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DIREITO, CAPITALISMO E ESTADO: DA LEITURA

MARXISTA DO DIREITO

Alysson Leandro Mascaro

O entendimento do direito não é um acessório para a crítica marxista.

Na questão jurídica reside grande nervo da ciência revolucionária. O

problema da forma jurídica e de sua superação, embora desconhecido ou

descuidado por grande parte dos batalhadores das lutas sociais, é crucial

para a ação revolucionária socialista, sendo seu índice e termômetro. Tal

saber marxista sobre o direito descortina, ao mesmo tempo, duas grandes

aberturas: é tanto o guia radical para a política, suas dificuldades e suas

estratégias, quanto, também, a mais exigente compreensão interna do

próprio direito, que nem mesmo o jurista assentado nas melhores

autorreferências técnicas possui.

De uma longa trajetória teórica que vai de Marx a Pachukanis e chega

a pensadores centrais da atualidade como, no Brasil, Márcio Bilharinho

Naves, no balanço do atual estágio deste saber – a partir de seus pontos

nodais, suas descobertas, dificuldades e necessidades de investigação –,

proponho a leitura de treze pontos decisivos da reflexão marxista sobre o

direito. Alguns deles são hauridos diretamente da relação entre direito e

capitalismo, outros, devidos às próprias questões internas do direito daí

decorrentes e, ainda outros mais, advindos da imbricação entre direito e

política.

Direito e capitalismo

1
A relação intrínseca entre direito e capitalismo

Há uma relação necessária entre direito e capitalismo . O

direito não é um conjunto de técnicas neutras, nem tampouco é a

manifestação de ideais elevados ou pretensas dignidades

humanas. A questão jurídica não paira, sobranceira ou imaculada,

por sobre a exploração do capital . Naquilo que tem de fundamental e


estrutural, o direito se apresenta como forma social reflexa e derivada de

relações sociais específicas. Só é possível compreender o direito dentro do

quadro da sociabilidade capitalista1. Assim sendo, o direito é histórico. E tal

historicidade do fenômeno jurídico é dupla: tanto seus institutos (seu

conteúdo ou sua quantidade) são variáveis em razão de dinâmicas sociais

múltiplas, como, em especial, sua forma é social e insignemente histórica,

guardando com o capitalismo particular e inexorável conexão.

A especificidade do direito

O nexo entre direito e capitalismo não é ocasional, como se a

juridicidade fosse fenômeno mais largo, lateral ou indiferente em face das

relações capitalistas e, então, estas fariam ao seu modo um aproveitamento

daquele. O liame entre capitalismo e direito não é de uso ou

1
A bibliografia fundamental do marxismo jurídico, apontando para o nexo intrínseco entre
direito e capitalismo, começa, em especial, a partir do horizonte de compreensão aberto
por Marx em O capital (v. 1, São Paulo: Boitempo, 2013). Logo no alvorecer da experiência
soviética, será Pachukanis, em Teoria Geral do Direito e Marxismo (São Paulo: Acadêmica,
1988), que dará corpo e trato a tal conexão. No contexto de tal debate, ainda, Stucka,
Direito e luta de classes (São Paulo: Acadêmica, 1988).

2
proveito, nem de acoplamento acidental ou incidental. Trata-se

de uma junção nuclear, estrutural e inexorável. Só há

juridicidade no capitalismo. Há, portanto, uma especificidade histórico-


social do direito2.

A forma social do direito somente se estabelece quando a

circulação de mercadorias se apresenta e se impõe como um

círculo pleno e necessário das relações sociais. Para que haja essa
plenitude da mercadoria, é preciso que todos sejam tomados, em suas

interações, com algum grau de igualdade para o estabelecimento de vínculos

obrigacionais, que, por sua vez, têm que apresentar um índice manifesto de

autonomia da vontade. Tal articulação social é a capitalista, e somente ela

permitiu relações de produção calcadas no trabalho como mercadoria, na

extração de mais-valor e na mercantilização tendente à totalidade.

No fulcral de sua especificidade capitalista, o direito é

constituinte da interação entre capital e trabalho. A reprodução

do mundo do salariado é seu ambiente. A separação entre detentores


dos meios de produção e trabalhadores, a apropriação e a vinculação

obrigacional como forma maior de circulação da mercadoria são suas

condições. A forma jurídica opera para constituir as relações de produção

capitalistas. E sua especificidade é também seu proveito. O direito não

permite a superação da exploração e das contradições do capitalismo.

2
É Pachukanis que aprofunda a especificidade do direito no capitalismo, na Teoria Geral do
Direito e Marxismo. Márcio Bilharinho Naves, em suas obras, sistematiza e desdobra as
implicações da especificidade do direito no capitalismo, em especial em Marxismo e direito:
um estudo sobre Pachukanis (São Paulo: Boitempo, 2000), Marx: ciência e revolução (São
Paulo: Quartier Latin, 2008) e na coletânea O discreto charme do direito burguês
(Campinas: IFCH/ Unicamp, 2009).

3
O direito na esfera da circulação e da produção

Situar a especificidade do direito no capitalismo implica,

diretamente, ter de identificar este modo de produção em face de outros.

O capitalismo é a sociedade da mercadoria, mas isso de maneira distinta

daquela pela qual o passado, escravagista ou feudal, conheceu a mercadoria 3.

