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Estado e Liberdade: as ameaças da supressão da sociedade civil segundo o projeto

socialista de Karl Marx

Esta conferência têm dois propósitos básicos: Primeiro apresentar de uma forma geral, para

um público não necessariamente identificado com os problemas filosóficos e nem com o

linguajar, a conceitografia que a filosofia requer para a exposição e respostas dos mesmos.

Ou seja, este trabalho é um trabalho de divulgação que pretende esboçar alguns problemas

de filosofia política pertinentes à modernidade e à pauta que inscreve este nosso debate.

Entretanto, me desculpo desde já se em algum momento tiver de recorrer a certas categorias

filosóficas de um ou outro filósofo para explicitar o modo como certos problemas de

filosofia política são tratados. O segundo propósito é o que se refere ao norte que esta

palestra tem, isto é ao seu tema: O problema com o qual estou concernido aqui é esboçar

por que o projeto ou a utopia política marxista engendra necessariamente um estado avesso

ao que ela mesma se propõe, a saber: o da realização plena da liberdade individual por

intermédio da coletivização do trabalho e assim a supressão de qualquer possibilidade de

violência no interior da esfera das relações sociais. - Não devemos nos esquecer que a

questão da violência é um dos motes fundamentais da reflexão política moderna com o qual

Hobbes, Hegel, e Marx estão concernidos - .Ou ainda de outro modo por que o projeto

marxista engendra uma forma de Estado político - e se estanca nele – em que o avesso da

liberdade se consuma. Estou a me referir aos Estados Socialistas e à experiência do

totalitarismo de esquerda que vivenciamos no século passado e do qual restam ainda alguns

exemplos como Estados absolutamente autoritários. De outra forma ainda: porque a

Ditadura do proletariado e o socialismo – o aniquilamento das relações de mercado e a

socialização do bens de produção por um Estado dirigido politicamente pelo partido da


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classe operária - que seria um momento anterior ao comunismo, se converteu na ante-sala

desta nova face do terror que é o totalitarismo. Para tanto, não me orientarei sobre as

análises conjunturais dos sucessos ou insucessos econômicos deste modelo Político. Isto é,

não me orientarei por princípios ou critérios econômicos para pensar sobre este problema.

Ou seja, mesmo que os resultado econômicos e sociais do socialismo real – i.e. um

conjunto de benesses partilhadas pela coletividade - tivessem sido fantásticos sob uma

certa perspectiva – o que não é verdade - a crítica sob o âmbito das liberdades ainda teria de

ser feita. O que quero dizer com isto é que se constitui em uma falácia a justificativa de um

regime autoritário pelas benesses de caráter material que este porventura possa produzir.

Portanto, também a crítica negativa a esta forma de regime político que se fundamentar

neste viés é igualmente falaciosa em relação a legitimidade desta forma de instituição

política. E diria mais que o aniquilamento das liberdades individuais, do Estado de Direto

Republicano, da democracia, pelo exercício político do marxismo teve como uma de suas

causas concorrentes esta confusão conceitual, que é alimentada teoricamente pela doutrina

do próprio Karl Marx sobre o papel do Estado. Não nos esqueçamos que Marx reduz o

Estado a uma meta-instância da estrutura de produção dos bens, responsável apenas pela

manutenção de interesses de classe segundo uma ideologia que se conforma a este fim. Do

mesmo modo, a crítica à democracia e ao Estado de Direito feita por parcelas da esquerda

parecem denotar igualmente esta confusão. Muitas vezes ouvimos esta questão: se a

democracia no Estado de Direito é tão boa por que existem tantos miseráveis no mundo,

por que graça a miséria e a concentração de renda? Esta pergunta se pauta por um equívoco

conceitual, a saber: não distinguir entre as esferas públicas, privadas, não ter clareza sobre o

real papel do Estado em relação a sociedade civil organizada – e o valor que isto representa

