma com elementos de formas de produção não-capitalistas
que, aqui, assumem feições próprias, isto é, que se compõem de forma especí-
fica, não característica das formações sociais onde originalmente apareceram:
escravismo e mercantilismo, se compõem para atender as necessidades de
uma nova formação social, constituída em razão das exigências concretas
do processo de transição para o capitalismo.
Ou dizendo de outra forma: a formação social constituída concreta-
mente com a colonização sobre um dado nível de desenvolvimento de
forças produtivas e um tipo específico de unidade dessas forças produtivas,
conforma-se, não como a justaposição de elementos de formas de produção
escravistas e mercantilistas, porém, por um processo de combinação onde
essas formas combinadas e modificadas assumem feições próprias, isto é, se
compõem numa unidade específica, numa formação social específica, para
atender as necessidades históricas de constituição de um mundo colonial
constituído em razão das exigências concretas do processo da transição
para o capitalismo nos países desenvolvidos da Europa.
Na formação social escravista, na formação social colonial que se consti-
tuiu no Brasil, assentada no trabalho escravo, na força de trabalho escravo,
no desterro e escravização do negro africano, praticando uma forma de
produção de baixa tecnologia e incipiente divisão do trabalho, não exigindo
a qualificação técnica da força de trabalho, a diversificação da qualificação
da força de trabalho segundo as exigências da divisão social-técnica do tra-
balho, em seus diferentes “postos” e “empregos”, muito pelo contrário, não
só a forma de produção implicava que a qualificação da força de trabalho,
de cada trabalhador, a capacitação para exercer as diversas funções que a
empresa agroexportadora açucareira requeria se desse na própria produção,
como também a qualificação da força de trabalho, mesmo nas mais rudi-
mentares habilidades, não tinha lugar, nem para ser pensada, daí a forma e
o nível específico de repressão, obscurantismo, autoritarismo, separação de
classes, que o submetimento da classe dominada vai exigir.
Da mesma forma vai se colocar a formação de uma classe dominante,
da fração da classe dominante colonial que se mantinha no Brasil, pro-
blema da formação-qualificação da classe dominante, se assim podemos
dizer, formação qualificação ideológico-prática. O problema da formação

74
ideológico-prática específica, apropriada à classe dominante para adminis-
trar a colônia que se inseria no processo de expansão do capital mercantil,
produzindo para o mercado mundial que se ia formando, parte da divisão
mundial do trabalho que se ia constituindo.
Durante o período colonial, o problema da formação de uma classe do-
minante foi resolvido em Coimbra, que se conformou a este papel. Com a
vinda da Corte para o Brasil, o que representou na prática a formação de um
Estado nacional, e, mais tarde, com a “independência”, com a constituição
da superestrutura para um Estado nacional, a necessidade de continuar a
formação de quadros para a dominação, e a impossibilidade de prosseguir
fazendo isto em Portugal, coloca a necessidade de formá-los no Brasil, daí a
necessidade de instalar o ensino superior no Brasil, à moda de Coimbra, como
já dissemos em formas de ideologia alheias e desligadas da colônia, porém
nas condições do Brasil. Daí a preocupação com a formação das “elites” e o
não lugar para o ensino básico, para a qualificação das classes dominadas.
Retomemos o fio de nossa discussão.
A estrutura de toda a formação social se constitui de níveis ou instâncias
articulados/relacionados de forma específica por uma determinação espe-
cífica. Estrutura que se compõe da unidade infraestrutura e superestrutura:
infraestrutura, unidade das forças produtivas e relações de produção, e a
superestrutura, com as instâncias jurídico-política (o direito e o Estado) e
a ideológica.
A tópica marxista da infraestrutura e da superestrutura indica as relações
que se estabelecem numa totalidade social: a superestrutura determinada,
em última instância, pela eficácia da infraestrutura, e a autonomia relativa
da superestrutura com relação a infraestrutura e sua ação de retorno sobre
a infraestrutura.
Engels, defendendo a si e a Marx da acusação de ser “mecanicista”, nos dei-
xou importantes indicações sobre as relações infraestrutura e superestrutura.
… Segundo a concepção materialista da histó-
ria, o momento em última instância determinante
[in letzter Instanz bestimmende], na história, é a produção
e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez
afirmamos mais. Se agora alguém torce isso [afirmando] que
o momento econômico é o único determinante, transforma
aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata,
absurda. A situação [Lage] econômica é a base [Basis], mas os
diversos momentos da superestrutura [Überbau] – formas
políticas da luta de classes e seus resultados: constituições
estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha,
etc., formas jurídicas, e mesmo reflexos [Reflexe] de todas
estas lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias po-
líticas, jurídicas, filosóficas, visões [Anschauungen] religiosas
e o seu ulterior desenvolvimento em sistemas de dogmas
– exercem também a sua influência [Einwirkung] sobre o

75
curso das lutas históricas e determinam em muitos casos
preponderantemente [vorwiegend] a forma delas. Há uma
ação recíproca [Wechselwirkung] de todos estes momentos,
em que, finalmente, através de todo o conjunto infinito
de casualidades (isto é, de coisas e eventos cuja conexão
interna é entre eles tão remota ou é tão indemonstrável que
nós a podemos considerar como não-existente, a podemos
negligenciar), o movimento econômico vem ao de cima
como necessário. Senão, a aplicação da teoria a um qualquer
período da história seria mais fácil do que a resolução de
uma simples equação do primeiro grau. (MARX e ENGELS,
Obras Escolhidas em Três Tomos, Tomo III, Edições Avante,
Lisboa, 1985, p. 547).
É importante apresentar este longo texto de Engels já que nos permite
ver que é esta determinação, em última instância, da totalidade social, de
sua unidade e da articulação de suas contradições pela infraestrutura que
define que, só a partir do ponto de vista da reprodução, é possível pensar a
existência e a natureza da superestrutura.
E mais, só do ponto de vista da reprodução é possível pensar a totalidade
social e quem diz reprodução diz relações de produção, diz luta de classe,
a reprodução das condições de produção. A reprodução das relações de
produção é uma empreitada da classe dominante que realiza-se por meio
da luta de classes que opõe a classe dominante à classe dominada, o que
implica, portanto, que situar-se do ponto de vista da reprodução das con-
dições de produção é, e aqui nos permitam repetir a formulação, em última
instância, situar-se no ponto de vista da luta de classes.
É isso que Engels nos diz quando nos fala das formas políticas da luta de
classes e seus resultados, formas econômicas e políticas que configuram uma
formação econômico-social concreta. O que nos diz Marx em o O Capital;
“É sempre na relação direta dos proprietários das condições de produção
com os produtores diretos …” (relação direta que são relações de produção,
relações de dominação, de exploração, relações de classe, luta de classes) “…
que encontramos o segredo mais íntimo, o fundamento oculto de toda a
construção social…” (MARX, O Capital, Abril Cultural, 1983, livro 3, t. 2, p. 251).
Assim é que só a partir da reprodução, só a partir da luta de classes, é
possível analisar uma formação econômico-social, formular e resolver os
problemas da natureza de uma formação econômico-social, de sua supe-
restrutura: o que é o Estado, o que é a Ideologia e quais as relações que
mantém entre si.
É pensando assim que buscamos nos situar deste ponto de vista, do
ponto de vista da reprodução, do ponto de vista da luta de classes, na
analise do Estado.
Lenin inicia seu trabalho sobre o Estado em O Estado e a Revolução,
dizendo que o Estado é concebido explicitamente como aparelho repres-
sor. Portanto, o Estado é o Aparelho de Estado, aparelho de repressão, que

76
garante a dominação das classes dominantes sobre as classes dominadas com
o objetivo de manter sua exploração. E, seguindo Lenin, podemos afirmar,
ainda, que esta formulação define perfeitamente a “função fundamental”
do Estado: garantir a submissão à dominação para garantir as condições de
reprodução da exploração, do processo de extração da mais-valia.
Assim, podemos dizer que o Estado é antes de tudo, o aparelho de Estado.
Contudo, é necessário, neste ponto, fazer a distinção entre Poder de Estado e
Aparelho de Estado, porquanto o Estado só tem sentido em função do exer-
cício do Poder de Estado, é a unidade Poder de Estado/Aparelho de Estado.
É necessário chamar a atenção para a importante lição que nos deu a
experiência histórica da luta de classes, tanto na transição para o socialismo
como nas peripécias pelas quais passaram e passam as diversas formações
sociais de classe – o que é necessário fazer não é construir uma tipologia
das formas jurídicas das combinações do Aparelho de Estado e do Poder de
Estado – mas analisar as condições históricas concretas da criação/trans-
formação do Aparelho de Estado no processo da conquista e do exercício
do poder de Estado pelas classes dominantes ao construir sua dominação.
O Aparelho de Estado pode continuar o mesmo apesar da luta política
que resulta na transferência do Poder de Estado de uma classe para outra ou
de uma fração de classe a outra. Isso comprova concretamente a distinção
entre Poder de Estado e Aparelho de Estado e que o Estado só tem sentido
em razão do Poder de Estado porque é a posse do poder de Estado que
autoriza o emprego do Aparelho de Estado. Porque é a posse do Poder de
Estado que dá à classe ou à fração de classe que o detém o poder de em-
pregar o Aparelho de Estado ou transformá-lo a serviço de seus interesses.
Dito isto, podemos resumir a posição do marxismo sobre o Estado:
primeiro; o Estado é o Aparelho de Estado; segundo, o Poder de Estado é
diferente do Aparelho de Estado; terceiro, entendendo que o Poder de Estado
é o domínio das condições de utilizar o Aparelho de Estado em função de
seus objetivos, por conseguinte a luta de classes se dá pela conquista do
Poder de Estado, pela utilização do Aparelho de Estado pela classe ou fração
de classe que conquistou o poder de Estado, em razão de seus objetivos;
Aparelho de Estado e Poder de Estado formam uma unidade. Até aqui, apesar
das precisões e distinções, não saímos do que já está considerado na teoria
marxista acerca do Estado e de sua principal função. E é aqui, que acutilados
pela prática, os marxistas foram obrigados a avançar na compreensão de
que o Estado é uma realidade mais complexa do que aquela contemplada na
tradição marxista quando descreve sua principal função, a avançar na teoria
apresentando uma tese que já se encontra na prática política dos marxistas:
ao lado do Aparelho repressor de Estado, mas não se confundindo com ele,
se encontram outros Aparelhos, os Aparelhos ideológicos de Estado.
Para poder construir uma teoria científica do Estado, é indispensável,
levar em conta não só a distinção entre Poder de Estado e Aparelho de
Estado, mas também a distinção entre o Aparelho repressivo de Estado e
os Aparelhos ideológicos de Estado.

77
E o que são estes Aparelhos ideológicos de Estado?
Podemos adiantar, sumariamente, que o que diferencia os Aparelhos
ideológicos de Estado do Aparelho repressivo de Estado é que, enquanto
estes funcionam principalmente através da repressão para garantir a do-
minação, os Aparelhos ideológicos de Estado funcionam principalmente
“por meio da ideologia”.
Mas, voltemos ao Estado. O Estado, melhor dizendo, os Aparelhos de
Estado correspondem: a) ao Aparelho repressor de Estado, isto é, ao governo,
à administração, às forças armadas, à polícia, aos tribunais, às prisões; b)
aos Aparelhos ideológicos do Estado, isto é, ao Aparelho Escolar, Aparelho
Familiar, Aparelho Religioso, Político, Cultural, e mais.
A cada Aparelho ideológico de Estado corresponde o que se chama de
instituições ou organizações, e estas diferentes instituições e organizações
que constituem os AIE formam um sistema e de que as instituições corres-
pondentes a cada AIE, seu sistema e, portanto, cada AIE, embora definido
como ideológico não é redutível à existência de ideias sem suporte real e
material. As ideias, a ideologia é realizada em instituições e práticas materiais.
Portanto, que essas práticas materiais, onde se realizam a ideologia, estão
sustentadas em realidades não-ideológicas.
Aqui é preciso chamar atenção para que não se caia numa armadilha,
a armadilha da ideologia burguesa que tenta estabelecer uma divisão dos
aparelhos de Estado entre dois campos, o público e o privado.
A mesma armadilha se dá com a conceituação de Estado. Estado que, a
despeito de sua conceituação no Direito, sempre é e será o Estado da classe
dominante, não por ser sua propriedade, mas simplesmente porque é a
classe dominante que detém o poder de Estado e o exerce em função de
seus interesses, o que implica que não importa o grau, a porcentagem de
participação de representantes formais da classe dominada nos Aparelhos
de Estado se a classe dominante continua detendo o poder de Estado. Só a
conquista do poder de Estado pela classe dominada permite exercê-lo em
razão de seus interesses.
A imprensa, a escola, a igreja, etc. nem sempre são públicas, mas ao
contrário, são cada vez menos públicas. Como, então, se poderia classificar
a imprensa, a escola, a igreja, etc. que se situam fora da esfera pública en-
quanto Aparelho ideológico de Estado?
Da mesma forma se dá com a imprensa, ou a escola, etc. Elas são e sem-
pre serão, no capitalismo, Aparelhos ideológicos de Estado, não por serem
instituições públicas ou privadas, mas simplesmente porque é a ideologia
dominante que se materializa, se realiza, em suas práticas. O que conforma
um Aparelho ideológico de Estado é um sistema complexo de práticas
que, materializando, realizando, dando existência à ideologia dominante,
compreendem e combinam diversas instituições e organizações.
Por isso, o entendimento do conceito de Aparelhos ideológicos de Estado
passa por compreender que não são as instituições – a escola, a imprensa, a
igreja, etc. – que produzem a ideologia correspondente, são determinados

78
elementos da ideologia dominante que se realizam nas instituições corres-
pondentes e suas práticas.
Resumindo, podemos dizer que os Aparelhos ideológicos de Estado são
relativamente independentes uns dos outros e unificados como sistema
distinto, em sua totalidade ou em parte, pela ideologia de Estado, unidade
garantida pela unidade da política de classe da classe que detém o poder
de Estado, a classe dominante, e da ideologia de Estado que corresponde a
seus interesses fundamentais de classe.
Para que possamos entender como funcionam os AIE é necessário pre-
cisar essa ideologia de Estado, ideologia e política da classe dominante que
objetiva garantir a reprodução das relações de produção, a dominação,
isto é, a reprodução das relações de exploração em uma formação social
de classe concreta.
Se nos colocamos do ponto de vista da reprodução, do ponto de vista da
luta de classes, a superestrutura tem por razão assegurar a reprodução das
relações de produção, isto é, das relações de exploração da classe dominada
pelas classes dominantes, o que quer dizer assegurar, ao mesmo tempo, a
reprodução das condições de exercício dessa exploração através do Aparelho
repressor de Estado e a reprodução das relações de produção dentro das
quais se efetua a exploração, visto que, como dissemos anteriormente, no
capitalismo, as relações de produção são num único e mesmo tempo relações
de exploração, através dos Aparelhos ideológicos de Estado.
O que torna esses Aparelhos ideológicos de Estado – instituições e orga-
nizações distintas, parcialmente autônomas, públicos ou privados, mais ou
menos controlados ou determinados pelo Estado – é a ideologia realizada
neles, isto é, a ideologia dominante, da classe dominante, da classe que
detém o poder de Estado e que determina imperativamente a realização
de sua ideologia nesses aparelhos.
Aqui se faz necessário sistematizar o que avançamos na teoria:
1 O Estado é o aparelho que concentra a dominação da classe dominante,
o que quer dizer que toda a superestrutura está centrada, concentrada
em torno do Estado, a superestrutura jurídico-política e a superestrutura
ideológica, distinção que somente existe sob a dominação do Estado, de
uma unidade determinante de forma absoluta, a do poder de Estado e
de seus aparelhos, repressor e ideológico;
2 A ideologia da classe dominante, a ideologia dominante, está também,
a despeito de suas variantes, agrupada e concentrada sob a forma da
ideologia da classe dominante que detém o poder de Estado, unidade
ideológica que apesar de suas contradições internas pode e deve ser
chamada de Ideologia de Estado. O que faz a unidade dos diferentes
Aparelhos ideológicos de Estado é que estes realizam, cada um em seu
campo e sob sua modalidade própria, uma ideologia que, a despeito de
suas diferenças ou, até mesmo, de suas contradições internas, é a ideologia
de Estado. O que mostra, o que coloca em evidência e não nos permite
eludir, é que, enquanto a classe dominante detiver o poder de Estado – o

79
que é uma tautologia, visto que a classe dominante só é dominante por-
que detém o poder de Estado e, portanto, detém o poder de empregar
os Aparelhos de Estado a fim de realizar seus interesses – os Aparelhos
ideológicos de Estado realizarão principalmente a ideologia de Estado.
Isto é, as classes dominantes atuarão na luta de classes diretamente pelo
Aparelho repressor de Estado e indiretamente pela realização da Ideologia
de Estado nos Aparelhos ideológicos de Estado. Porém, se esta é a caracte-
rística principal dos Aparelhos de Estado, os AIE, de forma mais acentuada
e distinta do que os Aparelhos repressivos, permitem um terreno concreto
às contradições. Forma distinta porque os Aparelhos ideológicos além de
serem diversos e diferentes entre si (a Igreja, a imprensa, a escola, só para
não ir mais longe em enumerá-los), mantém uma autonomia relativa com
relação ao Estado, mesmo estando unificados pela ideologia de Estado e
realizando fundamentalmente a ideologia de Estado.
Nosso objetivo, o ponto preciso que queremos atingir, é o de analisar/
compreender a formação social brasileira, formação social colonial típica
que se constituiu no Brasil com a colonização, passando pela vinda da Corte,
a passagem da Independência à República, a constituição do capitalismo
num país dominado, para, de posse desta “compreensão” avançarmos em
nossa prática de transformação social.
Como ficou demonstrado, o que caracteriza o Aparelho ideológico de
Estado e o diferencia do Aparelho repressor é que enquanto este funciona
predominantemente por meio da repressão, os Aparelhos ideológicos de
Estado funcionam predominantemente por meio da ideologia.
No período feudal, como também no capitalismo, o Aparelho repressor
constituiu-se num corpo reduzido de instituições estreitamente estruturados
e articulados pela centralização e comando dos representantes políticos
da classe dominante realizando a política da classe dominante, enquanto
que no capitalismo atuam, em muito maior número, diferentes Aparelhos
ideológicos de Estado, diferentes e relativamente autônomos, uns em re-
lação aos outros e todos com relação a ideologia de Estado que se realiza
principalmente por seu intermédio.
Da mesma forma, poderíamos dizer que a unidade de ação do Aparelho
repressor, no capitalismo, e mesmo antes dele, é garantida por sua organi-
zação e direção centralizada pelos representantes das classes dominantes,
aplicando sua política de classe. Diferentemente, a unidade dos Aparelhos
ideológicos de Estado é garantida pela ideologia dominante, ideologia de
Estado que se realiza neles, de forma dominante, porém permitindo, pela
própria natureza da realização da ideologia, um campo mais favorável à
expressão das contradições entre dominantes e dominados.
Assim, podemos ver que, enquanto nas suas características gerais, o
Aparelho repressor conserva, no capitalismo, os mesmo traços que o ca-
racterizavam no feudalismo, no capitalismo, surge um conjunto extenso de
Aparelhos ideológicos diversos e autônomos, que não existiam ou existiam
de forma embrionária no feudalismo.

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Podemos afirmar que, enquanto desde a formação dos primeiros Estados
existiu um Aparelho repressor único, estruturalmente semelhante ao que
existe hoje, o mesmo não se pode dizer com relação aos Aparelhos ideo-
lógicos, no capitalismo. Há um número muito mais elevado de Aparelhos
ideológicos de Estado e suas características são diversas.
É possível constatar num vol d’oiseau sobre o período feudal que o
Aparelho de Estado religioso, a Igreja, acumulava um conjunto de funções
que no capitalismo vão ser realizadas por Aparelhos ideológicos diversos.
Assim é que a Igreja centralizava não só a função religiosa, mas também a
escola, a atividade editorial, a elaboração e difusão da informação, a cultura,
as atividades de lazer e esporte e, ainda, atividades com relação à saúde, etc.
A história da luta de classes, da luta política e ideológica da burguesia
capitalista-comercial pelo poder de Estado contra o senhor feudal, a aristo-
cracia feudal, se materializa numa violenta e concentrada luta antirreligiosa
e anticlerical, violenta e concentrada luta de classes contra o Aparelho ideo-
lógico de Estado dominante feudal, a Igreja, o que confirma a constatação de
que o Aparelho de Estado dominante no período histórico pré-capitalista é
a Igreja e de que o resultado desta luta de classes coloca a escola em posição
dominante, como Aparelho ideológico de Estado dominante, nas formações
capitalistas amadurecidas.
Esta constatação é importante para nossa compreensão da constituição
da superestrutura na formação econômico-social brasileira e o papel que
vai ocupar a educação, a ciência e a tecnologia, desde o período colonial, o
período no qual se dá o estabelecimento de relações de produção capita-
listas no Brasil, até hoje. Compreender o obscurantismo que predominou e
predomina até hoje na formação social brasileira. As formações capitalistas
dominadas não demandam, da mesma forma que os países dominantes, o
desenvolvimento da ciência e da tecnologia, muito pelo contrário, a domi-
nação impõe limites a este desenvolvimento.
Outra questão que é importante compreender para analisar o Estado
– especialmente nos países dominados – é que o poder político, o Poder
de Estado, da classe dominante não se exerce diretamente: não se exerce
diretamente primeiro, no sentido de que a dominação econômica baste a
si mesma, segundo, não se exerce diretamente no sentido de que a classe
dominante não exerce por si mesma o poder político.
A classe dominante exerce o poder político pela intermediação de um
aparelho especializado, o aparelho político, colocado acima da “sociedade”
(usamos sociedade aqui por comodidade no sentido do conjunto de clas-
ses e indivíduos que compõem uma formação social) e diferente a cada
formação social.
E exerce o Poder de Estado através de seus representantes, de uma fra-
ção determinada e especializada da classe dominante, da classe que detém
o domínio, que tem a propriedade dos meios de produção, que detém o
domínio da estrutura econômica, e que exerce e pratica o Poder de Estado
sobre o Aparelho de Estado em razão dos interesses desta classe dominante

81
de que faz parte, Aparelho de Estado se apresenta “acima” da “sociedade”,
“acima” dos interesses particulares de classe.
No funcionamento do Aparelho de Estado a relação de dominação de
classe está dissimulada pelo mecanismo que a realiza, isto é, o Aparelho de
Estado não é visto como aparelho de dominação de classe nem pelos que
detém o poder nem pelos que estão submetidos a ele. O Poder de Estado se
apresenta como uma “autoridade” do Estado sobre a “sociedade”, “acima” da
“sociedade”, “acima” dos interesses particulares de classe, exercido na forma
e pelos agentes escolhidos pela “sociedade”. Porém, não vamos nos alongar
aqui, porque o que queremos com estas “considerações” é ver claro em
nossas ideias (deixando para a crítica demolidora dos ratos as formulações
que superamos por equivocadas, insuficientes ou incompletas); esclarecer
para nós mesmos o terreno teórico no qual queremos pisar, para, a partir
daí, do ponto de vista da reprodução das condições de produção, da luta
de classes, discutir a formação social brasileira, suas diversas etapas, que
de forma sumária e incompleta, tentaremos resumir em três fases, etapas:
1 Formação social colonial, (15… ? à 1808) – forma de produção de mer-
cadorias para o mercado externo sob relações de produção escravistas.
2 Formação social semicolonial, (1808 à 1888), agrária-escravista, formal-
mente “independente” com a constituição formal do Estado, centrada
na agricultura, na monocultura para a exportação, sob relações de tra-
balho escravo.
3 Formação social capitalista dominada, (1889 à 2 …), com avanço das re-
lações capitalistas de produção já no último quartel do século 19, avanço
marcado pela extinção formal da escravidão. Estabelecimento de relações
capitalistas de produção que se faz de forma específica, específica porque
restrita tanto em relação ao espaço geográfico quanto específica em
relação à constituição e integração dos diversos setores da economia e
diferente dos países capitalistas desenvolvidos, “amadurecidos”.
A forma específica pela qual o capitalismo se estabelece nas formações
econômico-sociais correspondente a cada país dominado, gera, produz,
uma formação social capitalista também típica a cada país dominado com
suas contradições e luta de classes.
O marxismo necessariamente se desenvolve à medida que a prática se
desenvolve. Se o marxismo estagnar isto significa que se afastou da prática,
da vida, se tornou um dogma. O marxismo se desenvolve segundo seus
princípios fundamentais. Considerar o marxismo com algo pronto e acabado
é dogmático. Negar os princípios fundamentais e sua verdade universal é
tentar revê-lo. O marxismo como qualquer ciência não pode vir senão da
prática social, expressar a unidade teoria e prática. Marx chama a atenção
para o fato de que se a aparência coincidisse com a essência a ciência seria
desnecessária, isto é a realidade nos seria dada, daí porque temos de colo-
car o marxismo para trabalhar na realidade, realizar o que Lenin conceitua
como análise concreta da situação concreta e evitar cair no logro de alguns
que, como dizia Engels em Carta a Conrad Schmidt (MARX e ENGELS,

82
Correspondência, Editorial Problema, 1947, p. 484), usam o materialismo
histórico para não estudar a história, pregar uma etiqueta e dar o assunto
como concluído.
Ao contrário, é preciso trabalhar e pretendemos trabalhar sobre a his-
tória, apresentar nossas teses, mesmo as que possam parecer ambiciosas
em demasia, para que, em caso de impugnação, possamos defendê-las.
Ganhamos todos, estejamos certos ou errados, praticando e retificando
nossa prática nos colocamos no caminho que nos aproxima da posição
justa. Há que estudar, como diz Engels.
BIBLIOGRAFIA
ALTHUSSER, L. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 1999.
MARX, K. ENGELS, F. Obras Escolhidas em Três Tomos, Tomo III, Edições
Avante, Lisboa, 1985.
MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. S. Paulo: Abril Cultural,
livro 1, t. 1, 1983.
________. O Capital. Crítica da Economia Política. S. Paulo: Abril Cultural,
livro 3, t. 2,1983.
________. Contribuição à Crítica da Economia Política. S. Paulo: Martins
Fontes, 1977.
________. A Ideologia Alemã. Lisboa: Editorial Presença, v. 1, 1976.
________. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1974.
MAO TSÉ-TUNG. Obras Escolhidas. Pequim: Edições do Povo, v. 1, 1969.

83
Por que razão discutir a crise do marxismo? 1

Todo julgamento da crítica científica será bem vindo.


Quanto ao preconceito da assim chamada opinião pública, à
qual nunca fiz concessões, tomo por divisa o lema do grande
florentino: Segui Il tuo corso, e lascia dir le genti.
(Marx, 1983, Editora Abril,
prefácio à primeira edição de O Capital).

Por todas as razões acreditamos que devemos expor os motivos porque


decidimos discutir a crise do marxismo. Crise na teoria e na prática, como
não poderia deixar de ser. As razões políticas, teóricas e práticas colocadas
pela luta de classes.
Razões políticas que – depois de uma longa militância buscando encontrar
uma organização que com sua teoria e prática concretizasse um processo
de mudanças nas relações sociais que há muito está maduro: o socialismo
– nos fez perceber que se tornava necessário outro tipo de intervenção.
Na verdade, o 26 de dezembro de 1991 quando o parlamento soviético
declarou a dissolução da URSS já nos vinha fazendo pensar que os proble-
mas do movimento comunista eram muito maiores e diferentes do que
pareciam. E assim, fomos levados a lembrar à afirmação de Lenin, tantas
vezes repetida e pouco assimilada, ecoando a posição de Marx e Engels,
reafirmada insistentemente por Mao, a tese da unidade teoria e prática:
“Sem teoria revolucionária, não há prática revolucionária”.
Percebemos que muito mais do que uma discussão sobre organização,
tática ou estratégia, o que necessitamos é discutir a situação, o estado da
teoria marxista, sua crise escancarada após o XX Congresso do PCUS e a cisão
do movimento comunista em 1963, a necessidade urgente e incontornável
de tomá-la a sério e perguntarmos por suas causas. Perguntar as causas da
crise que desembocou em Kruschev, no rompimento da URSS com a China,
cisão na teoria e na prática, e no desmanche das experiências de construção
do socialismo, principalmente na URSS e na China por seu papel de exemplo.
A crise do movimento comunista não pode ser somente o resultado
dos erros cometidos pelos partidos comunistas em sua prática na luta de
classes, resultado de uma conjuntura, nem da ação dos inimigos de sempre
e, que desde sempre, se uniram contra ele na luta de classes, se fossem esses
os motivos da crise do movimento comunista teríamos de perguntar por
que razão tornou-se possível o triunfo da conjuntura, dos acontecimentos
sobre uma teoria cuja “onipotência” (numa expressão que se tornou clássica
por Mao) deriva da verdade inquestionável dos conceitos que a articulam.
O movimento comunista não foi derrotado por seus inimigos de sempre.
Fomos derrotados ao não sermos capazes depois de Marx, Engels, Lenin,

1 Texto de setembro de 2008.


Stalin e Mao de desenvolver a teoria de forma a iluminar de maneira justa
nossa prática revolucionária.
Repetimos: a crise do Marxismo é uma crise teórica e prática e a luta de
classes nos coloca a urgência de superá-la.
Mas Marx já não nos alertava, não nos chamava a atenção – ao afirmar no
O Capital que ali se constituía uma ciência – para o fato de que o Marxismo,
como toda ciência, não é espontaneamente conhecido? E de que a luta de
classes coloca diante do movimento comunista a exigência de enfrentar
todas as dificuldades de uma teoria radicalmente nova? A necessidade im-
periosa de “chegar aos seus cimos luminosos”? De dominar, o que significa,
ao mesmo tempo, praticar o Marxismo?
Não há estrada já aberta para a ciência e só aqueles que não
temem a fadiga de galgar suas escarpas abruptas é que tem
a chance de chegar a seus cimos luminosos (Marx, O Capital,
v. I, Abril Cultural, 1983, p. 23. Prefácio da Edição Francesa).
Desde o prefácio à primeira edição de O Capital Marx não reclamava de
que necessitava de leitores capazes de “pensar por conta própria”?
Pressuponho, naturalmente, leitores que queiram aprender
algo de novo e queiram, portanto, também pensar por con-
ta própria (Marx, O Capital, v. I, Abril Cultural, 1983, p. 12.
Prefácio da primeira edição).
E não constatava que fora “pouco entendido”?
O método aplicado em O Capital foi pouco entendido,
como já o demonstram as interpretações contraditórias
do mesmo (Marx, O Capital, v. I, Abril Cultural, 1983, p. 18.
Posfácio da segunda edição).
E não é Kautsky – após a morte de Friedrich Engels em 1895, o “herdeiro
teórico” de Marx e Engels que vai editar o quarto volume do O Capital, ou
melhor, as “Teorias da Mais-Valia” – que pelas suas posições revisionistas,
reformistas e antirrevolucionárias, acabou por ser denunciado como rene-
gado por Lenin?
Toda a experiência da luta de classes não só nos ensina sobre a ameaça
sempre presente do revisionismo, do reformismo, do esquerdismo, como, tam-
bém, nos apela para a tarefa incontornável de praticar o marxismo-leninismo.
Precisamos avançar com todos os camaradas na discussão da crise do mar-
xismo, avançando na sua compreensão, em sua formulação, até escoimá-la
de toda e qualquer aderência idealista; avançar na teoria marxista até situá-la
integralmente em outro terreno, no terreno do materialismo, como quer
Lenin, materialismo até o teto, avançar até o terreno da dialética materia-
lista, até o ponto onde cada camarada se vê diante do dilema de trocar de
pele, lutar para avançar sem nenhuma concessão, conquista que só a mais
rigorosa luta de classes no campo da teoria pode nos trazer.

85
Marx, Engels e J. Dietzgen entraram para a carreira filosó-
fica numa época em que o materialismo reinava entre os
intelectuais avançados em geral e nos meios operários em
particular. Marx e Engels deram, pois, muito naturalmen-
te, uma atenção contínua não à repetição daquilo que já
tinha sido dito, mas ao «desenvolvimento» teórico sério
do materialismo, à sua aplicação à história, quer dizer, ao
acabamento até o teto do edifício da filosofia materialista.
(…) a sublinhar «sobretudo» o que faltava àqueles escritores
mais populares e mais escutados nos meios operários, ou
seja, a dialética (Lenin, Materialismo e Empirocriticismo,
Edições Mandacaru, 1990, p. 217).
É para a necessidade da mais rigorosa luta teórica que Lenin nos alerta
quando mostra que “o idealismo subsiste ‘em cima’, no domínio da ciência
social; incompreensão do materialismo histórico.”.
É isto e só isto, que lhes censura [Engels em relação à Büchner
e consortes]; não os censura por serem materialistas, como
imaginam os ignorantes, mas por não terem feito progredir
o materialismo, por «não terem sequer pensado em desen-
volver a sua teoria». (…) o idealismo subsiste «em cima», no
domínio da ciência social; incompreensão do materialismo
histórico (Lenin, Materialismo e Empirocriticismo, Edições
Mandacaru, 1990, p. 215).
E é exatamente esta a lição de Marx, Engels, Lenin, Stalin e Mao, a prá-
tica da mais rigorosa luta de classes no campo da teoria. Posição que é
exatamente o contrário da intenção demagógica de agradar e/ou encobrir
as contradições. A lição que nos faz buscar com nossos camaradas, sem
concessão, a verdade do marxismo-leninismo, servindo-nos para isto do
conhecimento que só a prática da mais rigorosa, intransigente, precisa e
justa luta de classes na teoria pode trazer.
Trabalhar, para retomar a teoria revolucionária como instrumento para a
construção da revolução, do socialismo e do comunismo. Perceber a imensa
revolução teórica representada pelo marxismo. Não se trata mais, como diz
Marx, de interpretar o mundo de diversas maneiras, mas de transformá-lo.
Tomar a teoria como arma do proletariado na luta de classe, arma que pos-
sibilita a ele e demais classes dominadas a ter uma prática revolucionária,
elaborar a linha justa na luta de classes.
Como diz a citação de Marx com a qual iniciamos nosso trabalho, es-
peramos dos camaradas a crítica mais rigorosa, crítica científica, marxista-
-leninista, porque vamos trabalhar procurando nos situar rigorosamente
no campo do marxismo-leninismo. Quanto às críticas burguesas de todas
as matizes dizemos com Marx, “segue teu curso e deixa a gentalha falar”.
Praticar o marxismo, não o reformismo/revisionismo.

86
Parte II
O Pós imperialismo é o socialismo. O que
vivemos é a crise do capitalismo. 1

Se envia capital para o exterior, isso não ocorre porque ele


não poderia ser empregado no próprio país. Ocorre porque
ele pode ser empregado no exterior a uma taxa de lucro mais
elevada.
(MARX, O Capital. S. Paulo: Abril Cultural, livro 3. t. 1 p. 193)

Introdução
O presidente Fernando Henrique declarou à revista “República”, no. 40, de
fevereiro de 2000, que entramos na “era do pós-imperialismo”. E o que significa
isso? Significa que superamos o imperialismo? Superamos o capitalismo do qual
o imperialismo é a etapa superior e final? Hoje, qualquer observador mais ou
menos informado sabe que a crise do imperialismo se aprofunda, poderíamos
dizer, se constitui numa crise estrutural e que, em decorrência desta crise, o
Brasil vai reconvertendo sua inserção na economia mundial, adequando-se
a esta crise, expressa sob a denominação de globalização, reconversão que
leva a economia nacional progressivamente a uma situação colonial na qual
o Estado nacional 2 vai perdendo o comando do processo econômico interno.
Flutuamos ao sabor da crise do imperialismo, das marés do capital financeiro
internacional, o que a imprensa capitalista chama de capitais globais (o capital
financeiro é composto dominantemente por capitais dos países imperialistas,
mas também por capitais nas mãos do setor financeiro da classe dominante
brasileira) - esta é uma novidade importante – e ambos se comportam pelos
mesmos critérios: a busca exclusiva e obsessiva de maiores taxas de lucro
independentemente de métodos ou país em que seu capital se aplica.
A política econômica do Estado brasileiro de forma obsessiva, dominante
e quase exclusiva, atende aos interesses do imperialismo e da grande bur-
guesia nacional ansiosa por se proteger da crise dolarizando sua riqueza. O
governo de FHC dedica-se a contrarrestar a crise da economia capitalista
mundial, criando condições de aplicação e remuneração satisfatórias ao
1 Texto de setembro de 2000.
2 É importante discutir a teoria marxista com relação ao Estado, discutir o caráter do
Estado nos países dominados. Lenin, em O Imperialismo, nos dá importantes pistas para
esta discussão, dizendo que a luta entre os países imperialistas pela divisão econômica e
política do mundo, “… originam abundantes formas transitórias de dependência estatal.
Para esta época são típicos não os dois grupos fundamentais de países – os que possuem
colônias e as colônias -, mas também as formas variadas de países dependentes que,
dum ponto de vista formal, político, gozam de independência, mas que na realidade se
encontram envolvidos nas redes da dependência financeira e diplomática” (LENIN, 1975,
p. 104).
E mais adiante diz que este gênero de relação entre grandes potências e países mais fra-
cos sempre existiu que, “na época do imperialismo capitalista tornam-se sistema geral”
(LENIN, 1975, p. 105).
capital financeiro internacional, tanto mantendo o Brasil no topo do ranking
mundial de juros reais - 36% de taxa de juro nominal o que representa uma
taxa de juro real por volta de 25% ao ano (Delfim Netto, Carta Capital, n. 122,
10/05/2000) - batendo de longe a Indonésia, que fica em segundo lugar, como
entregando o setor produtivo nacional aonde se vislumbre uma perspectiva
de taxas de lucro satisfatórias ao capital externo.
1 De Fernando I a Fernando II
Desde o governo Collor - um trailer interrompido da política que está
sendo aplicada por Fernando Henrique Cardoso – que a economia nacional
e o mercado interno foi sendo aberto aos capitais externos e às importações,
mesmo que a importação se fizesse de forma limitada pela disponibilidade
de divisas. A partir do Plano Real, o governo, encenando a farsa do controle
da inflação, agarrou-se à ideia fixa de tudo fazer para remunerar o capital
externo. Era evidente que havia uma inflação de miséria, de que seria ne-
cessário aumentar a exploração da classe operária e de todo o povo para
garantir a remuneração do capital e para isto reduzir serviços como saúde,
educação, etc., que o Estado capitalista oferecia às classes dominadas.
Mesmo vendo por todo lado agravar-se a miséria, o governo brasileiro
já com FHC à frente manteve-se inabalável na política de garantir lucros ao
capital imperialista e, assim, colaborar em contrarrestar sua crise. Com a
corrida para cá de dólares, em busca de lucro fácil, o Brasil resultou “esta-
bilizado”; quanto mais o capital financeiro internacional entrava no Brasil
mais se esforçava o governo em garantir sua taxa de lucro:
Primeiro, fez subir as taxas de juros e eliminou gradativamente o controle
sobre a entrada e a aplicação de capitais, para atrair o capital financeiro
garantindo-lhes, não só absoluta liberdade como remuneração elevada;
Segundo, com as divisas acumuladas pela entrada de capitais atraídos
pelos elevados ganhos nos juros e nas bolsas o que nos dava “saldo”
para adquirir os bens que ele mesmo produzia lá fora decretou o mais
escrachado laissez-faire, laissez-passer nas importações, adquiridas com
uma moeda sobrevalorizada, inundando o país inteiro de quinquilharia e
baboseiras, escancarando o mercado interno à importação de bens que
antes eram fabricados aqui, forçando para baixo seus preços, quebrando
o setor produtivo nacional;
Terceiro, cedendo-lhes lugar nos setores produtivos, estatal ou privado,
no setor de serviços e no sistema financeiro, onde houvesse possibilidade
de lucros; ofereceu as empresas estatais e privadas nacionais, bancos e
empresas do setor financeiro, barateadas pela crise, ao capital financeiro
internacional a preço de banana quando não subsidiou sua compra.
Em outubro de 1997, a ciranda financeira sofreu uma pane no sudeste da
Ásia e os capitais começaram a fugir do Brasil. Na obsessão de assegurar ao
capital externo de que sua convicção de manter-lhes o lucro era inabalável,
o governo FHC aumentou ainda mais as taxas de juros e adotou 51 medidas
com o objetivo de cortar despesas do Estado, por mais essenciais que fossem,
e assim garantir sua remuneração.

89
Em setembro de 1998, a moratória russa provocou uma nova fuga de
capitais, apesar de nova elevação da taxa de juros, de novo pacote fiscal e
da intervenção do FMI, diante da evidente fragilidade da máquina montada
por Fernando Henrique para garantir a remuneração dos capitais interna-
cionais a qualquer custo.
Daí porque a crise prosseguiu nos últimos meses de 1998 e início de 1999
e resultou na desvalorização do real frente ao dólar e para compensá-la na
absoluta desregulamentação dos fluxos de capital externo.
A subserviência do Brasil ao capital financeiro internacional ficou de-
monstrada no ano de 1999. Oscilando entre o medo e a voracidade, os
capitais externos entraram e fugiram do Brasil e o governo brasileiro fez-lhes
sucessivas concessões entre o aumento da remuneração, de garantias e a
desregulamentação do mercado.
Hoje, o governo brasileiro só tem um objetivo: garantir a remuneração do
capital imperialista diante da crise estrutural em que vive a economia mundial
desde o início da década de 70, crise que se agrava a cada crise conjuntural e
que põe em evidência a quebra do sistema. Crise estrutural do imperialismo
que levou a seguidas reestruturações da economia mundial, da qual a política
neoliberal, a globalização e a fascistização, são os elementos mais evidentes,
fascistização que no Brasil se expressa na acentuação de tendências históricas
como o autoritarismo, o obscurantismo, e a radical separação de classes que
se materializa na fabricação de um exército de “excluídos”.
Hoje, o Brasil vem aumentando seu endividamento externo e, consequen-
temente, o pagamento de juros vem crescendo ano a ano. Só entre 1999 e
2000 a despesa com juros deve passar de US$15,2 bilhões para US$17,1 bilhões.
Acrescente-se a isto o crescimento com a remessa de lucros e dividendos
resultado dos investimentos diretos, principalmente para a compra de em-
presas estatais ou privadas e que vão elevar as despesas com as remessas
de US$4,1 bilhões em 1999 para US$ 5 bilhões este ano.
Da mesma forma cresce as despesas com viagens internacionais que de-
vem superar os US$1,4 bilhão gastos em 1999 e atingir US$2 bilhões. Soma-se
a isso o déficit da balança comercial que nos três primeiros meses do ano já
acumulava um déficit de US$88 milhões.
De outro lado, está claro um projeto continuísta de poder para as classes
dominantes que, diante de sua opção clara, doutrinária, de submissão cons-
ciente aos interesses do grande capital internacional que, para contrarrestar
sua crise, tem que radicalizar a exploração sobre a classe operária e o conjunto
dos trabalhadores e, consequentemente, radicalizar a repressão modificando
sua estratégia diante das manifestações de insatisfação do povo, utilizando
maciçamente a imprensa para fabricar confrontos, mistificar os movimentos
reivindicatórios, satanizar organizações, como o MST, caminhando para a
Fujimorização, para o fascismo.
2 A crise do imperialismo
Podemos dizer que a crise estrutural do imperialismo se inicia no final
dos anos 60, início dos anos 70, com a sobreacumulação de capitais nas

90
mãos dos bancos europeus, os eurodólares, e vai se manifestar na crise de
1973-74, que resulta na política de empréstimos aos países dominados, se-
gundo o economista Dércio Garcia Munhoz, a política mais bem elaborada
e executada pelo imperialismo para contrarrestar sua crise.
O comportamento observado constitui um dos episódios
de maior racionalidade das economias hegemônicas até
agora registrado, … (Dércio Garcia Munhoz, Dívida Externa.
A crise rediscutida, p. 26).
A crise de 1982-1983 com as moratórias do Brasil e do México vai mostrar
os limites da política de endividamento forçado dos países dominados como
forma de se contrapor a crise, gerando, a partir de 1985, a necessidade de
uma nova reestruturação da economia mundial, a política neoliberal e a
globalização.
É verdade que por todo esse período, o Brasil sempre esteve à frente
dos que se ofereciam ao sacrifício para garantir a remuneração do capital
financeiro. Também é verdade que as sucessivas concessões e reestruturações
impostas à economia nacional quebraram o que alguns teóricos da esquerda
classificavam como “desenvolvimento associado e dependente”, reduzido
agora a desenvolvimento só para as classes dominantes, enquanto que
para o povo, para a classe operária, para os trabalhadores, para as camadas
médias, o médio e pequeno empresariado, só resta o sacrifício de garantir
a taxa de lucro do capital internacional.
E o que queremos dizer com isso? Queremos dizer que a crise estrutural e
conjuntural da economia capitalista mundial, no momento em que triunfou
provisoriamente sobre as experiências de construção do socialismo, vem
agravando o conjunto de suas principais contradições e, em primeiro lugar,
a contradição entre o imperialismo e os países dominados 3.
É de fundamental importância que analisemos esta questão, que anali-
semos a fase que hoje atravessa o imperialismo, a fase que atravessa a eco-
nomia capitalista mundial estruturada por essas contradições, suas relações
e a hierarquia que se estabelece entre elas, seu desenvolvimento, para que
possamos determinar como se dá a crise e o ajuste que esta determina na
inserção dos países dominados nesta etapa do desenvolvimento da economia
capitalista mundial.
Porém, a nós parece necessário levantar primeiro uma questão acerca
da compreensão da fase imperialista da economia capitalista. E para fazer
isso precisaríamos tratar das classes, da luta de classes, dos monopólios,
da concorrência, do Estado, etc. etc., um círculo, já que para falar do impe-
rialismo precisaríamos falar de tudo ao mesmo tempo, das classes, da luta
de classes, do monopólio, do Estado, etc., porque na realidade as coisas

3 Embora esta expressão esteja presente neste texto ou em outros desta coletânea, impe-
rialismo não indica apenas os países imperialistas. O mais correto seria assinalar a con-
tradição entre países dominantes e países dominados, uma vez que tanto as formações
econômico-sociais dominadas quanto as dominantes fazem parte do sistema imperialista
como um todo articulado e contraditório [nota da edição].

91
funcionam juntas, relacionadas umas às outras. Assim, os limites deste tra-
balho e a necessidade de adotarmos uma ordem de exposição nos obriga a
trabalhar com determinados conceitos sem que nos seja possível precisá-los.
Quando no início do século Lenin assinala a passagem do capitalismo de livre
concorrência, do mercado mundial, para a constituição de uma economia
capitalista mundial, passagem para o que vai denominar de etapa imperialista
do capitalismo, constatava que o desenvolvimento do capitalismo tinha
estabelecido no mundo um “sistema universal”:
o capitalismo transformou-se num sistema universal de
subjugação colonial e de estrangulamento financeiro da
imensa maioria da população do planeta por um punhado
de países «adiantados» (Lenin, O Imperialismo, fase superior
do capitalismo, p. 23),
Uma totalidade orgânica (Marx, 1977, Contribuição, 217), uma unidade
real, porque não resulta da soma de partes nem uma abstração derivada
dos interesses dominantes. Isto quer dizer que o imperialismo constituía por
todo o mundo uma totalidade unificada, uma “empresa capitalista mundial”,
como diz Lenin referindo-se a expansão do capital financeiro.
Estes dados permitem ver a rapidez com que cresce a espessa
rede de canais que abarca todo o país, centraliza todos os
capitais e receitas monetárias, converte milhares e milhares
de empresas dispersas numa empresa capitalista única, na-
cional a princípio e mundial depois (Lenin, O Imperialismo
fase superior do capitalismo, p. 48).
Nunca é demais acentuar esta característica, este traço constitutivo cen-
tral do imperialismo. Discutindo, no último capitulo do “Imperialismo…”, “O
lugar do imperialismo na história” Lenin vai dizer que “o imperialismo é, pela
sua essência econômica, o capitalismo monopolista” (Lenin, O Imperialismo
fase superior do capitalismo, p. 143). Para concluir adiante,
A oligarquia financeira, que estabelece uma densa rede de
relações de dependência entre todas as instituições econô-
micas e políticas da sociedade burguesa contemporânea sem
exceção: eis a manifestação mais evidente deste monopólio
(Lenin, O Imperialismo fase superior do capitalismo, p. 144).
E mais adiante,
Neste sentido, é extremamente instrutiva a circunstância
de os termos mais usuais que os economistas burgueses
empregam ao descrever o capitalista moderno serem «entre-
laçamento», «ausência de isolamento», etc.; … Que significa
então esta palavra «entrelaçamento»? … o que constitui a
base do referido entrelaçamento, o que se encontra por trás
dele, são as relações sociais de produção submetidas a uma

92
mudança contínua (Lenin, O Imperialismo fase superior do
capitalismo, p. 146-147).
E poderíamos acrescentar, hoje, que esse entrelaçamento se expressa
como “globalização”, “mundialização”, etc.
A verdade é que o imperialismo construiu uma economia mundial onde
o desenvolvimento de cada formação econômico-social é, em parte, condi-
cionada pelas relações mundiais de produção, uma economia mundial onde
se combinam de diversas formas e posições as diversas economias nacionais
que são parte dessa totalidade complexa, constituída pela economia mundial
imperialista. O fato de que a economia mundial expresse uma totalidade não
deve induzir a que se confunda a economia mundial, enquanto totalidade,
com suas partes constitutivas, as diversas formações econômico-sociais,
dominantes e dominadas, que a compõem.
A questão, de fato, consiste em definir que tipo de contradições consti-
tuem e definem essa totalidade e como determinam a forma pela qual nela
se inserem as diversas formações sociais que a constituem. Ora, da mesma
forma que na totalidade representada por uma formação econômico-social
concreta, é essa totalidade – a formação econômico-social – a realidade
concreta que possibilita a determinação específica de cada contradição parti-
cular e, da mesma feita, são suas contradições que determinam a totalidade.
Por exemplo, a contradição capital e trabalho, contradição própria do
sistema capitalista, se determina especificamente no Brasil na articulação do
conjunto de contradições que compõem nossa formação econômico-social
no mesmo processo que a determina enquanto contradição fundamental.
Na totalidade concreta representada pela formação econômico-social bra-
sileira, a posição da burguesia brasileira não é exatamente a mesma posição
da burguesia norte-americana nos EUA. Da mesma forma, a classe operária
brasileira apresenta características próprias que a individualizam dentro do
proletariado internacional, apesar de que a contradição entre a burguesia e
a classe operária exista tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos 4.
Assim, esquecer o específico a cada realidade concreta, esquecer que o
capitalismo se desenvolveu no Brasil, que a burguesia brasileira se formou
quando o imperialismo já se encontrava constituído, não representa um
erro desprezível.
Aqui, de passagem, vale lembrar um texto de Lenin singularmente “es-
quecido” por muitos daqueles que se esforçaram por compreender, analisar
e transformar o Brasil e é singular nos dois sentidos. Primeiro, porque em
seu primeiro parágrafo nos dá uma pista para vislumbrar, talvez, as razões
do “esquecimento”; segundo, porque em seu parágrafo seguinte soa tão
claro que nos permite avaliar o grau de miopia que a incompreensão, a
não-compreensão, da teoria provoca.

4 O fato de que Lenin nos deixou uma profunda análise do imperialismo, análise que ele
mesmo reconhece limitada pelas condições em que seu trabalho foi realizado, não nos
desobriga da necessidade de aprofundar o seu trabalho e realizar a análise concreta do
imperialismo nos dias de hoje.

93
Entendemos por crítica do imperialismo, no sentido amplo
da palavra, a atitude das diferentes classes da sociedade
perante a política do imperialismo, em consonância com a
ideologia geral das mesmas. As proporções gigantescas do
capital financeiro, concentrado em poucas mãos, que deu
origem a uma rede extraordinariamente vasta e densa de
relações e vínculos, e que subordinou à sua férula, não só
a generalidade dos capitalistas e patrões médios e peque-
nos, mas também os mais insignificantes, por um lado, e a
exacerbação, por outro lado, da luta contra outros grupos
nacional-estatais e financeiros pela partilha do mundo e pelo
domínio sobre outros países, tudo isto origina a passagem
em bloco de todas as classes possuidoras para o lado do
imperialismo. O sinal do nosso tempo é o entusiasmo «ge-
ral» pelas perspectivas do imperialismo, a defesa furiosa do
mesmo, o seu embelezamento por todos os meios.
O que Lenin quer nos dizer quando fala em “crítica do imperialismo” em
conformidade, acordo, com “a atitude das diferentes classes da sociedade
perante a política do imperialismo, em consonância com a ideologia das
mesmas” (Lenin, O Imperialismo fase superior do capitalismo, p. 129)? Quer
nos dizer que a partir de uma posição de classe, da ideologia em consonância
com esta posição temos posições críticas distintas perante o imperialismo?
Quer nos dizer que de uma posição de classe, de sua ideologia, podemos
assumir “a defesa furiosa” do imperialismo e seu embelezamento por todos
os meios sem que sejamos capazes de lhe fazer a crítica científica? Quer nos
dizer que a crítica científica do imperialismo só é possível de uma posição
de classe?
Isto talvez possa explicar porque não levamos em conta a afirmação de
Lenin de que “tudo isto origina a passagem em bloco de todas as classes
possuidoras para o lado do imperialismo” (Lenin, O Imperialismo fase superior
do capitalismo, p. 129).
Daí a razão porque Lenin insistia na análise concreta da situação concre-
ta. As contradições sociais concretas, isto é, com os traços característicos
que ostentam, resultantes de conjunturas concretas, o entrelaçamento
específico dessas contradições nesta conjuntura, nada tem de desprezível
porque expressam o real concreto dessa formação social, a situação concreta
enquanto totalidade.
De fato, se a formação econômico-social se constitui como expressão do
conjunto das determinações do complexo de suas contradições com sua
contradição dominante, em sua inter-relação mútua e desenvolvimento
incessante essa formação econômico-social, da mesma forma, é o condi-
cionante que determina a maneira específica pelas quais suas contradições,
se apresentam. Essa, por assim dizer, penetração recíproca, no complexo
de contradições com sua contradição dominante que constituem uma
totalidade, é que lhe dá a feição concreta que apresenta, feição que reverte

94
sobre cada uma de suas contradições particulares condicionando-as em
seu processo específico.
Ou, dizendo de outro modo, é a articulação de suas contradições - fun-
damental, principal, secundárias, etc. - em sua especificidade concreta que
forja a totalidade, no mesmo processo em que esta define as condições
concretas em que suas contradições se apresentam e seu desenvolvimento.
Assim, o imperialismo, a economia mundial, não constitui um mero agregado
aleatório, uma mera soma de economias nacionais, de formações econômico-
-sociais, mas uma economia mundial, “sistema universal” determinado por
um conjunto de contradições – fundamental, principal, etc. – em constante
processo dialético de determinar e ser determinada. O que queremos dizer
é que as contradições sociais só existem articuladas em uma totalidade, por
isso mesmo nenhuma delas pode ser tomada em abstrato, independente
da totalidade na qual tem existência concreta, ao contrário, só existe na
concretude e condicionada pela totalidade social da qual faz parte, deter-
minada pelas demais contradições que compõem aquela totalidade, razão
porque é impossível que se repita uma situação concreta.
Assim, a tentativa de transferir, de decalcar, a análise de uma fase do
imperialismo para outra, de uma formação social para outra, resulta numa
elucubração metafísica ao retirar do materialismo dialético e do materialismo
histórico a fonte mesma de sua vida; a análise concreta da situação concreta.
Restará um esquema vazio de escassa significação objetiva, capaz de levar
a imensos e dolorosos equívocos.
É esta a prática que temos de radicalmente recusar para assumir a po-
sição científica, a única científica possível, a posição de classe, o ponto de
vista do proletariado.
É desta “atitude … de … classe … perante a política do imperialismo, em
consonância com a ideologia geral… da … mesma” classe, o proletariado,
deste método, que devemos analisar a crise do imperialismo e a agudização
de suas grandes contradições:
1 a contradição fundamental do sistema capitalista, a contradição entre
capital e trabalho, expressa na agudização da contradição entre a bur-
guesia e o proletariado por todo o mundo;
2 a contradição entre o capitalismo e o socialismo;
3 a contradição interimperialista;
4 a contradição entre países imperialistas e países dominados.
Ora, a crise estrutural do imperialismo é profunda e generalizada e se
torna mais aguda ao golpe de cada crise conjuntural. Poderíamos dizer paro-
diando o Manifesto que, além do fantasma do comunismo, outro fantasma
percorre a economia capitalista mundial, a sobreacumulação de capital e a
superprodução de mercadorias, levando a crise aos mercados financeiros
e ao setor produtivo agudizando, principalmente, a contradição entre o
imperialismo e os países dominados.
Primeiro, porque o desenvolvimento do imperialismo vem resultan-
do, desde o fim dos anos 60, numa sobreacumulação de capitais e na

95
diminuição das possibilidades de aplicação desses capitais no setor
produtivo mantendo-se a taxa de lucro, levando a que esses capitais
lutando por manter a taxa de lucro se refugiem no mercado financeiro ou
busquem aplicação, compulsoriamente, lucrativa nos países dominados.
Segundo, porque há uma superprodução de mercadorias, expressão da
sobreacumulação de capitais e limite à sua aplicação no setor produtivo
e, pressionados pela superprodução de mercadorias, pelos limites de seu
próprio mercado e do mercado externo, os monopólios – que não podem
eliminar a concorrência 5 – tendem a fazer cair seus preços, disputando
entre si uma parte maior dos mercados e, principalmente, constrangendo
os países dominados, em sua área de influência, a consumir seus produtos.
Terceiro, porque pressionado pela sobreacumulação de capital e pela
dificuldade generalizada de sustentar a taxa de lucro no setor produtivo
e ganhos e juros correspondentes nos mercados financeiros dos países
dominantes, o imperialismo vem constrangendo os países dominados
a criar mecanismos de remuneração de seus capitais tanto no setor
produtivo como financeiro.
Assim, e de forma ainda mais perversa – como resultado do progressivo
agravamento estrutural de sua crise – o imperialismo procura encontrar
no aumento da exploração dos países dominados a solução para sua crise.
E onde está a razão da crise econômica atual? Sabemos que nem toda
soma de valor é capital, para isso é condição essencial que o valor seja in-
vestido de forma que a ele se acrescente uma quantidade determinada de
valor, a mais-valia.
Podemos dizer assim, repetindo Marx, que a razão da existência do
capital é sua reprodução ampliada: “O processo de produção capitalista é
essencialmente processo de acumulação” (Marx. O Capital, v. 3, t. 1, p. 167), e
só a partir deste ponto podemos analisá-lo. Ao investir o capital, o capitalista
não tem, nem pode ter, nenhum outro objetivo senão o de reproduzi-lo de
forma ampliada, acumulá-lo, obter uma quantidade de valor que passará a
se incorporar ao capital inicial, pouco importando onde ou como se investe,
desde que isso lhe garanta uma taxa crescente de lucros. Da mesma forma,
Lenin aponta esta característica central do capital, a necessidade incontor-
nável de sua valorização, quando analisa a característica do imperialismo
a exportar capital:
exportación de capital = «exportación del valor destinado
a producir plusvalía en el extranjero» (LENIN, Obras com-
pletas, t.28, p. 343).
A crise é justamente a crise dessa acumulação. Para contrarrestar sua crise
atual e aumentar a taxa de lucro o capital apela para a elevação do grau de

5 Concorrência e monopólio se constituem em uma unidade. O monopólio opõe limitações


à “livre concorrência” e esta opõe limitações à “livre” ação dos monopólios.
“Ao mesmo tempo, os monopólios, que derivam da livre concorrência, não a eliminam,
mas existem acima e ao lado dela, engendrando assim contradições, fricções e conflitos
particularmente agudos e bruscos” (LENIN, 1975, p. 107).

96
exploração do trabalho, tanto pela mais-valia absoluta, conjugando a extensão
da jornada de trabalho com a redução da remuneração da força de trabalho
abaixo de seu valor, recorrendo à redução do salário e ao corte de salários
indiretos (como contribuições à saúde, à aposentadoria, etc.), quanto pela
mais-valia relativa com a crescente elevação da produtividade do trabalho
pela introdução de novas tecnologias, resultando não só na ampliação da
superpopulação relativa como no alargamento da esfera do pauperismo.
Assim se dá a constituição de uma superpopulação relativa que chega a
corresponder de 30% a mais de 50% da população dos países dominados e
a mais de 10% na comunidade econômica européia e no Japão, com a carac-
terística de que cada vez se torna maior o tempo em que essa população se
mantém fora da produção e, consequentemente, se torna maior a camada
incapaz de retornar à produção industrial e a qualquer atividade produtiva.
Isso que a imprensa chama de “excluídos”, já que o recurso ao mercado ex-
terno está limitado por sua divisão entre os países imperialistas. Instala-se
a contradição, como diz Marx, “a taxa de lucro não cai porque o trabalho
se torna mais improdutivo, mas porque se torna mais produtivo” (MARX,
Capital, livro 3, t. 1, p. 182). O capitalismo não pode superar suas contradições,
a massa de lucros cresce, a taxa de lucro cai, a riqueza se acumula nas mãos
de um número cada vez menor de capitalistas e a miséria cresce no mundo
todo, mesmo nos quintais dos países imperialistas.
Segundo dados do “US Census Bureau, International Briefs: World
Population Profile: 1996”, reproduzidos por “LAFIS, Pesquisa e Investimento
em Ações na América Latina”, em artigo publicado na Carta Capital, nº 123,
de 24 de maio de 2000, sob o título Globalização V S. Excluídos cada ano sai
pior é cada vez maior a concentração de renda: 20% da população mais rica
do mundo tem renda 74 vezes maior que a dos 20% mais pobres enquanto
em 1960 essa proporção era de 30 vezes e, nos fins do século XIX, de 7 vezes.
A concentração e a centralização da riqueza é brutal: a fortuna de
358 pessoas, as mais ricas do mundo, mais US$ 1 trilhão de dólares, ultra-
passa a soma dos PIBs de um conjunto de países pobres e dominados que
reúnem 2,7 bilhões de pessoas; 45% da população do planeta. A fortuna
de 2 ou 3 dos homens mais ricos do mundo supera os PIBs somados dos
43 países mais pobres; só entre 90 e 94 o consumo de calorias por pessoa
cresceu 3,2% nos países imperialista, como diz a revista “entre os povos que
buscam desesperadamente perder peso”, enquanto o consumo de calorias
nos países dominados caía 4,5%, como diz a “LAFIS”, “entre os que lutam
para não morrer de fome”, enquanto a expectativa de vida na África Negra
caminha rumo à “pré-história”.
Com a generalização da miséria, o mais característico produto do capi-
talismo, os capitais superacumulados não têm aonde investir. O setor pro-
dutivo se paralisa diante das mercadorias que se acumulam sem ter quem
as compre, seus preços caem seguidamente. Os mercados financeiros para
onde esses capitais correm quebram e, assim, se bloqueia a acumulação,
instala-se a crise.

97
No início dos anos 70 havia-se acumulado capitais de tal forma nas mãos
dos países imperialistas, já capitaneados pelos Estados Unidos, que, aberta
a crise em 1973, o imperialismo se viu obrigado a enfrentá-la através da po-
lítica de endividamento dos países dominados, mesmo tendo que queimar
capitais emprestando-os a juros negativos, como mostra Celso Furtado:
A disponibilidade de recursos financeiros era de tal ordem
que em 1973 as taxas médias de juros reais foram de 2%
negativas, e em 1974 passaram de 6% negativas. Até o final
do decênio dos 70 as taxas de juros reais não superaram 2%
(Celso Furtado, ABC da dívida externa, p. 23).
Os países dominados passaram a valorizar o capital imperialista através
dos empréstimos, sua dívida externa aumentou de US$ 86 bilhões, em 1971,
para US$ 586 bilhões em 1982, e a realizar as mercadorias sobreproduzidas;
as vinte e três principais economias dos países dominados, treze da OPEP e
as dez principais economias da Ásia e da América Latina, que representavam
22,7% do comércio mundial em 1973 passam a representar 30,8% em 1981.
Portanto, contribuem tanto para garantir a reprodução ampliada do capital,
remunerando-o através do pagamento dos juros do empréstimo, como
utilizando o capital emprestado para consumir as mercadorias produzidas
pelos emprestadores.
A partir de 1982, a saída encontrada pelo imperialismo começa a ruir. O
México declara moratória, seguido pelo Brasil e pela Argentina. Diante da
quebra do sistema de endividamento construído pelo imperialismo para
contrarrestar sua crise é necessário de novo reestruturar a economia mun-
dial, reestruturação facilitada pela crise que se faz evidente nos países que
buscavam construir o socialismo e que vai levar ao fim essas experiências
e pela hegemonia econômica, política e militar que os Estados Unidos vão
assumindo na economia mundial.
Usando essa hegemonia e o fato de serem detentores da moeda univer-
sal, os Estados Unidos vão desencadear um longo período de expansão do
mercado mundial a partir de déficits crescentes em sua balança comercial e
de uma dívida pública que passou de US$658 bilhões em 1979 para US$3.392
bilhões em 1993, ou seja, de 26,7% para 53,5 % do PIB, o que vai beneficiar os
demais blocos imperialistas, principalmente o Japão à frente do bloco asiático.
A partir de 1996, os Estados Unidos aceleram a reorganização de seu setor
produtivo com o objetivo de garantir sua supremacia técnico-científica e
econômica e, assim, manter sua posição hegemônica na economia mundial,
consequentemente, sua hegemonia política e militar. Com a queda das
exportações para os Estados Unidos abre-se as condições para a crise que
se instala nos Tigres Asiáticos e, em seguida, no Japão.
Novamente, os países imperialistas colocam nos ombros dos países domi-
nados a carga de contrarrestar a crise, encontrar novas formas de valorizar
o capital imperialista, seja através da importação dos bens que produzem,
do inútil ao supérfluo, seja oferecendo-lhes novas oportunidades de inves-
timento produtivo, seja valorizando o capital financeiro através de juros

98
pagos com atração de novos capitais a troco de maiores juros. O modelo
atual para contrarrestar a crise, aceito entusiasticamente pela fração da
classe dominante brasileira no poder, sofre de um defeito estrutural: impõe
um déficit permanente e crescente na balança de pagamentos.
Primeiro, porque os países dominados são obrigados a absorver as
exportações dos países imperialistas, resultando na quebra do setor pro-
dutivo nacional, sufocado pelo similar estrangeiro, quase sempre de pior
qualidade, porém mais barato, resultando na quebra do setor produtivo,
na queda da exportação de manufaturados, como vem acontecendo
na maioria dos países dominados, degradando sua balança comercial,
transferindo riqueza para o capital externo.
Segundo, porque também se instala um déficit permanente na balança
de serviços, setor sobre o qual o capital externo avança com voracidade
na ânsia de garantir sua remuneração, deslocando o Estado da presta-
ção de serviços como educação, saúde, previdência social para a classe
dominante e para as camadas médias capazes de pagar por eles, o que
também significa transferência de capitais para o exterior.
Terceiro, porque também se aumenta a transferência de recursos, já
que aumenta a presença do capital externo no mercado interno tanto
pela privatização do setor estatal na economia, pela compra dos setores
produtivos de maior lucratividade nas mãos do capital privado, como
pelo estabelecimento do capital externo no chamado setor de serviços e,
principalmente, com o crescente controle do sistema financeiro nacional
que hoje melhor seria classificar como sistema financeiro interno, com a
consequente remessa de amortizações, juros, lucros, royalties, etc., e os
inevitáveis subfaturamentos e superfaturamentos entre matriz externa
e filial, “brasileira”.
Quarto, por fim, pelo pagamento da engrenagem da ciranda financeira,
de amortizações, juros, etc. que garante o funcionamento da máquina
de valorização do capital financeiro investido na Bolsa, em empréstimos,
investimentos diretos, etc.
Desta forma, o déficit da balança de pagamentos obriga, como única forma
de manter funcionando a engrenagem de valorização do capital externo, a
atração de novos capitais através de vantagens e juros sempre maiores. E este
é afinal o objetivo da “nova economia”. Os países dominados devem continuar
garantindo não só a realização dos bens superproduzidos nas economias
imperialistas, como também, remunerar seus capitais sobreacumulados
e, para isto, só existe uma política possível: primeiro e, principalmente, au-
mentar a exploração dos países dominados, o que não quer dizer que não
se aumente a exploração sobre o conjunto do proletariado, tanto nos países
dominados como nos países dominantes e que não se aguce a contradição
entre as grandes potências imperialistas na disputa de mercados e se avance
na política de destruir o que resta da construção do socialismo.
É fundamental para os povos dos países dominados compreender esta
conjuntura da crise do imperialismo, levar em conta que a contradição
principal, no conjunto de contradições que compõem a economia capitalista

99
mundial, a contradição que mais se agrava, se antagoniza, é a contradição
entre o imperialismo e os povos dos países dominados, e a dominação.
Ora, é da maior importância que se compreenda como a crise do im-
perialismo, com a queda da taxa de lucro resultando no agravamento de
todas as suas contradições, centralmente de sua contradição fundamental,
a contradição entre a burguesia e a classe operária, leva a contradição entre
o imperialismo e os países dominados à posição de contradição principal,
gradualmente agravando seu antagonismo.
É evidente que a crise do imperialismo agudiza todas as suas contradições,
centralmente sua contradição fundamental, como também é evidente que
a contradição entre a burguesia e a classe operária se agrava tanto nos países
imperialista como nos países dominados.
Contudo, objetivamente, dentro das condições da luta de classes na
conjuntura concreta de hoje, o imperialismo enfrenta uma reação menor,
ao tentar resolver sua crise elevando a exploração da classe operária e do
conjunto do povo dos países dominados do que elevando a exploração de
sua própria classe operária.
Da mesma forma que enfrenta menos obstáculos ao resolver a crise
sobre os países dominados do que se tiver que levar à guerra sua disputa
por esferas de valorização do capital com os demais países imperialistas, a
contradição interimperialista.
O que não quer dizer que realidade econômica concreta da economia
mundial não determine aos países imperialistas que aprofundem até onde
lhe for possível a exploração do povo de seu país e de sua classe operária, e
de que não disputem de todas as formas, inclusive pela violência, as áreas
de valorização do capital, os mercados, e tentem destruir as experiências
de construção do socialismo.
Se a crise do imperialismo impõe a este o aumento da exploração, a luta
de classes impõe limites a esta. A ampliação da exploração da classe operária
nos países imperialistas tem de se enfrentar com níveis muito mais elevados
de organização e consciência e um patamar também elevado de conquistas,
resultantes da luta de classes, expressa em condições de trabalho, salário e
vida. Nos países dominados, a classe operária, os trabalhadores e o povo vêm
de uma história de dominação sob o colonialismo, que transfere sua herança
de sujeição ao imperialismo, sujeição partilhada pela classe dominante em
sua subserviência aos interesses dos dominadores.
Assim, para contrarrestar sua crise e, consequentemente, o agravamento
de sua contradição fundamental, o imperialismo agudiza e torna principal,
nesta conjuntura, a contradição que opõe os países imperialistas aos países
dominados. Como afirma o “Dr. Pedro Parente”, então Secretário Executivo
do Ministério da Fazenda: “Wall Street quer sangue” (Citado em entrevista
de Mendonça de Barros ao jornal Valor de 22/05/00. p. A12.). O que quer
dizer que o imperialismo quer contrarrestar a queda da taxa de lucro, custe
o que custar do sangue das classes dominadas, de preferência, das classes
dominadas dos países dominados.

100
Por enquanto, para contornar a crise, o imperialismo faz regredir o con-
junto dos países dominados à situação colonial, eleva ao auge a exploração
de sua classe operária, de seu povo, suprimindo todas as conquistas sociais
alcançadas pelos trabalhadores desses países em décadas de luta. Cria nos
países dominados massas de população privadas do mínimo vital, organiza
a pilhagem de sua riqueza pela constituição de uma máquina, a médio prazo
insustentável, para valorizar o capital.
Ora, o que dizemos é que quanto mais se agrava a crise estrutural do
imperialismo, mais este agrava a exploração dos países dominados, fazendo
com que a contradição que os opõe aos países dominantes se agudize cada
vez mais, levando a que esta contradição assuma o lugar de contradição
principal, contradição que vai determinar a forma e a velocidade do agra-
vamento das outras contradições.
Assim, depois de concentrar forças diante do inimigo comum - o socialis-
mo e seus aliados - para destruí-lo, o imperialismo faz convergir suas forças em
reordenar as relações de exploração dos países dominados, com os Estados
Unidos utilizando sua supremacia militar e sua hegemonia sobre o sistema
capitalista para garantir as novas condições de exploração: intervenção no
Iraque, Iugoslávia e a crescente intervenção nos países da América Latina,
México, Colômbia, Peru, etc., ao mesmo tempo que usa as novas condições
de exploração para reforçar sua hegemonia econômica e militar.
Com a continuação da crise, a contradição com a classe operária nos
países desenvolvidos vai se agravando, levando à constituição de verdadei-
ros “terceiros mundos” internos, como também se agrava a contradição
interimperialista na disputa por mercados e matérias primas. Contudo, a
contradição interimperialista se mantém ainda em segundo plano enquanto
for possível resolver a crise sobre os países dominados.
Primeiro porque, os Estados Unidos, detém larga hegemonia econômica e
militar entre os países imperialistas, usando esta hegemonia para policiar
o sistema e contornar suas crises através de órgãos ditos internacionais,
como o FMI, Banco Mundial, etc. e a própria ONU, determinando o lugar
dos demais países imperialistas na economia mundial.
Segundo, porque ainda existem mercados a conquistar (a Rússia e a China)
e se faz necessário quebrar a resistência dos povos de todo o mundo à
“nova ordem mundial”.
Terceiro, porque a crise econômica ainda não chegou ao seu auge o que
implicará uma disputa feroz pelo controle dos mercados, das matérias-
-primas e da força de trabalho, tendendo, como das outras vezes, a gerar
uma nova guerra mundial.
Contudo, já aponta no horizonte a tendência de que a crise da econo-
mia mundial pode vir atingir a economia dos EUA e, então, talvez, possa se
enfraquecer a hegemonia dos Estados Unidos sobre o mundo capitalista,
levando a que outros países imperialistas disputem seu lugar.
É só ver o que diz um documento insuspeito de crítica aos EUA do ponto
de vista de uma, “atitude de … classes da sociedade”, que não compartilhe do,

101
“entusiasmo ‘geral’ pelas perspectivas do imperialismo”, “a defesa furiosa do
mesmo, o seu embelezamento por todos os meios”: o Relatório de inflação
do “Banco Central do Brasil de março de 2000”.
O “Relatório …” começa dizendo que “O cenário externo apresenta
melhorias, … embora permaneça o risco de eventual reversão brusca da
economia americana.” (Relatório…, p. 9), para, logo em seguida, quando
trata da economia internacional, definir “Os principais fatores de incerteza
oriundos do cenário externo”, dizendo:
Um importante foco de incerteza continua sendo a possi-
bilidade de uma desaceleração brusca do crescimento da
economia dos Estados Unidos, que poderia ser causada por
uma elevação da taxa de juros acima do esperado, ou pela
queda acentuada dos preços dos ativos, com efeitos indese-
jados sobre o consumo… A maior volatilidade nos mercados
de ações e de títulos verificada no primeiro trimestre deste
ano pode estar indicando o início de um ajuste aos novos
níveis de juros e demanda da economia.
Dado o caráter antecipador do mercado financeiro e,
apesar da importância e da magnitude do chamado efeito
riqueza ser difícil de estimar, esse quadro pode ser o primeiro
sinal de desaceleração da economia americana” (Relatório
Banco Central, p. 88).
Como podemos ver, a economia dos EUA vem mantendo importantes
níveis de expansão sustentada por sua posição hegemônica na economia
mundial à qual se incorpora o fato de que emite a moeda universal. Esta
posição lhe permite funcionar como um aspirador da poupança mundial
para financiar o crescimento de sua economia, o desenvolvimento de novas
tecnologias e a renovação de seu setor produtivo, financiar tanto o consumo
de bens de consumo como o de bens de produção.
Diz o Relatório de Inflação do Banco Central do Brasil que “O crédito
ao consumidor elevou-se 14,6% em janeiro, implicando aumento de 6,6%
em doze meses” (Relatório Banco Central, p. 57). Para sustentar o consumo
tanto de máquinas e equipamentos quanto de bens de consumo, os EUA
mantém o maior déficit comercial da história.
O déficit comercial elevou-se 65,1%, atingindo US$ 271,3
bilhões em 1999, em comparação a US$ 164,6 bilhões, em
1998, embora em dezembro tenha ocorrido redução sazonal
de 15,6%. As importações e as exportações cresceram 12% e
2,6% no ano de 1999, reforçando o alto nível de absorção da
economia norte-americana (Relatório Banco Central, p. 58).
É importante notar que apesar do déficit comercial de US$ 271,3 bilhões
o crescimento das importações supera em mais de quatro vezes o cresci-
mento das exportações. Em março deste ano, o déficit comercial dos EUA

102
atingiu a soma invejável de US$ 30,2 bilhões, garantindo a previsão de que
neste ano o déficit comercial vai ultrapassar em muito os US$ 300 bilhões.
Dinheiro fácil, farto e barato está levando a um altíssimo nível de endivi-
damento das empresas e famílias nos EUA, uma máquina de fabricar lucros
ilusórios que leva a que famílias e empresas tomem recursos em instituições
financeiras para aplicá-los na Bolsa. O castelo de cartas assim montado já dá
sinais de ruir, como diz o “Relatório de Inflação”, “Dado o caráter antecipa-
dor do mercado financeiro, … A maior volatilidade nos mercados de ações
e de títulos verificada no primeiro deste ano (2000) pode estar indicando
o início …” da crise.
3 Brasil
A conjuntura do imperialismo impõe para o Brasil, mantidas as condições
de inserção na economia mundial nas quais nos encontramos, o caminho
único de retroagir ao papel de colônia, de colônia dos EUA.
A classe dominante brasileira fez uma opção clara, consciente, ideológica,
doutrinária, de absoluta submissão e subserviência - além do que lhe era
habitual - ao capital financeiro internacional, ao imperialismo, aos ajustes
determinados pelo imperialismo nas condições de inserção do Brasil na
economia capitalista mundial que representa uma regressão à situação
colonial, que representa a regressão, o retrocesso no desenvolvimento in-
dustrial, científico, técnico, educacional, cultural e social, significa elevar os
níveis de exploração do povo brasileiro a limites dificilmente sustentáveis e,
portanto, elevar o autoritarismo, o obscurantismo, a miséria e a repressão à
altura correspondente aos níveis de exploração pretendidos.
(…) 6
Lenin já nos alertava que o imperialismo não pode deixar de explorar a
classe operária e os povos de todo o mundo, que “a realidade econômica
concreta da economia moderna” é a de que “a dominação do capital fi-
nanceiro” acentua a desigualdade e as contradições da economia mundial
(LENIN, 1975, p. 113).
Lenin nas anotações e comentários de leitura do livro de Hobson, O
Imperialismo, que nos deixou no “caderno kappa” - que vai compor mais
tarde o volume que reúne os cadernos nos quais deixou suas anotações
sobre o imperialismo – escreve, ao lado do texto que copia de Hobson,
“essência do imperialismo”:
… imperialismo, cuya esencia consiste en desarrollar mer-
cados para la inversión de capitales, y no para el comercio
(LENIN, Obras completas, t.28, p. 446).
O que queria dizer Lenin, concordando com a caracterização de Hobson,
era que a “essência” do imperialismo, seu traço principal, é desenvolver
mercados para investir capitais, em busca de sua valorização, isto é, de que

6 Neste ponto do documento, foi excluída uma parte do texto com dados estatísticos
conjunturais da formação econômico-social brasileira. O texto na íntegra, contendo os
trechos excluídos, pode ser acessado no blog “Cem Flores…” [nota da edição].