De modo isolado ou mesmo em circuitos parciais, a circulação se deu

em sociedades pré-capitalistas; a Idade Moderna, momento simbólico e

nodal dessa transição entre modos de produção, conheceu um crescente

nível de mercantilização. Em todos esses casos, a mercadoria é incidental,

nem se podendo considerá-la como tal nos termos em que depois se

estabelece. O capitalismo, como sociedade da mercadoria, somente se

estabelece quando o trabalho se torna mercantil. Formas anteriores de jugo

de pessoas ao trabalho, como a escravista ou a servil, são constituídas pela

força, pelo mando direto, pela dominação política ou pela relação direta

entre apropriação e vassalagem. O jugo de pessoas ao trabalho, no

capitalismo, é constituído pela mercantilização do vínculo, fazendo com que

o trabalhador se submeta ao capital por via contratual. Daí, nesse tipo de

relação de produção, o papel do direito se torna estrutural.

Apenas se verifica o trabalho como plena mercadoria quando o

trabalhador é despossuído não só dos meios de produção, mas também das

3
Márcio Bilharinho Naves, em seu mais recente livro, A questão do direito em Marx (São
Paulo: Outras Expressões e Dobra Universitária, 2014, cap. 2), é responsável pela leitura
mais avançada e inovadora sobre a especificidade do direito e da mercadoria a partir do
momento da subsunção real do trabalho ao capital. Adoto aqui tal leitura. Ainda, no plano de
uma análise econômica que alcance tal especificidade, cf. Gianfranco La Grassa, Valore e
formazione sociale (Roma: Riuniti, 1975). Sobre a refutação do circulacionismo em
Pachukanis, Márcio Bilharinho Naves, Marxismo e direito (op. cit., cap. 2).

4
disposições e dos saberes específicos para a realização do próprio trabalho.

Trata-se aqui, então, da subsunção real do trabalho ao capital, que opera

para além da mera subsunção formal de um a outro. Enquanto isto não

ocorre, ainda há meandros das forças do trabalhador – ou mesmo de

associações de trabalhadores, como as corporações de ofício – que resistem

à total generalização e à abstração. O trabalho se torna mercadoria quando

os mecanismos de produção arrancam do trabalhador as suas eventuais

condições pessoais ou grupais ainda insignes, de modo que o trabalho se

arma como abstrato e, como derivado disso, o trabalhador será também um

sujeito abstrato.

O trabalho dado apenas em condições de subsunção formal é a última

etapa de resistência ao estabelecimento da mercadoria como forma social

nas relações de produção. Daí, mesmo que já em um grau adiantado de

quantidade de mercantilização, essa etapa ainda não é plenamente

capitalista. A forma da mercadoria não está constituída. A passagem do

trabalho à condição de subsunção real dá então o encadeamento geral das

relações da mercadoria, que se tornam, aqui, universais, gerais e abstratas.

Por isso, no capitalismo, a circulação mercantil não se funda nos seus

próprios termos: ela é o imediato da produção como mercadoria. Daí não

caber, à tese fundamental de Pachukanis sobre a associação entre a forma

jurídica e a forma mercantil, a pecha de circulacionismo, dado que a

circulação só pode ser capitalista quando fundada no trabalho como

mercadoria, ou seja, na produção.

Direito e passado. O pré-capitalismo

A especificidade da forma jurídica no capitalismo contrasta com as

conhecidas e louvadas manifestações da existência de um direito no pré-

5
capitalismo, de que seria exemplo notável o direito romano. Mas há uma

dissociação entre as manifestações jurídicas do passado e as do presente.

De tal sorte se estabelece uma não continuidade entre esses dois momentos

que se deve, com melhor proveito, tratar o direito pré-capitalista como um

fenômeno não jurídico4.

O fenômeno jurídico pré-capitalista não se funda na categoria da

subjetividade jurídica. A se tomarem os próprios termos da história

narrada por uma dogmática da teoria geral do direito, sujeito de direito e

direito subjetivo são categorias surgidas apenas na modernidade. A facultas

agendi dos romanos, o status quo dos medievais e mesmo dos modernos

antes de revoluções burguesas, são condições sociais de privilégio que não

são comparáveis ao direito subjetivo, universal, genérico e abstrato, que só

surge em relações sociais capitalistas.

Como o passado guarda uma ampla e altamente variável quantidade de

regulações, normativas, decisões, poderes, submissões, exortações e

prédicas, é todo esse complexo que parece fazer a juridicidade ser

inespecífica da sociabilidade presente. O que ocorre é que tal vinculação

dita jurídica do pré-capitalismo se dá entre agentes que interagem a partir

de múltiplas hierarquias entre si, tudo isso atravessado por elementos da

força bruta, do poderio direto e da religião [perfeito, perfeito !!!]. As

4
Em A questão do direito em Marx (op. cit., cap. 2), Márcio Bilharinho Naves avança
para dissociar a forma jurídica das manifestações ditas jurídicas do pré-capitalismo,
com destaque para seu estudo acerca do direito romano. É também no mesmo livro que
Naves elabora a compreensão de uma determinação política para a equivalência subjetiva
nos antigos, o que conduz, então, a vislumbrar como impossível o direito romano (op. cit.,
cap. 2, em especial p. 68 a 77). Em chave factual-histórica sobre o direito, cf. Michael E.
Tigar e Madeleine R. Levy, O direito e a ascensão do capitalismo (Rio de Janeiro: Zahar,
1978) e Aldo Schiavone, Ius. La invención del derecho em Occidente (Buenos Aires,
Argentina: Adriana Hidalgo Editora, 2009).