- e a dinâmica própria da órbita dos carecimentos que é a esfera da produção dos bens de
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consumo e sua distribuição. Além disto, suscita igualmente o não ter consciência,

sobretudo, sobre que bases o Estado moderno e o âmbito próprio da política se fundam, a

saber: uma concepção sobre a natureza humana. Não quero suscitar com isto que a

miséria, a fome, as carências de todas as ordens não são problemas políticos importantes e

contingentes a uma forma de modelo econômico que deve ser nos seio de uma sociedade

livre repensado. Nós sabemos, por experiência própria – a cena brasileira - o quanto isto é

desagregador do tecido sócio-político. E que o Estado Brasileiro deve ter nisto um

problema para consigo e para com a sociedade como um todo. A situação de miséria e de

discrepâncias sociais e a indiferença do Estado em relação a isto, podem representar – e

representa no mais das vezes - o seu enfraquecimento político, porque denota que o estado

está deixando de cumprir com sua função primordial: a manutenção da paz social e o

correto ornamento para progresso das faculdades humanas. Hobbes bem observa isto

quando afirma que é tarefa do Estado a manutenção da paz pelo progresso livre das

atividades humanas – o comércio, a ciência, as artes em geral- pois isto suscita nos súditos

a adesão pelo regozijo de uma vida boa e digna. Veja-se o quanto somos afetados nas

nossas vidas e mesmo no progresso de nossas atividades no caso do domínio do

narcotráfico e de outras formas de máfias internas ao aparato de Estado ou não que

exercitam o seu domínio no interior da geografia sócio-política brasileira. Entretanto,

quando reclamamos políticas mais eficazes para coibir e reparar estes males, reclamamos

livremente ao aparato estatal o seu compromisso com preservação de direitos fundamentais

e secundários ou derivativos. É isto que estamos querendo dizer quando votamos em

projetos alternativos, quando denunciamos injustiças sociais através da liberdade de

imprensa, ou quando nos organizamos livremente para combater e debelar estes malefícios.

Ao realizarmos isto, reconhecemos o caráter propriamente político do Estado como um ente


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que deve ser aquele instrumento de preservação de direitos fundamentais e promotor da

justiça para além dos interesses mais particulares ou até mesmo, nos casos acima

mencionados ilegítimos. Esta é a nossa representação comum de Estado Político que muitas

vezes é obscurecida por pseudo-problemas ou análises confusas. E é com esta matéria que o

Estado é feito: Direitos que esboçam aquilo que todos queremos e que reconhecemos como

universais e que orientem as políticas do Estado em relação a sociedade civil e que tem

como norte regulador a promoção da boa vida ou da vida digna para seus membros. Ou

seja, o Estado aparece para nós, no fundo de nossas cobranças e críticas, como aquele ente

político que legitimamente deve senão banir a violência diminuir em grau as condições do

seu surgimento no interior da sociedade civil. Qual a diferença desta acepção de Estado –

do Estado Republicano Democrático para com o Estado de concepção marxista? Que

concepções de fundo de Estado, de valores universais e sobre nós – a humanidade - estão

em jogo nestas duas acepções? Esse é o núcleo central da nossa análise aqui e dele tratarei a

partir de agora.

Para que tenhamos uma concepção exata, frente a polissemia ou a diversidade de sentidos

que o próprio termo Estado engendra, nada melhor do que identificarmos no âmbito da

reflexão filosófica e frente à sua tradição o porque da necessidade de um aparato

institucional – o Estado – para a preservação daquilo que se convencionou denominar o

domínio próprio das relações políticas. Este ponto propriamente marca a reflexão política

em toda a extensão de sua tradição, tradição que se inicia com os texto clássicos de

Aristóteles e Platão. Nos deteremos entretanto em dois pensadores modernos para com os

quais Marx guardava grande admiração e respeito intelectual e sobre quais declara menos

ou mais respectivamente ser caudatário intelectual de certas categorias e concepções

filosóficas, a saber: Hobbes e Hegel. De Hegel, Marx é tributário da enorme influência


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deste – mesmo negando-o – para a conformação de categorias fundamentais para a

elaboração de sua crítica político-econômica em relação à modernidade, por exemplo a

categoria de Trabalho. Hegel apresenta o trabalho na Dialética do Senhor e do Escravo, na