103
a essência do imperialismo é a de exportar capitais para produzir mais-valia.
Lenin vai repetir esta caracterização, este traço central do imperialismo, esta
“essência”, em suas notas sobre O Capital Financeiro, de Hilferding:
exportación de capital = «exportación del valor destinado
a producir plusvalía en el extranjero» (LENIN, Obras com-
pletas, t.28, p. 343).
Não podemos nos deixar iludir, nem um segundo sequer, de que o capital
que o imperialismo transfere para o Brasil tenha outra razão qualquer a não
ser a de produzir aqui mais-valia, mais-valia destinada não a ficar aqui, mas
a voltar às mãos dos detentores do capital.
E o capitalismo assume esta característica em sua fase imperialista em
razão de uma necessidade estrutural, da realidade econômica concreta da
economia mundial: o capital já não pode se valorizar o suficiente nos limites
das fronteiras nacionais; o capital transborda as fronteiras nacionais e à medida
que transborda essas fronteiras e procura valorização no estrangeiro, se choca
com outros capitais também à busca de valorização e com os limites que a
luta de classes impõe a superexploração que os países imperialistas querem
obrigar os dominados e, como consequência, que o imperialismo tenha como
característica central a tendência para a violência e para a reação (Lenin, p. 110)
como única forma de garantir a crescente exploração a que precisa submeter
os povos de todo o mundo na tentativa desesperada de contrarrestar sua crise.
O queremos discutir é que:
1 a crise do imperialismo apresenta tendência predominante a se agravar,
independente das oscilações que esse movimento possa ter;
2 com o agravamento da crise do imperialismo, agrava-se o conjunto de suas
contradições, principalmente, a contradição com os países dominados;
3 ao buscar resolver sua crise, principalmente, através dos países dominados,
o imperialismo intensifica a exploração a que os submete.
Assim, a superexploração é uma necessidade do capital para contrar-
restar sua crise, a tendência a queda da taxa de lucro, e o aumento da
exploração não pode vir desacompanhado do aumento da violência, da
repressão, da miséria, da reação. E o aumento da exploração, repressão,
miséria, traz consigo o exacerbação da luta de classes, o crescimento da
resistência e luta das classes exploradas.
4 A resistência e luta das classes exploradas
O imperialismo ao explorar gera seus próprios coveiros, como diz Lenin:
en los nuevos países, la importación de capital «provoca
la resistencia de los pueblos que despiertan a la conciencia
nacional»… «El proprio capitalismo brinda a los pueblos
sometidos el medio de liberación»… «el movimiento hacia
la independencia» … (LENIN, Obras completas, t. 28, p. 343).
É interessante retornar a Lenin para ver como este compreendia as formas que
devia tomar a luta do proletariado com o início da fase imperialista do capitalismo.

104
Combatendo o oportunismo de Kautsky e quejandos, Lenin vai mostrar
que o reconhecimento da necessidade de desenvolver outras formas de
atividade revolucionária não implicava, mesmo na conjuntura de guerra
mundial que se vivia, no abandono da atividade legal, da luta por reformas,
das diversas formas da luta de classes:
La esencia de la «lucha contra el pantano» no debe consistir
en la negación de la actividad legal ni de la lucha por las
reformas, sino en el reconocimiento de la actividad revo-
lucionaria antes indicado (V. I. LENIN, Obras completas, t.
28, p. 5).
E mais adiante, ainda nos Cadernos sobre o Imperialismo, caderno delta,
buscando definir esta posição de maneira mais clara, comentando o trabalho
de Pannekoek, onde este afirma,
La esencia de la lucha de clase socialista consiste en la unidad
indestructible de la lucha por el socialismo y la representa-
ción de todos los intereses inmediatos del proletariado. Sólo
la lucha del partido por los intereses corrientes del prole-
tariado hace que sea el partido del proletariado, el partido
de las masas, y le permite obtener la victoria (Lenin, Obras
completas, t. 28, p. 271).
Lenin vai observar, à margem do texto, grifando a expressão “por el so-
cialismo”, que esta não era a palavra correta, o termo correto, como quer
Lenin, “exato”, para a posição que queria expressar “no es la palabra justa, así
no … !exacto!” e vai definir sua posição, afirmando que o que é necessário
combinar são as duas formas de luta.
La lucha por el socialismo consiste en la unidad de la lucha
por los intereses inmediatos de los obreros (en consecuencia,
por las formas) y la lucha revolucionaria por el poder, por
la expropiación de la burguesía, por el derrocamiento del
Gobierno burgués y de la burguesía. Lo que hay que combinar
no es la lucha por reformas + frases sobre el socialismo, la
lucha «por el socialismo», sino dos formas de lucha. (LENIN,
Obras Completas, t. 28, p. 271-72)
A posição de Lenin, a crítica de Lenin a Kautsky e a Pannekoek, podem
nos servir de guia para a ação, de guia para o debate e para a compreensão e
crítica de toda uma prática que se esconde atrás de frases sobre o socialismo
para fugir da tarefa diária de travar a luta concreta.

105
BIBLIOGRAFIA
BARROS, Mendonça de. Jornal Valor Econômico, 22/05/00, p. A-12.
CARTA CAPITAL, Globalização V S. Excluídos cada ano sai pior, nº 123,
24/05/2000.
FURTADO, Celso. ABC da dívida externa. O que fazer para tirar o país
da crise financeira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
LENIN, V. I. O imperialismo, fase superior do capitalismo. Lisboa: Edições
Avante, 1975.
__________. Obras completas, Moscú: Editorial Progresso, t.28, 1986.
MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. S. Paulo: Martins
Fontes, 1977.
_________.O Capital. Crítica da economia política. S. Paulo: Abril Cultural,
v.3, t.1, 1983.
MUNHOZ, Dércio Garcia. Dívida Externa. A crise rediscutida. S. Paulo:
Ícone, 1988.
RELATÓRIO DE INFLAÇÃO DO BANCO CENTRAL DO BRASIL,
março/2000.

106
Elementos para discussão da conjuntura 1

1 Conjuntura internacional
1.1 A Crise do Imperialismo
O imperialismo vive um processo aparentemente contraditório de crise
econômica, de um lado, e de ofensiva econômica, militar, política e ideológica,
de outro. Crise e ofensiva são aspectos do mesmo processo: o agravamento
da crise geral do imperialismo.
É evidente o agravamento e a generalização da crise do imperialismo
dominado pela lógica do capital financeiro. Quem entra em recessão eco-
nômica aberta é a economia norte-americana, pólo principal do sistema
imperialista. Se somarmos a isso os dez anos de crise do Japão e a redução do
crescimento da Europa, podemos afirmar que a crise geral do imperialismo
muda de qualidade ao atingir o conjunto dos países dominantes.
Antes, as crises econômicas se davam nos países dominados que for-
mavam a periferia mais desenvolvida, em termos econômicos do impe-
rialismo – com a exceção do Japão que vem sofrendo um longo processo
de crise – e isto permitia aos Estados Unidos funcionar como “gerente” do
sistema; hoje, a crise se generalizou nos países imperialistas e se instalou na
própria economia americana, gerando efeitos ainda não mensuráveis para
o conjunto do sistema.
Depois de quase 20 anos de crescimento relativamente estável após o
fim da Segunda Guerra Mundial – o que quer dizer a taxas mais ou menos
constantes, sem grandes crises, resultado, em parte, da imensa destruição
de trabalho morto pela Guerra na Europa, na Ásia e no norte da África
e, em parte, de políticas de regulação financeira-salarial, resposta à forte
ofensiva das classes dominadas na luta de classes no pós-guerra nos paí-
ses imperialistas e, principalmente, nos países dominados e do avanço do
socialismo – o imperialismo entra em crise no início da década de 70 e, a
partir daí, vem vendo agravar sua crise, crise que não é só econômica, mas
que também se expressa na regressão política e cultural do mundo capi-
talista, manifestada, principalmente, na intensificação da exploração das
classes dominadas em todo o mundo, inclusive das classes dominadas dos
países imperialistas, no agravamento das condições de vida, na regressão
cultural e no aumento da repressão, na fascistização do Estado, não só dos
países imperialistas, como na constituição de regimes civis autoritários nos
países dominados.
A crise econômica que por fim atinge toda a economia mundial e que
se inicia nos EUA no começo de 2000 (na Bolsa e no mínimo em setores
específicos da indústria, etc) e que, a partir de março de 2001, toma a
forma de recessão 2 nos EUA, de acordo com dados oficiais. Some-se a

1 Texto de junho de 2002.


2 Recessão; fase mais aguda da crise.
isso a fascistização da política interna e externa dos EUA com a posse do
George W. Bush. Fascistização que se acelera após os ataques ao Pentágono
e às torres do World Trade Center. Os ataques só deram aos EUA uma nova
justificativa para a política que já vinham aplicando há algum tempo e que
tem como objetivo contrarrestar sua crise, conservando sua hegemonia
no sistema imperialista. O conjunto destes fatos consolida a tendência dos
Estados nos países imperialistas a assumirem o caráter fascista, tendência
que já vinha se manifestando, de algum tempo para cá, na Europa.
1.2 A crise nos países dominantes
É possível constatar a partir de uma análise mesmo que superficial dos
indicadores econômicos dos países dominantes e da economia mundial que,
em 2001, a crise se generalizou à toda economia mundial.
Analisando os dados país a país, podemos verificar, tomando por base
a Tabela 1, que no período que vai de 1997-2000 os EUA tiveram um cres-
cimento anual estável, acima de 4%, patamar considerado elevado, sempre
acima da taxa dos demais países imperialistas e da média mundial. Em 2001,
a taxa de crescimento dos EUA sofre uma queda reduzindo-se a um quarto
da observada no período anterior.
No mesmo período registra-se queda no PIB da Alemanha, Inglaterra e
França, enquanto o Japão vem acumulando três variações negativas do PIB,
se considerarmos as estimativas de − 0,5% para 2001, e o conjunto dos países
imperialistas, só em 2000, ultrapassavam a taxa de 3% de crescimento anual
do Produto Interno Bruto.

Tabela 1 · Produto Interno Bruto


PIB Taxa de crescimento anual (%)
País 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001
EUA 2,7 3,5 4,4 4,3 4,1 4,1 1,2
Japão 1,5 3,9 0,8 − 2,9 − 1,3 0,5 –
Alemanha 1,7 0,8 1,4 2,0 1,8 3,0 0,6
Inglaterra 2,9 2,6 3,4 3,0 2,1 3,0 2,2
França 1,7 1,1 1,9 3,4 3,2 3,8 1,8
Itália 2,9 1,1 2,0 1,8 1,6 2,9 –
Brasil 4,2 2,7 3,3 0,1 0,8 4,4 1,5
China Continental 10,5 9,7 8,8 7,8 7,1 8,0 7,3
Mundo 4,0 4,3 4,1 2,5 3,3 4,8 –
P. Industrializados 2,4 2,8 3,0 2,7 2,7 3,6 –
P. Desenvolvimento 6,1 6,3 5,4 2,3 4,0 6,3 –
Fonte: FMI. Estatísticas Financeiras Internacionais e, para 2001, agências
nacionais.

108
É importante chamar a atenção para o fato de que no grupo dos países
dominados, os chamados “Países em Desenvolvimento”, a China 3 é, junto
com a Índia, uma das principais responsáveis pelos níveis de crescimento do
PIB, ao passo que o Brasil cresce sempre muito abaixo da média dos “países
em desenvolvimento”.
A Tabela 2, igualando os níveis da produção industrial a 100 em 1995,
permite verificar as taxas de crescimento da produção industrial dos países
imperialistas entre 1995 e 2001. Podemos, primeiro, ver que em 2001 (dados
anualizados), cai a produção industrial do conjunto dos “países industria-
lizados”. Segundo, que no período 1995-2001, à exceção dos EUA, pouco
cresceu a produção industrial dos países imperialistas. Em 2001, a produção
industrial do Japão cai abaixo do nível de 1995, enquanto EUA, Inglaterra e
Itália viram retrair sua produção industrial, naquele ano, até os meses que
se dispõem de dados, e só Alemanha teve um crescimento de produção.

Tabela 2 · Produção Industrial


Produção Industrial (1995=100)
País 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001
EUA 100,0 104,4 111,0 115,7 121,7 128,5 123,7 Agosto

Japão 100,0 102,9 107,3 99,7 100,1 106,4 92,0 Nov.

Alemanha 100,0 99,8 102,7 106,2 107,6 113,4 114,2 Agosto

Inglaterra 100,0 101,3 102,4 103,4 104,2 105,9 103,6 –

França 100,0 100,3 104,2 109,6 111,9 115,5 115,0 Dezembro

Itália 100,0 99,1 102,4 104,3 104,1 108,2 107,6 Maio

P. Industr. 100,0 102,4 107,1 107,8 111,4 116,1 113,1 Segundo


Trimestre

Fonte: FMI. Estatísticas Financeiras Internacionais

A comparação do crescimento da produção industrial (Tabela 2) e da


evolução dos salários nos países capitalistas desenvolvidos (Tabela 3), nos
quais a produção industrial é um indicador relevante, sabendo-se que no
mesmo período cresceu o desemprego, levanta a questão de que este fato
pode sinalizar uma retomada da luta de classes, resistência da classe operária
que impediria, apesar da pressão do crescimento do desemprego, que se
apliquem políticas de redução dos salários, mesmo que os dados também
sinalizem para um aumento da produtividade, da mais-valia relativa.
Os crescimentos do salário, junto aos da produtividade do trabalho e do
desemprego, mostram os limites que a burguesia imperialista vem encon-
trando em contrarrestar sua crise aumentando por todas as formas as taxas

3 A análise das transformações na divisão internacional do trabalho põe em xeque a carac-


terização da China como um país dominado e desafia a continuidade da investigação para
aprofundar a compreensão das relações de dominação econômicas, políticas e ideológicas
entre as formações econômico-sociais no sistema imperialista [nota da edição].

109
de exploração, mais-valia absoluta e relativa, e sinalizam para a tendência
das classes dominadas retomarem a ofensiva na luta de classes.

Tabela 3 · Salários
Salários (1995=100)
Pais 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001
EUA 100,0 103,3 106,4 109,1 112,4 116,2 120,0 Nov.

Japão 100,0 101,9 103,4 103,1 103,6 102,6 105,0

Alemanha 100,0 – – – – – –

Inglaterra 100,0 103,6 108,0 113,5 119,0 124,4 129,9

França 100,0 101,9 104,7 107,6 110,0 115,0 120,8 julho

Itália 100,0 103,2 106,9 109,9 112,4 114,7 117,1 agosto

P. Industr. 100,0 102,6 105,1 105,9 101,4 111,9 –


Fonte: FMI. Estatísticas Financeiras Internacionais

O agravamento da crise econômica mundial em 2001, expressa na re-


dução do crescimento do PIB e na queda da produção industrial dos países
imperialistas, é também verificado no declínio do comércio mundial, Tabela
4, o maior dos últimos vinte anos, de acordo com a Organização Mundial
do Comércio (OMC) 4. O valor das exportações mundiais caiu 4%, isto é, de
6,439 trilhões de dólares para 6,1 trilhões de dólares, de um crescimento de
13% em 2000 para uma queda de − 4% em 2001 (Folha de S. Paulo 3/05/2002),
ainda segundo a OMC, o maior declínio registrado desde 1982, não por acaso
a última grande crise do imperialismo 5.

Tabela 4 · Comércio Mundial


Comércio mundial variação anual (%)
1990-2000 1999 2000 2001
Mercadorias 6,5 5 12,5 − 4,0
Exportações 6,0 – 13,0 − 4,0
Importações 7,0 – 13,0 − 4,0
Serviços 6,5 2,5 6,0 − 1,5
Fonte: Organização Mundial do Comércio. Nota para a Imprensa de 02.05.2002

4 Nota para a imprensa, de 2 de maio, que divulgou alguns resultados preliminares (sujeitos
a mudanças), gerais (sem a segmentação por setores e regiões) e incompletos, do comércio
mundial até 2001.
5 A OMC divulga anualmente seu Relatório sobre Comércio Mundial. O último saiu em
2001, com dados de 2000.

110
E tudo isto após um crescimento espetacular do comércio mundial em
2000, as importações e exportações crescem a 13% depois de uma década de
crescimento médio de 6 a 7 %, explosão do comércio que já apontava para o
agravamento da crise de superprodução de capitais e mercadorias. Podemos
constatar nas Tabelas 5, 6 e 7 que as exportações dos países imperialistas,
em valor, crescem de forma razoavelmente constante, ao mesmo tempo
que cai a sua participação enquanto percentual das exportações mundiais.

Tabela 5 · Exportações
Exportações (f.o.b.) us$ bilhões
País 1995 1996 1997 1998 1999 2000
EUA 584,74 625,07 688,70 682,14 702,10 781,13
Japão 443,12 410,90 420,96 387,93 419,37 479,25
Alemanha 523,80 524,20 512,43 543,40 542,87 549,58
Inglaterra 242,01 262,10 281,06 271,84 268,21 281,44
França 284,87 287,67 289,95 305,64 300,76 295,02
Itália 234,00 252,04 240,40 245,70 235,18 238,26
Brasil 46,51 47,75 52,99 51,12 48,01 55,09
China Cont. 148,80 151,20 182,88 183,59 195,15 249,30
Mundo 5.120,20 5.339,50 5.529,00 5.440,90 5.623,70 6.310,10
P. Ind. 3.469,80 3.564,20 3.643,30 3.670,60 3.739,40 3.984,70
P. Des. 1.650,41 1.775,29 1.885,78 1.770,29 1.884,31 2.325,40
Fonte: FMI. Estatísticas Financeiras Internacionais

Também cresce a participação dos “países em desenvolvimento” no


comércio mundial impulsionada pela nova divisão internacional do traba-
lho: a transferência de unidades produtivas para os países dominados no
processo de “globalização”.
Nova divisão do trabalho na qual países como a China, se inserem de forma
diferente que o Brasil. Enquanto, aquele país aumentou sua participação no
comércio mundial, de 2,91%, em 1995, para 3,95%, em 2000; o Brasil reduziu
sua participação de 0,91% para 0,87% no mesmo período.
Com as mudanças na divisão internacional do trabalho com o objetivo de
aumentar a exploração sobre os países dominados, a chamada “globalização”,
a produção da mercadoria pode passar por vários países, da concepção à
comercialização, porém frações cada vez maiores da “receita” das exportações
mundiais de manufaturados ficam com os países imperialistas que detém
o controle do capital financeiro, dos monopólios, da pesquisa científica e
tecnológica e que determinam a logística de sua produção.
Assim é que apesar de que nos países dominados tenha aumentado a
produção de manufaturados e sua participação na exportação no comércio

111
internacional tenha mais que dobrado, passando de 10,6%, em 1980, para
26,5% em 1997, a “receita” obtida por essas exportações somente cresceu
de 16,6% para 23,8%, ao mesmo tempo em que os países imperialistas que
reduziram o volume de suas exportações mundiais de manufaturados de
82,23%, em 1980, para 70,9%, em 1997, aumentaram sua participação na
“receita” das exportações mundiais de 64,5%, em 1980, para 73,3%, em 1997,
de acordo com os dados da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio
e Desenvolvimento (UNCTAD).

Tabela 6 · Exportações
Exportações (f.o.b.) % das exportações mundiais
País 1995 1996 1997 1998 1999 2000
EUA 11,42 11,71 12,46 12,54 12,48 12,38
Japão 8,65 7,70 7,61 7,13 7,46 7,59
Alemanha 10,23 9,82 9,27 9,99 9,65 8,71
Inglaterra 4,73 4,91 5,08 5,00 4,77 4,46
França 5,56 5,39 5,24 5,62 5,35 4,68
Itália 4,57 4,72 4,35 4,52 4,18 3,78
P. Ind. 67,77 66,75 65,89 67,46 66,49 63,15
Brasil 0,91 0,89 0,96 0,94 0,85 0,87
China Cont. 2,91 2,83 3,31 3,37 3,47 3,95
P. Des 32,23 33,25 34,11 32,54 33,51 36,85
Fonte: FMI. Estatísticas Financeiras Internacionais

Tabela 7 · Exportações
Exportações (f.o.b.) taxa de crescimento anual (%)
País 1995 1996 1997 1998 1999 2000
EUA 14,07 6,90 10,18 − 0,95 2,93 11,26
Japão 11,61 − 7,27 2,45 − 7,85 8,10 14,28
Alemanha 21,89 0,08 − 2,25 6,04 − 0,10 1,24
Inglaterra 18,63 8,30 7,24 − 3,28 − 1,34 4,93
França 21,73 0,98 0,79 5,41 − 1,60 − 1,91
Itália 22,24 7,71 − 4,62 2,20 − 4,28 1,31
Brasil 6,80 2,67 10,98 − 3,53 − 6,08 14,74
China Cont. 22,92 1,61 20,95 0,39 6,30 27,75
Mundo 19,59 4,28 3,55 − 1,59 3,36 12,21
P. Ind. 19,07 2,72 2,22 0,75 1,87 6,56
P. Des. 20,70 7,57 6,22 − 6,12 6,44 23,41
Fonte: FMI. Estatísticas Financeiras Internacionais

112
Portanto, da análise dos quadros e dados das exportações no mercado
mundial podemos comprovar o aumento da exploração sobre os países
dominados representada pela política neoliberal, pela “globalização”.
Na América Latina e no Brasil o aumento da exploração se faz de forma
mais acentuada. O conjunto da América Latina aumentou sua participação na
exportação de manufaturados de 1,5% para 3,5% entre 1980 e 1997, enquanto
viu sua parcela da receita global se reduzir de 7,1% para 6,7% e o Brasil apesar
de não ter ultrapassado em 1997 os 0,7% que tinha em 1980 de participação
no comércio internacional de produtos industrializados, viu sua participa-
ção na receita cair de 2,9% para 2,7%. Podemos constatar, dos dados que
reunimos, que a crise atinge a economia mundial, e que, ainda, em virtude
das mudanças impostas ao sistema imperialista pela “globalização”, a crise
atual vem apresentando maior capacidade de propagação, de generalização
na economia mundial, e esta, também, maior dificuldade de recuperação.
Algumas das características que o imperialismo assumiu nesta fase agudiza-
ram a propagação internacional da crise e dificultam sua superação: primeiro,
a posição hegemônica da economia dos EUA como “gerente” e centro do
sistema imperialista, potencializa o contágio internacional da crise a partir dos
Estados Unidos para o resto do mundo. Depois, o crescimento exponencial das
inter-relações financeiras, o impressionante aumento nos fluxos comerciais e
de empréstimos intra-monopólios, e as inter-relações do setor produtivo das
empresas monopolistas distribuído ao redor do mundo na última década.
Hoje, com a crise instalada no coração do sistema, os EUA, a crise do
imperialismo é, enfim, admitida por todos, até pelos analistas das melhores
famílias de Londres: com o Japão, dentre os países dominantes, permane-
cendo estagnado e em deflação, situação que o caracterizou ao longo da
década de 1990, com reflexos sobre os demais países da Ásia com forte
grau de dependência da economia japonesa, com a União Européia vendo
diminuir seu crescimento em função da redução da demanda externa e
com os “mercados emergentes” dividindo-se entre os países dominados
que ainda não conseguiram superar as crises de 1997/98 (asiáticos e Rússia)
e os afetados pela crise atual (América Latina).
1.3 A reação dos EUA diante da crise do imperialismo
A restauração completa do capitalismo na União Soviética e nos países
da Europa que iniciaram a construção do socialismo após a Segunda Guerra
Mundial, a defensiva da classe operária e dos povos dominados na luta de
classes, permitiram ao imperialismo norte-americano tentar resolver sua
crise e manter sua hegemonia econômica, política e militar através de uma
política militarista e agressiva. Essa política garantiria o aumento da explo-
ração sobre os países dominados e a maior parcela do butim na economia
mundial para os EUA em detrimento dos demais países imperialistas. Como
diz Gilson Schwartz: o objetivo da política dos EUA é o de “voltar a crescer
sendo financiado pelo resto do mundo” (Folha de S. Paulo, 03/05).
Schwartz inicia seu artigo sobre as medidas protecionistas do governo
Bush dizendo, “Os EUA acabam de declarar uma guerra econômica ao resto

113
do mundo, …”. Para concluir, “O que parece improvável é que um sistema as-
sim tencionado consiga ser estável. Afinal, a pretexto de defender o interesse
nacional dos EUA (voltar a crescer sendo financiado pelo resto do mundo),
o governo Bush cria desequilíbrios ainda maiores no sistema internacional.”
E sentencia, “É uma nova guerra econômica mundial.”
Fica mais evidente a dimensão que toma a fascistização dos EUA se di-
mensionarmos mais concretamente o tamanho de sua crise, e mais visível
sua crise se somarmos aos dados da queda da taxa anual de crescimento
do PIB (acima de 4% de 1997 à 2000 para 1,2 em 2001) aos dados da queda
da produção industrial, da queda da participação no mercado mundial
(diminuição de 7% das exportações e redução das importações em 6% em
2001); ao crescimento da capacidade ociosa na indústria, e mais, constatar
que a crise já vinha pelo menos de março de 2000.
Como podemos ver no Gráfico 1, a partir de maio de 2000 não pára de
crescer a capacidade ociosa na indústria nos EUA.

Gráfico 1 · Capacidade Industrial utilizada

% da capacidade instalada
85
82,8
82

79

76 74,9

73

70

67
Mar

Mar
Mai

Mai
Nov

Nov
Set

Set
Jul

Jul
Jan

Jan

Jan

2000 2001 2002


Fonte:Federal Reserve

Fica mais fácil compreender a aparente contradição entre a recessão dos


EUA e o súbito e festejado crescimento da produção industrial nos primeiros
meses deste ano se analisarmos a Tabela 8 que nos dá o PIB dos EUA desagre-
gado. É possível constatar, então, a ação anticíclica que vêm desempenhando
os gastos do Estado com a indústria armamentista e com a sua inumerável
cadeia de fornecedores que a compõem, portanto, ao contrário da anunciada
retomada da economia, observa-se a adoção de uma medida anticíclica,
classicamente keynesiana, num mundo dominado pela ideologia neoliberal.
Enquanto caem, em 2001, os gastos pessoais em consumo e o investimento
doméstico se reduzem 8% sobre 2000, quando havia crescido 6,8%, os gastos
do governo e os gastos com “defesa” crescem em quase 5%, e aí se compre-
ende a “lógica” da política militarista e intervencionista do governo Bush.

114
As repercussões da reativação do complexo industrial-militar sobre a
indústria, tentando dinamizar a economia através de uma multiplicidade de
encomendas aos mais diversos setores da indústria, a destruição, pela guerra,
de trabalho morto, tudo criando novos espaços para a aplicação do capital,
além de assegurar a hegemonia mundial dos Estados Unidos, o que lhe ga-
rante o maior quinhão na divisão do butim dos lucros da economia mundial.

Tabela 8 · PIB dos EUA (desagregado)


variação anual (%)
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001
PIB 2,7 3,6 4,4 4,3 4,1 4,1 1,2
Gastos pessoais em 3,0 3,2 3,6 4,8 5,0 4,8 3,1
consumos
Investimento doméstico 3,0 9,0 12,1 11,8 6,6 6,8 − 8,0
privado bruto
Gastos do governo 0,5 1,1 2,4 1,9 3,3 2,7 3,6
Defesa − 3,7 − 1,3 − 1,3 − 2,6 2,1 0,1 4,7
Fonte: Departamento do Comércio dos EUA

A crise não só começou pelo mercado financeiro como persiste nele.


Podemos ver pelo Gráfico 2 que, a partir do segundo trimestre de 2000,
o índice Nasdaq entra em declínio acentuado. Após atingir 5000 pontos
no auge da farra da Bolsa, oscila desde junho de 2001 ao redor dos 2000
pontos, o que não só significou a queima de trilhões de dólares que esta-
vam girando na especulação como a fantasia que se construiu em torno
do crescimento da economia, das empresas de “nova tecnologia”, da “nova
economia” expressa no Nasdaq.

Gráfico 2 · bolsa de valores dos EUA

Dow Jones NASDAQ


12.000 5.000

11.500 4.500

11.000 4.000

10.500 3.500

10.000 3.000

9.500 2.500

9.000 2.000

8.500 1.500

8.000 1.000

Fonte: FMI
Dow Jones NASDAQ

115
Mesmo a “velha economia” não consegue “estabilidade”. O índice Dow
Jones mostra acentuada “volatilidade”, refletindo os movimentos da crise,
com quedas bastante acentuadas em março e outubro de 2000, abril e
setembro de 2001, queda ou “volatilidade”, como querem os analistas bur-
gueses, que tende a se manter e aprofundar diante do agravamento da crise.
O Gráfico seguinte, mostrando a relação entre a taxa de juros e a inflação,
permite constatar que o que leva a economia dos EUA a crescer no primei-
ro trimestre de 2002 foi fundamentalmente o aumento maciço de gastos
públicos, principalmente os gastos com a indústria armamentista (Tabela 8)
e as menores taxas de juros, nos últimos quarenta anos, oferecidas a quem
quisesse investir. Ao primeiro sinal da crise o banco central dos Estados
Unidos reagiu da maneira keynesiana tradicional, descendo os juros para
estimular o investimento e os gastos em consumo. Desde dezembro de 2000
até maio de 2002, as taxas básicas de juros foram reduzidas de 6,5% para
1,75%. Ocorre que, com as atuais taxas de inflação nos Estados Unidos, os
juros reais no país estão em menos de 1% ao ano e o banco central americano,
FED, não hesitará em torná-los negativos se necessário para a retomada do
crescimento e a recuperação do emprego.
São os próprios analistas do sistema financeiro que dizem que os EUA
cresceram nos últimos meses a base dos dois “Gs”: a guerra e Greenspan,
o que quer dizer, crescimento com a oferta de dinheiro mais barato dos
últimos quarenta anos e com o maior nível de gastos militares desde a
guerra do Vietnã.

Gráfico 3 · relação entre juros e inflação nos eua


(dados anualizados)
% ao ano
7
6
5
4
3
2 1,75

1
1,14
0
Jan

Mar

Mai

Jul

Set

Nov

Jan

Mar

Mai

Jul

Set

Nov

Jan

2000 2001 2002

IPC anual Meta para taxa de juros


Fonte: Bureau de Estatísticas do Trabalho dos EUA e Federal Reserve

A Folha de S. Paulo, de 27 de abril de 2002, publica comentários de funcio-


nários de corretoras americanas sobre o crescimento da economia no início
do ano confirmando que é generalizada a consciência de que o crescimento
da economia americana não se deve a nenhum processo endógeno: “«Sem

116
os gastos públicos o PIB não teria crescido no último trimestre de 2001»,
diz Brian Wesbury, da corretora Griffin Kubik, Stephens & Tompson.” “«Não
devemos nos iludir. Não estamos no começo de um novo boom», avalia
Henry Herrmann, diretor de investimentos da corretora Waddell & Reed.”
É esta a opinião de Paul Krugman, em artigo publicado no New York Times
e reproduzido pela Folha de S. Paulo, de 01/05/2002. Referindo-se ao cresci-
mento da produção industrial americana nos três primeiros meses do ano
avalia Krugman: “E mais da metade do crescimento de 5,8% se deve a um
saldo de estoques. As vendas finais cresceram, de fato, em apenas 2,6%, ritmo
inferior ao do trimestre anterior. E mesmo esse índice de crescimento pode
não se provar sustentável: … Enquanto isso, o investimento empresarial, re-
tardado pela capacidade excedente de produção e pelos lucros insuficientes,
se reduziu em termos reais. Para resumir, os dados não oferecem nenhuma
indicação de que um grande boom seja iminente.”
Na verdade, os indicadores econômicos mostram o aprofundamento da
crise na economia americana. O crescimento do consumo das famílias no
primeiro trimestre de 2002 foi menor que o registrado no último trimestre
do ano passado. A redução dos estoques das indústrias é mais lenta, o
consumo dos “bens duráveis” caiu 8% e o investimento no setor dos bens
de produção 5,7 (Folha de S. Paulo, 27/04/2002), enquanto a atividade in-
dustrial já caiu, em abril, de acordo com o Instituto de Gerenciamento de
Fornecimento (ISM) e Departamento de Comércio dos Estados Unidos, de
55,6 em março, para 53,9 (Folha de S. Paulo, 02/05/2002).
O desemprego, que no início de 2000 registrou os mais baixos níveis da
década, média de 4%, vem tendo desde então um crescimento constante, já
alcançou 6% em janeiro deste ano (Folha de S. Paulo, 04/05/2002), o maior
índice desde 1994, o maior índice registrado nos últimos 7 a 8 anos. E tudo
indica que deve continuar crescendo.
Objetivamente, e é preciso que se tome isto com todas as suas conse-
quências, a saída da crise para os EUA passa por crescer às custas do resto
do mundo, como observa Schwartz, e isto significa agravar em um nível
superior todas as contradições do imperialismo: a contradição entre capital
e trabalho; a contradição interimperialista; e, principalmente, nesta etapa
da crise, agravar a exploração dos povos dominados, o que só pode ser feito
com o aumento superlativo da opressão e da repressão, o que quer dizer,
com a retomada das guerras coloniais, como já vem sendo feito: a guerra
contra o mundo que Bush propõe. O imperialismo assume, assim, sua feição
natural: o irracionalismo; o culto da superioridade da raça; o monopólio da
civilização; a xenofobia; o fascismo.
E se o imperialismo não for derrotado antes na luta de classes, e em-
preender uma nova guerra interimperialista para permitir a sobrevida do
capitalismo, levará a revolução a todos os cantos do mundo.
Para que não se pense que o recurso à guerra pelo imperialis-
mo, continuação da guerra econômica em curso, como meio para sair
da crise, decorre de algum exagero é só ver as declarações de alguns

117
intelectuais que não podem ser acusados da mais leve simpatia pela esquerda.
Alain Touraine, sociólogo francês e diretor da Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais, em Paris, diz, em artigo, significativamente intitulado, “Da
dominação econômica à política guerreira”, publicado no “Caderno Mais”,
da Folha de S. Paulo, de 05/05/2002, que “A lógica que domina a política
norte-americana mudou de natureza: ela se tornou diretamente militar,
ao mesmo tempo conquistadora e disposta a destruir pela força o que lhe
resiste.”
E muito mais significativo, ainda, que a opinião de Touraine, é o artigo As
ameaças à recuperação, de David Halle, “Do «Financial Times»”, tradicional
órgão de imprensa do capital financeiro internacional, e que é, ainda, “econo-
mista mundial chefe da Zurich Financial Services”, que trata evidentemente
das ameaças à recuperação da economia dos Estados Unidos, uma das quais
é o aumento do preço do petróleo.
O abalizado porta-voz dos interesses americanos depois de observar que
as “peripécias militares” de Israel podem causar “adiamento desse plano,
mas não solapará a determinação norte-americana de remover Saddam
Hussein do poder”, termina seu artigo pontificando: “Assim que os Estados
Unidos derrubarem Hussein, porém, o preço do petróleo provavelmente
cairá tão criticamente quanto em 1991, o que deve preparar o cenário para
uma recuperação duradoura da economia global em 2003 e 2004” (Folha
de S. Paulo, 27/4/2002).
São afirmações como estas, de altos funcionários do capital, que não
deixam nenhuma dúvida: a guerra é para o imperialismo, e sempre foi, um
instrumento “natural” e necessário para resolver suas crises.
A política fascista e belicista é a resposta ao crescimento da luta de classes,
da necessidade de aumentar a exploração sobre a classe operária, sobre os
dominados e, principalmente, sobre os povos dos países dominados.
1.4 Intensifica-se a luta de classes
Contudo, a política belicista praticada pelos EUA não atende somente
aos seus interesses. Inglaterra, Alemanha e demais países imperialistas da
Europa, além do Japão, têm interesse em reanimar suas economias através
do incremento dos gastos militares e do mercado criado pela guerra, além
de disputar posições privilegiadas para o controle de matérias-primas e de
mercados, apesar das contradições que opõem EUA, Europa e Japão na
disputa por espaço econômico. Utilizando sua hegemonia militar, os EUA e
os países imperialistas iniciaram uma série de guerras de agressão, buscando
se contrapor à crise econômica que abertamente se instalou no conjunto
dos países imperialistas, guerras encobertas, agora, pelas Nações Unidas:
primeiro contra o Iraque, depois contra a Iugoslávia, contra a Somália, o
Afeganistão, etc.
Hoje, os países imperialistas, encabeçados pelos EUA, mantêm tropas em
dezenas de países: Afeganistão, Filipinas, Colômbia, Peru, em vários países
árabes, e planejam uma nova guerra contra o Iraque, continuando uma guerra
colonial contra os países dominados que nunca terminou e que mal encobre a

118
tentativa de aumentar a exploração de seus povos e garantir matérias-primas
e mercados. Os ataques ao Pentágono e às torres gêmeas só deram o álibi
para que os EUA, principalmente, e demais países imperialistas, acelerassem o
estabelecimento de um Estado policial fascista expresso na célebre declaração
de Bush à moda de Hitler: “Quem não está conosco está contra nós”. Estado
policial fascista, instrumento necessário para garantir o aumento da explora-
ção sobre os povos dos países dominados, sobre sua própria classe operária
e trabalhadores de todo o mundo. Aproveitando os ataques ao Pentágono
e ao World Trade Center, os países imperialistas assumiram abertamente a
política de terror de Estado que já vinham praticando, apressando a adoção
de uma política fascista e militarista como instrumento anticíclico diante da
crise econômica mundial, aumentando os gastos na indústria bélica com a
transferência de investimentos estatais da educação pública, saúde, seguridade
social, etc., para a reativação do complexo industrial-militar que tinha tido
sua importância reduzida com a restauração do capitalismo nos países que
iniciaram a construção do socialismo.
Os EUA e demais países imperialistas passaram a exercer de forma os-
tensiva um poder supranacional, desrespeitando os já estreitos limites da
soberania e do direito internacional estabelecidos em convenções e acordos
internacionais, impondo a sua lei a todos os países do mundo. Para isto,
passam a utilizar abertamente, como instrumentos de sua política, a ONU,
OEA, OMC, FMI, Banco Mundial, etc.
Os governos dos países imperialistas e seus asseclas nos países domina-
dos adotam poderes excepcionais, desqualificando os poderes judiciário e
legislativo de seus países, sem nenhuma preocupação com limites legais e
constitucionais.
Nos EUA se instalam tribunais de exceção que se colocam acima da le-
gislação penal ou processual, permitindo o uso da intimidação, de todas as
formas de pressão e até da tortura para a obtenção de informações e provas.
O novo fascismo caminha para a manutenção meramente formal do
Estado de “direito” e das liberdades “burguesas”, ampliando a esfera da
intervenção dos governos por cima dos limites estabelecidos no direito
público nacional e internacional.
Qualquer crítica ou divergência passa a ser caracterizada como impatri-
ótica. Através da inculcação maciça da ideologia dominante que procura
apresentar a luta de classes como luta entre a “civilização e a barbárie”
– “Quem não está conosco está contra nós” –, busca-se reprimir ou mes-
mo proibir o exercício dos direitos de livre expressão do pensamento, de
crítica, discussão, reunião, manifestação, tentando ocultar que a barbárie é
a continuação do capitalismo, cadáver insepulto que teima em assombrar
os povos de todo o mundo.
O agravamento da crise geral do capitalismo é a tendência objetiva de
desenvolvimento do imperialismo. Crise que vem se acentuando a partir dos
anos 70 e intensifica o conjunto das contradições do imperialismo, porém,
mais do que tudo, nesta fase, intensifica a exploração sobre os povos dos

119
países dominados, exploração que tem no caso da Argentina um exemplo.
É acentuando a exploração sobre os povos dos países dominados que neste
momento, principalmente, o imperialismo vai tentar contrarrestar sua crise 6.
Resumindo, podemos dizer que a fase atual do desenvolvimento do ca-
pitalismo, com a exacerbação da crise geral da economia mundial, atingindo
agora o “centro” da economia imperialista, a economia norte-americana,
resulta nas/produz as/seguintes tendências:
1 Tendência à constituição de Estados de caráter fascista, forma necessária
ao aparelho de Estado dos países dominantes nesta etapa da crise;
2 Tendência à adoção crescente, pelos países dominantes, de políticas
protecionistas, e fechamento dos mercados nacionais à concorrência em
setores considerados estratégicos, por razões políticas ou econômicas;
3 A economia americana tende a mudar sua posição hegemônica, primeiro
a hegemonia econômica e depois a militar, no sistema imperialista, incapaz
de continuar “dinamizando” o sistema;
4 Os outros blocos imperialistas, a UE e o Japão e sua área de influencia na
Ásia tendem a mudar sua posição relativa no sistema: crescimento da
UE e estagnação do Japão e da área sob sua dependência;
5 Para contrarrestar estas tendências o imperialismo norte-americano tende
a acentuar seu caráter belicoso. Constata José Luís Fiori em entrevista à
Folha de S. Paulo de 13/05/2001: “Existe uma mudança importante entre
as estratégias internacionais de Bush e Clinton… deve significar a troca de
um projeto de hegemonia mundial de tipo gramsciano por um projeto
de dominação nitidamente imperial.” Para manter sua hegemonia pela
superioridade bélica, os EUA acentuarão o uso da força na imposição
da política econômica que sirva aos interesses de seus capitais. E sobre
a ALCA diz Fiori: “O mais importante na ALCA é o poder, inclusive o
jurídico, que os Estados latino-americanos transferem para os EUA …”
6 O conjunto dos países imperialistas tende a usar a política belicista para
resolver sua crise econômica, para garantir os interesses de seus capitais e
manter e avançar na disputa de espaço econômico na economia mundial.
7 E, portanto, nesta etapa, a tentativa dos países imperialistas em contrar-
restar a crise tende a se fazer pelo aumento da exploração dos países
dominados, principalmente dos países estratégicos como fornecedores
de matérias primas, como petróleo, etc., ou dos países dominados que
constituem a periferia industrializada do imperialismo e que por sua
relativa industrialização foram passíveis de se submeter (os países pouco
industrializados ou sem indústria não podiam entrar da mesma forma no
ajuste) ao “ajuste neoliberal”, capazes, portanto, de sofrer um aumento
da exploração e se tornar, ainda, em fonte de maiores lucros.
8 O processo em curso na economia mundial é hegemonizado pelo capital
financeiro internacional que na montagem de um mercado financeiro
de “novo tipo” se alia aos setores financeiros das classes dominantes dos
6 Um dos mecanismos clássicos de saída das crises econômicas, em total acordo com a Lei
Geral de Acumulação Capitalista e o capítulo sobre fatores contrarrestantes a queda da
taxa de lucro, O Capital, Livro III.

120
países dominados que tem menores contradições com a nova etapa de
exploração de seus povos.
2 BRASIL
Já há dois anos vêm se agravando as dificuldades do governo FHC em
atender as pressões do imperialismo em ajustar o Brasil às sucessivas mudan-
ças porque passa o atual processo de “globalização” da economia mundial.
A destruição dos direitos que a classe operária e os trabalhadores haviam
conquistado na luta de classes, a transferência do setor produtivo e de
serviços que estava sob o controle do Estado para o capital monopolista
externo e interno, a mudança na forma de intervenção do Estado na eco-
nomia, criando as condições para favorecer a valorização do grande capital
financeiro, já não são suficientes para satisfazer a fome de lucro do capital
que exige que se aprofunde a desregulamentação e a abertura da economia,
que se eliminem os últimos resquícios da legislação trabalhista, para permitir
que seus capitais garimpem novas oportunidades de lucro. A exploração a
que esta sendo submetido o Brasil, se aproxima do limite da capacidade do
país e seu povo suportar o aprofundamento da crise econômica e social. Daí
que economistas, políticos e jornalistas burgueses apontem, se mantida a
política imperialista/FHC, o desastre da Argentina como “advertência” e a
ameaça de fujimorização como solução.
O Brasil esta “murchando”. Esta é a avaliação de Antonio Delfim Netto,
deputado federal pelo PPB, ex-PDS, ex-Arena, ex-Ministro da Fazenda dos
generais na ditadura militar, na entrevista que concedeu a Elio Gaspari,
publicada na Folha de S. Paulo, em 12/05/2002: “O Plano Real foi o progra-
ma de estabilização mais caro do mundo, e quem pagou esse preço foi a
sociedade brasileira. Brilhante na concepção, desandou em 1998, mas foi
salvo pelo governo americano, que jogou o socorro do FMI em benefício
da reeleição de FHC… Tivemos um desemprego praticamente constante
de 7,5%… Estamos entrando num período de instabilidade econômica, …
Vamos fingir que não temos uma dívida interna líquida equivalente a 55%
do PIB e que não estamos obrigados a trazer US$ 1 bilhão de investimentos
externos por semana. O governo comemora como vitória o fato de termos
conseguido um superávit comercial de US$ 1,5 bilhão. Ele foi obtido por meio
de uma queda de 21% nas importações, num período em que as exportações
caíram 11%. Ou seja, estamos vendendo pouco e comprando menos ainda.
Isso não é sinal de saúde, a economia está murchando.”
Só para ficar em alguns exemplos, vamos analisar a evolução da economia
no período FHC referentes ao que os áulicos chamam de, “bons fundamen-
tos” da economia.
A dívida líquida do setor público como um todo (incluindo União, Estados,
municípios e empresas estatais), que era inferior a 30% do PIB em fins de
1994, alcança atualmente 55% do PIB, como diz Delfim.
Apesar de que o governo, exatamente para liquidar esta dívida, tenha
recorrido a duas medidas extremas e que afetam como um todo a capaci-
dade de crescer da economia.

121
Primeiro, um grande aumento da carga tributária somada a um enorme
corte nos gastos públicos, principalmente na área dita social.
Segundo, da realização do que alguns chamaram de “o maior programa
de privatização do mundo”, que hoje, depois das notícias em torno do leilão
da Vale sabemos que foi o maior e mais corrupto programa de privatização
do mundo, que não só livraria o governo de empresas “deficitárias” como
traria para seus cofres os milhões de dólares capazes de resgatar a “dívida
social” desde o descobrimento.
Ao contrário, nestes sete anos, a dívida do governo federal em títulos,
excluindo os papéis na carteira do Banco Central, subiu mais de 10 vezes, de
R$ 61,8 bilhões em dezembro de 1994 para nada menos que R$ 626,3 bilhões
em março de 2002.
Oitenta por cento desta dívida é composta de títulos pós-fixados, com
remuneração pela taxa de juros de curto prazo, ou de papéis cambiais,
indexados à variação do câmbio. Isso deixa a economia brasileira entregue
as oscilações e a especulação com a taxa de juro e de câmbio.

Tabela 9 · Composição atual da dívida interna


Título (tipo de correção) Participação
Pós-fixados (correxão pela Selic) taxa básica de juros 51,17%
Câmbio 28,68%
Total 79,85%
Fonte: ANDIMA

Entre 1995 e 2001, o aumento líquido da dívida externa e dos demais


passivos do Brasil foi da ordem de US$180 bilhões – medido pelos déficits
acumulados no balanço de pagamentos em conta corrente – em larga medida
como resultado da combinação de sobrevalorização cambial (até 1998) e da
grande abertura do mercado interno às importações.
Em consequência do aumento do passivo externo, o Brasil suporta hoje
uma pesada carga de pagamentos ao exterior. As despesas líquidas com os
juros da dívida externa e a remessas de lucros e dividendos totalizaram US$
19,8 bilhões em 2001, e as amortizações do principal da dívida chegaram a US$
35,2 bilhões. Tudo de acordo com as estatísticas do Banco Central do Brasil.
Apesar de que esta política do imperialismo atinja de forma diferente os
diversos setores das classes dominantes, com exceção de alguma manifes-
tação formal de discordância, estas vêm se mostrando coesas na aplicação
da política do imperialismo, mesmo que disputem, de forma selvagem, para
decidir quem vai administrar a crise neste novo período.
Como já vimos apontando há algum tempo, a política do imperialismo
para contrarrestar sua crise resulta, para os países dominados, em uma
regressão a um colonialismo de novo tipo, processo que, se até o momento
teve a aceitação das diversas parcelas das classes dominantes, exige, para o
seu estabelecimento nesta nova etapa, de uma maior coesão no bloco de

122
classes no poder, necessária para implantar um Estado policial autoritário
capaz de garantir o aumento da repressão sobre as classes dominadas,
indispensável para assegurar maiores níveis de exploração, mantendo for-
malmente a “democracia burguesa”.
A necessidade da constituição de um novo arranjo do bloco no poder
capaz de levar a cabo a nova etapa da política do imperialismo, implica o
deslocamento para posições subalternas de setores da classe dominante e
resulta na luta em torno da composição da frente eleitoral que vai disputar
o governo que terá como tarefa aprofundar a exploração sobre o povo e
a classe operária brasileiros exigida pelo imperialismo. As dificuldades em
negociar um novo pacto em torno da conformação de um “novo” bloco no
poder vão determinar a forma do regime que vai dirigir o país, e nisto influi:
Primeiro, a luta de classes, expressa no descontentamento das classes
dominadas, que ameaça levar ao governo, nas eleições, um candidato
que apesar de seu esforço não consegue se tornar confiável às classes
dominantes brasileiras, muito menos para o capital externo.
Segundo, as contradições entre os setores dominantes que fragilizam o
processo de eleger o gerente de plantão. É verdade que estas contradições,
mesmo secundárias, vêm à tona diante do recuo das classes dominadas.
Se estas iniciam um movimento de contestação, mesmo que se expresse
no campo eleitoral, as classes dominantes se coesionarão, como já ensaiam
fazer, para impedir mesmo a mais remota ameaça de ter um “estranho”
no governo. 7 E então as classes dominantes podem tentar mais cedo
uma saída pela continuidade do atual arranjo, a fujimorização, ou, se a
correlação de forças não permitir, inviabilizar um governo não confiável.
Não obstante as disputas no interior das classes dominantes, não foi
possível para a classe operária se reunificar e retomar a ofensiva diante do
avanço de novas formas de exploração impostas pelo imperialismo, apesar
da insatisfação generalizada expressa na rejeição ao candidato oficial e na
decisão de votar contra o governo.
É assim que já há dois anos se acentua o recuo na luta dos trabalhadores
e da classe operária. Trabalhadores urbanos, camponeses, operários viram
suas organizações de classe, mesmo as mais combativas, adotar uma política
de recuo e concessões.
A nosso ver, a primeira e principal razão do recuo das classes dominadas na
luta de classes é a hegemonia do reformismo, de correntes social-democratas
e da igreja sobre a organização política e sindical das classes dominadas
e, portanto, a ausência da perspectiva revolucionária para a sua luta. As
organizações que no Brasil reivindicavam o marxismo, que já haviam sido
afetadas pela cisão do movimento comunista e pela resposta equivocada
ao golpe militar de 1964, foram duramente atingidas pela desagregação da
União Soviética, ficando, a partir do início dos anos 80, a reboque do partido
e da organização sindical que hegemoniza a vanguarda dos trabalhadores.
7 Lula não representou um “estranho”, ao contrário, como hoje é de conhecimento público,
seu governo (em seus dois mandatos), seu partido e aliados, progressivamente superaram
a desconfiança das classes dominantes [nota da edição].

123
A longa hegemonia política e ideológica sobre os trabalhadores de um
amálgama de reformismo, social-democracia e de correntes ligadas à igreja
ao lado de grupos trotskistas – que têm na via eleitoral sua única estratégia
e tática – sobre as organizações políticas e sindicais das classes dominadas,
além de minar sua unidade e disposição de luta, facilitou a inculcação nelas
da ideologia dominante – o individualismo, o egoísmo, o estímulo à con-
corrência – num momento de crise econômica no qual a resistência dos
dominados está minada pelo desemprego e por um exército de miseráveis.
O desemprego e a queda dos rendimentos, principalmente entre os
assalariados, fundamentalmente porque atingiu os setores mais combativos
dos trabalhadores e da classe operária, e o aumento da população abaixo do
nível de pobreza, somada a violenta repressão a todo movimento sindical
mais combativo, foi outro elemento que contribuiu para o recuo dos traba-
lhadores. Acossados entre a queda contínua de seus salários, o desemprego
crescente e uma multidão de desempregados, exército sempre a postos para
ocupar um lugar no trabalho a qualquer preço, a classe operária, destituída
de uma vanguarda consequente, se vê encurralada e obrigada a aceitar a
política reformista e defensiva da “sua” organização política e sindical, cen-
trais e sindicatos, todos atolados até as orelhas no mais deslavado cretinismo
eleitoral, abandonando, ou melhor, virando as costas para a luta sindical e
política mais combativa.
Só na grande São Paulo, segundo pesquisa Seade/Dieese, Pesquisa de
Emprego e Desemprego (PED), Folha de São Paulo 28.05.2002, o desemprego
alcançou em maio um milhão e novecentas mil pessoas, 285 mil pessoas
desempregadas a mais do que em abril, 20,4 % da PEA, o maior índice de
desemprego na Grande São Paulo desde 1985 quando se iniciou a pesquisa.
Ao mesmo tempo a taxa de rendimento médio mensal dos ocupados na
mesma região caiu em maio de 11,2% em relação a março. O mesmo se dá
em todo o Brasil. De acordo com a Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE,
a renda total das pessoas ocupadas, de fevereiro a março deste ano, caiu
em 5,7%, enquanto o Brasil só perde para a Índia em desemprego, 11,454
milhões de desempregados em 2000, de acordo com pesquisa de Márcio
Pochmann, “Globalização e Desemprego”, e é bom lembrar que quando
FHC subiu ao poder os desempregados eram pouco mais de 2 milhões. Esta
é também uma das razões do recuo da classe operária. Em 1990, primeiro
ano do governo Collor em que abertamente começou a ser aplicada a
política neoliberal, 12,4 milhões de trabalhadores fizeram greve no Brasil,
no ano seguinte o número de grevistas caiu para 8,8 milhões e em 1992, 2,9
milhões. A partir de 1994, o número de grevistas nunca mais ultrapassou
2,5 milhões, menos de um quinto dos trabalhadores que fizeram greve nos
primeiros anos da década de 90.
É assim que, tendo de enfrentar a classe dominante – no principal, coesa
na aplicação da política do imperialismo – a classe dominada empurrada
contra a parede pela repressão, pelo desemprego e pela ampliação do
exército de reserva, milhões que vivem abaixo do limite de pobreza, vê as

124
organizações que dizem lhe representar, partidos e organizações sindicais,
inteiramente dominadas pelo eleitoralismo, obcecados pela miragem de
assumir o governo da República, subordinando a este objetivo a luta de
classes, no temor de assustar os eleitores, principalmente os das camadas
médias, abrindo mão de qualquer luta mais combativa.
A experiência da Argentina só vem comprovar a tese que defendemos.
Na análise das organizações revolucionárias argentinas, o “Argentinazo” foi
a coroação de um movimento de massas de caráter espontâneo funda-
mentalmente, o que se de um lado comprova o heroísmo das massas, de
outro, denuncia os limites de sua direção política. E os camaradas argentinos
não têm dúvidas em apontar que, no geral, as organizações políticas que
se arrogam a responsabilidade de vanguardear a luta de classes estão na
maioria dos casos dominadas pelo reformismo, pela social-democracia e
pelo eleitoralismo.
Cumpre-nos aprofundar nossa compreensão da teoria marxista-leninista,
aprofundar nossa análise da conjuntura nacional e internacional, analisar
a atual etapa pela qual passa a crise do imperialismo e como se dá nela a
inserção de nosso país, analisar a conjuntura nacional compreendendo que o
imperialismo e seus asseclas internos são nossos inimigos principais e, assim,
lutar para construir a vanguarda da classe operária para assumir a direção
das classes dominadas na luta de classes.
A alternativa que coloca o imperialismo é falsa. A argentinização é a
principal comprovação disto, pois em poucos países, como na Argentina,
se aplicou com tanto zelo e diligência a política do imperialismo. E não é a
fujimorização que nos livrará da argentinização.
O Brasil não tem outro caminho para sair da crise se não o que o leva,
sob a direção de seu partido revolucionário, a um governo que expresse
uma nova aliança de classes que tenha no seu centro a classe operária, e que
assim, possa romper com a submissão ao imperialismo e iniciar a construção
de uma nova sociedade.

125
A crise do imperialismo expressa o agravamento
de todas as suas contradições 1

A crise do imperialismo expressa o agravamento de todas


as suas contradições, principalmente da contradição entre
a burguesia e o proletariado, da luta de classes, manifesta/
expressa na dificuldade da retomada da taxa média de lucro,
implicando/desdobrando-se no agravamento da contradição
do imperialismo com os povos dos países dominados e, cada
vez mais, da contradição interimperialista.

Estamos vivendo nos primórdios da barbárie capitalista, de um mundo


que não se parece em nada com a sociedade sem classes, o “reino da liber-
dade”, apontada por Marx e Engels e que a classe operária iniciou a cons-
truir, na luta de classes, iluminada pelo marxismo-leninismo, construindo
o socialismo, lutando pelo comunismo.
Vimos afirmando que o imperialismo 2 vem vivendo uma longa crise, crise
de sobreacumulação de capitais e superprodução de mercadorias que, dife-
rente das outras vezes, vem se estendendo continuamente – com períodos
cada vez mais curtos de recuperação e mais longos de recessão – a partir da
grande crise que atingiu toda a economia mundial capitalista nos inícios dos
anos 1970. Processo de crise e integração da economia mundial que se dá em
meio a tais antagonismos que agravam todas as contradições do sistema.
A alternativa encontrada pelo imperialismo para sua crise foi de, por
um lado, produzir uma gigantesca máquina de especulação nos “mercados
financeiros” para remunerar os capitais sobreacumulados e, ao lado disto e
num mesmo movimento, reconfigurar a estrutura produtiva da economia
mundial.
A especulação nos «mercados financeiros»
Podemos constatar o fantástico crescimento dos “mercados financeiros”
a partir da crise de 1973/1975 nos gráficos 1, 2 e 3 que nos mostram a evolução
do Índice Dow Jones Industrial Average (DJIA), da Bolsa de Nova Iorque.
Esse índice é o mais utilizado por “analistas” e se refere ao desempenho das
30 principais ações negociadas nesta bolsa. Essa amostra é atualizada periodi-
camente, sendo uma das expressões do processo que vimos apontando: uma
permanente e contínua sobreacumulação na esfera financeira de capitais
que não encontram aplicação no setor produtivo à taxa média de lucro.
O Gráfico 1 mostra a evolução do Índice Dow Jones desde 1896 até
17 de agosto de 2006. Podemos observar (com o uso de uma lupa), talvez por
volta de 1924 ou 1925, o início do processo especulativo que leva à formidável

1 Texto de outubro de 2006.


2 Ver a definição de imperialismo no texto E agora?.
crise na economia mundial de 1929. A subida lenta e a queda brusca em 1929.
Da mesma forma com a crise de 1973/1975-76. Os níveis de 1973 só vão ser
retomados em 1976, portanto após três anos de crise, de queda da bolsa. E
também o início da escalada especulativa atual, no começo dos anos 1980,
com seus trancos e barrancos, como em 1987 e 2001-2003. Estes movimentos
são incomparavelmente maiores que aqueles de 1929, pelo ritmo e volume
de capitais jogados na especulação.

Gráfico 1. Evolução do índice Dow Jones Industrial Average


desde 1896 até agosto de 2006

12.000
2001 - 2003
10.000

8.000

6.000
1987
4.000
1973
Crise de 1929
2.000

0
1896
1900
1904
1909
1912
1916
1620
1924
1929
1932
1937
1941
1946
1949
1953
1957
1961
1966
1969
1973
1977
1981
1985
1989
1993
1997
2001
2005
Elaboração própria. Fonte: www.dowjones.com

O Gráfico 2, com dados de 1900 a 1954, mostra, até 1922, um período


cheio de altos e baixos, com as ações chegando a 100 pontos, depois caindo
a 50 (metade do valor anterior!), depois indo a 100 novamente. A partir de
1924 e até 1929, uma escalada especulativa até então sem precedentes. De
setembro de 1929 a julho de 1932, as ações caem para um oitavo do valor
anterior, de quase 400 para 50. Novamente aos trancos e barrancos (escalada
até 1936, queda em 1937-38, subida entre 1942 e 46, queda e estagnação até
1949, e subida posterior) vemos que o índice atingido às vésperas da crise
de 1929 só será alcançado ao final de 1954, um quarto de século depois.

Gráfico 2. Detalhe da evolução do índice DJIA entre 1900 e 1954


400

350

300

250

200

150

100

50

0
1900
1902
1904
1906
1908
1910
1912
1914
1916
1918
1920
1922
1924
1926
1928
1930
1932
1934
1936
1938
1940
1942
1944
1946
1948
1950
1952
1954

Elaboração própria. Fonte: www.dowjones.com

Em seguida, o Gráfico 3 com dados de 1990 até 2006, mostra a atual

127
escalada da especulação. Percebe-se que o gráfico é bastante diferente do
anterior. Os movimentos de “correções” das quedas são muito menores e
mais curtos. Não obstante, há uma queda em 1998 3, um período de muita
volatilidade e sem tendência definida de 1999 a 2001, crise até o final de
2002 e início de 2003 e depois crescimento.
É importante notar que o pico atingido pela bolsa em 2000 só foi re-
tomado em maio de 2006, um intervalo de seis anos, após um período de
quedas que vai até meados de 2003 e uma escalada oscilante de três anos.

Gráfico 3. Detalhe da evolução do índice DJIA entre 1990 e agosto de 2006


12.000
11.000
10.000
9.000
8.000
7.000
6.000
5.000
4.000
3.000
2.000
02.01.1990
02.07.1990
02.01.1991
02.07.1991
02.01.1992
02.07.1992
02.01.1993
02.07.1993
02.01.1994
02.07.1994
02.01.1995
02.07.1995
02.01.1996
02.07.1996
02.01.1997
02.07.1997
02.01.1998
02.07.1998
02.01.1999
02.07.1999
02.01.2000
02.07.2000
02.01.2001
02.07.2001
02.01.2002
02.07.2002
02.01.2003
02.07.2003
02.01.2004
02.07.2004
02.01.2005
02.07.2005
02.01.2006
02.07.2006
Elaboração própria. Fonte: www.dowjones.com

É a possibilidade de fuga e valorização do capital na especulação, sem


que as crises nesta esfera financeira afetem de modo determinante o
setor produtivo, como em 1929, o que vem permitindo que não se torne
explosiva a permanente e contínua sobreacumulação de capitais que não
encontram aplicação no setor produtivo à taxa média de lucro.
É o processo de construção e sustentação de uma máquina de valoriza-
ção financeira – e vamos aqui avançar uma tese: a construção de Aparelhos
Internacionais a serviço da reprodução do sistema imperialista, tradução
na superestrutura do processo de formação de uma economia capitalista
mundial cada vez mais integrada, o imperialismo –, que vem permitindo o
processo que analisamos de valorização de capitais no “mercado financeiro”.
Aparelhos para executar aquilo que os economistas burgueses chamam de
“governança” na economia mundial.
Sem estes Aparelhos, a valorização do capital no “mercado financeiro”
não poderia se dar sem uma crise que se generalizasse para a economia
como um todo e para toda a economia mundial. O que quer dizer, crise
que inviabilizasse a “máquina financeira” enquanto espaço de valorização e
que estendesse seus efeitos ao setor produtivo, a indústria.
Processo de construção e sustentação de uma máquina de valorização
financeira, de Aparelhos Internacionais a serviço da reprodução do sistema, da
mesma forma que o período da passagem da livre concorrência ao monopólio

3 Quebra do fundo de hedge dos dois prêmios Nobel, o Long Term Capital Management,
LTCM.

128
levou a que trustes, cartéis se fundissem 4 com o Estado, permitindo, assim,
que agora o Estado, diretamente a serviço desses mesmos monopólios,
passe a construir instrumentos, Aparelhos Internacionais, capazes de, mo-
mentaneamente, intervir na economia para contrarrestar a queda da taxa
de lucro, sem, contudo conseguir se sobrepor às contradições do sistema.
Processo que toma corpo a partir de Bretton-Woods, em julho de 1944,
onde foram constituídos Aparelhos Internacionais a serviço do sistema
da economia capitalista mundial, como o Banco Internacional para a
Reconstrução e Desenvolvimento (International Bank for Reconstruction
and Development – BIRD), conhecido também como Banco Mundial, e o
Fundo Monetário Internacional (FMI), ao que se somam a ONU com seu
pequeno clube de membros permanentes, o Conselho de Segurança, a
OEA, a OCDE, a OMC, a OTAN e uma série de acordos militares e, por fim,
o G-7 que, com seus encontros semestrais, chegou a ambicionar regular e
harmonizar a economia capitalista global.
A reestruturação do setor produtivo
Aprofundamento da crise
Somada à especulação financeira, para contrarrestar sua crise, inicia-se na
economia mundial um processo de reestruturação que se desdobra em três
movimentos: primeiro, com as políticas neoliberais tenta-se rebaixar o preço
da força de trabalho tanto nos países imperialistas quanto nos dominados;
depois, inicia-se a redistribuição das estruturas produtivas dos países domi-
nantes, mantendo os setores intensivos em tecnologia nos países capitalistas
imperialistas, transferindo os intensivos em força de trabalho para países
dominados onde seu preço compensasse os custos de transferência; e, por
fim, depois da experiência no México, inicia-se o processo de transferência
da indústria dos países imperialistas para a China, processo liderado pelos
EUA. Movimento que Delfim Netto define em artigo à revista Carta Capital 5
como, “… uma revolução no processo produtivo mundial…” e que, mesmo
tendo proporcionado, segundo ele, “um maior crescimento da economia
mundial nos últimos anos…”, representa somente uma solução momentânea
que, ao mesmo tempo em que permite um “maior crescimento” da economia
capitalista, no mesmo e único movimento faz crescer os fatores que leva-
rão ao aprofundamento da crise: o aumento da composição orgânica do
capital, a queda da taxa de lucro, a sobreacumulação e a superprodução.
O aumento da composição orgânica do capital, a queda da taxa de
lucro, a sobreacumulação e a superprodução levam a um agravamento das
contradições do sistema imperialista: da contradição fundamental – bur-
guesia/proletariado; contradição imperialismo/classes dominantes aliadas
e povos dos países dominados; contradição interimperialista e finalmente
contradição capitalismo e socialismo. Assim, vejamos:
1 Agravamento da contradição fundamental
4 LENIN, V.I. O imperialismo, fase superior do capitalismo. Obras Escolhidas. Tomo 1. São
Paulo, Editora Alfa Omega, 1979, p. 575.
5 Revista CARTA CAPITAL. Política, Economia e Cultura. Ano XII nº. 389, 19 de abril/2006.

129
A solução encontrada agrava a contradição fundamental do sistema
capitalista, a contradição capital/trabalho, a contradição burguesia/
proletariado na China, nos países dominados, nos países imperialistas.
Agudização da luta de classes por todo o mundo, contradição que tem
como uma de suas expressões a tendência à queda da taxa média de
lucros.
Agrava a contradição burguesia/proletariado nos países imperialistas
porque esse movimento para a China representa o encerramento de
indústrias, a “deslocalização”, o aumento do desemprego, o recurso à força
de trabalho barata dos imigrantes para realizar as tarefas indispensáveis
em setores da produção ou circulação que, por diversas razões, não
podem ser transferidos dos países imperialistas.
E nos países dominados porque se constitui em alavanca no processo de
rebaixamento do valor da força de trabalho, não só pela concorrência
de mercadorias fabricadas na China, mas também pelos efeitos da re-
organização na estrutura econômica, social e política dos demais países
dominados, alterando a posição das classes e frações de classes no bloco
de classes no poder com a ascensão das frações ligadas objetivamente
aos interesses do imperialismo.
2 Agravamento da contradição entre imperialismo/classes dominantes
aliadas e povos dos países dominados
Como desdobramento do agravamento da contradição fundamental do
sistema, processo que vai levar à necessidade de reconfigurar a economia
mundial, se agrava a contradição entre a burguesia dos países imperialistas
e seus aliados – as classes dominantes dos países dominados – frente
aos povos destes países.
Expressão de suas tendências intrínsecas – o agravamento da luta de
classes, queda da taxa média de lucro, etc. – o imperialismo busca resolver
sua crise aumentando a exploração da classe operária e dos povos dos
países dominados, nas condições internas que lhes são próprias, daí as
diferenças no processo em relação ao Brasil e à China.
Exemplos desta segunda tendência – tendência para o aumento da
exploração da classe operária e dos povos dos países dominados –, na
América Latina, são as tentativas de aplicar a política neoliberal, como
nos casos que levaram à crise na Argentina e no Brasil as políticas de
Collor, FHC e hoje Lula.
E também a exploração da força de trabalho barata, quase escrava, na
China, Índia, Ásia, etc., movimento que hoje se coloca no centro do
processo de reconfiguração da economia mundial, daí porque vamos
nos estender em analisá-lo, buscando a comprovação empírica para
nossa análise.
- A exploração da força de trabalho chinesa -
É possível comprovar, a partir dos dados coletados por Maurício Mesquita

130
Moreira em seu estudo, “O desafio chinês e a indústria na América Latina” 6,
que a queda da participação da indústria no PIB não é uma questão especi-
ficamente brasileira, mas representa um processo de ajuste, por diferentes
razões, dos países dominados e mesmo em alguns países dominantes, às
determinações resultantes da reorganização da economia mundial.
Moreira, depois de ressaltar para a América Latina:
… que após mais de uma década de liberalização comercial,
aproximadamente 20% do PIB da região ainda é produzido
no setor manufatureiro e que países como Brasil e México
são exportadores expressivos de produtos manufaturados.
(p. 24).
Vai constatar que, apesar do peso ainda significativo da indústria, vivemos
um processo que os economistas vão chamar de “desindustrialização” e que
denominamos de regressão:
É verdade que a participação da indústria no PIB tem de-
clinado rapidamente, que produtos intensivos em recursos
naturais ou trabalho ainda dominam as pautas de exportação
e que a América Latina tem tido enormes dificuldades de
competir com o Leste Asiático. (p. 24).
A partir do trabalho de Moreira verificamos que, mesmo para economias
como as da Argentina, Brasil e México, as que alcançaram maior índice de
industrialização na América Latina, depois de um longo processo em que se
dá um aumento da participação da indústria no PIB seguido de período de
estabilização, se inicia em todas elas, em datas diferentes, um processo de
queda contínua desta participação, expressão do processo de transferência
das filiais das indústrias dos países dominantes para a Ásia.
No caso dos países dominados é a indústria dos países imperialistas
que se desloca em busca de força de trabalho barata e maior taxa de lucro,
deixando nestes só o desemprego e os vazios.
No Gráfico 4, retirado do mesmo trabalho, podemos constatar a diferença
do valor da força de trabalho – na economia mundial expresso em dólares
– entre países da América Latina, entre eles o Brasil, e a China. Podemos
também observar, o crescimento do valor da foça de trabalho no México,
crescimento contínuo de 1996 a 2002; e a queda contínua deste valor no
Brasil e, por fim, o crescimento também contínuo do preço da força de
trabalho também na China.

6 MOREIRA, Maurício Mesquita. O desafio chinês e a indústria na América Latina. Revista


Novos Estudos, CEBRAP, nº. 72, julho 2005, p. 21-38.

131
Gráfico 4. Salário médio anual na indústria, em US$1000, correntes

0
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002
Mexico Brasil Colombia China
Fonte: Ver nota 6

Nota-se ainda, pelo mesmo gráfico, que o salário médio anual na indústria,
que em 1996 correspondia no Brasil a mais de sete vezes este valor na China,
se reduz em 2002 a praticamente três vezes tal valor, levando-se ainda em
conta que no mesmo período o valor do salário médio anual na indústria
na China quase dobrou.
Moreira, respondendo à seguinte questão “Por que a China é um desafio
para a indústria na América Latina?”, afirma:
Com uma população de 1,3 bilhão de pessoas e uma força
de trabalho de 640 milhões, vivendo e trabalhando em um
ambiente com recursos naturais limitados, a China tem
imensas vantagens comparativas em produtos intensivos
em mão-de-obra. Tal abundância de trabalho se traduz em
salários que se situam em níveis bem abaixo daqueles pra-
ticados na América Latina. O gráfico 4 [2 em seu trabalho],
por exemplo, compara os salários das indústrias chinesa,
brasileira, mexicana e colombiana. Como se pode ver, mesmo
em um ano favorável como 2002, momento de expressiva
desvalorização cambial, os salários no Brasil eram o triplo
dos praticados na China. No caso do México, os salários
chegavam a ser cinco vezes mais altos. (p. 27)
O que nos permite levar em conta as afirmações de uma fonte improvável
como a revista Veja 7, afirmações que podemos cotejar com outras fontes 8:
Nos Estados Unidos, uma hora de trabalho de um operário
custa 37 dólares. Na indústria automobilística chinesa sai por
menos de 2 dólares (no Brasil é o triplo disso)… há também

7 Revista VEJA. Reportagem Especial: CHINA. Edição 1968 – ano 39 – nº. 31, 9 de agosto de
2006.
8 VIEIRA, Flávio Vilela. China: crescimento econômico de longo prazo. Rev. Econ. Polit., v. 26,
no. 3, São Paulo July/Sept. 2006.

132
vários prédios de dormitórios, onde moram 70% dos 15.000
funcionários. É o que há de comum nas fábricas chinesas:
como quase todos os operários são migrantes, eles moram
nesses quartos de graça [sic]. (Veja p. 150).
E mais:
Em outras fábricas pelo país [China], mesmo nas que produ-
zem para multinacionais de ponta, encontram-se operários
que recebem 50 dólares por mês e enfrentam um batente
de 15 horas diárias (Veja p. 151).
O mesmo se dá quando se trata da produtividade.

Gráfico 5. Produtividade do trabalho na manufatura – China, Brasil,


Colômbia e México (valor adicionado por trabalhador: 1992=100)
350

300

250

200

150

100

50

0
1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002

China (defator implícito) China (IPA) Colombia


Brasil Mexico
Fonte: Ver nota 6

Como se pode ver, no Gráfico 5, num período de dez anos, enquanto a


produtividade do Brasil vai do índice 100 a 130, da mesma forma como para
o México, na China a produtividade mais do que triplicou.
Buscando explicação para o processo, Moreira afirma que:
É verdade que isso pode ser simplesmente o reflexo dos eleva-
dos níveis de investimentos chineses (em média 40% do PIB
na última década), os quais elevam a relação capital-trabalho.
(p. 29).
É esclarecedor ver, pelo Gráfico 6, o crescimento da participação da China
nas exportações mundiais de manufaturados. Ao mesmo tempo em que cai
a participação da América Latina e do Caribe.
Puxada pelo México, a América Latina tenta iniciar uma recuperação de
suas exportações na década de 1990 e, como podemos observar, seu desem-
penho fica muito aquém do chinês, que já em 2002 atinge uma participação
do mercado mundial duas vezes maior que a mexicana.

133
Outro ponto importante a observar é a distância crescente entre a par-
ticipação da Ásia e da América Latina nas exportações.