6
relações permeadas de verticalidade, os poderes, as injunções políticas e as

moralidades são outras coisas quando comparados à forma social que

identifica o direito no capitalismo. Não são nem sequer embrionárias da

forma jurídica, no sentido de serem formas incompletas, imperfeitas ou

parciais. Se o capitalismo instaura uma plena subjetivação jurídica como

forma social de agentes livres, iguais e equivalentes, então aquilo que se

chama por direito no passado é, em verdade, empecilho para o surgimento

disso [esclarecedor !!!]. As revoluções burguesas são mostras de que o

privilégio não é o embrião do direito subjetivo, mas sim seu oposto. [????]

Os vínculos contratuais do passado não se estabelecem como

vontades livres e autônomas de sujeitos iguais e equivalentes. A disposição

da vontade opera em terreno permeado por injunções políticas, religiosas,

morais e de força, diferenças, justaposições, hierarquias, privilégios,

poderes e submissões. A contratualização por agentes estatutariamente

distintos faz com que a obrigação, na antiguidade, no medievo e mesmo no

albor da modernidade, não opere com base na equivalência. O pré-

capitalismo não dá ensejo à forma de subjetividade jurídica.

Direito e futuro. Transição socialista

Como decorrência da especificidade capitalista do direito, o

socialismo não é baseado em formas sociais que sejam jurídicas. O

aprofundamento da transição e das lutas transformadoras inscreve, aliás,

como índice de socialismo, a extinção da forma jurídica 5.


5
Pachukanis ao afirmar o direito como um índice de ausência de transição ao socialismo
sofreu, inclusive pessoalmente, sob o stalinismo. Sobre o assunto, cf. Friedrich Engels e
Karl Kautsky, O socialismo jurídico (São Paulo: Boitempo, 2012); Márcio Bilharinho Naves
(org.), Análise Marxista e Sociedade de Transição (Campinas: IFCH/Unicamp, 2005); e
Luciano Cavini Martorano, A Burocracia e os Desafios da Transição Socialista (São Paulo:
Xamã e Anita Garibaldi, 2002). Ainda, Carlos Rivera Lugo, ¡Ni uma vida más al Derecho!,

7
As lutas de superação do capitalismo não podem ser feitas a partir

das ferramentas hauridas das formas constituintes da própria dinâmica

social das mercadorias. Por isso, não há hipótese de transição ao socialismo

que seja realizada por empreendimentos jurídicos, remanejamentos de

direitos, utilização do direito como arma de combate etc. O direito

insurgente tem um limite muito claro, dado que a juridicidade, ainda que de

esquerda, de reformas sociais progressistas, é forma espelho da forma

mercadoria. Um direito de esquerda remaneja propriedades, dá garantias

maiores a classes e grupos desfavorecidos econômica e socialmente,

desapropria ou até mesmo no limite expropria, mas tudo isso num mundo de

arranjo de direitos subjetivos, não de apreensão direta por meio dos

produtores.

A tomar de um nível primeiro, no que tange à propriedade privada, a

apropriação das coisas do mundo sob forma de direitos subjetivos erga

omnes é capitalista, ainda que matizada por variadas modulações de

intervencionismo. Mesmo a propriedade estatal – caso havido na experiência

soviética – é um arranjo de subjetividade jurídica. Mas, mais que isso, a

disposição das necessidades e das possibilidades, do trabalho e do controle

dos meios e processos de produção mediante vínculos contratuais é o

elemento central que deve ser superado se se quiser alcançar um modo de

produção pós-capitalista. A forma de subjetividade jurídica, jogando papel

estrutural no capitalismo, é justamente fator a ser extinto.

O medo profundo dos indivíduos em face da extinção da forma da

subjetividade jurídica se deve ao fato de que a percepção da subjetividade

é toda calcada – em suas práticas materiais e na totalidade de seus

horizontes referenciais – em condições dadas, constituídas e garantidas

(Aguascalientes e San Luis Potosí: Cenejus, 2014).

8
pelo direito. Isso impede de mirar e projetar o fato de que a extinção da

forma jurídica em um modo de produção superador do capitalismo não é a

opressão do indivíduo mas, antes, a sua constituição em outras formas, como

as de solidariedade. O que se encerra é o mundo do vincular-se por

obrigação e do ter por direito. A individualidade, em relações de produção

para além da mercadoria, tende a aflorar, não a refluir.

A extinção da forma jurídica no movimento de transição ao socialismo

é o que permite divisar contrastes em face de movimentos do século XX que

arrogaram o socialismo como transição a um novo direito ou a uma mera

mudança no controle e no domínio do Estado e das normas jurídicas – como o

stalinismo e as experiências de reformismo ou de bem-estar social.

A aceleração da extinção da sociabilidade das mercadorias é também

a aceleração da extinção da forma jurídica, dado que, em linhas gerais, uma

luta insurgente e progressista ainda inscrita dentro desta forma opera um

arranjo distributivo reformista, representando, justamente, um caminho de

enfrentamento que é de não ruptura. Via de regra, uma reforma

progressista do presente acaba por contornar e postergar a agudização das

contradições da mercadoria.

