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Capitalismo em curto-circuito?
Gemma Cairó-i-Cespedes
Cónferencista, Departament de Pólítica Ecónómica i Estructura Ecónómica
Mundial, Universitat de Barcelóna, Barcelóna, Catalónia, Espanha
David Castells-Quintana
Departament d’Ecónómia Aplicada, Universitat Autónóma
de Barcelóna, Barcelóna, Spain
AQR-IREA, Universitat de Barcelóna, Barcelóna, Espanha
1. Introdução
Vivemos hoje uma situação sem precedentes na história humana. Nunca
antes ouve tantos de nós (a Terra agora ultrapassa os 7 bilhões de habitantes) e
nunca antes produzimos e consumimos tanto (PIB médio mundial per capita
aumentou constantemente até 2008). Ademais, usufruímos a mais avançada
tecnologia e estamos mais interconectados do que jamais estivemos. Mas
também estamos experimentando atualmente uma das maiores crises dos
tempos modernos. A atual crise econômica e financeira reduziu a produção e o
comércio, destruiu milhões de empregos em todo o mundo, intensificou as
disparidades tanto internas quanto entre países, exacerbou conflitos e violência,
e intensificou a exploração de recursos naturais. Mas essa crise vai além de uma
desaceleração econômica. Neste artigo, argumentamos que estamos
experimentando uma crise sistêmica de múltiplas dimensões, isto é, uma crise
econômica, humana, ecológica e político-social; refletida em desafios globais de
intensidade, magnitude e alcance sem precedentes, e com raízes na própria
dinâmica do sistema econômico capitalista, que agora se tornou claramente
insustentável.
Nós analisamos várias “crises” globais de uma perspectiva sistêmica,
externa, holística e integral. Nosso objetivo é demonstrar em que extensão essas
crises são interconectadas e que podem ser consideradas como dimensões
sobrepostas de uma mesma crise sistêmica. Primeiramente analisaremos as
principais dinâmicas por trás do processo de acúmulo de capital e crescimento
econômico, de modo a revelar como contradições internas _ sociais e naturais _
que impulsionam o processo de geração de excedentes levam a crise recorrente
nas economias capitalistas. Em seguida, analisaremos vários indicadores para
acompanhar a evolução paralela das diferentes perturbações consideradas e
para analisar potenciais interconexões entre elas. Analisaremos diferentes
dimensões da crise sistêmica, trabalhando com indicadores políticos, ecológicos
e socioeconômicos a partir de uma perspectiva geral, em vez de considerar cada
uma isoladamente, como habitualmente tem sido feito. O objetivo deste artigo é
avançar na busca de conexões teóricas e empíricas de todas essas crises
sobrepostas. A nossa análise sugere como as dinâmicas recentes refletem, de
fato, perturbações sistêmicas mais profundamente interligadas, reforçando-se
mutuamente e retratando dimensões de uma grande crise sistêmica do
capitalismo como a força motriz das atuais disfunções socioeconômicas,
ambientais e sociopolíticas. As crescentes desigualdades parecem não só
desempenhar um papel importante na evolução da atual crise econômica, mas
também estão por detrás da evolução de outras disfunções sistêmicas e da sua
interconectividade. Finalmente, discutimos a impossibilidade manifesta do
capitalismo de suprir as necessidades humanas em todo o mundo, não apenas
em termos de bem-estar material, mas também em termos de satisfação
subjetiva.
Este artigo está organizado da seguinte forma: a Seção II enquadra
teoricamente a existência de uma crise sistêmica de natureza multidimensional.
A Secção III centra-se na descrição das diferentes dimensões desta crise
sistémica, traçando indicadores-chave para cada dimensão. A Seção IV analisa
as interconexões entre essas dimensões e as causas sistêmicas comuns. A
Secção V conclui o artigo e discute as implicações políticas da nossa análise.