Gráfico 6. Participação nas exportações mundiais de manufaturados. Países


e regiões selecionados, 1981-2002, em porcentagem.
18

15

12

0
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
China E. Ásia excl. China ALC México ALC excl. México

Fonte: Ver nota 6

Daí que a China venha tomando, cada vez mais, espaços no mercado
mundial antes ocupados pelos países da América Latina.
E é importante notar que a cada ano as perdas da América Latina no
mercado mundial aumentam em proporção ao crescimento das exportações
chinesas. Como podemos ver, 0,6% em 2000, 0,8% em 2001 para 1,5% em
2002, quase dobrando a participação da China, para em 2003 atingir 2,3%
(Gráfico 7).

Gráfico 7. Perdas anuais da América Latina para a China, em percentual das


exportações do ano corrente, entre 1990 e 2003.
2,3%

2,5%

2,0%
1,5%

1,5%
0,8%
0,8%

1,0%
0,6%
0,4%

0,4%

0,3%

0,3%

0,3%

0,5%
0,2%

0,2%
0,1%

0,1%

0,0%
1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

1990-2003

Fonte: Ver nota 6

134
3 Agravamento da contradição interimperialista
Como desdobramento do agravamento de sua contradição fundamental,
se acirra a contradição interimperialista.
Agravamento da contradição entre os países dominantes como resultado
do acirramento da luta de classes, da resistência da classe operária na luta de
classes, da queda da taxa de lucro, dos limites encontrados para aumentar
a exploração dos povos dos países dominados.
De outro modo, o que estamos dizendo é que diante:
a) da tendência ao aguçamento da contradição burguesia/classe operária,
contradição fundamental do modo de produção capitalista, da luta de
classes;
b) da tendência à queda da taxa média de lucro;
c) da dificuldade cada vez maior de recorrer ao “comércio exterior”, ao
mercado externo, ao aumento da exploração dos países dominado;
d) para aumentar ou manter a taxa média de lucro, os países imperialistas
só tem à sua frente uma nova partilha do mundo “… «segundo a for-
ça»;…” de cada país imperialista “… qualquer outro processo de partilha
é impossível no sistema da produção mercantil e no capitalismo.”, como
já mostrava Lenin.
O acirramento da contradição interimperialista se expressa na radica-
lização da concorrência/contradição entre a burguesia dos diversos países
imperialistas, entre frações ou setores dos diversos ramos da produção
e circulação de mercadorias, trustes e cartéis. Concorrência para manter
mercados e áreas de influência, controle sobre fontes de energia e matérias-
-primas. Concorrência na disputa de vida e morte por manter a taxa de
lucro, garantindo novas esferas de valorização do capital. Repetindo Lenin4:
Os capitalistas não partilham o mundo levados por uma
particular perversidade, mas porque o grau de concentra-
ção a que se chegou os obriga a seguir esse caminho para
obterem lucros;… (p. 631).
4 Agravamento da contradição capitalismo/socialismo
Como manifestação da contradição fundamental burguesia/proletariado
se coloca e agrava a contradição capitalismo/socialismo expressa nas tentati-
vas de destruir todas as experiências que hoje buscam construir o socialismo.
Na tradição marxista, já é clássica esta enumeração das contradições do
imperialismo, da economia capitalista mundial. Contradições que têm de ser
compreendidas em sua especificidade e unidade, suas interações recíprocas
como desdobramentos da luta de classes, da contradição fundamental do
capitalismo: a contradição burguesia/proletariado, que ainda mais se des-
dobra em concorrência/contradição entre as diversas frações da burguesia.

135
Conjuntura: o agravamento da contradição do imperialismo com
os povos dos países dominados e, cada vez mais, da contradição
interimperialista
Buscando fazer a análise concreta da conjuntura concreta da crise do
sistema imperialista, poderíamos dizer que a longa crise estrutural que
o imperialismo vem vivendo é profunda e generalizada e se torna mais
aguda ao golpe de cada crise conjuntural, crise num país, num setor da
economia, numa Bolsa, levando o sistema, em busca de contrarrestar sua
crise, a aprofundá-la.
Parodiando o Manifesto, podemos dizer que além do fantasma do comu-
nismo, da luta de classes, outro fantasma percorre hoje a economia capitalista
mundial, o fantasma da sobreacumulação de capital e da superprodução de
mercadorias, levando a crise aos “mercados financeiros” e ao setor produtivo,
consequência e causa da queda da taxa média de lucro.
Porque, como dissemos, o desenvolvimento do imperialismo desde a
crise de meados dos anos 1970 vem resultando em:
1 Uma permanente sobreacumulação de capitais – expressa na subida
das Bolsas, como no exemplo da Bolsa de Nova Iorque mostrado
acima, e em sucessivas crises controladas até agora pela intervenção
dos Aparelhos Internacionais do imperialismo: FMI, Banco Mundial
e pelos governos e bancos centrais dos países imperialistas, (G-7).
2 Na diminuição das possibilidades de aplicação desses capitais no setor
produtivo, mantendo-se a taxa média de lucro, levando a que esses
capitais se refugiem no “mercado financeiro” ou busquem aplicação
em qualquer rincão do mundo onde seja possível diminuir o custo
da força de trabalho, como no momento atual “os formidáveis inves-
timentos físicos…” realizados na China, como os classifica Delfim em
seu artigo à Carta Capital 9.
E também porque há uma superprodução de mercadorias, expressão da
sobreacumulação de capitais e limite à sua aplicação no setor produtivo.
E, pressionados pela superprodução de mercadorias, pelos limites de seu
próprio mercado e do mercado externo, os monopólios – que vêm agravar
a concorrência – tendem a fazer cair seus preços, disputando entre si por
todas as formas, inclusive a guerra, uma parte maior dos mercados e, cons-
trangendo os países dominados, em sua área de influência, a reorganizar sua
estrutura produtiva (Brasil – China) para atender às novas circunstâncias
da economia mundial e a consumir seus produtos.
Ou, dizendo de outra forma, pressionado pela sobreacumulação de
capital e pela dificuldade generalizada de sustentar a taxa média de lucro
no setor produtivo e ganhos e juros correspondentes nos mercados finan-
ceiros, o imperialismo vem constrangendo os países dominados a criar
mecanismos de remuneração de seus capitais, tanto no setor produtivo
(no Brasil, reorganização da indústria e expansão do agronegócio; na China,
transferência de indústrias – “deslocalização”), como financeiro, “mercados
9 Revista CARTA CAPITAL. Política, Economia e Cultura. Ano XII nº. 389, 19 de abril/2006.

136
financeiros”. E/ou, ainda, vem desencadeando guerras por uma nova re-
partição das esferas de valorização do capital.
Assim, e de forma ainda mais intensa – como resultado do progressivo
agravamento estrutural de sua crise – o imperialismo procura encontrar no
aumento da exploração dos países dominados, na disputa, na guerra para
repartir mercados, a solução para sua crise.
Acirramento do conjunto das contradições
É fundamental para os povos dos países dominados compreender esta
conjuntura da crise do imperialismo. Levar em conta que se acirra o con-
junto de contradições que compõem a economia capitalista mundial, se
agrava a luta de classes, a resistência dos povos dos países dominados às
tentativas de ampliar a exploração, a contradição entre o imperialismo e os
povos dos países dominados, a dominação, no mesmo processo em que se
agrava a contradição interimperialista, a disputa por mercados e áreas de
influência. Hoje a guerra imperialista é uma realidade. Guerra para dominar
mercados, ganhar zonas de valorização de seus capitais, queimar capitais e
militarizar a economia.
É da maior importância que se compreenda o processo único no qual
a crise do imperialismo se desdobra – com a queda da taxa de lucro re-
sultando no acirramento de todas as suas contradições. Centralmente de
sua contradição fundamental, a contradição burguesia/classe operária,
levando a contradição entre o imperialismo e os países dominados à po-
sição de contradição principal, ao mesmo tempo em que gradualmente
agrava a contradição interimperialista.
É evidente que a crise do imperialismo agudiza todas as suas contradições,
centralmente sua contradição fundamental, como também é evidente que
esta contradição se agrava tanto nos países imperialistas como nos países
dominados.
Contudo, objetivamente, dentro das condições da luta de classes na
conjuntura concreta de hoje, o imperialismo enfrenta uma reação menor
ao tentar resolver sua crise elevando a exploração da classe operária e do
conjunto dos povos dos países dominados (caso da China 10 e a tentativa do
México, e no Brasil hoje o exemplo da Volks em São Bernardo do Campo) 11,
do que elevando a exploração de sua própria classe operária, apesar de que
também se agrava a luta de classes nos países imperialistas (manifestações
na França, Alemanha, Itália e EUA).
Da mesma forma enfrenta menos obstáculos ao tentar resolver a crise
sobre os países dominados, ao invés de levar à guerra a disputa entre os
países imperialistas (a contradição interimperialista) por esferas de valori-
zação do capital.

10 Uma ressalva à caracterização da China como país dominado é apresentada no texto


Elementos para Discussão da Conjuntura [nota da edição].
11 INVERTIA. Metalúrgicos desafiam Volks e não aceitam acordo sobre demissões. Terça,
22 de Agosto de 2006. Disponível em http://economia.terra.com.br/noticias/noticia.
aspx?idNoticia=200608221857_INV_29879718.

137
O que não quer dizer que a lógica férrea do capital na realidade concreta
da economia mundial não determine aos países imperialistas, no mesmo
processo, que aprofundem, até onde lhes for possível, a exploração do povo
de seu país e de sua classe operária, explorem até onde lhes for possível a
classe operária e os povos dos países dominados, e de que não disputem
por todas as formas, inclusive pela guerra, as áreas de valorização do capital,
os mercados ocupados por outros países imperialistas e tentem destruir as
experiências de construção do socialismo.
Resistência do povos
Se a crise do imperialismo impõe a este o aumento da exploração, a luta
de classes impõe limites a esta. A ampliação da exploração da classe operária
nos países imperialistas tem de se enfrentar com níveis mais elevados de
organização e consciência e um patamar também elevado de conquistas, re-
sultantes da luta de classes, expressa em condições de trabalho, salário e vida.
Nos países dominados a classe operária, os trabalhadores e o povo vêm
de uma história de dominação e luta sob o colonialismo que transfere
sua herança de sujeição ao imperialismo. Sujeição partilhada pela classe
dominante destes países em sua subserviência atávica aos interesses dos
dominadores, quaisquer que sejam.
Em toda parte é a reorganização da classe operária em seu partido,
dirigido por sua teoria, o fator determinante.
Assim, para contrarrestar sua crise e, consequentemente, o agravamento
de sua contradição fundamental diante da defensiva da classe operária, o
imperialismo agudiza nesta conjuntura a exploração dos países dominados,
a contradição que opõe os países imperialistas aos países dominados e cada
vez mais a contradição interimperialista.
A acumulação, a concentração e centralização de capitais tende, ine-
vitavelmente, ao monopólio em cada setor da economia mundial. E cada
monopólio, truste, cartel, estado imperialista fará tudo, absolutamente tudo,
da mera fraude à guerra, para vencer a disputa em cada setor.
Ora, o que dizemos é que quanto mais se agrava a crise estrutural do
imperialismo mais este acirra a luta de classes por todo o mundo e de todas
as formas. Temos de estar atentos ao realizar a análise concreta da conjuntura
para perceber que a resistência dos povos árabes contribui mais para a luta
anti-imperialista que toda a esquerda inglesa reunida no Partido Trabalhista
Britânico de Tony Blair.
O que vemos hoje é que na unidade das contradições que estruturam o
imperialismo, a contradição com os povos dos países dominados vai ceden-
do lugar à contradição interimperialista. Cedendo lugar, fundindo-se, uma
levando à outra, processo no qual estas contradições vão se substituindo
enquanto contradição principal, contradição que vai determinar a forma e
a velocidade do agravamento das outras contradições.

138
Reordenamento das relações de exploração nos países
dominados
Assim, depois de concentrar forças diante do inimigo comum – o so-
cialismo e seus aliados – para destruí-lo, o imperialismo faz convergir suas
forças em reordenar as relações de exploração dos países dominados, com
os Estados Unidos utilizando sua supremacia militar e sua hegemonia sobre
o sistema capitalista a fim de garantir as novas condições de exploração:
intervenção na Iugoslávia, Afeganistão, Iraque, e a crescente intervenção
nos países da América Latina, México, Colômbia, Peru, Venezuela, etc., ao
mesmo tempo em que usa sua posição no processo de reestruturação da
economia mundial (as novas condições de exploração) para reforçar sua
hegemonia econômica e militar no sistema.
Com a continuação da crise, a contradição com a classe operária nos
países capitalistas dominantes vai se agravando, levando à constituição
de verdadeiros “terceiros mundos” internos, como também se agrava a
contradição interimperialista na disputa por zonas de influência para va-
lorização do capital, mercados e matérias-primas. Contudo, a contradição
interimperialista se mantém ainda em segundo plano, enquanto for possível
resolver a crise sobre os países dominados.
Primeiro, porque os Estados Unidos detêm larga hegemonia econômica
e militar entre os países imperialistas, usando esta hegemonia e seus bra-
ços (Israel, por exemplo), para policiar o sistema e contornar suas crises
através dos Aparelhos Internacionais do imperialismo, determinando a
posição dos demais países imperialistas na economia mundial.
Segundo, porque ainda existem mercados a conquistar (a China, Índia,
etc.) e se faz necessário quebrar a resistência dos povos de todo o mundo
à “nova ordem mundial”.
Terceiro, porque a crise econômica ainda não chegou ao seu auge, o que
implicará a radicalização da disputa feroz que já vem se travando pelo
controle das “áreas de influência”, dos mercados, das matérias-primas,
principalmente de petróleo e gás, e da força de trabalho, tendendo, como
das outras vezes, a gerar uma nova guerra mundial.
Contudo, já se percebe no horizonte a tendência de que a crise da eco-
nomia mundial pode vir a atingir novamente a economia dos EUA e, como
dissemos, vários dos “intelectuais” integrados ao sistema apontam esta
tendência.
Na revista Carta Capital, de agosto deste ano, no. 408 12, Francisco Petrus
nos diz, em sua coluna, “O Bolso e a Cabeça”, que:
Está generalizada a percepção de que a economia norte-
-americana entra em um processo de redução de atividades.
Se esse processo resultará em recessão somente o tempo
dirá. (p. 41)

12 Revista CARTA CAPITAL, Política, Economia e Cultura. Ano XIII nº. 408, 30 de agosto de
2006.

139
Páginas atrás, Márcia Pinheiro começa afirmando, no artigo “A locomo-
tiva pode parar”, que “… a locomotiva global dá sinais de cansaço.”, para em
seguida se referir às análises de Paul Krugman, Stephen Roach (economista
chefe do Banco Morgan Stanley) e Jared Bernstein (do Economic Policy
Institute – EPI) entre outros:
Dos 11,4 trilhões de dólares do Produto Interno Bruto (PIB)
americano, nada menos que 8,1 trilhões de dólares são ge-
rados pelo consumo das famílias. Essa megaconcentração
da economia dos Estados Unidos na mão dos consumidores
é capaz de gerar movimentos ciclotímicos, da euforia à de-
pressão. A má notícia é que, após quatro anos consecutivos
de crescimento expressivo, a locomotiva global dá sinais de
cansaço (p. 36).

De acordo com o professor da Universidade de Princeton


Paul Krugman, o crescimento dos EUA desde a crise das
empresas pontocom – com o crash da bolsa de tecnologia
Nasdaq, em 2002 – deu-se basicamente pela supervalori-
zação dos imóveis (p. 36).

Segundo o conceituado economista chefe do Banco Morgan


Stanley, Stephen Roach, a palavra-chave que explica a
ante-sala da recessão é o mercado de trabalho. O cresci-
mento da oferta de empregos nos últimos quatro meses
está 35% abaixo da média registrada desde 2004 (p. 36).

Um artigo de Roach, publicado no jornal britânico Financial


Times em 14 de agosto, sustenta que o consumo já caiu 2,5%
de abril a junho (p. 36).

O analista Jared Bernstein, do Economic Policy Institute (EPI),


um centro de pesquisas norte-americano, também chama
atenção para a redução constante da criação de novas vagas
de trabalho (p. 36).
Na revista Forbes Brasil, de agosto deste ano 13, Tharcisio Bierrenbach de
Souza Santos, analisando “Cenários Econômicos” no artigo Perspectivas preocu-
pantes para e a economia mundial, torcendo pelo sucesso do capitalismo, avalia:
… Tudo indica que a economia mundial, sob influência da
economia americana, caminha para um suave processo de
desaquecimento, sendo de se prever que o nível máximo das
taxas de juros, se não tiver sido alcançado, será atingido no
futuro imediato. Já existem indicações sobre o arrefecimento
do crescimento da economia americana, às quais agora se
13 Revista FORBES BRASIL. Ano 6, no. 138, 23 de Agosto, 2006.

140
juntam indicações sobre comportamento semelhante por
parte da economia européia (p. 30).
Como observa o insuspeito defensor do capitalismo Delfim Netto, “A
China e outras economias asiáticas, aproveitando o espírito da globalização,
encontraram uma espécie de equilíbrio simbiótico com os Estados Unidos”.
Da mesma forma que os repórteres da revista Veja: EUA e China estabele-
ceram “uma relação simbiótica” que resultou que “… a economia mundial
se tornou dependente da corrente de riquezas que une China e EUA em
fulgurante estrela binária”.
E prosseguem os articulistas da revista, o “modelo de crescimento” da
China não pode se reproduzir por muito tempo sem que leve a uma cada
vez mais acentuada sobreacumulação de capital e a inundar a economia
mundial de milhões de gadgets made in China.
As debilidades inerentes à economia chinesa, o sistema
financeiro de alta vulnerabilidade e um modelo de cres-
cimento que, dizem os especialistas, não pode durar para
sempre assustam tanto quanto sua voracidade. O raciocínio
é o seguinte: se a China desmoronar a economia mundial
vai junto … (Veja, p. 108-109).

Interdependência entre países imperialistas e China


A interdependência entre EUA e China é muito grande, mas não é só.
O conjunto de países imperialistas vêm estabelecendo relações de inter-
dependência cada vez maiores com a China, começando por Alemanha e
Japão. Como diz a revista Veja, os chineses tem “seis em cada cem dólares de
títulos da dívida americana que estão no mercado”. Do 1 trilhão de dólares
de reservas em moeda estrangeira nas mãos da China “60% estão aplicados
em dólares e títulos do governo dos Estados Unidos”.
A transferência da indústria dos países imperialistas para as zonas de
exportação chinesas destrói empregos não só nos países imperialistas como
em países dominados onde se encontrava parte da indústria dos países
dominantes.
Das 6000 fábricas pelo mundo que fornecem produtos à
Wal-Mart, 89% estão na China. Isso mata empregos. (…) Das
500 maiores companhias americanas, 450 instalaram-se na
China. (…) Um total de 72 bilhões de dólares foi investido
lá no ano passado pelas companhias estrangeiras – a maior
enxurrada de dólares do planeta (Veja, p. 158-159).7

Movimento contraditório do processo de rearranjo da eco-


nomia mundial
O processo de rearranjo da economia mundial que descrevemos, como
ensina Marx, ao mesmo tempo/movimento em que permite, momentanea-
mente, a retomada da acumulação capitalista levanta novas e maiores barreiras

141
a ela. Tudo vai acirrar as contradições do sistema levando a que todos os países
imperialistas acirrem sua luta por ampliar seu lugar na economia mundial.
Assim, da mesma forma que a agressão imperialista ao Afeganistão,
agressão e partilha da Iugoslávia, guerra contra o Iraque, agressão à Palestina,
ataque ao Líbano 14 e a “deslocalização” da indústria imperialista para China,
fazem parte dos movimentos do imperialismo buscando retomar, aumentar
a taxa de lucro na valorização do capital, com a ampliação de seu “espaço
vital” na economia mundial.
De fato, o que os EUA têm como objetivo nesta guerra (no conjunto
destes movimentos) para contornar a crise latente na economia mundial
– partindo da convicção que Israel faz guerra como preposto dos EUA –
pode ser resumido em um objetivo amplo, que se desdobra, um nos outros:
Primeiro, militarizar a economia: é só ver que Clinton aumentou em 70%
os gastos militares dos EUA e que Bush vem radicalizando esta política.
Segundo, como desdobramento da militarização, principalmente contro-
lar o petróleo e o gás natural na Ásia Central e Península Arábica – Médio
Oriente – Arábia Saudita, Iraque, Irã e Kuwait etc., e não só petróleo,
porém todas as fontes de energia e matérias-primas em todo o mundo;
Terceiro, e ainda, também impor e ampliar suas bases militares no
centro da Ásia entre Rússia, China e Coréia e no Médio Oriente, não
só impedindo uma coligação de interesses entre Rússia, China e Coréia
como embargando os interesses da União Européia no Médio Oriente;
Quarto, assim, assumir uma posição de força para enfrentar a resistência
e o ascenso da luta de classes.
Como dissemos, o imperialismo norte-americano, para manter sua he-
gemonia na economia global, tem sido empurrado a se sustentar cada vez
mais pelo uso da força, isolando-se. Enfrentar tantos inimigos de uma vez
pode parecer à primeira leitura um sinal de força, porém, o que fazem na
realidade é mostrar, com mais esta guerra (neste momento o ataque e a
resistência do povo do Líbano e a ameaça ao Irã), sua debilidade.
A militarização da economia e seus desdobramentos
Os EUA reagem para manter sua hegemonia por meio da guerra, enfren-
tando a tendência à queda da taxa média de lucro na economia mundial,
a concorrência cada vez mais acirrada da União Européia, do Japão e do
bloco de países que se organizam em seu entorno, a ameaça do enigma que
representa o crescimento econômico da China, uma crescente oposição dos
países dominados na OMC e da classe operária e dos povos do mundo todo.
Por outro lado, como mostramos acima, os Aparelhos Internacionais do
imperialismo (FMI, etc.) e os “analistas financeiros”, temem a cada queda da
bolsa que Wall Street e todo sistema mundial financeiro se vejam arrastados

14 Para realizar esta análise temos que ter em conta que Israel não é nada mais nada menos
que a ponta de lança do imperialismo norte-americano no Oriente Médio, que Israel não
se arriscaria a uma agressão de forma tão bárbara a um país desarmado como o Líbano
se não tivesse recebido as ordens e a garantia de que os EUA os apoiaria diante de reação
que não pudesse controlar.

142
a uma crise catastrófica, muitos deles não excluindo que se reproduza um
crash como o de 1929.
A tentativa de solucionar o problema, transferindo o peso da crise para
os países dominados, cria um problema ainda maior: como poderão os
trustes e os cartéis que montaram na Ásia (na China) uma indústria com
o melhor da tecnologia e força de trabalho quase escrava vender mais aos
povos que eles empobreceram?
Crescimento da pobreza e da miséria em todo o mundo é também um
problema econômico insolúvel. Por um lado, existem capitais e capacida-
des de produção sem precedentes que crescem sem cessar, por outro, são
cada vez maiores os números da pobreza e da miséria por todo o mundo e,
portanto, menores os números dos que podem consumir.
A reação da economia norte-americana à crise de 2001, através do estí-
mulo ao consumo privado como motor da economia, se mostra cada vez
mais incapaz de relançar um período de crescimento econômico. Assim,
a militarização é também uma tentativa de reanimar a economia. A este
processo complexo, com vários desdobramentos, que significa muito mais
do que recorrer a uma “corrida armamentista”, denominamos por milita-
rização da economia.
A militarização liderada pelo “complexo industrial-militar” tem gerado
um sem número de efeitos na economia como:
·· forçar, com a produção de equipamento militar que vai desde os sofisti-
cados mísseis a alimentação e botas, uniformes etc., o relançamento do
crescimento econômico;
·· assegurar o controle dos EUA sobre mercados e matérias-primas, petróleo
e gás, em detrimento e na concorrência com os demais países e blocos
imperialistas;
·· provocar a queima forçada de capital.
Brasil
Todo este processo contraditório acima descrito implicou, em nosso país,
uma reconfiguração de nossa formação econômico-social, aprofundando a
dominação/exploração imperialista, que denominamos como uma regressão
a uma situação colonial de novo tipo, que analisamos no texto Formação
econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de novo tipo.
Como já dissemos, desde o governo Collor até Lula, este lugar-tenente
operário da classe dos capitalistas, nossas classes dominantes e seus gerentes
embarcaram com deleite e, note-se bem, proveito, neste processo. Tanto Lula
como Alckmin, que agora querem Geraldo, defendem a mesma política de
submissão ao imperialismo e usarão todo o peso dos Aparelhos de Estado,
repressivos e/ou ideológicos, para levá-la a cabo.
A diferença para a classe dominante, para seus setores hegemônicos, é
a de que Lula tem se mostrado mais útil para continuar este processo. O
nosso “operário” presidente pode recorrer à imagem de “pai dos pobres”,
pai dos trabalhadores, que construíram para ele, para, como bom pelego,
amortecer a luta de classes.

143
Portanto, nesta conjuntura, devemo-nos perguntar nos inspirando em
Lenin: interessa à classe operária participar das eleições burguesas?
É Lenin quem nos diz em 1920 que,
… poderíamos assegurar sem vacilar que o parlamentaris-
mo na Alemanha ainda não caducou politicamente, que a
participação nas eleições parlamentares e na luta através
da tribuna parlamentar são obrigatórias para o partido do
proletariado revolucionário, precisamente para educar os
setores atrasados de sua classe, precisamente para despertar
e instruir a massa aldeã… 15
Uma questão fundamental que marca a diferença da conjuntura em que
travaram sua luta os comunistas na Alemanha e na Rússia na época de Lenin
e da conjuntura brasileira atual é que aqui não há partido revolucionário
do proletariado, para, através de uma participação dirigida por uma linha
política/ideológica justa, despertar, educar, instruir e organizar a classe
operária, as classes dominadas, em meio às eleições ou aos parlamentos
burgueses. Portanto, mais uma vez nos inspirando em Lenin – “… porque
foi levado em conta, acertadamente, a situação objetiva,…” 16 – buscando
fazer a análise concreta da situação concreta, é justo não participar das
eleições a não ser denunciando-as.
Portanto, em nossa opinião, para a classe operária e para as classes do-
minadas só resta – denunciando a farsa das eleições, a política e ideologia
imperialistas, o “metalúrgico presidente” e sua “oposição” –, combater, e, no
fogo da luta de classes, construir o seu partido. Como diz Lenin: “o partido
do proletariado revolucionário”.

15 LENIN, V.I. A doença infantil do «esquerdismo» no comunismo. Rio de Janeiro: Editorial


Vitória, 1960. p. 62.
16 Ibid. p. 29.

144
Luta de classes e crise do imperialismo 1

Toda organização interna das nações, todas as suas re-


lações internacionais, não constituem apenas a expressão de
determinada divisão do trabalho? Não devem modificar-se
com as modificações da divisão do trabalho?
(Carta de Marx a P. V. Annenkov, 1846, p. 244) 2.

Através de inúmeros artigos vimos, do ponto de vista do marxismo-


-leninismo, buscando construir/desenvolver:
a) a conceituação de imperialismo a partir do trabalho de Lenin 3;
b) a análise do processo de crise que vive o sistema imperialista – iniciado
com a crise de 1973-1975;
c) a nova conformação que esta crise vem produzindo na economia mun-
dial 4 e
d) a análise da formação econômico-social brasileira e do novo papel que
esta passa a desempenhar na economia mundial, resultado de suas con-
tradições internas e da reconfiguração do sistema imperialista 5.
O que é importante para nós, para a análise concreta da conjuntura da
luta de classes que permita ao proletariado elaborar uma linha justa para
sua intervenção, é expor de forma concisa e resumida a conformação pre-
sente, atual, da economia mundial, do imperialismo, e as tendências de seu
desenvolvimento e ao agravamento de suas contradições, da luta de classes.
Agora, a questão importante a reter é a de que o desenvolvimento da
crise do imperialismo agrava a tendência tanto de se acirrarem todas as
suas contradições quanto a tendência a se produzirem novas contradições
no sistema da economia mundial, nos países imperialistas e também nos
países dominados e, portanto, a se agravar, tanto nos países imperialistas
como nos países dominados, a luta de classes.
Assim sendo, nossos objetivos aqui são: primeiro, avançar na análise con-
creta do conjunto da crise do imperialismo; segundo, esmiuçar, refinar, ser
mais preciso e abrangente nesta análise, apresentada em textos anteriores
sobre o agravamento da crise do imperialismo e suas contradições.
O que queremos apontar é a existência e a importância do processo de
deslocamento de parte do conjunto da indústria dos países imperialistas e,
também, do grande capital nos países dominados – processo que os economistas
burgueses denominam de deslocalização – para se concentrar em determinadas

1 Texto de junho de 2007.


2 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cartas: Marx a P. V. Annenkov (Bruxelas, 28 de dezembro
de 1846), In: Obras Escolhidas, v. 3, Rio de Janeiro: Vitória, 1963.
3 Ver “E Agora?”.
4 Ver A crise do imperialismo expressa o agravamento de todas as suas contradições.
5 Ver Formação econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de novo tipo.
Veja também o texto Aprofunda-se o processo de regressão no blog “Cem Flores...”.
regiões, notadamente a Ásia e, na Ásia, especialmente na China, para produzir
para o mercado mundial. Essa situação, nova para a economia mundial do
imperialismo, decorre de um conjunto de condições de produção favoráveis ao
capital e, principalmente, da exploração de força de trabalho a preço muito mais
baixo do que o praticado em seus países, com o óbvio objetivo de contrarrestar
a tendência de queda da taxa de lucro nos países de origem desse capital, au-
mentando a taxa média de lucro das operações globais de cada transnacional.
Essa reconfiguração do sistema imperialista tende a:
a) agravar a luta de classes na maioria das formações econômico-sociais que
compõem o sistema imperialista, agravando a contradição antagônica funda-
mental do capitalismo – a contradição burguesia/proletariado – porque força
o agravamento da luta da classe dominante para rebaixar o preço da força de
trabalho, tanto nos países imperialistas quanto nos países dominados, para
permitir ao capital (a produção), nesses países, de concorrer com o capital
que se deslocou (a produção) para a Ásia ou Europa Oriental – neste último
caso, principalmente os países imperialistas da Europa –, etc. e porque força
o agravamento da luta da classe dominada para resistir a este rebaixamento
do valor da sua força de trabalho;
b) gerar uma nova situação de concorrência e novas frações nas classes domi-
nantes, na burguesia (frações do capital), e contradições entre elas, especifi-
camente a concorrência direta entre o capital que participa do movimento/
processo de reconfiguração e os setores/frações que restaram com suas
indústrias nos seus países de origem, tanto imperialistas quanto dominados,
ainda que de forma diferente nuns e noutros, isto é, contradições entre
frações de classe que deslocaram sua indústria ou parte dela, e as frações
que continuam produzindo nas condições anteriores. Frações que passam a
disputar o Estado em seu beneficio. Aqui estamos tratando principalmente
da contradição que se estabelece dentro de um mesmo ramo de produção;
c) agravar as contradições interimperialistas tendo em vista que países, ou trustes
e cartéis, que conseguiram se adiantar à tendência e passaram a produzir
em novas condições aumentaram suas vantagens sobre outros países ou
empresas. O fato de que países ou cartéis e trustes estão produzindo com
maior taxa de lucro tende a acirrar a concorrência, a disputa por mercados
e fontes de matérias-primas.
É necessário aqui relembrar as lições de Lenin em Imperialismo, Fase Superior
do Capitalismo para ter a correta compreensão do significado dessa tendên-
cia a que se agravem as contradições interimperialistas. Diz-nos Lenin que à
época do imperialismo o mundo resta inteiramente repartido em zonas de
influência, tanto dos grandes capitais monopolistas internacionais, quanto
das grandes potências (nas quais se localizam suas matrizes e que atuam
em favor das mesmas), em ambos os casos buscando, entre outras coisas,
a garantia de acesso privilegiado a matérias-primas e a mercados. Daí que a
exacerbação das contradições interimperialistas (com emergência de novas
potências, declínio das outrora mais poderosas) questione, a cada momento,
as condições nas quais se deu essa repartição e busque uma nova repartição.

146
Já estando o mundo todo repartido, nos avisa Lenin, esse aumento das
contradições interimperialistas termina gerando uma tendência a guerras.
Não bastassem os muitos exemplos de guerras imperialistas e coloniais no
século XX, elas continuam atualmente sob a forma aberta da invasão do
imperialismo norte-americano ao Afeganistão, ao Iraque, dos conflitos na
região petrolífera do Oriente Médio, nas guerras civis nos países africanos e, de
maneira encoberta, em “conflitos de baixa intensidade” (ou na sua preparação)
em vários outros lugares. Não é por outra razão que os gastos armamentistas
do imperialismo continuam crescendo e atingindo níveis recordes. Aumento
de 37% nos últimos dez anos, sendo que os gastos militaristas nos Estados
Unidos já atingem US$ 529 bilhões por ano, 46% de todos os gastos militares
do mundo! A justificativa? A “crescente disputa por recursos energéticos
como um dos principais fatores que podem levar a conflitos armados nos
próximos anos” e a “tensão causada pela preocupação dos países em garantir
sua segurança energética” 6;
d) gerar tanto uma superprodução de mercadorias quanto sobreacumulação
de capitais e as decorrentes crises financeiras, na verdade uma crise finan-
ceira latente, a partir do enorme aumento de produtividade, do enorme
aumento de produção de mais-valia, resultado do deslocamento do capital
nas condições em que é feito (para países com mão-de-obra qualificada e
baixos salários e em fábricas no “estado-da-arte” em termos tecnológicos).
Ou, dizendo de outro modo, geram tendências a agravar a superprodução
de mercadorias e a superacumulação de capitais que, cada vez mais impos-
sibilitados de se aplicarem à produção, necessitam ser valorizados na esfera
financeira 7. Capitais que não podendo ser aplicados produtivamente vêm

6 A fonte dos dados é o relatório do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo


(SIPRI), conforme matéria da Folha de São Paulo, de 12.6.2007, p. A-13.
7 Exemplo concreto: a produção imperialista na China, feita pelas fábricas americanas
instaladas naquele país, “retorna” aos Estados Unidos via exportações. No primeiro
momento, as transnacionais norte-americanas investem na China, construindo ou com-
prando fábricas e seus dólares vão para as reservas internacionais chinesas. Em seguida,
essas empresas exportam sua produção. Essas exportações são pagas às transnacionais
americanas na China em dólares, que ficam com o governo chinês (as transnacionais
recebem em iuanes) que os aplicam nas suas reservas internacionais. Essas reservas, que
já superam US$1 trilhão ou todo o PIB do Brasil em um ano, e para as quais a China não
tem destinação produtiva, “retornam” novamente aos Estados Unidos, via sua aplicação
em títulos da dívida pública norte-americana.
Assim, os Estados Unidos conseguem “viver acima de suas posses” – déficits comerciais anu-
ais de centenas de bilhões de dólares – e financiam esse déficit com dívida. Adicionalmente,
as matrizes ainda recebem lucros e dividendos das suas operações chinesas. Assim os
Estados Unidos conseguem crescer sem inflação – os produtos importados são, nesse
caso por definição, mais baratos que os domésticos – e manter baixas suas taxas de juros.
Com isso, geram incentivos a que surjam outros ativos financeiros com maior rentabili-
dade – imaginem quando a taxa nominal dos juros básicos do Fed, o Banco Central dos
Estados Unidos, era de 1%, como o capital especulativo migrou para e se reproduziu nas
bolsas, títulos privados, hipotecas residenciais, diversos mercados de derivativos, opções,
futuros, fundos de hedge, etc. Essas novas aplicações financeiras geram cada vez maior
lucratividade quanto mais capital aplicado, como uma bola de neve, ou uma bolha, na
gíria econômica burguesa.
Uma crise financeira latente está implícita nessa espiral de capital fictício.

147
sendo valorizados na esfera financeira, do que vem resultando em sucessivas
crises financeiras, ou melhor, uma crise financeira latente: tendência a uma
crise financeira geral.
Partimos da tese de que, em decorrência do novo período de crise do
sistema imperialista aberto com a crise mundial de 1973/1975, em busca de
retomar a taxa de lucro, o conjunto dos países imperialistas, principalmente
os EUA, transferem/tendem a transferir parte do conjunto de sua indústria
– tanto setores intensivos em força de trabalho como setores de média
tecnologia (principalmente esses dois setores) e também, setores intensivos
em tecnologia, em menor escala, ou mais recentemente apenas – para países
da Ásia e Europa Oriental. Esse movimento de reconfiguração:
a) destina-se a países onde o preço da força de trabalho não só é muito
mais baixo do que nos países capitalistas desenvolvidos, os países im-
perialistas, como é muito mais baixo mesmo se comparado a países
dominados como o Brasil;
b) tem em vista que tanto a China como países do leste da Europa, países
recém saídos de uma experiência concreta de construção do socialismo
que não se sustentou/que foi derrotada pela ação conjunta do revisio-
nismo e do reformismo internos e da ofensiva externa do imperialismo,
oferecem, além de uma força de trabalho educada e disciplinada, as
demais condições de produção em situação extremamente favoráveis;
c) intenta se beneficiar da mais-valia absoluta, com o aumento de horas
trabalhadas/dia, aumento dos dias trabalhados por semana e por mês;
d) busca também se beneficiar da mais-valia relativa. As novas plantas
industriais construídas se beneficiam dos últimos avanços da ciência
e da tecnologia, portanto, mesmo nos setores intensivos em força de
trabalho é possível ampliar a mais-valia relativa 8;
e) concentra-se em regiões onde se propicia maior taxa de lucro, benefi-
ciando-se da mais-valia relativa e absoluta, a mercadoria assim produzida
para o mercado mundial. O fundamental da produção realizada se destina
ao mercado mundial, tanto ao mercado dos países imperialistas que
transferiram suas indústrias, quanto ao mercado dos países dominados.
Esta conjuntura do imperialismo se constitui numa situação nova dentro
da fase imperialista do capitalismo.
Ou, dizendo mais precisamente, a longa crise que vive o sistema imperia-
lista e que se inicia no começo da década de 1970 assume uma característica
nova, podemos avançar, única na história do imperialismo.
Pela primeira vez, para contrarrestar a queda da taxa de lucro, num longo
período de crise, o conjunto dos países imperialistas, de forma diferenciada,
uns mais que os outros, transfere/tende a transferir/deslocar, grande parte do

8 É necessário deixar claro que mesmo nos setores chamados “intensivos em trabalho” a
composição orgânica do capital (relação entre o capital vivo, a força de trabalho, e o capital
morto, objetivado em máquinas e demais instrumentos de produção, relação expressa em
valor) é elevada, ou seja, o capital é investido principalmente em máquinas. Esses setores
têm mais trabalho vivo na comparação com os demais setores apenas. Dessa maneira é
claro que se pode ampliar a mais-valia relativa.

148
conjunto de sua indústria para fora de seu território nacional para localizá-la
em países onde é mais baixo o preço da força de trabalho e as condições
gerais de produção mais favoráveis ao capital.
Transfere/tende a transferir à busca de maior taxa de lucro e, portanto, de
taxas de mais-valia mais elevadas, resultado tanto de uma força de trabalho
comprada a preço menor que aquele praticado nos países imperialistas e
mesmo em países dominados com maior nível de industrialização, quanto
de melhores condições de produção para o capital.
Produção que tem como objetivo atender tanto o mercado dos países
imperialistas quanto dos países dominados, atender o mercado da econo-
mia mundial.
Diferentemente do desenvolvimento anterior do imperialismo, agora a
exportação de capital se dá sob a forma da construção de novas plantas
industriais em países dominados, não com o objetivo de atender ao mercado
interno desses países ou ao mercado de uma determinada região, mas a
exportação de capital se faz para a construção de uma indústria utilizando
os últimos avanços da tecnologia, em condições de produção extremamen-
te favoráveis, consumindo força de trabalho a preço baixíssimo e jornada
de trabalho elevada, voltada inteiramente para atender o “mercado” na
economia mundial.
Este movimento do capital – no processo permanentemente contra-
ditório de integração/contradição do sistema imperialista/da economia
mundial – que permite aos países imperialistas produzir, a partir da condição
de situar sua indústria fora de seu território para o conjunto da economia
mundial, inclusive para o seu próprio mercado interno, vai levar a que as
leis férreas da concorrência trabalhem forçando a tendência à perequação/
equalização do valor da força de trabalho em toda a economia mundial,
quer dizer, no conjunto de países dominantes e dominados, ao valor da
força de trabalho na China etc.
A busca de maior taxa de lucro é uma tendência geral e férrea da con-
corrência de capitais 9, daí porque as tendências decorrentes da nova con-
figuração da economia mundial também são tendências gerais e férreas
impostas pela concorrência, tendências incontornáveis.
Poder-se-ia dizer que a nova configuração da economia mundial mate-
rializa tendências gerais e férreas da concorrência de capitais e está aí para
tentar evitar, inutilmente, nova crise. É importante lembrar que, como

9 Realmente era nosso objetivo elaborar um texto conciso, expor de forma didática a
conjuntura da crise do imperialismo e suas tendências, porém, não resistimos e nos
sentimos obrigados a reproduzir a avaliação que Robert Mueller, especialista na defesa
do capitalismo, faz das leis férreas da concorrência e da busca do maior lucro possível
que caracteriza o sistema. Capitalista que é capitalista negocia tudo desde que dê lucro,
seja a fome, a miséria, as drogas, a guerra ou a sobrevivência da humanidade. “As leis de
oferta e procura determinam que alguém, em algum lugar, fornecerá (material nuclear)
a quem tiver a melhor proposta, disse o diretor da Polícia Federal (FBI), Robert Mueller,
ao inaugurar a conferência de segurança da Iniciativa Global para Combater o Terrorismo
Nuclear (GICNB)”. “Especialistas alertam sobre risco de ataque nuclear.”, 11/06/2007 15:59.
AFP.

149
nos ensina Marx, a cada novo aumento da taxa de lucro é reforçada a sua
tendência futura de queda.
O que queremos dizer é que as tendências que apontamos no processo
de reconfiguração da economia mundial alteram a conjuntura da luta de
classes tanto nos países imperialistas como nos países dominados como o
Brasil, por exemplo.
Tendem a agravar por todo o mundo a luta de classes, agravando a crise
do imperialismo.
E este processo de reconfiguração da economia mundial é resultado, é
determinado pela luta de classes no estágio atual da conjuntura: no fun-
damental, ainda de defensiva do movimento revolucionário, das posições
revolucionárias, marxistas, minado por dentro pelo cavalo de Tróia do
revisionismo e do reformismo.
Por isso, está colocado na ordem do dia retomar/praticar o marxismo,
o marxismo-leninismo, a teoria científica da classe operária e avançar na
reconstrução do partido revolucionário do proletariado, guiado por esta
teoria, fazendo a análise concreta da luta de classes - da conjuntura nacional
e internacional - para orientar a prática consequente, revolucionária.
Novamente se faz ouvir o grito de guerra, lançado por Marx e Engels no
“Manifesto do Partido Comunista”:
Proletários de todos os países, uni-vos!

150
O mais recente crash financeiro. Uma análise
marxista-leninista da crise do imperialismo 1

Em todos os países da Europa, tornou-se agora uma


verdade demonstrável a todo o espírito sem preconceitos e
apenas negada por aqueles cujo interesse está em confinar
os outros a um paraíso de tolos que nenhum melhora-
mento da maquinaria, nenhuma aplicação da ciência à
produção, nenhuns inventos de comunicação, nenhumas
novas colônias, nenhuma emigração, nenhuma abertura de
mercados, nenhum comércio livre, nem todas estas coisas
juntas, farão desaparecer as misérias das massas traba-
lhadoras; mas que, na presente base falsa, qualquer novo
desenvolvimento das forças produtivas do trabalho terá de
tender a aprofundar os contrastes sociais e a agudizar os
antagonismos sociais.
(Karl Marx, Dezembro de 1864. Mensagem Inaugural
da Associação Internacional dos Trabalhadores. In: Marx e
Engels. Obras Escolhidas em Três Tomos, v. 2, Edições Avante.
Lisboa, 1983, p. 9).

Sexta-feira, 13 de julho. Fusões levam Bolsas mundiais a recordes – destacou


a Folha de São Paulo na manchete principal de seu caderno sobre economia
e finanças que, apropriadamente, chama-se “Dinheiro” – que é só o que
importa no final das contas, não só à Folha, mas a todos os capitalistas. O
primeiro parágrafo da matéria é bastante esclarecedor para algumas teses
que buscaremos apresentar e demonstrar neste texto:
O mercado acionário mostrou ontem que tem fôlego para
seguir com a quebra de recordes neste segundo semestre.
Com as preocupações com a cena econômica dando trégua,
os investidores focaram nas notícias corporativas. Houve
valorização expressiva nas principais praças mundiais (Folha
de S. Paulo, B1, 13.07.2007).
A matéria seguia ainda com euforia incontida, revelando o recorde his-
tórico em pontos nominais dos índices Dow Jones da bolsa de Nova Iorque
e Merval, da de Buenos Aires, e o nível mais elevado em seis anos alcançado
pelo Nasdaq. Em relação à Bovespa, celebrava o seu 29º recorde de 2007,
tendo se valorizado, até aquele dia de julho, 29,5%, após valorização de 32,9%
em 2006. A matéria destaca, por fim, o papel dos investidores estrangeiros,
que constituem o grupo “que mais negocia no mercado acionário paulista”.
Nesse contexto, e sem que seja necessário falar dos lucros dos bancos, dos
1 Texto de novembro de 2007.
grandes exportadores, etc., fica mais clara a frase de Lula de que em seu
governo os ricos ganham dinheiro como ninguém 2.
Quarta-feira, 25 de julho. A economia mundial mantém um crescimento
pujante, segundo o FMI em uma atualização das suas projeções econômicas
mundiais divulgadas originalmente em abril. Para os Estados Unidos, embo-
ra tivesse rebaixado seu crescimento previsto para 2007, de 2,2% para 2%,
era afirmado que o país retomaria o crescimento e estaria já no potencial
máximo no meio do próximo ano. Setor imobiliário? Sua correção estava
continuando e os riscos negativos para a demanda estavam diminuindo…
Estava tudo tão bem na visão do FMI que, segundo ele, tinham aumentado
as probabilidades de aumentos nas taxas de juros mundiais pelos bancos
centrais! 3
Recapitulemos: sucessivas quebras de recordes nas bolsas mundiais, “tré-
gua” nas preocupações com a economia cujo crescimento seria “pujante”,
retomada nos EUA e aumento nas taxas de juros para conter a demanda e
a inflação. Essas eram as ilusões de julho.
Fechemos a cortina do primeiro ato, saltemos menos de um mísero mês
em nossa cronologia, troquemos de jornal, da Folha para o Valor Econômico
(note-se que foi trocado o título do periódico, mas não seus patrões. Coisas
da concentração de capitais, como diria Marx) e iniciemos o segundo ato.
Sexta-feira, 17 de agosto. O mundo fora de controle – constatava o colu-
nista de investimentos do jornal, Angelo Pavini. E seguia com seu assombro:
O mundo está de ponta-cabeça. Quem era pessimista há um
mês, hoje é considerado otimista. De 19 de julho, quando
bateu 58.124 pontos, até ontem, o Índice Bovespa perdeu
19,28%, percentual que, em dólar, chega a 30,81%, por conta
da crise de liquidez iniciada com as perdas de fundos in-
ternacionais com títulos hipotecários de risco «subprime»
(Valor, 17.08.2007).
Vamos tentar qualificar o que está, de fato, de ponta-cabeça, ou melhor
dizendo, no que se resume o mundo para as classes dominantes. Deixemos
o próprio presidente do banco central dos Estados Unidos nos contar: “as
perdas financeiras globais excederam, e muito, mesmo as projeções mais

2 O cinismo da frase de Lula, várias vezes repetida, a última em seu “famoso” pronuncia-
mento das duas orelhas, quando declarou que tem uma para ouvir vaias e outra só para
aplausos, merece a citação integral, para que ninguém se esqueça e nem diga que não
sabia: “os que estão vaiando são os que mais deveriam estar aplaudindo. Os que estão
vaiando, Prefeito, posso garantir, são os que ganharam muito dinheiro neste País no meu
governo. Aliás, a parte mais pobre é que deveria estar mais zangada, porque ela teve menos
do que eles tiveram. É só ver quanto ganharam os banqueiros, é só ver quanto ganharam
os empresários.” (conforme versão transcrita pela própria Presidência da República do
discurso de 31-07-2007: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/luiz-
-inacio-lula-da-silva/discursos/2o-mandato/2007/2o-semestre, no lançamento do PAC
Saneamento Básico e Urbanização no estado de Mato Grosso).
3 Ver comunicado do FMI: La economía mundial mantiene un crecimiento pujante. Disponível
em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2007/update/01/pdf/esl/0707s.pdf.

152
pessimistas” 4. Quais eram então essas projeções? Segundo o próprio, em
depoimento no Senado do principal país imperialista, seriam superiores a
US$100 bilhões (Folha de S. Paulo, B7, 20.07.2007). Sim, de fato, Bernanke
tinha razão. As perdas serão muitíssimo superiores à já gigantesca cifra que
ele mencionou em julho.
«Bolsa-lucro» aos barões imperialistas
Para tentar evitar a propagação dessa crise financeira – e cumprindo
fielmente o seu papel de aparelhos internacionais a serviço da garantia
da reprodução do capital (retomaremos e desenvolveremos essa tese ao
final deste artigo) – os bancos centrais dos Estados Unidos, Europa e Japão,
principalmente, emprestaram em uma ação concertada US$ 395 bilhões aos
seus bancos em apenas três dias, 9, 10 e 13 de agosto (Carta Capital, p. 18,
22.08.2007).
A continuidade desses “empréstimos de liquidez” fez aquela enorme
cifra quase multiplicar-se por dez, já se aproximando de US$ 3,5 trilhões, se
considerarmos os meses de agosto e setembro (Valor, 24.09.2007). Para se
indicar uma dimensão de magnitude relativa, esse montante equivaleria a,
aproximadamente, 25% do PIB dos EUA ou quase o triplo do PIB brasileiro.
Se considerarmos em relação ao total de créditos imobiliários subprime
dos EUA, estimado em US$2 trilhões, esses empréstimos já corresponderiam
quase ao dobro de todo o estoque. A continuação desse “auxílio financeiro”
aos bancos com problemas, uma “bolsa-lucro” aos barões imperialistas, du-
rante o restante de agosto e setembro pode ser interpretada como um sinal
de permanência e da magnitude das contradições que levaram à eclosão
de mais essa crise.
Como ocorreu essa mágica misteriosa que fez transformar-se, subita-
mente, o que era, na aparência, um céu de brigadeiro dos especuladores
financeiros em um furacão que destrói impiedosamente o castelo de cartas
do capital fictício autorreproduzido?
Crises econômicas periódicas
A economia política burguesa, com seus espadachins mercenários a
excelentes soldos, sempre gastou enormes quantidades de energia e tinta
na infrutífera tentativa de mostrar que o sistema econômico capitalista
tem uma noção de equilíbrio como seu centro gravitacional, qualquer que
seja sua definição, negando tanto as contradições intrínsecas quanto suas
consequentes crises econômicas periódicas.
Para relembrar, de forma rápida, os movimentos bruscos que ocorreram
a partir da década de 1970, basta-nos enumerar a sequência de crises desde
a crise de 1973-75, quando se iniciaram os eventos que geraram a atual e
prolongada crise do imperialismo com seu movimento de reconfiguração

4 Ben Bernanke. Housing, Housing Finance, and Monetary Policy. Discurso pronunciado em
conferência anual do Federal Reserve Bank de Kansas City, em 31.08.2007. Disponível apenas
em inglês em: http://www.federalreserve.gov/newsevents/speech/Bernanke20070831a.
htm

153
da economia mundial que temos sucessivamente buscado analisar 5. Essas
crises, tais como comumente apresentadas na imprensa e por analistas
burgueses, são:
1 a primeira crise do petróleo (recessão mundial desde o final de 1973 a
começo de 1975),
2 a segunda crise do petróleo (1979),
3 a recessão mundial de 1980-1982,
4 a crise da dívida externa dos países latino-americanos (1982), que se pro-
longou por toda a década, batizando-a como “década perdida”,
5 a crise bancária do sistema de poupança e empréstimos (savings and
loans) dos EUA (1985),
6 a quebra da bolsa de Nova Iorque (1987),
7 no Japão (1990), o estouro das bolhas acionária e imobiliária, seguido de
mais de uma década de recessão, estagnação e deflação,
8 a recessão americana de 1990-1991,
9 a crise do sistema monetário europeu e o ataque à libra esterlina (1992),
10 a crise do México (1994-1995),
11 a crise asiática (1997),
12 a quebra do fundo especulativo Long Term Capital Management (1998)
nos EUA,
13 a crise russa (1998),
14 a desvalorização do real (1999),
15 a crise da Turquia (2001),
16 a crise da Argentina (2001),
17 o estouro da bolha acionária e a recessão nos EUA (2000-2001) 6.
Isso fora a estagnação e as taxas recordes de desemprego na Europa do
final dos anos 1990 e começo dos anos 2000. Ou seja, 17 eventos de crise

5 Ver textos A crise do imperialismo expressa o agravamento de todas as suas contradições e


Luta de classes e crise do imperialismo. Ver também Formação econômico-social brasileira:
regressão a uma situação colonial de novo tipo.
6 Essa sucessão de crises não passa despercebida pelos analistas econômicos burgueses
mais atentos (ou menos apologéticos). Alguns até mesmo tentam interpretar o período
em conjunto, criticando a globalização e defendendo um retorno a um “capitalismo or-
ganizado” que teria vigorado no pós-guerra. Veja-se, por exemplo, Yoshiaki Nakano, um
tucano covista, afirmando “nunca na história tivemos uma sucessão tão grande de crises
financeiras” e, em seguida enumerando várias delas (As raízes da atual crise financeira,
Valor, 28.08.2007). Enumeração similar faz o keynesiano Luiz Gonzaga Belluzzo, afirmando
que a “crise provocada pelo estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos é uma repro-
dução de crises que assolam o capitalismo desde o século XIX, a partir da criação de um
sistema bancário e financeiro, articulado com grandes empresas”, recusando-se a chamar
o imperialismo – conceito forjado por Lenin – pelo nome (Risco moral torna atual crise
mais profunda e perigosa, Agência Carta Maior, 30.08.2007. Disponível em: http://www.
cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=14606). Até mesmo o
ex-Secretário do Tesouro dos EUA, ex-economista-chefe do Banco Mundial e ex-presidente
da Universidade Harvard, Lawrence Summers, concorda que “Durante os últimos 20 anos
grandes distúrbios financeiros ocorreram aproximadamente a cada três anos”, para, logo
após, enumerá-los. (This is where Fannie and Freddie step in, Financial Times, 26.08.2007.
Disponível apenas em inglês em: http://www.ft.com/cms/s/0/1d9b2d1c-5403-11dc-9a6e-
0000779fd2ac.html).

154
– de aparência, profundidade, duração e abrangência distintas – em três
décadas e meia, um a cada dois anos, em média.
Na verdade, pode-se depreender mesmo dessa simples enumeração
de eventos que as crises passaram a ser a regra e que a exceção foram os
anos de 2002 a 2006 de relativa tranquilidade na economia mundial. Mais
que isso, essa “anomalia” está na raiz da crise atual, na medida em que os
“remédios” tomados para tentar superar, ou melhor, empurrar para frente
a crise de 2000-2001 nos EUA, juntamente com a agudização das contradi-
ções do sistema imperialista, criaram as condições para a eclosão da crise
atual 7, para “solução” da qual, inclusive, parecem em andamento medidas
similares, com resultados igualmente previsíveis.
Tendência à queda da taxa de lucro, tendência à crise
Em termos teóricos, como isso pode ser interpretado? A resposta é que – e
essa é uma tese marxista fundamental – o próprio processo de produção/
reprodução ampliada do capitalismo, como resultado de suas contradições
internas, traz em si as condições de sua negação, a crise. A expansão do ca-
pital (submetida à lei do valor), sempre em busca de lucros crescentes, gera,
por sua própria natureza contraditória, uma tendência à queda da taxa de
lucro, uma tendência à crise. Nas palavras do próprio Marx:
O desenvolvimento da força produtiva de trabalho gera,
na queda da taxa de lucro, uma lei que em certo ponto se
opõe com a maior hostilidade a seu próprio desenvolvimen-
to, tendo de ser, portanto, constantemente superada por
meio de crises (Marx. O Capital, livro III, vol. IV, cap. 15. 3ª
ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 185).
Ou ainda, no último parágrafo da sua seção consagrada à apresentação e
à análise da lei tendencial à queda da taxa de lucro, como que a sintetizar a
dialética da unidade dos contrários no sistema capitalista: desenvolvimento/
crise.
A enorme força produtiva, em relação à população, que
se desenvolve dentro do modo de produção capitalista e,
ainda que não na mesma proporção, o crescimento dos
7 Isso quer dizer, mais exatamente, no caso específico da crise atual, que foram as medidas
adotadas para sair da crise anterior que geraram a crise atual. Mais concretamente, a pro-
longada política de juros reais negativos, implementada pelo Banco Central dos Estados
Unidos, e seguida na Europa e no Japão, tornou possível a formação da bolha imobiliária e
a criação dos novos mercados de crédito para financiá-la. De forma simplificada, juros reais
negativos (ou muito baixos) estimularam a tomada de empréstimos imobiliários, tendo as
próprias casas como garantias. Esse aumento da procura por casas fez subir seus preços,
possibilitando novos empréstimos com a mesma garantia. Essa maior procura também
estimulou a construção civil e outros setores produtivos, ampliando a sobreacumulação
de capitais e superprodução de mercadorias. A espiral especulativa foi estimulada com
a criação de novos tipos de empréstimos (inovações financeiras), destacando-se os sem
garantias adequadas pelos padrões anteriores (subprime), e o repasse dos riscos para
fundos interessados em altos riscos/altos lucros, via securitização, que magnificou o
contágio mundial da crise.

155
valores-capital (não só seu substrato material), que crescem
muito mais depressa do que a população, contradizem a base
cada vez mais estreita em relação à riqueza crescente, para a
qual opera essa enorme força produtiva, e as condições de
valorização desse capital em expansão. Daí as crises (Idem.
Ibidem, p. 191).

Crises periódicas: eventos localizados? Desequilíbrios


momentâneos?
É preciso fazer aqui um alerta importante para os que buscam realizar
uma análise marxista-leninista do imperialismo, de suas contradições e
crises. Embora seja mais simples, e até mesmo de alguma forma útil para
sua identificação, nomear as crises conforme seu epicentro, essa prática
esconde um perigoso problema teórico.
Ao falarmos “crise do México”, “crise asiática”, ou atualmente “crise
dos mercados hipotecários” ou “crise dos mercados subprime”, ainda que
involuntariamente:
1 colocamos em lugar secundário, ou mesmo eliminamos por completo, a
referência ao seu aspecto central, o caráter de crises do sistema mundial
do capitalismo, de crises do sistema imperialista;
2 reforçamos apenas suas características mais aparentes, superficiais e
específicas, prejudicando – ou no limite impossibilitando – o correto
entendimento da conjuntura do sistema mundial capitalista e também
a conjuntura de cada formação social;
3 passamos a impressão de que a crise se circunscreveu ou se limitou a
um único país, deixando de vê-la no sistema mundial do capitalismo;
4 com isso estamos contribuindo para a interpretação da economia burgue-
sa de que essas crises foram “localizadas”, “momentâneas”, fruto de “erros”
das autoridades ou dos mercados ou, como chamam os economistas
burgueses, meras “falhas”, “imperfeições” ou “assimetrias” de mercado,
ou qualquer outro eufemismo da moda.
Ou seja, ao invés de ressaltar o essencial, o caráter cíclico e tendencial-
mente inevitável das crises econômicas do capitalismo determinadas pelas
contradições inerentes a este modo de produção (agravadas e modificadas
em sua fase imperialista, quando o capitalismo se constitui em sistema mun-
dial), ou mesmo suas características específicas no contexto da prolongada
crise do imperialismo nas últimas décadas, uma crise latente como veremos
abaixo, poderíamos passar a ideia das crises como eventos localizados,
isolados e conjunturais, desequilíbrios momentâneos em um sistema que
prontamente se restabeleceria.
Dito isso, como interpretar os acontecimentos dos últimos meses? Quais
suas características mais gerais? É essa resposta que buscamos oferecer aos
camaradas, ao debate, através da análise da crise do imperialismo, buscando
avançar, aperfeiçoar e desenvolver nossas formulações anteriores.

156
Análise marxista-leninista da crise do imperialismo
Podemos constatar o fantástico crescimento dos ‘mercados
financeiros’ a partir da crise de 1973/1975 … [como] sendo
uma das expressões do processo que vimos apontando:
uma permanente e contínua sobreacumulação na esfera
financeira de capitais que não encontram aplicação no setor
produtivo à taxa média de lucro. (ver A crise do imperialismo
expressa o agravamento de todas as suas contradições).

[A] reconfiguração do sistema imperialista tende a [gerar]:



tendências a agravar a superprodução de mercadorias e a
superacumulação de capitais que, cada vez mais impossi-
bilitados de se aplicarem à produção, necessitam ser valo-
rizados na esfera financeira. Capitais que – não podendo
ser aplicados produtivamente – vêm sendo valorizados
na esfera financeira, do que vem resultando em sucessivas
crises financeiras, ou melhor, uma crise financeira latente:
tendência a uma crise financeira geral. (ver Luta de classes
e crise do imperialismo).
Antes de discutir a crise do imperialismo é importante fazer um parêntese
para chamar atenção a um fato muito comum hoje. Mesmo aqueles que se
reclamam marxistas, que se queixam de seguir “um dos marxismos” em moda,
esquecem de Lenin, ou para não ficarmos em circunlóquios e ir direto ao
centro da questão, esquecem de Marx e, filisteus, põem-se a serviço da versão
em moda da ideologia da classe dominante. Esquecer Lenin é abandonar
Marx e enterrar qualquer possibilidade de analisar e combater o imperialismo.
Novas características do processo de produção/reprodução
capitalista
Em nossas análises sobre a economia mundial, nas quais, como diz Lenin,
“nos baseamos integralmente na teoria de Marx” (Lenin, Outubro de 1899.
Nuestro programa. In: Obras Completas. Tomo 4, Moscú: Editorial Progreso,
1981. 194 p), temos avançado uma tese para a discussão. Tese de que a par-
tir da crise de 1973/1975, a primeira crise do pós-guerra que atingiu todo
o sistema mundial do capitalismo, o processo de produção/reprodução
capitalista vem adquirindo novas características, especialmente nos países
imperialistas e, por consequência, também nos países dominados, nesse
caso, com importantes características nacionais específicas.
Em primeiro lugar, as crises econômicas mundiais do sistema capitalista
– nas palavras de Marx, o “fenômeno mais intrincado da produção capita-
lista – a crise do mercado mundial”, que constituem “a convergência real e o
ajuste à força de todas as contradições da economia burguesa” 8 – as crises

8 Marx (1862-1863). Teorias da Mais-Valia: história crítica do pensamento econômico. Livro


IV de O Capital, v. 2. São Paulo: Ed. Difel, 1980, p. 937 e 945 (negrito nosso).

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do imperialismo, o que inclui a de 1973/1975 e todas as posteriores, acima
enumeradas, devem ser entendidas em seu duplo aspecto. Isso quer dizer que
a análise marxista deve avaliar, por assim dizer, conjuntamente, suas causas
gerais, as contradições inerentes à produção capitalista, que igualam todas
elas como crises do sistema capitalista, e seus aspectos particulares, exata-
mente os que as diferenciam, referentes a cada conjuntura histórica. Desse
duplo aspecto da crise, a oposição geral/particular, o geral é o dominante.
Dessa forma, as crises que enumeramos acima permanecem com seu
caráter geral de crises do capitalismo. Permanecem expressões da contra-
dição entre a produção social e a apropriação privada sob o capitalismo.
Permanecem fruto da contradição entre o desenvolvimento da produtivida-
de, expresso no aumento da proporção de capital constante na composição
orgânica, e a diminuição da base de extração de mais-valia, a diminuição
da proporção de capital variável, levando à tendência de queda da taxa de
lucro. Permanecem resultados da contradição entre a lógica férrea de acu-
mulação individual de cada capitalista e o resultado da acumulação de todos
os capitalistas, da anarquia de mercado, na qual cada capitalista produz de
costas para o mercado, em concorrência, sob o risco de ser expropriado por
outro capitalista (centralização de capitais). Ou seja, mesmo sabendo dos
riscos de crise, cada capitalista individual não pode deixar de agir buscando
lucros crescentes, mesmo que isso, para o conjunto dos capitalistas signifique
acelerar a chegada da crise ou mesmo torná-la inevitável 9.
A impossibilidade de uma retomada «virtuosa»
A nova característica, em seu aspecto geral, que temos procurado dis-
cutir e que caracteriza as crises econômicas do imperialismo a partir da
crise mundial de 1973/1975 10 e de sua retomada é, resumidamente, que a
crise econômica não mais consegue queimar capital suficiente para uma
retomada “virtuosa”.
Aqui uma explicação é necessária. Evidentemente, o “virtuosa” acima não
tem nenhuma relação com a conquista de direitos pelas classes dominadas.

9 Por exemplo, olhando a posteriori, parece evidente a qualquer um que a bolsa de Xangai
subir 100% por ano ou mais, todos os anos, era inviável, uma bolha em busca de estourar.
Acontece que um “capitalista racional” que tivesse saído da bolsa em 2006 – porque achava
que o desempenho dela era incompatível com os fundamentos – perdeu uma valorização
de 100% do seu capital que o capitalista seu vizinho, munido da “ganância irracional”,
como diz Alan Greenspan, teve. Os exemplos são inúmeros e se repetem a cada crise. Essa
“irracionalidade” das bolhas financeiras já gerou até mesmo estórias como as da Merposa.
Para os curiosos, uma visita ao clipping do Ministério da Fazenda, que reproduz matéria do
Valor de 08.02.2006, sobre essa, digamos assim, empresa, poderá ser instrutiva e também
divertida (http://www.fazenda.gov.br/resenhaeletronica/MostraMateria.asp?cod=264593).
O “M…” na matéria, que um provável sentimento de pudor do jornal não permitiu escrever
por extenso, é merda mesmo, negociada alegremente pelos especuladores da época.
10 Aqui é preciso chamar atenção para um trabalho publicado por Antonio Mendonça A
crise econômica e a sua forma contemporânea, realizado sob orientação de Suzanne de
Brunhoff, para obtenção do grau de doutor em economia, no qual é um dos primeiros
a assinalar as novas características que vai assumindo o imperialismo: “O ano de 1974
parece ter constituído um ponto de viragem decisivo no funcionamento da economia
capitalista mundial.” (MENDONÇA; 1990, p. 34).

158
Esses só serão arrancados ao capital e a seus governos com uma luta de
classes ferrenha e constante e estarão – como agora no Brasil, por exemplo –
sempre ameaçados pela ganância dos capitalistas e de seus governantes que
têm orelha para ouvi-los e que a eles se ajoelham. “Virtuosa”, no parágrafo
anterior, é do ponto de vista da lógica do capital, com o início de um novo
ciclo ascendente, a retomada de um processo de acumulação/reprodução
ampliada do capital, de produção de mais-valia, de intensificação da ex-
ploração do proletariado. Lógica que a citação de Karl Marx que serve de
epígrafe a este texto destaca de forma cristalina. Continuemos.
O que queremos dizer é que as crises não mais desempenham integral-
mente, em geral, o papel que Marx descrevia para as crises do período do
capitalismo concorrencial, pré-imperialista, de sua época. Esse papel, de des-
truir valor e capital e possibilitar uma nova reprodução, está explicitado por
Marx nas “Teorias da Mais-Valia”, que nos sentimos obrigados a transcrever:
Quando se fala de destruição de capital por crises, há duas
coisas a distinguir.
À medida que estagna o processo de reprodução e que o
processo de trabalho se restringe ou pára de todo em certos
pontos, destrói-se capital real. Não é capital a maquinaria
que não se utiliza. O trabalho que não se explora equivale a
produção perdida. Matérias-primas que jazem ociosas não
são capital. Edifícios (e também nova maquinaria construída)
que para nada servem ou permanecem inacabados, merca-
dorias que apodrecem em depósito, tudo isso é destruição
de capital. Tudo isso se reduz à paralisação do processo de
reprodução e a que as condições de produção existentes não
exercem na realidade as funções de condições de produção,
não são postas em atividade. Então seu valor de uso e valor
de troca vão para o diabo.
Mas, no segundo significado, destruição de capital por cri-
ses é depreciação de valores que os impede de renovarem
depois, na mesma escala, o processo de se reproduzirem
como capital. É a queda ruinosa dos preços das mercadorias.
Com ela não se destroem valores de uso. O que um perde,
o outro ganha. Os valores operantes como capital ficam
impossibilitados de se renovar como capital nas mesmas
mãos. Os velhos capitalistas quebram… Grande parte do
capital nominal da sociedade, isto é, do valor de troca do
capital existente, é destruída de uma vez para sempre, em-
bora essa própria destruição, por não atingir o valor de uso,
incentive muito a nova reprodução (Marx (1862-1863). Teorias
da Mais-Valia, p. 931-932).
Essa nova característica da crise decorre, fundamentalmente, das no-
vas características adquiridas pelo capitalismo em sua fase imperialista,

159
com o domínio dos monopólios financeiros (centralização dos capitais
produtivo e bancário, é bom lembrar), e com a total repartição do mundo
entre esses monopólios. Elimina-se, assim, por esgotamento, importante
fator contrariante à queda da taxa de lucro, a possibilidade de expansão
de mercados via comércio exterior, que implicava a incorporação de novas
porções do globo à esfera do capitalismo. Agora só resta a guerra entre os
países imperialistas para permitir uma nova repartição dos mercados, como
Lenin mostrou teoricamente e as seguidas guerras desde a primeira guerra
mundial mostram na prática.
A saída não “virtuosa”: ampliação da acumulação fictícia
Além disso, dado o nível atingido pela sobreacumulação de capitais e
pela superprodução de mercadorias, ao nível global 11, a magnitude da
queima de capital exigida para uma retomada “virtuosa”, tenderia a alcançar
relativamente proporções e duração de uma crise mundial maior que a de
1929 e/ou de uma guerra mundial como as duas do século passado, com o
consequente avanço da luta de classes e do socialismo. Esse impasse, expresso
na dupla impossibilidade: da crise desempenhar seu papel tradicional de
queima de capitais na magnitude necessária, e da acumulação retomar sua
escalada, encontrou uma solução, parcial e transitória, na criação de um
novo “mercado” para o capital, solução que só foi possível na conjuntura de
defensiva do proletariado e das demais classes dominadas na luta de classes.
Podemos dizer, usando uma tópica, que de forma similar à que o capital in-
glês da época de Marx ampliava sua área de atuação via comércio internacional,

11 Para exemplificar a magnitude dessa sobreacumulação de capitais que tem como centro
a principal economia imperialista do planeta, tornando-os crescentemente incapacitados
de se reproduzirem ampliadamente à taxa de lucro desejada, pode-se consultar o livro
de Robert Brenner. O Boom e a Bolha: os Estados Unidos na Economia Mundial. Rio de
Janeiro: Record, 2003 (concluído em julho de 2001). Com o objetivo de analisar os fatores
que permitiram “a perpetuação de uma longa estagnação na economia mundial, entre
1973 e 1995” (p. 13), Brenner aponta sua causa: “o excesso de capacidade no setor manufa-
tureiro internacional, que há muito é responsável direta ou indiretamente pelo reduzido
crescimento econômico… Disso resultou uma queda acentuada da lucratividade” (p. 17).
Brenner segue durante todo o livro demonstrando esses fatos, analisando os principais
setores da economia americana e sua respectiva sobreacumulação, mostrando a bolha
acionária e de tecnologia de informação como uma “válvula de escape” e a crise do “estouro
da bolha” como retorno à tendência de estagnação.
Mais recentemente, Aglietta, analisando o que chama de “desordens” no capitalismo
mundial – que teriam como marco inicial, marco da “mudança de regime” de acumula-
ção, a crise “asiática”, de 1997, e como antecedentes a crise do sistema de paridades fixas
e controles de capital de Bretton Woods (a partir de 1971, com a flutuação do dólar), os
choques do petróleo nos anos 1970, a crise “da dívida” dos países dominados nos anos 1980
e a restauração do capitalismo nos países socialistas, evento que “abriu o mundo inteiro
ao capitalismo ocidental” (p. 8) a partir do que considera a criação de “um espaço livre
para a expansão do capital à procura de rentabilidade elevada” (p. 13) – também aponta
a sobreacumulação de capital: “Não é igualmente nada surpreendente que os Estados
Unidos tenham sido o principal país em termos de sobrecapacidade produtiva entre 2002
e 2005” (p. 24), sobreacumulação posta a nu com o estouro da bolha em 2001: a “formação
da bolha e seu posterior estouro arremataram o desenvolvimento de sobrecapacidades
permanentes” (p. 30). Michel Aglietta e Laurent Berrebi. Désordres Dans Le Capitalisme
Mondial. Paris: Éditions Odile Jacob, março de 2007.

160
o capital monopolista ampliou sua esfera de acumulação criando um novo
espaço, uma verdadeira máquina especulativa de reprodução fictícia de capital.
Esse capital fictício 12 – mais comumente referido pela economia bur-
guesa como “especulação financeira” – incessantemente gerado, cumpre o
papel de buscar manter e ampliar a lucratividade do capital sobrante que
os capitalistas têm cada vez mais dificuldade de aplicar em suas atividades
(produtivas e financeiras) tradicionais, devido à sobreacumulação.
Assim, seu efeito global é contraditório, pois ao tempo em que esse
capital fictício poderia aumentar a capacidade de acumulação produtiva
(investimentos) ou de consumo improdutivo (ampliando a demanda) do
seu possuidor em seu aspecto de capital individualmente real, e com isso
contribuir para ampliar a escala de reprodução (aumentar o crescimento), ele
também resulta em uma nova opção de valorização por parte do capitalista.
Em conjuntura de sobreacumulação permanente e recuo das taxas de
lucro, com a eliminação das regulamentações que restringiam a valorização
fictícia, as decisões de investimento vêm pendendo cada vez mais para a
acumulação fictícia, ampliando a tendência de estagnação/recessão, ao invés
da crise econômica “virtuosa” e retomada da reprodução ampliada do capital.
Atuação dos Aparelhos Internacionais
Nesse processo soma-se outro aspecto detendo/limitando a crise: a
atuação dos Estados nacionais, principalmente os dos países imperialistas a
serviço de seus capitais, e dos aparelhos internacionais criados/fortalecidos
a partir do pós-guerra para gerenciar as condições gerais nas quais ocorre
a produção/reprodução do capital, sejam eles os chamados organismos
financeiros internacionais (FMI, Banco Mundial, Banco de Compensações
Internacionais, o “banco dos bancos”, significativamente situado na Suíça,
etc.) ou os bancos centrais dos principais países imperialistas, atuando de
forma cada vez mais orquestrada 13.
12 Nunca é demais lembrar que o capital fictício, parcela do capital que se reproduz auto-
nomamente, dissociada do valor efetivamente investido na produção e da mais-valia aí
obtida, tem que ser considerado em seu caráter contraditório: fictício do ponto de vista
social e bastante real do ponto de vista do capitalista individual que o detém. Ou seja,
embora não amplie o montante de mais-valia produzida a cada período, atua na repartição
dessa mais-valia na esfera da circulação, na reprodução, ampliando a parcela desta que
cabe a seu detentor (na divisão da mais-valia produzida), aumentando a concentração
de capitais em suas mãos.
13 Um único exemplo basta para demonstrar essa orquestração, reforçando nosso argu-
mento. Como diz (e torce) o Estadão, “Os bancos centrais vão intervir nos mercados de
forma coordenada para tentar evitar que a atual crise se prolongue” (OESP, B1, 11.09.2007).
Ainda de acordo com a matéria, o presidente do Banco Central Europeu e porta-voz
do grupo, após reunião em Basiléia, na Suíça, falava de ação concertada não apenas
com seus pares imperialistas, mas também com “os BCs de países emergentes”. Mais
explicitamente: “Nossos encontros ilustram as relações íntimas que existem entre BCs,
na troca de informações de forma honesta. A confiança mútua que temos repercute em
cada uma de nossas decisões domésticas. As responsabilidades hoje são pesadas sobre
os BCs”. Na mesma ocasião, o presidente do BC do Brasil, o ex-banqueiro internacional
Henrique Meirelles, tratou de fazer-lhe eco: “Os BCs estão em contato permanente, para
que estejam prontos a entrar num processo de coordenação mais de perto caso haja
necessidade”.

