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A REIFICAÇÃO E A CONSCIÊNCIA

DO PROLETARIADO

Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas, para


o homem, a raiz é o próprio homem.
MARX, Zur Kritik der Hegelschen
Rechtsphilosophie [Crítica da filosofia
do direito de Hegell.

Não é de modo algum casual que as duas grandes


obras da maturidade de Marx, que expõem o conjunto
da sociedade capitalista e revelam seu caráter funda-
mental, comecem com a análise da mercadoria. Pois não
há problema nessa etapa de desenvolvimento da hu-
manidade que, em última análise, não se reporte a essa
questão e cuja solução não tenha de ser buscada na so-
lução do enigma da estrutura da mercadoria. Certamen-
te, essa universalidade do problema só pode ser alcan-
çada quando a formulação do problema atinge aquela
amplitude e a profundidade que possui nas análises do
próprio Marx; quando o problema da mercadoria não
aparece apenas como um problema isolado, tampouco
como problema central da economia enquanto ciência
particular, mas como o problema central e estrutural da
sociedade capitalista em todas as suas manifestações
vitais. Pois somente nesse caso pode-se descobrir na es-
trutura da relação mercantil o protótipo de todas as for-
mas de objetividade e de todas as suas formas corres-
pondentes de subjetividade na sociedade burguesa.
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1. O fenômeno da reificação conseqiiéncias estruturais sdo capazes de influenciar


toda a vida exterior e interior da sociedade. Portanto, a
1. extensão da troca mercantil como forma dominante do
metabolismo de uma sociedade não pode ser tratada
A essência da estrutura da mercadoria já foi res- como uma simples questdo quantitativa - conforme os
saltada várias vezes. Ela se baseia no fato de uma rela- hébitos modernos de pensamento, já reificados sob a
ção entre pessoas tomar o caráter de uma coisa e, dessa influéncia da forma mercantil dominante. A diferenca
maneira, o de uma “objetividade fantasmagórica” que, entre uma sociedade em que a forma mercantil é a do-
em sua legalidade própria, rigorosa, aparentemente ra- minante que influencia decisivamente todas as mani-
cional e inteiramente fechada, oculta todo traço de sua festações da vida e uma sociedade em que ela aparece
essência fundamental: a relação entre os homens. Não apenas episodicamente é, antes, uma diferenca quali-
pertence ao âmbito deste estudo analisar o quanto essa tativa. Pois o conjunto dos fendmenos, subjetivos e ob-
problemática tornou-se central para a própria econo- jetivos, das sociedades em questão adquire, de acordo
mia e quais conseqiiéncias o abandono desse ponto de com essa diferenca, formas de objetividade qualitativa-
partida metódico trouxe para as concepções econômi- mente diferentes. Max enfatiza com muita preciséo esse
cas do marxismo vulgar. Nosso objetivo é somente cha- caréter episédico da forma mercantil na sociedade pri-
mar a atenção — pressupondo as análises econômicas de mitival: “A troca direta, forma natural do processo de
Marx — para aqueles problemas fundamentais que re- intercambio, representa muito mais a transformagao ini-
sultam do caráter fetichista da mercadoria como forma cial dos valores de uso em mercadorias do que a trans-
de objetividade, de um lado, e do comportamento do formagao das mercadorias em dinheiro. O valor de troca
sujeito submetido a ela, de outro. Apenas quando com- não tem uma forma independente, mas ainda esta liga-
preendemos essa dualidade conseguimos ter uma vi- do diretamente ao valor de uso. Isso se mostra de duas
são clara dos problemas ideológicos do capitalismo e maneiras. Em toda sua organização, a prépria produ-
do seu declínio. ção está voltada para o valor de uso, e não para o valor
Contudo, antes que o problema propriamente dito de troca; e é somente por exceder a quantidade neces-
possa ser examinado, temos de esclarecer que a questão sária ao consumo que os valores de uso deixam de ser
do fetichismo da mercadoria é específica da nossa épo- valores de uso e se tornam meios de troca, mercadorias.
ca, do capitalismo moderno. Como se sabe, a troca de mer- Por outro lado, eles s6 se tornam mercadorias dentro
cadorias e as relações mercantis subjetivas e objetivas dos limites do valor de uso imediato, ainda que separa-
correspondentes já existiam em etapas muito primitivas
do desenvolvimento da sociedade. Mas o que importa
aqui é saber em que medida a troca de mercadorias e suas 1. Zur Kritik der politischen Gkoromie, MEW 13, pp. 35-6.
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dos em pólos, de tal maneira que as mercadorias a serem cular, isolado e ndo dominante. Aqui as passagens tam-
trocadas devem ser valores de uso para os dois possui- bém são fluidas, mas isso ndo deve encobrir o carater
dores, e cada uma valor de uso para quem não a pos- qualitativo da diferenca decisiva. Marx destaca da se-
sui. De fato, o processo de troca de mercadorias não guinte maneira a situação em que a troca de mercado-
aparece originalmente no seio das comunidades natu- rias não é dominante? “A relação quantitativa, segundo
rais, mas sim onde elas cessam de existir, em suas fron- a qual os produtos são trocados, é totalmente contin-
teiras, nos poucos pontos em que entram em contato gente de inicio. Eles assumem a forma de mercadorias
com outras comunidades. Aqui começa a troca que, em tão logo sejam passiveis de troca em geral, isto &, tão lo-
seguida, repercute no interior da comunidade, na qual g0 sejam expressdes de um terceiro elemento. O prosse-
ela atua de maneira desagregadora.” A constatação da guimento da troca e a reprodução regular para a troca
ação desagregadora da troca de mercadorias voltada reduzem cada vez mais esse caráter contingente. Ini-
para o interior aponta claramente para a mudança qua- cialmente, não para os produtores e consumidores, mas
litativa que nasce da dominação da mercadoria. Con- para o intermedidrio entre os dois, o comerciante que
tudo, essa ação exercida no interior da estrutura social compara os pregos monetarios e embolsa a diferença.
também não basta para fazer da forma mercantil a for- Com esse movimento, ele estabelece a equivaléncia. No
ma constitutiva de uma sociedade. Para tanto, ela tem inicio, o capital comercial é apenas o movimento de me-
de penetrar — como foi enfatizado acima — no conjunto diação entre extremos que não domina e condigdes que
das manifestações vitais da sociedade e remodelar tais não cria.” E esse desenvolvimento da forma mercantil
manifestações à sua própria imagem, e não simples- em forma de dominagdo efetiva sobre o conjunto da
mente ligar-se exteriormente a processos voltados para sociedade surgiu somente com o capitalismo moderno.
a produção de valores de uso e em si mesmos indepen- Por isso, não é mais de admirar que o caréter pessoal
dentes dela. Mas a diferença qualitativa entre a merca- das relações econdmicas tenha sido percebido ainda
doria como uma forma (entre muitas outras) do meta- no inicio do desenvolvimento capitalista e, as vezes, de
bolismo social dos homens e a mercadoria como forma maneira relativamente clara; no entanto, quanto mais
universal de conformação da sociedade não se mostra avangava o desenvolvimento, mais complicadas e in-
somente no fato de a relação mercantil como fenôme-
termediadas surgiam as formas, cada vez mais raro e di-
no isolado exercer no máximo uma influência negati- ficil tornava-se penetrar nesse invélucro reificado. Marx
va sobre a estrutura e a articulação da sociedade, mas via a questão da seguinte maneira® “Nas formas de
no fato de essa diferença reagir sobre o tipo e a valida-
de da própria categoria. A forma mercantil como forma
universal, mesmo quando considerada por si s6, exibe 2. Kapital IIl, 1, MEW 25, p. 342.
uma imagem diferente do que como fenémeno parti- 3. Kapital 1, 1, MEW 25, p. 839.
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sociedade primitiva, essa mistificagio econdmica inter- balho como caracteres objetivos do produto do traba-
vém sobretudo no que concerne ao dinheiro e ao capital Tho, como qualidades sociais naturais dessas coisas e,
lucrativo. Pela propria natureza das coisas, ela estd ex- conseqiientemente, também a relação social dos produ-
cluida, em primeiro lugar, do sistema em que predomi- tores com o conjunto do trabalho como uma relagao so-
na a produgio em vista do valor de uso e das necessida- cial de objetos que existe exteriormente a eles. Com esse
des préprias e imediatas; em segundo, do sistema em qiiiproqué, os produtos do trabalho se tornam mercado-
que, como na Antiguidade e na Idade Média, a escravi- rias, coisas que podem ser percebidas ou não pelos senti-
dão e a serviddo constituem a larga base da produgao dos ou serem coisas sociais [...] É apenas a relação social
social: a dominação das condições de produgao sobre os determinada dos préprios homens que assume para eles
produtores é ocultada aqui pelas relagdes de domina- a forma fantasmagorica de uma relação entre coisas.”
ção e de servidao, que aparecem e são visiveis como mo- Desse fato basico e estrutural é preciso reter sobre-
tores imediatos do processo de produção.” tudo que, por meio dele, o homem é confrontado com
Pois é somente como categoria universal de todo sua prépria atividade, com seu préprio trabalho como
o ser social que a mercadoria pode ser compreendida algo objetivo, independente dele e que o domina por
em sua esséncia auténtica. Apenas nesse contexto a rei- leis préprias, que lhes são estranhas. E isso ocorre tanto
ficação surgida da relação mercantil adquire uma im- sob o aspecto objetivo quanto sob o subjetivo. Objetiva-
portancia decisiva, tanto para o desenvolvimento obje- mente, quando surge um mundo de coisas acabadas e
tivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a de relagdes entre coisas (0 mundo das mercadorias e de
seu respeito, para a submisséo de sua consciéncia as for- sua circulação no mercado), cujas leis, embora se tor-
mas nas quais essa reificagio se exprime, para as ten- nem gradualmente conhecidas pelos homens, mesmo
tativas de compreender esse processo ou de se dirigir nesse caso se lhes opdem como poderes intransponi-
contra seus efeitos destruidores, para se libertar da ser- veis, que se exercem a partir de si mesmos. O individuo
vidão da “segunda natureza” que surge desse modo. pode, portanto, utilizar seu conhecimento sobre essas
Marx descreve o fendmeno fundamental da reificagao leis a seu favor, sem que lhe seja dado exercer, mesmo
da seguinte maneira®: “O caréter misterioso da forma nesse caso, uma influéncia transformadora sobre o pro-
mercantil consiste, portanto, simplesmente em revelar cesso real por meio de sua atividade. Subjetivamente,
para os homens os caracteres sociais do seu préprio tra- numa economia mercantil desenvolvida, quando a ati-
vidade do homem se objetiva em relação a ele, torna-se
uma mercadoria que é submetida a objetividade estra-
4. Kapital , MEW 23, p. 85. A respeito dessa oposição, cf. a distin- nha aos homens, de leis sociais naturais, e deve executar
ção puramente econdmica entre a troca das mercadorias por seu valor e seus movimentos de maneira tão independente dos ho-
a troca das mercadorias por seu prego de produção. Kapital, III, , MEW
25, p. 186. mens como qualquer bem destinado a satisfagdo de ne-
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cessidades que se tornou artigo de consumo. “O que ca- uma precisão crescente em relação ao tempo de traba-
racteriza, portanto, a época capitalista”, diz Marxó, “é lho socialmente necessario, o trabalho da divisao capi-
que a forca de trabalho [...] assume para o préprio tra- talista do trabalho, que existe a0 mesmo tempo como
balhador a forma de uma mercadoria que lhe perten- produto e condição da produção capitalista, surge ape-
ce. Por outro lado, é somente nesse momento que se ge- nas no curso do desenvolvimento desta e, portanto, so-
neraliza a forma mercantil dos produtos do trabalho.” mente no curso dessa evolução ele se torna uma cate-
A universalidade da forma mercantil condiciona, goria social que influencia de maneira decisiva a forma
portanto, tanto sob o aspecto objetivo quanto sob o sub- de objetivação tanto dos objetos como dos sujeitos da
jetivo, uma abstração do trabalho humano que se obje- sociedade emergente, de sua relação com a natureza,
tiva nas mercadorias. (Por outro lado, sua possibilidade das relagdes dos homens entre si que nela são possi-
hist6rica é mais vez condicionada pela realizagao real veiss. Se perseguirmos o caminho percorrido pelo de-
desse processo de abstração.) Objetivamente, a forma senvolvimento do processo de trabalho desde o arte-
mercantil só se torna possivel como forma da igualda- sanato, passando pela cooperagio e pela manufatura,
de, da permutabilidade de objetos qualitativamente di- até a indústria mecanica, descobriremos uma racionali-
ferentes pelo fato de esses objetos - nessa relagdo que é zação continuamente crescente, uma eliminação cada
a única a lhes conferir sua natureza de mercadorias — vez maior das propriedades qualitativas, humanas e in-
serem vistos como formalmente iguais. Desse modo, o dividuais do trabalhador. Por um lado, o processo de
principio de sua igualdade formal s6 pode ser funda- trabalho é fragmentado, numa proporgao continuamen-
do em sua esséncia como produto do trabalho humano te crescente, em operagdes parciais abstratamente racio-
abstrato (portanto, formalmente igual). Subjetivamen- nais, o que interrompe a relagéo do trabalhador com o
te, essa igualdade formal do trabalho humano abstrato produto acabado e reduz seu trabalho a uma função es-
não é somente o denominador comum ao qual os dife- pecial que se repete mecanicamente. Por outro, a medi-
rentes objetos são reduzidos na relação mercantil, mas da que a racionalização e a mecanização se intensificam,
torna-se também o principio real do processo efetivo de o período de trabalho socialmente necessério, que for-
produção de mercadorias. Nossa intenção aqui não po- ma a base do cálculo racional, deixa de ser considerado
de ser, evidentemente, a de descrever, mesmo como es- como tempo médio e empirico para figurar como uma
bogo, esse processo, o nascimento do processo moder- quantidade de trabalho objetivamente calculdvel, que
no do trabalho, do trabalhador “livre” e isolado, da di- se opde ao trabalhador sob a forma de uma objetivida-
visão do trabalho etc. Trata-se somente de constatar que de pronta e estabelecida. Com a moderna análise “psi-
o trabalho abstrato, igual, comparével, mensurdvel com colégica” do processo de trabalho (sistema de Taylor),