Aumento da Desigualdade
Na verdade, como sugerido anteriormente, o aumento das desigualdades
pode ser um dos principais impulsionadores da atual e interconectada crise
econômica e financeira. O aumento das desigualdades pode estar associado ao
crescimento nas fases iniciais do desenvolvimento, uma vez que a distribuição
da renda não se deteriora muito, permitindo a concentração dos recursos
necessários ao desenvolvimento econômico (Castells-Quintana e Royuela,
2014). No entanto, o aumento das desigualdades também pode perpetuar-se
como consequência da própria dinâmica do sistema econômico atual. De fato,
durante os últimos dois séculos, a distribuição do rendimento entre as nações e
entre as populações dentro delas deteriorou-se conclusivamente até 1980
(Bourguignon e Morisson, 2002).
De 1980 a 2000, esta tendência foi
compensada basicamente pela
significativa recuperação de
países grandes e pobres como a
China e a Índia. Mas a questão
que se sobressai é a maior
importância da desigualdade Figura 5 Desigualdade intra-país,
dentro das nações nas últimas 1970–2000
décadas, e isto tem acontecido tanto nos países desenvolvidos como nos países
em desenvolvimento (Figura 5). Na verdade, como mostra a Figura 6,
combinando a desigualdade entre e dentro das nações estima-se que a
desigualdade a nível global continuou a crescer após 1980, sendo o coeficiente
de Gini estimado próximo de 0,7 em 2008 (Milanovic, 2012).25 Como destaca
Rodgers (2011), a
desigualdade continua a ser a
preocupação mais importante
do nosso tempo e deveria ser
uma questão de preocupação
urgente (Wade, 2011). Além
disso, uma característica
crítica das desigualdades
Figura 6 Desigualdade Glóbal, 1988–2005 atuais é a parcela
Fónte: A Figura 6 e baseada em Milanóvic (2012). Desigualdade
glóbal representa a desigualdade entre ós cidadaós dó mundó.
desproporcional de renda e
riqueza que flui para os poucos mais ricos. Em vários países (como os EUA), a
parcela do rendimento dos 0,1% mais ricos – incluindo ganhos de capital –
atingiu o seu nível mais elevado em 2007, ultrapassando mesmo os níveis de
1929 (Banco de Dados das Principais Receitas Mundiais).
A crescente relevância da desigualdade dentro dos países tem nos levado
de volta ao mundo marxista de lutas de classes em que o capitalismo se torna
instável. “A desigualdade social produz instabilidade, recessão e depressão… a
desigualdade não é apenas antiética, mas também é economicamente
desastrosa” (Peet, 2011). Com efeito, as atuais desigualdades crescentes
representam um fator de perpetuação da crise; por um lado, podem estar
associadas a um maior desemprego e a um menor crescimento econômico a
longo prazo (Castells-Quintana e Royuela, 2012), por outro o fato da renda e da
riqueza tenderem a concentrar-se desproporcionalmente em poucas mãos
implica grave acúmulo de poder e restrições políticas à mudança (Kumhof e
Ranciere, 2010). Por fim, a desigualdade também representa importante
mecanismo de transmissão que liga a crise econômica a outras dimensões da
crise sistêmica num processo de auto-reforço.26 Em particular, como
demonstraremos, o aumento da desigualdade está associado às dimensões de
desenvolvimento humano, ambiental e sociopolítico da crise sistêmica, também
nos ajudando a compreendê-las.