161
Por fim, mas não menos importante, e seguindo uma velha lição do
marxismo-leninismo, não podemos jamais esquecer de que o capitalismo é
um modo de produção cindido irremediavelmente por contradições anta-
gônicas que não podem ser progressivamente atenuadas por reformas até
desaparecerem, não podemos jamais esquecer a luta de classes, no interior
da qual se dá a acumulação capitalista.
Toda a análise marxista do capitalismo tem como pressuposto o anta-
gonismo burguesia/classe operária, processo de produção que é, ao mesmo
tempo, processo de exploração. Todo único constituído pelo processo de
exploração e produção, no qual as condições de exploração à qual os tra-
balhadores são submetidos produzem sua resistência à opressão capitalista.
Tanto no nível econômico imediato, relativo às condições concretas nas quais
se dão o processo produtivo e a divisão da mais-valia produzida, quanto em
nível superior com a luta política da classe operária, criação de seu partido
visando à derrubada do regime burguês.
Defensiva da classe operária na luta de classes
O processo de crise/reconfiguração do imperialismo, do sistema mundial
do capitalismo, que estamos analisando, ocorre em período de defensiva
da classe operária na luta de classes, marcado por um amplo domínio de
posições revisionistas e reformistas, isto é, posições burguesas entre os
trabalhadores e suas organizações de vanguarda, com destaque para o PT,
PCdoB, etc. Essa defensiva marcou o início, nos níveis teórico e político, do
movimento que levou à restauração do capitalismo na ex-União Soviética
e nos países da Europa oriental e, com a especificidade da manutenção de
partidos nominalmente comunistas no poder, também na China.
Para a análise que estamos desenvolvendo nesse artigo, podemos apre-
ender esse processo como um fator contrariante adicional à queda da taxa
de lucro, pois o resultado da restauração capitalista nesses países implica
na abertura de novos espaços à reprodução ampliada do capital em nível
mundial, com taxa de lucro potencialmente maior que a dos países impe-
rialistas e mesmo que a de alguns países dominados.
Temos, então, criadas as condições para que as crises econômicas se dêem
em outras condições de reprodução do capital. As crises deixam de cumprir
integralmente seu “papel” de reposição das condições de acumulação, de
reposição das condições do desenvolvimento capitalista, de mudança no
aspecto dominante do processo de reprodução, de crise para desenvol-
vimento, que permite a ultrapassagem daquele momento (as crises) da
contradição desenvolvimento/crise – antagonismo expresso no fato de que
o capitalismo gera, inexoravelmente, seus próprios limites, como resultado
do desenvolvimento anterior – mediante sua superação e recolocação em
novas condições dos opostos desenvolvimento/crise, tornando-se o desen-
volvimento/reprodução ampliada aspecto dominante.
Crise latente
Agora, ao não criarem condições suficientes para uma nova retomada do

162
processo de acumulação, mediante a desvalorização/queima do excesso de
capital, as crises passam a ser, em geral, menos profundas e menos duradou-
ras, atingindo principalmente as condições vigentes de valorização fictícia.
No entanto, essa mesma condição faz com que os obstáculos à acumulação
produtiva se recoloquem cada vez mais prontamente ou mesmo não sejam
eliminados. A cada momento, as contradições não são resolvidas (inteira-
mente), ao invés disso a sua resolução é “adiada”, dando uma sobrevida a este
processo de acumulação com predomínio na valorização fictícia do capital.
Isso, porém, gera as condições para que as contradições se recoloquem a
seguir, agravadas. Esse processo gera um estado de crise latente, entremeado
com as frequentes erupções que temos visto.
Mais concretamente, avaliamos que ocorreram dois movimentos gerais
principais na tentativa de retomada da acumulação na virada dos anos
1970/1980.
Primeiro, o que temos denominado de reconfiguração da economia
mundial do imperialismo, com uma nova divisão internacional do trabalho,
na qual, em movimento inédito, os países imperialistas transferem parcelas
significativas do conjunto de sua indústria para outros países, notadamente
a China, em busca de condições mais favoráveis para a valorização produtiva
do capital, principalmente o elevado grau de exploração da força de trabalho,
expresso no seu ínfimo valor.
A restauração do capitalismo na China (e também em outros países,
juntamente com o aumento da exploração do trabalho nos países domi-
nados) levou a que se constituísse em local privilegiado para a expansão do
capital imperialista, como zona de produção de mercadorias baratas 14 para
o mercado mundial, via exploração da força de trabalho a níveis impensáveis
mesmo pelo mais cruel burguês.
Esse movimento está mais detalhadamente analisado nos textos men-
cionados neste artigo. Esse mesmo processo criou condições/necessidades
novas para a (re)inserção dos países dominados na economia mundial, a
necessidade de uma reconfiguração da divisão internacional do trabalho,
o que determina as características nacionais específicas que mencionamos
acima e que temos analisado no que se refere ao Brasil, como uma regressão
a uma situação colonial de novo tipo.
O segundo movimento é exatamente o de criação de um conjunto de
mecanismos voltados a possibilitar o funcionamento da verdadeira máquina
de valorização fictícia do capital que vemos em funcionamento hoje na
economia mundial e também dentro de cada formação econômico social.
Como já mencionado, as crises mundiais dos anos 1970/1980 obstaculizaram
14 Mercadoria barata aqui não significa produção de bugigangas ou de produtos a R$ 1,99
apenas. Essa caracterização da produção chinesa, embora ainda importante em suas ex-
portações mundiais de brinquedos, produtos têxteis e demais manufaturados intensivos
em mão de obra, não reflete mais o conjunto do que é produzido pelas filiais das empresas
transnacionais na China e pelos próprios monopólios chineses. O início da produção e
exportação, em fábricas instaladas na China, de mercadorias industriais mais elaboradas,
com maior tecnologia e maior “valor agregado” não só já é uma realidade como tenderá
a agravar ainda mais os conflitos econômicos e políticos interimperialistas.

163
o processo de valorização produtiva e, com isso, geraram estímulo a que
o capital buscasse formas alternativas/complementares de valorização.
Essa necessidade, férrea e cega, de valorização produziu as políticas de
liberalização e desregulamentação dos fluxos internacionais de capitais na
economia mundial e também dentro de cada país, processo que têm como
marco político os governos de Reagan, nos EUA, e de Thatcher, na Inglaterra.
Com isso foi constituído, e vem sendo reforçado, o chamado “mercado
financeiro” que, na virtual ausência de controles com o seguimento do
processo de liberalização e desregulamentação, cria seguidas “inovações
financeiras”, ou em termos mais apropriados, novas formas de acumulação
fictícias, nunca antes imaginadas.
A reprodução conjunta produtivo/financeiro-fictícia
O que é importante ressaltarmos nesse momento é que, uma vez consoli-
dado esse processo, todo e qualquer capitalista individual passa a incorporá-
-lo, ou seja, passa a haver a reprodução conjunta produtivo/financeiro-fictícia
de qualquer parcela individual de capital. Cada capitalista passa a reproduzir,
conjuntamente, seu capital de forma produtiva e também fictícia. Não
existe mais, a não ser na imaginação dos reformistas, a figura do capitalista
industrial puro, contra o qual estaria oposto um puro especulador 15. Eles se
interpenetram e, no limite, são um só. O capitalista industrial (onde existisse
só com seu capital aplicado à indústria) é levado a, de forma crescente, aplicar
suas sobras de caixa, seu capital de giro, em atividades financeiro-fictícias
para aumentar a taxa de lucro global do seu negócio. Logo em seguida, não
serão mais apenas as “sobras”, mas a própria decisão dessa repartição, acu-
mulação produtiva/acumulação financeiro-fictícia, que será condicionada

15 Três significativos exemplos para não nos alongarmos demasiadamente em algo que deveria
ser por demais evidente. Um industrial conhecido, como Antônio Ermírio de Moraes, o
bilionário chefe do grupo Votorantim, iniciado faz quase um século com uma tecelagem
e depois expandido para as áreas de cimento, metalurgia, celulose e papel, energia,
agroindústria e química, também atua na área financeira. Há vinte anos foi criada uma
holding financeira encabeçada pelo Banco Votorantim que hoje conta com financeira,
gerenciadora de ativos, empresa de leasing e corretora. O Banco Votorantim é, de acordo
com informação do Banco Central referente a junho de 2007, o 8º maior banco privado
por ativos e o 6º por patrimônio líquido.
Em seguida, um especulador conhecido como Armínio Fraga Neto, ex-funcionário de
George Soros em Nova Iorque e ex-presidente do Banco Central, depois de deixar o
governo FHC criou uma bilionária empresa de “gestão de ativos”, a Gávea Investimentos,
uma das maiores do país. Além de gerenciar agressivos hedge funds, a empresa também
tem participações em fazenda de café, na editora Nova Fronteira, no McDonald’s, em
portos, é administradora de shopping centers entre outros negócios da economia real.
Por fim, apenas para não esquecer o ex-chefe de Armínio, George Soros, o estereótipo
do especulador internacional, acaba de comprar uma usina de açúcar e álcool em Minas
Gerais e deve investir também no Mato Grosso do Sul, em ambos os casos por intermédio
de sua empresa de bioenergia e alimentos. Além disso, exemplo final, os fundos de hedge,
que são geridos pelas maiores aves de rapina do capitalismo atual, contam entre os seus
investidores ou cotistas com o mesmo capitalista “industrial” (afinal de contas, se não
fosse deste, capital de quem eles investiriam?) que reclama dos juros altos, do câmbio
apreciado, da isenção de imposto de renda aos investidores estrangeiros, da carga tribu-
tária, da falta de infraestrutura, etc.

164
pelas condições da reprodução/rentabilidade financeiro-fictícia. A separação
acima mencionada, ideológica, é a visão que os próprios capitalistas e seus
defensores gostam de propagar de si mesmos, quando necessário.
Quando dizemos reprodução conjunta produtivo/financeiro-fictícia de
qualquer parcela individual de capital queremos dizer que as decisões de re-
produção de capital, no nível de qualquer capitalista individual, contemplam,
sempre, todo o investimento possível na sua atividade específica, o ramo
da indústria ao qual está vinculado, quanto na esfera financeiro-fictícia, em
fundos de investimento, dívida pública, ações, derivativos, hedge, e quantas
variações forem possíveis.
Essa valorização fictícia do capital já se entranhou na valorização do
capital global, pressionando as condições de valorização do capital aplicado
à produção. Isso quer dizer que a rentabilidade esperada dos investimentos
fictícios passa a ser critério para decisões de acumulação na esfera produtiva.
Enfim, a proporção entre esses investimentos é dada pelas condições
conjunturais concretas a cada momento, embora de forma geral possamos
afirmar que a parcela financeiro-fictícia vem sendo crescente.
Também é importante enfatizar que esse é um processo sem retorno.
Uma vez construída essa máquina de valorização financeiro-fictícia ela
tende a permanecer e se fortalecer, alterando as condições de reprodução
ampliada. Ou seja, nem mesmo um cada vez mais improvável novo período
de acumulação produtiva “virtuosa” levaria ao desmonte dessa máquina
especulativa. Pelo contrário, sua permanência é critério cada vez mais
importante do cálculo da valorização global de cada capital e fator que
permite a reprodução do capital.
Pressuposto da constituição e do fortalecimento dessa máquina de
valorização financeiro-fictícia foram os movimentos de liberalização e des-
regulamentação de capitais. Pressionados pela necessidade de novo espaço
de valorização, os estados imperialistas fizeram, na verdade, uma “regula-
mentação negativa”, abrindo novos espaços antes bloqueados à valorização
autônoma do capital.
Aparelhos Internacionais: fator contrariante adicional à
queda da taxa de lucro
Nesse processo, o que estamos chamando de “aparelhos internacionais”
desempenhou papel fundamental, não apenas na “regulamentação negativa”
que estava a seu encargo (bancos centrais) e na propaganda incessante ou
mesmo imposição dessas medidas a todos os países (FMI, Banco Mundial,
etc.), mas também na definição das condições mais gerais de reprodução do
capital. Condições como as taxas de juros e de câmbio, os demais instrumentos
de política monetária, política fiscal e, no limite, no escancarado salvamento
dos “coitados” dos capitalistas que estão tomando prejuízos com a eclosão
da crise. Aqueles mesmos que ou acreditaram na ilusão do crescimento per-
manente ou foram forçados a agir dessa maneira pela concorrência entre os
capitais, sendo pegos de “surpresa” com a chegada da crise. Ilusão e surpresa
bem expressos na citação da Folha de S. Paulo do início deste artigo.

165
Assim, essas instituições servem à produção/reprodução ampliada do
capital, em nível nacional e mundial, como um fator contrariante adicional
à queda da taxa de lucro, manipulando juros, empréstimos de liquidez e
demais instrumentos.
Como afirmado por nós em artigo anterior:
É o processo de construção e sustentação de uma máqui-
na de valorização financeira – e vamos aqui avançar uma
tese: a construção de Aparelhos Internacionais a serviço da
reprodução do sistema imperialista, tradução na superestru-
tura do processo de formação de uma economia capitalista
mundial cada vez mais integrada, o imperialismo –, que vem
permitindo o processo que analisamos de valorização de
capitais no «mercado financeiro».
Sem estes Aparelhos, a valorização do capital no «mercado
financeiro» não poderia se dar sem uma crise que se ge-
neralizasse para a economia como um todo e para toda a
economia mundial. O que quer dizer, crise que inviabilizasse
a «máquina financeira» enquanto espaço de valorização e
que estendesse seus efeitos ao setor produtivo, a indústria.
(ver texto A crise do imperialismo expressa o agravamento
de todas as suas contradições).
Em meados de setembro, o Banco Central dos Estados Unidos diminuiu
sua taxa de juros de 5,25% para 4,75% e, em outubro, para 4,5%, retomando a
não-saída da crise pela tentativa de ajustar as condições ao reinício da ciranda
especulativa. Essa medida gerou duas reações distintas. Por um lado, uma
parte dos próprios defensores do capitalismo foram-lhe contrários, defen-
dendo que a especulação teria ido longe demais e que seria necessária uma
crise mais profunda, com falências “pedagógicas”, em benefício dos interesses
mais permanentes, de longo prazo, do próprio sistema 16. Por outro, os espe-
culadores, sem essas preocupações nem esses escrúpulos, imediatamente
retomaram com toda a fúria a geração de capital fictício, criando novos

16 É bastante significativo que esse seja o tema de editorial da bíblia semanal dos capitalistas,
a revista inglesa The Economist. Com o título de Será que uma recessão não faria bem
aos EUA? (republicada pelo jornal Valor, em 27.08.2007) defende a recessão dizendo que
“Muitos dos atuais problemas financeiros americanos podem ser atribuídos à moderação
da recessão de 2001”, quando o país “recebeu a maior injeção monetária e fiscal de sua
história”, o que “simplesmente substituiu uma bolha [de ações] por outra [imobiliária]”.
Para a revista, a “recessão purga os excessos do boom anterior, deixando a economia mais
saudável”, e por isso, um conjunto de medidas semelhantes às de 2001 “provavelmente
tornará uma futura correção mais dolorosa”. Assim, o dilema seria entre “uma recessão
branda agora e uma recessão mais grave mais adiante”. A revista, no entanto, curva-se à
lógica férrea da acumulação de capital, que determina que seus aparelhos internacionais
façam o máximo para salvar os capitalistas de si mesmos e conclui: “mesmo se uma recessão
estivesse alinhada com o interesse econômico americano de longo prazo, seria um suicídio
político defendê-la. Se um presidente de banco central aventasse a ideia, logo poderia
deixar de sê-lo”. Outro a defender essa posição é Martin Wolf, colunista do Financial
Times, no artigo Insensatez e suas conseqüências (republicado no Valor, 29.08.2007).

166
recordes nas bolsas de valores e, esquecendo do dia de ontem, preparando
a próxima “surpresa” que os espera em breve, muito breve. Como estampa
o caderno Dinheiro da Folha de S. Paulo: Bolsa volta a bater recorde e zera
as perdas com a crise (FSP, B1, 25.09.2007), valorização que o jornal atribui
ao retorno dos especuladores estrangeiros. É claro que Lula não perdeu mais
essa chance de bajular os gringos, assunto de sua especialidade 17.
Como se trata de uma “surpresa previsível”, passaram-se alguns dias e
novas manchetes: EUA injetam US$ 41 bi para acalmar mercados. Valor é
o maior desde o pós-11 de Setembro; situação dos bancos afeta Bolsas (FSP,
primeira página, 02.11.2007) e Temor com bancos faz Bolsas recuarem. Dow
Jones cai 2,6%, com rebaixamento de nota de Citigroup; Fed faz maior injeção
de dinheiro desde setembro de 2001 (FSP, B1, 02.11.2007).
Em suma, a crise atual, mais uma expressão da crise latente do sistema
mundial do capitalismo, do imperialismo, não será a crise final do imperia-
lismo, e nem haverá uma. Essa crise nos mostra, novamente, os limites aos
quais a valorização produtivo/financeiro-fictícia tem levado o imperialismo,
suas contradições e seu caráter regressivo, parasitário. A única solução para
essa contradição é a inauguração de uma nova era com a transição para o
socialismo, rumo ao comunismo. E, para que seja possível avançar nessa
tarefa, é necessário retificar, aprofundar a análise da conjuntura na qual
lutamos, forjar uma linha justa para dirigir a luta e desta forma - em um
trabalho político cotidiano, combativo, tenaz e persistente entre as massas
exploradas e oprimidas - fazer avançar as posições do proletariado na luta
de classes.

17 Mesmo estando em cerimônia de inauguração de um aeroporto em Cabo Frio, em


28.09.2007, não perdeu a chance de achar uma deixa e fazer uma demonstração de
servilismo explícito: “o dia em que nós, brasileiros, e, sobretudo, os nossos empresá-
rios tiverem 50% da confiança no Brasil que estão tendo os investidores estrangei-
ros, este País vai dar um salto de qualidade em dez anos, que ele não deu em 50
anos. Vai dar um salto de qualidade extraordinário” (disponível no endereço: http://
www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/luiz-inacio-lula-da-silva/discursos/
2o-mandato/2007/2o-semestre/28-09-2007-discurso-do-presidente-da-republica-luiz-ina-
cio-lula-da-silva-na-cerimonia-de-inauguracao-do-aeroporto-internacional-de-cabo-frio/
view).

167
Algumas lições da crise para a nossa luta 1

A crise prolongada que o imperialismo vem atravessando nas últimas


décadas entrou, desde agosto de 2007, em sua fase aberta. A superacu-
mulação generalizada de capitais sem condições de serem aplicados na
produção à taxa de lucro média obtida em períodos anteriores, somada à
gigantesca destruição de capital fictício e ao travamento dos circuitos de
crédito (interrupção da acumulação do capital portador de juros), tornam
a crise atual a maior e mais importante desde 1929.
Com esta crise se agravam todas as contradições constitutivas do ca-
pitalismo: o aumento da exploração da classe operária e demais classes
dominadas; o agravamento dos conflitos interimperialistas; a ampliação
das contradições desses países imperialistas com os povos dos países do-
minados; além da extensão da centralização de capitais, o que reforça o
caráter monopolista do capitalismo em sua fase imperialista. Além disso,
a “esquerda” reformista e revisionista torna inteiramente explícito de qual
lado se posiciona na contradição burguesia/proletariado, ao defender as
reformas que julga necessárias para salvar o capitalismo da crise e, quando
no poder, criar efetivamente medidas para beneficiar o capital.
A atual fase da crise do imperialismo permite, portanto, à classe operária
tirar inúmeras lições para instruir sua luta.
1ª lição: a farsa da “teoria” econômica burguesa.
A primeira lição ressoa do mar de lamentações em que se transformaram
os periódicos burgueses, aparelhos ideológicos da burguesia: é a de que a
burguesia não tem nenhuma condição de elaborar qualquer coisa parecida
com uma teoria que explique a sua crise. Só para exemplificar, tomemos o
último livro de Alan Greenspan (A Era da Turbulência: aventuras em um novo
mundo. Capítulo especial: epílogo sobre a crise americana. Rio de Janeiro:
Campus/Elsevier, 2008), o ex-todo poderoso presidente do banco central
dos Estados Unidos nos governos Reagan, Bush pai, Clinton e Bush júnior.
Como esse expoente da ideologia econômica burguesa, do livre mercado,
da globalização e do neoliberalismo avalia a crise? “O estopim fora a subpre-
cificação do risco” (p. 4). “Foi a incapacidade de atribuir preços adequados
a esses ativos arriscados que prepararam o palco para a crise” (p. 17). Suas
causas, então, seriam “práticas lenientes e fraudulentas na concessão de em-
préstimos hipotecários, securitização indiscriminada de produtos de crédito
e uso excessivo de recursos arriscados de curto prazo para o financiamento
de ativos de longo prazo” (p. 54). Além dessas causas, digamos “técnicas”, há
outro fator para a crise segundo Greenspan, que resume espetacularmente
a falência da ideologia econômica da burguesia: “fobias humanas” (p. 62),
pois “Um dia, a subprecificação do risco teria de colidir com a aversão ao
risco, inerente ao ser humano: a crise era uma certeza psicológica” (p. 45).
Como bem assinala Suzanne de Brunhoff, a ideologia da burguesia,
1 Texto de janeiro de 2009.
aquilo que eles vendem enquanto teoria econômica, só serve para ocultar
os processos reais através dos quais o capitalismo se desenvolve, ocultar a
exploração capitalista.
Por pensamento «acadêmico» (chegaremos também a utili-
zar a expressão «pensamento burguês»), entendemos todo
o conjunto de noções que não permite, impedindo mesmo,
compreender o modo de funcionamento do capitalismo; e
isto em oposição ao materialismo histórico como «crítica da
economia política» assumindo seu próprio ponto de vista
de classe. (BRUNHOFF, Suzanne de. A Política Monetária:
Um ensaio de Interpretação Marxista. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1978, p. 19).
Não são só os “teóricos” da burguesia que ficam lamentando os fatos, de-
sesperados diante da crise, mas também aqueles que se dizem de “esquerda”
não são capazes de ultrapassar o simples rol dos fatos e ficam chorando pelo
leite derramado, maldizendo que o capitalismo não seja capaz de se reformar.
Como afirma, repetidas vezes, José Luís Fiori em seu livro O Poder Global
e a Nova Geopolítica das Nações (São Paulo: Boitempo, 2007) ao analisar o
programa e as políticas dessa “esquerda” que buscam:
um «capitalismo organizado» ... passaram a apostar e lutar
pelo sucesso do capitalismo, como estratégia para criar
empregos e financiar suas políticas distributivas. A esquer-
da passou a ser desenvolvimentista e a defender e praticar
políticas econômicas pró-capital ou «pró-desenvolvimento
= pleno emprego» (p. 195).
um desenvolvimento acelerado do capitalismo, como melhor
forma de distribuir a riqueza sem tocar na propriedade pri-
vada. E como conseqüência passaram a defender e praticar
as políticas econômicas que favorecessem ao aumento da
lucratividade do capital – quaisquer que fossem – desde que
estimulassem ou permitissem o aumento da produção, da
possibilidade de uma redistribuição fiscal a favor do mundo
do trabalho e de mais proteção social (p. 246).
Nesse campo, “esquerda” e direita caminham com o mesmo objetivo. A
direita voltando a empunhar o nome de Keynes e a “esquerda” retomando
o sonho de Kautsky organizar um capitalismo “limpinho”, um capitalismo
regulado, aquilo que alguns chamam de capitalismo utópico. Aqui os novos
ideólogos do capital se encontram com os novos renegados, todos buscando
um capitalismo “limpinho”, que garanta a taxa de lucro, sem se importar com
o fato de que isso significa, necessariamente, a manutenção da exploração
da classe operária e demais classes dominadas.

169
2ª lição: A subsunção da burguesia e do proletariado ao capital
O que tanto essa “esquerda” quanto a direita desconhecem é que, como
Marx mostra sobejamente em O Capital, tanto a burguesia quanto o prole-
tariado são subsumidos no movimento do capital.
Apenas na medida em que é capital personificado, tem o
capitalista valor histórico e aquele direito histórico à existên-
cia que, como diz o espirituoso Lichnowski, nenhuma data
tem. Somente nessa medida sua própria necessidade tran-
sitória está embutida na necessidade transitória do modo
de produção capitalista (...) Apenas como personificação
do capital, o capitalista é respeitável. Como tal, ele partilha
com o entesourador o instinto absoluto do enriquecimento.
O que neste, porém, aparece como mania individual, é no
capitalista efeito do mecanismo social, do qual ele é apenas
uma engrenagem. Além disso, o desenvolvimento da produ-
ção capitalista faz do contínuo aumento do capital investido
numa empresa industrial uma necessidade e a concorrência
impõe a todo capitalista individual as leis imanentes do
modo de produção capitalista como leis coercitivas exter-
nas. Obriga-o a ampliar seu capital continuamente para
conservá-lo, e ampliá-lo ele só o pode mediante acumulação
progressiva. (KARL, Marx. O Capital, vol. I, tomo 2, tradução
de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural,
1984, p. 172 – Os Economistas).
Do ponto de vista social, a classe trabalhadora é, portanto,
mesmo fora do processo direto de trabalho, um acessório
do capital, do mesmo modo que o instrumento morto de
trabalho (...) O escravo romano estava preso por correntes
a seu proprietário, o trabalhador assalariado o está por fios
invisíveis. A aparência de que é independente é mantida pela
mudança contínua dos patrões individuais e pela fictio júris
do contrato. (KARL, Marx. O Capital, vol. I, tomo 2, tradução
de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural,
1984, p. 158 – Os Economistas).
Isto quer dizer que a lei do valor, a necessidade de acumulação crescente
de capitais, a busca incessante do lucro, a tendência a centralizar capitais,
impondo os monopólios (modificando e acentuando a concorrência), são
leis férreas do modo de produção capitalista que se impõem a todos, subme-
tendo tanto burgueses quanto trabalhadores. E isso, veja só, sem “respeitar”
os delírios utópicos e infantis dos reformistas de querer submeter o capita-
lismo a uma reforma como a que a Emília quis impor à natureza. As laranjas
que já nasceriam sem casca, prontas para comer, são fábula equivalente ao
pedido de Lula para que os empresários cortem os lucros antes de demitir.
A luta de classes está marcada, também, por essas leis, com a burguesia

170
lutando para mantê-las e reforçá-las, e a classe operária, por aboli-las, su-
perando o capitalismo e sua exploração. O desconhecimento das leis do
capitalismo, do funcionamento da sociedade, implica subjetivismo e refor-
mismo, adversários ferrenhos das classes dominadas em luta pela superação
revolucionária do capitalismo.
3ª lição: As «políticas» do Estado capitalista servem ao capital
Por isso não faria mal se a nossa “esquerda” eclética, alegórica, pândega,
fosse ler, além de Marx, Engels e Lenin, os trabalhos de Suzanne de Brunhoff,
velha comunista, que poderia lhes ensinar que a tentativa de organizar,
regulamentar a reprodução do capital é inócua, as políticas econômicas da
burguesia, a política financeira, a política monetária, surgem post factum,
para organizar, facilitar, sancionar o movimento necessário do capital, o
processo de reprodução do capital que como mostra Marx obedece as “leis
imanentes do modo de produção capitalista”.
Não é a política econômica que dirige o capital, é o movimento necessário
do capital atendendo à determinação imperiosa de suas “leis imanentes”
que determina a política econômica.
(...) a política monetária vê-se a si mesma como uma ativida-
de política ofensiva. Em realidade, ela só pode corresponder
à uma prática estatal defensiva. Por meio das regras formu-
ladas pela política monetária, o Estado apresenta-se simul-
taneamente como o promotor e o garante da coerção mo-
netária, quando na verdade ele só toma conhecimento dela
no momento em ele próprio é atingido. (...)” (BRUNHOFF,
Suzanne de. A Política monetária: uma tentativa de interpre-
tação marxista. Tradução de Ricardo Brinco, Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1978, p. 27 – Coleção Economia; v. 3).
Marx e Engels já constatavam desde o Manifesto do Partido Comunista
que o Estado é o comitê executivo da burguesia, tese marxista fundamental
reafirmada por Lenin, e que tanto temor e horror causa à nossa “esquerda”
bem pensante. E nunca como hoje, na crise aberta do capitalismo (onde já
vimos o Estado dar dinheiro a um banco para comprar outro, comprar agên-
cias hipotecárias e empresas de seguros, ajudar montadoras de automóveis,
comprar títulos de quaisquer empresas em dificuldades, reduzir impostos
sobre as empresas, modificar as leis ou tomar medidas contra elas, sempre
em favor do capital), foi tão escancarado o fato de que o papel do Estado é
o de garantir a reprodução do capital em geral.
(...) O moderno poder de Estado é apenas uma comissão
que administra os negócios comunitários de toda a classe
burguesa (...) (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto
do Partido Comunista. Lisboa: Edições Avante, 1997, p. 38 –
Biblioteca do Marxismo-Leninismo).

171
As formas dos Estados burgueses são extraordinariamente
variadas, mas a sua essência é apenas uma: em última aná-
lise, todos estes Estados são, de uma maneira ou de outra,
mas necessariamente, uma ditadura da burguesia. (LENIN.
O Estado e a Revolução, in: Obras Escolhidas Tomo2. São
Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1980, p. 245).

4ª lição: Os aparelhos ideológicos a serviço do capital.


O sistema imperialista está usando de todos os recursos de seus aparelhos
ideológicos para apresentar a atual fase da crise do imperialismo enquanto
resultado da falta de regulação, dos excessos dos especuladores, ou como
faz Lula, como uma crise dos EUA, etc., enquanto de outro lado a “esquerda”
colabora defendendo que a crise é a falta de uma “governança democrática”,
seja lá o que isto signifique, ambos buscando encobrir o verdadeiro significado
da crise: crise da estrutura do sistema capitalista.
Com o objetivo de encobrir o real alcance da crise, crise da incapacidade
de reverter a tendência à queda da taxa de lucros, os ideólogos do capita-
lismo tentam caracterizá-la como crise dos subprime, dos títulos podres,
como uma crise restrita a um “setor especulativo”, a um setor financeiro,
encobrindo que a crítica marxista demonstra que as esferas da circulação
financeira ou fictícia são inseparáveis, em sua unidade dialética, da esfera
da circulação produtiva.
Neste ponto, é interessante observar como funcionam os aparelhos
ideológicos e os mercenários a seu serviço. Depois de passarem mais de
vinte anos inculcando a ideia de globalização, de que todo mundo, não só a
economia, estava estreita e irremediavelmente ligado, passaram a defender
a tese oposta, a do descolamento, de que o Brasil teria se descolado da crise,
teria, portanto, se descolado do processo de globalização.
Do mesmo modo vão tentar esconder que a crise é uma crise do sistema
capitalista constituído em economia mundial, crise do imperialismo, crise
dos limites de sua reprodução, como nos mostra Lenin no “Imperialismo,
fase superior do capitalismo”.
Só quem nunca passou por perto de O Capital é capaz de imaginar que
é possível organizar a “fúria” da concorrência, da luta fratricida, feroz, luta
de vida e morte que se dá entre os capitais na concorrência, no processo
de reprodução do capital.
(...) A concorrência se desencadeia aí com fúria diretamente
proporcional ao número e em proporção inversa à grandeza
dos capitais rivais. Termina sempre com a ruína de muitos
capitalistas menores, cujos capitais em parte se transfe-
rem para a mão do vencedor, em parte soçobram. (KARL,
Marx. O Capital, vol. I, tomo 2, tradução de Regis Barbosa e
Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 197 – Os
Economistas).

172
O que os novos renegados, revisionistas, reformistas, que se encobrem
sob a capa de marxistas e usurpam a denominação de partidos comunis-
tas não querem ver, porque na verdade ocupam o papel de defensores do
capitalismo, como já dissemos de um capitalismo utópico, é de que não é
possível reformar o capitalismo.
O único caminho para a classe operária, para as classes dominadas,
para os povos dominados em todo o mundo é o de tomar o poder, destruir
o capitalismo e construir o socialismo enquanto fase de transição para o
comunismo.
5ª lição: A fase atual da crise do imperialismo.
Ao entrar em uma nova fase, a fase imperialista do capitalismo, desen-
volvimento e crise, momentos coexistentes no processo de reprodução do
capital, assumem novas características.
Marx já nos mostrava que desenvolvimento e crise são dois aspectos,
unidos e em luta, do processo de reprodução do capital, necessariamente
predominando em cada momento um ou outro, porque o desenvolvimento
contém os elementos que vão gerar a crise, e a crise, os elementos que vão
gerar uma nova fase de desenvolvimento. A crise está latente no desenvol-
vimento da mesma forma que o desenvolvimento na crise.
Como se resolveria novamente esse conflito e se restabelece-
riam as condições correspondentes ao movimento ‘sadio’ da
produção capitalista? A forma da resolução já está contida
na mera formulação do conflito de cuja resolução se trata
(...). (KARL, Marx. O Capital, vol. I, tomo 2, tradução de Regis
Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p.
191 – Os Economistas).
O que nos cabe analisar para realizar a análise concreta da conjuntura
que vivemos, não só a conjuntura imediata, mas a conjuntura do longo
período de predominância da crise, que denominamos de crise latente ou
como diria Engels uma crise “crônica”, “uma crise praticamente sem fim”,
(ver cartas de Engels publicadas no Blog “Cem Flores...”), é que característi-
cas assumem desenvolvimento e crise na fase imperialista do capitalismo,
quando o capitalismo alcança a fase monopolista e se constitui em um
sistema mundial, o imperialismo.
Lenin vai nos dizer que o fato de que o mercado externo deixa de atuar
como fator contrarrestante da crise, com o fim da partilha do mundo entre os
trustes internacionais, da forma que o fazia no período de livre concorrência,
vai levar ao agravamento das contradições interimperialistas.
Compreender o imperialismo como um sistema que reúne formações
econômicas sociais num processo “único e contraditório”, no qual a con-
tradição fundamental do sistema, a contradição da exploração capitalista,
burguesia/classe operária, vai se desdobrar em contradições, distintas no
mesmo processo, a contradição entre a burguesia dos países imperialistas
associada à burguesia dos países dominados na exploração dos povos dos

173
países dominados, na contradição interimperialista entre os capitais com os
Estados a seu serviço, disputando mercados, refazendo permanentemente
a repartição dos mercados, e por fim, na contradição entre capitalismo e
socialismo, colocada pelo próprio desenvolvimento do capitalismo que torna
a produção ainda mais social e a apropriação da riqueza produzida por um
número cada vez menor de capitalistas.
A luta de classes é um terreno onde se trava o processo de produção/
exploração capitalista. Se a cada momento é a base econômica que determina
o espaço em que se trava a luta de classes é a luta de classes que constrói,
determina o novo espaço econômico onde vai continuar travando sua luta.
O que Marx mostra em O Capital é que o crédito, a criação de papéis que
vão cada vez mais funcionando como moeda, é um instrumento intrínseco
à produção capitalista, ao sistema capitalista. O que vai se transformando
na medida em que o capitalismo vai evoluindo para a sua fase imperialista,
é o peso e a forma como este sistema vai se conformando.
Sem levar isso em conta, com a produção capitalista consti-
tui-se uma potência inteiramente nova, o sistema de crédito,
que, em seus primórdios, se insinua furtivamente como
modesto auxiliar da acumulação, levando por fios invisíveis
recursos monetários, dispersos em massas maiores ou me-
nores pela superfície da sociedade, às mãos de capitalistas
individuais ou associados, mas logo se torna uma nova e
temível arma na luta da concorrência e finalmente se trans-
forma em enorme mecanismo social para a centralização
dos capitais.
À medida que se desenvolve a produção e acumulação ca-
pitalista, na mesma medida desenvolvem-se concorrência e
crédito, as duas mais poderosas alavancas da centralização
(...) (KARL, Marx. O Capital, vol. I, tomo 2, tradução de Regis
Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p.
197 – Os Economistas).
A ampliação contínua da produção capitalista vai exigir a cada circuito
da produção mais capital, além daquele já produzido pela mais-valia a cada
ciclo da produção. Dessa forma, cada vez mais o crédito se torna alavanca
do processo de produção cada vez mais ampliado.
Os sucessivos rearranjos porque passa a economia capitalista, após a
crise do início dos anos 70, com o objetivo de ampliar sua taxa de lucro,
resultaram no gigantesco processo de deslocamento da indústria dos países
imperialistas para regiões onde o preço da força de trabalho era muito mais
barato, permitindo que se aliassem a enorme expansão da mais-valia relativa,
resultado da construção/constituição de um parque industrial no estado da
arte, com uma enorme elevação da mais-valia absoluta, tanto pela elevação
da jornada de trabalho, como pela redução do preço da força de trabalho
ao limite mínimo de sua reprodução.

174
O processo de reorganização da economia capitalista, iniciado na última
década do século passado, não poderia ser feito, sequer pensado, sem a
poderosa alavanca do crédito, sem esta fantástica máquina de valorização
do capital na esfera financeira que, por outro lado, propiciou uma “deman-
da solvente”, condições cada vez amplas para a realização de mercadorias
produzidas em escala crescente.
A ideia de que esta reestruturação fantástica da economia capitalista,
fantástica pelo curto espaço de tempo em que foi feita (pouco mais de uma
década) e pelo volume do movimento de capital não é pensável, sequer
pensável, sem uma monstruosa máquina de crédito.
A diferença entre o papel que o crédito representou no período de Marx
e o papel que representa hoje está não só no seu volume, como também
no fato de que a cadeia de papéis derivados uns dos outros se assenta em
papéis mais ou menos garantidos pelo Estado.
Hoje, num misto de horror, alívio e alegria, o nosso capital financeiro vê
o Estado “estatizar” seus bancos para garantir seus lucros.
O que os teóricos burgueses não podem nem querem ver é que a atual
crise é a crise estrutural do sistema capitalista mundial, do imperialismo.

175
A crise do imperialismo é a crise da divisão
internacional do trabalho 1

Queremos apresentar aqui, de forma sumária e esquemática, um conjunto


de teses que vimos discutindo sobre a conjuntura da luta de classes na crise
do imperialismo, teses que nos propomos coletivamente a desenvolver,
precisar e retificar. Conclamamos a todos os camaradas que participam de
nosso trabalho coletivo a contribuir nesse processo.
A tese que queremos levantar é:
1 O imperialismo vive uma crise de qualidade e profundidade novas, a crise
de uma nova divisão internacional do trabalho.
2 A atual crise do imperialismo tende, a agravar a luta de classes por todo
o mundo.
3 A lógica intrínseca à reprodução do capital, desenvolvimento e crise,
implica que a cada fase de desenvolvimento se anteponha obstáculos,
barreiras, cada vez maiores e, como dizia Marx, “e em escala mais pode-
rosa” a valorização do capital, para ser superado pela nova crise.
4 As seguidas crises dos anos 1970, (1973-1975, 1978) impuseram à repro-
dução do capital barreira de tamanha monta que não conseguiu ser
superada nem pela política de empréstimos dos anos 1970 nem pela
política neoliberal que se seguiu.
5 O Capital para superar sua crise (as crises dos anos 70 - 1973-1975, 1978)
a partir de meados dos anos 80, começa a engendrar uma nova divisão
internacional do trabalho respondendo a necessidade de sua reprodução,
de sua valorização: manter a taxa de lucro.
6 A nova divisão do trabalho na economia mundial se expressou:
a) no rompimento com as sucessivas transformações/desdobramentos
da divisão internacional do trabalho entre dominantes e dominados porque
passou a divisão do trabalho desde o processo de formação das condições
de surgimento do capitalismo, desde a formação do antigo sistema colo-
nial, e que se fez primeiro, entre metrópoles e colônias, depois entre países
dominantes/paises imperialistas, e países dominados.
b) na produção de uma nova divisão internacional do trabalho que vai
se dar sob a simbiose das economias dos EUA/China, principalmente, e que
vai parquear a economia mundial, determinar novas posições na economia
mundial as diversas formações econômico-sociais.
7 Essa nova divisão do trabalho ainda se caracteriza:
a) na tendência crescente de transferência da indústria dos países domi-
nantes, principalmente dos Estados Unidos e mesmo de países domi-
nados que haviam atingido um determinado nível de industrialização,
para a Ásia, principalmente para a China a busca de contrarrestar a
queda da taxa de lucro.
b) na constituição de um mercado consumidor (meios de produção,
1 Texto de junho de 2009.
matérias primas e bens de consumo, inclusive e principalmente, para
garantir a reprodução da força de trabalho) compreendido pela cons-
trução de um novo setor industrial na Ásia, particularmente na China,
e de um novo mercado mundial - exatamente nos países dominantes,
principalmente os EUA, assim como países dominados capazes de
realizar bens de consumo de media e alta tecnologia, que estavam
transferindo sua indústria, se “desindustrializando” no processo, o que
quer dizer, aumentando o desemprego e reduzindo a base de consu-
mo - para os bens de consumo produzidos crescentemente na Ásia.
c) na constituição de uma “esfera” financeira 2 capaz de absorver e aplicar
a crescente massa de capitais gerados pela industrialização crescente
da Ásia, e principalmente da China, em cima de uma taxa de lucro
extremamente elevada nas novas condições de produção. Tanto ca-
paz de financiar (criar credito) não só o processo de transferência da
indústria para a Ásia, como de criar credito para garantir a realização
desta produção, o consumo crescente de uma produção crescente.
Essa mesma esfera financeira também permite, no mesmo processo,
a valorização fictícia de capitais.
8 O processo de valorização do capital a taxa de lucro conveniente dentro
da nova divisão internacional do trabalho encontrou o seu limite, o seu
obstáculo. A crise é a impossibilidade de continuar valorizando o capital
à mesma taxa de lucro, “à medida que a taxa de valorização do capital
global, a taxa de lucro, é o aguilhão da produção capitalista (assim como
a valorização do capital é sua única finalidade),…” (Marx, K. O Capital.
Volume IV. Livro Terceiro. Tomo 1. Nova Cultural. 1986, p. 183).
9 O obstáculo levantado por essa fase da reprodução do capital expresso
na atual crise tende a não ser superado com o desdobramento da mesma
divisão internacional do trabalho.
10 Portanto, a tendência é a de que, diante da reação mais ou menos co-
ordenada dos Estados capitalistas a serviço do capital, tentando frear a
crise, que esta vá se aprofundando gradualmente e perdure por um largo
período de tempo e de que o capital sob o aguilhão da taxa de lucro lute
por buscar melhores condições de produção por todo o mundo, e em
especial, a baixar o valor da força de trabalho para manter a taxa de lucro.
11 Portanto a conjuntura na qual a crise vem se desenvolvendo tende a:
a) agravar a luta de classes na maioria das formações econômico-sociais
que compõem o sistema imperialista, agravando a contradição anta-
gônica fundamental do capitalismo – a contradição burguesia/proleta-
riado – porque força o agravamento da luta da classe dominante para
rebaixar o preço da força de trabalho, tanto nos países imperialistas
quanto nos países dominados, para permitir, primeiro, as condições
de valorização do capital em todo o mundo; segundo, condições ao
2 É necessário criticar a visão que vê na “esfera” financeira uma esfera independente da
esfera produtiva. O que Lenin constata no início do século passado, em “O Imperialismo,
Etapa Superior do Capitalismo” é exatamente o maior entrelaçamento dessas esferas do
capital, sua fusão.

177
capital (a produção), nesses países, de concorrer com o capital que se
deslocou (a produção) para a Ásia ou Europa Oriental – neste último
caso, principalmente os países imperialistas da Europa, etc. - e porque
força o agravamento da luta da classe dominada para resistir a este
rebaixamento do valor da força de trabalho;
b) gerar novas condições de concorrência entre capitais na economia
mundial, forçar os capitais a buscar novas condições de valorização.
Gerar novas condições de concorrência entre as novas frações nas
classes dominantes (frações do capital), e contradições entre elas,
especificamente a concorrência direta entre o capital que partici-
pou/participa do movimento/processo de reconfiguração da divisão
internacional do trabalho e os setores/frações que restaram com
suas indústrias em seus países de origem, tanto imperialistas quanto
dos dominados, ainda que de forma diferente nuns e noutros, isto é,
contradições entre frações de classe que deslocaram sua indústria
ou parte dela, e as frações que continuam produzindo nas condições
anteriores. Frações que passam a disputar o Estado em seu benefício.
Aqui estamos tratando não só da contradição que se estabelece dentro
de um mesmo ramo de produção como também da contradição no
geral que se estabelece pela concorrência entre duas frações do capital,
disputando o mesmo mercado, produzindo a taxas de lucro diferentes;
c) gerar o agravamento das contradições interimperialistas tendo em
vista que países, ou trustes e cartéis, que conseguiram se adiantar
à tendência e passaram a produzir em novas condições aumentam
suas vantagens sobre outros países ou empresas. O fato de que pa-
íses ou cartéis e trustes estão produzindo com maior taxa de lucro
tende a acirrar a concorrência, a disputa por mercados e fontes de
matérias-primas.
12 Como demonstrou a classe dominada, na luta de classes, a crise não
a abateu, ao contrário, ela se lança em ações cada vez mais amplas. É
verdade que à maioria dos países falta um partido revolucionário o que
vem limitando a capacidade de luta das classes dominadas e é verdade
também que ainda não saímos, inteiramente, do período de defensiva
da classe operária na luta de classes, diante da crise de sua teoria, crise
teórica e prática. Portanto, o que nos cabe fazer é retomar a teoria e a
prática do proletariado.

178
A tarefa candente para os revolucionários em
todo o mundo é a de transformar a crise do
imperialismo em revolução 1

(…) O idealismo e a metafísica são as coisas mais fáceis


deste mundo porque, não sendo baseados na realidade
objetiva nem submetidos à sua contraprova, permitem
que as pessoas digam toda a espécie de disparates que
lhes aprouver. O materialismo e a dialética, pelo contrário,
exigem esforço. Devem ser baseados e comprovados pela
realidade objetiva. Se não nos esforçamos nesse sentido
haverá propensão para sermos arrastados para o idealismo
e a metafísica (…)
(TSÉ-TUNG, Mao.). 2

O primeiro ponto que é necessário deixar claro é o de que este texto é


resultado de um trabalho coletivo ou, melhor dizendo, do trabalho de um
conjunto de camaradas que tem claro a importância da teoria revolucionária
para a prática revolucionária, da tarefa de empunhar a “arma da crítica”
para iluminar sua prática.
E ao dizer isto, ao utilizar somente a primeira parte da frase de Marx em
seu texto sobre a filosofia do direito de Hegel 3, temos a consciência de que
a afirmação de Marx sobre a necessidade de passar da arma da crítica à crí-
tica das armas não representa da parte de Marx, nem de nossa parte, uma
subestimação da teoria, até porque foi Marx, teórico e dirigente principal e
inconteste do que havia de mais avançado do movimento revolucionário em
sua época, quem com sua prática na luta de classes, produziu pela primeira
vez o encontro da teoria revolucionária do proletariado com a prática do
proletariado na luta de classes.
Porém, como já dizia Lenin em Que Fazer?, nesta conjuntura de dispersão
teórica, nossa tarefa central é a de lançar as âncoras da teoria na vanguarda
da classe operária.
Nosso objetivo, neste texto, não é o de repetir, de forma simplória, po-
bres chavões sobre o marxismo, porém o de fazer o esforço necessário de
realizar a “análise concreta da situação concreta, a alma viva do marxismo”,
como dizia Lenin.
(…) Pero nuestras críticas tienen un carácter radicalmente
distinto. La crítica del camarada B. K. se basa en citas de

1 Texto de junho de 2010.


2 TSÉ-TUNG, Mao. Refutação da «uniformidade da opinião pública» em 24 de maio de 1955
In: Obras Escolhidas, vol. V, 2ª edição. Lisboa: Editora Vento de Leste, 1977, p. 211.
3 Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.
Marx referentes a una situación que no se parece a la pre-
sente, rechaza por completo la táctica del CC del Partido
Comunista de Alemania y deja de lado lo esencial. Deja de
lado lo que es la esencia misma, el alma viva del marxismo:
el análisis concreto de una situación concreta. 4
É assim que não analisamos a crise do imperialismo a não ser com o
objetivo de ajudar a esclarecer a classe operária e as classes dominadas a
traçar a linha justa para dirigir sua luta na luta de classes. Não nos interessa,
nem um tantinho assim, encontrar saídas para o capitalismo, reformar o
capitalismo, muito pelo contrário.
A tarefa de dar continuidade à análise da crise do imperialismo, da
conjuntura econômica, política e social do imperialismo, esbarra em duas
dificuldades, não porque se haja modificado a realidade material da conjun-
tura da crise do sistema imperialista, porém, de um lado, diante do vulto que
tomou a guerra ideológica travada em uníssono por todos os seus aparelhos
ideológicos de propaganda buscando ocultar por todos os meios a luta de
classes, as verdadeiras causas e efeitos das contradições que constituem o
modo de produção capitalista e que arrastaram o sistema imperialista à crise
atual, e de outro, a dificuldade de alguns críticos do capitalismo e mesmo
organizações, reformistas, revisionistas, que mesmo assim se reivindicam
comunistas, em produzir uma análise concreta da crise econômica de hoje
do ponto de vista do marxismo-leninismo, sair do campo do “… capitalista
e seu ideólogo, o economista político,…” 5, e aplicar o marxismo-leninismo,
ter em conta a luta de classes e só a partir da posição da classe operária na
luta de classes analisar concretamente a conjuntura.
(…) en efecto, la incomprensión de la lucha de clases, inhe-
rente a la sociedad capitalista, es el error cardinal del señor
Nik.–on. La rectificación de este solo error sería suficiente
para que incluso se dedujesen necesariamente conclusiones
socialdemócratas de sus tesis e investigaciones teóricas.
Realmente, perder de vista la lucha de clases evidencia la más
burda incomprensión del marxismo,… ¿Puede alguien, por
poco conocedor de Marx que sea, negar que la doctrina de
la lucha de clases es el centro de gravedad de todo el sistema
de sus concepciones? 6
A burguesia imperialista oculta dados estatísticos, os falseia, os toma
unilateralmente e os projeta para demonstrar que sua crise não tem a
gravidade que realmente tem. Fala de várias crises, a do BNP Paribas, a do
Lehmon Brothers, etc., agora a da Grécia, e logo a da Hungria. Traslada esses
dados, que tomados em particular nada demonstram e nada modificam,
para fazer crer que “o pior já passou”.

4 LENIN. Kommunismus. In. Obras Completas, vol. XLI, p. 140.


5 MARX, Karl. O Capital, vol. I, tomo 2, São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 157.
6 LENIN. Quienes son los “Amigos del pueblo”. In. Obras Completas, vol. I, p. 335.

180
A suspensão dos pagamentos por Dubai, a falência da Islândia, da Grécia,
os problemas da Espanha, Itália, Portugal, Irlanda e países do Leste Europeu, a
Hungria, a quebra da produção e do comercio mundial, o avassalador cresci-
mento do desemprego, etc., desaparecem das análises e das notícias, porém,
atingiram todos os mecanismos do sistema capitalista, do imperialismo.
Não se tratou e nem se analisou como a suspensão de pagamentos por
um Estado atingiu o sistema capitalista. Pior, ninguém, nenhum dos analis-
tas econômicos a serviço do capital lembrou-se da intervenção do Fundo
Soberano de Dubai nas operações de salvamento de vários bancos e na
compra de cadeias de negócios na Inglaterra. Lembrou que a falência da
Grécia atinge dezenas de bancos europeus, alemães, franceses, etc., porém
também bancos dos EUA. Será que esquecem para não “semear o pânico”…?
A burguesia imperialista e seus sócios nos países dominados apelam a
uma enxurrada de eufemismos: à crise econômica que atinge o conjunto
do sistema imperialista chamam de “crescimento negativo”; as estatísticas
publicadas de “crescimentos dos PIB” estão repletas de dados parciais; as
debilidades são apresentadas como “decisões de força”.
De outro lado, o revisionismo, o reformismo que impera nos partidos que
se reclamam comunistas, PCB, PCdoB e semelhantes, o deslavado oportunis-
mo dos partidos social-democratas como o PT, que se acobertam sob uma
verborragia que parodia palavras de ordem de uma pseudoesquerda, para
esconder sua passagem, sem mais artifícios, ao serviço das classes dominantes.
Aliás, podemos recorrer a ninguém menos que Luiz Carlos Prestes, em
debate em 1988, para corroborar a avaliação que fazemos sobre a dificuldade
da vanguarda revolucionária, no processo de sua construção no Brasil e ainda
hoje de assumir o marxismo-leninismo e praticá-lo:
Aqui no Brasil não temos ainda conhecimento suficiente
do marxismo. O marxismo foi sempre perseguido. Somente
agora, em português, os livros estão à mão dos trabalhadores
e da intelectualidade brasileira, que já podia ler em todos os
idiomas, mas agora tem uma maior facilidade. 7

O desenvolvimento da crise agrava ainda mais as contradi-


ções do imperialismo
Eden devia ter perguntado por quem foram, afinal, criadas
«as instituições burguesas»? Da perspectiva da ilusão jurídica,
ele não considera a lei como produto das relações materiais
de produção, mas, pelo contrário, as relações de produção
como produto da lei. Linguet demoliu o ilusório Esprit des
Lois com uma frase: L’esprit des lois, c’est la propriété. 8
Após quase três anos do desencadear da crise aberta do imperialismo

7 PRESTES, Luís Carlos. 1917-1987: Socialismo em debate. São Paulo: Instituto Cajamar, 1988,
p. 244.
8 MARX, Karl. O Capital, vol. I, tomo I, São Paulo: Abril Cultural, nota de rodapé 73, p. 190.

181
não só se confirmam as teses que adiantamos em nosso sítio como pode-
mos afirmar que:
1 O imperialismo vive desde agosto de 2007 – quando o banco francês BNP
Paribas anunciou que uma de suas divisões congelara cerca de 2 bilhões
de euros em fundos, em razão da incerteza com o setor de crédito
“subprime” (de maior risco) nos EUA – sua segunda grande depressão.
2 A crise atual é a crise da nova divisão internacional do trabalho, que
começa a se configurar em meados da década de 80, como tentativa
de saída, saída que se revelou de curto fôlego, para um longo período
de crise do imperialismo que se iniciara na década de 70 e que dura até
hoje, entre fases de retomadas cada vez mais curtas e de crises cada vez
mais longas, complexas e profundas.
3 Os fatos novos, de maior importância para a classe operária na luta de
classes, são os de que:
a) primeiro, o de que o capital não consegue superar a crise, nem apre-
senta tendências que lhe possibilite superá-la dentro da nova divisão
internacional do trabalho;
b) nem superou nem conseguiu encontrar formas “virtuosas” de valori-
zação dentro da nova divisão internacional de trabalho;
c) como consequência o capital continua se reproduzindo através das
mesmas formas de valorização que levaram à atual crise, do que
resulta na tendência permanente à que a crise se aprofunde e que se
desdobre no que aparentam ser novas crises.
4 O que confirma o conjunto de teses que vimos avançando sobre a atual
crise do imperialismo:
a) desde que o capitalismo entrou em sua fase imperialista se tornou
cada vez mais difícil superar sua crise, agora crise de uma economia
mundial, do imperialismo, conjuntura que o fez recorrer as guerras,
e depois da segunda grande guerra imperialista e de um período de
relativo crescimento, o sistema imperialista vive desde o início da dé-
cada de 1970 um longo período de crise, no qual as crises econômicas
se alongam e os períodos de recuperação são mais curtos;
b) um longo período de crise em que as fases de recuperação só colocam
obstáculos maiores a serem superados na crise seguinte;
c) o fato de que o capital não conseguiu gerar períodos de desenvolvi-
mento “sadio” após a crise dos inicio dos anos 1970, levou em meados
da década de 80 a se gestar uma nova divisão internacional do trabalho;
d) a nova divisão do trabalho quebrou a forma tradicional em que esta
veio se processando durante o processo de formação e expansão do
capitalismo: das metrópoles coloniais, primeiro, para as colônias;
com a revolução industrial, dos países capitalistas desenvolvidos
dominantes para as colônias e países dominados; e a partir do início
do século XX, com a constituição de uma economia mundial, dos
países imperialistas para os países dominados na medida em que foi
se extinguindo o sistema formalmente colonial.
5 A nova divisão internacional do trabalho resultou:

182
a) na tendência a um processo de crescente transferência da indústria
dos países imperialistas e mesmo de países dominados com algum
nível de industrialização, para a Ásia, principalmente para a China;
b) na montagem de uma monstruosa máquina financeira para garantir
a realização das mercadorias sobre-produzidas e manter a valorização
dos capitais sobrantes;
c) a nova divisão de trabalho levou a duas formas de desindustrialização
relativa: a dos países imperialistas que transferiram sua indústria para
a Ásia, e a dos países dominados que sofreram o parqueamento do
rearranjo da economia mundial;
d) o processo de desindustrialização, tanto dos países imperialistas,
principalmente, quanto dos países dominados, levou a necessidade da
criação “artificial” de um mercado - nos países imperialistas, principal-
mente, e entre estes EUA, U.E. e Japão, fundamentalmente - através de
operações do sistema financeiro e de crédito, para garantir a realização
das mercadorias sobre-produzidas e, ao mesmo tempo, garantir a
manutenção do capital sobre- acumulado em processo de valorização.
6 A crise atual é a crise da economia mundial, atinge todo o sistema im-
perialista, dominantes e dominados. A crise mundial iniciada em agosto
de 2007 é a crise desta nova divisão internacional do trabalho, a crise do
fato de que os mecanismos criados pela nova divisão internacional do
trabalho, não terem conseguido continuar a valorizar o capital na forma,
volume e velocidade que conseguiam antes, até agosto de 2007, apesar
das crises parciais que marcaram o período, de que o sistema imperialista
em sua configuração atual criou um obstáculo à crescente valorização
do capital, não conseguem mais continuar realizando mercadorias pro-
duzidas de forma crescente e valorizando o capital sobre-acumulado por
meio dos artifícios criados pela monstruosa maquina de valorização na
esfera financeira.
7 Levando em conta que o capitalismo em razão da lógica interna, férrea,
inflexível, deste modo de produção, tem a necessidade incontornável,
diante da tendência a queda da taxa de lucro, de tentar retomá-la por
todos os meios e formas possíveis, os fatos novos que tendem a levar ao
agravamento de todas suas contradições, que demonstram o aprofunda-
mento da crise e abrem uma conjuntura favorável a luta de classes, são:
a) que, apesar da “inusitada” e “extraordinária” 9, sobre todas as formas,
intervenção dos Estados imperialistas e de seus aparelhos internacio-
nais a serviço da reprodução de seus capitais e da imensa queima de
capital que a crise representou, a economia mundial, o imperialismo,
não só não consegue sair da crise nem mesmo evitar que esta se

9 De acordo com o FMI e a ONU: IMF. Informe sobre la estabilidad financiera mundial. Enero
de 2010. http://www.imf.org/external/spanish/pubs/ft/fmu/2010/01/0110s.pdf
IMF. Perspectivas de la economía mundial. Enero de 2010. http://www.imf.org/external/
spanish/pubs/ft/weo/2010/update/01/pdf/0110s.pdf
Nações Unidas. Situación y perspectivas para la economía mundial, 2010. http://www.
cinu.org.mx/especiales/2010/wesp2010/docs/wesp10es_sp.pdf

183
aprofunde, como o comprova a crise das dívidas públicas na Europa;
Grécia, Espanha, Itália, Portugal, Inglaterra, Hungria …;
b) a gravidade da crise e seu agravamento se expressam na impossibili-
dade, encontrada hoje pelos países imperialistas, de repetir diante do
aprofundamento da crise grega, a intervenção coordenada conseguida
depois da falência do Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008.
Impossibilidade que, diante do agravamento da crise, exacerba a con-
tradição interimperialista e a tendência de recorrer a guerra como saída
para a crise. O crescimento da intervenção no Afeganistão, o bloqueio
pelos países imperialistas de um acordo com o Irã, a provocação à
Republica Popular da Coréia, o aumento da agressividade de Israel, e
principalmente o fato de Hillary Clinton ter assumido o protagonismo
da formulação da política dos EUA, são exemplos dessa exacerbação.
8 A agora chamada crise da Grécia, da dívida dos países da Europa, só faz
colocar em relevo o fato de que o salvamento prestado pelos Estados
aos sistemas financeiros – que haviam assegurado o consumo no longo
período de superprodução de capitais e mercadorias decorrentes das
condições de produção criadas com o deslocamento da indústria dos
países imperialistas para a China e consequente desindustrialização re-
lativa e queda na capacidade de consumo dos países dominantes – vai
se aproximando de ultrapassar a capacidade de intervenção do Estado
para segurar a crise. São agora os estados dos países imperialistas que
encontram dificuldades em sustentar as dívidas que fizeram para cobrir
as dívidas das instituições financeiras que emprestaram para garantir o
consumo e o rearranjo da economia mundial na nova divisão do trabalho;
9 A atual crise do sistema capitalista mundial gira e gera um círculo vicioso.
Primeiro, sob aplausos e estímulos de todos – dos Estados capitalistas e
seus aparelhos ideológicos de propaganda e de gestão do sistema impe-
rialista: bancos centrais, FMI, etc., afinal como afirmaram Marx e Engels
a mais de 160 anos e esta crise mais do que comprovou;
(…) O governo moderno não é senão um comitê para gerir
os negócios comuns de toda a classe burguesa. 10
A esfera financeira do sistema criou – principalmente nos países impe-
rialistas, formas e fórmulas para financiar a nova divisão internacional
do trabalho sem a qual o sistema capitalista mundial não teria após a
crise iniciada nos anos 1970, um período principalmente de expansão a
partir da década de 90.
A esfera financeira proveu o capital necessário à transferência da indús-
tria para a China e o crédito que garantiu o consumo de uma produção
crescente de mercadorias produzidas na Ásia com força de trabalho quase
escrava que possibilitou mais do que retomar a taxa de lucro.
Quando o esquema de financiamento da expansão capitalista na nova
divisão internacional entrou em crise ao final de 2007, os Estados

10 MARX & ENGELS. Obras Escolhidas, vol. I, p. 23.

184
aumentaram seus gastos e suas dívidas para garantir a continuidade
do consumo e resgate dos bancos afundados nos “papéis podres” que
haviam criado para financiar a nova divisão do trabalho.
Com isto o sistema financeiro recém resgatado através de generosas e
vultosas doações de recursos por parte dos Estados e aparelhos inter-
nacionais, começou a avaliar que as dívidas e os déficits públicos que
tinham sido gerados para salvá-los e salvar o sistema eram insustentáveis
e, portanto, a duvidar da garantia dos títulos públicos que detinham.
E assim os Estados tiveram, novamente, que investir, criando um fundo
de estabilização na Europa, para garantir seus papeis soberanos, que,
novamente salvarão os bancos e o sistema imperialista.
10 Com relação ao Brasil a crise vem aprofundando a tendência à regres-
são a uma situação colonial de novo tipo, expressa em uma inserção
cada vez mais subordinada a nova divisão internacional do trabalho, na
desindustrialização, no crescimento econômico baseado na tendência
à especialização e expansão da produção de commodities, crescimento
que permite as classes dominantes propagandear o crescimento da
economia e tentar ocultar os efeitos da crise, o aumento da miséria e
exploração da classe operária e do povo, processo que ao aprofundar
a integração subordinada do Brasil à economia mundial o torna mais
vulnerável às suas crises.
11 E o mais importante, unificou o principal das classes dominantes sobre
esta forma de produção e subordinação.
12 Na esfera política e ideológica ficou mais claro que o PT está no campo
da burguesia. Aquilo que se fazia encoberto, e que permitia a alguns
poucos militantes, se não a uma prática de luta anticapitalista a uma
luta reivindicatória no campo econômico e sindical, agora se expõe com
toda a clareza; o PT representa os interesses da burguesia.
13 Na disputa política por definir quem melhor representa os interesses
burgueses, que se faz entre o PSDB e o bloco representado pelo PT, PCdoB
e quejandos, o PT tem sido muito mais competente e convincente no
uso dos meios de persuasão em prática na política burguesa, arrastando
atrás de si um leque de cadáveres insepultos no largo mar de lama da
política/ideologia burguesa, que vai de partidos egressos da ditadura
militar, como o PP, até aos ditos socialistas e comunistas.
14 A comprovação de que a crise agrava todas as contradições do sistema
imperialista a partir da contradição antagônica fundamental, a contra-
dição burguesia/classe operária, se demonstra pelo agravamento da
exploração e miséria dos dominados que começam a sair da situação
de defensiva para se pôr em marcha na luta de classes.
15 Nesta conjuntura, a da maior crise do imperialismo, a tarefa candente
para os marxista-leninistas é a de transformar a crise em revolução.
Transformar a crise do imperialismo em revolução, aprendendo com
todos os acertos e erros destes mais de 100 anos de luta de classes, sabendo
que é necessário retomar a teoria revolucionária do proletariado, a teoria

185
de Marx, Engels, Lenin, Mao Tsé-Tung, no ponto mais alto de seu desenvol-
vimento, retomar a construção do partido revolucionário, armando-o com
sua teoria, porque sabemos que sem teoria revolucionária não há partido
revolucionário, e sem que o partido esteja dotado de sua teoria não lhe é
possível uma prática revolucionária, não é possível traçar a linha justa que
conduza a luta de classes à revolução.
E de que o marxismo-leninismo, teoria revolucionária do proletariado, não
é uma coleção de citações para todas as ocasiões, mas uma teoria científica
que arma o proletariado para a revolução.
Ampliemos para todo o mundo a palavra de ordem do Partido Comunista
Grego, KKE, hasteada na Acrópole, “Peoples of europe rise up”, Proletários
de todos os países, levantem-se!

186
Parte III
E agora? 1

Eu quisera ser claro de tal forma


que ao dizer
- rosa!
todos soubessem o que haviam de pensar.
Mais: quisera ser claro de tal forma
que ao dizer
- já!
todos soubessem o que haviam de fazer.
(Geir Campos. Poética) 2

E agora?
Depois do Severino e de dois anos de Governo Lula, não é possível a mais
ninguém imaginar o PT como “instrumento de transformação social”, se
estamos tratando de transformações, por mínimas que sejam em beneficio
do povo, seja o que for que isto signifique. Também não é mais possível que
falte a alguém “evidências suficientes” de que o governo do PT se transformou
num instrumento a serviço do capital financeiro internacional e da grande
burguesia brasileira.
Isto mesmo, do capital financeiro e da grande burguesia brasileira com
todos os effes e erres.
E isto precisa ser dito, mesmo que doa em muitos que até pouco tempo
atrás acreditavam honestamente no PT como alternativa para a constru-
ção do socialismo e que, nesta luta, participando do PT, deram o melhor
de suas vidas.
Precisa ser dito porque não representa um pormenor de somenos im-
portância e não nos serve de nada esconder a luz do sol com a peneira, pelo
menos para os que realmente levam à prática a luta pela transformação da
sociedade brasileira pelo único caminho possível, o do socialismo, e que pre-
cisam ver claramente a conjuntura na qual nosso povo trava a luta de classes.
Compreender que o governo do PT está a serviço do grande capital, da
reprodução da economia mundial capitalista, é de fundamental importân-
cia para qualquer pessoa que queira fazer a análise concreta da formação
econômico-social brasileira e, a partir daí, buscar a linha justa para romper
com a situação de sujeição de nosso povo à opressão e exploração do
imperialismo.
E quando dizemos que agora é fundamental compreender o papel que
joga o PT, PCdoB e quejandos nesta conjuntura, é também de fundamen-
tal importância compreender que quando nos referimos ao PT estamos
nos referindo ao que chamamos de nomenklatura petista, o grupo que

1 Texto de março de 2005.


2 Campos, Geir. Tarefa. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1981, p. 9.
hegemoniza e controla o partido e é o mesmo grupo que também controla
o governo do PT. E sabemos também que uma boa parte de seus militantes
está sinceramente empenhada na luta para efetivamente transformar o Brasil.
Porém, em nossa opinião, após afastar o obstáculo objetivo e subjetivo
que o PT sempre representou para o caminho da transformação socialista do
Brasil – e esta é uma questão que necessita ser esclarecida – ainda resta às
forças comprometidas com a transformação de nossa sociedade superar um
conjunto de incompreensões na análise que fazem do Brasil. Questões que,
recorrentes, se apresentam à análise científica da formação social brasileira.
Capitalismo autocentrado
Debatemo-nos com problemas como os da possibilidade de desenvolver
um capitalismo autocentrado, independente diante do imperialismo, ba-
seado em uma classe dominante nacional que também seria nacionalista a
partir de seus interesses econômicos objetivos, que estaria em contradição
antagônica com a dominação e exploração imperialista.
Esta interpretação se tornou dominante na esquerda brasileira desde que
os comunistas, em sua maioria reunida no PCB, trabalhando heroicamente
para construir o partido comunista nas condições da época – fragilidade
orgânica da classe operária, influência do anarquismo, pouca difusão da
literatura marxista, etc., etc., – com a visão empobrecida e mecanicista do
marxismo predominante nestas condições, substituíram em sua análise da
conjuntura nacional a contradição fundamental da formação social brasileira,
burguesia/proletariado, por uma outra que oporia países imperialistas a países
dominados, oporia toda a nação, dominantes e dominados, ao imperialismo.
É importante ressaltar que o PCB colocava na maioria dos seus docu-
mentos uma distinção entre uma burguesia nacional e a burguesia aliada
ao latifúndio, estes últimos (a burguesia aliada e o latifúndio) associados ao
imperialismo, chegando a indicar que essa burguesia nacional era vacilante
e afirmava, assim, “o duplo caráter da burguesia nacional”.
E esta interpretação, que expressava, ao nível imediato da consciência das
camadas médias e das massas, o reflexo da dominação imperialista sobre o
Brasil, assumiu enorme peso e difusão a partir da fundamentação teórica
que elaboraram para justificá-la o PCB e seus aliados na intelectualidade
de camada média.
Além do que, para explicar as diferenças de desenvolvimento econômico
entre o Brasil e os países imperialistas se recorreu, e ainda hoje se recorre, aos
“restos feudais”, ao “atraso” no desenvolvimento do capitalismo provocado
por vários fatores, desde uma “indolência atávica” de nosso povo até etc.,
etc. que “atrasam”, “entravam”, “bloqueiam” o desenvolvimento das forças
produtivas.
E esta incompreensão das contradições que caracterizam a conjuntura
brasileira permanece predominante até hoje nos setores intelectuais de
“esquerda”, em grupos que se autodenominam de “esquerda do PT”, e em
setores organizados da classe operária e dos trabalhadores.

189
Conciliação nacional e colaboração de classes
Objetivamente isto significou para os comunistas – e para as forças
comprometidas com a luta anti-imperialista – a impossibilidade de ver
o papel dirigente que cabe ao proletariado, substituído nesta “etapa
nacional” da revolução por uma mitificada “burguesia nacional”. E resul-
tou, por fim, na prática de uma política reformista que recusa o papel
dirigente do proletariado na luta anti-imperialista. Esta posição está na
origem das políticas de conciliação nacional e colaboração de classes do
reformismo, predominantes em alguns momentos da trajetória do PCB e
defendidas hoje pela “esquerda” dentro e fora do PT, com a óbvia exceção
dos trotsquistas que, enquanto não estão enfronhados em campanhas
eleitorais, entre um pleito e outro, defendem uma “revolução” passando
direto para o socialismo.
Confundir as contradições entre classes com as contradições entre
países obscurece a contradição fundamental da luta de classes, a contra-
dição burguesia/proletariado. E o reformismo é exatamente a negação da
linha de demarcação da luta de classes, a incapacidade/impossibilidade de
ver a contradição antagônica, de trabalhar com a dialética materialista,
substituída por uma versão empobrecida da dialética hegeliana 3.
O reformismo não vê a revolução a partir dos interesses da classe
operária como a superação revolucionária das contradições antagônicas
do capitalismo. Quando fala em revolução, está em verdade se referindo
a um processo utópico de reformas pacíficas e sucessivas que transfor-
mariam o capitalismo num sistema “mais humano”.
Assim como o reformismo ignora, ou relega a segundo plano, a luta
de classes burguesia/proletariado, também não considera a contradição
fundamental das formações sociais, a contradição forças produtivas/
relações de produção.
Imperialismo
A nosso ver, é de fundamental importância esclarecer o conceito
marxista-leninista de imperialismo, a fim de estabelecer a linha justa por
onde passa a luta de classes na conjuntura concreta do Brasil contra as
classes dominantes nacionais e as classes dominantes dos países imperia-
listas que dominam e exploram nosso povo, contra o imperialismo que
determina, dentro dos limites das contradições internas, como se exerce
a dominação e a exploração no Brasil.
O imperialismo é a fase do capitalismo resultante das tendências in-
trínsecas do capital, que tem como seu elemento essencial a constituição
do modo de produção capitalista num sistema de dominação e explora-
ção mundial, efeito da propensão – inerente ao processo de reprodução
ampliada do capital impulsionado pela lei do valor – à concentração/
centralização industrial e financeira, no mundo e em cada formação
social, que tem como consequência relações econômicas, políticas e

3 Ver o texto Algumas teses para retomar o marxismo. Materialismo Dialético, onde tratamos
desta questão.

190
ideológicas cujos efeitos são designados pelos conceitos de colonização 4
e imperialismo.
De outra forma, podemos dizer que o imperialismo, fase do capitalismo
resultante das tendências integrantes ao capital impulsionadas pela lei do
valor e inerentes ao processo de reprodução ampliada do modo de pro-
dução capitalista, que resultam da propensão do capital à concentração/
centralização industrial e financeira no mundo e em cada formação social,
produz a tendência à constituição do modo de produção capitalista à escala
mundial, num sistema mundial, corporificado em um pólo dominante e um
pólo dominado e em relações econômicas, políticas e ideológicas designadas
pelos conceitos de colonização e imperialismo.
O desenvolvimento desigual das forças produtivas entre países impe-
rialistas e países dominados decorre e é resultado/condição da reprodução
ampliada do modo de produção capitalista em escala mundial, assegura
sua reprodução ampliada em escala mundial e garante a reprodução da
exploração/dominação (do sistema) imperialista.
Produção e reprodução da exploração e dominação
Ou seja, o sistema capitalista mundial não é somente um “mercado”
onde a dominação e a exploração se realizam através dos preços, mas é um
sistema de exploração e dominação composto de instâncias econômicas,
políticas e ideológicas, e essas próprias instâncias decompõem-se numa série
de níveis conformando uma teia de relações que produzem e reproduzem
a exploração e a dominação.
A necessidade de reproduzir a dominação mundial do modo de produção
capitalista para produzir e reproduzir o modo de produção capitalista em
escala mundial resulta:
1 Em uma nova divisão internacional do trabalho e no desenvolvimento
polarizado das forças produtivas mundiais.
2 Na divisão e desenvolvimento polarizado, desenvolvimento desigual
das forças produtivas entre países imperialistas e países dominados, que
resulta/produz e reproduz as desigualdades econômicas e sociais entre
os países dominantes e os países dominados. Desigualdade que decorre,
é resultado e condição da reprodução ampliada, necessariamente con-
traditória, do modo de produção capitalista em escala mundial; assegura
sua reprodução ampliada em escala mundial e garante a reprodução da
dominação e exploração do (sistema) imperialista.
3 Na necessidade do pólo dominante de reproduzir a exploração e do-
minação para reproduzir a posição dos países imperialistas no sistema

4 Colonização: o termo colonização expressa melhor as formas de dominação do impe-


rialismo que o termo dependência. O termo colônia expressa um território dominado,
posto sob a hegemonia econômica, política e ideológica do sistema imperialista.
Colônia: estado sob a hegemonia do sistema imperialista, hegemonia expressa objetiva-
mente no conjunto de determinações impostas – por país ou países imperialistas – a sua
formação econômico social.
É verdade que, em O Capital, Marx dá outro conteúdo para ao conceito de colonização,
e esta é outra questão que ficamos devendo aprofundar.