5. Kapital 1, MEW 23, p. 184, nota 41. 6. Cf. Kapital l, MEW 23, pp. 341-2 etc.
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essa mecanização racional penetra até na “alma” do tra- jetiva de sistemas parciais racionalizados, cuja unidade
balhador: inclusive suas qualidades psicológicas são se- é determinada pelo puro célculo, que por sua vez de-
paradas do conjunto de sua personalidade e são obje- vem aparecer arbitrariamente ligados uns aos outros. A
tivadas em relação a esta última, para poderem ser in- analise racional e por calculo do processo de trabalho
tegradas em sistemas especiais e racionais e recondu- aniquila a necessidade orgânica das operagdes parciais
zidas ao conceito calculador”. que se relacionam umas com as outras e que se ligam ao
Para nós, o mais importante é o princípio que assim produto formando uma unidade. A unidade do produ-
se impõe: o princípio da racionalização baseada no to como mercadoria não coincide mais com sua unida-
cálculo, na possibilidade do cálculo. As modificações deci- de como valor de uso. A autonomizagio técnica das
sivas que assim são operadas sobre o sujeito e o objeto manipulagdes parciais exprime-se também economica-
do processo econômico são as seguintes: em primeiro
mente na capitalizagio radical da sociedade, pelo aces-
so & autonomia das operações parciais, pela relativiza-
lugar, para poder calcular o processo de trabalho, é pre-
ção crescente do caréter mercantil de um produto nas
ciso romper com a unidade orgânica irracional, sempre
diferentes etapas de sua produgao®. Sendo assim, é pos-
qualitativamente condicionada, do próprio produto. Só
sivel separar a produção de um valor de uso no espago
se pode alcançar a racionalização, no sentido de uma e no tempo. Isso costuma ocorrer concomitantemente
previsão e de um cálculo cada vez mais exatos de todos com a unido no tempo e no espaço das manipulagdes
os resultados a atingir, pela análise mais precisa de cada parciais que, por sua vez, encontram-se relacionadas a
conjunto complexo em seus elementos, pelo estudo de valores de uso inteiramente heterogéneos.
leis parciais específicas de sua produção. Portanto, a ra- Em segundo lugar, essa fragmentação do objeto da
cionalização deve, por um lado, romper com a unida- produção implica necessariamente a fragmentagio do
de orgânica de produtos acabados, baseados na ligação seu sujeito. Como conseqiiéncia do processo de raciona-
tradicional de experiências concretas do trabalho: a racio- lização do trabalho, as propriedades e particularidades
nalização é impensável sem a especializaçãos. O produ- humanas do trabalhador aparecem cada vez mais como
to que forma uma unidade, como objeto do processo de simples fontes do erro quando comparadas com o funcio-
trabalho, desaparece. O processo torna-se a reunião ob- namento dessas leis parciais abstratas, calculado pre-
viamente. O homem não aparece, nem objetivamente,
nem em seu comportamento em relação ao processo de
7. Todo esse processo está exposto histórica e sistematicamente no trabalho, como o verdadeiro portador desse processo;
primeiro volume de O capital. Os próprios fatos - evidentemente sem
Telação, na maioria das vezes, com o problema da reificação - encon- em vez disso, ele é incorporado como parte mecanizada
tram-se também na economia política burguesa, em Biicher, Sombart,
A. Weber, Gottl etc.
8. Kapital 1, MEW 23, pp. 497-8. 9. Ibid., p. 376, nota.
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num sistema mecânico que já encontra pronto e funcio- ra, um homem vale tanto quanto outro. O tempo é tudo,
nando de modo totalmente independente dele, e a cujas o homem não é mais nada; quando muito, é a personi-
leis ele deve se submeter!º. ficação do tempo. A qualidade não está mais em ques-
Como o processo de trabalho é progressivamente ra- tão. Somente a quantidade decide tudo: hora por hora,
cionalizado e mecanizado, a falta de vontade é reforça- jornada por jornada”. O tempo perde, assim, o seu cara-
da pelo fato de a atividade do trabalhador perder cada ter qualitativo, mutavel e fluido: ele se fixa num conti-
nuum delimitado com precisdo, quantitativamente men-
vez mais seu caráter ativo para tornar-se uma atitude
suravel, pleno de “coisas” quantitativamente mensu-
contemplativa!!. A atitude contemplativa diante de um
réveis (os “trabalhos realizados” pelo trabalhador, rei-
processo mecanicamente conforme às leis e que se de-
ficados, mecanicamente objetivados, minuciosamen-
senrola independentemente da consciência e sem a in-
te separados do conjunto da personalidade humana);
fluência possível de uma atividade humana, ou seja,
torna-se um espaço!?. Nesse ambiente em que o tempo
que se manifesta como um sistema acabado e fechado,
é abstrato, minuciosamente mensurável e transforma-
transforma também as categorias fundamentais da ati- do em espaço fisico, um ambiente que constitui, a0 mes-
tude imediata dos homens em relação ao mundo: re-
mo tempo, a condição e a conseqiiéncia da produção
duz o espaço e o tempo a um mesmo denominador e o especializada e fragmentada, no âmbito científico e me-
tempo ao nível do espaço. “Com a subordinação do ho- cânico, do objeto de trabalho, os sujeitos do trabalho
mem & máquina”, diz Marx"?, a situação chega ao ponto devem ser igualmente fragmentados de modo racio-
de que “os homens acabam sendo apagados pelo tra- nal. Por um lado, seu trabalho fragmentado e mecâni-
balho, o pêndulo do relógio torna-se a medida exata da co, ou seja, a objetivação de sua força de trabalho em
atividade relativa de dois operários, tal como a medida relação ao conjunto de sua personalidade — que já era
da velocidade de duas locomotivas. Sendo assim, não realizada pela venda dessa força de trabalho como
se pode dizer que uma hora [de trabalho] de um homem mercadoria —, é transformado em realidade cotidiana
vale a mesma hora de outro, mas que, durante uma ho- durével e intransponivel, de modo que, também nesse
caso, a personalidade torna-se o espectador impotente
de tudo o que ocorre com sua própria existéncia, par-
10. Do ponto de vista da consciência individual, essa aparência é
inteiramente justificada. No que diz respeito 2 classe, é preciso notar cela isolada e integrada a um sistema estranho. Por ou-
que essa submissão foi o produto de uma longa luta que recomeça - tro, a desintegragao mecénica do processo de produgao
num nível mais elevado e com novas armas - com a organização do também rompe os elos que, na produção “orgénica”,
proletariado em classe. religavam a uma comunidade cada sujeito do trabalho.
11. Kapital 1, MEW 23, pp. 394-5, 441-2, 483 etc. É evidente que essa
“contemplagdo” pode ser mais desgastante e enervante do que a “ativi-
dade” artesanal. Mas isso está fora de nossas consideragoes.
12. Elend der Philosophie, MEW 4, p. 85. 13. Kapital 1, MEW 23, pp. 365-6.
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Também a esse respeito, a mecanização da produção sociedade, visto que a generalização desse destino é a
faz deles átomos isolados e abstratos, que a realização condig@o necessaria para que o processo de trabalho nas
do seu trabalho não reúne mais de maneira imediata empresas se modele segundo essa norma. Pois a meca-
e orgânica e cuja coesão é, antes, numa medida conti- nização racional do processo de trabalho só se torna
nuamente crescente, mediada exclusivamente pelas possivel com o aparecimento do “trabalhador livre”,
leis abstratas do mecanismo ao qual estão integrados. em condições de vender livremente no mercado sua
Mas a forma interior de organização da empresa forga de trabalho como uma mercadoria “que lhe per-
industrial não poderia ter semelhante efeito — mesmo tence”, como uma coisa que “possui”. Enquanto esse
no seio da empresa —, se não se revelasse nela, de ma- processo ainda é incipiente, os meios para extrair o ex-
neira concentrada, a estrutura de toda a sociedade capi- cedente de trabalho sdo, por certo, ainda mais brutais
talista. Pois as sociedades pré-capitalistas conheceram e evidentes que nos estagios ulteriores e mais evoluf-
igualmente a opressao, a exploragao extrema que escar- dos, mas o processo de reificação do préprio trabalho
nece de toda dignidade humana; conheceram até as em- e, portanto, também da consciéncia do operario são
presas de massa com um trabalho mecanicamente ho- muito menos adiantados. Desse modo, é absolutamen-
mogeneizado, como a construção de canais no Egito e te necessério que a sociedade aprenda a satisfazer to-
no Oriente Médio, ou as minas de Roma etc.!4. Todavia, das as suas necessidades sob a forma de troca de mer-
em parte alguma o trabalho de massa poderia tornar- cadorias. A separação do produtor dos seus meios de
se um trabalho racionalmente mecanizado; as empresas produção, a dissolugdo e a desagregagdo de todas as
de massa permaneceriam fendmenos isolados no seio unidades originais de produção etc., todas as condi-
de uma coletividade, produzindo de maneira diferen- ções econdmicas e sociais do nascimento do capitalis-
te (“naturalmente”) e, portanto, vivendo de maneira di- mo moderno agem nesse sentido: substituir por rela-
ferente. Sendo assim, os escravos explorados dessa ma- ções racionalmente reificadas as relações originais em
neira estavam à margem do que era considerado como que eram mais transparentes as relagdes humanas.
sociedade “humana”; seus contemporaneos e mesmo “As relagdes sociais das pessoas em seu trabalho”, diz
os maiores e mais nobres pensadores não eram capazes Marx!S a propésito das sociedades pré-capitalistas,
de julgar o destino desses homens como o destino da “aparecem de todo modo como suas proprias relagdes
humanidade. Com a universalidade da categoria mer- pessoais, e ndo disfargadas em relagdes sociais entre coi-
cantil, essa relação muda radical e qualitativamente. O sas, entre produtos do trabalho.” Mas isso significa que
destino do operario torna-se o destino geral de toda a o principio da mecanizagio racional e da calculabilida-
de deve abarcar todos os aspectos da vida. Os objetos