Fome
O ano de 2015 foi a data prevista para o alcance dos Objetivos de
Desenvolvimento do Milénio (ODM). O primeiro grande objetivo era erradicar a
pobreza extrema e a fome. O sucesso tem sido limitado e com grandes
diferenças geograficamente (ver Monitor dos ODM). Em 2005, estimou-se que
1,4 bilhões de pessoas ainda viviam com menos de 1,25 dólares por dia (o que
é considerado o limiar da renda de pobreza extrema internacional), sendo
incapazes de satisfazer suas necessidades alimentares mínimas. A Figura 7
mostra a evolução da população total, da população subnutrida e da produção
alimentar (todas estimativas mundiais). Como pode ser visto, a produção de
alimentos até a década de 1990 estava associada a uma diminuição significativa
da população total de pessoas subnutridas em todo o mundo. Desde a década
de 1990, a produção alimentar disparou – ultrapassando o crescimento
populacional total – mas o número de pessoas subnutridas já não diminui: com
uma taxa inaceitável de 925 milhões de pessoas sofrendo de fome crônica em
2010, 100 milhões a mais do que em 1990 (estimativas da FAO - Organização
das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). Para agravar ainda mais
este problema, o preço dos alimentos aumentou acentuadamente desde o início
dos anos 2000.27 Em particular dispararam entre 2007 e 2008 – quando eclodiu
a crise econômica – e voltaram a fazê-lo desde 2010.28 Estima-se que o aumento
dos preços dos alimentos e a atual “Grande Recessão” global levaram mais 64
milhões de pessoas a caírem na pobreza extrema e na fome só em 2010 (ver
3 Crise Ecológica
Paralelamente às crises econômica e humana, enfrentamos uma crise
ambiental global e crítica. Já é bem anuído que a atividade humana está levando
o sistema Terra para fora do seu estado ambiental estável, com consequências
potencialmente catastróficas. Tal como acontece com as outras, a crise ecológica
está ligada de forma reforçadora com os outros desequilíbrios sistêmicos, sendo
também intrínseca ao desenvolvimento capitalista baseado na acumulação de
capital. A crise é o resultado de mais de um século de desenvolvimento industrial
no mundo, que depende de fontes de energia baseadas no carbono, situando
nosso contexto numa nova era, o Antropoceno, em que as atividades humanas
tem sido o principal motor da mudança ambiental global (Rockström e outros,
2009). É intrínseco ao capitalismo, à medida que pode ser definido numa rede
de estruturas econômicas, políticas e sociais, causar uma profunda ruptura na
relação metabólica entre os seres humanos e o metabolismo da natureza que é
a base da própria vida (Foster, 1999; Foster et al., 2010; Howard, 2012). Esta
ruptura inclui uma perturbação dos processos e ciclos naturais, bem como a
acumulação de resíduos e a degradação ambiental. Assim, segundo Clark e York
(2005), a degradação sistêmica da biosfera reflete como o capitalismo consome
tudo para sobreviver, até mesmo os recursos naturais que sustentam o próprio
sistema.
A rápida acumulação de riqueza tem sido possível graças à apropriação e
extração maciça e desigual de recursos naturais, estabelecendo as bases para
a destruição ambiental global e a desigualdade mundial (Simms, 2009). Como
consequência, enfrentamos um dilema entre sustentabilidade e crescimento
econômico; o sistema é caracterizado por um crescimento econômico
exponencial insustentável (Martenson, 2011) e pela superprodução em meio de
necessidades sociais não atendidas – com a luta de bilhões de pessoas para se
beneficiarem do desenvolvimento econômico aumentando a pressão sobre a
base de recursos do planeta (Tabb, 2008).
De fato, a crise ecológica tornou-se notadamente crítica. Vivemos uma
“crise tripla” de finanças, energia e meio ambiente. Não obstante, os caminhos
oferecidos para a recuperação negligenciaram ou marginalizaram as questões
ecológicas (Jessop, 2012) – e as preocupações ambientais estiveram, em geral,
fora da maioria das análises econômicas, até recentemente.29 É bastante
preocupante que a tendência de longo prazo do aquecimento global tenha
acelerado dramaticamente nos últimos anos, apesar avanços tecnológicos e
apesar da estagnação da produção devido à atual crise econômica. Por um lado,
as condições estruturais do atual sistema econômico limitam os benefícios
ecológicos do desenvolvimento tecnológico; o paradoxo de Jevons prevê que
uma maior eficiência na utilização de recursos conduz frequentemente a um
maior consumo destes. Éramos, de fato, substancialmente mais eficientes na
produção de bem-estar sustentável em 1969 do que em 2005. 30 Por outro lado,
as transformações associadas à crise econômica aceleraram este processo; as
emissões de carbono em 2010 registaram o maior salto jamais registado.31 Em
primeiro lugar, os principais motores do crescimento econômico mundial
atualmente são países como a China, que são muito menos eficientes em termos
energéticos do que os países desenvolvidos e dependem mais fortemente dos
combustíveis fósseis (e, como referido acima, qualquer aumento da sua
eficiência energética traduzir-se-á muito provavelmente numa utilização mais
intensiva de combustíveis fósseis, aumentando dramaticamente as emissões
totais de CO2). Em segundo lugar e pelo menos a curto prazo, a crise econômica
pode estar restringindo alguns mecanismos não intencionais através dos quais
estávamos combatendo o aquecimento global.32 Finalmente, a crise econômica
e as suas consequências sociais arrefeceram a tímida preocupação e vontade
política crescente em favor da conservação ambiental (Lovelock, 2006).