191
e, consequentemente, reproduzir a condição dos países dominados de
concorrer para a reprodução ampliada do capital no pólo dominante.
4 Consequentemente, na tendência a um desenvolvimento capitalista
relativamente “rápido” nos “países desenvolvidos”/dominantes, e um
desenvolvimento econômico “diferente” – porque em conformidade e
a serviço do processo de reprodução do capital na economia mundial –
nos países “atrasados”/dominados.
Desenvolvimento “diferente” das forças produtivas nos países dominados
porque determinado e em conformidade (servindo, ajustado) à reprodu-
ção ampliada do capital, na/ao desenvolvimento da/economia mundial.
Desenvolvimento este determinado pelo desenvolvimento contraditório
do pólo dominante, países dominantes/países imperialistas.
Desenvolvimento da economia mundial que favoreceu, nos países do-
minados, a manutenção e desenvolvimento de relações de produção e
também de relações políticas e ideológicas que determinaram a tendência
a um desenvolvimento das forças produtivas de forma diferente e ajustada
à dos países imperialistas.
De outra forma, poderíamos dizer que as formas de produção em um
país dominado são sobredeterminadas pela dominação das relações
econômicas, políticas e ideológicas imperialistas.
5 Que a dominação não se dá somente na esfera econômica, é, portanto,
também política e ideológica. Daí porque o termo colonização: esta úl-
tima forma de dominação faz com que a ideologia dominante em cada
formação social dominada seja sobredeterminada pela dominação das
relações econômicas, políticas e ideológicas imperialistas que ligam a
classe dominante dos países dominados aos interesses das classes domi-
nantes dos países dominantes. Sobredeterminada por uma construção
ideológica que é dominante em escala mundial.
6 Que é esta combinação específica de relações de produção internas –
sobredeterminadas por relações de produção, relações políticas e ide-
ológicas mundiais – que engendra o que é designado pelas expressões
de “bloqueio das forças produtivas”, “de atraso no desenvolvimento das
forças produtivas” nos países dominados.
É uma interpretação equivocada desta realidade – ao não se compreender
que “atraso” e “desenvolvimento” são aspectos necessários e inseparáveis
da reprodução da economia mundial capitalista – que leva os setores
de “esquerda” que têm uma interpretação mecanicista do capitalismo a
colocar o problema de superar este “atraso” e assumir nosso lugar entre
os países capitalistas “desenvolvidos”.
7 Que o desenvolvimento “diferente”, portanto, é/resulta das próprias
relações de produção capitalistas modificadas pela dominação imperia-
lista (pela lógica da reprodução da economia mundial) sobre os países
dominados, expressas no desenvolvimento desigual de forças produtivas,
na menor remuneração da força de trabalho e baixo custo da reprodução
da força de trabalho, manutenção de um exército industrial de reserva

190
alargado, desemprego e subemprego “estruturais”, manutenção do “mer-
cado informal” para garantir a maior taxa de exploração possível, e como
forma de contrarrestar a luta de classes: baixo nível de subsistência.
8 Que a dominação imperialista sobre os países dominados implica: a) numa
configuração e limitação específica das forças produtivas e do mercado
interno; b) na imposição de limites para o desenvolvimento tecnológico; c)
em obstáculos à acumulação interna de capital; d) na constituição de uma
burguesia industrial e financeira comprometida com o desenvolvimento
desta configuração específica das forças produtivas, configuração com-
patível com as necessidades da economia mundial; e) o fortalecimento
de uma burguesia importadora/exportadora, (na agricultura, mineração,
etc., etc.), interna, comprometida com o capital externo.
Integração e subordinação
Referindo-nos às classes dominantes brasileiras no início do governo de
FHC, após Collor, dizíamos que era patente, pelo desenvolvimento econômico
e político recente da formação econômico-social brasileira, que se estabe-
lecera um outro nível de integração, outro nível de subordinação, entre o
essencial das classes dominantes brasileiras e o imperialismo.
Integração subordinada, onde o imperialismo está qualitativamente mais
presente na estrutura econômica. Presente com maior peso em setores de-
terminantes como o setor financeiro. A grande burguesia brasileira aumentou
seu grau de subordinação não só no setor financeiro como também no setor
produtivo e, principalmente, na definição da direção da intervenção estatal.
O que quer dizer que, cada vez mais, são os interesses do imperialismo
– em acordo com as classes dominantes brasileiras – que determinam as
políticas levadas à prática pelo estado brasileiro. Coalizão na qual, cada
vez mais, são os interesses da reprodução do capital, do imperialismo, na
economia mundial, que determinam tais políticas globalmente.
Ou, dizendo de outro modo, o imperialismo é mais forte e mais presente
na estrutura econômica nacional e a classe dominante nacional está mais
integrada, submetida, subordinada. Inclusive porque vem cedendo o Estado
para a política do imperialismo, perdendo-o enquanto instrumento utilizado
na disputa por lugar na estrutura produtivo-financeira.
Quando dissemos que as classes dominantes brasileiras disputam lugar
na estrutura econômica brasileira, não estamos nos referindo a nenhuma
contradição (antagônica) entre a nação e o imperialismo, mas sim à existência
da “saudável” concorrência capitalista entre as classes dominantes brasilei-
ras e o imperialismo. Assim como existem contradições e concorrência no
campo do imperialismo que, dentro dos limites da política necessária a sua
reprodução, ora disputam, ora se associam, na eterna corrida por ver quem
explora mais a classe operária e o povo.
Tendência à integração subordinada
De fato, a concepção, o conceito que expressa com maior precisão a
relação entre a burguesia brasileira e o imperialismo seria o da tendência

193
à integração, integração subordinada, tendência que não pode se realizar
plenamente, porque não exclui, e nem pode excluir, a concorrência.
As classes dominantes dos países dominados se integram em posição
subordinada à economia mundial, dominada e determinada pelo imperia-
lismo, à reprodução da economia mundial.
É evidente que até aqui só nós foi possível avançar algumas teses, ainda
provisórias, sobre o imperialismo, buscando esclarecer algumas das questões
que consideramos centrais para sua compreensão. Porém, tudo isto requer
precisões, desenvolvimentos e aprofundamentos. Todo um trabalho teórico
que prometemos continuar, para o que contamos, necessariamente, com a co-
laboração de todos os camaradas comprometidos com a revolução brasileira.
Censo de capitais estrangeiros
Se ainda tivermos dúvida quanto ao domínio do capital externo na
economia brasileira, nada melhor do que recorrer ao famoso argumento
de “autoridade”. E nenhuma autoridade maior sobre o assunto do que o
insuspeito Banco Central do Brasil (logo, logo “autônomo”), hoje capitaneado
pelo valoroso Henrique Meirelles – materializando a velha palavra de ordem
“Nada de intermediários…” e determinando a política econômica do Brasil
para uma meia dúzia de “laranjas” que o imperialismo colocou no trono.
A partir de 1995, o Banco Central do Brasil vem realizando um censo de
capitais estrangeiros. O texto que vamos reproduzir, Censo de capitais estran-
geiros 2001 (Data-base 2000). Alguns Resultados., se encontra no sítio do BCB 5.
O documento inicia exaltando a “destacada performance” da economia
brasileira em seu “processo de internacionalização”, detalhando o que de-
nomina de “aprofundamento” deste processo: “Os números do Censo 2001
reafirmam a destacada performance brasileira como pólo de atração de
capitais estrangeiros na segunda metade da década de 90, aprofundando
o processo de internacionalização de sua economia”.
E note-se bem, não trata de um processo de internacionalização da
economia brasileira que se tivesse dado em período recente, mas parte da
constatação de que a economia brasileira é, para utilizar o termo do rela-
tório, “internacionalizada” e do que se trata agora é do “aprofundamento”
deste processo.
Como diz o documento, “(…) seja pela criação de novas empresas ou
por aquisições das já existentes, juntamente com novos aportes de capital
naquelas que já registravam participação estrangeira em 1995 (…)”.
É importante verificar que não se trata também de que a economia
esteja internacionalizada em tal ou qual setor. O Banco Central parte da
constatação de que o processo de “internacionalização” se dá e se reflete
em toda a estrutura da formação econômica e social, como se pode concluir
do aumento em 80,4% no número de empresas que responderam ao Censo
e declararam a participação de capital estrangeiro, em apenas cinco anos.
Mas, vamos aos dados do Censo para confirmar o aumento da partici-
pação do capital externo na economia brasileira:
5 http://www.bcb.gov.br

190
“O primeiro indicativo do Censo que confirma maior grau
de participação do capital estrangeiro no Brasil surgiu com
o número de declarações recebidas pelo Banco Central,
11.404 declarantes (…). Houve, portanto, relevante aumento
de 80,4% em relação aos 6.322 declarantes do último censo,
período-base de 1995”. (Quadro 1)

QUADRO 1
Empresas com participação do capital estrangeiro
1995 2000 aumento
6.322 11.404 80.4%

O Censo ainda chama atenção para dados significativos do aprofundamen-


to do processo de internacionalização da economia. Apesar de que o número
de empresas tenha crescido 80,4% no período 1995-2000, “(…) o capital
integralizado do total de declarantes (…) convertidos pelo dólar vigente ao
final de cada período”, como diz o relatório chegou “a mais do que dobrar”,
“dos US$ 86,2 bilhões de 1995 para US$ 179,8 bilhões em 2000”. (Quadro 2)

QUADRO 2
Capital integralizado do total dos declarantes
1995 2000
US$ 86,2 bilhões US$ 179,8 bilhões

E segue o relatório do Banco satisfeito e achando “interessante” o domínio


do capital estrangeiro sobre a economia brasileira.
“Interessante notar que, em 1995, a maior participação no capital inte-
gralizado era de residentes, que respondiam por 51,6% do total. Em 2000,
houve inversão e a maior participação passou a ser de não-residentes, com
57,3% do total, explicitando a tendência dos investidores externos em pro-
curar participar de empresas brasileiras de forma majoritária”. (Quadro 3)
Outro dado relevante para dimensionar a “internacionalização” da eco-
nomia é que dos 11.404 declarantes, em 9.712 empresas a participação do
capital estrangeiro é majoritária, isto é, superior a 50% e, do valor de seu
capital integralizado, 70,3% é detido por investidores não-residentes. E
ainda, o crescimento nos ativos totais “(…) das entidades com participação
majoritária passou de 58,3% em 1995 para 70,2% em 2000”.

QUADRO 3
Participação no capital integralizado
residentes não
1995 51,6% 48,4%
2000 42,7% 57,3%

195
Ainda mais, analisando o quadro de endividamento das 11.404 empresas
com participação estrangeira, o Censo levanta que no ano de 2000 estas
empresas deviam a não-residentes o total de US $105 bilhões, em dólares
às taxas do final de 2000. O que correspondia a 45,1% do saldo da dívida
externa brasileira total, à época, US$ 236,2 bilhões. Essas empresas tiveram
receita operacional bruta em reais R$ 509,9 bilhões e de receita operacional
líquida R$ 423,8 bilhões, o que corresponde, respectivamente, a 46,9% e 39%
do PIB brasileiro apurado no ano 2000.
Não se pode depois destes dados deixar de perceber que o capital externo
é parte inseparável da estrutura econômico-social do Brasil e que – por se
situar precisamente nos setores estratégicos, seja pela sua rentabilidade
ou pela alta tecnologia que empregam – significa a certeza de lucros e do
controle da estrutura econômica brasileira.
Exportação e importação
Outro dado significativo do peso do capital externo na economia brasileira
é sua participação nas exportações-importações.
É necessário reproduzir o texto do Banco Central para que se tenha
claro a ideologia dominante no Estado brasileiro, manifesta no texto de
seus funcionários. Estes, ao invés de mostrar preocupação com o predo-
mínio do capital estrangeiro sobre o nosso mercado interno, expressam
evidente satisfação, afirmando ser este um fato positivo. Ao expressarem
assim sua posição, é evidente que os funcionários que redigiram o Censo
não estão manifestando uma posição pessoal, com o risco de se chocarem
com a posição da maioria, com a posição oficial, do Estado. A tranquilidade
e a satisfação com que comemoram o “aprofundamento” do processo de
“internacionalização” da economia brasileira expressa a ideologia (posição)
dominante entre as classes dominantes e, portanto, nos aparelhos de Estado.
Mas é importante reproduzir o trecho do relatório que trata do comércio
externo.
“Entre as estatísticas positivas trazidas pelo censo, não deve
ser esquecida, naturalmente, a importância das empresas
com participação estrangeira para o desenvolvimento do
comércio exterior brasileiro. Segundo os dados apresentados,
essas empresas geraram superávit em sua balança comercial
física em 2000 de US$ 1,7 bilhão com US$ 33,2 bilhões de
exportações e US$ 31,5 bilhões de importações, equivalentes
a participações de 60,4% nas exportações e de 56,6% nas
importações totais daquele ano”.
Porém, tem mais. Apesar de seu contentamento pelo fato de que o capital
externo controla 60% do comércio exterior brasileiro, nossos representantes
do pensamento das classes dominantes reconhecem que, apesar de que essas
empresas tenham aumentado sua participação no comércio entre 1995 e
2000, diminuiu o superávit produzido por elas, de US$ 2,3 bilhões em 1995
para os US$ 1,7 bilhão em 2000.

190
QUADRO 4
Importações e Exportações das empresas do
Censo/Importações e Exportações Totais
1995 2000
Importações de 38,76% 56,56%
Empresas do Censo/
Importações totais
Importações de 19.371.332 31.553.194
Empresas do Censo
Importações totais 49.972.000 55.783.000
1995 2000
Exportações de 46,76% 60,36%
Empresas do Censo/
Exportações totais
Exportações de 21.744.976 33.249.789
Empresas do Censo
Exportações totais 46.506.000 55.086.000

Mas, justificam condescendentes, queda “compatível com o ambiente


econômico vigente em seus respectivos momentos”. É importante ler o
texto do documento, ele trará sempre surpresas.
Hoje não é mais possível negar que são os representantes institucionais do
imperialismo: o FMI, Banco Mundial, Davos, etc., em conluio com a grande
burguesia brasileira, que definem a política econômica aplicada pelo governo
Lula. E não só a política econômica, toda a política de Estado.
É gritante a atuação desses braços do imperialismo: da grande burguesia
brasileira e da grande imprensa que os representa na aplicação e defesa
aberta da política econômica do governo Lula. Aliás, política por eles pre-
conizada, para não dizer imposta. Não só a política, mas também o pro-
cesso de regressão colonial e avanço da barbárie, materializado no modelo
exportador centrado na grande agricultura comercial, no agronegócio, na
exportação de matérias-primas e produtos manufaturados, na plataforma
de exportação montada aqui pelo capital externo, automóveis e peças etc.
etc., enfim, tudo aquilo que interessa ao imperialismo para aumentar a ex-
ploração a que está submetido o povo brasileiro. Esta é outra das questões
que teremos de desenvolver.
Fricotes, pontuais e episódicos
E não podemos nos deixar confundir pelos tímidos faniquitos de descon-
tentamento que alguns setores da indústria e do comércio expressam com a
política econômica de Lula. São fricotes, pontuais e episódicos, juros, estradas,
etc.: basta qualquer crítica mais séria vinda da esquerda, para que atendam
ao toque de reunir no campo do apoio amplo, geral e irrestrito à política do
imperialismo, que, aí sim, defendem com toda a energia de que são capazes.

197
E agora?
A ilusão de que é possível contar com a burguesia brasileira na luta
contra o imperialismo, como dissemos, só nos afasta da tarefa urgente
de organizar a classe operária, os camponeses, os trabalhadores, as ca-
madas médias, o povo brasileiro na luta para romper com a escravidão
imperialista. Já é hora de avançarmos no cumprimento desta tarefa.
Todos sabem o que fazer.

190
Formação econômico-social brasileira: regressão
a uma situação colonial de novo tipo 1

… o que é a essência mesma, a alma viva do marxismo: a


análise concreta de uma situação concreta
(Lenin) 2.

… um país dominado, ou anteriormente dominado, que


não modifica sua situação na divisão capitalista do trabalho
internacional não faz senão reproduzir a sua situação
desfavorável: quanto mais cresce a produção dos produtos
que o seu “lugar” lhe atribui, mais participa do agravamento
da sua situação desfavorável (as manipulações de preço não
podem modificar esse fato enquanto subsistir uma economia
mundial capitalista).
(Bettelheim, Charles, Relações Internacionais e Relações
de Classe. In: Bettelheim, Emmanuel et alli. Um Proletariado
Explorador? Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1971, p. 27).

A formação econômico-social brasileira vem sofrendo nas duas últi-


mas décadas, desde meados dos anos 1980, transformações em razão da
reconfiguração por que vem passando o sistema imperialista em busca de
retomar níveis mais altos da taxa de lucro. Na definição deste processo, temos
avançado o conceito de regressão a uma situação colonial de novo tipo.
O sistema imperialista, a economia mundial, vem vivendo desde os
meados dos anos 70, uma crise duradoura na qual se alternam períodos de
recessão econômica aberta e períodos de recuperação.
Crise econômica do imperialismo: sobreacumulação de capitais
A crise econômica do imperialismo é expressão de uma permanente so-
breacumulação de capitais sem possibilidades de aplicação produtiva à taxa
de lucro desejada e da sua correlata superprodução de mercadorias, tornan-
do-se terreno propício para a acumulação puramente financeira de capital
(D – D’), através do gigantesco desenvolvimento do capital fictício. Esse
reforço dos aspectos rentista e parasita constituintes do imperialismo se,
por um lado, não permite a eclosão de uma crise devastadora nos moldes
daquela dos anos 30 do século passado; por outro, impede a queima de
capitais necessária à sua própria superação.

1 Texto de fevereiro de 2006.


2 Nota 1 – Tradução de Kommunismus (12 de junho de 1920), das Obras Completas de
V.I.Lenin, Editorial Progreso, 1986, tomo 41, p. 140. Lenin criticava Bela Kun, dirigente
comunista húngaro, afirmando que ele “… Deja de lado lo que es la esencia misma, el
alma viva del marxismo: el análisis concreto de una situación concreta”.
Após a crise econômica que atingiu toda a economia mundial nos anos
1973/1974, o imperialismo tenta sair da crise através do mecanismo que gerou
a dívida externa, impagável, dos países dominados, com os países da América
Latina e América Central à frente. As moratórias do Brasil e do México, no
começo da década de 1980, impuseram ao imperialismo que buscasse novos
caminhos de forma a continuar valorizando as imensas somas de capitais
sobrantes da economia mundial.
Reconfiguração do sistema imperialista
A partir de meados dos anos 80 começa a se desenhar uma reconfigura-
ção no sistema imperialista, processo denominado pela economia política
burguesa pelos termos de “globalização” e “política neoliberal”. Processo
que tem seu centro na tentativa/necessidade de elevar as taxas de lucro dos
capitais imperialistas mediante o rebaixamento do valor da força de trabalho
tanto nos países dominados quanto nos países dominantes.
Diante da resistência da classe operária na luta de classes que não per-
mitiu a depreciação do valor da força de trabalho nos limites necessários
para a retomada da taxa de lucro, nem nos países imperialistas nem numa
parcela dos países dominados – entre os quais alguns países da América
Latina, (inclusive no México para onde os Estados Unidos iniciaram um forte
movimento de transferência de setores da indústria), o capital imperialista foi
obrigado a encontrar novas formas para assegurar a valorização do capital.
Em traços muito gerais, podemos dizer que este processo ocorreu com
uma combinação, em diversas proporções, de dois movimentos comple-
mentares. Em primeiro lugar, globalizando, internacionalizando a cadeia de
produção dos trustes e cartéis imperialistas, onde, nas cadeias de produ-
ção, as fases de montagem intensivas em força de trabalho e/ou recursos
naturais e matérias-primas (e que requerem um baixo nível de especializa-
ção) são deslocadas para os países dominados, enquanto a fabricação das
peças e componentes que requerem tecnologia e conhecimentos técnicos
concentra-se nos países dominantes, nos países imperialistas. Segundo,
conjugado a esse movimento, houve maciça transferência de setores da
produção para países onde a força de trabalho, relativamente disciplinada,
educada e aquartelada é comprada a custo baixíssimo, para a Ásia no geral
e para a China, especialmente.
Reconfiguração na formação econômico-social brasileira
Tanto a internacionalização das cadeias de produção promovidas pelos
trustes e cartéis, quanto o deslocamento para a Ásia, especialmente para a
China e de alguma forma para a Índia, de parte do parque industrial dos países
imperialistas impuseram profundas transformações na produção e reprodu-
ção da economia mundial e, portanto, por um conjunto de mediações, na
formação econômico-social brasileira. Como já dissemos, as transformações
na economia mundial parqueiam o lugar que a formação econômico-social
brasileira vai ocupando no novo desenho do sistema imperialista.
Este processo tem como consequências:

200
Primeiro, a internacionalização das cadeias produtivas das empresas
imperialistas, que passam a dividir-se e situar-se em diferentes países,
reconfiguram o setor industrial da economia brasileira.
Segundo, a privatização e a desnacionalização transferem para o capital
externo e privado nacional desde empresas estatais a setores de atuação
do Estado como previdência, saúde, educação, infraestrutura, etc.
Terceiro, o deslocamento da indústria imperialista para a Ásia meridional
e oriental, para a Índia e, sobretudo, para a China, gerou uma enorme
demanda por produtos básicos especialmente alimentos, petróleo e
minerais/metais como ferro, níquel, aço, alumínio, cobre e zinco, como
prova a expansão do consumo de minerais/metais na China que cresceu,
proporcionalmente, mais do que seu PIB, assim como o consumo de
borracha natural, algodão, madeira, etc., que norteou a especialização
do Brasil na produção e exportação de commodities.
Determinações externas e luta de classes
Conforme afirmamos, a partir de meados dos anos 80 vem impondo-se
uma reconfiguração na formação econômico-social brasileira, resultante
tanto das determinações externas, decorrentes das mudanças na econo-
mia mundial, quanto de suas contradições internas, da luta de classes, que
estabelecem, a cada momento, as possibilidades e limites nos quais se dão
as determinações externas.
Esta reconfiguração, que busca fazer o Brasil assumir o lugar no sistema
imperialista que as transformações da economia mundial lhe determinam,
traz mudanças significativas para situação sócio-econômica brasileira e,
portanto, para a situação, a posição das classes para a luta de classes.
O rearranjo em curso na economia mundial sobredetermina o rearranjo da
formação econômico-social brasileira que se faz em razão, em conformidade
e a serviço do processo em curso para contrarrestar a tendência de queda da
taxa de lucro, do processo de reprodução do capital na economia mundial.
Rearranjo da economia mundial que impõe uma reorganização das
forças produtivas nos países dominados, reorganização determinada e
em conformidade, servindo, ajustada ao processo de retomada da taxa de
lucro, à reprodução ampliada do capital, ao desenvolvimento da economia
mundial. Rearranjo este determinado pelo desenvolvimento contraditório
do pólo dominante no sistema imperialista, ou seja, países dominantes,
países imperialistas.
É assim que a partir de meados dos anos 80 se inicia no Brasil um pro-
cesso que conceituamos como de uma regressão a uma situação colonial
de novo tipo. Processo esse que vai sendo percebido por analistas, que
utilizam as concepções da economia política burguesa, apenas a partir de
seus elementos aparentes, de fenômenos isolados como a desindustrializa-
ção, a redução da importância relativa da acumulação industrial interna na
reprodução ampliada do capital no Brasil, a reprimarização, o crescimento
da participação do agronegócio e da indústria extrativa mineral tanto na
produção interna quanto nas exportações, etc.

201
Deslocamento do dinamismo econômico
Nesse processo a indústria, ou mais precisamente, o setor da indústria de
capital estatal, privado, nacional e externo que respondeu, historicamente,
pelo dinamismo econômico a partir do começo do século XX com a indus-
trialização vem perdendo a condição de setor dinâmico na economia. Setor
esse que se compunha, basicamente, pela indústria de bens de consumo
duráveis – e os setores que a ela se encadeavam – e de bens de capital e
infraestrutura. Em seu lugar, crescentemente, vêm aparecendo setores como
a agroindústria, o setor de mineração para exportação, e as plataformas de
fabricação e montagem para exportação formadas por empresas estrangeiras
ou de capital nacional a elas associadas, etc.
Processo esse que implica, também, não só a ascensão de novas frações
da burguesia, como o setor financeiro, a burguesia do agronegócio, de mine-
ração, etc. assim como cria novas diferenciações na composição das classes
dominadas. São mudanças que têm de ser levadas em conta por quem quer
fazer a análise concreta da conjuntura da luta de classes.
A estagnação da economia brasileira e da América Latina na década de
1980, em função da crise do imperialismo e de suas graves repercussões
nos países dominados do continente, atingiu severamente esses setores
da burguesia. A estratégia de rearranjo, reorganização, para contrarrestar
a crise, via abertura da economia brasileira, privatizações, liberalização dos
fluxos de capitais, estímulo, permissão ao ingresso de capitais estrangeiros
diretos, provocou por um lado, a eliminação de setores da burguesia interna,
cadeias industriais que foram as primeiras a serem desnacionalizadas (como
a de autopeças, por exemplo) e também substituídas por produtos impor-
tados – em uma cruel revanche da história, realizando uma substituição
de importações às avessas. Por outro, uma reorganização da produção que
anteriormente visava o mercado doméstico (talvez o melhor exemplo seja
a atuação das empresas antes estatais e agora privadas, como a Vale do Rio
Doce e a Companhia Siderúrgica Nacional) e que passou a se voltar para o
mercado externo em função de atender aos interesses da reconfiguração
da economia mundial (minérios para a China, por exemplo). Reorganização
para o mercado externo em função de sua maior dimensão e vantagens,
inclusive a provocada pela abertura dos mercados (que tornou viáveis
exportações para mercados que antes tinham tarifas e/ou barreiras muito
altas ou proibição de importações pura e simples), da competitividade das
commodities brasileiras, da necessidade da busca de receitas em dólares
para remunerar o capital financeiro, e da nova configuração das atividades
das empresas transnacionais repartindo o mundo entre suas filiais.
O que estamos dizendo é que, no caso do Brasil, a indústria sofreu um
processo de reorganização em que perdeu não só setores industriais rele-
vantes, como também elos de cadeias produtivas de segmentos industriais
importantes, cedendo cada vez mais o papel de setor dinâmico que a indústria
ocupava na economia para os setores do agronegócio, da mineração para
exportação, para o setor de fabricação e montagem de bens de consumo

202
ou partes desses bens para exportação em empresas de capital externo ou
a ele associado.
E, diferentemente do processo de industrialização que vinha ocorrendo
até meados da década de 80, os novos setores dinâmicos da economia
completam seu ciclo produtivo realizando no exterior, ou seja, com a venda
dos produtos no exterior. Não apenas isso, como também, dadas a crescente
participação do capital monopolista externo e a liberalização cambial e
financeira, acumula-se no exterior os lucros obtidos.
Processo de industrialização anterior
Desde o início do processo de industrialização no Brasil, em fins do século
XIX e início do século XX, a industrialização se dá de forma contínua (o que
não exclui fases de maior ou menor crescimento e crises) sob a determinação
de fatores internos e externos (contradições internas e imperialismo), no
sentido de constituir um sistema (estrutura), dentro do sistema mundial
do imperialismo, com nível tecnológico médio (mais precisamente, de
atrasado para médio), integrado tanto verticalmente – todos os estágios da
cadeia produtiva, da produção de matérias primas e insumos até o produto
final – quanto horizontalmente – a constituição dos principais ramos de
produção. Industrialização centrada na produção de bens cuja tecnologia
já havia sido estabelecida, estabilizada e generalizada nas economias dos
países imperialistas.
O processo de industrialização que se desenvolveu por quase todo o sé-
culo XX, no espaço que foi delimitado pelo sistema mundial do imperialismo,
e não contra ele, e que contou com grande participação de empresas trans-
nacionais dos países imperialistas, buscou, como necessidade intrínseca de
sua reprodução, de forma crescente, internalizar todo o ciclo da reprodução
ampliada do capital, com a realização da produção, fundamentalmente, no
mercado interno. O ápice desse processo se deu com o II PND no governo
Geisel que, mesmo não se consumando plenamente, gerou efeitos na es-
trutura produtiva até o início do governo Sarney.
Um novo período
Para demarcar um período, podemos dizer que o processo de regressão
a uma situação colonial de novo tipo, que se inicia no final da década de 80,
tem como marco político e econômico o governo Collor e é intensificado
nos dois mandatos de FHC e, agora, aprofundado e consolidado no governo
do PT, no governo Lula.
A regressão a uma situação colonial de novo tipo significa uma mudança
na estrutura econômica, social e política da formação social brasileira sob
o peso de forte ofensiva econômica, política, ideológica e militar do impe-
rialismo na esfera mundial.
As mudanças na estrutura econômica se expressam em transformações
que visam atender as necessidades da nova configuração da divisão interna-
cional do trabalho que vai tomando a economia mundial: 1 – fornecimento
de commodities; matérias-primas (petróleo, ferro, aço, alumínio, cobre, etc.

203
madeira, couro, etc.) e alimentos (grãos, carne bovina, frango, sucos, açucar
etc.) para o novo pólo industrial asiático; 2 – ocupação do mercado interno
por bens de consumo superproduzidos no mercado mundial; 3 – obtenção
de ganhos de escala para o setor industrial nas mãos do capital externo,
oferecendo infraestrutura e força de trabalho barata; 4 – constituição de
um mercado financeiro capaz de valorizar o capital sobreproduzido na
economia mundial.
Nova estrutura econômica brasileira
A mudança na estrutura econômica se expressa:
1 na formatação de uma nova estrutura industrial já não mais integrada
horizontalmente e verticalmente pelo encerramento de um conjunto,
ou de elos, parcelas das cadeias produtivas, de ramos de atividades
industriais, segmentos industriais que se faziam desde a extração e
manufatura de matérias primas e insumos ao produto final até o encer-
ramento de setores da produção de bens de consumo, que assim passam
a ser importados ou somente montados no país (nesse último caso, por
monopólios estrangeiros). Com isso, perdem-se segmentos industriais
relevantes ou rompem-se elos em cadeias produtivas. A desindustrializa-
ção é, portanto, um fenômeno constitutivo da regressão a uma situação
colonial de novo tipo.
2 na organização de um novo setor industrial voltado para a constituição de
ilhas de produção e montagem de mercadorias, em empresas estrangeiras
ou associadas, de média tecnologia, principalmente para exportação. Na
pauta de exportações brasileira, a presença de produtos com alto valor
agregado, oferta dinâmica e uso intensivo de tecnologia pode permitir
conclusões equivocadas. Com algumas poucas exceções, estes produtos
que figuram como exportação brasileira, em realidade, de made in Brazil
só têm a fase de montagem do que foi produzido em outros países, nas
cadeias de produção internacional, organizadas pelas empresas transna-
cionais imperialistas. Fase de montagem que requer um baixo nível de
especialização e força de trabalho barata. A tecnologia e o conhecimento
técnico incorporados a essas mercadorias se concentram em peças e
componentes importados, e boa parte do valor agregado beneficia as
empresas dos países imperialistas onde essas peças e componentes são
produzidas, e que organizam estas redes de produção.
3 na constituição de um setor agroindustrial voltado à exportação. Na ex-
portação de commodities minerais. Assim, o pólo dinâmico da economia
se transfere para setores voltados à exportação. Portanto, um conjunto
de setores que se realizam no exterior. No geral, setores de elaboração
de produtos primários. Ou seja, os novos setores dinâmicos têm seu ciclo
produtivo concluído no exterior, realizado no exterior. Nesse sentido,
o Brasil aprofunda a característica de país exportador de mercadorias
intensivas em força de trabalho e derivadas da exploração de seus re-
cursos naturais, baseando-se, para competir no mercado mundial, em
sua disponibilidade de força de trabalho barata e de pouca qualidade. A

204
especialização na produção e exportação de commodities é outra das
características da regressão colonial.
4 na montagem de um sistema com o objetivo de remunerar o capital
financeiro, remunerando com altos juros o capital fictício que circula e
só existe nas engrenagens da especulação, através da articulação entre
um elevado superávit primário e altos saldos na balança comercial, que
permitem remunerar o capital de “cassino”. Capital este que corre para
cá com total liberdade atrás das vantagens que só o Brasil e o governo
do PT são capazes de dar. Para isto, configura um mecanismo a fim de
executar uma punção sobre grande parcela da mais-valia produzida
internamente, mesmo quando realizada no exterior, a favor do capital
financeiro. Extorque do povo um elevado superávit primário em relação
ao PIB, o que possibilita ao governo – mantendo a taxa de juros a mais alta
na economia mundial – capturar uma parcela da mais-valia produzida
e, comprando os dólares do saldo da balança comercial, transformá-los
em remuneração ao capital financeiro beneficiado por estas altíssimas
taxas de juros internas oferecidas.
Brasil: mais explorado, mais dominado
Desta forma, podemos dizer que os resultados da economia festejados
pelo governo de Lula, PT, PCdoB e seus aliados, apresentados como signifi-
cativo avanço, maior independência, desenvolvimento econômico e social
do Brasil – como, por exemplo, o saldo recorde da balança comercial no ano
passado – só representam a obediência às determinações do imperialismo,
o aprofundamento da posição do Brasil na nova divisão internacional do
trabalho imposta pelo imperialismo para contrarrestar sua crise. Só repre-
senta a regressão do Brasil a uma situação colonial de novo tipo.
Na verdade, o governo Lula, – a serviço das classes dominantes brasilei-
ras intimamente ligadas ao imperialismo – consciente e intencionalmente,
aprofundou a “especialização” do Brasil (na verdade, uma vocação histórica
de suas classes dominantes) em corresponder ao lugar que o imperialismo lhe
atribuiu na nova divisão internacional do trabalho. Somos mais explorados
e mais dominados e nossa pseudoesquerda festeja.
Daí porque o imperialismo e setores das classes dominantes brasileiras
têm interesse em manter Lula no governo, para desespero de FHC e sua
troupe. Com uma esquerda desta, para que direita? Como dizíamos tempos
atrás, Lula, o metalúrgico como o gringo gosta!

205
O papel do agronegócio na reconfiguração
da formação econômico-social brasileira: a
propósito de um artigo do MST 1

Todo povo tem na sua evolução, vista à distância,


um certo «sentido». Este se percebe não nos por-
menores de sua história, mas no conjunto dos fatos
e acontecimentos essenciais que a constituem num
largo período de tempo. Quem observa aquele conjun-
to, desbastando-o do cipoal de incidentes secundários
que o acompanham sempre e o fazem muitas vezes
confuso e incompreensível, não deixará de perceber
que ele se forma de uma linha mestra e ininterrupta
de acontecimentos que se sucedem em ordem rigoro-
sa, e dirigida sempre numa determinada orientação. É
isto que se deve, antes de mais nada, procurar quando
se aborda a análise da história de um povo”
(Caio Prado Júnior. Formação do Brasil
Contemporâneo (Colônia).Ed. Brasiliense, 1961, p. 13)

No mesmo 17 de fevereiro em que publicamos o texto Formação


econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de novo tipo
no qual procuramos sintetizar as discussões que vimos tendo, sobre as
características atuais de nossa formação econômico-social, sobre sua po-
sição no sistema mundial do imperialismo, sobre suas contradições de
classe, discussão, portanto, sobre os caminhos da revolução no Brasil, os
companheiros do MST publicaram no “MST Informa”, no. 109, um texto da
Secretaria Nacional do Movimento sobre o Agronegócio, As perversidades
do agronegócio para a sociedade brasileira.
Evidentemente, é importante discutir as posições colocadas pelo MST
em seu documento, não só por ser o Movimento a nossa mais importante
organização de trabalhadores sem terra no campo, por estar travando
concretamente a luta de classes no campo, como também para ver com
mais clareza e profundidade erros e acertos nas teses sobre a conjuntura
da formação brasileira que estamos avançando, para buscar submeter seus
argumentos à crítica marxista e, também, factual.
Desnecessário repetir que o que buscamos é, por um lado, a partir do
confronto com uma posição com a qual temos divergências, que considera-
mos divergências no “seio do povo”, reafirmar, retificar e aprofundar nossa
própria análise e, por outro lado, fazer com que “as cem flores desabrochem”.

1 Texto de março de 2006.


Estimular o debate, em busca de uma correta análise de conjuntura da
realidade brasileira que sirva como arma na sua transformação 2.
1 Nossa divergência central com o texto do MST
O documento dos companheiros do MST traz importantes contribuições ao
debate da conjuntura da luta de classes no Brasil, a principal delas a percepção
de que o avanço do agronegócio, da agroindústria para exportação, faz parte
do que chamamos em nosso documento de uma regressão a uma situação
colonial de novo tipo. De acordo com o MST: “Mas o que há de novo? Nada.
Se estudarmos com atenção, é o mesmo tipo de modo de produção que foi
utilizado no período da Colônia, nos tempos do modelo agroexportador”.
Com a diferença, porém, de que a regressão de que falamos – regressão
da situação do país na divisão internacional do trabalho e nas condições de
reprodução ampliada que têm “semelhanças” com a “que foi utilizado no
período da Colônia” – se faz em uma situação colonial de novo tipo, são
semelhanças no “sentido”, tal como a palavra é utilizada por Caio Prado Jr.,
mas que operam em relações de produção diferentes, em modos de produção
diferentes e em uma nova e diferente conjuntura, fase histórica. E isto faz
toda a diferença. Como pede Marx a fim de que os “traços comuns”…”… não
nos faça esquecer a diferença essencial.” (MARX, 1977, p. 203) 3:

2 Desde Marx que sabemos da importância da teoria para a prática revolucionária. Tratando
da reorganização do partido operário no Manifesto Inaugural da Associação Internacional
dos Trabalhadores, Marx diz que:
“(…) la reorganización del partido obrero. Cuentan com uno de los elementos para el êxito,
que es el número. Pero de los números sólo pesan el la balança cuando y combinan y cuando
los guía el conocimiento.” (MARX, Carlos y ENGELS, Federico. Manifiesto Inaugural de la
Associacíon Internacional de trabajadores. (Outubro de 1864). In: Obras Fundamentales.
Tomo.17. México, D.F.: Ed. Fondo de Cultura Econômica, 1988, p. 7).
Também conhecida e fartamente repetida, apesar de que pouco aplicada por muitos dos
que se dizem marxista é a afirmação de Lenin:
“Sin teoría revolucionaria no puede haber movimiento revolucionário” (LENIN. Que Hacer?
Problemas Candentes de Nuestro Movimiento (Março de 1902). In: Obras Completas, Tomo
6. Moscú: Editorial Progreso, 1981, p. 26).
Mao Tsé-Tung, também, chama a atenção inúmeras vezes para a importância da teoria.
“Para fazer a revolução, necessitamos dum partido revolucionário. Sem um partido re-
volucionário, sem um partido fundado na teoria revolucionária marxista-leninista, e no
estilo revolucionário marxista-leninista, é impossível dirigir a classe operária e as grandes
massas do povo à vitória sobre o imperialismo e seus lacaios.” (MAO TSÉ-TUNG. Forças
revolucionárias do mundo inteiro, uni-vos, combatei a agressão imperialista! In: Obras
Escolhidas. Pequim: Tomo IV, 1948, p. 433).
3 “Por eso, cuando se habla de producción, se está hablando siempre de producción en un
estadio determinado del desarrollo social, de la producción de individuos en sociedad…
Pero todas las épocas de la producción tienen ciertos rasgos en común, ciertas determi-
naciones comunes. La producción en general es una abstracción, pero una abstracción
que tiene un sentido, en tanto pone realmente de relieve lo común, lo fija y nos ahorra
así una repetición. Sin embargo, lo general o lo común, extraído por comparación, es a
su vez algo completamente articulado y que se despliega en distintas determinaciones…
[Ciertas] determinaciones serán comunes a la época más moderna y a la más antigua…
Las determinaciones que valen para la producción en general son precisamente las que
deben ser separadas, a fin de que no se olvide la diferencia esencial por atender sólo a
la unidad” (MARX. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economia Política
(Grundrisse) 1857-1858, v. 1. México, D.F.: Siglo XXI, 1987, p. 5).

207
Assim, sempre que falamos de produção, é à produção
num estágio determinado do desenvolvimento social que
nos referimos – à produção de indivíduos vivendo em so-
ciedade… Mas todas as épocas da produção têm certas
características comuns, certas determinações comuns. A
produção em geral é uma abstração, mas uma abstração
racional, na medida em que, sublinhando e precisando
os traços comuns, nos evita a repetição. No entanto, este
caráter geral ou estes traços comuns, que a comparação
permite estabelecer, formam por seu lado um conjunto
muito complexo cujos elementos divergem para revestir
diferentes determinações… [Algumas] destas determinações
revelar-se-ão comuns tanto à época mais recente quanto
à antiga… é importante distinguir as determinações que
valem para a produção em geral, a fim de que a unida-
de … não nos faça esquecer a diferença essencial (MARX.
Introdução à Crítica da Economia Política (Agosto-Setembro
de 1857). In: Contribuição à Crítica da Economia Política.
2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 202-203).
Pensamos que a principal diferença entre nosso ponto de vista e o dos
companheiros do MST, entre nossa análise de conjuntura e a do MST, é o
fato de que assumimos o ponto de vista do marxismo-leninismo, diferença
que nos leva a analisar a conjuntura, a ver a conjuntura de outra forma, que,
portanto nos leva a buscar a análise concreta da formação econômico-social
brasileira, da atual conjuntura, do ponto de vista do marxismo-leninismo.
Definimo-nos enquanto marxista-leninistas.
O fato de que o MST vê a mesma conjuntura de um outro ponto de
vista o leva a não trabalhar em sua análise com o conceito leninista de
imperialismo, como:
“fase do capitalismo resultante das tendências integrantes
ao capital impulsionadas pela lei do valor e inerentes ao
processo de reprodução ampliada do modo de produção
capitalista, que resultam da propensão do capital à concen-
tração/centralização industrial e financeira no mundo e em
cada formação social, [que] produz a tendência à constitui-
ção do modo de produção capitalista à escala mundial, num
sistema mundial, corporificado em um pólo dominante e
um pólo dominado e em relações econômicas, políticas e
ideológicas designadas pelos conceitos de colonização e
imperialismo.” (ver texto E Agora?).
Ao não partir do marxismo-leninismo, do conceito leninista de imperia-
lismo, o MST não vê o processo de reconfiguração da formação brasileira
como parte do processo de reorganização da economia mundial, do impe-
rialismo, buscando fazer frente a sua crise. Por essa mesma razão, o MST é

208
levado a não analisar a formação econômica social brasileira como um todo,
complexo e contraditório, no qual, e só no qual, é possível compreender o
lugar do agronegócio.
Daí que o MST dissocie a evolução do agronegócio, da agroindústria para
exportação, das transformações pelas quais passa o conjunto da formação
brasileira, reconfiguração expressa na queda da participação da indústria no
PIB ao lado do crescimento dos setores como a indústria extrativa mineral e
a agropecuária, apontados pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento
Industrial (IEDI) – instituição de estudo e pesquisa de um setor da burguesia
industrial brasileira que acumula internamente – como “os setores líderes
da evolução econômica” no período de 1990 a 2003.
Em sua Carta IEDI nº 183, de novembro de 2005, em que se pergunta,
“Ocorreu uma Desindustrialização no Brasil?”, o IEDI aponta a queda da
participação da indústria no PIB e o crescimento da participação da agroin-
dústria e da indústria extrativa mineral.
“Com relação às taxas médias anuais de crescimento por setor
de atividade, de 1990 a 2003, os setores líderes da evolução
econômica foram extrativa mineral, serviços industriais de
utilidade pública (SIUP) e agropecuária, todos com taxa
média de crescimento de 3,5% a.a. no período como um
todo. A agropecuária apresentou expressiva expansão na
fase final do período. Extrativa mineral apresentou grande
dinamismo depois do programa de estabilização de preços
em 1994. O melhor período para a indústria de serviços de
utilidade pública foi de 1995 a 1998, período mais intenso das
privatizações. O dinamismo em termos de crescimento desses
setores se deu com perda de participação no emprego total.
A indústria de transformação de 1990 a 2003 cresceu em
média a uma taxa muito baixa: 1,8% ao ano, sendo que os
anos iniciais da década de 1990 formam o período de maior
crescimento (taxa média de 2,7% a.a.). O setor inclusive
cresceu menor do que a economia como um todo que
também pode ser considerado uma evolução baixa.” (IEDI,
no. 183, nov. 2005, p. 9).
Decorrente do ponto de vista adotado pelos companheiros do MST
estes não vêem a formação econômico-social brasileira como uma forma-
ção de classes, dividida entre classes irreconciliáveis – apesar de que seu
documento fale em classes –, a classe dominante e as classes dominadas,
onde a classe dominante domina e explora a classe dominada nas relações
de produção próprias ao modo de produção capitalistas. Assim, portanto,
se há “perversidades do agronegócio” para com a “sociedade brasileira”,
estas perversidades recaem somente sobre as classes dominadas, porque
as classes dominantes estão muito satisfeitas em explorá-las junto com as
classes dominantes dos países imperialistas.

207
2 Nossa concordância fundamental: a respeito da regressão
a uma situação colonial de novo tipo
Apesar do peso da ofensiva ideológica do imperialismo e de seus aliados
internos, como constataremos no item III.A, abaixo, a compreensão do
processo que conceituamos como o de regressão a uma situação colonial
de novo tipo, começa a se fazer sob várias formas entre os militantes das
classes dominadas, seus intelectuais e seus quadros dirigentes.
Processo de regressão que as classes dominantes e o imperialismo, com
o governo a seu serviço, querem esconder por baixo desta, como apontam
os companheiros do MST, “propaganda sistemática” por todos os meios e
aparelhos ideológicos a sua disposição.
A compreensão do secretariado nacional do MST de que o processo
que é imposto ao povo ao brasileiro expressa “o mesmo tipo de modo de
produção que foi utilizado no período da Colônia, nos tempos do modelo
agroexportador”, é exemplo de que se começa a desnudar a nova forma de
inserção de nossa formação social no imperialismo, que nos querem vender
como o último grito de progresso e modernidade.
Contudo não é somente o MST. Queremos chamar a atenção para o
importante trabalho de um grupo de intelectuais comprometidos com
as classes dominadas e que, por isto mesmo, mantém uma visão crítica da
conjuntura brasileira.
Em trabalhos reunidos e organizados por João Antônio de Paula sob o
título “Adeus ao Desenvolvimento: a opção do governo Lula” (Belo Horizonte:
Ed. Autêntica, 2005. http://www.autenticaeditora.com.br/) estes professores,
economistas, intelectuais expressam compreensões, posições, aproximadas
da que defendemos – sob o conceito de regressão a situação colonial de
novo tipo – do processo por que passa a formação brasileira.
Por exemplo, em seu trabalho Governo Lula: uma opção neoliberal, o
professor João Machado Borges Neto vai dizer que:
Destacando o aspecto do agravamento da dependência, é
possível dizer, até, que teremos vivido no governo Lula um
processo de reversão do Brasil a uma condição neocolonial
– processo iniciado antes deste governo, mas prosseguido
e aprofundado com ele (Op. cit., p. 76).
E, mais adiante:
A economia brasileira, portanto, terminará o governo Lula
ainda mais dependente da dinâmica do mercado mundial
e ainda menos centrada no desenvolvimento do mercado
interno (Idem, p. 76-77).
Já os professores Wilson Suzigan e João Furtado, no trabalho Política
Industrial e Desenvolvimento que publicam na mesma coletânea, vão analisar
o período como uma “reversão do processo histórico”:
Assim, ao invés de mudança, houve, de 1981 em diante,

208
reversão do processo histórico com involução de tecnologias,
de estruturas empresariais e industriais e de instituições
lato senso, isto é, inclusive políticas, e com deterioração da
infra-estrutura (Op. cit., p. 189).
E concluir:
as estruturas das indústrias encolheram com a desarticula-
ção de cadeias produtivas, sobretudo em eletrônica, bens
de capital e química/farmacêutica, e com a desativação
de segmentos de alta tecnologia. Com isso a participação
da indústria de transformação no PIB caiu alguns pontos
percentuais (Idem, p. 191).
O prof. Ignácio Godinho Delgado, em seu texto Empresariado e Política
Industrial no Governo Lula, repetindo Eli Diniz, afirma que “Nos anos 1980,
o Brasil conhece uma crise de refundação.” (p. 208).
Também a professora Leda Maria Paulani, em formulação que considera
ainda preliminar, hipóteses a serem confirmadas mais rigorosamente, tra-
tando da passagem do que chama “de dependência e servidão”, com ênfase
na importância do capital financeiro, afirma:
Da mesma forma que a palavra dependência mostrou-se
não limitada a contextos históricos específicos – servindo
para nominar os períodos de dominação colonial explícita,
mas podendo representar também, como foi o caso na dé-
cada de 1970, o conteúdo socioeconômico de uma relação
política moderna –, suspeitamos que o caráter do vínculo
que prende hoje o capitalismo periférico brasileiro ao cen-
tro do sistema só pode ser definido em termos de servidão
(PAULANI. Investimentos e Servidão Financeira: o Brasil do
último quarto do século. In: Op. cit., p. 52).
Também o sociólogo alemão Robert Kurz, em artigo para a Folha de São
Paulo, ao analisar o sistema mundial do imperialismo, “sob as condições na nova
crise mundial”, e o papel da China, conclui que, em relação à América Latina:
as mercadorias baratas das indústrias chinesas (na realidade,
produtos da terceirização transnacional dos conglomerados
dos EUA e da União Européia) inundaram os mercados
latino-americanos. Certamente que as exportações latino-
-americanas para a China também aumentaram. Mas, em
primeiro lugar, trata-se aqui de quase somente matéria-
-prima. Com isso, se reproduz via globalização apenas a
antiga relação de dependência entre centro e periferia em
nova configuração… A América Latina se vê ameaçada,
dessa maneira, por uma nova desindustrialização (KURZ.
O Triângulo de Cartas. FSP, caderno Mais!, 05.02.2006, p. 3).

207
Contudo não é de hoje que intelectuais que se colocam em posição crítica
diante do desenvolvimento do capitalismo percebem o processo porque
passa a formação social brasileira. Para dar um só exemplo vamos citar a
prof. Maria da Conceição Tavares que não só confirma as característica que
apontamos para a economia brasileira nos últimos cem anos:
A economia brasileira, sempre cresceu ‘para dentro’ e ao
mesmo tempo sempre esteve inserida de forma periférica
e dependente na ordem econômica internacional. Apesar
de ser periférica e dependente – isto é, de não contar com a
geração de progresso tecnológico próprio, nem com dinheiro
conversível no mercado mundial – conseguiu obter durante
mais de cem anos uma das maiores taxas de crescimento do
mundo capitalista (TAVARES. Império, Território e Dinheiro.
In: FIORI. (Org.), Estados e Moedas no Desenvolvimento das
Nações. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 456).
Como aponta para o processo que identificamos a partir dos anos 1980
e que vinha se desenvolvendo no período em que escreveu seu artigo:
Pelo contrário, fazer do Brasil uma plataforma de expansão
do capital industrial e financeiro internacional e reafirmar
as nossas ‘vantagens comparativas’ é uma proposta liberal
recorrente das potências imperiais dominantes desde o
século XIX (Op. cit., p. 471).
Proposta que vem sendo aplicada a ferro e fogo desde os governos Collor,
Itamar, FHC, e, agora, pelo governo do PT com nosso metalúrgico à frente.
3 Análise crítica do artigo do MST
Vamos tratar as questões colocadas pelos companheiros do MST, uma
a uma, para que se possa ver mais claro nossos pontos de acordo e nossas
divergências. Vamos aos fatos da conjuntura apontados em seu documento
como o da ofensiva ideológica dos “meios de comunicação brasileiros”.
3.1 A defesa do agronegócio como ideologia e política das clas-
ses dominantes
O MST, levado por sua presença concreta na luta dos camponeses pobres
e explorados, denuncia esta ofensiva ideológica, denuncia a propaganda do
agronegócio, a propaganda que inclusive apresenta o agronegócio como “a
salvação do Brasil”:
Nos últimos anos, os meios de comunicação brasileiros,
principalmente os grandes jornais e as televisões, têm feito
propaganda sistemática em favor do modelo do agronegó-
cio, como se fosse a salvação do Brasil. Colocam ele como
o responsável pelo crescimento de nossa economia, pela
geração de empregos, por uma agricultura moderna e pela
produção de alimentos.

208
Ora, é não compreender como se constitui o sistema imperialista – ana-
lisado pela primeira vez por Lenin – se espantar de que a classe dominante
dos países dominados defenda a ideologia do imperialismo, ideologia da
classe dominante no sistema da economia mundial, portanto, ideologia
dominante em países imperialistas e países dominados.
Resultado de sua posição de classe em um país dominado e inserido
na economia mundial e da ofensiva ideológica do imperialismo a qual se
rendeu com prazer, a classe dominante brasileira está satisfeitíssima com a
forma de inserção do Brasil no sistema imperialista. E fora o resmungo de
um ou outro “empresário” quanto à taxa de juros, os teóricos orgânicos do
capital se desdobram em loas à nova situação, ressuscitando até o velho
Eugênio Gudin:
Para finalizar, no que diz respeito ao receio de alguns sobre
as possíveis mudanças na pauta exportadora brasileira –
na direção da maior participação de produtos primários
e básicos – faz-se referência a um dos mais importantes
ensinamentos do mestre Eugênio Gudin: não importa o
quanto um país produz de bens primários ou industriais, mas
sim o nível da produtividade em cada setor de sua econo-
mia. (Instituto Brasileiro de Economia. Câmbio: o mercado
não é perfeito, mas quem é? Carta do IBRE. In: Conjuntura
Econômica, novembro de 2005, p. 8).
Só para não ir muito longe, vamos ficar neste exemplo brilhante de sub-
serviência congênita e ancestral aos ditames da metrópole da vez, qualquer
que seja a metrópole da vez, que é a Conjuntura Econômica, revista da FGV,
que veicula a cada número a “Carta do IBRE”, do ironicamente denominado
Instituto Brasileiro de Economia.
A carta de fevereiro deste ano começa por apontar o significado do
agronegócio:
Um dos mais significativos aspectos da transformação que a
economia brasileira vem experimentando é o crescimento da
importância do agronegócio nacional no cenário mundial (O
Comércio do Agronegócio: vamos gerar mais empregos? p. 8).
Em seguida, passa a defender a especialização no “segmento onde o Brasil
soube ‘construir’ vantagens comparativas, alicerçadas, evidentemente, na
vantagem comparativa original e decisiva: a ampla disponibilidade de terra,
luz e água” (p. 8). Quer dizer, na produção de matérias-primas e de produtos
primários para exportação, produção baseada em seus recursos naturais e
na força de trabalho sem qualificação e barata.
Continuam nossos intelectuais a serviço dos interesses externos come-
morando o fato de que, para eles, “a China caminha para dominar o setor
industrial, e a Índia, o segmento de serviços associado à tecnologia de
informação” e, ufanistas:

207
… O Brasil é imbatível em boa parte dos ramos do setor
agro – alimentar (e agro-energético, poderíamos acrescentar)
e que o país consolidará o papel de protagonista mundial
nesta área.
Um dos mais significativos aspectos da transformação que
a economia brasileira vem experimentando é o crescimento
da importância do agronegócio nacional no cenário mundial
(Conjuntura Econômica, nov. 2005, p. 8).
E, mais adiante:
Todos aplaudem, é verdade, os feitos de nossos agricultores
e industriais agro-alimentares, que conquistaram a liderança
mundial na produção de itens como soja, carne bovina,
frango, café, etc., e que são responsáveis pela maior parte
dos superávits comerciais que, nos últimos anos, permitiram
ao Brasil superar sua secular vulnerabilidade externa (p. 8).
E, confirmando que a colônia é de novo tipo:
Tampouco é percebido por alguns daqueles críticos que
o agronegócio hoje não guarda nenhuma relação com o
padrão de baixa produtividade e atraso característico das
economias agrícolas de exportação dos tempos coloniais,
baseadas na monocultura ou numa pauta limitadíssima de
produtos (p. 8).
E cobrando do agronegócio que assuma sua posição líder na economia:
O setor, porém, parece estar sempre na defensiva, por mais
que os fatos e os números mostrem sua inegável importância
e centralidade para o desenvolvimento socioeconômico
nacional (p. 8).
A imprensa burguesa só ocupa seu lugar enquanto aparelho ideológico
que é, o de fazer tudo o que seu mestre mandar, daí que não é à-toa que
louve o agronegócio e descubra, agora, que o Brasil tem vantagens, terra,
sol, água, e, principalmente, força de trabalho barata, que deve explorar.
Portanto, concordamos inteiramente com a crítica dos companheiros do
MST. Só acrescentamos que não são apenas os monopólios de comunicação
que fazem a propaganda em favor do agronegócio. O governo de Lula e do
PT, PCdoB e congêneres também a fazem, e pior, a fazem propagandeando
que este é o lado esquerdo de seu governo.
Dizemos mais: vários companheiros e segmentos das classes dominadas
também têm caído sob a ofensiva ideológica das classes dominantes, caído
no canto da sereia do agronegócio, como o MST reconhece, ao afirmar que
alguns sindicalistas falam em “agronegocinho” como a saída. Infelizmente,
o próprio MST, também incorre neste erro ao divulgar no seu sítio entre-
vista com um desconhecido professor chileno, radicado na Inglaterra, feita

208
originalmente para o jornal O Estado de São Paulo, conhecido antro da
reação, entrevista onde defende a mesma posição dos “meios de comuni-
cação brasileiros, principalmente os grandes jornais e as televisões”, denun-
ciados pelos companheiros do MST, e dos escrevinhadores da Conjuntura
Econômica que referimos acima, entrevista que se conclui com a seguinte
receita para o “desenvolvimento” do Brasil:
Que política industrial seria boa para o Brasil?
O básico de uma política industrial é pensar no longo prazo.
Uma característica da globalização é que só tem êxito quem
encontra um nicho. A China resolveu ser a fábrica do mundo,
a Índia quer ser o escritório (produzindo softwares). O Brasil
ainda não encontrou seu espaço.
E qual seria o diferencial brasileiro?
O mais óbvio é o Brasil se tornar o maior processador mun-
dial de commodities, de minérios e de produtos agrícolas.
Em vez de exportar ferro, exportar aço. (Entrevista com
Gabriel Palma. «A Política de Juros é Machomonetarista»,
diz economista. O Estado de São Paulo, 4 de março de 2006,
disponível em: http://www.mst.org.br/node/1853).
Precisamos estar atentos e armados da teoria marxista-leninista para
perceber as armadilhas da ideologia da classe dominante.
3.2 O conceito de agronegócio
Uma nova divisão internacional do trabalho, imposta pelas
necessidades vitais da grande indústria, converte, desse
modo, uma parte do globo em campo de produção agrícola
para a outra parte que se torna, por excelência, o campo
de produção industrial (MARX. O Capital. Apud Charles
Bettelheim. Relações Internacionais e Relações de Classe. In:
BETTELHEIM et alli. Um Proletariado Explorador? Lisboa:
Iniciativas Editoriais, sem data, p. 22).
Um dos primeiros problemas que temos de enfrentar no texto dos
companheiros do MST é a compreensão que apresentam do agronegócio.
Poderíamos iniciar dizendo que agronegócio não é conceito do
Materialismo Histórico, porém sem entrar nesta polemica, mesmo assim
acreditamos que os companheiros se equivocam na sua tentativa de definir a
“palavra agronegócio”, que é conceituado, por eles, como “todas as atividades
de comércio com produtos agrícolas”, sendo essa a “essência do sentido da
palavra, usada em nível internacional”.
O dicionário Houaiss, por exemplo, define agronegócio de forma diferente,
como o “conjunto de operações da cadeia produtiva, do trabalho agropecuário
até a comercialização”. Conjunto de operações que inclui, portanto, o bene-
ficiamento, a manufatura, ou outros processos que se faz passar os produtos
agrícolas ou da pecuária antes de serem industrializados para o mercado.

207
Uma definição econômica, dentro do campo da economia burguesa, é
feita pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea),
da Esalq-USP. Em projeto desenvolvido em parceria com a Confederação
Nacional da Agricultura (CNA), o Cepea-USP passou a calcular regularmen-
te a importância do agronegócio e preparou um relatório metodológico.
Resumidamente, seria “um sistema interligado de produção, processa-
mento e comercialização dos produtos de origem agrícola”. (Cepea-USP.
O Agronegócio na Economia Brasileira 1994-1999. Setembro de 2000, p. 4.
http://www.cepea.esalq.usp.br/pib/).
Após resenhar a bibliografia nacional e internacional sobre o assunto,
define o agronegócio (para depois calcular, anualmente, sua magnitude e
proporção do PIB total do país) como o conjunto formado por:
a) setores industriais que fornecem bens e serviços para
a agricultura, que se denominará de Indústria para a
Agricultura; b) a agricultura propriamente dita que se sub-
dividirá em agricultura e pecuária; c) setores industriais
que têm na agricultura seus mercados fornecedores, que
denominaremos de Indústria de Base Agrícola; d) o Setor
de Distribuição, que englobará os segmentos de transporte,
comércio e serviços (Op. cit., p. 32).
A definição do MST é, portanto, incompleta, insuficiente, inexata e se
presta a equívocos de análise, como por exemplo: primeiro, a não inclusão
da pecuária no conceito; segundo porque não se trata apenas do comércio
(vender “um produto na feira”).
E aí mais uma dificuldade. O que os companheiros definem como simples
“venda”, em termos marxistas, representa a realização da mercadoria, elemento
inseparável (embora analiticamente distinto) da produção de mercadorias.
Os companheiros do MST apontam, ainda em seu texto, uma segunda
definição de agronegócio, que seria empregada por “fazendeiros, por inte-
lectuais das universidades e, sobretudo, pela imprensa”. Nessa definição, o
agronegócio seria composto por:
aquelas fazendas modernas, que utilizam grandes exten-
sões de terra e se dedicam à monocultura. Ou seja, que se
especializam num só produto, tem alta tecnologia, mecani-
zação – às vezes irrigação – pouca mão-de-obra, e por isso,
falam com orgulho que conseguem alta produtividade do
trabalho. Tudo baseado em baixos salários, uso intensivo de
agrotóxicos e de sementes transgênicas. Na maior parte dos
casos, a produção é para a exportação. Em especial, cana-de-
-açúcar, café, algodão, soja, laranja, cacau, além da pecuária
intensiva. Esse tipo de fazenda é o chamado agronegócio.
A nova tentativa de definição, atribuída ao inimigo de classe, permanece
equivocada, resultado de uma mistura: primeiro uma tentativa, mal-sucedida,

208
de conceituação combinada com suas bandeiras de luta (contra agrotóxicos
e transgênicos); e depois com características gerais da empresa capitalista
(tentativa permanente de rebaixamento do valor da força de trabalho e de
obtenção de maior tecnologia como expressões do aumento da composição
orgânica do capital buscando aumento da taxa de lucro) e com aspectos
específicos do agronegócio (voltado para a exportação etc.); deixando de
lado, creio que por motivos “políticos”, as pequenas e médias propriedades
e também, creio que por incompreensão, a agroindústria e demais setores
dinamizados pela agropecuária, que constituem o agronegócio.
Politicamente, ao colocarem no mesmo bloco os fazendeiros e os “in-
telectuais das universidades” (considerados como um todo indiferenciado)
cometem grave erro de análise de classes, ao não identificar “quem são
nossos inimigos e quem são nossos amigos”, uma “questão de importância
primordial para a revolução”, como afirmava Mao Tsé-Tung em seu primeiro
artigo, publicado em suas Obras Escolhidas, Análise das Classes na Sociedade
Chinesa, de março de 1926 (Mao Tsé-Tung. Obras Escolhidas. Tomo 1. 1975).
No entanto, e como já ressaltamos no item I, acima, os companheiros do
MST percebem, de forma bastante clara e aguda, o sentido real que está por
trás dessa aparência de modernidade, da tecnologia do agronegócio. Essa
é, também para nós, uma questão central, fundamental, à qual dedicamos
não apenas nosso artigo inicial mas também temos dedicado grande parte
de nosso esforço coletivo de elaboração teórica. Diz o MST em seu texto:
Mas o que há de novo? Nada. Se estudarmos com atenção,
é o mesmo tipo de modo de produção que foi utilizado no
período da Colônia, nos tempos do modelo agroexportador.
Muda-se apenas de trabalhador escravizado para assalariado
e as técnicas passam a ser modernas.
Vamos submeter essa análise ao recomendado pelo MST no texto, a uma
“análise mais rigorosa” ou, para dizer de outro modo, à “crítica da crítica”.
Muito embora essa definição acerte ao caracterizar o aspecto “colonial” do
modelo agroexportador, ela padece ainda, a nosso ver, de outras sérias defi-
ciências, ao não ver que o processo tem outras instâncias (como a financeira)
e diferenças que distinguem uma fase da outra. Não ver a diferença entre a
regressão colonial de hoje, o que procuramos distinguir, conceituando como
regressão a uma situação colonial de novo tipo e a situação que Fernando
Novais conceitua como antigo sistema colonial 4, é não ver o principal.
A primeira dessas deficiências, como já discutimos acima, ao não ver
que quando buscam caracterizar “a palavra agronegócio” e se perguntam
“o que há de novo?”, e respondem “Nada”, para em seguida dizer “Muda-se
apenas de trabalhador escravizado para assalariado e as técnicas passam a
ser modernas”, e afirmam que é o “mesmo tipo de modo de produção”, que
não há nada de novo, cometem um profundo equivoco.

4 NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777 – 1808).
Hucitec. 2002.

207
Não percebem que este “apenas”, esta mudança, é tudo, é “esquecer a
diferença essencial” de que nos fala Marx. E se temos uma regressão a uma
forma de produção que explora nossas “vantagens comparativas”, como gos-
tam de dizer os teóricos orgânicos da classe dominante, esta regressão se faz
na conjuntura histórica na qual o modo de produção capitalista se constituiu
num sistema mundial no qual o Brasil se insere enquanto país dominado.
Temos sido rigorosos com nós mesmos em nosso trabalho teórico, ao
trabalhar com o conceito de regressão a uma situação colonial de novo
tipo, para evitar esse equívoco. É equívoco grave, do ponto de vista da
análise marxista, e mesmo da análise econômico-burguesa, por exemplo,
não perceber o significado da mudança do trabalho escravo para o trabalho
assalariado, a mudança nas relações de produção.
Como dissemos acima, o “apenas” representa uma mudança – do trabalho
escravo para o trabalho assalariado – que implica um sistema de reprodução
ampliada do capital inteiramente distinto do anterior.
Qualquer trabalho sobre o período de transformação do trabalho escravo
em trabalho assalariado, na virada do século XIX para o século XX, mostra
que é esta mudança, mudança na característica fundamental de qualquer
relação de produção, que vai determinar a nova fase da formação brasileira:
basta procurar em Caio Prado Junior, ou Nelson Werneck Sodré, ou Fernando
Novais, ou João Manuel Cardoso de Mello, ou Maria da Conceição Tavares,
etc. Para não dizer, de forma geral, procurar em O Capital.
No entanto, esta questão é tão óbvia que não precisa de maiores esforços
de comprovação.
Foi esta mudança, historicamente, o que permitiu que parte crescente
da produção fosse realizada internamente (trabalhadores livres para serem
assalariados, criação do mercado de trabalho, produção de bens de consumo
assalariado). Foi o que permitiu o desenvolvimento tecnológico (divisão
técnica do trabalho, mecanização) e o começo da industrialização, etc.
Segundo, ao não enfatizar o que há de retrocesso, de regressão, nesse
modelo, a definição do agronegócio pelos companheiros do MST também
não mostra que, do ponto de vista do desenvolvimento do capitalismo num
país dominado como o Brasil, essa ênfase agroexportadora é um retrocesso
em relação à tendência de industrialização de quase um século anterior,
como apontamos em nosso texto e como mostra Conceição Tavares na
citação que fizemos acima, resulta para a formação social num processo de
desindustrialização, de reprimarização, “africanização” 5, realização crescente
da produção no exterior.
Por fim a definição de agronegócio com que trabalham os companheiros
ao não mostrar também os determinantes externos do processo, ao não
trabalhar tendo em conta o imperialismo, como já nos referimos, pode dar
a entender ao leitor despercebido que o retorno ao modelo agroexportador,
não tem causas bem definidas, é uma escolha dos fazendeiros, do “nosso
clima e nossa sabedoria agrícola”.

5 GONÇALVES, Reinaldo. A Herança e a Ruptura. Rio de Janeiro: Garamond, 2003, p. 98.

208
Na verdade, como temos enfatizado, o lugar que o agronegócio passa a
ocupar na formação social brasileira é resultante do processo de rearranjo do
imperialismo diante de sua crise prolongada. É resultante do parqueamento
a que o rearranjo do imperialismo submete a economia brasileira, rearranjo
no qual as determinantes externas sobredeterminam sua necessidade, mas
que suas particularidades concretas são definidas pelas contradições internas.
E ainda, o texto dos companheiros ao denunciar os salários no agronegócio
faz parecer que não levam em conta que o Brasil se encontra sob o sistema
capitalista que tem como característica intrínseca o uso da tecnologia para
reduzir o custo do capital variável, o custo da força de trabalho empregado,
isto é, demitir operários, aumentando o valor acrescentado ao produto por
aqueles que ficaram na produção, isto é, aumentando a mais valia produzida
por cada operário e da qual vai se apropriar o capitalista.
Daí por que não há razão para se espantar de que os capitalistas busquem
necessariamente tecnologia para aumentar a produtividade do trabalho,
demitindo operários, e se orgulhem disto, buscando ainda, mais uma vez
necessariamente, remunerar a força do trabalho que restou com os salários
mais baixos que a luta de classes lhes possam permitir.
Pensar que o capitalista – e os governos a seu serviço, como é o caso
do governo Lula – possa preocupar-se em aumentar o salário de “seus em-
pregados”, é desconhecer a lógica do sistema capitalista, lógica que Marx
revela em O Capital. Da mesma forma que esperar que vá distribuir “renda
no campo” ou se preocupe com o “desenvolvimento dos municípios”, etc.
Isso porque o modelo regressivo sob o qual vivemos no Brasil não
está destinado, prioritariamente, à geração de emprego e renda à classe
trabalhadora do campo e da cidade. O sistema econômico brasileiro
beneficia fundamentalmente o capital financeiro, com o pagamento de
juros estratosféricos e com a política de superávits fiscais primários para
garantir a remuneração deste capital, e os setores voltados à exportação,
notadamente o agronegócio, a indústria extrativa mineral e as platafor-
mas de exportação montadas no país pelas empresas transnacionais.
Dessa forma, parte significativa, e crescente, da produção é realizada no
exterior, e também parte significativa, e crescente, dos lucros obtidos são
acumulados no exterior.
Em relação à formulação do MST, que pretende criticar o mito de que
o “agronegócio distribui renda no campo” com a afirmação de que “a
escravidão no campo continua e os lucros se restringem aos proprietá-
rios das fazendas” é preciso uma crítica mais detalhada. É absolutamente
necessário – se queremos trilhar o difícil e longo caminho da libertação
do nosso povo, caminho que escolhemos trilhar conscientemente, e cuja
trilha devemos seguir coesos, de mãos dadas, sob fogo cerrado de todos
os lados – fazer a crítica radical.
Vejamos, então, porque procede a nossa crítica a este ponto. Na justi-
ficativa da denúncia do “mito”, o MST afirma: “os lucros se restringem aos
proprietários das fazendas”.

207
Na definição científica, marxista, lucro é a mesma mais-valia, valor ex-
propriado dos trabalhadores pelo patrão sem pagamento, só que em vez
de expressar-se como proporção do capital variável, a força de trabalho, se
expressa como proporção do capital total. Ou seja, para sermos bem claros:
lucro é a parte do trabalho do operário que é apropriada pelo burguês sem
o pagamento devido, sem qualquer pagamento.
De que realidade o MST está falando? O que seus militantes e demais
companheiros devemos entender de tão esdrúxula afirmação? Fiquemos
em alerta, companheiros: trata-se de uma afirmação reformista, que deixa
ideologicamente despreparados os militantes na luta de classes. É uma
afirmação burguesa, que encobre o caráter real do lucro e o apresenta
travestido como algo que seria não só aceitável como plenamente justifi-
cável. Elimina a crítica à categoria lucro e a transforma em crítica a alguns,
não nomeados, empresários ou fazendeiros, aos quais se poderia taxar de
atrasados, conservadores, sem “visão social” (seja lá o que isso quer dizer).
Com relação aos baixos salários no campo, é bom ler um artigo de José
Graziano, assessor do Lula e professor da Unicamp (José Graziano da Silva
e Otavio Valentim Balsadi. Commodities internacionais e o emprego na
agricultura. Jornal Valor Econômico, 6 de fevereiro de 2006).
No artigo, os autores, utilizando dados do IBGE-PNAD de 2004, contestam
a tese dos companheiros do MST:
No período 2001-2004, as principais commodities inter-
nacionais propiciaram melhores condições de trabalho,
especialmente para os seus empregados permanentes. Como
exemplos ilustrativos desse forte contraste na qualidade do
emprego na agricultura, podem ser citados alguns dados
para as culturas da soja e da mandioca.
Entre 2001 e 2004, enquanto o rendimento real médio mensal dos empre-
gados permanentes urbanos ocupados na cultura da soja subiu 41%, para R$
735,00, os da mandioca tiveram aumento de 17% no período, para R$ 150,00!
Isso para não falar do grau de alfabetização/escolaridade e formalidade…
Mais ainda, ao denunciar os “argumentos utilizados na propaganda”,
de que o “agronegócio [seria] responsável pelo crescimento econômico do
PIB”, utilizando uma “análise mais rigorosa” criticam a definição corrente de
agronegócio (que não é nenhuma das duas que haviam apresentado antes)
por “misturar a agricultura com agroindústria” e, assim, assumem a definição
de agropecuária das Contas Nacionais do IBGE, que nos parece claramente
insuficiente do ponto de vista da análise econômico-social e do dinamismo
setorial da economia do país.
Tudo isso para, em seguida fazer, uma caracterização totalmente inade-
quada da fonte de dinamismo do setor.
“Mesmo assim, o peso e o crescimento da agroindústria não
dependem da área cultivada, mas do mercado consumi-
dor. Se o povo da cidade tiver dinheiro para comprar mais

208
alimentos, aumenta a agroindústria no Brasil. Portanto, seu
sucesso depende do valor do salário mínimo e da distribuição
de renda nos centros urbanos”.
Ora, essa definição nada mais é que uma afirmação do senso comum, e
contradiz o que o próprio documento afirmara acima, de que “na maior parte
dos casos, a produção é para a exportação”, ou seja, mercado consumidor
ao qual se destina, majoritariamente, essa produção é o mercado externo,
pois essa produção é majoritariamente exportada. Assim, a demanda ou
o “poder de compra” que interessa aos burgueses do agronegócio está nos
mercados internacionais, Europa, Estados Unidos, China, e os salários dos
trabalhadores são apenas, e fundamentalmente – essa é uma lei do sistema
de produção capitalista –, um custo o qual interessa reduzir o mais possível,
ampliando os lucros.
O “povo da cidade” não cria renda do nada. É preciso produção para gerar
emprego, que gera salários, que gera demanda. Ocorre, como afirma o MST,
que parte da produção se realiza externamente e, portanto, não precisa da
massa salarial no mercado interno para que seja absorvida.
Mesmo após essa intensa crítica, é forçoso reconhecer que as conclu-
sões do MST sobre o agronegócio contêm afirmações fundamentalmente
corretas e que provém do fato de o MST estar dedicado à luta de classes
concreta, ao lado dos camponeses pobres e do povo brasileiro. A partir das
experiências concretas da luta de classes, fica claro quais são os inimigos de
classe. Assim, citemos na integra essas conclusões:
Está em curso na sociedade brasileira uma disputa de mo-
delo econômico e de produção agrícola. As fazendas do
agronegócio representam a parcela da burguesia nacional
que possui ativos na agricultura e que se aliou, ou melhor,
que se subordinou ao capital estrangeiro representado pelos
interesses das grandes empresas transnacionais.
Um único senão à formulação do MST. Achamos que não se trata de
disputa de modelo econômico. O modelo atual é, nos últimos quinze ou
vinte anos, o modelo de uma regressão a uma situação colonial de novo
tipo, o modelo, entre outros, do agronegócio.
3.3 Análise do governo Lula
Outro tema tratado de forma equivocada, tema no qual o MST tem evi-
dentes cuidados com suas formulações para tentar alcançar o inalcançável,
é o do posicionamento do governo Lula e do PT, do PCdoB, e congêneres,
em relação ao agronegócio e, dizemos nós, o posicionamento desse governo
em relação a todas as questões econômicas-chaves.
Assim sendo, o item III do texto do MST inicia-se com a seguinte
formulação:
O governo Lula foi eleito em outubro de 2002 com uma
propaganda e compromissos claramente contrários à

207
manutenção da política econômica neoliberal, opostos à
prioridade dada pelo governo FHC ao agronegócio.
Ora, isso é não apenas uma inverdade evidente como é também uma
formulação que tende a jogar seus militantes na paralisia da incompreensão
da realidade da luta de classes. Como os companheiros do MST parecem ter
“esquecido” da campanha eleitoral de 2002, vamos tentar avivar sua memória.
Em junho de 2002, Lula divulga um documento pessoal, com sua própria
assinatura (que seja um documento pessoal e não documento de partido é,
por si só, bastante revelador a quantos tenham “olhos para ver, ouvidos para
ouvir, língua própria para falar, critério certeiro para tomar decisões”, como
dizia o Che), que se tornou a questão central não apenas da campanha, como
também do seu período de transição entre a eleição e a posse, e do início
do seu governo. Tanto foi assim que agora, visando as próximas eleições, a
troupe palaciana já prepara sua segunda edição.
Na Carta ao povo brasileiro (da qual há, inclusive, versão em inglês, Letter
to the People of Brazil, provavelmente destinada ao “povo brasileiro” de Wall
Street…), Lula de fato tece pesadas críticas ao modelo econômico que, no
governo, manteria de forma integral. No entanto, ao lado das críticas à falta
de crescimento e aos juros altos – que lidas hoje trazem as marcas de um
cinismo insuperável – encontram-se os pequenos trechos que se revelaram
centrais na Carta para os “bons entendedores”, os verdadeiros destinatários
da Carta, o mercado financeiro. Vamos a eles, na sequência em que aparecem
na Carta, seguidos de pequenos comentários nossos.
Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos
contratos e obrigações do país (p. 2).
Por “contratos e obrigações” leia-se a manutenção da submissão do país
ao mercado financeiro, com o compromisso de continuar pagando os juros
das dívidas externa e interna e, com isso, impossibilitando investimentos
produtivos e sociais;
À parte manobras puramente especulativas, que sem dúvida
existem, o que há é uma forte preocupação do mercado
financeiro (p. 2).
Ignora a especulação desenfreada que ocorreu no segundo semestre de
2002, quando o dólar chegou a R$ 4, e legitima os movimentos do mercado
financeiro, tornando-se seu refém;
Para evitá-la, é preciso compreender que a margem de ma-
nobra da política econômica no curto prazo é pequena (p. 2).
Afirmação clara, para quem quiser entender, do compromisso com a
manutenção da política econômica;
Esse é o melhor caminho para que os contratos sejam hon-
rados (p. 3).