14, C. a esse respeito Gottl, Wirtschaft und Technik. Grundriss der


Sozialôkonomie Il pp. 234 ss. 15. Kapital |, MEW 23, pp. 91 s.
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que satisfazem as necessidades não aparecem mais como dividuo, a estrutura mercantil de todas as “coisas” e a
os produtos do processo orgânico da vida de uma co- conformidade de suas relagdes com “leis naturais” já
munidade (por exemplo, numa comunidade aldeã). Por existe enquanto forma acabada, como algo que não po-
um lado, são vistos como exemplares abstratos da es- de ser suprimido -, só poderiam desenrolar-se sob essa
pécie, que por princípio são idênticos aos seus outros forma de atos isolados e racionais de troca entre pro-
exemplares e, por outro, como objetos isolados, cuja pos- prietarios isolados de mercadorias. Conforme enfatiza-
se ou ausência dela depende de cálculos racionais. So- do anteriormente, o trabalhador deve necessariamente
mente quando toda a vida da sociedade é pulverizada apresentar-se como o “proprietério” de sua força de tra-
dessa maneira em atos isolados de troca de mercado- balho, como se esta fosse uma mercadoria. Sua posição
rias, pode surgir o trabalhador “livre”; ao mesmo tem- especifica reside no fato de essa fora de trabalho ser a
po, o seu destino deve tornar-se o destino típico de toda sua tnica propriedade. Em seu destino, é tipico da es-
a sociedade. trutura de toda a sociedade que essa auto-objetivagao,
No entanto, o isolamento e a atomização assim nas- esse tornar-se mercadoria de uma função do homem re-
centes são uma mera aparência. O movimento das mer- velem com vigor extremo o carater desumanizado e de-
cadorias no mercado, o surgimento do seu valor, numa sumanizante da relagio mercantil.
palavra, a margem real de todo cálculo racional não so-
mente é submetida a leis rigorosas, mas pressupõe,
como fundamento do cálculo, uma legalidade rigorosa 2.
de todo acontecimento. Essa atomização do indivíduo
é, portanto, apenas o reflexo na consciência de que as Essa objetivação racional encobre sobretudo o ca-
“leis naturais” da produção capitalista abarcaram o con- réter imediato, concreto, qualitativo e material de todas
junto das manifestações vitais da sociedade, de que — as coisas. Quando os valores de uso aparecem, sem ex-
pela primeira vez na história — toda a sociedade está ceção, como mercadorias, eles adquirem uma nova ob-
submetida, ou pelo menos tende, a um processo eco- jetividade, uma nova substancialidade que não tinham
nômico uniforme, e de que o destino de todos os mem- na época da troca meramente ocasional, em que sua
bros da sociedade é movido por leis também uniformes. substancialidade originaria e prépria é destruida, de-
(Em contrapartida, as unidades organicas das socieda- saparece. “A propriedade privada”, diz Marx'6, “alie-
des pré-capitalistas efetuaram o seu metabolismo com
muita independéncia umas das outras.) Mas essa apa-
réncia é necesséria enquanto aparéncia. Dito de outra 16. Marx visa sobretudo a propriedade privada capitalista. Deutsche
Ideologie, Sankt Max, MEW 3, p. 212. Na seqiéncia dessa observação encon-
maneira, a confrontação imediata, tanto prética quanto tram-se as belas notas sobre a incluso da estrutura da retificacio na lin-
intelectual, do individuo com a sociedade, a produção guagem. Do ponto de vista do materialismo hist6rico,um estudo filosófico
e a reprodugio imediatas da vida - em que, para o in- que partisse dessa premissa poderia conduzir a resultados interessantes.
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na não somente a individualidade dos homens, mas valia na prépria produgao, elas só podem ser compreen-
também a das coisas. O solo não tem nada a ver com a didas, portanto, a partir da esséncia do capitalismo in-
renda fundidria, nem a maquina com o lucro. Para o dustrial, mas aparecem, na consciéncia do homem e da
proprietério fundidrio, o solo é sinénimo de renda; ele sociedade burguesa, como formas puras, verdadeiras e
aluga suas terras e recebe a renda, uma qualidade que auténticas do capital. Para a consciéncia reificada, es-
o solo pode perder sem perder nenhuma de suas pro- sas formas do capital se transformam necessariamente
priedades inerentes, como uma parte de sua fertilida- nos verdadeiros representantes da sua vida social, jus-
de, por exemplo, que é uma qualidade cuja medida, ou tamente porque nelas se esfumam, a ponto de se torna-
seja, existéncia, depende de condigdes sociais, que são rem completamente imperceptiveis e irreconheciveis,
criadas e destruidas sem intervengdo do proprietario as relagdes dos homens entre si e com os objetos reais,
fundiério individual. O mesmo ocorre com a maqui- destinados a satisfagdo real de suas necessidades. Tais
na.” Se, portanto, o préprio objeto particular que o ho- relagdes são ocultas na relação mercantil imediata. O
mem enfrenta diretamente, enquanto produtor ou con- caráter mercantil da mercadoria, o modo quantitativo
sumidor, é desfigurado em sua objetivação por seu ca- e abstrato da calculabilidade aparecem aqui sob sua
rater de mercadoria, é evidente que esse processo deve forma mais pura. Sendo assim, para a consciéncia rei-
entdo intensificar-se na proporção em que as relagdes ficada, esta se torna, necessariamente, a forma de mani-
que o homem estabelece com os objetos enquanto ob- festagdo do seu proprio imediatismo, que ela, enquanto
consciéncia reificada, ndo tenta superar. Ao contrério,
jetos do processo vital em sua atividade social forem
mediadas. Obviamente, é impossivel analisar aqui toda tal forma tenta estabelecer e eternizar esse imediatis-
mo por meio de um “aprofundamento cientifico” dos
a estrutura econdmica do capitalismo. Temos de nos
sistemas de leis apreensiveis. Do mesmo modo que o
contentar com a constatação de que o desenvolvimen-
sistema capitalista produz e reproduz a si mesmo eco-
to do capitalismo moderno não somente transforma as
ndmica e incessantemente num nivel mais elevado, a
relagdes de produção conforme sua necessidade, mas
estrutura da reificagdo, no curso do desenvolvimento
também integra no conjunto do seu sistema as formas
capitalista, penetra na consciéncia dos homens de ma-
do capitalismo primitivo que, nas sociedades pré-ca-
neira cada vez mais profunda, fatal e definitiva. Marx
pitalistas, levavam uma existéncia isolada e separada
descreve fregiientemente essa elevação do poder da
da produção, e as converte em membros do processo reificação com argúcia. Contentemo-nos com um exem-
doravante unificado de capitalizagio radical de toda a plo!”: “No capital portador de juro, esse fetiche automa-
sociedade (capital mercantil, função do dinheiro como tico estd, portanto, em evidéncia em sua forma mais
tesouro ou como capital financeiro etc.). Embora essas
formas do capital estejam objetivamente submetidas
ao processo vital proprio do capital, à extragio da mais- 17. Kapital 111, 1, MEW 25, p. 405.
212 GEORG LUKÁCS HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 213