Rockström et al. (2009) identificaram até nove fronteiras planetárias que
definem o espaço operacional seguro para a humanidade. 33 À semelhança das
diferentes dimensões da crise sistêmica analisadas neste trabalho, as fronteiras
planetárias não são independentes, mas interagem entre si, em particular,
existem atualmente três fronteiras planetárias que já foram transgredidas: (i)
aquecimento global acelerado (associado à acidificação dos oceanos, à subida
dos níveis costeiros e às alterações no campo magnético da Terra); (ii) o ritmo
dramático da perda de biodiversidade e de ecossistemas naturais; e (iii) a
interferência nos ciclos de nitrogênio e fósforo da Terra.34
Pegada ecológica
Uma forma simples e sintetizada de avaliar o nosso impacto ambiental e a
nossa situação de crise ecológica é olhar para a nossa pegada ecológica. A
Figura 8 mostra como, nas últimas décadas, essa pegada ecológica tem
ultrapassado constantemente a
capacidade de recuperação do
nosso planeta; estamos a
acumular um crescente “débito
ecológico” com o planeta. E essa
dívida também tem pelo menos
três perspectivas diferentes
associadas às desigualdades
globais: (i) uma perspectiva
intergeracional, uma vez que a
maior parte do atual fardo
Figura 8 Pegada ecólógica da humanidade e
ambiental se deve ao biócapacidade, 1961–2007
Fónte: Rede Glóbal da Pegada (2010).
desenvolvimento econômico
desigual do passado; (ii) uma situação intrageracional de uso – e abuso – ainda
desigual dos recursos naturais, onde aqueles que causam menor deterioração
ambiental são ao mesmo tempo aqueles que mais sofrem com ela (ver, por
exemplo, Martinez-Alier, 1997; Sutcliffe, 1997); e (iii) relacionada com o
comércio, uma vez que as exportações do Sul global para o Norte global têm um
valor mais elevado em termos de capital natural não capturado no preço de
mercado, do que as exportações do Norte para o Sul. Em suma, o nosso impacto
no planeta é cada vez maior e, em muitos aspectos, difícil de reverter e altamente
preocupante; somos mais e consumimos mais. À medida que enfrentamos o
colapso econômico e financeiro (ver Secção 1), bem como a privação humana
(ver Secção 2), também enfrentamos a “falência ambiental” – usando a
expressão de Simms (2009).
4 Crise Sociopolítica
V Considerações Finais
Neste artigo, argumentamos que a atual crise capitalista é sistêmica e
enraizada na dinâmica da acumulação de capital. Apoiamos nosso argumento
em bases teóricas, bem como na análise de dados recentes de uma vasta gama
de indicadores. Como demonstramos, as contradições sociais e naturais do
sistema manifestam-se hoje em termos de desenvolvimento desigual,
degradação ecológica e agitação social. No entanto, o carácter sistêmico da crise
atual refere-se não apenas a diferentes crises convergentes, mas também ao
contexto global onde estas crises ocorrem. Nunca as ligações entre países e
classes em todo o mundo atingiram o nível de interdependência que
demonstramos estar ocorrendo. Embora a crise atual possa ser considerada
como outra crise cíclica do capitalismo, no sentido de que foi alimentada pela
globalização neoliberal, é notável que o neoliberalismo tem sido apenas a “fé”
ideológica em que o capitalismo global se baseia para cumprir o seu processo
de acumulação de capital e perpetuar seu domínio sobre tantas esferas
entrelaçadas.