Fenomenologia do Espírito como o exercício pelo qual o próprio escravo irá dissolver esta

forma de relação produzindo o mútuo reconhecimento. Ou seja, o mote do trabalho como

redentor de uma situação que se apresenta como opressiva para uma das partes e que liberta

igualmente o opressor de uma condição pelo reconhecimento do valor e prestígio do outro,

elevando os mesmos a um novo patamar de relações entre si, é assumido por Marx da

filosofia de Hegel e levado às últimas consequências como categoria fundamental para a

compreensão do percurso histórico da humanidade. De Hobbes e da tradição naturaliasta-

materialista que este inaugura no campo da teoria política, Marx herda a noção de natureza

humana, como seres finitos que pelo esforço – agora conceituado como trabalho –

produzem e disputam entre si os bens. Apesar das confessas heranças intelectuais, as

concepções sobre o domínio da Política, i.e da esfera das relações humanas instrumentadas

por leis estatais, são absolutamente distintas entre si. Hobbes e Hegel – salvo as grandes

diferenças sobre o método e certas concepções de fundo – mantém a perspectiva de que o

Estado é necessário em virtude daquilo que ele preserva: a saber nós mesmos de nós

mesmos ou a sociedade civil de sua dissolução. Tanto para Hobbes como para Hegel o

Estado não é um momento transitório para qualquer outro estágio que se queira imaginar,

mas a realização de uma esfera - a das relações políticas - que tem como sentido último a

manutenção do exercício das atividades privadas, cujo o fim é a satisfação dos sujeitos quer

como membros da família ou do trabalho ou ainda na esfera da estética ou da religião. Nos

modelos destes dois intelectuais não são abolidos os jogos que conformam a natureza da

sociedade civil determinados pela natureza desejante que rege os interesses e as ações
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humanas quer pela busca de prestígio ou reconhecimento – Hegel- quer pela satisfação das

necessidades e dos carecimentos em Hobbes . É tarefa do Estado estimulá-los ao máximo

para o progresso de todos os agentes nas esferas de suas vidas, regrando-os somente no que

é estritamente necessário para a sua preservação. A noção de bem comum assim se

conforma, i.e um corolário de leis – segundo direitos - cujo o objeto é a possibilitar da

realização dos interesses privados ou a auto-realização. Segundo estes dois intelectuais a

esfera da política livra os homens do domínio da natureza e de suas ameaças, embora o

próprio Estado político se afirme como necessário em virtude da natureza própria dos

agentes. Ou seja, sob o pano de fundo da esfera política encontra-se inscrito na própria

natureza humana a possibilidade da violência, que pode se expressar pela metáfora da

guerra de todos contra todos – em Hobbes – ou pela metáfora da dissolução própria da

esfera da sociedade civil em Hegel.

Como Marx filia-se diretamente à tradição hegeliana – é denominado por muitos

intelectuais como hegeliano de esquerda – peço licença para uma exposição ainda que

superficial do advento do estado em Hegel, caracterizando o momento anterior ao advento

do Estado: a sociedade civil burguesa.

A sociedade civil – que antecede o advento do estado - se caracteriza por ser um contexto

que possui suas próprias normas e regras segundo os princípios do direito abstrato. Ou seja,

os agentes que a compõe, as corporações e os seus membros, tem como base da sua ação a

realização do contrato, i.e do exercício do livre arbítrio segundo certos expedientes

jurídicos. Ou seja, a esfera pré-estatal é um contexto da interrelação das vontades

particulares, i.e. de agentes que se orientam estritamente segundo a realização de seus

interesses econômicos. Como são portadores de direitos, são igualmente autoridades, e

neste sentido exercitam seus interesses de forma legitima. A sociedade civil burguesa
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caracteriza-se historicamente por ser uma sociedade orientada pelo mercado, pelas relações

comerciais e, portanto, tem as suas instituições marcadas pelo jogo dos carecimentos, das

necessidades. Tal é o império da particularidade que Hegel é levado a afirmar no parágrafo

185 que esta conforma “o reino da dissolução, da miséria e da corrupção física e ética”.

Entretanto, apesar disto, nela reside igualmente um aspecto da liberdade, aquela que

conforma a vontade dos agentes segundo uma perspectiva jurídica mediante a qual o

reconhecimento mútuo está posto pelo reconhecimento dos agentes como portadores de

direitos e membros de corporações que os representam. Entretanto, isto não é suficiente

para a sua manutenção, pois o risco de que o jogo dos carecimentos e a particularidade nele

contida implodam esta forma societária é muito alto. Ou seja, o princípio jurídico que

funda a possibilidade de efetivação da ação particular da vontade livre, apoiada no direito

privado, engendra contradições que ameaçam a própria possibilidade da efetivação da

liberdade individual. A ausência de uma potência dirimidora dos conflitos e das

contradições segundo outro domínio do direito parece ser requerida pela sociedade civil.