Do direito e suas estruturas

A forma jurídica

O fundamental do direito é a forma jurídica, que é espelho da forma

mercantil. Embora a compreensão do jurista e mesmo da sociedade sobre o

direito considere por forma tudo o que envolve a norma jurídica – sendo a

nomenclatura “formal” costumeiramente tomada como um sinônimo de

9
normativo –, a forma jurídica, enquanto forma social, não é normativa, mas

sim forma de subjetividade jurídica6.

A forma jurídica se erige no contexto das próprias relações sociais

capitalistas, numa relação estrutural. Os portadores de mercadorias

trocam-nas mediante dispositivos de vontade em condições de igualdade

para tal vínculo. A equivalência é a chave da mercadoria e, também, da

forma pela qual os sujeitos a circulam. Uma forma social advém de práticas

reiteradas, que geram uma consolidação de interações relacionais. Nessa

dinâmica, a forma social advém das práticas e, ao mesmo tempo, põe-nas em

constrição.

A tomar o processo histórico de surgimento do capitalismo, as

relações de troca e de exploração do trabalho assalariado não foram dadas

nem constituídas, de pronto, por normas jurídicas. As relações entre

sujeitos que portam mercadorias são materiais, jungidas no solo econômico.

O Estado e o direito refletem de modo derivado, ainda que com algum grau

de autonomia, uma concreção relacional prévia. A forma jurídica, assim, não

é normativa, dado que sujeitos em troca existem antes de haver uma

universalização da categoria técnica de sujeito de direito ou, mesmo, uma

teorização jurídica sistemática a respeito, que viesse a extrair direitos

subjetivos e deveres de normas jurídicas estatais.

A forma da subjetividade jurídica não é estatal nem jurídica, se se

tomasse isso por conta de ser criada ou sustentada por instituições internas

do direito. É forma social derivada da forma mercadoria.

6
Cf. Pachukanis (op. cit., caps. III e IV). Ainda, Alysson Leandro Mascaro, Introdução ao
Estudo do Direito (São Paulo: Atlas, 2015, cap. 1).

10
A subjetividade jurídica

A subjetividade jurídica é a condição necessária resultante dos

portadores de mercadorias quando as trocam no mercado. Se o escravismo e

o feudalismo se articulam a partir da sujeição de alguém a alguém, o

capitalismo se estrutura pela mediação de uma sujeição especificamente

jurídica. A concreção da subjetividade jurídica como forma social se dá

quando o trabalho é plenamente mercadoria, com a subsunção real do

trabalho ao capital. Este é o tempo em que, inclusive, as amarras dos antigos

privilégios e do status quo vão sendo rasgadas, em favor de uma dinâmica de

universalização dos contratos entre sujeitos iguais e livres 7.

É justamente na posição de igualdade dos sujeitos para os vínculos

contratuais que se dá o ensejo da desigualdade econômica. Entre igualdade

formal e desigualdade real não se dá uma oposição nem uma negação nem um

ocultamento do outro. Para a desigualdade, é preciso a igualdade. É

justamente no plano da equivalência subjetiva que pode se dar a extração do

valor, a circulação de mercadorias e a exploração.

A forma sujeito moderna se funda na vontade. Esta, tanto no plano da

constituição do indivíduo como também da articulação jurídica, é o

mecanismo central de tal vínculo entre os iguais da desigualdade econômica.

É verdade que o capitalismo encontra, já dados, variados mecanismos

psíquicos e ideológicos de individuação, mas estes são reconstituídos e

aproveitados para uma dinâmica cada vez maior do querer como esfera

7
Cf. Pachukanis (op. cit., cap. IV). A obra de Celso Naoto Kashiura Junior desenvolve a
relação de subjetividade e forma jurídica, em especial no livro Sujeito de direito e
capitalismo (São Paulo: Outras Expressões e Dobra Universitária, 2014). Também, Bernard
Edelman, O direito captado pela fotografia (Coimbra: Centelha, 1976).

11
privilegiadamente individual. Noções como as cristãs de salvação por ato ou

fé ou graça relacionada a cada indivíduo e não ao grupo nem ao povo passam

a ser reconfiguradas para que a subjetividade e sua vontade resultem como

elementos centrais da sociabilidade contemporânea. Mesmo que lidando

também com a reconfiguração de antigas sujeições, no fundamental o

capitalismo constitui subjetividades, dado que por elas passam as

mercadorias. Nelas, a vontade abre dispositivos de relação social. A

apropriação, o uso, a fruição, também são cada vez mais nucleados no

indivíduo. Pelos mecanismos psíquicos e sociais do inconsciente, o desejo

subjetivo se encontra com o consumo.

Por sua vez, a subjetividade não é apenas lateralmente reforçada pela

subjetividade jurídica: está no direito o elemento central da subjetivação

capitalista. Se for verdade que classe, grupo, estamento, nação, religião e

política continuam a operar dentro do campo da subjetividade,

reconfigurando-a, o átomo da produção capitalista e da circulação mercantil

generalizada se dá no sujeito de direito. Por isso, por mais embaralhadas

que sejam as delimitações de classe e grupo, a subjetividade jurídica não se

abala e persiste como núcleo inquebrantável do capitalismo. Aquele que tem

por direito e circula mercadorias é a peça central com a qual se constitui a

dinâmica do capital.