No que diz respeito à aproximação metodológica da análise dos fenômenos
globais correntes, e seguindo uma abordagem holística para o estudo da crise
sistêmica, de maneira clara tem emergido limitações ainda existentes na análise
econômica para compreender plenamente uma crise multidimensional (e a sua
incapacidade de enfrentar os seus consequentes impactos irreversíveis). Nessa
linha, duas deficiências podem ser destacadas. Em primeiro lugar, existe uma
“medição da perversidade”, que se relaciona com a armadilha econômica
recorrente de dar valor apenas ao que pode ser mensurado, sem ter em conta a
não-mensurabilidade do bem-estar humano ou a perda irrecuperável do
ambiente natural. O “nacionalismo conservador”, refletido na crescente
dissonância entre os desafios globais e as mentalidades nacionais e que tem
tornado difícil lidar com uma crise sistêmica através da aplicação de ferramentas
e vontades políticas atualizadas, concebidas para funcionar a níveis nacionais.
A crise, como expressão das deficiências e contradições do sistema atual, dá-
nos a oportunidade de enfrentar todos estes desafios, pois representam uma
situação crítica de rompimento e descontinuidade.
Em termos de implicações políticas, a nossa análise mostra que as
respostas à atual recessão não têm em conta o seu carácter sistêmico e
multidimensional. Os resgates e outras receitas da recuperação, como medidas
de austeridade, visam superar a crise tentando restaurar as taxas de crescimento
anteriores, o que apenas aprofunda a dinâmica capitalista que é precisamente a
raiz dela. Como Brenner et al. (2012) salientaram recentemente, esta estratégia
representa um regresso a uma nova forma de neoliberalismo como estratégia
contra-ofensiva. Na verdade, as estratégias de recuperação baseadas
principalmente em medidas de austeridade conduzem a um círculo vicioso que,
ao reconstruir a base capitalista de acumulação, também aumenta o
empobrecimento dos trabalhadores e reduz o bem-estar social. Estas estratégias
representam a própria lógica do capitalismo para resolver crises recorrentes. Se
enfrentarmos de facto uma crise sistêmica multidimensional, qualquer política de
recuperação, bem como qualquer alternativa de mudança, deverá assumir uma
perspectiva mais ampla e integrada, considerando a dinâmica econômica, bem
como a dinâmica humana, ambiental e sociopolítica e as interligações entre
estas dimensões. Assim, reconhecendo o carácter sistêmico e multidimensional
da crise, enfatizamos a necessidade de respostas integrais tanto a nível nacional
como internacional, com necessidade de coordenação e cooperação globais
(mas também com um enfoque local, uma vez que a maioria dos problemas
atuais se manifestam mais claramente a nível local).
De uma perspectiva estrutural, algumas intervenções econômicas parecem
fundamentais: uma correção dos atuais desequilíbrios globais na poupança e no
consumo e uma regulação reforçada das finanças globais, a fim de religar a
liquidez ao investimento produtivo. Mas abordar apenas a crise econômica sem
prestar atenção a outros desequilíbrios globais continuará a revelar-se um
fracasso a longo prazo. Para começar, qualquer concepção de política deve
minorar as desigualdades e as dramáticas consequências sociais da crise. A
redução das desigualdades surge não apenas como um objetivo fundamental
em si e um instrumento fundamental para enfrentar a atual crise econômica, mas
também para abordar todos os diferentes desequilíbrios inerentes ao sistema e
analisados neste artigo, incluindo os humanos, ecológicos e sociopolíticos. A
redistribuição intrageracional é essencial para abordar simultaneamente a
pobreza e a deterioração ambiental e, portanto, representa também a
redistribuição intergeracional (desta geração para as gerações futuras). Da
mesma forma, a redistribuição também é crucial para enfrentar a tensão social e
o conflito político. Na verdade, a viabilidade de qualquer estratégia alternativa
bem-sucedida depende de uma equilibrada distribuição da riqueza e do poder a
ela associado.