208
Ressalta novamente o compromisso com o pagamento de juros ao
mercado financeiro;
Vamos preservar o superávit primário o quanto for neces-
sário para impedir que a dívida interna aumente e destrua
a confiança na capacidade do governo de honrar os seus
compromissos (p. 3-4).
Como se não tivesse sido suficiente, reforça, pela terceira vez, o compro-
misso com os “compromissos” (juros), com o superávit primário, e com a
busca da confiança do mercado financeiro.
No meio a essas questões gerais, Lula ainda acharia espaço para tratar,
diretamente, do tema do agronegócio, em relação ao qual, segundo o MST,
ele estaria no campo oposto:
Aqui ganha toda a sua dimensão de uma política dirigida a
valorizar o agronegócio e a agricultura familiar (p. 3).
Para que não paire dúvidas sobre o que a afirmação acima significa, para
que ninguém duvide que se trata de uma defesa do agronegócio, e não de
“ambiguidade”, retornemos a palavra ao MST:
de fato, há uma luta entre dois modos de organizar a pro-
dução agrícola em nossa sociedade … Alguns chegam a
argumentar que é possível a convivência dos dois modelos.
Trata-se apenas de uma forma envergonhada de defen-
der o agronegócio … Definir-se pelo modo de produzir
do agronegócio é aceitar também o modelo econômico
neoliberal dominado pelos bancos, pelo capital financeiro
e pelas transnacionais.
Creio que isso seja suficiente para mostrar que, embora alguns compa-
nheiros de boa-fé, como os do MST, tenham tido, em 2002, e de certa forma
continuem tendo, ilusões em relação à campanha eleitoral e ao caráter de
classe do governo Lula, esse governo Lula nunca escondeu seu desinteresse
em modificar as políticas econômicas neoliberais e regressivas aplicadas no
Brasil. Muito pelo contrário.
Em outro tema caro ao MST, também não se pode falar em “ambiguida-
des” do governo de Lula e do PT, do PCdoB e seus congêneres. Quando se
trata da tomada de decisões concretas, o poder do capital fala mais alto no
governo. Veja-se o caso dos transgênicos, conforme reportagem do jornal
Valor Econômico, de 09.03.2006:
O presidente Lula interveio na disputa política interna em
que se transformou a definição da posição brasileira no
Protocolo de Biossegurança de Cartagena … Lula atendeu
integralmente ao lobby do agronegócio.
O MST afirma em seguida, não podendo negar o óbvio de que o governo

207
Lula não é um governo de transformações sociais profundas em direção às
necessidades e demandas do povo brasileiro, “que o governo Lula se revelou
um governo ambíguo”. Note-se que o próprio MST, que considera o gover-
no Lula “ambíguo” não consegue defender ou ao menos apontar aspectos
positivos do governo, pelo contrário. Seguem as críticas do Movimento,
que falam por si mesmas:
apesar de prometer mudanças, se baseou em alianças de
partidos e de classe que ainda [???] defendem o neolibe-
ralismo, ficando refém do capital financeiro internacional;
Na política econômica, administrada pelo Ministério da
Fazenda e pelo Banco Central, manteve-se a linha anterior,
com responsáveis claramente identificados com o partido
perdedor.
Não resistimos a uma pequena observação: não se trata apenas de “iden-
tificação” com o partido perdedor. Trata-se de nomear para o Banco Central
o presidente de um banco americano, sediado na matriz nos Estados Unidos.
Trata-se de nomear para o Tesouro um ex-funcionário do FMI. É disso que
se trata;
foram nomeados ministros identificados com o modelo do
agronegócio;
Na política do setor público agrícola, o governo não con-
seguiu reverter ainda o quadro de abstenção do Estado;
No crédito rural, houve um esforço do governo para criar o
seguro agrícola, que interessa particularmente aos pequenos
agricultores. Houve um esforço para aumentar os recursos de
crédito destinados à agricultura familiar, através do Pronaf,
que saltaram de 2 bilhões para 5 bilhões de reais. Mas isso não
significa mudanças na estrutura fundiária (negrito nosso);
Dessa forma, embora o governo tenha se comprometido com
a Reforma Agrária e com o fortalecimento da agricultura
camponesa, na prática os Ministérios mais fortes atuam
claramente priorizando a agricultura do agronegócio, a
monocultura e exportação de grãos.
Cabe perguntar, à guisa de conclusão deste item: onde está a ambigui-
dade? O que mais seria preciso o governo fazer para que se possa enxergar?
Ou, como afirmamos em nosso texto anterior:
Na verdade, o governo Lula, – a serviço das classes dominan-
tes brasileiras intimamente ligadas ao imperialismo – cons-
ciente e intencionalmente, aprofundou a “especialização”
do Brasil (na verdade, uma vocação histórica de suas classes
dominantes) em corresponder ao lugar que o imperialismo
lhe atribuiu na nova divisão internacional do trabalho.

208
4 O processo de regressão da formação econômica social
brasileira.
Uma questão relevante no momento é o que vai acontecer
no médio prazo com a agricultura brasileira, a partir do
notável avanço da tecnologia em todos os setores do agro-
negócio. A tecnologia mecânica (tratores, colheitadeiras,
herbicidas) destrói postos de trabalho na agricultura. A
tecnologia biológica (adubos, fertilizantes e sementes) des-
trói fazendas, porque ao ser enormemente produtiva, ela
aumenta e muito a produção. Os preços caem e os prejuízos
eliminam quem não detém essa tecnologia. A saída para o
aumento de oferta tem sido a exportação. Aos preços de
hoje ela está limitada: o mundo está «entupido» de comida.
No longo prazo, com os avanços da tecnologia, a tendência
é restar muito poucos produtores na agricultura altamente
produtiva. Essa questão tem que ser analisada antes que se
instale uma situação pior do que a que vivemos hoje, com
cada vez menos produtores produzindo mais e uma grande
parcela sem derivar renda da agricultura (Os desafios da
próxima safra agrícola. In: Conjuntura Econômica, Janeiro
2006, p. 37).
Como afirmamos em nosso documento, o ponto de vista que defen-
demos é o de que o rearranjo em curso na economia mundial, tentativa
de contrarrestar a crise do sistema imperialista, vem impondo, a partir de
meados dos anos 1980, a reorganização das forças produtivas no Brasil,
reorganização sob a determinação do capital financeiro, que tem como um
de seus traços marcantes o crescimento da participação do agronegócio,
da indústria extrativa mineral e das plataformas de exportação montadas
pelo capital imperialista, tanto na produção interna quanto nas exportações,
tendo como contrapartida a queda da participação da indústria no PIB,
levando a um rearranjo da indústria.
O tempo não nos permite neste texto fundamentar como desejaríamos
as posições que defendemos, porém é importante comprovar com “fatos”
alguns dos pontos que levantamos como, por exemplo, a transferência das
indústrias dos países imperialistas, com os EUA à frente, para a Ásia (para
a China em particular).
A Sinopse Internacional do BNDES, de Fevereiro deste ano, analisando “O
desempenho da economia mundial” 6 diz que, “As projeções para 2006 e 2007
apontam para manutenção do crescimento mundial, marcada pela liderança
dos Estados Unidos da América “EUA” e pela China” (p. 1), confirmando o
processo que apontamos de simbiose entre a economia imperialista, liderada
pelo EUA, e a China, simbiose expressa na transferência da indústria dos países
imperialistas para a China. Nesta interação entre países imperialistas e China.

6 Sinopse Internacional, BNDES, Fevereiro 2006.

207
Como apontávamos no texto que publicamos:
(…) conjugado a esse movimento, houve maciça transfe-
rência de setores da produção para países onde a força de
trabalho, relativamente disciplinada, educada e aquartelada
é comprada a custo baixíssimo, para a Ásia no geral e para
a China, especialmente.
É só ver o aumento do investimento na China e, o mais importante, “o
investimento fixo expandiu-se 25,7% em 2005, ante 2004, atingindo 48,6%
do PIB.” (BNDES. p. 2).
Mais adiante, o mesmo documento do BNDES informa que, de acordo
com os resultados apresentados pelo Escritório Nacional de Estatística
da China, o PIB do país, entre 1993 e 2004, cresceu em média 9,9% a.a. Só
a indústria chinesa cresceu 11,4% em 2005, e suas exportações atingiram
US$792.062 bilhões, com um aumento de 28,4% em relação a 2004, o saldo
comercial chinês foi US$ 101,9 bilhões.
Evidentemente, a transferência da indústria imperialista para a China em
busca de reduzir o preço da força de trabalho, criando uma plataforma de
produção e exportação para o mercado mundial, provoca um crescimento
acelerado das exportações da China. O documento do BNDES fala de um:
(…) fantástico desempenho das exportações da China: A
participação das vendas externas no PIB aumentou de pra-
ticamente zero, nos anos de 1960, para 30% em 2003, um
crescimento muito maior do que o registrado em qualquer
outro lugar do mundo (p. 2).
De outro lado, a Sinopse do BNDES, analisando a economia brasileira,
mostra as razões da reorganização de nossa economia, como dizíamos:
“(…) as transformações na economia mundial parqueiam o lugar que a
formação econômico-social brasileira vai ocupando no novo desenho do
sistema imperialista”.
A China foi o terceiro principal destino das vendas brasileiras
em 2005, mas a pauta de exportações no Brasil àquele país
é mais concentrada do que em relação a Estados Unidos e
Argentina e composta principalmente por produtos básicos.
Do valor de US$ 6,8 bilhões exportados para a China, três
produtos responderam por 58% do total: minério de ferro
(US$ 1,8 bilhão), soja (US$ 1,7 bilhão) e petróleo bruto (US$
0,5 bilhão).
E continua na página seguinte:
O complexo da soja é o segundo principal nas commodities
exportadas pelo Brasil. O aumento da produção brasileira
está associado ao aumento da demanda mundial, via efeito
do expressivo crescimento do consumo chinês. Seus preços

208
declinaram um pouco em 2005, mas continuam em um
nível muito maior do que há cinco anos. Um maior nível de
consumo mundial de soja não é um fenômeno conjuntural,
havendo ampliação duradoura do volume do produto con-
sumido internacionalmente. A ampliação da área cultivada
também necessitou investimentos prévios para o atendimen-
to de um aumento de demanda internacional. (p. 15 e 16)
Para que se tenha ideia do que representa o agronegócio na economia
brasileira basta ver os dados do aumento da exportação do agronegócio
para a China e para a Índia apresentados por Roberto Rodrigues, Ministro
da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em artigo apresentado ao “XVII
Fórum Nacional”, coordenado por Reis Velloso, em 2005 7;
(…) tivemos entre 2000 e 2004, um crescimento de 342% nas
exportações do agronegócio para a Índia, e um crescimento
de 427% nas exportações do agronegócio para a China, … (O
Desafio da China e da Índia: A resposta do Brasil, João Paulo
dos Reis Veloso (coordenador), RJ: José Olympio, 2005, p. 251).
Ainda, a mesma Sinopse do BNDES constata a reconfiguração que apon-
tamos na área da indústria: a reconfiguração da indústria para a fabricação
e montagem de bens de consumo ou partes desses bens para exportação
em empresas de capital externo ou a ele associado.
… Os principais manufaturados exportados pelo Brasil são
hoje os automóveis de passageiros… Entretanto, o atual
impulso exportador de veículos dessa empresas ocorre pela
decisão de tornar o Brasil uma plataforma de exportação
de veículos leves de passeio no nicho de compactos de
baixa cilindrada. Em 2005, as exportações brasileiras de
automóveis foram de US$ 4,4 bilhões, valor 31% superior ao
ano anterior e 125% ao de cinco anos… Outras indústrias
também se beneficiam de um mercado doméstico grande
como o brasileiro, que permita a produção em escala favo-
rável para indústrias que sejam também exportadoras. É o
exemplo da produção de aparelhos para telefonia celular,
cujas exportações brasileiras foram de US$ 2,4 bilhões em
2005, com crescimento de 233% em relação ao ano passado.
As exportações brasileiras do produto cresceram fortemente
a partir de 2000, alcançando um valor acima de US$ 1 bilhão
em 2003 (Sinopse Internacional, BNDES, nº. 05, fevereiro
2006, p. 16).
Portanto, uma reconfiguração da formação social brasileira, materializa-
da no processo de crescimento do agronegócio, da extração mineral para

7 RODRIGUES, Roberto. Perspectivas do Agronegócio. O Desafio da China e da Índia: A


resposta do Brasil. João Paulo dos Reis Veloso (Coord.), RJ: José Olympio, 2005, p. 251.

207
exportação em detrimento da indústria que realizava seu ciclo internamente,
que passa a ser reorganizada, como apontamos, para a produção e montagem
de bens de consumo ou partes desses bens para exportação em empresas de
capital externo ou a ele associado, ao contrário do processo que caracterizou
o desenvolvimento da formação econômico-social brasileira nos últimos
cem anos, um processo contínuo de industrialização:
Desde o início do processo de industrialização no Brasil, nos
fins do século XIX e início do século XX, que a industriali-
zação se dá de forma contínua (o que não exclui fases de
maior ou menor crescimento e crises) sob a determinação
de fatores internos e externos (contradições internas e im-
perialismo), no sentido de constituir um sistema (estrutura),
dentro do sistema mundial do imperialismo, com nível tec-
nológico médio (mais precisamente de atrasado para médio),
integrado tanto verticalmente – todos os estágios da cadeia
produtiva, da produção de matérias primas e insumos até o
produto final – quanto horizontalmente – a constituição dos
principais ramos de produção. Industrialização centrada na
produção de bens cuja tecnologia já foi estabelecida, estabi-
lizada e generalizada nas economias dos países imperialistas.
O processo de industrialização que se desenvolveu por quase
todo o século XX, processo que se desenvolveu no espaço
que foi dado pelo sistema mundial do imperialismo, e não
contra ele, e que contou com grande participação de em-
presas transnacionais dos países imperialistas, busca, como
necessidade intrínseca de sua reprodução, de forma cres-
cente, internalizar todo o ciclo da reprodução ampliada do
capital, com a realização da produção, fundamentalmente,
no mercado interno. O ápice desse processo se deu com o
II PND no governo Geisel, que gerou efeitos na estrutura
produtiva até o início do governo Sarney. (ver Formação
econômico-social brasileira: regressão a uma situação colo-
nial de novo tipo).
Cada vez mais o processo de regressão da formação brasileira se faz mais
visível. O IEDI, no trabalho já citado, diz que:
Ao longo de todo este processo o peso do produto da indús-
tria de transformação cai de 32,1% do PIB, em 1986, para 19,7%
do PIB em 1998, queda de 12 pontos percentuais, muito alta
sobre qualquer critério de avaliação, mormente se temos em
conta o período relativamente curto (pouco mais de uma
década), em que o processo se desenvolveu. Isto por si só
já configuraria uma desindustrialização no Brasil,… (IEDI,
novembro de 2005, p. 1).

208
E continua o documento mostrando que junto com a queda da participa-
ção da indústria no PIB deu-se uma “especialização” da estrutura produtiva
nos segmentos de indústria intensivos em recursos naturais e, acrescemos
nós, em força de trabalho pouco qualificada.
Analisando as mudanças na estrutura industrial brasileira, diz o
documento:
Houve uma maior especialização produtiva da indústria,
com ênfase em setores intensivos em recursos naturais, …
(IEDI, novembro de 2005, p. 4)
Constatam-se assim as transformações na formação social brasileira
que indicamos quando conceituávamos o processo de rearranjo das forças
produtivas no Brasil como o de uma regressão colonial de novo tipo, como
mostra o trabalho do IEDI: crescimento da participação do agronegócio e
da indústria extrativa mineral e das plataformas de exportação, tanto na
produção interna quanto nas exportações.
Como afirmamos no documento em que conceituamos o processo por
que passa a formação econômico-social brasileira como o de uma regressão
a uma situação colonial de novo tipo, o governo Lula, – a serviço das classes
dominantes brasileiras intimamente ligadas ao imperialismo – consciente
e intencionalmente, defende as políticas que consolidam o que chamamos
de “especialização” do Brasil. Como dissemos, “uma vocação histórica” das
classes dominantes brasileiras “em corresponder ao lugar que o imperialismo
lhe atribuiu na nova divisão internacional do trabalho”.
A questão central que nos colocamos – e que sabemos que é a que se
coloca para os companheiros – é a de que para dirigir um grande movimento
que leve o povo brasileiro a sua libertação é preciso que estejamos armados
da teoria justa que nos permita conhecer a história de nosso povo, a história
da luta de nosso povo, ter uma compreensão profunda da conjuntura em
que luta nosso povo, do movimento em sua realidade, sob pena de que não
nos seja possível elaborar uma linha justa para transformar essa realidade.
Sabemos que o imperialismo e todos os reacionários agem como os tolos
daquele provérbio chinês, “… erguem uma pedra para deixá-la cair sobre
seus próprios pés”: o rearranjo da economia mundial pelo imperialismo é
uma destas pedras.
Sabemos que precisamos da teoria revolucionária do marxismo-leni-
nismo para fazer uma análise justa na conjuntura nacional e internacional
e chamamos os companheiros para somar conosco nesta tarefa, só então
poderemos elaborar a linha justa para afastar as nuvens que ensombrecem
o céu e permitir que o sol dentre em pouco volte a brilhar.

207
Bibliografia
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo (colônia).
S. Paulo: Ed. Brasiliense, 1961, p. 13.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Ed.
Martins Fontes, 1977, p. 203
MARX. Introdução à Crítica da Economia Política (Agosto-Setembro de
1857). In: Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1983, p. 202-203.
Formação econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial
de novo tipo
E agora?
PAULA de, João Antônio. Adeus ao Desenvolvimento: a opção do governo
Lula. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
BORGES NETO, João Machado. Governo Lula – uma opção neoliberal.
In: Adeus ao desenvolvimento: a opção do Governo Lula. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005, p. 76.
SUZIGAN, Wilson e FURTADO, João. Política industrial e desenvolvimento.
In: Adeus ao desenvolvimento: a opção do Governo Lula. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005, p. 179.
TAVARES, Maria da Conceição. Império, Território e Dinheiro. In: Estados e
Moedas no Desenvolvimento das Nações. José Luis Fiori (Org.), Petrópolis:
Vozes, 1999.
FIORI, José Luis (Org:) Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações.
Petrópolis: Vozes, 1999.
NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial
(1777 – 1808). Hucitec. 2002.

208
Aprofunda-se o processo de regressão 1

Estamos nos transformando na grande roça do mun-


do»,… César Borges de Souza, vice-presidente da Caramuru
Alimentos, a maior empresa de processamento de grãos de
capital nacional. 2

Afirmamos em nosso documento Regressão a uma Situação Colonial de


Novo Tipo que a reconfiguração da formação econômico-social brasileira
responde a sua inserção como país dominado no processo de reconfiguração
do sistema imperialista, da economia mundial, ou “a movimentos de expansão
e deslocamento da economia internacional”, como quer o BNDES em seu
documento: Por que os investimentos na indústria vão crescer 3.
A partir desta análise mostramos que as mudanças na estrutura econô-
mica da formação brasileira se expressavam, principalmente, num processo
que se desdobrava em quatro movimentos distintos e, ao mesmo tempo,
faces do mesmo processo:
1 na formatação de uma nova estrutura industrial já não mais integrada
horizontalmente e verticalmente pelo encerramento de um conjunto,
ou de elos, parcelas das cadeias produtivas, de ramos de atividades
industriais, segmentos industriais que se faziam desde a extração e
manufatura de matérias primas e insumos ao produto final até o encer-
ramento de setores da produção de bens de consumo, que assim passam
a ser importados ou somente montados no país (nesse último caso, por
monopólios estrangeiros). Com isso, perdem-se segmentos industriais
relevantes ou rompem-se elos em cadeias produtivas. A desindustrializa-
ção é, portanto, um fenômeno constitutivo da regressão a uma situação
colonial de novo tipo.
2 na organização de um novo setor industrial voltado para a constituição de
ilhas de produção e montagem de mercadorias, em empresas estrangeiras
ou associadas, de média tecnologia, principalmente para exportação. Na
pauta de exportações brasileira, a presença de produtos com alto valor
agregado, oferta dinâmica e uso intensivo de tecnologia pode permitir
conclusões equivocadas. Com algumas poucas exceções, estes produtos
que figuram como exportação brasileira, em realidade, de made in Brazil
só têm a fase de montagem do que foi produzido em outros países, nas
cadeias de produção internacional, organizadas pelas empresas transna-
cionais imperialistas. Fase de montagem que requer um baixo nível de
especialização e força de trabalho barata. A tecnologia e o conhecimento
técnico incorporados a essas mercadorias se concentram em peças e
componentes importados, e boa parte do valor agregado beneficia as
1 Texto de abril de 2007.
2 Revista Forbes Brasil, Ano 7 – n° 153, 4 de abril/2007, p. 46.
3 Por que os investimentos na indústria vão crescer. Visão do Desenvolvimento nº. 19. BNDES.
empresas dos países imperialistas onde essas peças e componentes são
produzidas, e que organizam estas redes de produção.
3 na constituição de um setor agroindustrial voltado à exportação. Na ex-
portação de commodities minerais. Assim, o pólo dinâmico da economia
se transfere para setores voltados à exportação. Portanto, um conjunto
de setores que se realizam no exterior. No geral, setores de elaboração
de produtos primários. Ou seja, os novos setores dinâmicos têm seu ciclo
produtivo concluído no exterior, realizado no exterior. Nesse sentido,
o Brasil aprofunda a característica de país exportador de mercadorias
intensivas em força de trabalho e derivadas da exploração de seus re-
cursos naturais, baseando-se, para competir no mercado mundial, em
sua disponibilidade de força de trabalho barata e de pouca qualidade. A
especialização na produção e exportação de commodities é outra das
características da regressão colonial.
4 na montagem de um sistema com o objetivo de remunerar o capital
financeiro, remunerando com altos juros o capital fictício que circula e
só existe nas engrenagens da especulação, através da articulação entre
um elevado superávit primário e altos saldos na balança comercial, que
permitem remunerar o capital de “cassino”. Capital este que corre para
cá com total liberdade atrás das vantagens que só o Brasil e o governo
do PT são capazes de dar. Para isto, configura um mecanismo a fim de
executar uma punção sobre grande parcela da mais-valia produzida
internamente, mesmo quando realizada no exterior, a favor do capital
financeiro. Extorque do povo um elevado superávit primário em relação
ao PIB, o que possibilita ao governo - mantendo a taxa de juros a mais alta
na economia mundial - capturar uma parcela da mais-valia produzida
e, comprando os dólares do saldo da balança comercial, transformá-los
em remuneração ao capital financeiro beneficiado por estas altíssimas
taxas de juros internas oferecidas 4.
Podemos dizer que, desde que publicamos nosso texto, se aprofundou,
tornando-se mais evidente, com suas características, emergindo mesmo da
análise superficial de “indicadores”, o processo de regressão, de adequação
da formação brasileira aos “movimentos de expansão e deslocamento da
economia internacional” e, concomitante, neste processo as frações da
classe dominante que vinham com contradição em relação a aspectos do
movimento de regressão convergiram, no principal, em sua direção.
Vamos analisar, a partir dos quatro movimentos/características que
identificamos acima, com as quais conceituamos o processo de regressão,
como este se desdobrou. Analisar como evolui o processo a partir de suas
características.
Primeira, “… uma nova estrutura industrial já não mais integrada hori-
zontalmente e verticalmente…”.
Segunda, “… na organização de um novo setor industrial voltado para

4 Ver texto Formação econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de


novo tipo.

232
a constituição de ilhas de produção e montagem de mercadorias, em
empresas estrangeiras ou associadas, de média tecnologia, principalmente
para exportação.”.
Terceira, “… na constituição de um setor agroindustrial voltado à expor-
tação. Na exportação de commodities minerais. Assim, o pólo dinâmico
da economia se transfere para setores voltados à exportação.”.
Quarta, “… na montagem de um sistema com o objetivo de remunerar
o capital financeiro,…” 5.
É de fundamental importância, ao colocar em prática nossa crítica a
partir da análise da formulação de economistas burgueses, dos economis-
tas do BNDES, IEDI, particularmente, ter em conta que o ponto de vista de
classe onde estão situados – o ponto de vista das diversas frações da classe
dominante – os leva a ver ou a não ver, em suas análises, fenômenos ou a
enfocá-los de seu ponto de vista e, assim, a identificá-los sob a forma deter-
minada pelos interesses da classe que representam. Um bom exemplo disto
está no documento do BNDES, Visão do Desenvolvimento nº. 26, de 2007.
Esta modalidade de cegueira ideológica se expressa por todos os do-
cumentos que analisamos. Nestes textos, partindo do ponto de vista de
classe, os economistas das distintas frações da classe dominante brasileira,
não podem ver que a mudança estrutural importante não é o crescimento
ou queda de um índice ou de outro, porém a reconfiguração da economia
brasileira condicionada pelos processos de reorganização da economia
mundial. Aqui, o crescimento ou queda de um índice é resultado do processo
de regressão sob a determinação da economia mundial, do imperialismo.
Partindo da análise dos textos do IEDI e de órgãos governamentais
como o BNDES, podemos comprovar que, não só se aprofunda o processo
de regressão, como também que as diversas frações da classe dominante
passaram a alocar seus capitais em torno do novo “sentido da colonização”, a
regressão, atendendo às determinações do sistema em busca da taxa de lucro.
O IEDI publicou em 23/03/07, portanto um ano e quatro meses depois
de ter lançada a questão “Ocorreu uma Desindustrialização no Brasil?” 6,
a Carta nº. 252 Desindustrialização e Dilemas do Crescimento Econômico
Recente que inicia afirmando: “Podemos dizer que a desindustrialização está
aumentando…”, para concluir, “Em síntese, mesmo dotado de um parque
industrial amplo e diversificado, verifica-se nos últimos anos um processo
de desindustrialização no país,…”.
O trabalho do IEDI começa por apontar para o baixo ritmo de crescimen-
to da economia brasileira, partindo do pressuposto correto de que numa
economia capitalista é o crescimento da indústria que puxa o crescimento
de toda a economia:
O baixo dinamismo da economia brasileira, expresso em
baixas taxas de crescimento do PIB, se constitui em um dos

5 Ver texto Formação econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de


novo tipo.
6 Carta 183, 25/11/2005. IEDI.

233
principais problemas macroeconômicos da atualidade. O
crescimento da indústria de transformação, setor que por
suas características de encadeamento de demandas ao longo
das cadeias produtivas dentro e fora da indústria exerce um
importante efeito de liderar a taxa de crescimento agregada,
também tem crescido pouco (Carta IEDI nº. 252, p. 2).
O problema não é que o PIB tenha crescido pouco, o problema é de
que cresceu pouco por ter sido “puxado” para baixo pela “indústria de
transformação”, como aponta a nova carta onde o IEDI dá os índices do
aprofundamento da “desindustrialização”, a partir deles podemos mostrar
como se desenvolveram as características do processo de regressão que
relacionamos acima:
A primeira, de que a estrutura industrial constituída anteriormente vem
sendo substituída por
… uma nova estrutura industrial já não mais integrada ho-
rizontalmente e verticalmente…
Se um parque industrial está perdendo importância, seja em
termos quantitativos ou qualitativos, esse processo pode se
dar de duas formas, não excludentes. Na primeira, determi-
nados setores industriais vão perdendo peso, em termos
absolutos e/ou em relação ao total da indústria, não sendo
isso compensado pelo ganho de importância de outros
segmentos industriais. Esse processo é de maior gravidade,
se os setores que encolhem são intensivos em tecnologia
(setores de ponta) (Carta IEDI nº. 252, p. 9).
É isto o que vai caracterizar a “desindustrialização”, “determinados setores
industriais vão perdendo peso, em termos absolutos e/ou em relação ao total
da indústria, não sendo isso compensado pelo ganho de importância de ou-
tros segmentos industriais.” Não só a indústria vai perdendo “determinados
setores” como também vai perdendo setores “intensivos em tecnologia”.
Uma atualização do estudo anterior aponta para um apro-
fundamento do processo de desindustrialização nos últimos
dois anos. A menor taxa de crescimento da indústria de
transformação relativamente aos demais setores da econo-
mia é um indicativo de que o processo de desindustrialização
está progredindo. Mais ainda, observando os componentes
da demanda agregada que mais cresceram no período, o
expressivo crescimento das importações (9,3% em 2005
e 18,1% em 2006), com baixo incremento da produção da
indústria de transformação (1,1% em 2005 e 1,9% em 2006),
sugere que pode estar ocorrendo um forte processo de
substituição de produção doméstica por importações (Carta
IEDI nº. 252, p. 3).

234
O que vai mostrar o estudo é que setores ou elos da cadeia produtiva
são desativados e substituídos pela importação de peças e componentes,
por outro lado, nos setores em que se mantiveram com suas cadeias de
produção completa não se deu a atualização dos processos produtivos.
Mesmo quando se diz que estes setores não recuaram tecnologicamente,
mas estagnaram, se está afirmando que estão empregando tecnologias já
superadas ou em vias de superação na economia mundial (os trustes e cartéis
transferem tecnologia “velha” retirando novos lucros delas) visto que esta
vem vivendo um processo intensivo de incorporação de novas tecnologias,
com o objetivo de aumentar a taxa de lucro, intensificando a exploração
das classes dominadas.
Uma conclusão geral sobre as mudanças na estrutura produ-
tiva: a abertura econômica, se não provocou uma regressão
tecnológica, também não promoveu um «upgrade» em
termos de processos produtivos mais sofisticados (Carta
IEDI nº. 252, p. 2).
Segundo, “… na organização de um novo setor industrial voltado para
a constituição de ilhas de produção e montagem de mercadorias, em em-
presas estrangeiras ou associadas, de média tecnologia, principalmente
para exportação.” 7
O estudo do IEDI mostra que outra forma do que vai chamar de “desin-
dustrialização”, a reconfiguração da indústria no Brasil, se dá com o processo
que denomina de “terceirização” da produção de peças e componentes e
matérias-primas. Mostra que esse processo de “terceirização” expressando
o que identifica como “desindustrialização”, a reconfiguração da indústria
brasileira, se dá quando a produção industrial de matérias-primas, peças e
componentes é transferida para outras empresas e, no caso do Brasil, para
o exterior, resultando na situação, por exemplo, da zona franca de Manaus,
onde “… a indústria apenas «encaixa» peças e componentes que foram
produzidas no exterior.”
A desindustrialização pode ocorrer também quando a
forma como se produz sofre grandes alterações por meio
da terceirização da força de trabalho e da produção de
matérias - primas. Com a terceirização da mão-de-obra
parte da produção da indústria é transferida para o setor
serviços. Um exemplo são os serviços de manutenção de
máquinas e equipamentos industriais que, até o final dos
anos 1980 estavam, em grande medida, a cargo das próprias
empresas industriais. No início dos anos 1990 essa produção
passou para empresas do setor terciário. A terceirização da
produção de matérias primas, peças e componentes é fruto
da adoção da prática de linhas de produção mais especia-
lizadas no produto final. Nesse caso a produção industrial
7 Ver Formação econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de novo tipo.

235
é transferida para outras empresas industriais no Brasil ou
no exterior (Carta IEDI nº. 252, p. 9).
A terceira característica, a “… constituição de um setor agroindustrial
voltado à exportação. Na exportação de commodities minerais. Assim, o pólo
dinâmico da economia se transfere para setores voltados à exportação” 8,
vem se acelerando rapidamente sob a determinação da economia mundial:
Para investigarmos se está ocorrendo uma tendência re-
cente à desindustrialização duas linhas de argumentação
serão apresentadas. De um lado, a persistência da política
econômica que combina elevadas taxas de juros e cambio
apreciado tem desistimulado (sic) o crescimento da econo-
mia e da indústria em particular. Por outro lado, as mudanças
na estrutura produtiva provocadas em grande parte pela
abertura econômica, levaram a uma concentração maior
da produção em setores com vantagens competitivas na
exploração de recursos naturais em detrimento de setores
mais tradicionais e mais empregadores de mão de obra e
de setores de alta tecnologia, com vantagens competitivas
dinâmicas no comercio internacional. Essa tendência à es-
pecialização em recursos naturais torna as exportações in-
dustriais do país mais vulneráveis às flutuações de preços no
mercado internacional, com conseqüências negativas para
a balança comercial a longo prazo (Carta IEDI nº. 252, p. 4).
Como mostra o documento do IEDI, a reconfiguração da economia
brasileira para acompanhar o processo de reorganização da economia mun-
dial, o que no texto está “traduzido” de forma a encobrir os determinantes
externos, como “as mudanças na estrutura produtiva provocadas em grande
parte pela abertura econômica”, “levaram”, como o texto do IEDI conceitua
o processo, ou de melhor forma, determinaram (determinaram no sentido
das delimitações impostas pelas leis que regem a reprodução do capital)
“… a uma concentração maior da produção em setores com vantagens
competitivas na exploração de recursos naturais,” e “… em detrimento de
setores mais tradicionais e mais empregadores de mão de obra e de setores
de alta tecnologia.” Como diz o documento, uma “tendência à especialização
em recursos naturais”.
Os documentos do BNDES Visão do Desenvolvimento, confirmam as
análises que vimos fazendo de que a formação econômico-social brasileira
vive um processo de reconfiguração em razão das mudanças por que passa
a economia mundial.
O Visão de nº. 21, Investimentos vão crescer entre 2007 e 2010, se inicia
estabelecendo uma relação entre o crescimento da economia brasileira e
da economia mundial:

8 Ver Formação econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de novo tipo.

236
Há fatores determinantes comuns na desaceleração da eco-
nomia internacional e do Brasil a partir dos anos 1980. O
principal deles foi a mudança que ocorreu na economia
americana (Visão nº. 21, p. 2).
Mais adiante, o texto do BNDES aponta, de forma atravessada, a “mudança
estrutural importante” ocorrida na economia brasileira que, de acordo com
o texto, se dá a partir de 2002.
A partir de 2002, a economia voltou a se expandir a taxas um
pouco mais elevada de 2,8% ao ano. Esse crescimento veio,
no entanto, associado a uma mudança estrutural impor-
tante. Em contraste com o observado nas últimas décadas
verificou-se a acumulação de elevados saldos em transações
correntes da ordem de 1,5 % do PIB ao ano (Visão nº. 21, p. 3).
Ora, a “mudança estrutural importante” não está na “acumulação de
elevados saldos” e sim nas transformações que já vêm ocorrendo na eco-
nomia brasileira bem antes de 2002. Mudança estrutural esta que leva ao
resultado dos saldos em transações correntes e que só pode ser estudada
no contexto do rearranjo da “economia internacional”.
Esta modalidade de cegueira ideológica se expressa por todo o docu-
mento, como por exemplo, quando diz que se reduziu a “vulnerabilidade
externa”. Ora, a inserção do Brasil como fornecedor de commodities, da
agroindústria, da agropecuária, minerais e até industriais, a reconfiguração
da economia mundial, aumentou a vulnerabilidade do Brasil às crises ou
processos de crescimento ou estancamento da economia mundial. Podemos
dizer que hoje a economia do Brasil é muito mais vulnerável às oscilações da
economia mundial do que quando alimentávamos uma dívida impagável
(que gerou a moratória de 1987). Vulnerável no sentido de que aumentou,
intensificou, a dominação imperialista, aprofundou a condição do Brasil
de país dominado no sistema imperialista. E de uma forma específica que
estamos conceituando de regressão a uma situação colonial de novo tipo.
É importante analisar os setores da economia que vão crescendo e onde
se dão maiores investimentos para que possamos perceber o sentido para
onde se move a formação econômica social brasileira nesta nova etapa do
processo de dominação imperialista. O documento que estamos citando
percebe, evidentemente, do seu ponto de vista, que a economia no Brasil
se move em outro sentido.
Pesquisa realizada pelo BNDES, em 2006, aponta que os
investimentos em curso, em análise ou em perspectiva na
indústria, na infra-estrutura e na construção residencial, já
estão se movendo em direção a uma trajetória de aceleração
ao longo dos próximos quatro anos (Visão n°. 19, p. 4).
Ao não ser capaz de perceber que “os investimentos em curso”, dirigem-se
para setores específicos da economia, os economistas do BNDES só são

237
capazes de identificar “uma trajetória de aceleração” e, mesmo quando espe-
cificam os investimentos por setor, não são capazes de analisar o sentido em
que se move a economia, apesar de que o documento classifica a maior parte
dos investimentos como “autônomos” com relação à economia brasileira.
“A taxa de investimento está hoje em seus recordes históricos
nas áreas de petróleo e gás e de extrativa mineral. Ambos os
setores estão respondendo ao aumento da demanda e dos
preços internacionais. Na siderurgia e em papel e celulose
vislumbra-se um movimento importante de deslocamento
para o Brasil de capacidade produtiva, hoje instalada em
países desenvolvidos, atraído pela forte competitividade
brasileira nestes setores (Visão n°. 19, p. 5).
Do ponto de vista dos interesses da classe operária, o que a análise do
BNDES exposta na citação acima mostra é que, nos setores da “indústria
extrativa mineral” e de “petróleo e gás”, as taxas de investimentos atingem
hoje recordes históricos, inclusive investimentos de capital externo com o
objetivo explícito de atender ao aumento da demanda da economia mun-
dial imposto pela transferência da indústria dos países imperialistas para a
China. Reconfiguração da economia mundial que resulta para o Brasil num
processo de “regressão”, mais desemprego e exploração para os dominados.
Da mesma forma se dá com a transferência para cá dos setores da indús-
tria, dos países imperialistas, siderúrgica e de papel e celulose. A razão exposta
pelo BNDES para esse movimento, a “forte competitividade brasileira nesses
setores”, pode ser traduzida, principalmente, pelo preço muito mais baixo da
força de trabalho, e também pela proximidade das fontes de matérias-primas,
além de outras vantagens, como bases produtivas já instaladas.
Na conclusão do seu texto, o BNDES destaca, “grosso modo”, quatro
grandes setores nos quais identifica esta aceleração de investimentos, sendo
o primeiro próximo a R$ 300 bilhões, o de petróleo e gás, extrativa mine-
ral, insumos básicos (siderurgia e celulose). No quadro que reproduzimos
abaixo o BNDES identifica que esse setor é comandado pela dinâmica dos
“mercados externos”.

QUADRO RESUMO
Características Setores Perspectivas Investimentos
Previstos
2007-2010
Comandados Petróleo e gás, Investimento R$293 bilhões
pela dinâmica extrativa mineral, em forte expan-
dos mercados insumos básicos são, intensivos
externos (siderurgia e em capital,
celulose) projetos de
longo prazo de
maturação

238
QUADRO RESUMO
Características Setores Perspectivas Investimentos
Previstos
2007-2010
Elevada elastici- Construção resi- Demanda R$470 bilhões
dade da demanda dencial e bens de crescente, em em construção
a juros consumo duráveis função do au- residencial(1) e
mento da renda R$44 bilhões em
e do crédito Automobilística
e Eletrônica
Dependentes de Habitação popu- Restrições R$62 bilhões em
orçamento fiscal lar, infra-estrutura orçamentárias saneamento,
urbana, sanea- podem atrasar portos e ferrovias
mento, portos parte dos
e ferrovias investimentos
(investimentos identificados
permanentes)
Infra-estrutura Energia elétrica, Relevantes para R$147 bilhões de
telecomunicações, a competitivi- investimentos
portos e ferrovias, dade sistêmica, em energia
mas sujeitos a
incertezas
(1) inclui habitação popular.

Debaixo de noções como as de “maior integração da economia brasileira


com a internacional”, “integração internacional dessas empresas e setores”,
o texto esconde que o processo expressa a maior integração do Brasil no
lugar que lhe é determinado pelo imperialismo.
Existe um grupo de setores que se beneficiou mais dire-
tamente da maior integração da economia brasileira com
a internacional. Esse benefício decorreu não só do cresci-
mento acelerado desses mercados nos últimos anos, mas
também de processos em curso de deslocamento para o
Brasil de segmentos das cadeias industriais na siderurgia e
na celulose hoje instalados em países do Hemisfério Norte.
Nesse momento, o que se observa é que há vários blocos
de investimentos em processos de efetivação que devem
ampliar, ainda mais no futuro, a integração internacional
dessas empresas e setores (Visão n°. 19, p. 6).
São setores e empresas que se constituem ou se desenvolvem em
função da requisição da nova fase da economia mundial, o que implica
e implicou contradições no interior da classe dominante, determinando
as políticas econômicas aplicadas pelo governo bem como as condições
na qual a classe operária trava a luta de classes, inclusive do ponto de
vista subjetivo.

239
É importante notar aqui que se trata do deslocamento para o Brasil
de “segmentos das cadeias industriais” configurando a constituição de
“uma nova estrutura industrial já não mais integrada horizontalmente e
verticalmente…”. De segmentos transferidos para cá em virtude da “forte
competitividade” oferecida pela economia brasileira, fundamentalmente,
pelo aumento da exploração da classe operária que, sob o comando do PT
na luta de classes, vê cair seus salários e aumentar o exército de reserva.
O segundo movimento - o de fornecimento de insumos para a reconfigu-
ração da economia mundial: minerais e matérias primas, etc. - vai conformar
outra característica do movimento que conceituamos como o de regressão
colonial de novo tipo.
Nesse sentido, o Brasil aprofunda a característica de país
exportador de mercadorias intensivas em força de traba-
lho e derivadas da exploração de seus recursos naturais,
baseando-se, para competir no mercado mundial, em sua
disponibilidade de força de trabalho barata e de pouca qua-
lidade. A especialização na produção e exportação de com-
modities é outra das características da regressão colonial. 9
Nos demais setores arrolados, principalmente os casos da habitação
popular e infraestrutura urbana, onde a análise do BNDES aponta grandes
investimentos, a perspectiva não se sustenta. Primeiro, porque não há
um crescimento significativo da massa de rendimentos, depois porque as
metas de superávit primário não permitem investimentos para atender as
necessidades da população de mais baixo nível de renda.
De outra forma se dá com a indústria automobilística e eletrônica, que
tem sua produção voltada para a exportação ou para os setores de camada
média de melhor nível de renda, beneficiada pelo crédito, pela redução dos
juros e o aumento dos prazos.
De forma diferente se dá nos casos de energia elétrica, telecomunicações,
portos, estradas e ferrovias, naquilo que o documento classifica como “in-
fraestrutura empresarial”, investimentos voltados para atender os interesses
do grande capital no processo de reconfiguração.
É ilustrativo voltar para o “Visão do Desenvolvimento” de nº. 19, no qual
o BNDES levanta as perspectivas de investimentos na indústria, para que se
perceba o sentido para onde caminha a formação econômico-social brasileira.
Primeiro o documento assinala a grandeza dos valores a serem investidos.
Grandeza que não se pode comparar com a dos investimentos nos demais
setores; segundo, o fato de que esses grandes investimentos na indústria
estão voltados para configurar o setor industrial “autônomo, em relação ao
mercado interno.” e voltado a atender a economia mundial.
Os resultados da pesquisa são, de certa forma, surpreen-
dentes, tanto pela magnitude dos valores de investimento

9 Ver texto Formação econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de


novo tipo.

240
levantados, quanto pelo fato de serem em sua maior parte
autônomos ao mercado interno.

A maior parte desses investimentos é de caráter autônomo,


em relação ao mercado interno. Responde a movimentos
de expansão e deslocamento da economia internacional.
Reflete, por sua vez, a competitividade do Brasil e a capa-
cidade de resposta de suas empresas ao cenário externo
favorável,… (Visão nº. 19, p. 7)
Portanto, como reconhece o BNDES, não só estão previstos grandes somas
de investimentos na economia brasileira para os próximos quatro anos, somas
bem maiores do que as que vêm sendo investidas nos últimos anos, como
também, estes investimentos vão no sentido de reconfigurar a formação
econômica brasileira respondendo “a movimentos de expansão e desloca-
mento da economia internacional.”. Expansão e deslocamento na economia
mundial em busca de maior taxa de lucro, em busca de superar sua crise.
Este montante de investimentos projetados tanto pelo Estado como
pelo capital interno, como pelo capital de cartéis e trustes transnacionais,
expressa um movimento no sentido de dar nova conformação à infraes-
trutura econômica. Movimento que, se momentos atrás, provocou alguma
fricção entre as diversas frações da classe dominante, frações já envolvidas
no processo de reconfiguração e frações da burguesia brasileira voltadas
para o mercado interno, hoje se faz sob o aplauso de todos.
Não podemos desconhecer a competência do BNDES para levantar os
dados sobre os investimentos programados para a indústria para o período
2007-2010, e a amplitude do levantamento de que é capaz.
O BNDES é o maior banco de desenvolvimento brasileiro.
Esse papel lhe permite reunir um conjunto amplo de infor-
mações sobre os horizontes de investimento dos principais
setores da economia (Visão nº. 19, p. 1).
É exatamente a competência que lhe possibilita seu “papel” e o amplo
conjunto de informações que reuniu “sobre os horizontes de investimento
dos principais setores da economia”, que nos permite constatar que tal
“magnitude” de “valores” de investimentos reconfigurando a forma de
inserção da formação brasileira no sistema imperialista não poderia se dar
sem a participação do principal da classe dominante brasileira.
De outra forma, a tese que estamos avançando é a de que, após um
período de fricção entre setores da burguesia brasileira que acumulam in-
ternamente, principalmente da burguesia industrial, e setores da burguesia
que haviam assumido o papel indutor no processo de reconfiguração da
formação brasileira o principal dos diversos setores das classes dominantes
integrou-se ao processo.
A outra expressão da unificação dos diversos setores da classe dominante
em torno do processo de reconfiguração se dá pela unificação em torno

241
do governo Lula, de todos os partidos, maiores ou menores, que expressam
interesses menores ou maiores das classes dominantes.
Hoje o governo Lula reúne um arco que vai de Collor, Maluf, ACM,
Jader Barbalho, et caterva até o PL, PP, PTB de Roberto Jefferson, o PV, PDT,
PSB, PCdoB e PT, e ainda mais, de Caiado da União Ruralista ao MST, dos
banqueiros à CUT.
Poucas vezes se viu tal habilidade das classes dominantes em colocar
lugar-tenentes operários a serviço de seus interesses.

242
Do capitalismo utópico ao socialismo científico 1

A versão brasileira do pensamento único, de Collor a


Lula, é a idéia tipicamente reacionária de que é possível
conciliar uma boa democracia com imperialismo. 2

Discutíamos a posição da nossa “esquerda” diante da visita de Bush ao


Brasil, quando veio à discussão um título famoso de Engels, “Do Socialismo
Utópico ao Socialismo Científico” porque através dele podemos explicitar a
diferença entre a nossa posição enquanto marxistas-leninistas e a posição da
autointitulada esquerda, debater e criticar os problemas colocados por ela em
seus documentos; problemas como os de: “um desenvolvimento nacional de
longo fôlego, harmônico e virtuoso,” como propõe José Reinaldo Carvalho 3.
É evidente que já aqui começam nossas diferenças. Como
marxistas-leninistas não nos colocamos o problema do desenvolvimento
do Brasil enquanto país dominado no sistema imperialista – país enten-
dido como um todo contraditório, com classes dominantes e dominadas
inconciliáveis –, desenvolvimento este que hoje, nas condições da crise do
imperialismo, vimos conceituando como o de regressão a uma situação
colonial de novo tipo.
O sentido do desenvolvimento do Brasil, resultado de leis inerentes à
reprodução do capital na economia mundial é problema do imperialismo
e seus sócios, as classes dominantes brasileiras, e contra eles temos que nos
bater na luta de classes, na luta diária contra a opressão e a exploração do
povo brasileiro, povo no sentido que lhe dá Lenin, isto é, do conjunto das
classes dominadas.
O que se coloca para nós é o projeto de libertação do proletariado e
demais classes dominadas, que só é possível rompendo com o sistema
imperialista e iniciando o caminho que leva ao socialismo, ao comunismo.
O problema que se coloca para nós não é o de reformar o capitalismo, é o
de fazer a revolução, rompendo com o imperialismo construir o socialismo
como fase de transição ao comunismo. Como bem avaliou Niemeyer, em
entrevista ao jornal Correio Brasiliense, no dia 18 de março de 2007:
Correio Brasiliense: O comunismo não é uma utopia?
Niemeyer: Utopia é querer consertar o capitalismo, achar que
ele poder ser melhorado. Está tudo errado, é uma doutrina
de miséria, de egoísmo.

1 Texto de abril de 2007.


2 VASCONCELOS, Gilberto Felisberto. Eles Não Querem a Pátria Livre nem estão a fim de
morrer pelo Brasil. In. Revista Caros Amigos Especial, nº. 26, dez./2005, p. 29.
3 “Bush, visitante indesejável”, Declaração de José Reinaldo Carvalho, secretário de Relações
Internacionais do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, sobre a visita do presi-
dente dos Estados Unidos. São Paulo, 07 de março de 2007. Disponível no sítio do PCdoB
(http://www.vermelho.org.br/).
Essa diferença expressa precisamente o cerne de nossas divergências que
vamos tentar explicitar em seguida.
Engels escreveu seu trabalho Do Socialismo Utópico ao Socialismo
Cientifico para apontar a diferença “essencial”, fundamental, que separava
a sua teoria e a de Marx das doutrinas “socialistas” anteriores, e mesmo
daquelas contemporâneas a eles. As doutrinas socialistas anteriores a Marx
eram utópicas, a teoria marxista é científica.
Engels mostra que as doutrinas utópicas mesmo tendo como objetivo o
que chamam de “socialismo”, a construção de “uma sociedade mais justa e
igualitária”, baseiam a construção dessa sociedade em fundamentos morais,
jurídicos ou religiosos, isto é, fundamentos não científicos. Ou, dizendo de
outro modo, essas “teorias socialistas” baseiam-se em fundamentos ideo-
lógicos, noções da ideologia burguesa. São teorias reformistas, socialistas
no discurso e capitalistas na prática. É só ver o trecho do trabalho de Engels
que transcrevemos abaixo 4.
O caráter ideológico burguês de seus fundamentos teóricos dá forma à
concepção que estas doutrinas “socialistas” fazem não só dos fins que buscam
alcançar, ou seja, do “socialismo” que querem construir como também dos
meios de ação utilizados para construir esses fins.
As doutrinas “socialistas” que chamamos utópicas definem os fins do
socialismo como o da construção de “uma sociedade justa e igualitária”, isto
é, uma “sociedade” fundada sobre os princípios de “justiça” e “igualdade”,
princípios morais, jurídicos ou religiosos que estas “teorias” traduzem em
4 “24.ª Pergunta: Como se diferenciam os comunistas dos socialistas?
Resposta: Os chamados socialistas dividem-se em três classes.

A segunda classe consiste nos partidários da sociedade actual aos quais os males dela ne-
cessariamente decorrentes provocaram apreensões quanto à subsistência desta sociedade.
Eles procuram, por conseguinte, conservar a sociedade actual, mas eliminar os males que
a ela estão ligados. Com este objectivo, propõem, uns, simples medidas de beneficência,
outros, grandiosos sistemas de reformas que, sob o pretexto de reorganizarem a socie-
dade, querem conservar as bases da sociedade actual e, com elas, a sociedade actual.
Estes socialistas burgueses terão igualmente de ser combatidos constantemente pelos
comunistas, uma vez que eles trabalham para os inimigos dos comunistas e defendem a
sociedade que os comunistas querem precisamente derrubar.
A terceira classe consiste, finalmente, nos socialistas democráticos que, pela mesma via
que os comunistas, querem uma parte das medidas indicadas na pergunta 18 [Medidas
da revolução como “restrição da propriedade privada mediante impostos”, “expropriação
gradual”, “confisco dos bens”, etc.]; porém, não como meio de transição para o comunismo,
mas como medidas que são suficientes para abolir a miséria e fazer desaparecer os males
da sociedade actual. Estes socialistas democráticos ou são proletários que ainda não estão
suficientemente esclarecidos acerca das condições da libertação da sua classe; ou são
representantes dos pequenos burgueses, uma classe que, até à conquista da democracia e
das medidas socialistas dela decorrentes, sob muitos aspectos tem os mesmos interesses
que os proletários. Por isso, os comunistas entender-se-ão, nos momentos de acção, com
esses socialistas democráticos e em geral terão de seguir com eles, de momento, uma
política o mais possível comum, desde que esses socialistas não se ponham ao serviço
da burguesia dominante e não ataquem os comunistas. É claro que este modo de acção
comum não exclui a discussão das divergências com eles.” (Engels, F., Princípios Básicos
do Comunismo [1847], Editorial “Avante!” – Edições Progresso Lisboa – Moscovo, 1982.)
Reproduzido de: http://www.marxists.org.

244
princípios econômicos e políticos tão utópicos quanto os princípios ideo-
lógicos em que se baseiam. Portanto, princípios que só tem vida no terreno
da ideologia, ideais.
Por exemplo, o igualitarismo econômico, a negação de toda lei econômica,
a reforma da sociedade pela educação, a reforma moral da economia, da
política. Quem não lembra do “movimento” pela “ética na política”, criado
e capitaneado pelo PT com o radicalismo de quem faz uma revolução,
contra a corrupção do governo Collor, e abandonado tão logo o PT che-
gou ao poder, não ao governo federal, mas muito antes quando elegeu os
primeiros prefeitos?
Ao fazer uma representação ideológica tanto dos fins quanto dos meios
para alcançar esta sociedade “mais justa e igualitária”, a sociedade socialis-
ta, (socialismo, aliás, que tanto o PT quanto dezenas de tendências que se
abrigam nele nunca definiram), as teorias utópicas permanecem prisioneiras
das noções, dos princípios (princípio aqui no sentido de ditame moral)
econômicos, jurídicos, morais e políticos da burguesia, presos à ideologia
dominante, à ideologia da classe dominante e, assim, não podem romper
com o sistema econômico-político-ideológico burguês, restando ou esquer-
distas ou reformistas.
Concretamente, ao não conseguir romper com o domínio da ideologia
burguesa, da ideologia dominante no modo de produção capitalista e ao
se contentarem em criticar ou elaborar “teorias”, na verdade construções
ideológicas, para “corrigir” o sistema econômico-político-ideológico capi-
talista com princípios da ideologia burguesa, quer dizer com princípios da
ideologia deste mesmo sistema, estas “teorias” – daqui para frente iremos
chamar estas “teorias” pelo seu verdadeiro nome: ideologias – estão neces-
sariamente, queiram ou não, prisioneiras no sistema capitalista. Não podem
conduzir a revolução.
A partir destas ideologias, “teorias”, só é possível pensar em reformar
o capitalismo, objetivamente, na prática, ter como fim um capitalismo
utópico e, como instrumento para a construção de um objetivo utópico,
meios também utópicos.
Diga-se, a bem da verdade, que nossa “esquerda”, partindo dos mesmos
princípios ideológicos que Engels critica, noções morais como justiça e
igualdade, não trata de defender um socialismo utópico, do que trata e de-
fende é da construção de um capitalismo utópico, “… um desenvolvimento
nacional de longo fôlego, harmônico e virtuoso,…”.
Como os questionaria Marx? Um país, ou uma “sociedade”, não se di-
vide em classes inconciliáveis? Quer dizer que é possível um projeto de
desenvolvimento para o país que sirva “harmoniosamente” a dominantes
e dominados? Como pensar uma sociedade mais justa e igualitária com a
participação das classes dominantes e das classes dominadas?
É importante aqui abrir um parêntese para dizer que sabemos que numa
fase do processo de revolução nos países dominados em que a contradição
com o imperialismo é dominante, é possível atrair frações secundárias das

245
classes dominantes para esta etapa, e esta possibilidade é da maior impor-
tância para construir a linha justa capaz de levar a cabo a revolução.
Não é este o caso, por exemplo, quando Carvalho argumenta que Lula
fará diante de Bush a “defesa dos supremos interesses do Brasil” 3. De que
“interesses” está falando? Dos interesses “supremos” da classe dominante
ou os da classe dominada?
Da mesma maneira, quando o Secretário de Relações Internacionais do
PCdoB diz que a visita de Bush não trará benefícios em relação à “taxação das
nossas exportações de etanol para o mercado norte-americano”, na prática
defende os interesses do agronegócio da cana, setor das classes dominantes
profundamente integrado no sistema imperialista.
E o que o secretário não diz é que esse “supremo interesse do Brasil”: as
“nossas exportações de etanol”, estão baseadas na mais vil exploração de
um trabalho quase escravo. Que 60% da cana-de-açúcar produzida no país
ainda é colhida manualmente. Que a agroindústria da cana é a que mais
infringe a legislação trabalhista. Que o piso salarial mal ultrapassa o salário-
-mínimo. Que a média de vida útil como cortador de cana é de apenas 5 a 7
anos. Que a chamada ‘birola’, morte por excesso de trabalho, teria matado
15 trabalhadores em São Paulo entre 2004 e 2005 5.
Não adianta de nada a utopia da “harmonia”. O capitalismo continua a
ser e será cada vez mais em sua fase imperialista o regime da exploração da
classe operária, dos camponeses e das demais massas trabalhadoras. Com o
grau de exploração da força de trabalho, a intensidade e brutalidade desta
exploração, sendo determinados pela luta de classes, pelo nível de resistência
das classes dominadas.
O que a posição do PCdoB mostra é apenas que virou as costas aos
interesses desse povo, virou as costas ao seu próprio nome. Enquanto isso,
no mundo real, Lula afirma que é “necessário caminhar mais para que Brasil
e Estados Unidos cheguem ‘ao ponto G’ das negociações” 6. Qualquer se-
melhança com as ‘relações carnais’ que a Argentina de Menem mantinha
com os EUA não é mera coincidência…
Porém, temos a obrigação de reconhecer que Lula nunca quis enganar
ninguém, sempre negou a afirmar-se socialista e agora declara, em alto e
bom som, que nem de esquerda é, visto que, segundo ele, depois dos 60
anos qualquer pessoa de bom senso, deve ser de centro. Negação essa que
se comprova mais a cada dia, em seu governo que hoje reúne a maioria
da representação política das diversas frações da classe dominante, onze
partidos – do PP, PTB, passando pelo PMDB e até o …. PCdoB.
Nesse sentido, podemos afirmar que nem a “direita neoliberal represen-
tada por Alckmin” colocaria em prática uma política tão de “direita” e tão

5 Sobre a ‘birola’, “O médico Nereu Krieger da Costa, da região de Ribeirão Preto, atuou
mais de dez anos em usinas e já atendeu vários casos similares: – Na maioria dos casos os
cortadores morrem em casa. Nos laudos escrevem parada cardíaca ou algo assim. É difícil
comprovar as mortes da cana, mas a Pastoral tem conseguido algumas. Não há pesquisas.
Mas geralmente é pelo excesso de trabalho, que é muito duro.” O Globo, 18.03.07, p. 8.
6 G1: “Brasil busca ‘ponto G’ das negociações, diz Lula”, de 09/03/07 (http://g1.globo.com/).

246
“neoliberal”, como a política do governo de Lula, PT, PCdoB e quejandos
(entre os quais temos de incluir o PMDB, PTB, PR, etc.) com os “caixas dois”,
os “mensaleiros”, “aloprados”, que tomaram conta do poder. O que, aliás, não
é novidade. Como já dissemos, quando escrevemos que Lula governa com o
esgoto a céu aberto, o capitalismo, como toda a sociedade com exploração
de classe é, por “essência”, corrupto 7.
Como se ainda fossem necessários outros exemplos de ações que nem a
direita conseguiu fazer no governo – como superávit primário recorde para
pagar banqueiros e rentistas; repagar antecipadamente (!) parte da dívida
externa; aumentar os lucros dos bancos; isentar de impostos o capital es-
trangeiro; etc. 8 – Lula declara, no dia 3 de março de 2007, em Georgetown,
na Guiana, que “Há abusos em greves, não apenas no setor público, mas
em outras categorias” e que, por isso, seu governo vai “regulamentar”, isto
é, em português claro, restringir/limitar o direito de greve.
Na véspera, seu ministro do Planejamento já afirmara: “tem que ver qual
é o limite, como é que tem que funcionar. Acho inclusive que, em alguns
serviços, tem de ser proibida a greve, alguns serviços essenciais que temos
de preservar” 9.
É Lula quem, a serviço da “hegemonia total” do capital se põe a seu
serviço para “… impor novas condições nas relações de trabalho”, processo
que se iniciou em Collor/FHC e prossegue com Lula, relações que servem
ao processo de regressão.
Da mesma forma, nossa “esquerda” cria a ficção da burguesia nacional, da
classe dominante brasileira dividida antagonicamente entre um setor capaz
de defender “… um desenvolvimento nacional de longo fôlego, harmônico
e virtuoso…” e outro cujo “… projeto de inserção do Brasil no mundo con-
tinua sendo a submissão e o alinhamento automático aos Estados Unidos”
(Reinaldo Carvalho 10).
Ou será que a nossa “esquerda” crê em um projeto de “… desenvolvimento
nacional de longo fôlego, harmônico e virtuoso…” ? Veja que aqui se trata
7 Veja o texto A Crise do Governo Lula, ou governando com o esgoto a céu aberto, de
02/07/2005 no blog “Cem Flores…”.
8 Para mais detalhes – e números! – dos benefícios do governo Lula à burguesia, em especial
financeira, ver nosso texto Os Dragões da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de 15/02/2007,
disponível no blog “Cem Flores…”.
9 A notícia teve repercussão na imprensa, todos os órgãos corroborando as frases transcritas
acima, a saber:
·· Folha de São Paulo, 03.03.2007, p. A4.
·· G1 (da Globo): Lula defende limitar greve de servidores. Para presidente, há abuso de
greve no setor público e outras categorias., 03/03/07 (http://g1.globo.com/).
·· Agência Estado: Governo de trabalhador tem moral para limitar greve, diz Lula, 3 de
Março de 2007 (http://www.estadao.com.br/).
·· Terra: Lula quer regras para conter «abuso de greves», de 03 de março de 2007
·· (http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI1450199-EI7896,00.html).
·· Agência Brasil (da Radiobrás): Lula diz na Guiana que pedirá ao Congresso ratificação
de regras da OIT para servidor público, 03/03/2007 (http://agenciabrasil.ebc.com.br/).
·· Vermelho (do PCdoB): Wagner Gomes lamenta ação do governo contra direito de
greve, 03/03/2007 (http://www.vermelho.org.br/).
10 Ver nota 3.

247
de desenvolvimento capitalista e será que esses capitalistas que defendem
o tal projeto nacional “harmônico e virtuoso” seriam os “bons burgueses”
com que sonham os “capitalistas utópicos”?
Quando se viu isto? Desde Cabral, a classe dominante no Brasil, no fun-
damental, serve ao sistema colonial, ao antigo sistema colonial ou ao novo
sistema, o imperialismo; e desde que existem classes e Estados, o Estado serve
à classe dominante. Engels explica isto direitinho em “A origem da Família,
da Propriedade Privada e do Estado”. Explicação que pode ser, grosso modo,
resumida no trecho abaixo:
Como o Estado nasceu da necessidade de conter o anta-
gonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em
meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe
mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe
que, por intermédio dele, se converte também em classe
politicamente dominante e adquire novos meios para a
repressão e exploração da classe oprimida… o moderno
Estado representativo é o instrumento de que se serve o
capital para explorar o trabalho assalariado. (Engels, F. A
Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira. 10ª edição, 1985, p. 193-194).
De nossa parte assumimos o marxismo-leninismo, teoria científica que
não só não parte da aplicação de ditames morais, jurídicos e políticos bur-
gueses para transformar as formações econômico-sociais capitalistas, como
também critica, tanto estes princípios como parte da ideologia burguesa,
quanto o sistema econômico-político-ideológico burguês, critica o sistema
capitalista, para superá-lo de forma radical, pela construção da sociedade
socialista, caminho para o comunismo.
A crítica que a teoria marxista-leninista faz ao sistema capitalista repousa
no conhecimento científico do conjunto que constitui o sistema capitalista,
uma totalidade orgânica, da qual a economia, a política e a ideologia são
instâncias articuladas umas dentro das outras/sobre as outras, de acordo
com leis, atendendo a leis específicas e objetivas.
É este conhecimento que nos permite definir nosso objetivo como o da
construção do socialismo, concebendo-o como um período de transição
para um novo modo de produção, o comunismo, como o modo de produção
que sucederá o modo de produção capitalista. Socialismo e comunismo que
não são criações ideais, porém resultado concreto, objetivo, da superação
do modo de produção capitalista.
Este conhecimento também nos permite definir os meios de ação, a tática,
a linha justa para fazer a revolução, concretizados na prática militante e na
ação revolucionária, meios que não dependem de uma escolha moral, mas
que são impostos pela necessidade histórica.
Linha justa para fazer a revolução que só pode ser definida a partir do
conhecimento científico do papel determinante, em última instância, das

248
relações materiais de produção em cada formação econômico-social, do
papel decisivo da luta de classes nessas transformações e do papel da cons-
ciência revolucionária. Consciência revolucionária porque armada da teoria
científica e da organização revolucionária na luta de classes, instrumentos de
análise, conceitos, conhecimento que só o marxismo-leninismo, enquanto
teoria revolucionária do proletariado, nós dá.
Da mesma forma é a aplicação da teoria científica que permite definir
a classe operária como a única classe radicalmente revolucionária no seio
das classes dominadas, a única capaz de organizá-las, elevar seu nível de
consciência à compreensão científica de cada formação econômico-social
concreta, e dirigi-las a partir de uma linha justa construída a partir da análise
concreta, quer dizer científica, de cada conjuntura concreta, para transfor-
mação revolucionária da sociedade. Definir as formas de organização justas
na luta econômica e política, a natureza e o papel do Partido de Vanguarda
da Classe Operária, e as formas de luta teórico-ideológicas.
Só a partir do ponto de vista de classe do proletariado é possível às classes
dominadas romper com a ideologia dominante, romper com as doutrinas
reformistas, enfrentar o cavalo de tróia do revisionismo e superar a utopia da
reforma do capitalismo num sistema mais justo e igualitário, mais “humano”.

249
Praticar a crítica teórica 1

Combater a ideologia burguesa – quer ela se apresente a partir dos aparelhos


ideológicos da burguesia; quer se manifeste no seio da classe operária; quer
ainda em organizações ditas “de esquerda”, ou mesmo nominalmente “comu-
nistas”, como expressão do oportunismo, do revisionismo e do reformismo
– tanto na prática teórica e política na luta de classes, é uma tarefa impres-
cindível para todos os comunistas. É através desse combate sem tréguas que
se fortalecem e se desenvolvem tanto o marxismo e sua organização política.
Como afirmamos, “a crise do Marxismo é uma crise teórica e prática e a
luta de classes nos coloca a urgência de superá-la”, o que nos impõe retomar
a mais rigorosa luta de classes no campo da teoria, lição ensinada desde Marx,
Engels, Lenin, Mao, conforme registra a introdução ao artigo O Anti-Engelismo:
um compromisso contra o materialismo, de Caio Navarro de Toledo, publicado
originalmente em Teoria & Política. Brasil Debates, Ano 1, n° 2, 1980:
Aos clássicos do marxismo a acirrada polêmica e o intenso de-
bate teóricos nunca foram práticas estranhas; pelo contrário,
constituíram-se em procedimentos freqüentes e amplamente
difundidos em virtude da compreensão que se tinha acerca
das tarefas e exigências requeridas na luta pelo avanço do
pensamento e da revolução socialistas. A luta teórica e ideo-
lógica que se travava – seja na forma do combate às obras dos
pensadores burgueses que exerciam influência no ambiente
cultural e político da época, seja na forma da denúncia dos
revisionismos e erros de interpretação daquilo que se entendia
constituir os fundamentos do socialismo científico – impunha
que todas as obras produzidas fossem objeto de amplo ques-
tionamento crítico e de avaliação criteriosa. A complacência, o
talmudismo e o dogmatismo eram, assim, atitudes e práticas
desconhecidas nos meios intelectuais socialistas.
Como assinalou um estudioso, tais debates – muitas vezes
realizados de forma apaixonada – eram «no essencial infor-
mados por um estudo aprofundado e íntimo dos trabalhos
uns dos outros» (Anderson, P. Sur le marxisme occidental.
Paris, Maspero, 1977, p. 97. Grifos de Caio Navarro de Toledo).
Nenhum intérprete e historiador do marxismo deixa de re-
conhecer que este período de vigorosas controvérsias dentro
do pensamento socialista foi decisivo para o avanço teórico
do marxismo e para o seu desenvolvimento em escala mun-
dial. Em certa medida, pode-se mesmo aventurar a hipótese,
segundo a qual, hoje, a chamada «crise do marxismo» tem
muito a ver com a perda deste caráter polêmico e crítico que
sempre representou o marxismo – particularmente naqueles
1 Texto de março de 2009.
momentos em que o debate e a produção teórica não se
faziam distantes das lutas sociais.
E não nos iludamos: é também neste combate contínuo que vamos nos
fortalecendo, a cada um de nós, rompendo com uma certa herança, com os
costumes e com a ideologia burgueses que carregamos todos.
Em relação à crise econômica pela qual o sistema capitalista mundial, o
imperialismo, passa atualmente, temos afirmado que “a burguesia não tem
nenhuma condição de elaborar qualquer coisa parecida com uma teoria que
explique a sua crise” (ver o texto Algumas lições da crise para a nossa luta).
Por outro lado, a quase totalidade da “esquerda” tampouco consegue
elaborar uma análise científica da crise, utilizando-se do marxismo. Com isso
caem em formulações oportunistas, revisionistas ou reformistas. Com diversos
matizes, temos visto análises idealistas e subjetivistas, mecanicistas e parciais
ou segmentadas, teoricamente ecléticas, puros relatos jornalísticos de fatos,
críticas morais, etc. Em suma, análises que trocam a «crítica da economia
política» por uma suposta economia política crítica (sic!). Nesse último
caso, utilizam os conceitos da ideologia econômica burguesa, justapostos a
(ou disfarçados de) palavreado de “esquerda” ou termos marxistas, e pensam,
com isso (ou apesar disso), apresentar reivindicações do proletariado e das
demais classes dominadas ou mesmo defender o socialismo.
Um exemplo – dentre muitos possíveis! – que parece ter tido alguma
repercussão recentemente é o texto A crise mundial do capitalismo e as
perspectivas dos trabalhadores, de Edmilson Costa, doutor em economia, com
pós-doutorado, autor de livros e membro do Comitê Central do PCB. O texto
está disponível nos sites do próprio PCB, e nos portugueses Resistir e O Diário.
Como avaliamos que o texto se caracteriza, à exaustão, por vários dos
elementos enumerados acima, buscamos efetuar sua crítica do ponto de vista
do marxismo-leninismo. Esta crítica, pelo seu próprio objetivo e também por
questões de espaço, aborda o conjunto daquele texto, os que avaliamos como
seus aspectos e problemas principais, não nos preocupando em enumerar
e analisar todos os erros pontuais ou factuais. Claro que o debate poderá
levantá-los, além de desenvolver, complementar e criticar esta própria crítica.
Afinal, que as cem flores desabrochem!
Em primeiro lugar, não nos enganemos pelo uso que o texto faz do, di-
gamos, jargão marxista. Todo o revisionismo atua dessa forma. Usa termos
marxistas para disfarçar suas teses e análises contrárias ao marxismo.
Comecemos com uma citação que – vista de maneira descontextu-
alizada, fora daquele texto, isolada 2 – poderíamos considerar correta: o

2 Acreditamos que a forma que adotamos é a correta para fazer uma crítica. Ou seja, de-
vemos partir do todo para a parte, do geral para o específico. E, depois, retornar ao todo,
ou geral. De outra maneira, substituiríamos a atividade crítica – e a própria obrigação
de pensar, de analisar – por uma postura a-crítica de buscar, em fragmentos isolados,
eventuais concordâncias. Procedendo dessa forma poderíamos passar a ver identidades
imaginárias entre posições radicalmente distintas, já que seríamos levados a desconsiderar
as diferenças – no todo, no geral – em prol de concordâncias a respeito de até mesmo
uma única frase isolada.

251
“problema mais de fundo” da crise atual é a “superacumulação de capitais
e a impossibilidade de valorizá-los na esfera da produção”. A rigor, diríamos
que o “problema” é a “sobreacumulação de capitais e a impossibilidade
de valorizá-los – não absoluta, não em geral – mas sim à taxa de lucro
desejada, ou à taxa de lucro corrente em períodos anteriores”. E ponto.
Não obstante, poderíamos considerar aquela frase correta. Qual o proble-
ma então? Essa frase vem logo no parágrafo posterior à seguinte definição: “A
crise reflete ainda [ainda?] um conjunto de contradições”, qualificadas como
“superacumulação de capitais, financeirização da riqueza e frenesi especu-
lativo”. Isso é reformismo tentando se passar por marxismo. É a tentativa
de incorporação de termos marxistas aos termos da economia burguesa e
ao senso comum. Dessa maneira, aquele texto representa um ecletismo,
uma vala comum na qual se misturam termos e noções de maneira que, do
princípio ao fim, nem mesmo o menor vestígio dos conceitos científicos do
marxismo são postos para analisar a situação concreta.
Da mesma forma, dizer que “esta não é uma crise do setor imobiliário
… Esta é uma crise do conjunto do capitalismo” é correto, ainda que atual-
mente isso seja o óbvio ululante, quando o conjunto da economia mundial
encontra-se em recessão aberta. Era diferente dizer isso logo no segundo
semestre de 2007…
O problema mais sério, também nesse caso, é que, logo em seguida,
aquele texto vai qualificar a crise como o fim de “um longo ciclo de 30
anos de hegemonia do pensamento único” [!?] e de “uma forma particular
de acumulação, baseada na hegemonia das altas finanças … que envolvia
desde o aprisionamento do orçamento do Estado até recursos de empresas
produtivas e dos diversos fundos mútuos ou dos trabalhadores” (negritos
nossos). Vejam a indignação moral e mesmo a raiva do nosso reformista!
Como podem essas “altas finanças” ousar aprisionar o “orçamento do Estado”,
quer dizer (para ele), de todos os contribuintes! Pior ainda: “até recursos
de empresas produtivas”, ou seja (para ele), aquelas que dão empregos! É
demais para essa boa alma.
E quando ele menciona a “reestruturação estratégica do grande capital
norte-americano”? Veja que isso, por algum mistério, ocorreria, para ele,
apenas com o capital dos EUA, talvez um capital diferente dos outros. Seus
fatores seriam:
a) “Parte expressiva dos setores industriais dos EUA foi deslocada para a Ásia,
México, América Latina e América Central … de forma a elevar as taxas
de lucro”. O autor daquele texto só está apresentando um fato concreto,
reconhecido por todos (é só ler os jornais, os artigos de economistas de
Delfim Netto a Antônio Barros de Castro, as declarações dos governos
norte-americano e chinês, os filmes do Michael Moore, etc.), não há maior
análise de causas ou implicações desse fenômeno.
Não resistimos a citar um escritor americano, Philip Roth, em livro de
mais de dez anos atrás, que descreve o mesmo fenômeno (e com muito
mais qualidade literária!):

252
a Artigos de Couro para Senhoras Newark não estava mais
em Newark desde o início dos anos 70. Quase toda a indústria
do ramo havia se transferido para o exterior: os sindicatos
tornaram cada vez mais difícil para um industrial ganhar
dinheiro.

Nos anos 80, porém, mesmo Porto Rico começou a se tor-
nar dispendioso demais e praticamente todo o mundo …
se mandou para qualquer lugar do extremo Oriente onde
a mão-de-obra fosse abundante e barata, primeiro para as
Filipinas, depois Coréia e Taiwan, e agora para a China. Até
luvas de beisebol, a mais americana de todas as luvas, …
havia algum tempo já vinham sendo produzidas na Coréia.
Quando o primeiro cara deixou Gloversville 3, Nova York,
em 52 ou 53, e foi para as Filipinas fabricar luvas, riram dele,
como se estivesse indo para a lua. Mas quando o sujeito
morreu, por volta de 1978, possuía uma fábrica lá com quatro
mil trabalhadores e toda a indústria do ramo havia se trans-
ferido basicamente de Gloversville para as Filipinas. Quando
a Segunda Guerra Mundial começou, em Gloversville havia
umas noventa fábricas de luvas, grandes e pequenas. Hoje
não há uma só – todas pararam de funcionar ou viraram
importadoras de produtos do exterior. (Philip Roth, 1997.
Pastoral Americana. São Paulo: Companhia das Letras, 1998,
p. 34-38).
b) “Os setores mais parasitários do capital que assumiram o poder … bus-
caram reconfigurar o mundo”. Para o autor daquele texto e sua ideologia
burguesa a realidade ocorre invertida. Nesse seu mundo «revisado», não
é o Estado burguês e sua política econômica que estão a serviço do ca-
pital. Para ele é o Estado (no caso, a partir do momento que foi, digamos,
conquistado pelos setores mencionados) que define, autonomamente,
as regras para a acumulação. Essa constitui uma análise subjetivista e
idealista, ao desconsiderar as bases materiais concretas, econômicas,
dos processos de produção, acumulação e reprodução capitalistas. Em
suma, a análise materialista de processos objetivos é substituída pela
idealização das vontades.
Isso fica ainda mais evidente alguns parágrafos depois: “Essa reestrutu-
ração estratégica do grande capital norte-americano, ao contrário do
que seus idealizadores imaginavam, fragilizou de maneira acentuada a
economia dos Estados Unidos” (negrito nosso). Ao contrário do que dizia
Marx, que o capitalista só o interessava enquanto capital personificado,
aqui se trata de o capital em geral e seu movimento necessário, regido
pela lei do valor, não interessarem, em benefício do(s) capitalista(s) que
idealiza(m) as decisões estratégicas.
3 Literalmente, “Cidade das Luvas”.