pura, valor que valoriza a si mesmo, dinheiro que gera abengoada, pois nela a fonte do juro não é mais reco-
filhos e não traz mais, sob essa forma, nenhuma marca nhecida, nela o resultado do processo capitalista de pro-
de nascença. A relação social é completada como rela- dução — separado do proprio processo — adquire uma
ção de uma coisa, do dinheiro, consigo mesma. Em vez existéncia autébnoma.”
da transformação real do dinheiro em capital, vemos E, do mesmo modo como a teoria econdmica do
aqui apenas sua forma desprovida de conteúdo [...]. capitalismo se mantém nesse imediatismo que ela pró-
Sendo assim, criar valor, dar juros como a macieira dá pria criou, nela também se mantém as tentativas bur-
magas, tornou-se inteiramente uma propriedade do di- guesas de tomar consciéncia do fendmeno ideológico
nheiro. E aquele que empresta seu dinheiro o vende da reificagdo. Até mesmo os pensadores que não que-
como algo que traz rendimento. Isso não basta. O capi- rem negar ou camuflar o fendmeno e que, de certo mo-
do, estdo cientes de suas conseqiiéncias humanas de-
tal efetivamente ativo, como vimos, apresenta-se de tal
sastrosas, permanecem na andlise do imediatismo da
modo que faz render o juro não como capital ativo, mas
reificação e não fazem nenhuma tentativa para superar
como capital em si, como capital financeiro. Isso tam-
as formas objetivamente mais derivadas, mais distan-
bém se inverte: enquanto o juro é apenas uma parte do
ciadas do processo vital préprio do capitalismo, por-
lucro, isto é, da mais-valia que o capital ativo extrai do
tanto, mais exteriorizadas e vazias, para penetrar no
trabalhador, o juro aparece desta vez, inversamente,
fendmeno originério da reificagdo. Além do mais, des-
como o verdadeiro fruto do capital, como a realidade
tacam essas forgas de manifestagao vazias do seu terre-
primitiva, e o lucro, transformado então em forma de ga-
no natural capitalista, tornando-as autdnomas e eternas,
nho do empresario, aparece como um simples acessério como um tipo intemporal de possibilidades humanas
e suplemento que se adiciona no decorrer do processo de de relações. (Essa tendéncia se manifesta mais clara-
reprodução. Nesse caso, a forma fetichista do capital e a mente no livro de Simmel, A filosofia do dinheiro, um tra-
representagdo do fetiche do capital são completadas. balho muito perspicaz e interessante em seus detalhes.)
Na férmula D-D?, temos a forma nao-conceitual do ca- Déo uma simples descrigdo desse “mundo enfeitica-
pital, a inversão e a coisificação das relações de produ- do, invertido e as avessas, em que Monsieur le Capital e
ção na mais alta poténcia: a forma portadora de juro, Madame la Terre assombram como caracteres sociais e,
forma simples do capital que tem como condição de a0 mesmo tempo, como simples objetos”18. Mas, des-
sua prépria reprodução a capacidade do dinheiro, ou se modo, ndo vdo além da simples descrigdo, e seu
seja, da mercadoria, de valorizar seu préprio valor, in- “aprofundamento” do problema gira em torno de for-
dependentemente da reprodugao - mistificação do ca- mas exteriores de manifestagdo da reificagdo.
pital sob sua forma mais gritante. Para a economia vul-
gar, que quer representar o capital como fonte autô-
noma e de criação do valor, essa forma é naturalmente 18. Ibid. 111, I, MEW 25, p. 838.
214 GEORG LUKÁCS HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE 215

Essa separação entre os fenômenos da reificação e auxilio dos quais realizavam sua função econômica, po-
o fundamento econômico de sua existência, a base que lítica e militar, e da qual viviam enquanto a cumpriam,
permite compreendé-los, ainda é facilitada pelo fato a dependência hierárquica do operário, do balconista,
de que esse processo de transformação deve necessa- do empregado técnico, do assistente de um instituto uni-
riamente englobar o conjunto das formas de manifesta- versitário e do funcionário do Estado e de um soldado
ção da vida social, para que sejam preenchidas as con- tem o mesmo fundamento, a saber: os instrumentos, as
dições de uma produção capitalista com pleno rendi- reservas e os meios financeiros, indispensáveis tanto à
mento. Assim, o desenvolvimento capitalista criou um empresa quanto à vida econômica, estão nas mãos do
sistema de leis que atendesse suas necessidades e se empresário, num caso, e do chefe político, no outro.”
adaptasse à sua estrutura, um Estado correspondente, Max Weber também acrescenta a essa descrição, muito
entre outras coisas. A semelhança estrutural é, de fato, justamente, a razão e o significado social desse fenôme-
tão grande que nenhum historiador realmente perspi- no: “A empresa capitalista moderna baseia-se interna-
caz do capitalismo moderno poderia deixar de consta- mente sobretudo no cálculo. Para existir, ela precisa de
tá-la. Max Weber" descreve o princípio fundamental uma justiça e de uma administração, cujo funcionamen-
desse desenvolvimento da seguinte maneira: “Ambos to também possa ser, pelo menos em princípio, calcula-
são, antes, bastante similares em sua essência funda- do racionalmente segundo regras gerais sólidas, tal como
mental. O Estado moderno, de um ponto de vista socio- se calcula o trabalho previsível efetuado por uma má-
16gico, é uma ‘empresa’ tal como uma fábrica; é justa- quina. Sua capacidade de tolerar [...] um julgamento mi-
mente o que tem de específico no âmbito histórico. E nistrado pelo juiz conforme seu senso de justiça nos ca-
as relações de dominação na empresa também estão,
sos particulares ou conforme outros meios e princípios
nos dois casos, submetidas a condições da mesma espé- irracionais de criação jurídica [...] é tão fraca quanto a
de suportar uma administração patriarcal que procede
cie. Do mesmo modo como a relativa autonomia do ar-
a seu bel-prazer e por misericórdia e, quanto ao resto,
tesão ou industrial domiciliar, do camponês proprietá-
Tio, do comandatário, do cavaleiro e do vassalo baseava-
conforme uma tradição inviolavelmente sagrada mas
irracional [...]. Em oposição às formas muito antigas da
se no fato de que eram proprietários dos instrumentos,
aquisição capitalista, é específico do capitalismo moder-
das reservas, dos meios financeiros, das armas, com o
no o fato de que d organização estritamente racional do
trabalho, no âmbito de uma técnica racional, não surgiu
19. Gesammelte politische Schriften, Miinchen, 1921, pp. 140-2. We- nem poderia surgir em parte alguma no seio de siste-
ber remete à evolução do direito inglês, mas isso não diz respeito ao mas políticos construídos também de forma irracional.
nosso problema. Sobre o estabelecimento gradual do princípio do cálcu- Pois essas formas modernas de empresa, com seu capi-
1o econômico, cf. também Alfred Weber, Standort der Industrie, especial-
mente p. 216. tal fixo e seus cálculos exatos, são muito sensíveis às ir-
216 GEORG LUKÁCS HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 217

racionalidades do direito e da administração para que mano, enquanto desenvolvimento juridico que mais se
se tornem possiveis. Só poderiam surgir onde o juiz, assemelha a essa evolução, mas que no sentido moderno
[...] como no Estado burocrético, com suas leis racio- é pré-capitalista, permaneceu, sob esse aspecto, ligado
nais, fosse mais ou menos distribuidor automatico de a0 empirico, ao concreto, ao tradicional. As categorias
parégrafos, nos quais os documentos com os custos e puramente sistematicas, que eram necessarias para que
os honorarios fossem inseridos por cima, para que ele a regulamentação juridica pudesse ser aplicada univer-
vomite por baixo a sentenga com consideragdes mais salmente e sem distingao, surgiu somente no desenvol-
ou menos sélidas, e cujo funcionamento, portanto, fos- vimento moderno®. E é claro que essa necessidade de
se em geral calculdvel.” sistematizagao, de abandono do empirismo, da tradi-
Desse modo, o processo que ocorre aqui é muito ção, da dependéncia material, foi uma necessidade do
semelhante ao desenvolvimento econdmico mencio- cálculo exato?!. No entanto, essa mesma necessidade
nado acima, tanto em seus motivos como em seus efei-
exige que o sistema juridico se oponha aos aconteci-
tos. Aqui se efetua igualmente uma ruptura com os mé- mentos particulares da vida social como algo sempre
acabado, estabelecido com precisão e, portanto, como
todos empiricos, irracionais, que se baseiam na tradição
e sdo talhados subjetivamente na medida do homem sistema rigido. Certamente isso produz conflitos inin-
terruptos entre a economia capitalista, que se desen-
que atua, e objetivamente na medida da matéria con-
creta, na jurisprudéncia, na administragao etc. Surge
volve continuamente de modo revoluciondrio, e o sis-
uma sistematizagao racional de todas as regulamenta- tema juridico rigido. Mas isso tem como conseqiéncia
apenas novas codificagdes: o novo sistema tem, contu-
ções juridicas da vida, sistematização que representa,
pelo menos em sua tendéncia, um sistema fechado e do, de conservar em sua estrutura o caréter acabado e
rigido do antigo sistema. Surge, portanto, essa situa-
que pode se relacionar com todos os casos possiveis e
ção — aparentemente - paradoxal de que o “direito”
imagindveis. Resta saber se esse sistema se encadeia
das formas primitivas de sociedade, quase não altera-
internamente segundo vias puramente légicas, de uma
do durante séculos e por vezes milénios, tem um cara-
dogmatica puramente juridica, de acordo com a inter-
ter fluido, irracional, que sempre renasce nas decisdes
pretação do direito, ou se a prética do juiz está destina-
juridicas, enquanto o direito moderno, subvertido de
da a preencher as “lacunas” das leis. Mas isso não faz
maneira tempestuosa e realmente constante, mostra
nenhuma diferenga para o nosso esforgo, que é o de re-
uma esséncia rigida, estatica e acabada. Todavia, o pa-
conhecer essa estrutura da objetivação juridica moderna.
radoxo demonstra ser aparente, quando consideramos
Pois, nos dois casos, o sistema juridico é formalmente
capaz de ser generalizado, bem como de se relacionar
com todos os acontecimentos possiveis da vida e, nessa 20. Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, p. 491.
relação, ser previsivel e calculdvel. Mesmo o direito ro- 21. Ibid., p.129.
218 GEORG LUKÁCS HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE 219