A subjetividade jurídica, além disso, dá a configuração psíquica das

individualidades no capitalismo. A condição econômica do ter e do circular –

e do fazer-se circular no trabalho assalariado – é grau constituinte da

personalidade. A possibilidade de relacionar-se por vínculo contratual é o

que dá ao dispositivo psíquico a percepção de portar-se a si próprio e não

ter, necessariamente, laço orgânico de solidariedade com o outro ou com os

grupos e as classes, portanto bastando-se ou se tendo apenas a si mesmo.

Subsidiariamente nessa constituição da subjetividade, elementos como as

12
capacidades juridicamente normatizadas – civil de disposição de direitos

obrigacionais, penal de assunção de responsabilidades criminais, eleitoral de

votar e ser votado etc. –, bem como a noção de possuidor de direitos

subjetivos de nacional em face do estrangeiro, representam pontos

determinantes que advêm do direito e que trabalham para a tessitura da

forma sujeito.

No fundamental, como a forma sujeito de direito é o espelho da

forma mercadoria e condição social necessária desta – porque aí reside o

nível do dispositivo psíquico de vinculação por meio de vontade –, ela é então

o elemento central da própria forma sujeito.

Direito e ideologia

A ideologia jurídica está inscrita, materialmente, na circulação

mercantil e nas suas práticas. Porque os sujeitos trocam mercadorias e se

vendem em termos de trabalho assalariado, a subjetividade jurídica é o

centro da compreensão de mundo da sociabilidade capitalista. Tal

perspectiva da ideologia jurídica é constitutiva: a operação de entendimento

de mundo pela qual os sujeitos são erigidos como tais é uma interpelação à

subjetividade. Não se trata apenas de um acréscimo em um solo já

estabelecido, nem tampouco de uma distorção de uma visão prévia. No

capitalismo, a subjetividade é constituída juridicamente. Nas práticas

materiais de posse de capitais e mercadorias, o direito é seu móbil e

garante. Nas transações, sejam as do trabalho sejam as das mercadorias, o

direito é o veículo relacional. Ser sujeito de direito, dispor de direitos

13
subjetivos, obrigar-se, valer-se da vontade autônoma e livre, nesse plexo

está o fundamental da identificação da subjetividade no capitalismo 8.

Com isso, a coerção, a hierarquia, a extração do mais-valor, a

desigualdade real e estrutural entre os indivíduos se confunde na

perspectivação ideológica com a igualdade, a vontade livre e a relação social

voluntária, que são o interpelante da subjetividade no capitalismo. Não se

trata de máscara de um pelo outro, mas, sim, de fulcro ideológico

constituinte. Ao se estabelecer como sociedade da mercadoria, o

capitalismo é então centrado em subjetividades, e estas são jurídicas.

Prepondera a constituição ideológica pelo sujeito e não por mecanismos de

classe ou grupo.

Arraigada em tal nível, a ideologia é capitalista e tem na

subjetividade jurídica seu ponto nodal de condensação. Por esse cerne, da

interpelação ao sujeito, a ideologia jurídica opera como inconsciente. Ela

arma a compreensão de mundo de todos os indivíduos. As escapatórias e as

críticas operam, via de regra, dentro do arcabouço da subjetividade

jurídica. É possível lutar por maiores direitos aos movimentos sociais, é

possível buscar estender capacidade de casamento a homossexuais, é

possível reconhecer direitos trabalhistas de estrangeiros, é possível

reclamar quantidades distintas de direitos aos indivíduos, grupos e classes,

mas, no limite, todo esse processo de contradição com o direito é uma

reiteração do direito. Criticam-se institutos, estoques e balanços de

direitos subjetivos, mas não a categoria do direito subjetivo. A

8
Cf. Louis Althusser, Aparelhos ideológicos de Estado (Rio de Janeiro: Graal, 1985); Pedro Eduardo
Zini Davoglio, Anti-humanismo teórico e ideologia jurídica em Louis Althusser (Dissertação, São
Paulo: Mackenzie, 2014); Nicole-Édith Thévenin, “Ideologia jurídica e ideologia burguesa (ideologia e
práticas artísticas)” (in: Márcio Bilharinho Naves (org.), Presença de Althusser, Campinas:
IFCH/Unicamp, 2010); Celso Naoto Kashiura Junior, Crítica da Igualdade Jurídica (São Paulo:
Quartier Latin, 2009); Alysson Leandro Mascaro, “A propósito da situação jurídica atual” ( in: Blog da
Boitempo, 2014).

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subjetividade jurídica é o inconsciente que arma a compreensão de mundo

no capitalismo.

Uma ideologia a partir do direito ou do jurista ou do saber jurídico é

subsidiária e caudatária da ideologia do proprietário e possuidor de

mercadorias, que circula e se circula. No sentido estrutural, a ideologia

jurídica, por advir diretamente da materialidade das práticas da

sociabilidade capitalista, não é uma construção do campo jurídico. O jurista,

como sujeito que opera nas mesmas relações sociais do capital, apenas

espelha a ideologia.

Dada a constrição geral das formas sociais e da ideologia enquanto

constituinte inconsciente, se se toma o campo estritamente jurídico, operam

então dinâmicas que mobilizam, inclinam, direcionam ou modulam o horizonte

de entendimento, os valores e a argumentação jurídica. Neste ponto, a

ideologia transborda para o consciente, revelando-se, aqui no plural,

ideologias sobre o direito. Todas elas, no entanto, no nível do inconsciente,

são ideologias da subjetividade jurídica.