253
c) “o grande capital norte-americano realizou … uma espécie de fuga para
frente, buscando estruturar uma economia de serviços [!?], baseada
na criação de riqueza mediante o extraordinário desenvolvimento do
capital fictício”. Por que diabos o capital fictício seria decorrente de
uma economia de serviços (o que quer que isso signifique) é o melhor
exemplo – já que estamos saindo da quadra carnavalesca – do famoso
samba do crioulo doido…
Só isso já seria suficiente para mostrar que a análise de fatos, que o autor
daquele texto mais ou menos detecta na superfície dos acontecimentos,
não é materialista, pois não parte da (e nem os toma como decorrências
da) imposição férrea da lei do valor e da concorrência entre capitais.
Em suma, quando o autor daquele texto menciona as contradições do
capitalismo (ou mesmo “todas as contradições do capitalismo”), a crise do
conjunto do capitalismo, a reestruturação e o deslocamento de capitais,
o capital fictício, embora usando as mesmas palavras, o autor não está
utilizando conceitos marxistas. As palavras são usadas de maneira formal
e não designam os fenômenos da realidade analisados cientificamente.
Ao contrário, elas analisam fenômenos superficiais, de forma mecânica,
não dialética, e com as lentes da ideologia econômica burguesa.
Vamos, agora, ao que é mais importante. Analisando o conjunto daquele
texto, do nosso ponto de vista, só podemos concluir que ele não está no
campo do marxismo, da análise científica da realidade, da utilização das
categorias e dos conceitos do materialismo histórico, nem sua análise se
embasa no materialismo dialético.
Para comprovar essa afirmação devemos partir do seguinte trecho da-
quele texto:
Estamos assistindo um fim de um longo ciclo da economia
capitalista e o término de uma forma particular de acumu-
lação onde o grande capital privilegiou o setor financeiro e
buscou construir uma hegemonia mundial solitária a partir
dos Estados Unidos. Este ciclo, na verdade, representou
uma tentativa desesperada do grande capital de realizar a
acumulação fugindo da lei do valor. (negrito nosso)
Uma possibilidade de interpretação é que o autor daquele texto tenha
em mente que o marxismo não mais explica a “fase atual” do capitalismo.
Com isso, o autor daquele texto teria uma complementação, uma correção,
uma atualização do mesmo. Estamos exagerando? Espere um pouco – e siga
na leitura – para ver…
O que significaria, em termos marxistas, acumular capital fugindo da lei
do valor? Rigorosamente nada. Para Marx, a lei do valor, a lei de valorização
do capital – a lei que impõe a necessidade permanente de reprodução
ampliada do capital em geral e de cada um dos capitais individuais em
concorrência, buscando maximizar a taxa de lucro; que com isso explica a
tendência à concentração e à centralização de capitais, logo os monopólios,

254
o surgimento do capital financeiro e o imperialismo; que obriga ao aumento
da composição orgânica dos capitais mesmo implicando tendência à redução
da taxa de lucro que é o contrário do seu objetivo primordial; e que, de forma
contraditória, ao fazer crescer os capitais amplifica as contradições inerentes
a esse modo de produção, gerando crises necessárias e recorrentes – é a lei
que rege ferreamente o funcionamento do capitalismo enquanto sistema
econômico mundial; enquanto sistema de exploração, de expropriação do
excedente de uma classe por outra. Não há capitalismo sem lei do valor e,
portanto, não há acumulação fugindo dela.
Como o autor daquele texto pode, então, negar o marxismo de forma
tão evidente? Como ele tenta passar um contrabando de teoria às claras,
explicitamente? Por que ele assume tão abertamente seu revisionismo? Nossa
hipótese – desconsiderando a possibilidade de desconhecimento puro e
simples – é que o autor daquele texto vê o sistema mundial do capitalismo,
o imperialismo, de uma forma mecânica, não dialética, limitando-se à esfera
das aparências e, com isso, aceitando as explicações da ideologia econô-
mica burguesa. Em suma, o autor daquele texto não utiliza o marxismo
para analisar a conjuntura mundial de crise e luta de classes. Tentemos
explicar melhor.
O que o autor daquele texto quer dizer com “realizar a acumulação fugin-
do da lei do valor” é, se nossa hipótese estiver correta, tão simplesmente o
seguinte: esse “grande capital” estaria acumulando – ou seja, se apropriando
de mais-valia – fora da esfera da produção.
Por que tamanha indignação do autor daquele texto (“tentativa desespe-
rada”) com essa acumulação não-produtiva? Não foi ele mesmo que, algumas
páginas antes, citou Marx, dizendo que “Antes de mais nada, o objetivo da
produção capitalista não é apossar-se de outros bens, e sim apropriar-se de
valor, de dinheiro, de riqueza abstrata”?
Seguindo estritamente essa citação de Marx, não há nada que encarne de
maneira mais pura o valor, a riqueza abstrata, do que o dinheiro, o equivalente
geral, a matéria-prima por excelência dos negócios “financeiros”. O próprio
Marx afirmava que o capital poderia atingir seu nível mais autonomizado
quando sua reprodução se desse diretamente sob a forma D – D’, ou seja,
uma acumulação fictícia do ponto de vista social.
Ou seja, em O Capital, Marx tratou em profundidade do “capital em
geral”, buscando desvendar as leis mais profundas do funcionamento do
modo de produção capitalista, mas também mencionou a importância da
concorrência (“A livre-concorrência impõe a cada capitalista individualmente,
como leis externas inexoráveis, as leis imanentes da produção capitalista”),
e analisou os diversos ramos e formas de reprodução do capital (industrial,
mercantil, bancário, fictício, etc.). Diferentemente disso, o autor daquele
texto, ao não trabalhar dialeticamente com esses conceitos, incorre nas
seguintes separações mecânicas, nos seguintes erros:
1 separação, podemos dizer, absoluta entre os diversos capitais, nota-
damente o “capital produtivo” e o “financeiro” ou “especulativo” (nos

255
termos do autor daquele texto). Essa oposição não-dialética, que vê
apenas os contrários e não sua unidade, não vê, portanto a contradição,
a unidade dos contrários, mas apenas a existência dos pólos opostos,
que em um momento isolado e perdido no tempo e no espaço se negam
mutuamente, porém que não dependem um do outro, não estabelece
relação mútua. Enfim, uma visão parcial, simplista e estática da dialética
perpassa todo o texto:
desenvolvimento das forças produtivas e financeiras do
capitalismo contemporâneo (não há tal conceito como
«forças financeiras»);
subordinou todos os outros setores à lógica da especulação
financeira (qual seria essa lógica, senão a da lei do valor,
seguida por qualquer capital, qual seja a de buscar maxi-
mizar o lucro?);
A desregulamentação transformou o sistema financeiro dos
EUA e, por gravidade, as finanças internacionais, num teatro
de operações especulativas sem precedentes na história do
capitalismo, dado o tamanho do descolamento entre a esfera
produtiva e a órbita da circulação. (por «descolamento» quer
dizer que a geração de capital fictício ultrapassou, em muito,
alguma medida de «capital produtivo», o PIB, por exemplo);
sistema financeiro tão especulativo (Negrito nosso. No limite,
se não fosse tão especulativo não se desagregaria? Existe
um capitalismo asseadinho, regulado, bem comportado,
sem contradições?).
Ao fazer isso, o autor daquele texto claramente vê apenas os contrários
onde, dialeticamente, deveria ver também unidade. Não vê, por isso,
ambos como expressões distintas do mesmo “capital em geral” do qual
nos fala Marx e que, portanto, compartilham a mesma “lógica” de valo-
rização, a de buscar maximizar a taxa de lucro.
Passando para casos concretos, bem exemplificativos:
·· Antônio Ermírio de Moraes, talvez o maior industrial que existe no país,
seria exemplo da pretensa separação entre produtivo e especulativo?
Então como explicar que ele seja o dono do quinto maior banco privado
do país (que, aliás, recebeu R$ 4,2 bilhões do Banco do Brasil para não
quebrar ou, como disse seu dirigente, “Essa negociação nada tem a ver
com a crise econômica. Isso foi uma pura coincidência”).
·· Como a “teoria” que estamos criticando explica que esse mesmo Grupo
Votorantim – e outras mais de 200 empresas “produtivas” – perdeu
R$ 2,2 bilhões em apostas no mercado de derivativos (produto típico da
especulação financeira) quando o real se desvalorizou no ano passado?
·· Ainda em relação ao Votorantim, quando do anúncio da compra de parte
da Aracruz Celulose (que teve perdas em derivativos de R$ 1,95 bilhão),

256
entre outros do grupo Moreira Salles, do Unibanco, foi anunciado que
o grupo Safra sairia do grupo controlador da Aracruz? Exatamente o
mesmo grupo Safra do Banco Safra.
·· E, para não ficar em um só exemplo, a Sadia do ex-Ministro do
Desenvolvimento é uma empresa produtiva (de frangos, no caso) ou é
uma empresa especuladora? Se o autor daquele texto, com suas separações
mecânicas, disser produtiva, que explique a perda de R$ 760 milhões, maior
que todo o lucro de 2007, com produtos derivativos cambiais (exposição
total de, no mínimo, R$ 3,2 bilhões), “first to default”, “credit default swaps”
e até títulos de dívida do Lehman Brothers em setembro do ano passado.
Claramente, essa ideologia que estamos criticando não consegue explicar
a realidade concreta.
2 Além da incompreensão da dialética e do conceito de valor, a separação
absoluta que o autor daquele texto faz entre o “capital produtivo” e o
“capital especulativo” traz, em seu bojo, um importante contrabando
ideológico que é preciso explicitar. Esse contrabando é a noção implícita
de que o “capital produtivo” seria o “correto” no capitalismo, o que Marx
teria analisado; enquanto o outro, o “especulativo”, seria uma “fuga” da
lei do valor, refletiria “insanidade” do processo capitalista.
O que queremos dizer é que o autor daquele texto está a um passo de
afirmar que, fazendo uma caricatura, uma simplificação maniqueísta, o
“capital produtivo” é bom (“dá” empregos, “gera” renda, etc.), e o “espe-
culativo” é mau (rouba empregos, etc.). Embora, para os comunistas, isso
seja um reformismo delirante, quase inacreditável, é o que explicitamente
pregam o PT, o PCdoB, a CUT, e outros que já assumiram integralmente
a política de conciliação de classes. Vejamos algumas citações do texto
do membro do Comitê Central do PCB:
setores mais esclarecidos das classes dominantes [claro que
são os do New Deal, ou talvez Obama? ou o «capital produ-
tivo»] em oposição ao «bloco de forças mais reacionário e
mais parasitário do grande capital» (claro que o «especula-
tivo»). Trata-se, para a classe trabalhadora, de escolher sob o
jugo de quem a exploração e dominação seriam melhores?
esta crise significa não só o dobre de finados do neolibera-
lismo, mas também a derrota moral do capitalismo e do
bloco de forças mais reacionário e mais parasitário do grande
capital, que amealhou o poder nos países capitalistas centrais
no final dos anos 70 e subordinou todos os outros setores
à lógica da especulação financeira. (Negrito nosso. Após a
«derrota moral» – que grande conceito oportunista! – do
«capital especulativo», teremos a retomada da hegemonia
do «capital produtivo»? Sem especulação?)
Esta crise fecha um longo ciclo de 30 anos da hegemonia
do pensamento único e encerra uma forma particular de

257
acumulação, baseada na hegemonia das altas finanças, meca-
nismo através do qual o grande capital capturava a mais-valia
mundial, mediante uma infinidade de mecanismos de pun-
ção, que envolvia desde o aprisionamento do orçamento do
Estado até recursos das empresas produtivas e dos diversos
fundos mútuos ou dos trabalhadores (negritos nossos)
Para quem ainda tem dúvidas sobre qual lado o autor está, vejam a “re-
clamação”: o “pensamento único” – outro contrabando ideológico – e
as “altas finanças” aprisionam “até recursos das empresas produtivas”.
Logo não deixam que elas produzam e dêem empregos… Sobre o Estado,
logo abaixo.
A ausência de uma análise materialista, como já observamos, ocorre
também nos comentários sobre o Estado e seu papel no modo de produção
capitalista, nos processos de produção, reprodução e acumulação de capitais.
Não é por outra razão que o autor daquele texto usa formulações como a
já criticada sobre o “aprisionamento do orçamento do Estado”.
O fato é que, em sua análise, o autor daquele texto ignora ou confunde
conceitos marxistas fundamentais sobre o caráter de classe do Estado no
capitalismo (e nas sociedades de classe, em geral) e seu papel no processo
de acumulação.
Ao invés da tese geral de que o Estado é um instrumento da dominação
de uma classe por outra – tese marxista fundamental para toda a sociedade
de classes desde, pelo menos, o Manifesto do Partido Comunista, de 1848,
passando por todos os outros textos de Marx e de Engels, incluindo o ma-
gistral A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, escrito por
um Engels já com mais de 60 anos, e desenvolvida por Lenin em O Estado e a
Revolução, com uma precisão cortante, entre outros textos – temos presente
nas entrelinhas daquele texto um Estado “neutro”, “acima das classes”. Nesta
questão central para o marxismo-leninismo, aquele texto vacila e, embora
tecendo loas sobre o caráter de classe “revelado” pela crise, a concepção
de Estado que – agora sim – se revela após uma crítica marxista daquele
texto é revisionista e reformista.
Com isso, troca-se materialismo por idealismo, dialética por mecanicismo,
e marxismo por uma ideologia burguesa. Vejamos nas próprias formulações
daquele texto:
nos períodos de crise, o grande capital busca se entrin-
cheirar no estado e nos organismos institucionais, como os
Bancos Centrais e organismos de coordenação internacio-
nais, a fim de tentar salvar suas posições e recuperar o que
perderam com a crise. (negrito nosso)
Salta aos olhos a pergunta: e nos períodos de prosperidade? O Estado
seria neutro nesses momentos? E o que seriam “organismos de coordenação
internacionais”? Dá saudades do período em que a “esquerda” gritava: “Fora
daqui, o FMI”…

258
A crise revelou também de forma cristalina o caráter de
classe do Estado e do governo: quando a economia estava
bem, os lucros eram apropriados pela burguesia; agora que
a economia vai mal, o Estado socializa os prejuízos com os
trabalhadores.” (negrito nosso)
A separação Estado x governo, tão cara aos cientistas políticos, perde sua
importância ao se tratar do caráter de classe do Estado. Mesmo se utilizarmos
a “ciência política”, na qual o Estado seria o “permanente” e os “governos”,
transitórios. Ainda mais sabendo que se trata concretamente dos governos
Bush, Obama, Sarkozy, Brown, etc. Para um “governo” ir contra o caráter
de classe do Estado capitalista, em termos marxistas, terá que destruí-lo.
Quanto ao papel dos trabalhadores, mais abaixo.
O mais irônico dessa situação é que o governo Bush, antes
um agressivo defensor do livre mercado e da retirada do
Estado da economia [deixou de sê-lo? Esse «novo Bush»
agora está correto?], agora tornara-se o principal defensor
da mão visível do Estado para socorrer o sistema financeiro
com o dinheiro do contribuinte. (negrito nosso)
Não dissemos acima que “orçamento do Estado” para o autor daquele
texto queria dizer “dinheiro do contribuinte”? Aqui está a prova. O “grande
capital” também não é contribuinte? Não teria também seus “direitos”? O
erro teórico aqui é o mesmo de quando o autor daquele texto se queixa
da utilização de fundos dos trabalhadores. No caso do Brasil, por exemplo,
quem desconhece que os recursos do FAT, com a aprovação explícita das
centrais sindicais reformistas, servem de fonte de recursos para os emprés-
timos do BNDES ao “grande capital”, tanto de empresas brasileiras quanto
estrangeiras, com crise ou sem crise? O erro mais de fundo é a crença na
democracia burguesa, que geraria um «Estado democrático» (sic!) que
poderia gerir os recursos dos impostos da «coletividade».
Os setores mais parasitários do capital que assumiram o
poder nos Estados Unidos e Inglaterra no final da década
de 70 buscaram reconfigurar o mundo a partir da criação
de uma nova ordem econômica internacional, tendo como
pilares a implantação do monetarismo como forma de
organizar a economia e o neoliberalismo como o gestor
político do sistema sócio-econômico. Transformaram em
política de Estado a ideologia neoliberal: o mercado como
regulador da economia, a desregulamentação, a liberaliza-
ção bancária, a livre mobilidade dos capitais pelo mundo, a
retirada do Estado da economia e uma agressiva política
de transferência de bens do Estado para o setor privado,
através das privatizações. (negritos nossos)
Tantos erros em uma frase só! O mais evidente é uma, digamos,

259
fetichização. Ao invés da análise materialista das bases reais sobre as quais
se dá a produção, a reprodução e a acumulação capitalistas, há uma inversão
ideológica. Não é a modificação dessas bases materiais, em função da crise
prolongada que se inicia nos anos 1970, que gera novas ideologias e políticas.
Para o dirigente do PCB são essas políticas (“monetarismo”) e essas ideolo-
gias (“neoliberalismo”) que, ao tornarem-se vencedoras do debate de ideias,
tornando-se política de Estado, mudam as suas bases concretas. Parodiando
Marx, não é o ser que define a consciência, mas uma volta da consciência
definindo o ser… Em relação a um outro ponto, a denúncia do “mercado
como regulador da economia”, experimentem trocar “mercado” por “capital”
e que cada um conclua por si mesmo sobre o caráter científico da análise.
Essa última citação e sua crítica revelam uma característica importante
que devemos detalhar um pouco mais. Por um lado, não apenas o Estado
aparece como uma entidade “neutra” ou “acima das classes” na análise da-
quele texto, como também a política econômica desse Estado aparece-lhe
como externa. Temos então: 1) o Estado como externo à luta de classes,
2) a política econômica como externa ao Estado e 3) a política econômica
como determinante da forma de acumulação do capital em geral. Quanto
mecanicismo e quanto idealismo juntos!
A crítica dessas posições, tão caras a uma certa “esquerda”, já iniciamos
em texto anterior (ver Algumas lições da crise para a nossa luta) no qual
afirmamos: “Não é a política econômica que dirige o capital, é o movimento
necessário do capital atendendo à determinação imperiosa de suas «leis
imanentes» que determina a política econômica”.
Tentemos avançar um pouco mais. Considerando a obra de Marx como a
fundação da análise científica da história, podemos dizer, com Lenin, que ela
é não apenas um “guia para a ação”, mas, também, constitui pedras angulares
ou alicerces geniais de uma teoria em constante desenvolvimento. É nessa
perspectiva que vamos entender uma afirmação como a de Althusser de
que “não existe verdadeiramente uma «teoria marxista» do Estado”, pois
temos nas obras de Marx, Engels e Lenin não uma teoria desenvolvida, mas
“uma advertência repetida de nos desviarmos das concepções burguesas
do Estado: portanto uma demarcação e uma definição essencialmente
negativas” (Enfim a Crise do Marxismo!). Da mesma maneira, e seguindo
nessa negatividade (Determinatio est negatio, já dizia Espinoza), Althusser
alerta claramente, em um texto que é sequência desse: “é do ponto de vista
da burguesia que o Estado é representado como uma «esfera» distinta do
resto … É preciso ver que essa concepção ideológica, que serve a interesses
precisos, não corresponde à simples realidade” (Marxismo como Teoria
«Finita») 4. É bastante evidente a que interesses servem o revisionismo, o
reformismo e o oportunismo, ao assumirem e divulgarem posições burguesas.
Especificamente no que se refere aos itens 2 e 3, acima, das relações en-
tre Estado, capital e política econômica devemos, mais uma vez recorrer à
4 Traduções de colaboradores do blog para trechos de Enfin la Crise du Marxisme! e Le
Marxisme Comme Théorie «Finie», publicados na coletânea Solitude de Machiavel, Paris:
Presses Universitaires de France, 1998. Ver páginas 276-277 e 287 do original.

260
Suzanne de Brunhoff. Para ela, o que se impõe é a “pesquisa das novas formas
das práticas estatais, em relação com as transformações do capitalismo” pois
“Sob formas diferentes, segundo os períodos e as situações, o Estado desem-
penha necessariamente um papel favorecedor da acumulação capitalista”
(Estado e Capital: uma análise da política econômica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1985, p. 150, negrito nosso). O que a autora pretende afirmar é
que a análise materialista deve sempre partir da base material, acompanhar
suas mudanças, e relacioná-las, dialeticamente, aos distintos papéis que o
Estado capitalista vai sendo obrigado a desempenhar.
Não obstante a realidade seja assim, ao nível da superfície dos fatos essa
relação reveste-se de uma aparência distinta. “A ação econômica do Estado
parece antes administrar coisas que homens, gerir fluxos e não relações
sociais. Ela se apresenta como se os tivesse acima das classes, mais ainda do
que a atividade repressiva e ideológica.” (Brunhoff, Op. cit., p. 1). A questão
que temos criticado é exatamente essa. Aquele texto, ao não ultrapassar
uma abordagem superficial dos eventos, cai em uma representação ideo-
lógica dos mesmos.
Por fim, para que não reste qualquer dúvida sobre a relação entre Estado,
política econômica e capital, do ponto de vista marxista, nos utilizaremos,
uma vez mais, da formulação de Suzanne de Brunhoff. Note-se que a crise
à qual ela se refere é a dos anos 1970. Mutato nomine, é a crise atual, são
os problemas atuais. A comparação com aquele texto e as questões que
criticamos nele são bastante evidentes:
O Capital sempre necessitou de uma certa gestão estatal
da força de trabalho e da moeda. Entretanto, a política eco-
nômica contemporânea tomou forma como organização
global da dominação de classe capitalista num momen-
to de crise econômica e social (nos anos 1930). Posta em
questão quarenta anos após seu nascimento, sob o efeito
de uma crise que ela não soube prevenir, ela está, segundo
alguns, excessivamente enfraquecida pela «privatização»
do Estado e pela «internacionalização» do capital, de modo
que se coloca o problema de seu reajustamento e de sua
modificação (por exemplo, no caso dos Estados Unidos,
como «planificação econômica nacional»). Mesmo se a
política econômica surgida nos anos 1930 morrer sob sua
forma keynesiana, ela só pode renascer sob novas formas,
determinadas pelas lutas sociais, para assegurar a perma-
nência da dominação do capital.
A mudança na continuidade da intervenção estatal teste-
munha a capacidade de adaptação do Estado burguês às
necessidades do capital. (Brunhoff, Op. cit., p. 109, negritos
nossos).

261
Para finalizar, dois últimos pontos relevantes 5. O primeiro diz respeito
à subordinação, tanto da burguesia quanto do proletariado, às leis férreas
do capital (sobre isso já tratamos no texto “Algumas lições da crise para a
nossa luta”), e ao caráter do capitalismo como sistema de exploração da
classe operária pelos capitalistas. O segundo refere-se à formidável incom-
preensão, pelo autor daquele texto, do papel de Lenin enquanto teórico
marxista tanto quanto seu papel como líder revolucionário, substituindo
o leninismo por uma filosofia da história ou por um esquema mecânico de
etapas pré-determinadas, negando mesmo a realidade.
O primeiro ponto ressalta que, no capitalismo, a contradição burguesia/
proletariado constitui uma unidade de contrários e, portanto, ambas as
classes restam sujeitas às leis objetivas que regem esse modo de produção.
Modo de produção cujo próprio fundamento econômico está na apro-
priação sem equivalente de parte do tempo de trabalho da classe operária,
pelos capitalistas. Esse próprio fundamento, a expropriação de parte do
valor produzido, a mais-valia, funda a base material de uma luta de classes
inconciliável entre as duas classes opostas.
Esse fundamento econômico da sociedade burguesa, como nos mostra
sobejamente Marx na seção VII (O Processo de Acumulação de Capital) do
primeiro livro de O Capital, transforma todo o produto do trabalho – e não
apenas o excedente – em trabalho não pago, capitalização de mais-valia.
Dessa forma, ontem como hoje, todo o conjunto de riquezas existente, essa
imensa coleção de mercadorias, vem não apenas do trabalho humano em
geral, mas especificamente da exploração do trabalho das classes trabalha-
doras pela burguesia.
Dito isso, como considerar as frases abaixo, extraídas daquele texto, senão
como grave incompreensão do marxismo?
A crise revelou também de forma cristalina o caráter de
classe do Estado e do governo: quando a economia estava
bem, os lucros eram apropriados pela burguesia; agora que
a economia vai mal, o Estado socializa os prejuízos com os
trabalhadores.
Vejamos bem. Na prosperidade, os lucros são burgueses e, na crise, os
trabalhadores são explorados. Perceberam a diferença? Claro que não,
pois não há. O que aquele texto tenta esconder é que: na prosperidade, os
trabalhadores são explorados e, na crise, também, pois quem diz lucro diz
exploração.
Essa crise é da burguesia e não dos trabalhadores.

5 Infelizmente, teremos que deixar de lado a crítica de passagens delirantes como “esta
crise significa … também a derrota moral do capitalismo”, “As crises sistêmicas também
representam um período difícil [coitadinha…] para a burguesia, pois … sua hegemonia
moral da sociedade [está] em questionamento”. Ou explicações subjetivas: “Como as
famílias norte-americanas têm no padrão de consumo um dos elementos de sua afirma-
ção social [que tal dizer, do seu aburguesamento?], a queda na renda levou as famílias ao
endividamento generalizado”, “afinal todos queriam lucrar com a euforia financeira”.

262
Esse é o mesmo autor que fala da “afirmação social” dos trabalhadores
pelo consumo, ao menos nos EUA. Seria o caso de perguntar: a crise não é
dos trabalhadores, mas a prosperidade é? Reafirme-se novamente: ambas,
crise/desenvolvimento, compõem a unidade de contrários que é o capita-
lismo, com todas as consequências para os trabalhadores.
Essas frases têm a mesma matriz teórica revisionista que o slogan adotado
por toda a “esquerda” brasileira: “Os trabalhadores não pagarão pela crise”
(CUT), “Que os banqueiros capitalistas paguem o custo da crise!” (Conlutas),
“Os trabalhadores não podem pagar a crise do capital” (PCB), “Os trabalha-
dores não podem pagar pela crise” (PSol), “Que os ricos paguem a conta!”
(PSTU), entre outros. A pretexto de uma palavra de ordem aguerrida, o
slogan na verdade é defensivo, recuado, sem oferecer aos trabalhadores a
única possibilidade concreta que temos contra o capitalismo, na crise ou
fora dela: a organização e a luta.
Em relação ao último ponto mencionado, trata-se do papel de Lenin
tanto como continuador genial do marxismo, destacando sua análise so-
bre o imperialismo e a criação de conceito marxista de “capital financeiro”,
quanto como dirigente revolucionário ao praticar concretamente uma teoria
sobre a revolução socialista em países dominados e menos desenvolvidos
em termos capitalistas.
Ao longo daquele texto, não há referências ao “capital financeiro”, con-
ceito leninista que expressa a fusão entre os capitais industrial e bancário
na época monopolista do capitalismo, o imperialismo. A análise reduz-se a
“sistemas financeiros” tratando do comportamento de bancos, mercados
financeiros, especulações e inovações financeiras diversas que são, para o
autor daquele texto, “fugas” da lei do valor. Isso está em pleno acordo com a
não colocação, por aquele texto, da questão da sobreacumulação de capitais
como questão central da crise (desconsiderando suas menções superficiais),
com a separação absoluta entre o “produtivo” e o “especulativo”. Mais um
exemplo abaixo:
Estamos assistindo um fim de um longo ciclo da economia
capitalista e o término de uma forma particular de acumu-
lação onde o grande capital privilegiou o setor financeiro e
buscou construir uma hegemonia mundial solitária [imagi-
nem só a alternativa: um capital bonzinho buscando cons-
truir uma hegemonia compartilhada. A tese não é nova: isso
é o «ultraimperialismo» do Kautsky…] a partir dos Estados
Unidos. (negrito nosso).
Sobre esse “privilégio” como “política” do capital, vejamos Lenin, em
Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, criticando Kautsky:
Kautsky … ergueu-se resolutamente contra as idéias fun-
damentais contidas na nossa definição de imperialismo,
declarando que por imperialismo é preciso não entender
uma ‘fase’ ou um degrau da economia, mas uma política,

263
uma política determinada, mas precisamente a que «pre-
fere» o capital financeiro. (São Paulo: Global, 4ª ed. 1987,
p. 89, negrito nosso).
O essencial é que Kautsky separa, no imperialismo, a po-
lítica da economia, pretendendo que as anexações sejam
a política «preferida» do capital financeiro e opondo a esta
política uma outra política burguesa, pretensamente pos-
sível, baseada sempre no capital financeiro (Op. cit., p. 91,
negritos nossos). [Nesse «pretensamente possível» está o
cerne da análise idealista, subjetiva, própria do revisionismo
e do reformismo].
Julgamos que não é necessário perder mais tempo com esse ponto…
Além disso, como havíamos mencionado mais acima, o autor daquele
texto parece acreditar que a teoria de Marx, Engels e Lenin não explica a “fase
atual” do capitalismo. E, digamos, modestamente, o autor daquele texto se
propõe a complementá-la. Vejamos sua formulação completa:
Esta crise … Ocorre num momento em que o capitalismo
se transformou num sistema mundial completo e maduro.
No período anterior à globalização o sistema era completo
apenas [sic!] no que se refere a duas variáveis da órbita da
circulação: a exportação de capitais e o comércio mundial.
Mas ao expandir a internacionalização da produção e das fi-
nanças mundialmente, o sistema amadureceu a reprodução
do capital em escala internacional e unificou globalmente o
ciclo do capital, fechando assim um processo iniciado com
a revolução inglesa de 1640 (Costa, 2002). (negritos nossos).
Esta é a primeira grande crise realmente completa do sis-
tema capitalista, por isso mais complexa e potencialmente
explosiva, uma vez que envolve toda a vida social do sistema
capitalista – a esfera da produção, da circulação, do crédito,
das dívidas públicas e privadas, do sistema social, do meio
ambiente, dos valores neoliberais, da cultura individualista
e, especialmente, de um determinado tipo de Estado como
articulador do processo de acumulação. (negrito nosso).
O autor daquele texto, portanto, propõe a criação de um novo conceito
para o capitalismo, sua contribuição teórica à posteridade, presente em
seu doutorado. O capitalismo agora estaria “maduro” e “completo”. Mais
uma vez, vamos voltar a Lenin. O que ele dizia do capitalismo em sua fase
imperialista, um século atrás?
Resta-nos ainda examinar um outro aspecto essencial do
imperialismo … Queremos referir-nos ao parasitismo pró-
prio do imperialismo.

264
Como vimos, a principal base econômica do imperialista é o
monopólio… como monopólio que é, gera inevitavelmente
uma tendência para a estagnação e a decomposição.
O imperialismo é uma imensa acumulação de capital-dinheiro
num pequeno número de países … Donde, o extraordinário
desenvolvimento da classe ou, de forma mais exata, da
camada dos rentistas.
Tal é a essência do imperialismo e do parasitismo
imperialista.
O Estado-rentista é um Estado de capitalismo parasitário,
decomposto.
De tudo o que deixamos dito acerca da natureza econômica
do imperialismo, resulta que devemos caracterizá-lo como
um capitalismo de transição, ou mais exatamente, como
um capitalismo agonizante. (Lenin, Op. cit., p. 98, 99, 100,
101, 125, negritos nossos).
O que Lenin afirma teoricamente no livro – e mais tarde comprovou
na prática da Revolução Russa – é que o capitalismo do começo do século
XX, o imperialismo, já era um sistema mundial, e nesse sentido, completo.
Além disso, os monopólios, o capital financeiro, o rentismo, já o tornavam
um sistema parasitário, em decomposição, agonizante. As grandes novida-
des levantadas pelo nosso revisionista (embora importantes para a análise
concreta da situação concreta, o que vimos que ele não faz) na verdade
constituem um retorno para aquém de Lenin e, mais que isso, passando
para um outro campo, que não o do marxismo.
O oportunismo do autor daquele texto chega às raias do absurdo com
as seguintes afirmações que, além de tudo, negam a realidade histórica.
Ao contrário do período de Lenin, que imaginava que o
capitalismo monopolista seria a ante-sala da revolução
socialista, acreditamos que somente agora quando o ca-
pitalismo se transformou num sistema mundial completo e
maduro, tendo em vista que internacionalizou a produção e
as finanças e unificou globalmente o ciclo do capital, estão
dadas as condições para a revolução mundial. (negritos
nossos).
Se entendemos bem, para o autor daquele texto:
1 o imperialismo não é a ante-sala da revolução socialista: como o autor
daquele texto pode escrever uma coisa dessas se Lenin afirmou isso em
livro escrito no primeiro semestre de 1916 e, em outubro do ano seguinte,
ele dirigiu a vitoriosa Revolução na Rússia? Será que está implicitamente
chamando Lenin de voluntarista ao fazer uma revolução que ainda não
deveria ser feita, pois suas condições não estavam maduras? E o que falar
das revoluções seguintes?
2 somente agora estão dadas as condições para a revolução mundial: se

265
por “revolução mundial” o autor daquele texto defende as velhas teses
do oportunismo trotskysta, não percamos nosso tempo. Se, por outro
lado, está falando de um movimento revolucionário mundial, originan-
do revoluções nacionais, essa não foi parte significativa da história do
século XX, da China e do Vietnã a Cuba e Nicarágua, passando por toda
a experiência socialista no leste europeu e pela libertação colonial na
África? Ou será que, negando essa história, desconhece a ligação estreita
entre os movimentos de liberação nacional e a luta pelo socialismo na
era do imperialismo?
Por fim, ainda sobre a questão da luta revolucionária, o autor daquele
texto retoma toda uma tradição mecanicista e dogmática, da história como
etapas pré-determinadas, de uma pseudonecessidade dos países domina-
dos aguardarem a sua vez, pois o capitalismo ainda não estaria totalmente
desenvolvido neles. No fundo, o que está por trás disso é a concepção mais
geral do produtivismo, da negação da política e da ação revolucionária.
Ao contrário do senso comum e de muitos companheiros
da esquerda, nós achamos que o potencial de luta da classe
operária e dos trabalhadores é muito mais forte nos países
centrais que na periferia, pois é exatamente nos países cen-
trais onde se encontra a classe operária mais avançada do
ponto de vista das forças produtivas e onde o capitalismo
está mais maduro. É um teatro de operações muito mais
favorável para a luta de classes que nos países atrasados.
É bem verdade que os elos débeis continuarão cumprindo
um papel essencial no desgaste e fustigamento do grande
capital, mas as transformações qualitativas do sistema
capitalista serão muito mais definitivas se ocorrerem no
coração do sistema. (negritos nossos).
Por isso as revoluções só aconteceram em países “centrais” como Rússia,
em 1917; China, em 1949; Coréia, de 1948 a 53; Cuba, em 1959; Vietnã, nas
décadas de 1950, 60 e 70; Angola e Moçambique, nos anos 1970; etc.
Esse “potencial” pode ser maior ou menor por várias razões, mas não
pelo fato das forças produtivas serem mais avançadas. O autor daquele
texto “esquece” duas coisas, que Lenin nos lembra:
A ideologia imperialista penetra também na classe operária.
Os elevados lucros que os capitalistas … obtêm do mono-
pólio, dão-lhes a possibilidade econômica de corromperem
certas camadas de operários e até, momentaneamente, uma
minoria operária bastante importante, atraindo-a para a
causa da burguesia (Lenin, Op. cit., p. 108, 124-125).
Ou seja, da mesma forma que tanto a burguesia quanto o proletariado
estão subsumidos à lei do valor, tanto a burguesia quanto o proletariado en-
contram-se sob o domínio da ideologia dominante. Além disso, trabalhadores

266
guiados pela ideologia burguesa reproduzida em suas organizações e, espe-
cialmente, sem seu partido revolucionário, não enfrentam diretamente o
capitalismo, opondo-se a ele e propondo sua derrubada, como nos mostra
toda a história do século passado e a teoria marxista.
Portanto, naquele texto, a análise econômica do capitalismo atual não é
marxista, não utiliza os conceitos científicos estabelecidos por Marx, Engels
e Lenin e, ao invés disso, parte do ecletismo e limita-se à análise superficial
dos fenômenos, de forma mecanicista, não-dialética. Além disso, as obser-
vações sobre lutas de classe e revolução são contrárias aos fatos, partem
de uma filosofia da história idealista e são explicitamente anti-leninistas,
revisionistas na expressão da palavra.
Esperamos com esse texto ter cumprido nossa obrigação de marxistas-
-leninistas de combater o oportunismo, o reformismo e o revisionismo e,
com esse combate, reforçar nossa teoria e nossa prática comunistas.

267
Caleidoscópio de erros ou o «dernier cri» da
ideologia dominante 1

Nos últimos anos tem sido enorme a produção dos ideólogos da classe
dominante para tentar demonstrar que nos dois mandatos de Lula, o nosso
Lech Walesa tropical, graças à sua clarividente direção, o Brasil:
1 teria seguido uma política econômica que lhe garantiu um contínuo
crescimento nestes oito anos;
2 teria garantido não só o crescimento econômico, como também o bem
estar da população, com a redução da pobreza e o ingresso de milhões
de “pobres” na “classe média”, ou mais precisamente em uma pretensa
“nova classe média”; e
3 com tudo isto, teria alçado o Brasil a uma posição de proa no concerto
das nações, como se dizia antigamente, e estaríamos caminhando para o
primeiro mundo, com cada vez mais independência, do que seria exemplo
nossa nunca bastante exaltada política externa.
Dessa algaravia ideológica é exemplo o artigo que José Luís Fiori pu-
blicou, ao final do ano passado, em sua coluna mensal para o jornal Valor
Econômico, o Caleidoscópio mundial 2. No artigo, Fiori analisa as modificações
no sistema econômico-político internacional (o sistema imperialista, diremos
nós) na primeira década deste século, impactadas pela “crise econômica de
2008” (que nós, e mesmo alguns teóricos burgueses, conceituamos como
a terceira grande depressão do capitalismo, após 1873 e 1929). Com certo
1 Texto de fevereiro de 2011.
Este texto foi publicado no blog “Cem Flores…” com o objetivo de análisar a conjuntura da
luta de classes no Brasil e criticar a “(…) linha de seguidismo da política da burguesia por
parte dos partidos que se dizem da classe operária, resultado do domínio do revisionismo
e reformismo sobre nossos autointitulados comunistas, por meio da crítica a um artigo
de José Luis Fiori.”, para a “(…) conformação de uma linha de atuação justa para os que
lutam pela libertação de nosso povo.”
“… visto o principal objetivo do livro, hoje como ontem, consistir em mostrar, com a
ajuda dos dados gerais, irrefutáveis, da estatística burguesa e das declarações dos homens
de ciência burgueses de todos os países, um quadro de conjunto da economia mundial
capitalista nas suas relações internacionais,… O movimento proletário revolucionário
em geral e o movimento comunista em particular, que crescem em todo o mundo, não
podem dispensar a análise e o desmascaramento dos erros teóricos do «kautskismo».
Isto é tanto mais necessário quanto o pacifismo e a «democracia» em geral - que não
têm as mínimas pretensões de marxismo, mas que, exatamente como Kautsky e C.ª,
dissimulam a profundidade das contradições do imperialismo e a inelutabilidade da crise
revolucionária que este engendra – são correntes que ainda se encontram extraordina-
riamente espalhadas em todo o mundo. A luta contra tais tendências é obrigatória para
o partido do proletariado, que deve arrancar à burguesia os pequenos proprietários que
ela engana e os milhões de trabalhadores cujas condições de vida são mais ou menos
pequeno-burguesas.” (Lenin. V. I. O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. Prefácio
às edições francesa e alemã. 6 de julho de 1920).
2 FIORI, J. L. Caleidoscópio mundial. Valor Econômico, 29.12.2010, p. A13. Reproduzida nos
sítios Agência Carta Maior (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.
cfm?materia_id=17285&alterarHomeAtual=1) e Rumos do Brasil (http://www.rumosdo-
brasil.org.br/2010/12/31/caleidoscopio-mundial/), entre outros.
discernimento, Fiori faz a análise no contexto das mudanças em curso des-
de a crise econômica de meados da década de 1970 e do final da chamada
Guerra Fria, com o fim da União Soviética, o esfacelamento dos demais
países revisionistas do Leste Europeu e a reconversão “virtuosa” da China
ao capitalismo.
No entanto, talvez embalado pelo clima festivo de final de ano e pelo
delirante discurso de despedida de Lula da Presidência da República, mas
certamente navegando na ideologia do nacionalismo burguês e sob o peso
do revisionismo que se alastrou pelos partidos comunistas no mundo inteiro,
Fiori abandona a busca de uma análise objetiva do sistema econômico-
-político internacional ao incluir o Brasil em sua análise. Nota bene: estamos
dizendo que, enquanto Fiori busca analisar objetivamente a economia
mundial (não estamos dizendo que parta de um ponto de vista marxista,
consequente, mas, ainda assim, reconheçamos, objetivo nos seus limites),
sua análise sobre o Brasil carece de qualquer fundamento material, é puro
idealismo do nacionalismo burguês.
É bom lembrar que Marx já nos alertara, no posfácio à segunda edição
alemã (1872) do primeiro volume de O Capital, de que, com a consolidação
da burguesia no poder, era impossível uma economia burguesa científica 3.
Mas voltemos ao artigo de Fiori. Nele o Brasil entra como que ad hoc em
dois parágrafos, na abertura e conclusão do artigo:
Durante a primeira década do Século XXI, o Brasil conquistou
um razoável grau de liberdade para poder definir autono-
mamente sua estratégia de desenvolvimento e de inserção
internacional num mundo em plena transformação.
Por fim, a definição da estratégia internacional do Brasil
não depende da «taxa de declínio» dos EUA, mas não pode
desconhecer a existência do poder americano. Assim mesmo,
gostem ou não os conservadores, o Brasil já entrou no grupo
dos Estados e das economias nacionais que fazem parte do
«caleidoscópio central» do sistema, onde todos competem
com todos, e todas as alianças são possíveis, em função dos
objetivos estratégicos do país. (sublinhados nossos).
Do que será que Fiori está falando? Como conciliar os trechos acima
com as análises anteriores do próprio Fiori sobre o mesmo tema? Vejamos,
em texto anterior do autor, uma caracterização do sistema mundial e da
posição que nele cabe ao Brasil:
3 “A burguesia tinha conquistado poder político na França e Inglaterra. A partir de então,
a luta de classes assumiu, na teoria e na prática, formas cada vez mais explícitas e ame-
açadoras. Ela fez soar o sino fúnebre da economia científica burguesa. Já não se tratava
de saber se este ou aquele teorema era ou não verdadeiro, mas se, para o capital, ele era
útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, subversivo ou não. No lugar da pesquisa de-
sinteressada entrou a espadacharia mercenária, no lugar da pesquisa científica imparcial
entrou a má consciência ou a má intenção da apologética”. MARX, K. Posfácio à segunda
edição alemã (1872) do primeiro volume de O Capital. 3ª edição. São Paulo: Nova Cultural,
1988, p. 23.

269
Fora da Europa, só os Estados Unidos, o Japão e, agora,
a China e talvez a Índia conseguiram tornar-se potências
regionais, e só os Estados Unidos conseguiram ter uma
projeção global. A maioria dos outros Estados nacionais
segue às voltas, até hoje, com o problema de seu escasso
desenvolvimento econômico e com as conseqüências de
haver se independentizado sem deixar de ser parte cons-
titutiva de «territórios econômicos supranacionais», que
funcionam sob a égide de moedas e capitais de potências
conquistadoras.
Por fim, num terceiro grupo muito mais amplo se localizam
quase todas as demais economias nacionais do sistema
mundial, que atuam como «periferia econômica do sistema»,
fornecendo insumos primários e industriais especializados
para as economias dos «andares superiores». São economias
nacionais que podem ter fortes ciclos de crescimento e
alcançar altos níveis de renda per capita, como no caso dos
países nórdicos e da Argentina. E podem se industrializar,
como no caso do Brasil e do México, e seguir sendo econo-
mias periféricas. 4 (sublinhados nossos).
Ou seja, embora utilizando um palavreado ideológico, mais próximo da
conceituação cepalina – como, por exemplo, “economia periférica” no lugar
do conceito de país dominado –, e inexato (“andar superior”), Fiori, em geral,
caracteriza acertadamente o sistema imperialista mundial como um todo
contraditório, com países imperialistas/dominantes e países dominados. Um
“sistema hierarquizado”, com “economias líderes” e “periféricas”, diria ele.
Avança ainda mais ao afirmar que a “instabilidade” inerente a esse sistema
– quer dizer, o conjunto de contradições antagônicas e não antagônicas que
constituem o sistema imperialista – provoca sempre a emergência de novas
potências a constantemente desafiar as “líderes”. Portanto, crises, conflitos
e, no limite, guerras são resultados necessários desse próprio sistema, e não
distorções casuais, aleatórias, imprevistas.
Como, então, conciliar esse tipo de análise – que se poderia chamar
de objetiva, pois baseada na realidade concreta, enfim – sobre as relações
internacionais com uma suposta “autonomia” do Brasil que – está implícito
– teria sido adquirida durante o governo Lula? De onde se originaria essa
pretensa “autonomia”, noção que, no contexto utilizado, está eivada de
subjetivismo e ideologia burguesa?
Traduzindo nossa pergunta para outra linguagem, trabalhando com
conceitos mais apropriados: no sistema mundial do imperialismo, quais
as chances de um país dominado deixar de sê-lo? Teria o Brasil mudado
de posição na divisão internacional do trabalho que caracteriza o sistema
imperialista mundial?

4 FIORI, J. L. (julho de 2007). Prefácio. In: O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações.
São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 33-35.

270
E por fim, quais seriam esses objetivos estratégicos do país? Eles são
definidos por quem? São comuns a todas as classes?
As respostas a essas questões, que tentaremos apresentar a seguir, devem
ser também, necessariamente, uma crítica às posições de Fiori, incluindo
os seus pressupostos teóricos. Pressupostos que são, como não poderiam
deixar de ser, os dessa vertente da ideologia burguesa chamada economia
política, que para nossa “esquerda” se passa, se não por marxismo, pelo
menos por uma posição crítica diante do capital, o último grito em moda
da ideologia dominante, com o aval de “nossa esquerda” em geral e de
“nossos comunistas” em particular, ideologia que conceituamos pelo termo
de “capitalismo utópico”. 5
A questão da «autonomia»
“Definir autonomamente sua estratégia de desenvolvimento e de in-
serção internacional”, nos diz Fiori, a respeito da condição que teria sido
conquistada pelo Brasil atual, pós-Lula. Para sermos justos com o autor,
vejamos o que Fiori entende por essa “autonomia”. Em primeiro lugar, deve
ser considerada a “taxa de declínio” dos EUA, ou seja, a redução do dina-
mismo econômico (e político) dos EUA que se exprime, dentre outros, na
redução de sua participação no PIB mundial 6 e, não menos importante, na
crescente contestação a “seu projeto imperial”. Além disso, Fiori menciona
o crescimento da China (e demais países asiáticos), a ponto de chamar o
continente de “principal centro de acumulação capitalista mundial”. É neste
ambiente de mudança na correlação de forças entre os países imperialistas,
de ascensão da China à condição de dominante no sistema imperialista (um
caso único, sem precedente, cujo significado ainda está por ser plenamente
esclarecido pelo materialismo histórico, de passagem para o capitalismo
após a experiência de construção do socialismo), e de mudança de lugar
dos países dominados na economia mundial, que se abriria o espaço para a
autonomia defendida por Fiori.
Mas essas mudanças atingem os países dominados de formas específicas,
em relação às quais é necessário ser bastante preciso, se queremos que nossa
análise materialista seja de alguma utilidade e não mera expressão subjetiva
de noções ideológicas. Em relação ao impacto dessas mudanças no Brasil,
assim como nos demais países da América Latina, Fiori já foi bastante explí-
cito sobre as formas que adquirem atualmente a dominação desses países
no sistema imperialista, que seriam as causas da “autonomia”:
O fenômeno [os Estados Unidos estarem perdendo capaci-
dade de intervenção e coordenação na América Latina] tem
5 Ver texto “Do Capitalismo Utópico ao Socialismo Científico”.
6 A partir de dados do FMI (base de dados do World Economic Outlook, de outubro de
2010, disponível em http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2010/02/weodata/index.
aspx), o PIB dos EUA reduziu sua participação no PIB mundial de maneira constante, quase
linear, a partir de 1999, perdendo 3,6 pontos percentuais até 2010. No mesmo período,
o G-7 perdeu 9,4 pontos percentuais e a China cresceu 6,3 pontos percentuais. Por esses
mesmos critérios do FMI, vê-se que a China, que em 1980 representava 9% da economia
dos EUA, em 2010 passou a 66%.

271
raízes políticas mais profundas, dentro do próprio continente
latino-americano e vem sendo favorecido materialmente
pelo boom econômico mundial, liderado pela China e pelos
Estados Unidos e responsável pelo sucesso exportador da
América Latina nos últimos anos … A grande surpresa teó-
rica é que, nesse caso, a máxima determinação econômica
externa é que está criando o espaço e a oportunidade para
renegociação da hegemonia dos Estados Unidos dentro do
próprio continente americano. 7 (sublinhado nosso).
Ou seja, a longa crise econômica pela qual passa o imperialismo desde
meados dos anos 1970, o escancarar da crise no que conceituamos como
uma terceira grande depressão, a reconversão da China ao capitalismo, a
disputa de vida ou morte pela hegemonia no sistema entre China e Estados
Unidos, a busca (sempre) extremada pela acumulação de capitais impondo
uma nova divisão internacional do trabalho que implicou em uma reorga-
nização da economia mundial, conjunto de transformações complexas no
processo de agravamento de todas as contradições do imperialismo que
impuseram ao Brasil a sua “máxima determinação econômica externa” no
complexo tabuleiro do sistema imperialista mundial, é esta a conjuntura que
teria permitido, contraditoriamente, ao país a conquista de “um razoável grau
de liberdade para poder definir autonomamente sua estratégia de desenvol-
vimento e de inserção internacional num mundo em plena transformação.”
Ou de outra forma, nessa “nova ordem” o Brasil, enquanto país dominado,
modifica regressivamente sua “inserção internacional”, especializando-se em
fornecer commodities à produção capitalista mundial processada na China e
seus satélites, ao mesmo tempo em que serve de mercado para a valorização
do capital na esfera financeira e para o consumo dos produtos industrializa-
dos das novas “fábricas” da nova divisão internacional do trabalho.
Assim, paradoxalmente, os fatores principais da nossa “autonomia” recém-
-conquistada seriam nossa nova inserção, subordinada à economia chinesa, e
a alta dos preços internacionais de commodities (estimulada pela demanda
chinesa)! Nossa independência virá da “máxima determinação econômica
externa” que nos parqueia 8 a ocupar uma situação colonial de novo tipo!
Vejamos alguns números do fenômeno.
O primeiro gráfico mostra a correlação entre a evolução dos índices de
preços internacionais de commodities e os das exportações brasileiras totais.
Isso demonstra o óbvio, que os preços das nossas exportações variam de
acordo com variáveis externas (demanda internacional e dos nossos países
importadores, restrições de oferta nos países produtores, valor do dólar,

7 FIORI, J. L. (outubro de 2006). Quem não quiser não precisa tirar os sapatos. In: O Poder
Global e a Nova Geopolítica das Nações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 252-53.
Embora esse texto tenha sido escrito antes da eclosão da crise, essa não alterou – pelo
contrário! – a “máxima determinação econômica externa”.
8 Parquear: verbo transitivo direto. Derivação: anglicismo semântico. Demarcar espaço para
parqueamento ou estacionamento. Conforme o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua
Portuguesa.

272
especulação de commodities nos mercados financeiros, etc.) e que mesmo
um índice como o CRB 9, cuja composição é diferente da composição das
exportações brasileiras, é com elas correlacionado.

Gráfico 1
Preços de exportação brasileiros e preços
internacionais de commodities
230

210

190

170

150

130

110

90
2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010
janeiro 2000 = 100 Preço Exportações Índice CRB
Fonte: Ipeadata e CRB

Gráfico 2
Preços de Exportação Brasileiros

290 283,7

260

230
215,3

200

170 168,4

140

110 84,5

80
2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

janeiro 2000 = 100 Básicos Totais Manufaturados


Fonte: Ipeadata e CRB

Em função disso, o aumento de 135,7% no índice de preços das exportações


brasileiras durante o governo Lula, do mínimo de 91,4 em março de 2002
9 CRB é o nome do índice de preços de commodities no mercado à vista calculado pelo
Commodity Research Bureau (http://www.crbtrader.com/). Em sua composição entram
cobre, zinco, estanho, entre outros, que não estão presentes nas exportações brasileiras.
A correlação entre os dois indicadores é de 92,8% de janeiro de 2000 a novembro de 2010.

273
até 215,3, em novembro do ano passado, não é expressão da “autonomia”
desejada por Fiori, mas da nova divisão internacional do trabalho e da nova
inserção subordinada do país. Ainda mais quando verificamos, no Gráfico 2,
que o comportamento dos preços das exportações totais está determinado
pelos preços dos produtos básicos, cujo crescimento no mesmo período
atingiu 235,7%, com os preços dos manufaturados tendo um desempenho
bem abaixo desse.

Gráfico 3
Índice dos termos de troca do Comércio Exterior Brasileiro
140 139,1

130

120

110

100
98,1

90
2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

Fonte: Ipeadata e CRB


janeiro 2000 = 100

Quando olhamos a pauta de exportações do Brasil, após os oito anos


de governo Lula, o espanto não é com sua composição, cuja tendência é
reforçada no “mundo em plena transformação” atual, mas com ainda existir
alguém falando de “autonomia” e “objetivos estratégicos do país”. Segundo
o jornal Valor Econômico, de 13.01.2011, p. A3:
Em 2010, as vendas de cinco commodities – minério de ferro,
petróleo em bruto, soja (grão, farelo e óleo), açúcar (bruto
e refinado) e complexo carnes – responderam por 43,4%
do valor total exportado pelo Brasil, uma fatia bastante
superior aos 27% de 2004.
Mesmo entre as commodities, o Brasil exporta a maior parte
delas sem valor agregado. 10
Com esse crescimento das exportações brasileiras, principalmente de
commodities e fundamentalmente nos seus preços nos mercados interna-
cionais – fenômeno comum a todos os exportadores de commodities como,
por exemplo, a América Latina – os termos de troca do país inverteram sua
trajetória de longo prazo (a célebre “deterioração dos termos de troca” da
10 Cinco commodities garantem 43% da exportação do Brasil. (Reproduzido
no endereço que segue: http://www.ecodebate.com.br/2011/01/14/
cinco-commodities-garantem-43-da-exportacao-do-brasil/).

274
Cepal). Como os preços de exportação (commodities) subiram mais que os de
importação (manufaturas), os termos de troca brasileiros aumentaram 41,7%
do mínimo de 98,1, em dezembro de 2002, para 139,1, em novembro de 2010.

Gráfico 4
Conta corrente, sem e com ajuste por relações de troca

-1

-2

-3

-4

-5
2000

2000

2000

2000

2000

2000

2000

2000

2000

2000
Saldo em conta corrente Ajustada por relações de troca

A consequência macroeconômica desses fatores está expressa no Gráfico


4, tirado de artigo de José Antonio Ocampo, ex-Secretário-Executivo da
Cepal 11. A linha tracejada é o resultado observado das transações correntes
com o exterior (balança comercial, serviços, juros, lucros e transferências
unilaterais) da soma dos países da América Latina. A linha grossa contínua
é um exercício que desconsidera o aumento dos preços dos produtos ex-
portados, considerando apenas o crescimento das quantidades exportadas.
Usando dados para a América Latina, Ocampo calcula o ganho dos termos
de troca como tendo melhorado o desempenho em conta corrente desses
países em mais de 3 pontos percentuais do PIB em 2006. Apesar de imper-
feito – por exemplo, com preços menores poderíamos ter exportado mais
–, serve de exemplo de como o sistema mundial do imperialismo, através do
funcionamento da lei do valor, parqueia as economias dominadas e altera
sua estrutura econômica.
Cálculo similar feito para a economia brasileira foi apresentado em matéria
da revista Carta Capital a partir de estudo do Banco Itaú Unibanco. O estudo
trabalha apenas com os dados de 2010, desconsiderando que o processo já
vem de vários anos, o que, obviamente, reduz erroneamente o impacto do

11 OCAMPO, J. A. A Macroeconomia da Bonança Econômica Latino-Americana. Revista da


Cepal, nº especial em português, maio de 2010, p. 77-99 (http://www.eclac.org/publica-
ciones/xml/8/39538/RVPOcampo.pdf). Também publicado em BRESSER-PEREIRA, L. C.
(Org.). Doença Holandesa e Indústria. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 61-98.

275
fenômeno na economia brasileira e o torna, portanto, incomparável com o
dado de Ocampo. Ainda assim, conclui que:
Mantidos os termos de troca médios de 2009, o saldo co-
mercial seria deficitário em 8,4 bilhões de dólares e o déficit
em transações correntes atingiria 3,7% do PIB. O Brasil está
com sorte, conclui o relatório do banco 12. (sublinhado nosso)
Claro que esse processo – que em apenas um ano teria gerado ganho
de quase US$30 bilhões ou 1,3% do PIB brasileiro – não tem nada a ver com
“sorte”, mas sim com as mudanças na economia mundial, com a capacidade
da burguesia de reconfigurar a economia brasileira seguindo a taxa de lucro.
O que esperamos ter mostrado, até aqui, é que o desempenho do Brasil
na última década tem como principais determinantes as mudanças no
sistema imperialista causadas pela modificação na divisão internacional
do trabalho. Assim, os tais ganhos de “autonomia” se parecem com uma
versão canhestra do lema de dar um passo atrás para dar dois passos adiante,
isto é, dar dois passos atrás pensando dar um passo adiante.
O que Fiori parece não se lembrar ou não levar em consideração é que,
se a alta dos preços das commodities aumenta o valor das exportações,
das reservas internacionais do país (mas também aprecia o câmbio), da
arrecadação fiscal e tem impacto no crescimento econômico, essa “máxima
determinação econômica externa” também força o país a modificar sua
estrutura econômica, de forma permanente, em benefício dos setores
mais ligados à demanda externa, seguindo necessariamente a maior taxa
de lucro. Com isso, aumenta exponencialmente a dependência do país à
“máxima determinação econômica externa”.
Não nos iludamos com o mito de que o Brasil “foi o último país a entrar
na crise e o primeiro a sair dela”. Não apenas o Brasil teve uma das maiores
quedas mundiais do PIB no último trimestre de 2008, acima de 10% em
termos anualizados, quando da quebra do banco Lehman Brothers e a
agudização da crise mundial, como sua recuperação foi puxada pela re-
cuperação da demanda chinesa e asiática (que não registraram quedas no
PIB), estimulada, no caso da China, por um dos maiores pacotes fiscais (em
proporção do PIB) do mundo.
Os pretensos «objetivos estratégicos do país», em função dos
quais «todas as alianças são possíveis»
Fiori está, neste ponto, apelando para o senso comum. Quando se fala dos
“objetivos estratégicos do país”, em geral as pessoas tendem, inicialmente, a
pensar em aspectos positivos, cada um com sua escala de valores, conforme a
ideologia dominante e a sua própria ideologia, definida na relação com aquela.
Ocorre que, quando é necessário dizer efetivamente quais são esses objetivos, o
que e a quem eles representam, o “consenso” desaparece. Uma resposta sobre
quais seriam efetivamente esses “objetivos estratégicos do país” está dada pelo
próprio Fiori, em texto anterior, e revela muito sobre a ideologia que o move:
12 SIQUEIRA, A. O exemplo emergente. Carta Capital, n. 631, 02.02.2011.

276
no caso do «desenvolvimentismo com inclusão social»,
do segundo governo Lula … seu objetivo estratégico … é
«destravar o capitalismo» brasileiro.
Com esse objetivo, o governo Lula está retomando o velho
projeto desenvolvimentista que remonta à década de 1930
e que só foi interrompido nos anos 1990. Mas, ao mesmo
tempo, está querendo criar uma vontade política por meio
de uma grande coalização social e econômica que reúna as
várias vertentes do desenvolvimentismo brasileiro, conser-
vadoras e progressistas, que estiveram separadas durante a
ditadura militar 13. (sublinhados nossos)
São inúmeras as declarações de Lula sobre essa sua função, esse seu
“objetivo estratégico”, de estimular a acumulação de capitais, isto é, ampliar
a exploração das classes dominadas ou, elegantemente, “destravar o capi-
talismo”, como quer Fiori. Quem não se lembra, por exemplo, a de que os
ricos nunca ganharam tanto dinheiro quanto em seu governo, a de que os
latifundiários são “heróis nacionais” e a de que ele participou do momento
mais auspicioso da história do capitalismo mundial? 14.
Só que, além do revisionismo deslavado e cínico de tomar o desenvolvi-
mento capitalista – “crescimento econômico”, diriam eles – como benéfico
aos trabalhadores e demais classes dominadas, há outro gato por lebre nesse
raciocínio. Fiori erra ao voltar os olhos a um passado mitificado, ideologizado,
do capitalismo brasileiro dos anos 1930 (Vargas), 1950 (JK) e 1970 (Geisel). O
capitalismo que Lula quer destravar agora é outro, o da era da crise do
imperialismo, da nova divisão internacional do trabalho e da inserção
regressiva do país, caracterizada pelo crescimento do setor produtor de
commodities para exportação, pela desindustrialização e pelo Brasil se
tornar palco importante da valorização financeira/fictícia de capitais.
Ou seja, não apenas Fiori erra ao voltar os olhos a uma mitificação do
passado, como erra ao também mitificar o presente. Não nos enganemos,
o que Lula fez nos seus oito anos de governo foi o que fizeram, por sua

13 FIORI, J. L. (janeiro de 2007). De volta para o futuro. In: O Poder Global e a Nova Geopolítica
das Nações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 257-59.
14 “Quando eu falo destravar o país, é destravar todos os penduricalhos que atrapalham a
agilidade de quem é prefeito, de quem é governador e de quem é presidente da República,
porque os problemas só sobem de dimensão, mas eles são os mesmos em todos os Estados”.
(Discurso do presidente Lula na reunião/almoço de 23.11.2006 com governadores e vice-
-governadores eleitos). Lula sanciona lei das microempresas e diz que é preciso “destravar”
mais. Valor Econômico, 15.12.2006, p. A2.
Sobre o ganho de dinheiro dos ricos, o mantra foi repetido em 2008 (Brasil: Lula diz que
bancos e empresários nunca ganharam tanto dinheiro: http://www.band.com.br/fiquede-
olho/conteudo.asp?ID=69011) e em 2010 (http://ultimosegundo.ig.com.br/entrevista/lula
+fala+ao+ig+sobre+sua+relacao+com+empresarios/n1237778822207.html), pelo menos.
Sobre os latifundiários como “heróis nacionais”: http://www1.folha.uol.com.br/folha/
brasil/ult96u90477.shtml
E sobre o “momento mais auspicioso do capitalismo mundial”, acessar a página a seguir:
http://www.redebrasilatual.com.br/temas/politica/2010/09/201ccomedor-de-capitalis-
mo201d-lula-festeja-sucesso-de-oferta-de-acoes-da-petrobras#

277
vez, não apenas os três citados acima, mas todos os demais: governar pelo
capital e para o capital. Em todos os casos, considerando as necessidades
cambiantes das conjunturas concretas.
Apenas para exemplificar, essa visão se apresenta, concretamente, como
a defesa do agronegócio e da exportação de commodities brasileiras na luta
por uma visão liberal do comércio internacional, característica da diplomacia
Lula na OMC e nos fóruns internacionais, como a Rodada Doha. Sob a forma
de luta pela extinção de tarifas dos “países ricos” à importação agrícola, o
que impera é a defesa de um país exportador de commodities agrícolas
como “objetivo estratégico”.
Isto lembra uma citação da critica do imperialismo que já fizemos em
outro texto, analise esquecida pelos “nossos comunistas” que não ultrapassam
o “em torno de Marx”, sem nunca assumir o marxismo-leninismo.
… um país dominado, ou anteriormente dominado, que
não modifica sua situação na divisão capitalista do trabalho
internacional não faz senão reproduzir a sua situação desfa-
vorável: quanto mais cresce a produção dos produtos que o
seu «lugar» lhe atribui, mais participa do agravamento da
sua situação desfavorável (as manipulações de preço não
podem modificar esse fato enquanto subsistir uma economia
mundial capitalista). 15

A «esquerda» e o desenvolvimentismo
Ao defender isso, o “desenvolvimentismo”, Fiori acaba parecendo, ironica-
mente, um destacado seguidor de uma posição profundamente reformista,
revisionista, mecânica, evolucionista, adotada no passado por alguns partidos
comunistas, e hoje, no Brasil pelo PCdoB e alhures por outras organizações
que teimam em se denominar comunistas, a posição de que é preciso de-
senvolver plena e integralmente as forças produtivas, apoiando a dominação
de classe (“os desenvolvimentistas conservadores e progressistas”), para
só então – num futuro longínquo – pensar em transformar as relações de
produção. Ironia do destino para Fiori, que escreveu um artigo, A Esquerda
e o Desenvolvimentismo 16, a criticar a subordinação prática e intelectual da
esquerda latino-americana ao desenvolvimentismo burguês…
Baseado no senso comum e na ideologia do nacionalismo, no desenvol-
vimentismo burguês, no reformismo, nossa e outras “esquerdas”, ao falar de

15 BETTELHEIM, C. Relações Internacionais e Relações de Classe. In: BETTELHEIM, EMMANUEL


et alli. Um Proletariado Explorador? Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1971, p. 27.
Citação retirada do texto Formação Econômico-Social Brasileira: regressão a uma situação
colonial de novo tipo.
16 FIORI, J. L. (março de 2006). A esquerda e o desenvolvimentismo. In: O Poder Global e a
Nova Geopolítica das Nações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 241-44. “Depois de
1930 e, em particular, depois que os partidos comunistas latino-americanos adotaram uma
estratégia democrática e reformista de conquista do poder e transformação do sistema
capitalista, a relação da esquerda com o desenvolvimentismo transformou-se no núcleo
duro de sua produção intelectual e política”. (p. 241).

278
“objetivos estratégicos”, passa ao largo do marxismo-leninismo reafirmado por
Mao Tsé-Tung de que toda a ação é determinada por uma política, uma teoria,
mesmo que aplicada às cegas ou à revelia da consciência de seus atores 17.
Assim, não é apenas – e nem principalmente – nos discursos diplomáti-
cos, nos discursos presidenciais, e nem nos artigos dos seus ideólogos, que
se deve buscar a real e concreta construção da inserção internacional do
país, mas na realidade concreta do processo de acumulação de capital e de
integração econômico e financeira do país na economia mundial.
Só para ficar num caso exemplar e atual da velha política reformista que
assolou os Partidos Comunistas lá e aqui, podemos citar a campanha do
Partido Comunista Português sob a palavra de ordem “Portugal a produzir”:
Campanha Nacional em defesa da produção nacional sob
o lema – Portugal a produzir, destinada a afirmar o valor
estratégico da produção nacional e a aproveitar as poten-
cialidades do país, para a criação de emprego, o combate
à dependência externa e a afirmação de uma via soberana
de desenvolvimento. 18
Como vimos, o revisionismo e o reformismo, visões empobrecidas do
marxismo sob os avatares do desenvolvimentismo, não são coisas nossas,
é o cavalo de troia da ideologia burguesa desembarcado na retaguarda das
fileiras do proletariado que é necessário denunciar e combater.
Por uma «análise concreta da situação concreta»
Insistindo na busca pela realidade concreta, selecionamos mais algumas
estatísticas que nos mostrem a quantas anda a “autonomia” na busca pelos
“objetivos estratégicos” do país.
Lembrando a expressão de Fiori, “ser parte constitutiva de ‘territórios
econômicos supranacionais’”, vejamos como “os objetivos estratégicos” se
apresentam concretamente na complementaridade do comércio exterior
Brasil-China (“todos competem com todos, e todas as alianças são possíveis”).
Conforme os gráficos abaixo, as exportações brasileiras para a China se mul-
tiplicaram 28 vezes, de 2000 a 2010, quando atingiram US$30,8 bilhões. As
importações, por sua vez, aumentaram 21 vezes, chegando a US$25,6 bilhões
no ano passado. Assim, a China passou a ser o maior parceiro comercial do
país, superando de longe os Estados Unidos. A China compra 15% das ex-
portações totais do país e é a origem de 14% das nossas importações totais.
Como o diabo mora nos detalhes, é importante desagregar as exportações
e importações do país para/da China. Assim, veremos a complementaridade

17 “Toda a ação de um partido revolucionário é a aplicação de sua política. Se não aplica


uma política correta, aplica uma errada; se não aplica uma política determinada de forma
consciente, a aplica às cegas”. Sobre la Politica Concerniente a la Industria y El Comercio
(27.02.1948). In: Obras Escogidas de Mao Tse-Tung, tomo IV. Madri: Editorial Fundamentos,
1974, p. 211.
18 Apresentação da Campanha Nacional do PCP em defesa da produção nacional e do apa-
relho produtivo: http://www.pcp.pt/apresenta%C3%A7%C3%A3o-da-campanha-nacional-
-do-pcp-em-defesa-da-produ%C3%A7%C3%A3o-nacional-e-do-aparelho-produtivo

279
entre o país que vende commodities de baixíssimo valor agregado (adivinhem
qual?) e o que vende manufaturas. De 2006 a 2009, um único produto, o
minério de ferro, representou 33% das exportações brasileiras para a China,
passando em 2010 a 43% ou US$13,3 bilhões. Com o predomínio do minério,
as exportações de soja em grão baixaram de 30% na média de 2000-2009
para 23%, em 2010. Ou seja, só esses dois produtos já somam dois terços
das vendas do Brasil para a China! Os cinco principais produtos da pauta,
todos commodities (acrescentem petróleo bruto, celulose e óleo de soja),
representaram 86% do total em 2010.

Gráfico 5
Comércio exterior do Brasil com a China
u$ bilhões

35.000

30.000

25.000

20.000

15.000

10.000

5.000

0
2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

Exportações Exportações
Fonte: MDIC

Gráfico 6
Comércio exterior do Brasil com a China
16%

14%

12%

10%

8%

6%

2%

0%
2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

Exportações Importação
Fonte: MDIC

280
Pelo lado das importações brasileiras, o cenário é totalmente diferente.
Todos os cinco principais produtos são manufaturas (partes de aparelhos
transmissores e receptores, máquinas para processamento de dados e suas
partes, circuitos integrados e eletrônicos e – pasmem! – laminados planos
de ferro ou aço). Eles juntos representaram só 21% das nossas importações,
mostrando que a “invasão chinesa” é ampla e irrestrita.
Estudo do BNDES sobre o impacto das importações chinesas na indústria
brasileira 19 mostra que nos produtos intensivos em tecnologia elas já repre-
sentam 26,4% das importações brasileiras totais desse segmento, atingindo
39% em material elétrico e 33,6% no complexo eletrônico. Em relação aos
produtos intensivos em trabalho, o percentual atinge 39,1%, chegando a 60,7%
em vestuários (tabela 1, p. 4). Usando o coeficiente de importação (definido
como a “participação das importações no consumo aparente doméstico de
cada setor”, p. 3), vê-se que as importações da China já representam 19,6%
do consumo total de material elétrico do mercado doméstico e 16,5% do
complexo eletrônico (tabela 2, p. 5).
Como afirma o estudo:
A ascensão da China à posição de segunda economia mun-
dial está levando a mudanças significativas na divisão inter-
nacional de trabalho. Economias exportadoras de produtos
primários têm se voltado ainda mais para a produção de
commodities, com o forte crescimento da demanda chi-
nesa por esses produtos. Em contraste, diferentes países
observaram suas vantagens comparativas serem reduzidas
em produtos que enfrentam competição com mercadorias
chinesas. Consequentemente, o crescente deslocamento da
indústria chinesa para produção de bens mais elaborados
provocou a perda de importância desses setores em certos
países (p. 1).
Em 2010, a China se tornou o principal exportador de bens
para o Brasil … Além disso, tem afetado de forma diferen-
ciada os setores da indústria. Nesse sentido, tem impor-
tantes implicações sobre a estrutura produtiva e o grau
de industrialização da economia … O perfil da entrada
de produtos chineses até o momento tem mostrado uma
complementaridade com a estrutura industrial brasileira
… Há um desafio importante para que a indústria nacional
se ajuste e deve-se evitar uma especialização excessiva da
estrutura produtiva (p. 7). (sublinhados nossos).
Nada mal para quem imagina que “todos competem com todos, e todas
as alianças são possíveis, em função dos objetivos estratégicos do país”!
19 PUGA, F. e NASCIMENTO, M.. (2010). O efeito China sobre as importações brasileiras.
Visões do Desenvolvimento, n. 89, dezembro, 7 p. Acessível no endereço:
http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/
conhecimento/visao/visao_89.pdf

281
E já que estamos falando do BNDES, o banco de “desenvolvimento” tem
sido peça ativa na “especialização excessiva”, financiando a formação dos
grandes grupos monopolistas nacionais e estrangeiros. Neste momento,
para não tornar esse texto excessivamente longo, basta-nos a crítica de
Chico de Oliveira:
Essa onda de fusões, concentrações e aquisições que o BNDES
está patrocinando tem claro sentido privatista. Para o país,
para a sociedade, para o cidadão, que bem faz que o Brasil
tenha a maior empresa de carnes do mundo, por exemplo?
Em termos de estratégia de desenvolvimento, divisão de
renda e melhoria de bem-estar da população, isso não quer
dizer nada (FSP, 17.10.2010). 20
Por fim, é claro que uma fração da maior arrecadação fiscal dá ensejo
a “políticas distributivas”, compensatórias, um pouquinho para os pobres
(Bolsa Família, por volta de R$13 bilhões) e a mão cheia para os ricos (capi-
talizações e empréstimos sucessivos para o BNDES, com emissão de dívida
pública superior a R$180 bilhões), que, ao contrário de serem políticas em
busca de “autonomia” ou de “objetivos estratégicos”, são a funcionalização
da pobreza e (a tentativa de colocar) um freio à luta de classes, um moderno
“Exército de Salvação”, que pena, sem a bandinha de música.
Apesar das evidências gritantes em contrário, nossa “esquerda” festeja os
anos Lula. Vejamos o exemplo de uma destacada liderança do MST:
No governo Lula foi possível uma política econômica e social
de compensação, em que todas as classes ganharam. Ganhou
mais o capital financeiro, mas ganharam a burguesia indus-
trial, a classe média, os trabalhadores e os mais pobres. 21
É ou não é um “país de todos”?
Em relação à desindustrialização, fenômeno correlato à especialização
em commodities e à reprimarização da pauta exportadora, cremos que,
por ora, basta a reprodução dos gráficos abaixo, sobre a participação da
indústria de transformação no PIB brasileiro. Esperamos, em breve, poder
apresentar uma análise específica do fenômeno. Os gráficos, com diferen-
tes especificações para o PIB e para índices de preços, constam de artigo
acadêmico elaborado por professores da Fundação Getúlio Vargas no Rio
de Janeiro 22. Não importa qual a especificação, o resultado é o mesmo:
redução acentuada da participação da indústria de transformação no PIB a
partir de final dos anos 1970/meados dos anos 1980, quando o Brasil sentiu
20 Sociólogo e fundador do PT afirma que «Lula é mais privatista que FHC». (Disponível
no endereço: http://www1.folha.uol.com.br/poder/815456-sociologo-e-fundador-do-pt-
-afirma-que-lula-e-mais-privatista-que-fhc.shtml)
21 STÉDILE, J. P.. Os desafios do governo Dilma. Caros Amigos, nº. 166, Janeiro de 2011, p. 9.
22 BONELLI, R. e PESSOA, S.. (2010). Desindustrialização no Brasil: um resumo da evidência.
Texto para Discussão FGV/IBRE nº. 7, março, 61 p. Os gráficos copiados encontram-se nas
páginas 16 e 17 no endereço: http://portalibre.fgv.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fi
leId=8A7C823328345192012888BA30FC225D

282
os impactos da crise do imperialismo e passou a viver de crise em crise,
gerando as “décadas perdidas”.