De forma mais ampla, a concepção de caminhos alternativos para a
situação vigente deveria constatar a atual incapacidade do sistema econômico
capitalista de assegurar a sua principal função que é a da reprodução social.
Argumentamos que a atual crise sistêmica está enraizada na dinâmica interna
da acumulação de capital, que por sua vez gerou, de forma paralela, diferentes
perturbações reforçadoras. Assim, a primeira questão é, portanto, técnica no
sentido de como enfrentar e contestar eficazmente a lógica (contraditória) de
acumulação que conduz ao problema da absorção de excedentes. Isto é, não só
precisamos de nos apropriar e distribuir os excedentes produzidos pelos
trabalhadores de uma forma coletiva e democrática, mas também precisamos
descobrir como a socialização deste excedente pode ser realizada de forma
produtiva e lucrativa. Isto leva-nos a reconsiderar a questão humana, ou seja, a
perguntar-nos que tipo de sociedade almejamos, incluindo uma mudança de
valores e crenças para construir um desenvolvimento humano sustentável.
Também nos leva a pensar sobre como abordar a engenharia política capaz de
articular a mudança social. Desta forma, mais pesquisas e discussões são
claramente necessárias.
Notas
1. como o apelo de Amin (1974) para a necessidade de “preparar o terreno para a ciência social
universal”.
4. Isto porque, apesar da diminuição das taxas de retorno e de crescimento, o sistema capitalista
tem sido capaz de aumentar a taxa de investimento em ativos fixos devido a (i) nova base
tecnológica (aliviando custos de tecnologia mais baixos); (ii) exclusão de grande massa de
trabalhadores e deterioração da capacidade de criação de emprego; e (iii) aumento da
concorrência devido à globalização (Caputo et al., 2001).
5. Nas palavras de Mèszáros (2006), uma crise que afeta “a totalidade de um complexo social”.
8. Teorias desenvolvidas por autores como Amin, Gunder Frank, Wallernstein, Dos Santos e
Sunkel, entre outros. Alguns autores (Gore, 2000; Pieterse, 1996) destacaram a necessidade de
reconceitualizar as atuais teorias de desenvolvimento devido à globalização e ao capitalismo
neoliberal que a acompanha; transpondo assim um paradigma alternativo.
10. Como salienta Sen (1987), “embora o ataque de Marx ao “fetichismo da mercadoria” tenha
sido feito num contexto bastante diferente, esse ataque é também profundamente relevante para
o conceito de padrão de vida”.
11. Após o período pós-guerra, uma taxa ou retorno baixo implica não só que a economia mundial
registrou dinâmicas mais cíclicas, mas também que estas foram mais pronunciadas.
12. Harvey (2010) referiu-se a esta aliança como o “nexo das finanças públicas”.
13. Alguns autores observam que não é apenas o papel crescente do financiamento que importa,
mas também o tipo de financiamento. A especulação de curto prazo é, em última análise, a
consequência da falta de inovação e da escassez de revoluções tecnológicas, que levam a uma
falta generalizada de oportunidades de investimento a longo prazo (ver, por exemplo, Perez,
2009).
14. De fato, já foi destacada uma evolução conjunta da desigualdade de rendas, por um lado, e
das taxas da dívida doméstica pela relação de renda, por outro (Kumhof e Ranciere, 2010).
15. Love e Mattern (2011) analisam as causas, consequências e respostas da Grande Recessão.
16. Como explicam Lim Mah-Hui e Hoe Ee (2011), os desequilíbrios globais na poupança estão
associados a desequilíbrios globais nas contas correntes, com países como a China a
compensar o seu excesso de capacidade através de um grande excedente comercial e a reciclar
as poupanças para as economias desenvolvidas, e países desenvolvidos como os EUA
compensam com o consumo excessivo, resultando em bolhas de ativos. Além disso, o aumento
das desigualdades, a instabilidade financeira e a crise levaram à estagnação da procura
agregada, o que explica o problema do excesso de capacidade, da superacumulação e do
excesso de oferta.