O conteúdo jurídico

Se as relações de produção capitalistas e a circulação mercantil

determinam a forma da subjetividade jurídica, as lutas e os antagonismos

de classes e grupos são definidores do conteúdo jurídico. O fundamental do

direito é a forma de subjetividade jurídica. É esta que permite erigir a

exploração do trabalho assalariado e a circulação de mercadorias. Mas a

forma de subjetividade jurídica enreda-se em múltiplos arranjos de

conteúdo. No seu regaço, tanto é possível o mínimo para o vínculo contratual

15
quanto extensões maiores de proteções e direitos subjetivos. Variadas

relações dos sujeitos com o Estado também a partir disso se estabelecem 9.

No que tange aos conteúdos, o direito revela, com contornos mais

nítidos, as lutas, as tensões e os antagonismos entre classes, grupos e

indivíduos. Devido à constrição geral operada pela forma mercadoria e, por

extensão, pela forma de subjetividade jurídica, as relações sociais passam a

ser mediadas por mecanismos jurídicos. Isto faz com que mesmo lutas mais

progressistas e transformadoras acabem por se reduzir aos limites das

formas sociais dadas.

A forma jurídica se esparrama por virtualmente todas as

movimentações da mercadoria. Com isso, a juridicidade alcança o infinito

das relações capitalistas. Tal pode ser dar tanto com as constantes novas

fronteiras da mercantilização, como novas tecnologias e serviços, quanto,

também, com os novos e múltiplos conflitos e arranjos sociais daí advindos.

Por isso, se no século XIX desconheciam-se campos institucionais como os

dos direitos sociais, no século XX esses novos ramos são albergados sob a

mesma forma de subjetividade jurídica que presidia, até então, apenas o

direito privado. Devido às contradições necessárias das relações de

produção capitalistas, exploratórias, concorrenciais e antagônicas, as

dinâmicas de alteração dos direitos são também bastante altas. A partir

dessa deriva, os novos direitos são, fundamentalmente, ou direitos da

expansão da mercadoria ou dos arranjos surgidos da conflituosa

sociabilidade do capital.

Direito privado e direito público

9
Cf. Alysson Leandro Mascaro, Introdução ao Estudo do Direito (op. cit., cap. 1); Bernard
Edelman, La légalisation de la classe ouvrière (Tome 1. Paris: Christian Bourgeois, 1978).

16
O núcleo da subjetividade jurídica advém da disposição voluntária de

sujeitos livres e equivalentes. Daí, é o vínculo obrigacional – sua

possibilidade e sua articulação – seu ponto central. Mas o complexo da

juridicidade se esparrama para muito além, numa vastidão necessária por

conta da sociabilidade exploratória do capital. Num processo histórico de

surgimento da forma jurídica, sempre a sua consolidação nas relações de

direito civil se fez acompanhada por relações de direito penal, de tal sorte

que esses dois ramos do direito são o esteio jurídico mínimo geral da vida

sob o capitalismo10.

A crescente expansão das relações capitalistas e do enredamento

estatal na vida política e social torna o feixe de conteúdos jurídicos mais

complexo. O juspositivismo, a partir do século XIX, faz ler esse todo como

um ordenamento normativo, coerente internamente. Nesse diapasão, a

hierarquia normativa tem papel preponderante. Por meio dela, há normas

constitucionais e infraconstitucionais, princípios e regras, de tal sorte que o

direito se revela, quase sempre, como um sistema principiológico de boa

axiologia e valores. O congraçamento social em torno de normas protetoras

da dignidade humana, ratificadas em tratados e convenções internacionais,

serviria de exemplo disso.

O que ocorre é que as instituições jurídicas mais próximas do núcleo

da materialidade da reprodução das relações capitalistas têm mais presença

sistemática vinculante que aquelas que se levantam, ainda que parcialmente,

como oposição a tal reprodução. Assim, mudanças de governo, guerras,

revoltas, revoluções, podem alterar até enormemente o quadro do direito

público, mas, quase nunca, o fazem em relação ao direito privado. As

10
Cf. Michel Miaille, Introdução Crítica ao Direito (Lisboa: Estampa 1994, parte II);
Alysson Leandro Mascaro, Estado e forma política (São Paulo: Boitempo, 2013, cap. 1).

17
relações de propriedade, de garantia contratual e de responsabilização civil

têm, historicamente, muito mais estabilidade que as normativas do direito

constitucional.

Embora a técnica jurídica leia o direito público – a começar do direito

constitucional – como superior hierarquicamente dentro do conjunto do

direito, na concretude social o núcleo do direito é a articulação das

subjetividades no plano privado. Mesmo operando ambos em conjunto, entre

Estado e capital, a primazia da reprodução do capitalismo é deste. A leitura

interna dos ramos do direito há de perceber, na miríade de conteúdos com

os quais operam, as suas práticas materiais mais nucleares e arraigadas.

Estas, mais que as normas declaradas hierarquicamente mais altas, são o

esteio de determinação jurídica da sociabilidade capitalista.