Gráfico 7
Participação percentual da indústria de transformalção no pib a preços
básicos – 1947-2008 · Série original e corrigida
(% baseadas em valores e preços correntes)
40

35

30

25

20

15
1947
1949
1951
1953
1955
1957
1959
1961
1963
1965
1967
1969
1971
1973
1975
1977
1979
1981
1983
1985
1987
1989
1991
1993
1995
1997
1999
2001
2003
2005
2007
Série Original Série Corrigida

Gráfico 8
Participação percentual da indústria de transformalção no pib 1947-2008
(a preços constantes · % em valores de 2008)

22%

20%

18%

16%

14%
1947
1949
1951
1953
1955
1957
1959
1961
1963
1965
1967
1969
1971
1973
1975
1977
1979
1981
1983
1985
1987
1989
1991
1993
1995
1997
1999
2001
2003
2005
2007

Fonte: IPEADATA. Elaboração dos autores

283
Esse novo capitalismo, que Lula buscou “destravar”, nas novas condições
da subordinação do Brasil ao sistema imperialista e à nova divisão inter-
nacional do trabalho, além das características de desindustrialização e de
especialização regressiva na produção de commodities, majoritariamente
para exportação, também reforçou sua condição de paraíso para a acumu-
lação de capitais nas esferas financeira e fictícia.
Os números estão ai, para quem quiser ou se der ao trabalho de pro-
curá-los e buscar entender o que significam, o que representam e a quem
beneficiam: maiores taxas de juros do mundo, remunerando uma dívida
pública que já ultrapassou (e muito!) a casa de R$ 1 trilhão; buscando esses
juros, o capital internacional que se financia a juros zero no Japão, Europa e
Estados Unidos e que ainda recebe o benefício do governo Lula de não pagar
imposto de renda, aplica em títulos do governo brasileiro negociados no
país US$689 milhões em 2005, antes da isenção, e depois US$11 bilhões em
2006, mais US$20,5 bilhões em 2007, mais US$15,3 bilhões em 2008, US$ 10,1
bilhões em 2009 e US$14,8 bilhões em 2010, até novembro. Ou seja, US$ 71,7
bilhões em apenas 5 anos!
Nesse mesmo período, o ingresso de capital estrangeiro na Bovespa
atingiu quase US$100 bilhões, mesmo com as fugas de capital durante a crise
em 2008. Só de empréstimos de curto prazo, o hot money, que se destinam
apenas a pura especulação (tecnicamente chamada “arbitragem de taxas”)
entraram US$22,1 bilhões no ano passado, sem considerar dezembro.
Com isso, a dívida externa sobe, passando de US$172,6 bilhões, em 2006,
para US$247,1 bilhões, em 2010, sendo que a última estimativa de seu serviço
anual (principal mais juros) é de US$48,1 bilhões, tudo de acordo com os
números e estimativas do Banco Central. O passivo externo bruto – uma
medida do conjunto de capitais estrangeiros aplicados no país – atingiu
68% do PIB em 2009, ou US$1,1 trilhão, enquanto o passivo externo líquido
– que desconta do bruto os haveres brasileiros no exterior, em especial as
reservas internacionais – atingiu 38% do PIB, ou US$606 bilhões. São essas
as quantidades de capital estrangeiro que o “capitalismo destravado” tem
que remunerar…
O que podemos concluir – sem nenhuma surpresa – é que a doença
infantil do nacionalismo e do desenvolvimentismo burgueses, que ataca
nossos esquerdistas tupiniquins, e quejandos em outros países e continen-
tes, tal como apontado por Fiori no artigo citado, acometeu o próprio. Ao
se juntar ao coro de ideólogos e bajuladores na adulação de Lula e de seu
governo, ao dernier cri da ideologia dominante, deixou de lado a busca da
objetividade que lhe possibilitariam a análise objetiva da situação concreta
de dominação da economia brasileira neste início do século XXI.
Assim, como em um espelho, onde há uma nova divisão do trabalho
e “complementaridade” entre as economias brasileira e chinesa, uns com
minério bruto e outros com máquinas para processamento de dados e cir-
cuitos integrados e eletrônicos, ele vê “alianças” “em função dos objetivos
estratégicos do país”. E onde há uma regressão da economia brasileira a uma

284
situação colonial de novo tipo, com especialização regressiva em commodities
para exportação, desindustrialização e estímulo à valorização financeira/
fictícia desenfreada de capitais, ele vislumbra a definição “autônoma” de
uma “estratégia de desenvolvimento e de inserção internacional”.
O desenvolvimento da teoria científica, revolucionária do proletariado,
que embasará a prática de (re)construção do seu partido e se fortalecerá
com ela, passa pela crítica das posições reformistas que buscam confundir
a consciência de classe das classes dominadas e pela análise concreta da
conjuntura na qual se desenrola a luta de classes atual.

285
Quinze anos da chacina de Eldorado do
Carajás 1

No final da tarde de 17 de abril de 1996, há quinze anos, pelo menos


19 trabalhadores rurais sem terra foram assassinados pela Polícia Militar do
Estado do Pará na curva do S, trecho da estrada PA 150 nas proximidades
de Eldorado do Carajás.
O que ocorreu naquele dia não foi o resultado casual, inesperado ou aci-
dental de um confronto entre manifestantes sem terra e policiais militares. A
PM do Pará – cumprindo sua vil função de aparelho repressivo de Estado, no
caso, como destacamento armado a serviço dos latifundiários – juntamente
com pistoleiros pagos por esses mesmos latifundiários, executou, de maneira
premeditada e planejada, aqueles aos quais identificou como os principais
líderes da manifestação.
No começo da noite daquele mesmo dia, eu estava sentado à escrivaninha
do apartamento onde então morava, quando comecei a ouvir vozes vindas
da rua. Inicialmente, como que um murmúrio, um rumor indistinto. Depois,
pude ouvir que as várias vozes se uniam em um mesmo e conhecido refrão:

“Punição! Punição! Assassinos na prisão!”

À janela, pude ver a pequena passeata, não mais de uma centena de


pessoas, boa parte carregando velas. Foi assim que fiquei sabendo que,
novamente, trabalhadores rurais haviam sido mortos.
Seus nomes fazem parte do imenso rol de lutadores por Terra que tom-
baram vítimas da exploração capitalista, do domínio do latifúndio, da ação
criminosa do Estado burguês a serviço de suas classes dominantes.
Nossas bandeiras vermelhas – hoje como há quinze anos, e sempre – se
curvam ante a memória de:
†† Oziel Alves Pereira, goiano, 17 anos
†† Joaquim Pereira Veras, piauiense, 32 anos
†† Abílio Alves Rabelo, maranhense, 57 anos
†† José Alves da Silva, goiano, 65 anos
†† Altamiro Ricardo da Silva, goiano, 42 anos
†† José Ribamar Alves de Souza, maranhense, 22 anos
†† Amâncio Rodrigues dos Santos, maranhense, 42 anos
†† Leonardo Batista de Almeida, maranhense, 46 anos
†† Antônio (Irmão)
†† Lourival da Costa Santana, maranhense, 25 anos
†† Antônio Alves da Cruz, piauiense, 59 anos
†† Manoel Gomes de Souza, piauiense, 49 anos
†† Antônio Costa Dias, maranhense, 27 anos

1 Texto de abril de 2011.


†† Raimundo Lopes Pereira, maranhense, 20 anos
†† Graciano Olímpio de Souza (Badé), paraense, 46 anos
†† Róbson Vitor Sobrinho, pernambucano, 25 anos
†† João Carneiro da Silva
†† Valdecir Pereira da Silva
†† João Rodrigues Araújo, piauiense
Homenageamos a memória desses lutadores tombados pelas balas do
capital e do latifúndio, queremos resgatar a sua/nossa luta por Terra e avançar
algumas questões sobre a questão agrária no Brasil.
A Chacina de Eldorado do Carajás 2
Em uma Terra de latifúndios, a fazenda Macaxeira poderia ser apenas
mais um. Com mais de 40 mil hectares, na Macaxeira já não restava nada
do castanhal nativo, todo ele derrubado para servir de área para pasto. Isso
se houvesse gado e não apenas uma imensidão de Terra vazia, funcionando
como reserva de valor para o grileiro que dela havia se apropriado.
Em 5 de novembro de 1995, cinco meses e meio antes da Chacina, 10 mil
sem-terra, acampados desde setembro perto da fazenda, a ocuparam. O
grupo era uma mescla de excluídos de todos os matizes, duplamente despos-
suídos, de empregos e de condições de subsistência, que incluía migrantes,
principalmente nordestinos, e ex-garimpeiros. Todos recrutados pelo MST e,
em sua larga maioria, sem militância ou experiência de organização anterior,
com baixos níveis de consciência e de identificação com a luta pela Reforma
Agrária. Unidos pela absoluta ausência de alternativas e pela perspectiva
concreta de obter um pedaço de Terra.
A falta de avanços nas negociações com o Incra e o Iterpa (Instituto de
Terras do Pará) levou parte dos ocupantes à Curionópolis, onde se instala-
ram em área da prefeitura em janeiro de 1996, para aumentar a pressão pela
desapropriação da Macaxeira. No começo de abril, já eram mais de mil os
acampados em Curionópolis. Sem resultados nas negociações e já passando
fome, os sem-terra acampados bloquearam a estrada entre Curionópolis e
Marabá e expropriaram caminhões de alimentos.
Esses movimentos, obviamente, não passaram despercebidos pelos
latifundiários e seus capangas. Espalharam-se toda uma série de boatos
na região, sobre a possibilidade de saques e depredações, buscando gerar
clima de hostilidade contra os ocupantes. Criaram-se pressões de toda a
ordem sobre os destacamentos da Polícia Militar para iniciar a repressão.
Os sindicatos do latifúndio pressionaram diretamente as autoridades do
governo do Estado, em Belém. Em reunião com o Secretário de Segurança,
Paulo Sette Câmara, o Secretário de Interior e Justiça, Aldir Viana, e o
Governador Almir Gabriel entregaram, inclusive, uma lista dos nomes das
principais lideranças do movimento. E iniciaram a organização de uma
ação mais efetiva e final.
2 Este relato factual baseia-se no livro de Eric Nepomuceno sobre a Chacina: O Massacre.
Eldorado do Carajás: uma história de impunidade. São Paulo: Editora Planeta do Brasil,
2007, 214 p.

287
Às sete horas da noite do dia 10 de abril, um novo passo foi dado pelo
MST. Foi iniciada uma marcha para Marabá, em direção à sede regional do
Incra, e depois, para Belém, distante mais de 800 quilômetros. Mais de 4
mil sem-terra iniciaram a marcha.
No dia 15, a marcha chegou a Eldorado do Carajás, contando com apro-
ximadamente 3 mil participantes, dos quais, se soube depois, vários PMs
disfarçados e informantes infiltrados. Eles se acamparam na margem direita
da Curva do S, à altura do quilômetro 96 da estrada PA 150. Nessa mesma
noite, em Belém, a decisão havia sido tomada: não haveria mais negociações
e a marcha deveria ser dispersada.
Com o não atendimento das demandas dos manifestantes pelas prefei-
turas das cidades vizinhas e pelo governo, ao final da tarde do dia 16, a PA
150 foi bloqueada na Curva do S. O governo do Estado reiterou a ordem
dada, tornando-a mais específica: a estrada deveria ser desobstruída. Estava
construído o cenário para a matança. O governador depois diria que a or-
dem era para uma desobstrução pacífica (sic!), a PM, que a ordem era para
desobstruir a qualquer custo, e os latifundiários tiveram o pretexto perfeito
para executar seu objetivo. Na situação concreta daquele abril, a ordem
significou a senha para a Chacina.
No começo da tarde do dia 17, duas tropas da PM saíram em direção à
Curva do S. Uma vinda de Marabá, com 85 homens e chefiada pelo coronel
Mario Colares Pantoja. Outra, de Parauapebas, com 68 homens comandados
pelo major José Maria de Oliveira. O objetivo era imprensar os ocupantes
pelos dois lados da estrada. Uma “curiosidade”: os ônibus da Transbrasiliana
que transportavam as tropas teriam sido pagos, ou ao menos solicitados/
reservados, pela Companhia Vale do Rio Doce (então estatal), habitual do-
adora da PM, tanto quanto fazendeiros e comerciantes da região.
Outras “curiosidades” ocorreram nessa ação. Dentre as tropas estavam
conhecidos pistoleiros da região, como Ailton Bispo dos Santos, o Carioca, e
Gilberto Macedo Leão, o Jamaica. Havia carabinas, fuzis e escopetas usados na
ação que não vieram dos quartéis. Os militares de Parauapebas arrancaram
a identificação de seus uniformes. Foram dadas ordens expressas para que
não se fizesse cautela das armas, ou seja, não houve registro de quais arma/
munição foram entregues a qual militar.
Às 16:30 horas do dia 17 de abril de 1996, cercados dos dois lados da estrada
por PMs, os sem-terra estavam divididos em dois pequenos grupos, cada qual
voltado para um lado da estrada e, ao centro, cerca de 2.500 manifestantes.
A tropa do coronel Pantoja avança com escudos, cassetetes, rajadas para o
alto e bombas de gás lacrimogêneo. Nesse momento, o primeiro assassinato.
Amâncio Rodrigues dos Santos, surdo, é golpeado com um cassetete na cabeça
por um soldado. Caído, é chutado e, ao se tentar se levantar, leva três tiros.
Tendo testemunhado o assassinato, os sem-terra avançam em direção à
tropa vinda de Marabá – são as imagens que a televisão consegue registrar.
Nesse momento, as duas tropas atacam, pela frente e por trás, com toda
a força. Atacados pela PM em duas frentes, os sem-terra logo tentariam

288
se dispersar desorganizadamente, se protegendo em casas às margens da
rodovia ou correndo para o mato.
É então que a PM executa sua verdadeira missão: caçar os líderes do
movimento de trabalhadores rurais sem terra na região e assassiná-los. Em
cerca de 40 minutos, sua vil missão estava concluída.
Eric Nepomuceno resume: “foi um massacre pesado, com requintes de
violência e alvos determinados”. “Não houve, ao contrário do que se tentou
difundir logo após a violência e o horror, conflito algum. Não aconteceu
nenhum confronto” (p. 156-57).
Um exemplo é o relato de testemunhas sobre a execução de Oziel Alves
Pereira, provavelmente o principal líder do MST na marcha e um dos mais
procurados pelos latifundiários:
A lavradora Maria Abadia Barbosa estava refugiada com
Oziel e um grupo de pessoas, quase todas crianças e mu-
lheres, entre elas a jornalista Mariza Romão, dentro de uma
casa de madeira a poucos metros da estrada.
Ela conta que Oziel tentou fugir e foi apanhado vivo. Um dos
policiais agarrou-o pelos cabelos, enquanto outro disparou
à queima-roupa, na nuca de Oziel.
Outra testemunha – Luiz Ribeiro da Silva – conta que o
major Oliveira disparou dois tiros com um revólver calibre 38,
quando Oziel já estava caído, depois de ter levado o tiro na
nuca (p. 115).
Outro dirigente, Graciano Olimpio de Souza, o Badé, teve o mesmo fim:
Quando o tiroteio explodiu, ele tentou correr para o mato.
Caiu, foi agarrado pelas pernas por um policial militar cha-
mado Cícero, que morava em Curionópolis e pertencia ao
destacamento de Parauapebas. Arrastado de volta para a
estrada, baleado por um tiro de fuzil, Badé implorou para
não ser morto. Já havia outros policiais militares rodeando
seu corpo estendido no chão. «Olha aí, safado, não era isso
que vocês queriam?», perguntou um deles. «Queriam terra,
agora vão ter!» Foram mais três tiros. Um deles despedaçou
sua cabeça (p. 117).
Essa não foi uma exceção, mas sim a regra. Dentre os 19 assassinados,
13 foram identificados como dirigentes ou coordenadores do MST. Em um
sumário do horror, Nepomuceno escreve:
Dez levaram mais de um tiro. No total, foram 37 ferimentos
de bala. Mais da metade dos tiros – 17 – atingiu as vítimas
na cabeça, no pescoço, no peito ou no abdômen. Pouco
menos da metade dos mortos – 42% - também foi atingida
por golpes de arma branca, punhais, foices ou facões, e
mostrava ferimentos extensos e mutilações.

289
Uma das vítimas morreu por golpes de facão. Outra teve
o crânio destroçado a pauladas. Uma outra teve o coração
atravessado por uma lâmina larga, possivelmente de foice.
As fotografias dos corpos não deixam dúvidas quanto à
violência (p. 112).
Além dos 19 assassinados na Chacina de Eldorado do Carajás, outros
três morreriam depois, em função dos tiros recebidos naquele dia, e mais
66 trazem no corpo e na alma os ferimentos e mutilações daquela barbárie.
É possível que existam outros mortos, desaparecidos para sempre na mata,
nos rios ou em covas clandestinas.
Não obstante esses fatos e mais uma infinidade de outros levantados nos
inquéritos, todos os assassinos permanecem soltos, perpetuando a longa
tradição de impunidade dos crimes contra as classes exploradas cometidos
a mando das classes dominantes.
Algumas Questões sobre a Luta de Classes no Campo no Brasil
A questão da Terra, a Reforma Agrária, a luta dos camponeses, dos bóias-
-frias, do proletariado rural e dos pequenos proprietários, sempre foram
aspectos importantes da luta de classes no Brasil, país criado para e pelo
latifúndio desde tempos coloniais. A Chacina de Eldorado do Carajás é mais
um momento desse conflito secular, que vem da escravidão dos negros afri-
canos e da constituição dos seus quilombos; da incorporação dos homens
livres, pauperizados, ao sistema econômico do latifúndio; que se manteve na
exploração desmesurada de um campesinato despossuído que substituiu a
escravidão no século XIX, com forte presença de migrantes europeus; e que,
mais recentemente, teve momentos marcantes na organização das Ligas
Camponesas, na tentativa da Guerrilha do Araguaia e na retomada das lutas
populares por Terra após o fim da ditadura militar.
No campo brasileiro trava-se a luta de classes em condições de enfrenta-
mento mais direto, violento e radical. Luta de classes marcadas por mortes
decorrentes da superexploração do trabalho no “desbravamento” da Amazônia,
em suas plantações de borracha, nos seringais e nos “grandes projetos” 3;
na migração sazonal dos bóias-frias nordestinos para a colheita da cana no

3 Lutas da classe operária que se repetem, três décadas depois, na greve dos operários na
construção das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. Greve de quase um mês, na qual
se expôs, mais uma vez, como se necessário fosse, a exploração absoluta e absurda por
parte da burguesia sobre os operários, o desrespeito às leis que tentam, minimamente,
limitar essa exploração, o papel do governo em defesa da classe dominante, e o caráter
imundo do sindicalismo pelego da CUT e da Força Sindical e da “esquerda” governista
que, primeiro, defenderam a necessidade de continuarem as obras, contra a greve! (“Tem
que voltar a trabalhar, eu sou brasileiro, quero ver essa obra funcionando”, disse a CUT,
http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2011/04/10/os-peoes-prevaleceram-no-pac-na-
-osb-373911.asp) e que agora compactuam e se calam com a demissão de 4 mil operários de
Jirau de uma só vez (a empresa “contratou mais funcionários do que o necessário” e agora
“terá de demitir cerca de 4 mil funcionários”, diz o PCdoB, enquanto o Ministro Gilberto
Carvalho, do PT, afirma “A demissão, se bem feita e combinada com os sindicatos, não tem
problema, porque tem muita gente que não quer voltar para Jirau”. O texto está disponível
no endereço: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=1&id_noticia=152419).

290
Sudeste do país; na perda progressiva da Terra pelos pequenos proprietários
no Sul; por chacinas, como as de Eldorado e de Corumbiara, em Rondônia, e
por um sem fim de assassinatos.
Hoje, quando os latifundiários que há mais de quinhentos anos exploram
e matam o povo brasileiro na produção de cana são chamados de “heróis” 4
por Lula; quando se escutam apenas elogios, da “esquerda” à direita, para a
capacidade de produção e exportação de soja, café, algodão, suco de laranja,
cana, carnes e outros produtos agropecuários, apontados como responsáveis
pelo “sucesso” econômico do país; quando os representantes políticos do
latifúndio, como a senadora Kátia Abreu, passam a integrar a base governista
no Congresso; quando a classe dominante rural marcha resoluta em defesa de
deputado do PCdoB, constituindo inclusive sua base eleitoral; é fundamental
mostrar a real condição da luta de classes no campo, denunciar essa “esquerda”
cooptada pelas classes dominantes, e reconhecer a importância da luta de
classes no campo para o conjunto da luta de classes no Brasil.
O principal argumento da ideologia dominante é o de que o campo, no
Brasil de hoje, não é mais o mesmo de séculos atrás e nem mesmo o de há trinta
anos. Uma obviedade enganosa, que mais esconde que revela. A palavra-chave
para essa mudança seria a “modernização”, especialmente das forças produtivas
agropecuárias, com maior mecanização e utilização de tecnologia de “última
geração” em adubos, fertilizantes, pesticidas, transgênicos, inseminação, etc.
O que pretendemos mostrar abaixo, com alguns dados concretos, é que
essa “modernização” nada mais é do que obediência à velha definição de
Marx, segundo a qual a produção capitalista se dá no “tempo de trabalho
socialmente necessário”, ou seja, “aquele requerido para produzir um valor de
uso qualquer, nas condições dadas de produção socialmente normais, e com
o grau social médio de habilidade e intensidade do trabalho” 5. Quer dizer,
sempre produzir com a tecnologia disponível.
Mais que isso, a “modernização”, as melhorias tecnológicas e o aumento
da produtividade seguem o imperativo da lei de acumulação do capital, pois
a “produção de mais-valia ou geração de excedente é a lei absoluta desse
modo de produção” e “no transcurso da acumulação surge sempre um ponto
em que o desenvolvimento da produtividade do trabalho social se torna a
mais poderosa alavanca da acumulação” 6, o que implica, necessariamente,
o aumento da composição orgânica do capital e, também, o seu corolário,
o aumento da taxa de mais-valia, o aumento da exploração do trabalhador.
Como dizem os franceses: plus ça change, plus c’est la même chose.

4 Eis a conhecida frase de Lula: “Os usineiros de cana, que há dez anos eram tidos como se
fossem os bandidos do agronegócio neste país, estão virando heróis nacionais e mundiais,
porque todo mundo está de olho no álcool. E por quê? Porque têm políticas sérias. E têm
políticas sérias porque quando a gente quer ganhar o mercado externo, nós temos que
ser mais sérios, porque nós temos que garantir para eles o atendimento ao suprimento”
(http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u90477.shtml).
5 MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política, Vol. I, Tomo I, Cap. I. 3ª Edição. São
Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 48.
6 MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política, Vol. I, Tomo II, Cap. XXIII. 3ª Edição.
São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 182 e 185.

291
Quando verificamos indicadores da importância relativa do agronegócio
na economia do país, duas conclusões se impõem: a primeira é que essa im-
portância manteve-se no mesmo patamar nos últimos quinze anos, apesar
do enorme crescimento das atividades ligadas à produção de commodities
minerais, especialmente ferro, e da tão propagada expansão do setor de
“serviços”. A segunda é que, por qualquer critério, o agronegócio é um dos
setores fundamentais da economia brasileira atual.
O Tamanho do Agronegócio no Brasil
O Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Escola Superior
de Agricultura Luiz de Queiróz da USP (USP/Esalq/Cepea) calcula rotineira-
mente, desde 1994, o chamado “PIB do Agronegócio”. Nesse cálculo entram,
além do valor agregado produzido diretamente pela agropecuária (“da
porteira para dentro”), parcela do produto das indústrias de base agrícola
e pecuária, que produzem os insumos para aquela produção, das indústrias
de transformação dos produtos agropecuários e das responsáveis pela sua
distribuição e comercialização. Nos últimos quinze anos o PIB do agronegócio
representou, em média, 25% do PIB brasileiro total 7.

participação do agronegócio no pib

30

25

20

15

10

0
1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008
Fonte: USP/Cepea

No mesmo período, as estatísticas do Ministério da Agricultura, Pecuária


e Abastecimento (MAPA) mostram as exportações do agronegócio como

7 O site do Cepea, http://www.cepea.esalq.usp.br/, apresenta inúmeros trabalhos, indicadores


e análises sobre o agronegócio brasileiro. As estatísticas do PIB do agronegócio estão em
http://www.cepea.esalq.usp.br/pib/, inclusive com descrição metodológica detalhada, e
são resumidas na tabela que pode ser acessada no endereço que segue:
http://www.cepea.esalq.usp.br/pib/other/Pib_Cepea_1994_2009.xls

292
responsáveis por pouco mais de 40%, na média, das exportações brasileiras. E
com uma diferença relevante. Dado que o país não é importador significativo
de produtos agropecuários, exceção feita ao trigo, o setor aparece como
gerador de imenso superávit comercial. Quando consideramos o déficit
comercial que o Brasil tem, historicamente, em produtos industriais com
maior conteúdo tecnológico, fica fácil de perceber que, por vezes, o dito
superávit comercial do agronegócio supera o próprio superávit total. Para
2010, as exportações totais do país somaram US$ 201,9 bilhões, enquanto as
do agronegócio, US$76,4 bilhões. No entanto, houve superávit comercial total
de US$20,3 bilhões, enquanto o do agronegócio alcançou US$ 63,1 bilhões 8.

participação das exportações do agronegócio nas exportações totais

50

40

30

20

10

0
1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008 2010
Fonte: MAPA

A Permanência do Latifúndio
O IBGE realiza, a cada cinco ou dez anos, o Censo Agropecuário. Esse
levantamento constitui o maior e mais abrangente conjunto de informa-
ções sobre a estrutura produtiva do campo brasileiro e permite a análise
da evolução dessa estrutura nas últimas quase quatro décadas, ainda que
tenha havido mudanças na sua metodologia.
A partir dos dados do Censo Agropecuário comprova-se a permanência
do latifúndio como característica básica do campo no Brasil. Nas últimas
décadas a estrutura econômico-produtiva veio se modificando continua-
mente – desenvolvimento das forças produtivas, aumento da composição
orgânica do capital aplicado no agronegócio, novas formas do processo

8 O MAPA divulga mensalmente estatísticas das exportações e importações dos produtos


do agronegócio brasileiro (http://www.agricultura.gov.br/). A série anual dessas informa-
ções está resumida na tabela que pode ser acessada em: http://www.agricultura.gov.br/
arq_editor/file/3324_serie_historica_bca_resumida_1989-2010.xls

293
de trabalho, aumento da participação do capital estrangeiro – deixando
inalterada a grande propriedade, nas mãos dos grandes latifundiários e/ou
das grandes empresas capitalistas, nacionais ou estrangeiras.

índice geni
1,0
0,9
0,9
0,7
0,6
0,5
0,4
0,3
0,2
0,1
0,0
1970 1975 1980 1985 1995-96 2006
Fonte: USP/Cepea

área ocupada pelos 5% maiores e pelos 50% menores estabelecimentos

%
70

60

50

40

30

20

10

0
1975 1980 1985 1995-96 2006
Fonte: Hoffmann e Ney (2010) 5+ 50−

Os dois gráficos acima apresentam formas alternativas de constatar a per-


manência do latifúndio no país. No primeiro gráfico, apresenta-se o “índice de
Gini”, o indicador mais comum para a medida da desigualdade, seja ela de renda
ou de propriedade de terra. A partir dos dados individuais da área de todos os
estabelecimentos pesquisados pelo Censo Agropecuário, é construído o índice
de Gini, cujo resultado varia de zero a um, sendo um a situação hipotética

294
na qual um único proprietário seria o dono de todas as terras disponíveis no
país. Pode-se observar nas colunas do gráfico a estarrecedora estabilidade
do indicador desde o Censo Agropecuário de 1970 até o de 2006, sempre ao
redor de 0,85 9. O segundo gráfico apresenta a informação, mais intuitiva, do
percentual da área rural total ocupada pelos 5% maiores estabelecimentos e
pelos 50% menores 10. Também aqui a estabilidade – os 5% maiores dominam
70% da área total, enquanto os 50% menores, apenas 2,5% – é tamanha, que
poderíamos pensar tratar-se de alguma lei natural…
Nada mais longe da verdade, no entanto. A permanência do latifúndio
como característica básica da estrutura do agronegócio brasileiro vem do seu
caráter capitalista. É sua submissão à lei do valor que incentiva a concentração
e a centralização fundiária e o domínio dos grandes monopólios, nacionais
e internacionais. A necessidade de uma gigantesca escala de produção para
atender à demanda mundial com exportações, imposta pela concorrência, é
que obriga à aplicação de desenvolvimentos tecnológicos ao campo, como
o aperfeiçoamento de adubos, fertilizantes, insumos de modo geral e, in-
clusive, transgênicos, que tornam os grandes (e os pequenos) proprietários
dependentes da multinacional que as produz.
Não reconhecer que o caráter capitalista do agronegócio brasileiro é seu
pólo dominante, argumentando com a persistência de condições formal-
mente pré-capitalistas cada vez menos relevantes, é não conseguir fazer a
análise concreta da situação concreta do campo e da luta pela Terra no país.
O desenvolvimento das forças produtivas no campo, no entanto, traz
novos elementos à questão agrária no país. Nas últimas duas décadas foi
possível multiplicar a produção 11 e reduzir em 45 milhões de hectares a área
total dos estabelecimentos recenseados no país. Mais que isso, o pessoal
ocupado nesses estabelecimentos (linguagem do IBGE) diminuiu em quase
6,8 milhões de pessoas, ou 29% 12.

9 As fontes dos dados primários do gráfico do índice de Gini são os Censos Agropecuários
do IBGE de cada ano apresentado. No entanto, a errata do último Censo Agropecuário,
referente ao ano de 2006 (http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/agrope-
cuaria/censoagro/brasil_2006/errata_Tabela10_0902.pdf), apresenta apenas os dados
a partir de 1985. Para 1975 e 1980, utilizou-se HOFFMANN, Rodolfo e NEY, Marlon G.
(2010). Evolução Recente da Estrutura Fundiária e Propriedade Rural no Brasil, tabela
3, p. 53. In: GASQUES, VIEIRA FILHO e NAVARRO. (Orgs.). A Agricultura Brasileira: de-
sempenho, desafios e perspectivas. Brasília: IPEA, 2010. Disponível em http://www.ipea.
gov.br/sites/000/2/livros/2010/Livro_agriculturabrasileira.pdf. Para 1970, HOFFMANN.
(2000). Distribuição da Posse da Terra no Brasil e nas Unidades da Federação, Conforme
a Condição do Produtor, 1970 a 1995/96, tabela 1. Mimeo.
10 HOFFMANN e NEY. (2010). Op. cit. Tabela 4, p. 53.
11 De acordo com dados do IBGE, disponíveis na página do Banco Central (https://www3.bcb.
gov.br/sgspub/consultarvalores/telaCvsSelecionarSeries.paint), de 1985 a 2006, os mesmos
anos dos Censos Agropecuários, a produção de soja aumentou 187%; a de milho, 94%; a
de cana-de-açúcar, 93%; a de feijão, 36%; a de arroz, 28%; e a de mandioca, 15%. Embora
tenham ocorrido quedas nas produções de trigo, -42%, e de café, -33%, os aumentos mais
que superaram essas quedas, aumentando a produção agrícola. Na pecuária, o rebanho
de bovinos aumentou 40%, de 1990 a 2006.
12 Conforme Censo Agropecuário 2006, tabela 1, p. 175. Disponível no endereço: http://www.
ibge.gov.br/home/estatistica/economia/agropecuaria/censoagro/brasil_2006/Brasil_cen-
soagro2006.pdf

295
área total dos estabelecimentos rurais no Brasil
(milhões de hectares)
400

350

300

250

200
1970 1975 1980 1985 1995-96 2006
Fonte: IBGE

Pessoal ocupado em estabelecimentos rurais no Brasil


(milhares)

25.000

20.000

15.000

10.000
1970 1975 1980 1985 1995-96 2006
Fonte: IBGE

Os quadros abaixo 13 mostram as permanências e as transformações no


agronegócio.
O Quadro 1 mostra a estabilidade da participação relativa dos principais
produtos agropecuários nos últimos dez anos. Bovinos, cana, soja, milho e
leite respondem por mais da metade dessa produção.

13 GASQUES, José G. et al. (2010). Produtividade Total dos Fatores e Transformações da


Agricultura Brasileira: análise dos dados dos censos agropecuários, quadros 1, p. 37, e 2,
p. 38. In: GASQUES, VIEIRA FILHO e NAVARRO. Op. cit.

296
Quadro 1
Participação dos dez produtos de maior valor - Brasil (1995 e 2006)
1995 % 2006 %
1 Bovinos 15,6 1 Bovinos 14,1

2 Cana-de-Açucar 11,4 2 Cana-de-Açucar 12,7

3 Leite 10,0 3 Soja em grão 11,0


4 Soja em grão 9,1 4 Milho em grão 7,3

5 Milho em grão 7,0 5 Leite 5,7

6 Galinhas, galos, 6,3 6 Café em coco 5,5


frangos, frangas e
pintos
7 Café em coco 5,3 7 Galinhas, galos, 4,0
frangos, frangas e
pintos
8 Suínos 3,7 8 Banana 3,3
9 Arroz em casca 3,4 9 Suínos 3,0

10 Ovos e galinha 2,9 10 Laranja 2,7


Fonte: Resultados da pesquisa

O Quadro 2 apresenta uma forma de mensurar o desenvolvimento das


forças produtivas no campo. Em 1970, os “insumos” força de trabalho (51%) e
terra (33,3%) representavam conjuntamente 84,3% do total de “insumos” na
produção agrícola. Mais de três décadas depois, a força de trabalho passou a
representar apenas 16,1% desse total – a redução da importância da terra foi
pequena. Que milagres faz o capital! Rebaixa-se o valor da força de trabalho
na produção, aumenta-se a parcela do capital constante (os demais itens, cuja
participação passou de 15,7%, em 1970, para 53,2%, em 2006), aumenta-se a
produção e, portanto, multiplica-se a mais-valia extraída dos trabalhadores.
E quem diz aumento de mais-valia, diz aumento de exploração.

Quadro 2
Participação dos insumos – Brasil (1970, 1995-96 e 2006)
1970 % 1995-96 % 2006 %
Pessoal ocupado 51,0 Pessoal 46,5 Terra 30,7
ocupado
Terra 33,3 Terra 23,0 Valor dos 17,8
estoques de
tratores

297
Quadro 2
Participação dos insumos – Brasil (1970, 1995-96 e 2006)
Valor dos 7,0 Valor dos 17,1 Adubos e 16,3
estoques de estoques de corretivos
tratores tratores
Adubos e 3,7 Adubos e 6,0 Pessoal ocupado 16,1
corretivos corretivos
Lenha 1,4 Agrotóxicos 3,0 Agrotóxicos 9,9
Agrotóxicos 1,3 Óleo diesel 2,4 Energia elétrica 4,6
comprada
Gasolina 0,8 Energia elétrica 1,4 Óleo diesel 3,3
comprada
Óleo diesel 0,7 Lenha 0,4 Lenha 0,7
Querosene 0,4 Gasolina 0,3 Gasolina 0,6
Energia elétrica 0,2 Álcool 0,1 Álcool 0,1
comprada
Gás liq. petróleo 0,1 Bagaço 0,0 Bagaço 0,0
TOTAL 100% TOTAL 100% TOTAL 100%
Fonte: Resultados da pesquisa (continuação)

A Luta de Classes pela Terra no Brasil


A luta dos camponeses e do proletariado rural no Brasil, historicamente,
tem sido uma luta com baixo nível de organização. Diversos fatores ajudam a
explicar esse fato, dentre eles a dispersão do povo em vastas regiões agrícolas,
a reduzida consciência de classe, o nível de exploração e o grau de repressão
exercidos pelos latifundiários e sua força repressiva, tanto os jagunços quan-
to as Polícias Civil e Militar. Um aspecto, no entanto, é fundamental para
essa explicação: o baixo nível de organização política dos comunistas nos
movimentos do campo no Brasil, em boa parte fruto da subestimação e da
incompreensão do papel do campo no processo revolucionário brasileiro.
A magnitude dos confrontos da luta de classes no campo brasileiro pode
ser atestado através do acompanhamento dos boletins periódicos da Comissão
Pastoral da Terra (CPT). No seu último relatório anual 14, a CPT enumera
dezenas de assassinatos, centenas de ocupações e conflitos por Terra, com
milhares de pessoas envolvidas em milhões de hectares por todo o país.
Da mesma maneira e pelas mesmas razões que temos defendido
que são tarefas centrais para os militantes comunistas a retomada do
marxismo-leninismo e a construção do seu partido, pois tarefas imprescin-
díveis para o avançar do processo revolucionário no Brasil, podemos afirmar
que a correta compreensão da situação do campo, da questão agrária, das
complexas contradições da luta de classes pela Terra são também questões
integrantes desse mesmo processo revolucionário.
14 CPT. (2011). Conflitos no Campo Brasil 2010. Goiânia: CPT, 181 p. Tabela 1, p. 15. Disponível
no endereço: http://www.cptnacional.org.br/index.php?option=com_jdownloads&Item
id=23&view=viewdownload&catid=4&cid=192

298
Este texto pretendeu, partindo da homenagem aos lutadores mortos na
Chacina de Eldorado do Carajás, há quinze anos, mostrar que as contradições
no campo no Brasil têm como aspecto dominante o caráter capitalista da
produção do agronegócio, que vem transformando as forças produtivas,
porém mantendo a mesma estrutura baseada no latifúndio. Mostrar a
radicalização da luta de classes no campo, com seu cenário de assassinatos,
conflitos, ocupações. Reconhecer a ausência da necessária reflexão e ação
dos comunistas sobre esses temas. E, principalmente, colocar essas questões,
ainda de forma bastante geral, na tentativa de abrir essa discussão com os
demais companheiros.

299
Comparação dos conflitos no campo (2001-2010)
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Conflitos de
terra *

Ocorrências de 366 495 659 752 777 761 615 459 528 638
conflito

Ocupações 194 184 391 496 437 384 364 252 290 180

Acampamentos 65 64 285 150 90 67 48 40 36 35

Total conflitos 625 743 1.335 1.398 1.304 1.212 1.027 751 854 853
de terra

Assassinatos 29 43 71 37 38 35 25 27 25 30

Pessoas 419.165 425.780 1.127.205 965.710 803.850 703.250 612.000 324.225 415.290 351.953
envolvidas

Hectares 2.214.930 3.066.436 3.831.405 5.069.399 11.487.072 5.051.348 8.420.083 6.568.755 15.116.590 13.312.343

Conflitos
trabalhistas

Trabalho escravo 45 147 238 236 276 262 265 280 240 204

Assassinatos 4 1 – 2 – 3 1 1 – 1

Pessoas 2.416 5.559 8.385 6.075 7.707 6.930 8.653 6.997 6.231 4.163
envolvidas

Superexploração 25 22 97 107 178 136 151 93 45 38


e desrespeito
trabalhista

Assassinatos 1 – 2 – – 1 – – – 1

Pessoas 5.087 5.586 6.983 4.202 3.958 8.010 7.293 5.388 4.813 1.643
envolvidas

Total conflitos 70 169 335 343 454 398 416 373 285 242
trabalhistas

Conflitos pela
água

No de conflitos – 14 20 60 71 45 87 46 45 87

Assassinatos – – – – – – 2 – 1 2

Pessoas – 14.352 48.005 107.245 162.315 13.072 163.735 135.780 201.675 197.210
envolvidas

Outros **

No de conflitos 129 – – – 52 2 8 – – 4

Assassinatos – – – – – – – – – –

Pessoas 106.104 – – – 43.525 250 3.660 – – 4.450


envolvidas

Total

No de conflitos 880 925 1.690 1.801 1.881 1.657 1.538 1.170 1.184 1.186

Assassinatos 29 43 73 39 38 39 28 28 26 34

Pessoas 532.772 451.277 1.190.578 975.987 1.021.355 783.801 795.341 502.390 628.009 559.401
envolvidas

Hectares 2.214.930 3.066.436 3.831.405 5.069.399 11.487.072 5.051.348 8.420.083 6.568.755 15.116.590 13.312.343

* Após o fechamento da edição de 2009, chegou ao nosso conhecimento o assassinato de Raimundo Nonato, e os dados relativos a ele, o que altera o número de 24 para 25 vítimas
de assassinados nos Conflitos por Terra e o total Brasil que passa a ser 26 vítimas.
**Outros: Conflitos em Tempo de Seca, Politica Agricola e Garimpo. Em 2010 foram registrados 4 conflitos de seca.
A alquimia do governo Lula: como transformar
trabalhadores brasileiros em chineses 1

“Sentindo que a violência/ Não dobraria o operário/ Um


dia tentou o patrão/ Dobrá-lo de modo vário./ De sorte que
o foi levando/ Ao alto da construção/ E num momento de
tempo/ Mostrou-lhe toda a região/ E apontando-a ao ope-
rário/ Fez-lhe esta declaração:/ – Dar-te-ei todo esse poder/
E a sua satisfação/ Porque a mim me foi entregue/ E dou-o a
quem bem quiser./ Dou-te tempo de lazer/ Dou-te tempo de
mulher./ Portanto, tudo o que vês/ Será teu se me adorares/
E, ainda mais, se abandonares/ O que te faz dizer não./ Disse,
e fitou o operário/ Que olhava e refletia/ Mas o que via o
operário/ O patrão nunca veria./ O operário via as casas/ E
dentro das estruturas/ Via coisas, objetos/ Produtos, manu-
faturas./ Via tudo o que fazia/ O lucro do seu patrão/ E em
cada coisa que via/ Misteriosamente havia/ A marca de sua
mão./ E o operário disse: Não!/ – Loucura! – gritou o patrão/
Não vês o que te dou eu?/ – Mentira! – disse o operário/ Não
podes dar-me o que é meu.”
(Operário em construção, Vinícius de Morais)

O texto A crise do imperialismo é a crise da divisão internacional do tra-


balho levanta a tese de que “O imperialismo vive uma crise de qualidade e
profundidade novas, a crise de uma nova divisão internacional do trabalho”. 2
Esse mesmo texto sustenta que o processo de valorização do capital, a
taxa de lucro conveniente dentro da nova divisão internacional do trabalho,
encontrou o seu obstáculo. A crise é a impossibilidade de continuar valori-
zando o capital à mesma taxa de lucro, “à medida que a taxa de valorização
do capital global, a taxa de lucro, é o aguilhão da produção capitalista (assim
como a valorização do capital é sua única finalidade),…” (Marx, K. O Capital.
Volume IV. Livro Terceiro. Tomo 1. Nova Cultural. 1986, p. 183) 3.
E, ainda, afirma que a conjuntura na qual a crise vem se desenvolvendo ten-
de a “(…) agravar a luta de classes na maioria das formações econômico-sociais
que compõem o sistema imperialista, agravando a contradição antagônica
fundamental do capitalismo – a contradição burguesia/proletariado – porque
força o agravamento da luta da classe dominante para rebaixar o preço da
força de trabalho, tanto nos países imperialistas quanto nos países domi-
nados, para permitir, primeiro, as condições de valorização do capital em
todo o mundo; segundo, condições ao capital (a produção), nesses países,

1 Texto de maio de 2011.


2 Ver texto A crise do imperialismo é a crise da divisão internacional do trabalho.
3 Ver nota 2

301
de concorrer com o capital que se deslocou (a produção) para a Ásia ou
Europa Oriental – neste último caso, principalmente os países imperialistas da
Europa, etc. - e porque força o agravamento da luta da classe dominada para
resistir a este rebaixamento do valor da força de trabalho.” 4(negrito nosso).
Outro artigo aponta que “Com relação ao Brasil a crise vem aprofundando
a tendência à regressão a uma situação colonial de novo tipo, expressa em uma
inserção cada vez mais subordinada à nova divisão internacional do trabalho,
na desindustrialização, no crescimento econômico baseado na tendência à
especialização e expansão da produção de commodities, crescimento que
permite às classes dominantes propagandear o crescimento da economia e
tentar ocultar os efeitos da crise, o aumento da miséria e exploração da classe
operária e do povo, processo que ao aprofundar a integração subordinada do
Brasil à economia mundial o torna mais vulnerável às suas crises. 5”
Sejamos claros: o termo “inserção subordinada” refere-se naturalmente,
ao modo pelo qual se processa o parqueamento do Brasil à nova divisão
internacional do trabalho; não há a intenção de defender uma postura “menos
subordinada” do país, afinal de contas, seja qual for o papel desempenhado
por esta formação econômico-social enquanto constituinte do sistema
imperialista, será sempre baseado em relações capitalistas de exploração.
Dados recentes que corroboram a tese do aprofundamento da tendência
do Brasil à regressão a uma situação colonial de novo tipo são apresentados
no texto Caleidoscópio de erros ou o «dernier cri» da ideologia dominante 6.
A alquimia do governo Lula
Em seu pronunciamento à nação, televisionado em dezembro do último
ano, nosso ‘operário-presidente’ afirmou, em tom épico de despedida, que
seu grande mérito “foi o de haver semeado o sonho e a esperança”, e que
“hoje cada brasileiro e brasileira acredita mais no seu país e em si mesmo.”
Discurso de autoajuda e delírios ufanistas à parte, são os dados das
‘conquistas’ dos oito anos de mandato festejados por Lula que chamam
a atenção, entre eles a “pujança em obras e projetos que estão entre os
maiores do mundo e vão mudar o curso da nossa história.” Lula refere-se
às “(…) obras das hidrelétricas de Jirau, Santo Antônio e Belo Monte; às
refinarias de Pernambuco, Rio de Janeiro, Maranhão e Ceará (…);” (Sim, os
mesmos canteiros de obras nos quais os operários se revoltaram contra as
condições desumanas de trabalho, logo no início deste ano 7…), e gaba-se
“(d)os maiores investimentos mundiais no setor de petróleo, principalmente
a partir da descoberta do pré-sal” (leia-se: escancarar as portas para que
várias multinacionais venham explorar – sozinhas ou em consórcio com
empresas nativas – as riquezas brasileiras).

4 Ver nota 2
5 Ver texto A tarefa candente para os revolucionários em todo o mundo é a de transformar
a crise do imperialismo em revolução.
6 Ver texto Caleidoscópio de erros ou o «dernier cri» da ideologia dominante.
7 Greves de 80 mil param principais obras do PAC. Valor Econômico,
24/03/2011, p. A4 (disponível em: http://www.valor.com.br/arquivo/878937/
greves-de-80-mil-param-principais-obras-do-pac)

302
A partir do exemplo de Lenin, usando os “dados de conjunto das indiscu-
tíveis estatísticas burguesas” sobre emprego, massa salarial, produtividade
do trabalho, rendimentos médios, etc., pretendemos demonstrar que as tais
conquistas mencionadas por Lula expressam, na verdade, um aumento na
exploração da classe operária e do povo brasileiro, em particular nas últimas
duas décadas. Aumento esse que foi possível devido à falta de uma prática
correta do partido comunista, derivada de uma incompreensão do marxis-
mo, que concretamente significa a falta de organização da classe operária
em torno de sua teoria e do seu partido, e a certa ‘anestesia’ proporcionada
pela avalanche da ideologia dominante e pelo reformismo escancarado dos
sindicatos, centrais sindicais e da ‘nossa esquerda’ (ver Caleidoscópio de erros
ou o «dernier cri» da ideologia dominante).
A exploração da classe operária e dos demais trabalhadores é o funda-
mento da reprodução ampliada do capital na formação econômico-social
brasileira, como em qualquer sociedade capitalista, seja em períodos com
baixo crescimento econômico, como nos anos 1990, ou em períodos de
maiores índices de crescimento econômico, como nos anos 2000, em par-
ticular a partir de 2004. O aumento da exploração da classe operária e
dos trabalhadores está na determinação do processo de regressão da
formação econômico-social brasileira a uma situação colonial de novo
tipo sobredeterminado pela crise do imperialismo e a nova divisão in-
ternacional do trabalho, da qual o Brasil é parte constitutiva. As possi-
bilidades inusitadas de ampliação da exploração da classe operária e dos
trabalhadores, impulsionada de forma ativa pela classe dominante tendo a
frente o governo Lula, aprofundaram a inserção subordinada do Brasil no
imperialismo e da nova divisão internacional do trabalho.
O delirante discurso de despedida de Lula da Presidência da República
e afirmações como as de Stédile, de que no governo Lula “todas as classes
ganharam” 8 e da presidente Dilma, de que “nada vai conseguir deter a
marcha harmônica do Brasil”, que comemoram o aumento dos postos de
trabalho e dos salários, têm como função principal nublar a realidade do
brutal aumento da produtividade, fazer passar o senso comum como sendo
a realidade, desarmando a resistência dos trabalhadores.
Portanto, vamos aos fatos! Mais especificamente nos anos 2000, se
aprofundou a inserção cada vez mais subordinada do Brasil à economia
mundial e à nova divisão internacional do trabalho, que tem determinado
um dinamismo diferente de épocas anteriores (em particular as décadas
de 1980 e 90), expresso em maiores índices de crescimento econômico,
marcadamente a partir de 2004. Os dados apontam para o aumento da
exploração dos trabalhadores durante os dois mandatos do governo do
PT/PCdoB e quejandos, isso sob os aplausos da classe dominante nativa, do
imperialismo e de “nossa esquerda”.
8 “No governo Lula foi possível uma política econômica e social de compensação, em que
todas as classes ganharam. Ganhou mais o capital financeiro, mas ganharam a burguesia
industrial, a classe média, os trabalhadores e os mais pobres.” (Stédile, J.P., Os desafios do
governo Dilma, Caros Amigos 166, janeiro de 2011, p. 9, grifos nossos)

303
Aumento da produtividade: aumento da exploração dos
trabalhadores
O desenvolvimento capitalista com maiores taxas de crescimento eco-
nômico dos anos 2000 levou sindicalistas, sociólogos e economistas a come-
morar o aprofundamento da inserção subordinada do país no imperialismo
criando-se assim uma nova atmosfera de “milagre econômico”, várias vezes
celebrado por Lula e seus seguidores, chegando inclusive a fazer comparações
elogiosas aos períodos mais sombrios da ditadura militar 9.
O gráfico abaixo, elaborado pelo DIEESE 10 com dados oficiais do IBGE
e do MTE que abrange as décadas de 1990 e 2000, ilustra claramente a
ampliação da exploração do trabalho manifesto pelo aumento do índice de
produtividade e pelo rebaixamento do preço da força de trabalho (expresso
no índice do rendimento médio real dos ocupados).

Índice do rendimento médio real dos ocupados


na indústria e produtividade
(1989 a 2008) – Região metropolitana de São Paulo

200,00
180,00
160,00
140,00
120,00
100,00
80,00
60,00
40,00
20,00
00,00
1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

Rendimentos médios dos ocupados Produtividade


RMSP = Região Metropolitana de São Paulo
Fonte: IBGE e DIEESE/Seade, MTE/FAT e convênios regionais.
Retirado de “Mercado de trabalho Brasileiro: evolução recente e desafios” do DIEESE.

É fácil perceber o grande aumento de produtividade nos anos 1990, que


se intensifica nos anos 2000 a partir de 2004, exatamente os anos de maior
crescimento do PIB. Esse aumento da força produtiva do trabalho é um
indicador do aumento da exploração da classe operária e dos trabalhado-
res. Uma visão do aumento da produtividade na indústria de todo o país
9 Lula elogia governo Médici, 30/08/2002 (http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/
ult96u36910.shtml) e Embrapa e Itaipu levam Lula a elogiar Médici, 23/4/2008 (http://
oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2008/04/23/embrapa-itaipu-levam-lula-elogiar-
-medici-99114.asp).
10 DIEESE. Mercado de trabalho Brasileiro: evolução recente e desafios, 04/2010. O documento
pode ser acessado em: http://www.dieese.org.br/destaques.xml

304
encontra-se no documento do IEDI Produtividade na indústria no terceiro
trimestre de 2010, disponível do site desse órgão insuspeito de nutrir sim-
patia pela classe operária.
Para uma correta apreensão desse processo é importante lembrar que
desde Marx sabemos que a jornada de trabalho se divide em dois períodos:
a parte que o trabalhador trabalha para se reproduzir enquanto trabalhador
(trabalho pago, a parcela correspondente ao valor da força de trabalho que
se expressa em salários); e a parte que o trabalhador trabalha gratuitamente
para o capitalista (trabalho não pago, a mais-valia). Assim, é preciso situar a
discussão do aumento da produtividade do trabalho no âmbito da variação
de grandeza entre o preço da força de trabalho e a mais-valia, estudada por
Marx n’O Capital 11 As grandezas relativas do preço da força de trabalho e
da mais valia são condicionadas por três situações: a) extensão da jornada
de trabalho, b) o grau de intensidade do trabalho e, c) a força produtiva
do trabalho.
Para efeitos de análise neste texto nos interessa exclusivamente a relação
entre o preço da força de trabalho (expresso nos salários) e a mais-valia con-
siderando a variação na força produtiva do trabalho e mantendo inalteradas
a jornada de trabalho e a intensidade do trabalho 12. Sabe-se, também a partir
de Marx, que neste caso – isto é, quando são mantidas constantes a jornada
e a intensidade do trabalho – o valor da força de trabalho e a mais-valia
variam em sentido oposto, nenhuma das duas grandezas pode crescer sem
que a outra decresça. Mais especificamente; a variação da produtividade
11 Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro 1, Tomo 2. São Paulo: Abril
Cultural. 1984. Ver especialmente o Capítulo XV - Variação da grandeza do preço da força
de trabalho e da mais valia.
12 Tanto um aumento na extensão da jornada de trabalho (hora extra) como a elevação
na intensidade do trabalho promovem um aumento do produto-valor, ou seja, ambas
as situações fazem crescer a quantidade de unidades do produto e do valor total criado,
possibilitando também a variação em suas diferentes formas de combinação entre o
preço da força de trabalho e a mais-valia apropriada pelo capitalista. No Brasil, histo-
ricamente, o prolongamento da jornada de trabalho por meio da hora extra é um dos
mecanismos mais utilizados pelos capitalistas em períodos de crescimento econômico.
Mesmo após a redução da jornada de trabalho assegurada na Constituição de 1988, na
Região Metropolitana de São Paulo aproximadamente 40% dos trabalhadores assalariados
trabalham além da jornada semanal de 44 horas (DIEESE, 2009). Em alguns ramos como
na indústria metalúrgica e química, mais de 60% dos trabalhadores fazem hora extra.
Também é possível constatar que, nos últimos anos, a expansão econômica apoiou-se no
“Turno da hora extra”, como entusiasticamente registra o caderno de “Economia” da família
Marinho. Os baixos salários e a ameaça de demissão estão entre os principais constrangi-
mentos sobre a classe operária. Por exemplo, a título de ilustração: “Na Gerdau [unidade
de São José dos Campos que produz material para a construção civil] o trabalhador não
é convidado, mas intimado a fazer hora extra. O pessoal da unidade está trabalhando de
domingo a domingo” (A afirmação, segundo a reportagem, é de um sindicalista. O turno
da hora extra. O Globo, Caderno Economia, 25 de maio de 2010, p. 21. Reproduzido em
http://www.relacoesdotrabalho.com.br/profiles/blogs/no-o-globo-o-turno-da-hora). O
cálculo da produtividade estabelece uma relação entre a quantidade de mercadorias
produzidas (o valor da produção) em relação às horas trabalhadas, sendo possível excluir
os efeitos do aumento da jornada de trabalho no aumento da produtividade. Por outro
lado, não existem dados específicos para a intensidade do trabalho, em geral, a medida
de produtividade incorpora sem distinção as variações da intensidade do trabalho.

305
do trabalho atua na razão inversa ao valor da força de trabalho e na razão
direta a mais-valia. Assim, um aumento da força produtiva do trabalho (ou
da produtividade), segundo Marx, promove uma redução no valor da força
de trabalho e, consequentemente, a ampliação da mais-valia. Como ilustrado
pelo gráfico anterior, no período de 1989 a 2008, para a indústria na Região
Metropolitana de São Paulo (região de maior concentração industrial do país
e, relativamente às demais regiões, de maior grau de organização sindical
dos trabalhadores), a produtividade do trabalho aumentou 84%, e simulta-
neamente, houve queda acentuada de 37% do rendimento médio (real) dos
trabalhadores 13. Como esses dados referem-se à realidade e, portanto, não
se mantiveram constantes a jornada e a intensidade do trabalho, o aumento
da exploração da força de trabalho tende a ser ainda maior.
O aumento da força produtiva do trabalho faz cair o preço da força de
trabalho, mas esta queda não necessariamente significa redução absoluta
da quantidade de mercadorias adquiridas pelos trabalhadores que pode,
inclusive, aumentar. O valor da força de trabalho é determinado pelo valor
do quantum de mercadorias necessárias à sua reprodução enquanto tra-
balhador. O que muda com o aumento da força produtiva do trabalho é o
valor unitário das mercadorias que compõem os meios de subsistência do
trabalhador. Assim, um menor valor da força de trabalho (menor salário)
pode adquirir a mesma quantidade ou uma quantidade maior de mercado-
rias. Ou seja, o preço da força de trabalho cai ao crescer a força produtiva
do trabalho, e isto pode ocorrer com crescimento da quantidade (absoluta)
das mercadorias que compõem os meios de subsistência do trabalhador.
Este processo pode ser apresentado ou mesmo percebido como melhoria
das condições de vida do trabalhador pela aquisição de maior quantidade
de produtos e serviços, aos quais antes não se tinha acesso, fornecendo a
base material para ilusão da “nova classe média”, paraíso alçado pelo povo
brasileiro e apresentado por Lula como conquista e, paradoxalmente, por
Dilma como meta.
Mas, as coisas se modificam quando olhamos a redução do valor da
força de trabalho relativamente à mais-valia. Isto é, comparada à mais-valia,
o valor da força de trabalho decresce. E esse decréscimo representa uma
menor quantidade de mercadorias-valor adquirida pela força de trabalho
relativamente à mais-valia ou ao total de mercadorias-valor produzidas
pelos trabalhadores. Mesmo se, agora, o trabalhador adquire uma maior
quantidade absoluta de mercadorias-valor, esta maior quantidade é re-
lativamente menor frente ao total de mercadorias-valor produzidas, cuja
maior parte está representada na mais-valia e apropriada pelo capitalista.
Este processo representa o aumento da exploração do trabalho e amplia o
abismo entre as condições de vida da classe operária e dos trabalhadores
relativamente a dos capitalistas.
Diferentemente dos mitos decantados de que, agora, o crescimento
13 Pressão na linha de montagem. O Globo, Caderno Economia, 19 de abril de 2010,
p. 17. Reproduzido em: http://www.relacoesdotrabalho.com.br/profiles/blogs/
no-o-globo-pressao-na-linha-de

306
econômico ocorre com distribuição de renda e com diminuição da desi-
gualdade, o que o processo de desenvolvimento/crise capitalista promove
com a elevação da força produtiva do trabalho é o aumento da exploração
do trabalhador. O que fez a classe dominante comemorar, durante a última
década, o contínuo crescimento da rentabilidade das empresas de capital
aberto no Brasil que, em 2009, superou a rentabilidade das empresas nos
EUA 14. Quando se considera os lucros obtidos pelos capitalistas, esses sim,
são de magnitudes nunca antes vista na história desse país 15.
Nas duas últimas décadas, a redução do valor médio do salário (real) dos
trabalhadores foi uma tendência verificada também em outras principais
Regiões Metropolitanas do país (a exceção ficou por conta de Belo Horizonte),
como mostrado no gráfico que segue.

Rendimento médio real dos ocupados


Regiões metropolitanas e Distrito Federal · 1998-2010
2300
2100

1900

1700
R$ Janeiro de 2011

1500

1300

1100

900

700

500
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

Distrito Federal Porto Alegre Salvador


São Paulo Belo Horizonte Recife
Fonte: elaboração própria a partir dos dados do DIEESE,disponível em Pesquisa de Emprego e
Desemprego 16

Cabe ainda destacar que na principal região industrial do país, a Região


Metropolitana de São Paulo (RMSP), que inclui a Região do ABC, onde estão
localizadas as grandes montadoras de automóveis, ônibus e caminhões e

14 Rentabilidade é maior no Brasil que nos EUA. O Estado de São Paulo. Economia. 22 de
maio de 2010, p. B6.
15 O Globo, 02.04.11, p. 31, Lucro bilionário S/A – no ano passado, 59 empresas do Ibovespa
tiveram ganho de R$167 bi, alta de 32%. Quais os setores mais lucrativos? 1º mineração
(R$ 30,4 bi, alta de 196,4% na relação 2010/2009); 2º bancos (R$ 39,4 bi, 25,7%), 3º petróleo
e gás (R$ 35,7 bi, 7,6%). Ver também O Globo, 03.04.11, p. 32, coluna de Ancelmo Góis,
comentário sobre o “chamego dos empresários estrangeiros com o Brasil”: os US$33,8 bi
em remessas de lucro em 2010”.
16 DIEESE. Pesquisa de Emprego e Desemprego (disponível em http://www.dieese.org.br/
ped/bd/mercadotrab.xml).

307
grande parte das fábricas de autopeças, em todo o período do governo
Lula os salários foram contidos em níveis bem abaixo daqueles do final dos
anos 1990.
Os dados dos salários do alegado “novo ciclo de pleno emprego” no Brasil
corroboram o que afirmamos acerca do agravamento da luta da classe do-
minante para rebaixar o preço da força de trabalho, buscando transformar
trabalhadores brasileiros em chineses, necessidade determinada pela lei
do valor que impõe a concorrência entre os capitais, em uma luta de vida
e morte, no sistema imperialista para garantir a perequação das taxas de
lucro. Em O Capital, especificamente no capítulo dedicado às “leis gerais da
acumulação”, Marx demonstra como o ritmo da acumulação determina a
oferta de empregos no capitalismo. Também demonstra que a tendência do
avanço da acumulação de criar novas vagas no mercado de trabalho é atenu-
ada pelas modificações do processo produtivo (aumento da produtividade).
Portanto, o uso pleno da força de trabalho é apenas uma hipótese teórica
sem concretização histórica (Marx, K. O Capital. Volume II. Livro Primeiro.
Difel. 1982, cap. XXIII). Portanto, o “pleno emprego” faz parte dos seres
míticos burgueses ao lado da “concorrência perfeita”, do “crescimento
sustentável”, do “equilíbrio macroeconômico”, do “self-made man”, etc 17.
Em um país em que a metade da População Economicamente Ativa
(PEA) está submetida a formas de exploração distintas da CLT, convivendo
com diversas modalidades de vínculo e situações de trabalho, a exemplo
das ocupações irregulares 18, do trabalho temporário, das várias formas de
biscate, do trabalho a domicílio, trabalho análogo a condição de escravo, o
trabalho infantil, os trabalhos com baixíssima ou mesmo sem remuneração
mascarados como “estágios” ou “bolsa”, os trabalhadores mutilados (pelos
acidentes e doenças do trabalho) pelo capital, portanto, com a existência desta
gigantesca massa de trabalhadores funcionando como um verdadeiro exército
de reserva, falar em “pleno emprego” soa como escárnio da classe dominante.
Como toda ideologia, a do “pleno emprego” se baseia em algumas dimensões
da realidade sempre contraditória, isto é, faz alusão e promove uma ilusão
interessada das contradições do desenvolvimento capitalista subordinado
do Brasil, na era da crise do imperialismo e da nova divisão internacional do
trabalho, pela continuidade da acumulação crescente em alguns setores e
ramos produtivos sedentos pelo lucro/sangue dos operários. Os capitalistas,
como no curtume, ávidos por esfolar a pele da classe operária, clamam pela
constituição/ampliação de um exército de trabalhadores ativos e de reserva
– disciplinados e dóceis –, uma massa de trabalhadores flutuante pelos pólos
17 O “self-mande man” seria o capitalista que “vence na vida” a partir de seu trabalho duro,
honrado e honesto, por seus próprios meios, num hipotético mundo sem exploração.
Trata-se de uma versão moderna do mito da “acumulação primitiva” já denunciado
por Marx em O Capital, mas que de tempos em tempos é requentado, a exemplo do
Editorial “Alencar, guerreiro do Brasil”, publicado no site do PCdoB – exemplo cristalino
do agachamento de “nossa esquerda”, por ocasião da morte do ex-vice-presidente. Veja
a nota “A Morte do guerreiro da burguesia e as lágrimas da “esquerda” domesticada”, de
3/04/2011 no blog “Cem Flores…”.
18 Não se refere à ilegalidade, mas sim à regularidade.

308
dinâmicos de reprodução do capital para reduzir a pressão por aumentos
de salários e, assim, não interromper ou diminuir sua taxa de acumulação 19.
A expansão do emprego formal tem sido um dos principais elementos da
propaganda governamental juntamente com os programas assistencialistas.
O balanço do operário-presidente, ao louvar os milhões de empregos for-
mais criados, omite a manutenção da enorme rotatividade no trabalho, ou
seja, omite o grande movimento de admissão e demissão de trabalhadores
formais, como mostra a tabela a seguir.
Movimentação do Emprego
Brasil · 2000 a 2009
Ano Admissões Desligamentos Saldo
2000 9.668.132 9.010.536 657.596
2001 10.351.643 9.760.564 591.079
2002 9.812.379 9.049.965 762.414
2003 9.809.343 9.163.910 645.433
2004 11.296.496 9.773.220 1.523.276
2005 12.179.001 10.925.020 1.253.981
2006 12.831.149 11.602.463 1.228.686
2007 14.341.289 12.723.897 1.617.392
2008 16.659.331 15.207.127 1.452.204
2009 16.187.640 15.192.530 995.110
Fonte: MTE, CAGED. Elaboração: DIEESE. Retirado de Mercado de trabalho brasileiro: evolução
recente e desafios do DIEESE

Além disso, ao analisarmos o gráfico abaixo, podemos ver que o Brasil,

19 A construção civil é um dos setores em que se fala em “pleno emprego”. A questão não
se refere à falta de trabalhadores em geral, nem mesmo ao suposto “déficit de operários
qualificados”, mas a resistência dos trabalhadores para trabalhar de sol a sol com os baixos
salários e as precárias condições de trabalho, a forte pressão e os ritmos alucinantes de
trabalho nas grandes obras em andamento, expressas nas revoltas e greves operárias
na construção das Hidrelétricas de Jirau e São Antônio (RO), das obras do Complexo
de Suape (PE), do Complexo Portuário em Pecém (CE) e do Complexo de Porto de
Açu (RJ). “O salário baixo e a condição… precária de trabalho estão desestimulando os
jovens a procurarem emprego na construção civil. Segundo um estudo divulgado pela
Fundação Getulio Vargas, em parceria com a Votorantim Cimentos, a renda média
do trabalhador da construção civil foi de R$ 933,24 em 2009 (último dado disponível),
14,7% menos do que a renda dos ocupados de outros setores (R$ 1.094,27).” (O Globo,
FGV: há um apagão na construção civil, 05 de abril de 2011, em http://oglobo.globo.
com/economia/mat/2011/04/05/fgv-ha-um-apagao-na-construcao-civil-924169390.asp).
No mesmo sentido: “A escassez de mão-de-obra no setor, porém, levou a classe operária a
cobrar por melhores condições de trabalho e salário. ‘A situação é muito clara. Essa classe
de trabalhadores virou a moça mais bonita do baile e todos querem dançar com ela. O
problema é que ela sabe disso’, comenta Zaidan” (Eduardo Zaidan, diretor de economia
do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo-Sinduscon-SP),
na matéria Dilma quer saída para greves em obras do PAC, Valor Econômico. 24 de
março de 2011, reproduzido no endereço abaixo: http://www.ipea.gov.br/agencia/index.
php?option=com_content&view=article&id=7765.

309
com índices maiores que os de outros países, acompanhou a tendência
mundial de aumento da rotatividade do trabalho nas últimas décadas, a
julgar pelo crescimento do número de trabalhadores que foram demitidos
de seus empregos antes de chegarem aos três meses de contrato.

Empregados demitidos com até três meses de contrato em relação ao total


da ocupação (1996-2008), países selecionados
14

12

10

0
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Japão União Européia Estados Unidos Brasil

Fonte: OCDE, OIT, EUROSTAT, MTE. IPEA


Retirado de “Evolução recente da rotatividade no emprego formal no Brasil” do IPEA, 2009 20.

O que o gráfico acima mostra é que, no período de recuperação após a


crise de 2001, se reforçou a tendência de aumento da rotatividade do tra-
balho, que configura um dos mecanismos para redução salarial (demissão
de trabalhadores com salários maiores e admissão de trabalhadores com
menores salários). Assim, consegue-se maior número de empregados e, to-
das as demais condições constantes, maior produção, sem que se aumente
a massa de salários paga pelo capitalista, o capital variável. Portanto, todo
o diferencial do maior valor produzido é apropriado pelo capitalista como
mais-valia.
Como mostram os dados do saldo (admitidos menos demitidos) de vagas
formais segundo a faixa salarial, todo o saldo positivo de empregos entre
2000 e 2008 foi de empregos até 2 (dois) salários mínimos, enquanto
o saldo de vagas com salários maiores do que dois salários mínimos foi
negativo (o que significa dizer que no período houve mais demissões do
que admissões de trabalhadores para todas as faixas salariais acima de dois
salários mínimos), o que fica claro no gráfico abaixo.

20 IPEA. Evolução recente da rotatividade do emprego formal no Brasil. Setembro de


2009. Pode ser acessado no endereço: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/
PDFs/2009_nt03_setembro_presi.pdf

310
Saldo de vagas formais segundo faixa salarial – Brasil (2000 a 2008)

7,0
6,5
6,0
5,5
5,0
saldo de vagas (em milhões)

4,5
4,0
3,5
2,5
2,0
1,5
1,0
0,5
0,0
-0,5
até 0,5

0,51 a 1

1,01 a 1,5

1,51 a 2

2,01 a 3

3,01 a 4

4,01 a 5

5,01 a 7

7,01 a 10

10,01 a 15

15,01 a 20

maior que 20,01


-1,0

faixa salarial (salários mínimos)


Fonte: CAGED/TEM, 2010, elaborado a partir de “Evolução recente do emprego formal no Brasil:
2000-2008”

Essa correlação é apresentada pelo gráfico a seguir, que mostra para o


período de 1998 a 2009, a evolução da relação entre salário médio de tra-
balhadores admitidos e demitidos (que o vocabulário do setor de “Recursos
Humanos” ou “Gestão de Pessoas” das empresas, e assumido pelo DIEESE,
elegantemente, nomeia de “desligados”). O valor menor que 1 indica que o
salário médio dos trabalhadores admitidos foi, ao longo do período, sempre
menor do que o salário médio dos trabalhadores demitidos.

Evolução da relação entre salário médio de admitidos e demitidos


Brasil – 1998 a 2009
0,94
0,92
0,92 0,91

0,90
0,89 0,89 0,89
0,88 0,88
0,88
0,86
0,86
0,85 0,85 0,85
0,84
0,84

0,82

0,80

0,78
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Fonte: MTE, RAIS. Elaboração: DIEESE. 2008 e 2009 indicados = crise.


Retirado de “Mercado de trabalho Brasileiro: evolução recente e desafios” do DIEESE.
Redução e contenção dos salários nas principais Regiões Metropolitanas
do país, alta rotatividade do trabalho, criação de empregos de baixíssimos
salários e aumento da produtividade são as características do período
de crescimento econômico dos anos 2000. Outro ponto decantado pela
ideologia dominante é o aumento da massa salarial. A partir do próxi-
mo gráfico, que apresenta a variação da ocupação, da massa salarial e do
rendimento médio dos salários nas Regiões Metropolitanas entre 1999 e
2009, é possível constatar que o incremento da massa salarial está baseado
fundamentalmente na “geração dos milhões de empregos” de baixíssimos
salários. Como destacamos antes, não é o rendimento médio real (desconta-
da a inflação) do trabalhador que sustenta o crescimento da massa salarial.
Este rendimento médio real do trabalhador após o festejado “tsunami do
crescimento” ocorrido no período do governo Lula, apenas contou com uma
tímida recuperação, no essencial o incremento dos salários foi contido de
modo que se mantivessem em níveis bem abaixo de 1999.

Ocupação, rendimento médio real e massa salarial real


regiões metropolitanas 1999-2009

130
base: média 2000 = 100

120

110

100

90

80
70
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Rendimento médio real Massa de rendimento real Nível de ocupação


Fonte: DIEESE/Seade, MTE/FAT e convênios regionais. PED - Pesquisa de Emprego e Desemprego.
Retirado de “Mercado de trabalho brasileiro: evolução recente e desafios” do DIEESE.

Fora o proselitismo de crescimento capitalista com distribuição de ren-


da e redução da desigualdade, o que de fato o governo Lula organizou e
o governo Dilma dá continuidade, – como mostra a intervenção estatal
e dos sindicatos oficiais para conter a luta operária nas grandes obras em
andamento no país – foi a ofensiva da classe dominante e a desorganização
política da classe operária com objetivo de promover a contenção da luta
operária e dos trabalhadores por melhores salários e condições de trabalho,
justamente para viabilizar a acumulação de capital em período de cresci-
mento econômico. Esse foi, realmente, o “mérito” de Lula e de seus aliados.
Igualmente, frente aos recentes levantes e greves operárias, as iniciativas
conjuntas do governo Dilma, do sindicalismo amarelo e dos empresários
para “resolver os problemas” nas obras do PAC. Isto é, em bom português,
eliminar as ameaças à continuidade da acumulação de capital o que implica
desenvolver formas e mecanismos de exploração e dominação do capital

312
sobre a classe operária que compreende, simultaneamente, a constituição
de “comissões tripartites” 21; o emprego conjunto de um gigantesco aparato
repressivo desde a Polícia Civil, Militar e Rodoviária Federal na Usina e na
Região, passando pelos “seguranças” das empresas até o controle do aces-
so dos operários a obra pela Força Nacional de Segurança; a intervenção
da Justiça do Trabalho decretando a ilegalidade das greves e multas pela
continuidade do movimento grevista 22, as demissões sumárias, ameaças e
perseguição dos trabalhadores e dos ativistas 23.
Desenvolvimento da acumulação de capitais, portanto, da exploração
dos trabalhadores, que se dá na era da crise do imperialismo e da nova
divisão internacional do trabalho, que aprofundou o parqueamento do
país no sistema mundial do imperialismo, caracterizado pelo crescimento
da produção de commodities para exportação, pela reconfiguração da
estrutura industrial e por se tornar palco importante da valorização
financeira/fictícia de capitais.
Pode haver igualdade entre explorador e explorado?
O que expusemos anteriormente comprova a impossibilidade científica,
ou melhor, o conteúdo ideológico do lema do governo Lula, Brasil, um país
de todos, ou como pelos quatro cantos é reproduzido por nossa “esquerda”:
“todas as classes ganharam 24”. Como não poderia deixar de ser, é expressão
da ideologia dominante na modalidade pequeno-burguesa para desorganizar,
minar, sabotar a posição política e a organização própria da classe operária
e das classes dominadas na luta contra as classes dominantes. Ora vejamos,
se os capitalistas ganharam é por que aumentou a exploração sobre a classe
trabalhadora, logo, não podemos nos deixar enrolar por mais esta lenda da
ideologia burguesa, e devemos dizer como o Operário em Construção: Não!
Se eles ganharam é por que mais nos exploraram, mais nos expropriaram.

21 Com a informação de que “o governo montará comissões tripartites (governo, empresas


e sindicatos) em todas as grandes obras do PAC” (O Estado de São Paulo, Pressão para
antecipar Jirau causou revolta, 30 de março de 2011. Disponível em: http://www.estadao.
com.br/estadaodehoje/20110330/not_imp699131,0.php), o comentário de alguns colunistas
dá a entender que seriam dois (governo e sindicatos) contra um (empresários), quando
são três (governo, sindicatos e empresários) contra os operários e trabalhadores.
22 O Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região decretou a ilegalidade da greve dos 34 mil
trabalhadores do Complexo de Suape, em Ipojuca – PE e fixou multa de R$ 5.000 por dia
em caso de manutenção da paralisação (Folha de São Paulo, Greve no complexo de Suape
(PE) chega ao fim, 31 de março de 2011. Ver matéria disponível no endereço a seguir: http://
www1.folha.uol.com.br/mercado/896048-greve-no-complexo-de-suape-pe-chega-ao-fim.
shtml).
23 As palavras de Victor Paranhos, presidente do consórcio administrador da Usina de Jirau,
falam por si mesmo: “Não dá para voltar sem antes descobrir quem é o cabeça. Isso é o
que diz a Camargo Corrêa”. E prossegue com referência as negociações mantidas com os
sindicatos: “Ou mata isso pela raiz ou não adianta negociar salários se tem alguém que não
tem compromissos.” (Valor Econômico, Camargo só retoma obra após punição de vândalos,
23 de março de 2011, http://www.valor.com.br/arquivo/878569/camargo-so-retoma-obra-
-apos-punicao-de-vandalos). Ver também: Elio Gaspari, Demissão de 4 mil operários em
Jirau. O ocaso do sindicalismo emergente O Globo, 20 de abril de 2011 (Reproduzido em:
http://www.provedor.nuca.ie.ufrj.br/eletrobras/estudos/gaspari10.pdf).
24 Ver nota 7.

313
Assim como a alquimia não é uma ciência, e não é possível transmutar
metais em ouro, a análise materialista das estatísticas burguesas, oficiais,
mostra que não é possível que todos ganhem. Como exaustivamente de-
monstrado por Marx, Engels, Lenin, Mao e todos os marxistas, são as con-
tradições da sociedade burguesa que determinam em última instância os
rumos das formações econômico-sociais. Na fase imperialista do capitalismo,
essas contradições assumem contornos dramáticos: socialismo ou barbárie.
Não será preciso listar aqui os exemplos da barbárie imperialista contra os
povos 25. Ou a classe operária avança no sentido de se organizar em torno de
sua ciência, o marxismo, em torno da construção de seu verdadeiro Partido
Comunista, ou a barbárie imperialista continuará sua trajetória de exploração,
morte, sofrimento e destruição. Proletários de todos os países, uni-vos!

25 O passeio de fim-de-semana da família Obama ao Brasil, em março deste ano, foi uma
demonstração didática da impossibilidade de igualdade entre explorados e exploradores:
diante do agachamento das “lideranças locais”, que mais pareciam bobos da corte, des-
lumbrados pela ‘sua real presença’ e ávidos por ‘boas oportunidades de negócios’, Obama
anunciou a invasão da Líbia (veja o texto A agressão à Líbia expressa o agravamento da
crise do imperialismo publicado em 22/03/2011 no blog “Cem Flores…”), decisão que já
havia sido tomada. Evidentemente, sem consulta ou aviso prévio aos anfitriões. Sem
constrangimentos! Uma pequena nota publicada no Valor Econômico de 21.03.11 (p. A3)
dá algumas pistas sobre a ‘relação entre iguais’ idealizada pelo governo Dilma: no sábado
bem cedo, meia hora antes de o avião Air Force One pousar em Brasília com a comitiva
presidencial, a Casa Branca soltou um depoimento previamente gravado por Obama em
que ele afirma que a principal razão de sua viagem “é fortalecer parcerias no exterior para
criar bons empregos em casa”. Ainda segundo a nota, alguns dias antes, para platéia de
jornalistas, Michael Froman, importante assessor de Obama, afirmara que “essa viagem
é fundamentalmente sobre a recuperação americana, exportações americanas”, pois “em
2010, as exportações ao Brasil sustentaram mais do que 250 mil empregos americanos”, e
“hoje, o Brasil importa mais bens dos EUA do que qualquer outro país.” Yes, we can! Sem
constrangimentos!

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Que cem flores desabrochem!
Que cem escolas rivalizem!

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