que resulta simplesmente do fato de a mesma situação “leis” (como nos esquemas de segurança etc.). Quanto
ser examinada uma vez do ponto de vista do historiador mais se considera essa situação em profundidade e in-
(cujo ponto de vista situa-se sistematicamente “fora” dependentemente das lendas burguesas sobre o caráter
do próprio desenvolvimento), e outra do ponto de vis- “criador” dos expoentes da época capitalista, tanto mais
ta do sujeito participante, do ponto de vista da influên- claramente aparece, em tal comportamento, a analogia
cia da ordem social em questão sobre sua consciência. estrutural com o comportamento do operário em rela-
Com esse discernimento, podemos ver claramente que ção à máquina que ele serve e observa, e cujo funciona-
a oposição entre o artesanato tradicionalmente empírico mento ele controla enquanto a contempla. O elemento
e a fábrica cientificamente racional se repete em outro “criador” só é reconhecível pelo grau de autonomia
dominio: a técnica de produção moderna em transfor- relativa ou de subserviência completa com que as “leis”
mação ininterrupta confronta-se, em cada etapa particu- são aplicadas, isto é, até que ponto o comportamento
lar de seu funcionamento, como sistema fixo e acabado, puramente contemplativo é rejeitado. Mas a diferença
com cada produtor, enquanto a produção artesanal tra- do trabalhador em relação a cada máquina, do empre-
dicional, relativamente estável de um ponto de vista ob- sário em relação ao tipo dado de evolução mecânica, e
jetivo, preserva na consciência de cada indivíduo que o do técnico em relação ao nível da ciência e da rentabi-
exerce um caráter fluido, continuamente renovador e lidade de suas aplicações técnicas, é uma variação pu-
produzido pelos produtores. Isso nos permite constatar ramente quantitativa, e não uma diferença qualitativa na
com evidência o caráter contemplativo da atitude capita- estrutura da consciência.
lista do sujeito. Pois a essência do cálculo racional se ba- O problema da burocracia moderna só se torna ple-
seia, em última análise, no reconhecimento e na previ- namente compreensível nesse contexto. A burocracia
são do curso inevitável a ser tomado por determinados implica uma adaptação do modo de vida e do trabalho
fenômenos de acordo com as leis e independentemente e paralelamente também da consciência aos pressupos-
do “arbítrio individual”. O comportamento do homem tos socioecondmicos gerais da economia capitalista,
esgota-se, portanto, no cálculo correto das oportunida- tal como constatamos no caso do operário na empresa
des desse curso (cujas “leis” ele já encontra “prontas”), particular. A racionalização formal do direito, do Esta-
na habilidade de evitar os “acasos” perturbadores por do, da administração etc. implica, objetiva e realmente,
meio da aplicação de dispositivos de proteção e medi- uma decomposição semelhante de todas as funções so-
das defensivas (que se baseiam igualmente na consciên- ciais em seus elementos, uma pesquisa semelhante das
cia e na aplicação de “leis” semelhantes); muitas vezes, leis racionais e formais que regem esses sistemas par-
chega até mesmo a se deter no cálculo das probabilida- ciais, separados com exatidão uns dos outros, e subjeti-
des dos possíveis efeitos de tais “leis”, sem sequer ten- vamente implica, por conseguinte, repercussões seme-
tar intervir no próprio processo pela aplicação de outras lhantes para a consciência, devidas & separação entre o
220 GEORG LUKÁCS HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 221

trabalho e as capacidades e necessidades individuais rio vende no mercado, repete-se igualmente aqui. Po-
daquele que o realiza; implica, portanto, uma divisão rém, com a diferenca de que nem toda faculdade men-
semelhante, racional e humana, do trabalho em relação tal é suprimida pela mecanizagéo; apenas uma facul-
à técnica e ao mecanismo tal como encontramos na em- dade ou um complexo de faculdades destaca-se do con-
presa??. Trata-se não somente do modo de trabalho in- junto da personalidade e se coloca em oposição a ela,
teiramente mecanizado e “insensato” da burocracia tornando-se uma coisa, uma mercadoria. Ainda que os
subalterna, que se encontra extraordinariamente pré- meios da selegdo social de tais faculdades e seu valor
xima do simples servico da maquina e, muitas vezes, de troca material e “moral” sejam fundamentalmente
chega a supera-la em vacuidade e uniformidade. De um diferentes daqueles da forga de trabalho (não se deve
lado, trata-se também da maneira cada vez mais for- esquecer, alids, a grande série de elos intermediérios, de
mal e racionalista de lidar objetivamente com todas as transigdes insensiveis), o fendmeno fundamental per-
questdes de uma separação continuamente crescente manece o mesmo. O género especifico de “probidade”
da esséncia qualitativa e material das “coisas” as quais e objetividade burocréticas, a submissdo necessdria e
se refere a atividade burocrética. Por outro, trata-se de total do burocrata individual a um sistema de relações
uma intensificago ainda mais monstruosa da especia- entre coisas, a idéia de que são precisamente a sua “hon-
lização unilateral na divisão do trabalho, que viola a ra” e o seu “senso de responsabilidade” que exigem
esséncia humana do homem. A constatagio de Marx dele semelhante submissdo?, tudo isso mostra que a
divisdo do trabalho penetrou na “ética” — tal como, no
acerca do trabalho na fabrica, segundo a qual “o pré-
taylorismo, penetrou no “psiquico”. Isso não é, todavia,
prio individuo é dividido, transformado em engrena-
um abrandamento, mas, ao contrario, um reforço da
gem automética de um trabalho fragmentado” e, des-
estrutura reificada da consciéncia como categoria fun-
se modo, “atrofiado até se tornar uma anomalia”, veri-
damental para toda a sociedade. Pois, enquanto o des-
fica-se aqui de modo tanto mais evidente quanto mais
tino daquele que trabalha aparece como um destino iso-
elevados, avangados e “intelectuais” forem os resulta-
lado (como o destino do escravo na Antiguidade), a vida
dos exigidos por essa divisão do trabalho. A separação das classes dominantes pode desenrolar-se sob formas
da forga de trabalho e da personalidade do operério, totalmente distintas. Foi o capitalismo a produzir pela
sua metamorfose numa coisa, num objeto que o opera- primeira vez, com uma estrutura econdmica unificada
para toda a sociedade, uma estrutura de consciéncia -
22. Se nesse contexto não ressaltamos o caráter de classe do Esta- formalmente - unitaria para o conjunto dessa socieda-
do etc. isso decorre de nossa intenção de conceber a reificação como fe- de. E essa estrutura unitaria exprime-se justamente pelo
nomeno fundamental, geral e estrutural de foda a sociedade burguesa.
O ponto de vista de classe j4 interviera alids no estudo da maquina. Cf.
a esse respeito a terceira seção. 23. Cf. a esse respeito Max Weber, Politische Schriften, p. 154.
HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 223
222 GEORG LUKÁCS

fato de que os problemas de consciência relacionados ciéncia não se ligam mais somente a unidade organica
ao trabalhador assalariado se repetem na classe domi- da pessoa, mas aparecem como “coisas” que o homem
nante de forma refinada, espiritualizada, mas, por ou- pode “possuir” ou “vender”, assim como os diversos ob-
tro lado, intensificada. E o “virtuose” especialista, o jetos do mundo exterior. E não há nenhuma forma natu-
vendedor de suas faculdades espirituais objetivadas ral de relação humana, tampouco alguma possibilidade
e coisificadas, não somente se torna um espectador do para o homem fazer valer suas “propriedades” fisicas
devir social (não é possível indicar aqui, mesmo que e psicolégicas que não se submetam, numa proporgao
alusivamente, o quanto a administração e a jurispru- crescente, a essa forma de objetivação. Basta pensar no
dência modernas revestem, em oposição ao artesanato, casamento: é desnecessério remeter sua evolugdo ao
os caracteres já evocados da fábrica), mas também as- século XIX, visto que Kant, por exemplo, exprimiu com
sume uma atitude contemplativa em relação ao funcio- clareza essa situação com a franqueza ingenuamente ci-
namento de suas próprias faculdades objetivadas e coi- nica dos grandes pensadores. “A comunidade sexual”,
sificadas. Essa estrutura mostra-se em seus traços mais diz?5, “é o uso reciproco que um ser humano faz dos
grotescos no jornalismo, em que justamente a própria órgãos e das faculdades sexuais de outro ser humano
subjetividade, o saber, o temperamento e a faculdade de [...]. O casamento [...] é a unido de duas pessoas de se-
expressão tornam-se um mecanismo abstrato, indepen- xos diferentes em vista da posse reciproca de suas pro-
dente tanto da personalidade do “proprietário” como priedades sexuais durante toda sua vida.”
da essência material e concreta dos objetos em ques- No entanto, essa racionalizagdo do mundo, apa-
tão, e que é colocado em movimento segundo leis pró- rentemente integral e penetrando até o ser fisico e psf-
prias. À “ausência de convicção” dos jornalistas, a pros- quico mais profundo do homem, encontra seu limite
tituição de suas experiências e convicções só podem ser no carater formal de sua prépria racionalidade. Isto ¢,
compreendidas como ponto culminante da reificação embora a racionalizagio dos elementos isolados da vida
capitalista?. e o conjunto de leis formais dela resultante se adaptem
A metamorfose da relação mercantil num objeto facilmente ao que parece constituir um sistema unitario
dotado de uma “objetivação fantasmática” não pode, de “leis” gerais para o observador superficial, o despre-
portanto, limitar-se à transformação em mercadoria de 20 pelo elemento concreto na matéria das leis, desprezo
todos os objetos destinados à satisfação das necessida- em que se baseia seu caréter de lei, surge na incoerén-
des. Ela imprime sua estrutura em toda a consciência do cia efetiva do sistema de lei, no carater contingente da
homem; as propriedades e as faculdades dessa cons- relação dos sistemas parciais entre si e na autonomia
relativamente grande que esses sistemas parciais pos-