Direito e Estado

Forma jurídica e forma política estatal

A forma jurídica é distinta da forma política estatal, embora ambas

guardem vinculação. A subjetividade jurídica advém, como forma social,

diretamente das relações mercantis. Não é uma institucionalização jurídica

que a constitui, mas, sim, práticas materiais arraigadas. É apenas

posteriormente a isso que o movimento histórico de tais práticas leva a uma

institucionalização empreendida pelo Estado. Entre direito e Estado operam

articulações e enredamentos e, tendencialmente, uma sobreposição

fenomênica, mas as formas sociais jurídica e política estatal são insignes

entre si11.
11
Cf. Alysson Leandro Mascaro, Estado e forma política (op. cit.); Joachim Hirsch, Teoria
Materialista do Estado (Rio de Janeiro: Revan, 2010); Camilo Onoda Caldas, A teoria da
derivação do Estado e do direito (Tese, São Paulo: FD-USP, 2013); Camilo Onoda Caldas, O

18
Em sociedades pré-capitalistas, o poder político, de variados modos,

estava ligado imediatamente aos exploradores econômicos. Tal imposição

política direta se baseia em liames de escravidão ou servidão, sustentados

pela força, pela posse contígua e não circulável dos meios de produção ou

pela tradição. O capitalismo, justamente porque se assenta em apreensão

econômica circulável, erige ligações políticas que não podem se basear numa

suprema imposição do burguês. Daí, a forma de relação social da mercadoria

engendra uma forma de organização política apartada dos agentes da

produção.

A forma política estatal deriva da forma mercadoria. Só é possível

que haja vínculos na produção entre capitalistas e assalariados se, também,

houver um aparato terceiro aos agentes que tenha uma materialidade

política suficiente para fazer jungir os vínculos em casos de negativas e

também para garantir o entesouramento do capitalista. Tal aparato não é

incidental nem diretamente pertencente ao burguês ou à burguesia. Sendo-

lhes distinto, está baseado nas suas instituições políticas, na sua força

econômica advinda de tributos hauridos da própria economia em que se

planta, no seu conjunto de forças militares mas, em especial, está arraigado

na dinâmica das relações capitalistas. A forma política estatal, mais que

pelas suas instituições, consolida-se relacionalmente pelas formas sociais da

mercadoria.

Ao mesmo tempo que é terceira em relação à burguesia, a forma

política estatal é diretamente derivada das relações capitalistas. Assim, o

Estado não é burguês porque seja controlado pela burguesia – ainda que via

de regra o seja –, mas, fundamentalmente, porque sua forma é espelho da

forma mercadoria. O Estado, materialmente, está ligado às relações sociais

Estado São Paulo: Estúdio Editores, 2014); Mabel Thwaites Rey (org.), Estado y marxismo.
Un siglo y medio de debates (Buenos Aires: Prometeo, 2007).

19
capitalistas. Depende de sua dinâmica para sua existência econômica. Por

isso, por meio do Estado não se superam as formas sociais arraigadas do

capital; antes, se as reforçam, mesmo quando as políticas são de esquerda,

progressistas ou inclusivas. Nestes casos, aumentos salariais, diminuição das

desigualdades de renda e incorporação de parcelas da população fazem com

que a mercadoria penetre ainda mais no tecido social.

Tal qual a forma da mercadoria está atravessada pela exploração,

pela contradição e pelo antagonismo, a forma política estatal também opera

nos mesmos termos, sem superá-los. A forma da subjetividade jurídica

deriva de maneira igual da forma mercadoria, portando os mesmos conflitos.

No entrelaçamento relacional entre a forma política estatal e a forma

jurídica, dá-se também um acoplamento com engastes contraditórios. O

Estado pode se impor contra direitos subjetivos já estabelecidos; de outro

lado, a dinâmica burguesa das relações sociais de vínculo contratual pode se

insurgir contra o Estado por este ensejar extensões de direitos sociais aos

trabalhadores. Há uma relação conexa entre forma de subjetividade

jurídica e forma política estatal, porque são derivadas do mesmo solo da

forma mercadoria, mas suas condições insignes dentro de um todo

conflituoso fazem com que seu acoplamento seja feito com arestas e mesmo

virtuais disfuncionalidades.

Forma jurídica e norma jurídica. Conformação

As normas jurídicas operam a partir de uma específica junção entre

forma política estatal e forma de subjetividade jurídica. Entre tais formas,

dá-se aquilo que denomino conformação. A interação entre a subjetividade

jurídica e o controle estatal se dá por meio de uma específica técnica de

normatização. Neste plano técnico, a subjetividade jurídica se torna, então,

20
direito subjetivo, cujos limites e estoque são objeto de parâmetros

estatais12.

As normas jurídicas não criam a forma jurídica. Antes, dão seu

contorno, insculpindo talhes técnicos. O Estado, assim, não afronta nem

altera o fundamental da subjetividade jurídica, que é a livre disposição dos

agentes na produção e no mercado. Quando se insurge eventualmente contra

a propriedade, ainda assim a subjetividade jurídica está resguardada.

Guerras, revoluções, expropriações acabam em algum momento futuro – tal

como as desapropriações imediatamente – resolvidas em termos de

indenizações ou ressarcimentos. Como forma social, a subjetividade

jurídica, assim, é mais arraigada que as normatizações que, ao contorná-la,

acabam de algum modo sendo apenas modulações da distribuição entre os

próprios sujeitos de direito.