Entretanto, esta potência - o Estado - é constituído por uma noção, uma idéia que norteia e

legitima sua intervenção nas relações que se dão no seio da sociedade civil burguesa., a

saber: o bem comum. O bem comum se apresenta como a preservação pelo Estado das

diversas esferas nas quais os agentes podem exercer livremente suas distintas formas

interesses, isto é a família, o âmbito das realizações profissionais, a religião e a estética. O

advento do Estado irá promover a indivíduo a convivência com uma nova forma de relação

em uma outra esfera, a esfera do Cidadão, da relação não entre vontades livres que

aparecem como membros de corporações, mas entre agentes que são iguais segundo uma

esfera jurídica própria que o Estado encarna. São iguais e livres segundo o conjunto de

princípios públicos que o Estado representa. Se a sociedade civil apresenta o risco de


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anular-se no jogo das particularidades, tendo sido caracterizada como um contexto que

apresenta no seu horizonte a ameaça da violência e da sua dissolução. O reconhecimento

desta possibilidade de ameaça ao exercício da liberdade nesta esfera por parte dos agentes,

faz com que os mesmos reconheçam a necessidade do regramento do Estado e de suas

instituições segundo princípios legítimos que possibilitem a realização da justiça e o

dirimir dos conflitos e contendas. Neste sentido, o Estado não suprime a vontade particular,

o exercício do interesse particular, mas ao contrário, o estimula postulando leis que o

preservem de sua própria vocação, a realização das satisfações privadas, que exercidas ao

extremo – sem determinações externas - podem dissolver as próprias condições de sua

realização. O reconhecimento de que as leis universais são condições de possibilidade para

a efetivação dos interesses da vontade privada é o elemento que legitima o Estado frente à

sociedade civil e o limita quanto ao violar estes limites que constituem e preservam a

mesma. Isto constitui um forte impedimento – pelo menos no âmbito teórico - à tentação

política de se totalizar as relações humanas, isto é de tornar as relações privadas em

relações absolutamente políticas. A distinção entre as esferas de direito público e privado

revela que no âmbito sócio-político do estado moderno, segundo a acepção de Hegel, há

espaço tanto para a realização da vontade particular – que deve ser absolutamente

preservado, pois é a razão própria do Estado existir - como para a realização de uma

vontade que se orienta pelo bem comum. Em Hegel, pode-se perceber claramente o

conceito de individuo moderno se efetivando, pois um sujeito pode ao mesmo tempo ser

cidadão e se interesar pela vida pública e ser membro de uma corporação, portanto dedicar-

se aos seus interesses privados, sem que isto determine qualquer contradição de fundo.

Nesta duplicidade de papéis, garantido pela assunção do Direito público e da preservação

do Direito privado, repousa talvez o germe da democracia representativa, visto que o


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cidadão pode delegar a outrem a representação e continuar cuidando dos seus interesses e

afazeres privados. O Estado de direito moderno, segundo a concepção de Hegel preserva

pela instauração de dois domínios claros – o público e o privado- a autonomia plena da

sociedade civil, embora mediada e amparada por um conjunto de instituições públicas.

Como bem salientei, considerei aqui a perspectiva hegeliana de Estado moderno, porque

Marx sobre ela se debruçou e a examinou teoricamente, para tecer sua crítica contundente.

Antes de passarmos à Marx devemos salientar que o denominador comum entre Hobbes e

Hegel é que ambos pressupõe nos seus respectivos modelos uma ordem de carecimentos

como fase pré-estatal, pré-política, i.e. um reino da particularidade como antítese ao

regramento segundo o bem comum e o universal que a política representa.