24. Cf. a esse respeito o ensaio de A. Fogarasi, Kommunismus. Ano


11, 70 25/26. 25. Metaphysik der Sitten, Parte 1, 8 24.
224 GEORG LUKÁCS HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 225

suem uns em relação aos outros. Essa incoerência ma- xões. Os fendmenos econdmicos já mostram essa inter-
nifesta-se de maneira bastante flagrante nas épocas de dependéncia quando são examinados um pouco mais
crise, cuja essência - vista do ângulo de nossas presen- de perto. Marx, por exemplo, ressalta — e os casos men-
tes considerações - consiste justamente no fato de que cionados aqui devem, evidentemente, servir apenas pa-
a continuidade imediata da passagem de um sistema ra esclarecer metodologicamente a situação, e não para
parcial a outro se rompe, e de que sua interdependên- representar uma tentativa, mesmo que superficial, de
cia e o caráter contingente de suas inter-relações se im- tratar a questdo em seu contetido — que “as condições
põem subitamente à consciência de todos os homens. de exploragio imediata e as de sua realização néo são
Por isso, Engels? pode definir as “leis naturais” da idénticas. Diferem ndo somente em relação ao tempo e
economia capitalista como leis da contingéncia. ao lugar, mas também conceitualmente”?. Desse mo-
No entanto, considerada mais de perto, a estrutu- do, não há “nenhum elo necessério, mas somente con-
ra da crise aparece como uma simples intensificagéo, tingente, entre a quantidade global de trabalho social,
quantitativa e qualitativa, da vida cotidiana da socieda- que é aplicada a um artigo social”, e “a amplitude em
de burguesa. Se a coesão das “leis naturais” dessa vida que a sociedade procura satisfazer a necessidade apla-
— que, no imediatismo cotidiano, desprovido de pen- cada por esse artigo determinado”?. Evidentemente,
samento, parece solidamente fechada — pode sofrer uma estes são apenas alguns exemplos tomados ao acaso.
ruptura repentina, isso s6 é possivel porque, mesmo Pois é claro que toda a estrutura da produção capita-
no caso do funcionamento mais normal, a relação dos lista repousa sobre essa interação entre uma necessi-
seus elementos e dos seus sistemas parciais entre si é dade submetida a leis estritas em todos os fendmenos
algo de contingente. Do mesmo modo, a ilusdo segundo isolados e uma irracionalidade relativa do processo
a qual toda a vida social estaria submetida a leis “eter- como um todo. “A divisdo do trabalho, tal como existe
nas e inflexiveis”, que certamente se diferenciam em di- na manufatura, implica a autoridade absoluta do capi-
versas leis especiais nos dominios particulares, deve ne- talista sobre homens que constituem simples membros
cessariamente revelar-se como o que realmente é, ou de um mecanismo de conjunto que Ihes pertence; a di-
seja, contingente. A verdadeira estrutura da sociedade visdo social do trabalho opde produtores independen-
aparece, antes, nas leis parciais, independentes, racio- tes de mercadorias, que não reconhecem outra autori-
nalizadas e formais, que só formalmente estão associa- dade além daquela da concorréncia, da coerção exercida
das (isto é, suas interdependéncias formais podem ser pela pressão dos seus interesses mútuos.”?º Isso por-
sistematizadas formalmente); porém, quando se trata
de uma realidade concreta, só podem estabelecer cone-
27. Kapital , 1, MEW 25, p. 254.
28. Ibid., pp. 196-7.
26. Ursprung der Familie, MEW 21, pp. 169 ss. 29. Ibid. 1, IV, MEW 23, p. 377.
226 GEORG LUKÁCS HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE 227

que a racionalização capitalista, que se baseia no cál- mente e adequadamente cognoscível. Pois o conhecimento
culo econômico privado, reclama em toda manifestação completo da totalidade asseguraria ao sujeito desse co-
da vida essa relação mútua entre o pormenor submeti- nhecimento tal monopólio, que acabaria suprimindo a
do aleis e a totalidade contingente; ela pressupõe uma economia política.
sociedade assim estruturada; produz e reproduz essa Essa irracionalidade, esse “sistema de leis” — extre-
estrutura na medida em que se apossa da sociedade. mamente problemático - que regula a totalidade, que por
Isso tem seu fundamento já na esséncia do cálculo es- princípio e qualitativamente é diferente daquele que regu-
peculador, da prática econômica dos possuidores de la as partes, é mais do que um postulado, do que uma
mercadorias, no estágio em que a troca de mercadorias condição de funcionamento para a economia capitalis-
se tornou universal. A concorrência entre os diversos ta nessa problemática; é, ao mesmo tempo, um produto
proprietários de mercadorias seria impossível se à ra- da divisão capitalista do trabalho. Já se ressaltou que
cionalidade dos fenômenos isolados correspondesse essa divisão do trabalho desloca todo processo organi-
também uma configuração exata, racional e funcional
camente unitário da vida e do trabalho, decompõe-no
das leis para toda a sociedade. Para que um cálculo
em seus elementos, para fazer com que essas funções
racional seja possível, os sistemas de leis que regulam
parciais e artificialmente isoladas sejam executadas por
todas as particularidades de sua produção devem ser
“especialistas” adaptados a elas psíquica e fisicamente.
dominados por completo pelo proprietário de merca-
No entanto, essa racionalização e esse isolamento das
dorias. As oportunidades de exploração, as leis do “mer-
funções parciais têm como conseqiiéncia necessária o
cado” devem ser igualmente racionais, no sentido de
que elas devem ser calculáveis e avaliadas segundo suas fato de cada uma delas se tornar autônoma e tender a
possibilidades. No entanto, não podem ser dominadas perseguir por conta própria seu desenvolvimento e se-
por uma “lei” como o são os fenômenos isolados, não gundo a lógica de sua especialidade, independente-
podem de modo algum ser organizadas racionalmente mente das outras funções parciais da sociedade (ou
por inteiro. Por si só, isso não exclui, evidentemente, o dessa parte à qual ela pertence). Naturalmente, essa
predomínio de uma “lei” sobre a totalidade. Contudo, tendência aumenta com a divisão crescente do traba-
essa “lei” deveria ser, de um lado, o produto “incons- lho, cada vez mais racionalizada. Pois, quanto mais ela
ciente” da atividade autônoma dos proprietários de se desenvolve, mais se intensificam os interesses pro-
mercadorias, que atuam sem depender uns dos outros, fissionais e de status dos “especialistas”, que se tor-
ou seja, uma lei das “contingéncias” que reagisse umas nam os portadores de tais tendências. E esse movimen-
sobre as outras e não a de uma organização realmente to divergente não se limita às partes de um setor deter-
racional. De outro, esse sistema de leis deve não somen- minado. É ainda mais claramente perceptível quando
te se impor aos individuos, mas ainda jamais ser inteira- consideramos os grandes setores produzidos pela di-
HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 229
228 GEORG LUKÁCS

visão social do trabalho. Engels® descreve da seguinte lidade, teria perdido o sentido da totalidade por forca
maneira esse processo na relação entre o direito e a eco- da especializagdo. Em resposta as afirmagdes de que
nomia: “O mesmo se passa com o direito: com a neces- “0s vários aspectos não são tratados em sua unidade”,
sidade da nova divisdo do trabalho, que cria juristas Marx?! enfatiza com razao que essa critica é concebida
“como se fossem os manuais a imprimir essa separa-
profissionais, abre-se um novo setor autdnomo que, não
ção na realidade, e ndo a realidade a imprimi-la nos
obstante toda sua dependéncia geral em relação a pro-
manuais”. Embora essa censura merega ser rejeitada
dução e ao comércio, possui também uma capacidade em sua forma ingénua, ela se torna inteligivel quando,
particular de reagir nesses setores. Num Estado moder- por um momento, consideramos a partir do exterior, e
no, o direito deve não somente corresponder à situação não do ponto de vista da consciéncia reificada, a ativi-
econdmica geral e ser sua expressdo, mas também ser dade da ciéncia moderna, cujo método é, tanto socio-
uma expressdo coerente em si mesma, que não se deixa 16gica quanto imanentemente, necessario e, portanto,
abalar por contradigdes internas. E, para consegui-lo, “compreensivel”. Tal consideração revelara, sem cons-
reflete de maneira cada vez mais infiel as condigdes tituir uma “critica”, que quanto mais uma ciéncia mo-
econdmicas [...].” Sem divida, não é necessário dar derna for desenvolvida, quanto mais ela alcangar uma
aqui outros exemplos de cruzamentos e rivalidades en- visão metédica e clara de si mesma, tanto mais voltard
tre os diversos “departamentos” da administração (que as costas aos problemas ontolégicos de sua esfera e os
se pense apenas na autonomia dos aparatos militares eliminar4 resolutamente do dominio de conceitualiza-
em relação à administragdo civil), das faculdades etc. ção que forjou.
Quanto mais desenvolvida e cientifica ela for, maior
é sua probabilidade de se tornar um sistema formal-
3. mente fechado de leis parciais e especiais, para o qual o
mundo que se encontra fora do seu dominio e sobretu-
Com a especializagao do trabalho, perdeu-se toda do a matéria que ela tem por tarefa conhecer, ou seja,
imagem da totalidade. E como a necessidade de apreen- seu próprio substrato concreto de realidade, passa sistema-
der a totalidade - a0 menos cognitivamente - não pode tica e fundamentalmente por inapreensivel. Marx® for-
desaparecer, tem-se a impressão (e formula-se essa re- mulou essa questdo com acuidade para a economia, a0
provação) de que a ciéncia, que trabalha igualmente explicar que “o valor de uso, enquanto valor de uso, es-
dessa maneira, isto é, que permanece igualmente nes- tá além da esfera de investigação da economia politica”.
se imediatismo, teria despedagado a totalidade da rea-

31, Zur Kritik der politischen Okonomie, MEW 13, p. 621.