Claro está que o Estado, dada sua condição material de terceiro em

face da miríade de agentes em concorrência na sociedade capitalista, tem

força suficiente para a imposição de mandos e para a consecução de novos

ou distintos vetores relacionais. Assim sendo, no vasto campo da modulação

das interações entre os sujeitos de direito, há uma multiplicidade de

normativas estatais que vai desde uma indução desenvolvimentista ou de

bem-estar social a uma neoliberal ou, no plano político, desde ditaduras que

cerceiem ao máximo liberdades civis até democracias com alto grau de

garantias de direitos humanos. E se há uma força material do Estado e, por

conta disso, a norma jurídica modula a subjetividade jurídica, isto também

não é gratuitamente político e está plantado no solo contraditório e

dinâmico da sociabilidade concorrencial da mercadoria e de suas formas. Tal

alteração vetorial das relações sociais está, no mais, fundamentalmente

Cf. Alysson Leandro Mascaro, Estado e forma política (op. cit., cap. 1); Alysson Leandro
12

Mascaro, Introdução ao Estudo do Direito (op. cit., cap. 6).

21
atravessada pela luta de classes e grupos, cujas linhas de força acabam por

determinar posições normativas do Estado.

Assim, a relação entre forma jurídica e forma política estatal se faz

permeada pelas normas jurídicas e talhada pela técnica jurídica, num

processo de conformação, isto é, de acomodação, engaste e implicação

recíproca das formas. Tendo em vista que ambas as formas derivam de

relações sociais da forma mercadoria, entre elas, então, estabelece-se uma

derivação secundária (de segundo grau).

Legalidade. Exceção

Nos termos do direito contemporâneo, a legalidade resulta da

derivação secundária entre forma jurídica e forma política estatal. Por meio

da normatividade, direitos subjetivos, faculdades, liberdades, obrigações,

deveres, poderes, sujeições, impotências e imunidades são instituídos,

constituídos, garantidos e servem de base de previsibilidade às relações

sociais. A legalidade, assim sendo, alcança o mais amplo espectro da

sociabilidade, mas com uma especificidade: não se trata de uma lei que seja

imposição de um senhor ou de um respeito à norma em razão da crença nos

poderes teológicos ou sobrenaturais do mando ou na virtude da submissão à

ordem. A legalidade se dá e opera num jogo de materialidade: a forma

política estatal atravessa a dinâmica relacional das subjetividades jurídicas,

por meio dos poderes concretos que lhe são próprios, como os repressivos 13.

A legalidade jurídica não é qualquer legalismo, como pode ser aquele

da leitura normativo-teológica rígida de um texto sagrado como a Bíblia.

Cf. Alysson Leandro Mascaro, Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro (São Paulo:
13

Quartier Latin, 2008). Em outra chave, Slavoj Zizek, Violência (São Paulo: Boitempo, 2014).

22
Trata-se, pelo contrário, de uma legalidade específica. Ela só existe no solo

de uma sociabilidade mercantil, na concorrência entre produtores e

trabalhadores assalariados, de tal sorte que a previsão da legalidade é, por

resultante, um cálculo relacional. A virtualidade da repressão e da

condenação em face da ilegalidade se inscreve no mesmo cálculo econômico

da interação social sob a legalidade. Tal qual a sociabilidade da mercadoria

não opera pelo horizonte do uso, mas da troca, sob o dístico da acumulação,

a legalidade e a ilegalidade são estratégias relacionais da circulação da

mercadoria.

No cálculo da legalidade, então, está necessariamente a determinação

das relações de poder que atravessam as interações sociais. Como o direito

não se apresenta como uma imediatitude dos fatos, mas como controle

argumentativo dos fatos, tendo em vista uma série de instituições político-

jurídicas e correspondentes agentes, então a legalidade se constitui

necessariamente no solo das influências do poder. Assim sendo, a clivagem

de classe determina as estratégias de favorecimento, os em aparelhamentos

de interesses e, inclusive a hermenêutica das próprias situações em

questão. Toda legalidade, daí, é relacional, estabelecida pelas formas sociais

da mercadoria, da subjetividade jurídica e da política estatal, mas, além

disso, tecida e atravessada pelas vinculações de poder. Por isso, toda

legalidade contém, em si, a exceção.

A especificidade da legalidade jurídica no capitalismo se erige numa

sociedade de classes e grupos, concorrencial, contraditória e conflituosa.

Não há, portanto, uma legalidade como afazer social automático ou

indiferente ou como desdobrar normativo imediato, dado que a sociabilidade

é hierárquica e perpassada pelo poder. Por isso, também não se pode

vislumbrar uma legalidade ideal, da qual a realidade seria uma deturpação. A

juridicidade se instaura no plano das relações sociais de exploração, poder,

23
dominação e interesse. A legalidade parte de uma determinação social de

estratégias de antagonismo em vista da acumulação, e não a partir de uma

presumida concórdia ou ordem ou paz social. Além disso, por se tratar da

conformação de formas sociais insignes e derivadas da forma da

mercadoria, há, ao mesmo tempo, o conflito inexorável entre as

subjetividades jurídicas em relação e, ainda interferindo nesse processo,

variadas dinâmicas políticas.

As costumeiras argumentações e estratégias de oposição entre um

mundo ideal da normatividade jurídica, de seus princípios e declarações, e

uma realidade que a nega, são uma oposição conservadora, na medida em que

não alcançam a verdade do direito e da política naquilo que seja sua

materialidade, para além de sua narrativa de legitimação. Na sociabilidade

capitalista, a exceção está contida na regra. E em ambas reside seu caráter:

a sociedade da mercadoria é no estrutural a sociedade da acumulação e da

exploração. A verdade do direito, na legalidade e na exceção, é a marcha da

mercadoria.

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