Em Hobbes, como sabemos, o estado de natureza é o momento anterior à esfera

propriamente política, na qual o exercício ilimitado das vontades particulares é exercido

legitimamente em nome da preservação da vida. Neste estado de natureza os homens

disputam por bens – ou por aquilo que cada um considera como um bem para si – e assim

agem porque estão racionalmente autorizados a supô-los como finitos e a supor que os

outros – em igual condição – assim também agirão. O fundamento de tal comportamento

ou ação se expressa na asserção racional de que é melhor – para um ser existencialmente

finito e por isto carente de bens para se manter vivo - considerar os bens como finitos e os

seus adversários em condições de igualdade quanto ao que é pior: a capacidade infligir a

morte. Este momento, entretanto, configura um paradoxo de composição, pois aquilo que

cada indivíduo almeja como finalidade de sua ação – a vida – passa a ser mais ameaçado

em um contexto de disputa agressiva pelos bens, a saber: a guerra. Desta forma, a

prudência ordena a paz e esta requer – em virtude da natureza humana – a confecção do

Estado – o Leviathan - por intermédio do contrato. Faço questão de observar novamente


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que em ambas teorias políticas paira sobre esta ordem pré-política um domínio de

violência, violência esta que reside de certa forma na natureza dos agentes em questão. Isto

denota igualmente que nos dois modelos casos uma concepção sobre a natureza dos

agentes - indivíduos em Hobbes, e membros da sociedade-civil, em Hegel – é requerido. E

que a necessidade do advento ou da confecção da esfera estatal e política se funda em

razão desta natureza. O compromisso do Estado em ambos os casos é com o presente,

com os agentes tal como estes são concebidos e descritos. O código de leis não é

remissivo ao futuro, se remete à uma compreensão do humano que lhe da forma e

consistência. Os direito universais do homem, que se conformam como princípios de todas

as constituições dos Estados de Direito Democráticos, portam em si uma expressão clara

do que somos e com o qual o Estado deve estar necessariamente concernido.

Em Marx não há propriamente uma teoria política do Estado, isto é do que o Estado deve

ser. Desde os escritos de sua juventude, Marx se alia aquela parcela da tradição moderna

que vê no Estado uma ameaça às liberdades individuais, um castrador da autonomia e da

dinamis da sociedade civil ou um representante de interesses particulares de classes

dominantes. Devemos salientar que frente a conjuntura política do século dezenove, esta

crítica tem um princípio que a legitima, a saber: a coisificação da condição humana no

campo do trabalho. Não preciso remontar às condições absurdas a que os trabalhadores

estavam sujeitos no interior do processo da segunda revolução industrial. No entanto, que

hoje não toleramos mais este tipo de situação e o Estado de Direito incorporou as demandas

dos trabalhadores como expressão efetiva do Direito do Trabalho. Mas esta não é a questão

central. Para além da crítica feita pelos socialistas utópicos, pelos anarquistas e comunistas

ao modo como o Estado se afigurava então, se elaborou a tese de que os valores que eram

veiculados ao Estado de Direito eram valores circunscritos à ideologia da classe dominante.


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Ou seja, em Marx principalmente, não há nenhuma universalidade no Estado Moderno

designado por ele como o Estado Burguês. O Estado se afigura como uma superestrutura,

cujo o poder é derivado do poder exercido no interior da sociedade civil pela classe que

detém os meios de produção. Tal como para Hobbes, para Marx é na esfera da produção

dos bens que se origina o poder, embora em Hobbes o poder político se consolide sobre

uma representação outorgada pelos indivíduos no momento do contrato, o que por si

mesmo garante a sua universalidade. Para o marxismo o poder político não se constitui pela

representação, mas pelo domínio de classe sobre o aparato de estatal, que passa a ser seu

vogal. O Estado é reduzido à esfera do interesse econômico e, portanto, como instrumento

de interesse de classe. A produção da justiça é sempre contingente, não há universalidade

nenhuma nesta esfera, ela, e como isto a noção de bem comum é reduzida à uma peça da

oratória ideológica. Isto é uma conseqüência da redução que Marx opera no plano da

história, a qual não escapa nem a esfera das justificativas teóricas. Todo processo de

elaboração teórica e a universalidade nela contida é desprezada em virtude do momento do

sua aparição. Ora se assim fosse a geometria de Euclides ou a física de Newton teriam que

se justificar não pelas premissas e axiomas dos quais partem, mas em virtude do contexto

histórico no qual são enunciadas. Ora, é óbvio que podemos e devemos supor a idéia de que

certas condições sócio-culturais são necessárias para a elaboração de uma determinada

teoria. Entretanto, deve-se igualmente distinguir entre o contexto de descoberta e o contexto

de justificativa. Para atacarmos a filosofia política de Hobbes, por exemplo, devemos nos

situar no segundo contexto, i.e. analisarmos as premissas e os axiomas que a fundamentam,

verificando a sua coerência interna, entre outros critérios. O mesmo ocorre no plano da

análise de princípios e valores, sem os quais estaríamos impedidos de produzir a justiça.