30. Carta a Konrad Schmidt, 27/10/1890. MEW 37, p. 491. 32. Ibid., p. 16.
230 GEORG LUKÁCS HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE 231

E seria um erro acreditar que certas maneiras de colo- veis atitudes a seu respeito e a respeito do seu próprio
car a questão, como aquela da “teoria da utilidade mar- sistema de formas.
ginal”, são capazes de transpor essa barreira. Quando Novamente podemos observar com clareza a fnti-
se tenta partir de comportamentos “subjetivos” no mer- ma interação entre o método cientifico, que nasce do
cado, e não de leis objetivas da produção e do movi- ser social de uma classe, de suas caréncias e de sua ne-
mento de mercadorias, que determinam o próprio mer- cessidade de dominar conceitualmente esse ser, e o pró-
cado e os modos “subjetivos” de comportamento no prio ser dessa classe. Já ressaltamos várias vezes, nes-
mercado, apenas se desloca a questão para níveis ain- tas e em outras paginas, que a crise é o problema que
da mais derivados, mais reificados, sem suprimir o ca-
impde ao pensamento econdmico da burguesia uma
ráter formal do método, que, por princípio, elimina os barreira intransponivel. Se entao considerarmos — cons-
cientes de nossa parcialidade — essa questão de um pon-
materiais concretos. O ato da troca em sua generalida-
de formal, que para a “teoria da utilidade da marginal” to de vista puramente metódico, veremos que quando
conseguimos racionalizar integralmente a economia,
permanece precisamente o fato fundamental, suprime
metamorfosed-la num sistema de “leis” formal, abs-
igualmente o valor de uso enquanto valor de uso e cria,
trato e matematizado ao extremo, constituimos a bar-
assim, essa relação de igualdade abstrata entre mate-
reira metodolégica para a compreenséo da crise. Nos
riais concretamente desiguais e até mesmo inigualá-
perfodos de crise, o ser qualitativo das “coisas”, que
veis, dos quais nasce essa barreira. Desse modo, o su-
leva sua vida extra-econdmica como coisa em si, in-
jeito da troca é tão abstrato, formal e reificado quanto compreendida e eliminada, e como valor de uso que jul-
seu objeto. E os limites desse método abstrato e formal gamos poder tranqiiilamente negligenciar durante o
se revelam justamente pelo objetivo que ele se propõe funcionamento normal das leis econdmicas, torna-se
atingir: um “sistema de leis” abstrato, que a teoria da subitamente (para o pensamento racional e reificado)
utilidade marginal coloca no centro de tudo, exata- o fator decisivo. Ou melhor: seus efeitos se manifestam
mente como fizera a economia clássica. A abstração for- sob a forma de uma paralisagdo no funcionamento des-
mal desse sistema de leis transforma continuamente a sas leis, sem que o entendimento reificado esteja em
economia num sistema parcial fechado que, por um condições de encontrar um sentido nesse “caos”. E essa
lado, não é capaz nem de penetrar em seu próprio subs- insuficiéncia não concerne apenas à economia cldssica,
trato material, nem de encontrar a partir dele a via para que só conseguiu perceber nas crises perturbagdes “pas-
o conhecimento da totalidade social, e, por outro, com- sageiras” e “contingentes”, mas também ao conjunto da
preende essa matéria como um “dado” imutável e eter- economia burguesa. O caréter incompreensivel da cri-
no. Com isso, a ciência perde a capacidade de com- se e sua irracionalidade são, por certo, uma conseqiién-
preender o nascimento e o desaparecimento, o caráter cia da situação e dos interesses da classe burguesa, mas
social de sua própria matéria, bem como o das possí- são também, formalmente, a conseqiiéncia necessaria
232 GEORG LUKÁCS HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE 233

do seu método econômico. (Não é necessário explicar ao mesmo tempo, de máquinas, de matérias-primas,
detalhadamente que estes constituem para nós dois as- de força de trabalho de um tipo inteiramente determi-
pectos de uma unidade dialética.) Essa necessidade re- nado (tecnicamente determinado), que devem estar
lativa ao método é tão forte que a teoria de Tugan-Ba- disponíveis enquanto valores de uso desse tipo especí-
ranovski, por exemplo, ao resumir um século de expe- fico, para evitar perturbações”. Marx* descreveu vá-
riências com as crises, tenta eliminar completamente da rias vezes, de maneira convincente, quão inadequados
economia o consumo e fundar uma economia “pura”, são esses movimentos de fenômenos econômicos, que
baseada somente na produção. Em vista de tais tentati- se exprimem nos conceitos de “lei” da economia bur-
vas, que pensam então encontrar a causa das crises, cuja guesa, para explicar o movimento real do conjunto da
existência não pode ser negada, na desproporção dos vida econômica; essa barreira reside na impossibilida-
elementos da produção, isto é, nos aspectos puramen- de - inevitável quanto ao método - de compreender o
te quantitativos, Hilferding? tem toda razão ao ressal- valor de uso e o consumo real. “No interior de certos
tar que “elas operam somente com os conceitos econô- limites, o processo de reprodução pode ter lugar no
micos de capital, de lucro, de acumulação etc. e créem mesmo nível ou num nível ampliado, ainda que as
possuir a solução do problema com a divulgação das mercadorias rejeitadas por ele não tenham entrado
relações quantitativas, com base nas quais é possível a realmente no consumo individual ou produtivo. O
reprodução simples e ampliada ou o aparecimento de consumo de mercadorias não está incluído no circuito
perturbações. No entanto, elas ignoram o fato de que a do capital de onde saíram. Tão logo o fio, por exem-
essas relações quantitativas correspondem, ao mesmo plo, é vendido, o circuito do valor de capital represen-
tempo, condições qualitativas, de que a elas se opõem tado no fio pode recomeçar, seja qual for o destino do
não apenas somas de valores simplesmente comensu- fio vendido. Enquanto o produto se vende, tudo segue
ráveis entre si, mas também valores de uso de uma es- seu curso regular do ponto de vista do produtor capi-
pécie determinada e que devem preencher na produção talista. O circuito do valor de capital que ele represen-
e no consumo papéis determinados; ignoram também ta não é interrompido. E se esse processo é ampliado —
o fato de que, na análise do processo de reprodução, há o que implica um consumo produtivo maior dos meios
mais do que a oposição entre partes de capital em geral, de produção -, essa reprodução do capital pode vir
de modo que um excesso ou uma falta de capital indus- acompanhada do consumo (portanto, de uma deman-
trial, por exemplo, possa ser ‘compensado’ por uma da) individual maior dos trabalhadores, visto que esse
parte correspondente de capital financeiro. Também não processo é conduzido e mediado por um consumo
se trata apenas de um capital fixo ou circulante, mas, produtivo. Sendo assim, a produção da mais-valia e o

33. Finanzkapital, 2º edição, pp. 378-9. 34, Kapital 1, MEW 24, pp. 80-1.
234 GEORG LUKACS HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE 235

consumo individual do capitalista crescem, todo o pro- organização no mesmo domínio (como o valor de uso
cesso de produção encontra-se no estado de maior flo- e o valor de troca na economia política), mas apareceu
rescimento e, no entanto, uma grande parte das merca- desde o início como um problema de forma e de con-
dorias passa apenas aparentemente para o consumo, teúdo. A luta pelo direito natural e o período revolucio-
enquanto, na realidade, não é vendida pelos revende- nário da classe burguesa partem justamente do princi-
dores e, de fato, ainda se encontra, portanto, no merca- pio de que a igualdade formal e a universalidade do di-
do.” É preciso chamar a atenção particularmente para reito (sua racionalidade, portanto) estão em condição
o fato de essa incapacidade de penetrar no substrato de determinar, a0 mesmo tempo, seu conteúdo. Com-
material real da ciéncia não ser imputável a indivi- bate-se assim, de um lado, o direito diversificado, he-
duos. Ela é, antes, algo que se torna cada vez mais evi- teréclito e derivado da Idade Média, que se apdia nos
dente na medida em que a ciência evolui e trabalha privilégios, e, de outro, o monarca que se coloca além
com maior coerência a partir de suas próprias premis- do direito. A classe burguesa revolucionaria recusa ver
sas. Não é, portanto, por acaso, como descreveu de ma- na existéncia de uma relação juridica, em sua facticida-
de, o fundamento de sua validade. “Queimai vossas
neira convincente Rosa Luxemburgo®, que a grandiosa
Jeis e fazei leis novas”, aconselhava Voltaire. “De onde
concepção de conjunto, embora bastante primitiva, de-
tirar novas leis? Da razdo.”3 Em sua maior parte, a
ficiente e inexata, que ainda existia no Tableau économi-
que de Quesnay, sobre a totalidade da vida econômica,
luta contra a burguesia revolucionéria na época da Re-
volução Francesa, por exemplo, encontrava-se tão for-
desaparece cada vez mais no desenvolvimento que leva
temente dominada por esse pensamento, que esse di-
de Smith a Ricardo, com a exatidão crescente na elabo-
ração formal de conceitos. Para Ricardo, o processo de
reito natural só poderia se opor a outro direito natural
reprodução total do capital não é mais um problema (Burke e Stahl). Somente após a vit6ria a0 menos par-
central, ainda que esse problema não possa ser evitado.
cial da burguesia é que se manifesta nos dois campos
uma concepgao “critica” e “hist6rica”, cuja esséncia pode
Essa situação aparece ainda com mais clareza e
ser resumida pela idéia de que o contetido do direito é
simplicidade na jurisprudência devido à sua atitude
algo puramente factual e não pode, portanto, ser com-
mais conscientemente reificada. Isso ocorre porque aqui
preendido pelas categorias formais do préprio direito.
a impossibilidade de conhecer o conteúdo qualitativo a
Das exigéncias do direito natural não subsiste mais do
partir da forma do cálculo racionalizado não adquiriu
que a idéia da continuidade completa do sistema formal
a forma de uma concorrência entre dois princípios de
do direito; significativamente, Bergbohm? nomeia tudo