17. Como salienta Bresser-Pereira (2010), o processo de financeirização criou uma riqueza
artificial que ganha controle sobre o excedente social.
18. As taxas salariais reais dos grupos de renda média em grande parte do mundo estagnaram
ou diminuíram em relação aos que auferem rendimentos mais elevados nos seus respectivos
países (Vandermoortele, 2009), o que tem sido rotulado como “polarização do emprego”.
19. A metáfora de Varoufakis (2011) da economia dos EUA como o Minotauro Global analisa este
desequilíbrio externo como um mecanismo de reciclagem de excedentes.
23. O emprego informal (como percentagem do emprego não agrícola) relatado recentemente
pela OIT para alguns países em desenvolvimento continua elevado, mesmo para os emergentes
(2009): Índia (83,6%), Equador (60,9%), México (53,7% ), Egito (51,2%), Brasil (42,2%), Tailândia
(42,3%), China (32,6%) (OIT, 2012).
24. O peso dos trabalhadores assalariados (em percentagem do total de empregados) na Índia
(15%, 2005), Indonésia (34%, 2009), Tailândia (45%, 2009) e Marrocos (44%, 2009). 2009) está
longe do dos países da OCDE como os EUA (93%, 2008) (KILM, base de dados da OIT).
25. Milonovic (2010) explica três conceitos de desigualdade: (1) entre nações, (2) entre nações
ponderadas pela população e (3) entre indivíduos relativamente ao local onde vivem (isto é, tendo
em conta também a desigualdade dentro das nações). Embora a desigualdade no âmbito do
conceito 2 tenha diminuído desde 1980, a desigualdade nos conceitos 1 e 3 cresceu entre 1980
e 2000.
26. Tal como afirma o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2005, os “efeitos adversos
da desigualdade de oportunidades e do poder político no desenvolvimento são ainda mais
prejudiciais porque as desigualdades econômicas, políticas e sociais tendem a reproduzir-se ao
longo do tempo e através das gerações”.
28. O boom dos preços dos alimentos não pode ser dissociado da especulação financeira (Clapp
e Helleiner, 2012).
29. Douai et al. (2012) enquadram brevemente a literatura predominante sobre economia do
ambiente e da sustentabilidade, os recentes desenvolvimentos teóricos de diferentes escolas e
as atuais linhas de investigação, especialmente a partir de uma perspectiva heterodoxa (ver
Edição Especial do Cambridge Journal of Economics 2012, 36).
30. De acordo com o Índice Planeta Feliz, embora os anos de vida felizes tenham aumentado
15% ao longo de 45 anos, as pegadas ecológicas per capita aumentaram
35. Entre 1998 e 2005, o número de refugiados aumentou a nível mundial. Mas embora os
deslocados internos (pessoas deslocadas internamente) tenham aumentado, as pessoas
deslocadas que atravessam uma fronteira nacional diminuíram durante este período (HSRP,
2012).
36. Urdal (2008) examina 55 grandes cidades de África e da Ásia no período entre 1960-2008 e
contabiliza 3.375 distúrbios sociais, 40% envolvendo mortes, que, segundo o relatório, estão a
aumentar em ambos os continentes.
38. Relatório Mundial sobre Felicidade da ONU (Helliwell et al., 2012). O Relatório destaca a
grande relevância das questões ambientais na satisfação com a vida das pessoas.
39. A análise de regressão sugere uma relação não linear entre ambas as variáveis.
40. Nas palavras de Marx, “substituindo o domínio das circunstâncias e do acaso sobre os
indivíduos pelo domínio dos indivíduos sobre o acaso e as circunstâncias” (citado de Sen, 1983).
41. Como Cobb et al. (1995) apontaram na sua abordagem crítica ao PIB como um indicador de
bem-estar.