Marx ao reduzir todos os eventos humanos ao desenvolvimento da dialética entre capital-


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trabalho no plano da história acaba por consolidar uma análise dos valores, princípios

políticos e jurídicos como se estes fossem absolutamente funcionais e contingentes ao seu

tempo. Ora, não é atoa que o governo do então Estado Soviético tenha incentivado, à época

de Stalin, uma ciência dialética da biologia, da física – da economia não pois já tinham uma

- entre outras e fiscalizavam seus intelectuais e artistas para saber se não estavam

produzindo ciência e arte burguesas. Neste sentido, o projeto marxista ou a utopia de uma

sociedade livre dos auspícios da “naturalização” das relações sociais é decorrente deste

modelo teórico. Para Marx a sociedade civil burguesa expressa – concordando com Hegel –

uma forma de relação entre os agentes que se pauta pela égide da necessidade, das

carências que tem na determinação do valor da mercadoria sua expressão máxima. Ou seja,

a lei da oferta e da procura que determina em última análise o valor dos bens é uma

expressão desta forma de sociabilidade. Ou seja, o Estado de fato é necessário em virtude

de que esta disputa pelo poder ocorre em um momento da história entre classes de

interesses contrapostos e também em virtude de uma certa característica natural dos homens

e dos bens: ser existencialmente finito, desejante e os bens igualmente finitos. Esta questão

sobre a natureza humana em Marx é fundamental, pois não é atoa que no seu viés crítico ao

projeto moderno da filosofia política e na sua análise das relações sócio-econômicas ao

longo da história da humanidade e sobretudo do século XIX, tenha como ponto de partida a

consideração sobre os elementos e as propriedades humanas universais, que são tomados no

interior do seu sistema filosófico como o “princípio de razão” para a interpretação e

conhecimento das determinações essenciais deste fenômeno, a saber: o Trabalho. Esta

categoria econômica revela ao fundo um ser desejante que tende a satisfazer suas pulsões,

suas necessidade e carecimentos, mas que assume distintas formas de consciência históricas

no interior de distinta figuras e momentos sociais e históricos, pois a categoria do trabalho


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encontra sempre uma forma social na qual os indivíduos produzem e distribuem riquezas

ou bens, segundo uma ideologia que legitima suas posições sociais em relação à disposição

dos bens ou da riqueza produzida. Ora, se interpretarmos o ideário marxista sobre a

autonomização da sociedade como um resultado do périplo que a categoria do trabalho

realizou, convertendo-a em uma coletividade ou comunidade que se autodetermina, somos

obrigados a nos interrogar sob que condições isto poderia ocorrer. Ora, se a natureza

humana é finita e desejante – e isto é irrevogável, conforme o compromisso marxista com o

materialismo e que está inscrito na categoria de trabalho – como pensar em uma forma de

sociabilidade em que a disputa e acúmulo por bens ou riquezas não ocorra? Ora, frente a

estas premissas tal projeto que apregoa o fim da estrutura Estatal e a liberdade de uma

comunidade que se auto determina, só pode ser pensado como Marx fez: sua utopia tinha

como objetivo alçar a humanidade a um domínio em que as relações sociais não fossem

mais regidas pelo império da necessidade e dos carecimentos, para que os homens

realizassem plenamente através da coletivização do trabalho e de suas benesses suas

capacidades mais nobres nas artes, na ciências e na filosofia . Para que isto se realizasse era

necessário quebrar com a lógica destas relações, não em termos meramente ideológicos,

mas em termos de produção e organização do trabalho. Era necessário criar não a ilusão de

que os bens são infinitos, mas realmente torná-los tendentes ao infinito, através da

superprodução. Este seria o único modo de subtrair a sociedade dos auspícios do domínio

das relações humanas pautadas pela lei da oferta e da procura – que tem como pressuposto

a finitude dos bens de um lado e agentes carentes do outro. A base material para a liberdade