35. Akkumulation des Kapitals, 1º edição, pp. 78-9. Seria um traba-


lho fascinante elaborar a relação entre o método desse desenvolvimen- 36. Apud Bergbohm, Jurisprudenz und Rechtsphilosophie, p. 170.
to e o dos grandes sistemas racionalistas. 37. Ibid., p. 375.
237
236 GEORG LUKÁCS HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE

o que não é regulamentado juridicamente como “um vá- camente tão incompreensivel quanto a crise para a eco-
cuo jurídico”, usando um empréstimo da terminologia nomia politica. Com efeito, Kelsen®, jurista “critico” e
da física. Porém, a coesão dessas leis é puramente for- perspicaz, diz o seguinte a propésito do surgimento do
mal: o que exprimem, “o conteúdo das instituições ju- direito: “E o grande mistério do direito e do Estado que
rídicas nunca é de natureza jurídica, mas sempre de se realiza no ato legislativo, e por isso se justifica o fato
natureza política e econômica”?8. Assim, a luta primi- de que a esséncia desse ato se torna sensivel por ima-
tiva, cinicamente cética, levada contra o direito natural, gens insuficientes.” Ou ainda, em outros termos: “E um
que começa com o “kantiano” Hugo no fim do século fato caracteristico da esséncia do direito que mesmo
XVIII, adquire uma forma “cientifica”. Entre outras coi- uma norma nascida de maneira contréria a ele possa
sas, Hugo¥ fundou com isso o caráter juridico da es- ser uma norma juridica; ou seja, a origem legitima de
cravidão: “Durante séculos, ela foi realmente de direito uma lei ndo pode ser inscrita no conceito de direito
entre milhões de pessoas cultivadas.” Mas nessa fran- como uma de suas condigdes.”4! Esse esclarecimento
queza ingenuamente cínica transparece com clareza a epistemolégico poderia ser factual e, por conseguinte,
estrutura que se torna cada vez mais caracteristica do significar um progresso do conhecimento se, por um
direito na sociedade burguesa. Quando Jellinek desig- lado, o problema do surgimento do direito, deslocado
na o contetido do direito como metajuridico, quando os para outras disciplinas, encontrasse nelas uma solugao
juristas “criticos” situam o estudo do contetido do direi- e se, por outro, a esséncia do direito, que surge desse
to na histéria, na sociologia, na politica etc. fazem ape- modo e serve simplesmente para calcular as conseqiién-
nas, em última analise, o que Hugo ja havia reclamado: cias de uma ação e para impor racionalmente modos
renunciam metodicamente à possibilidade de fundar de ação derivados de uma classe, pudesse, a0 mesmo
o direito na razão e de dar-lhe contetido racional; perce- tempo, ser realmente revelada. Pois, nesse caso, 0 subs-
bem no direito nada mais do que um sistema formal de trato material e real do direito apareceria de um tinico
calculo, com auxilio do qual podem ser calculadas as golpe de maneira visivel e compreensivel. Mas nenhum
conseqtiéncias juridicas necessarias de ações determi- dos dois é possivel. O direito continua em ligação es-
nadas (rebus sic stantibus) com a méxima exatidao. treita com os “valores eternos”, o que dá origem, sob a
Ora, essa concepgao do direito transforma o surgi-
forma de uma filosofia do direito, a uma nova edição,
mento e o desaparecimento do direito em algo juridi- formalista e mais pobre, do direito natural (Stammler).
E o fundamento real da origem do direito, a modifica-

38. Preuss, Zur Methode der juristischen Begrifsbildung. Schmollers ção das relagdes de poder entre as classes, tornam-se
Jahrbuch, 1900, p. 370.
39. Lehrbuch des Naturrechts. Berlim, 1799, § 141. A polémica de
Marx contra Hugo (MEW I, pp. 78 ss.) coloca-se ainda de um ponto de vis- 40, Hauptprobleme der Staatsrechtslehre, p. 411 (itálico do autor).
ta hegeliano. 41, F. Somlo, Juristische Grundlehre, p. 177.
238 GEORG LUKÁCS HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 239

confusos e desaparecem nas ciências que tratam do di- pode, em geral, ser colocado em dúvida (é o caso da fi-
reito, nas quais — de acordo com as formas de pensa- Josofia irracionalista, de Hamann até Bergson). Mas,
mento da sociedade burguesa - nascem os mesmos pro- ao lado dessas correntes episodicas, o desenvolvimen-
blemas da transcendência do substrato material que to filosófico continua a ter como tendéncia fundamen-
na jurisprudência e na economia política. tal reconhecer os resultados e os métodos das ciéncias
A maneira como é concebida essa transcendência particulares como necessarios, como dados, e atribuir
mostra que seria vão alimentar a esperança de que a a filosofia a tarefa de desvendar e justificar a base da
coesão da totalidade — a cujo conhecimento as ciências validade dos conceitos assim formados. A filosofia
particulares renunciaram conscientemente ao se dis- toma, assim, em relação as ciéncias particulares, exata-
tanciarem do substrato material do seu aparato con- mente a mesma posição que estas em relação a realida-
ceitual — pudesse ser adquirida por uma ciência que, de empirica. Na medida em que a conceituação forma-
pela filosofia, inclufsse todas. Isso seria possivel somen- lista das ciéncias particulares torna-se para a filosofia
te se a filosofia rompesse as barreiras desse formalis- um substrato imutavelmente dado, afasta-se, definiti-
mo mergulhado na fragmentação, colocando a ques- vamente e sem esperanga, toda possibilidade de revelar
tdo segundo uma orientagio radicalmente diferente e a reificação que estd na base desse formalismo. O mun-
orientando-se para a totalidade material e concreta do do reificado aparece doravante de maneira definitiva
que pode ser conhecido, do que é dado a conhecer. Para — e se exprime filosoficamente, elevado a segunda po-
isso, no entanto, seria preciso revelar os fundamentos, téncia, num exame “critico” - como o tinico mundo
a génese e a necessidade desse formalismo; desse mo- possivel, conceitualmente acessivel e compreensivel,
do, as ciéncias particulares especializadas não pode- que é dado a nés, os homens. Se isso suscita a transfigu-
riam estar ligadas mecanicamente numa unidade, mas ração, a resignagio ou o desespero, se eventualmente
ser remodeladas, inclusive interiormente, pelo método busca um caminho que leve à “vida” por meio de uma
filos6fico interiormente unificador. É claro que a filo- experiéncia mistica e irracional, em nada muda a natu-
sofia da sociedade burguesa é incapaz disso. Não que reza dessa situação. Ao limitar-se a estudar as “possi-
não haja um desejo de sintese, nem pelo fato de os me- veis condições” da validade das formas nas quais se
lhores terem aceitado com alegria a existéncia mecani- manifesta seu ser subjacente, o pensamento burgués fe-
zada e hostil à vida e a ciéncia formalizada e estranha cha a via que leva a uma maneira de colocar os proble-
a vida. Mas uma modificagdo radical do ponto de vista é mas claramente, às questdes relativas ao surgimento e
impossfuel no terreno da sociedade burguesa. Pode surgir ao desaparecimento, relativas à esséncia real e ao subs-
como tarefa da filosofia (ver Wundt) uma tentativa para trato dessas formas. Sua perspicacia encontra-se cada
abarcar de maneira enciclopédica todo o saber. O va- vez mais na situagdo dessa “critica” lendaria na Índia
lor do conhecimento formal em relação a “vida viva” que, diante da antiga representação segundo a qual o
HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE 241
240 GEORG LUKÁCS

mundo repousa sobre um elefante, lançava a seguinte tação se explica precisamente pelo fato de que a filos(?—
questão “crítica”: sobre o que repousa o elefante? Mas, fia grega, embora tenha conhecido os fenômenos da rei-
após ter encontrado a resposta de que o elefante repou- ficação, não chegou a vivenciá-los como formas uni-
sa sobre uma tartaruga, a “crítica” sentiu-se satisfeita. versais da totalidade do ser; pelo fato de que tinha um
É claro que, mesmo insistindo em semelhante questão pé nessa e outro numa sociedade de estrutura “natu-
“crítica”, teria encontrado, quando muito, um terceiro ral”. Sendo assim, seus problemas podem ser utiliza-
animal maravilhoso, mas não teria feito aparecer a so- dos nas duas orientações da evolução - ainda que com
o auxílio de reinterpretações enérgicas.
lJução da questão real.

1.
TI. As antinomias do pensamento burguês
Em que consiste essa diferenga fundamental? Kant?
A filosofia crítica moderna nasceu da estrutura rei-
formulou-a claramente no preficio à segunda edição
ficada da consciência. Nessa estrutura, tém origem os
da Critica da razão pura, ao empregar a célebre expres-
problemas específicos dessa filosofia, que se distin-
são “revolução copernicana”, que deve ser aplicada ao
guem da problemática das filosofias anteriores. A filo-
problema do conhecimento: “Até agora, admitiu-se que
sofia grega constitui uma exceção, e não é por acaso,
todo o nosso conhecimento deveria orientar-se de acor-
pois o fenômeno da reificação também desempenhou
do com os objetos [...] Tentemos, pois, por um momen-
um papel na sociedade grega desenvolvida. Mas, cor-
to, ver se não progredirfamos melhor nas tarefas da
respondendo a um ser social totalmente diferente, a metafisica, admitindo que os objetos devem orientar-se
problemática e as soluções da filosofia antiga são qua- de acordo com o nosso conhecimentol...].” Em outros
litativamente diferentes daquelas da filosofia moder- termos, a filosofia moderna coloca-se o seguinte pro-
na. Portanto, do ponto de vista de uma interpretação blema: não mais aceitar o mundo como algo que sur-
adequada, é tão arbitrário imaginar descobrir em Pla- giu independentemente do sujeito cognoscitivo (por
tão um precursor de Kant (como o faz Natorp, por exemplo, algo criado por Deus), mas concebé-lo, an-
exemplo), quanto empreender (tal qual Tomás de Aqui- tes, como o préprio produto do sujeito. Pois essa revol(u-
no) a construção de uma filosofia sobre Aristóteles. Se ção, que consiste em apreender o conhecimento racio-
as duas empresas foram possíveis — ainda que de ma- nal como um produto do espirito, não vem de Kanf,
neira arbitrária e inadequada -, isso se deve, de um que se limitou a tirar suas conclusões de maneira mais
lado, ao uso que fazem habitualmente épocas ulterio-
res da herança histórica transmitida, respondendo sem-
pre a objetivos próprios. De outro, essa dupla interpre- 2. Reclam, p. 17

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