seria assim conquistada, i.e, os homens – seres desejantes e finitos – viveriam em uma

sociedade em que não haveria a possibilidade da violência engendrada pela disputa pelos

bens e, portanto, o Estado - como aparato regulador e como estrutura sobre posta à
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estrutura de produção - não seria mais necessário e desapareceria. A máxima marxista é

enunciada como um imperativo para a realização desta forma de sociedade: que os bens

fossem produzidos de tal modo que fossem distribuídos a cada um segundo suas

necessidades. Ora, ao que parece isto não é possível de ser realizado. A nossa experiência

histórica anuncia cada vez mais um reino de carecimentos e finitudes. A idéia de uma

natureza de forças e matérias inesgotáveis para a criação humana pelo trabalho e pela razão,

não têm mais referência possível. Ao que consta, os bens são irremediavelmente finitos e

nós estamos, dentro deste estágio do capitalismo, ampliando cada vez mais o nosso leque

de desejos e necessidades: cada vez mais nos reafirmamos como subjetividades desejantes.

Se de fato isto é verdadeiro, e considerando as premissas marxistas, então, a possibilidade

desta forma de sociabilidade é mais uma quimera da razão ocidental. Se o comunismo

então não é possível, deve-se perguntar aos socialistas, por que o socialismo? Como

sabemos, Karl Marx é um socialista por contingência de sua própria perspectiva da história.

Isto é, segundo seu etapismo histórico, o socialismo seria um momento correlato à ditadura

do proletariado, que tinha como tarefa fundamental a criação das condições mundiais para

superprodução. Seria razoável, mesmo para quem advoga o projeto do comunismo e

reconhece a sua real inviabilidade, defender tal forma de relação entre os homens. Não seria

contraditório com o próprio projeto marxista tal situação? A resposta é sim, seria, pois

segundo a própria lógica marxista, a finitude dos bens reporia no interior desta forma de

Estado e sociedade a disputa pelos mesmos em uma situação em que o terror ganha o

significado extremo do cinismo histórico.

Aqui abre-se a chave de compreensão para o fenômeno do totalitarismo de esquerda.

Primeiro por que em uma tal forma de relação do Estado com os agentes sociais, a

possibilidade da realização da justiça segundo o prisma das garantias individuais é


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subtraída junto com a autonomia que a sociedade civil e os indivíduos guardavam em um

estado de direito - que se funda justamente na salvaguarda da garantias e direitos

individuais. A aniquilamento das relações de mercado, da liberdade de expressão e

pensamento, a imprevisibilidade dos julgamentos frente a constante mudança dos critérios

políticos e a inconstância das instituições caracterizam esta forma de domínio tirânico.

A social democracia é uma representação política da revisão teórica no campo do

próprio marxismo. Seus quadros e intelectuais desde a década de 20 e 30 se aperceberam

dos riscos e da impossibilidade da execução de tal projeto. A social democracia se

recompôs com os princípios fundamentais do estado de direito e com a necessária liberdade

que a sociedade civil deve manter através do livre mercado. Isto entretanto não significa,

segundo a perspectiva social democrata, que o mercado não necessite de instituições

públicas que o preservem de si mesmo e aos interesse do conjunto da sociedade. Pode-se

dizer que a social democracia hoje, frente aos fracassos da década de setenta e alguns

sucessos na década de oitenta, e uma sucessão de revisões teóricas, representa somente

uma pauta, uma agenda cujo conteúdo parece incrementar o debate sobre o papel do Estado

frente a economia, na qual o Estado aparece não mais como um Estado desenvolvimentista,

mas um estado indutor de desenvolvimento econômico com vistas a manutenção da ordem

democrática e republicana. A social democracia ao renunciar os desígnios do dever da

utopia revolucionária, toma para si a tarefa de não voltar ao capitalismo como um socialista

arrependido. Mas, reformá-lo e fazê-lo a avançar a partir dos valores absolutos das

liberdades individuais e da democracia, pelo reconhecimento da função do mercado e das

classes médias. Tal avanço consiste em tentar assegurar ao sistema um crescimento

equilibrado e à população uma contínua e sempre maior distribuição de renda. A social

democracia consegue êxito nisto tornando o Estado um agente mediador das diferenças e
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capaz de sucitar a colaboração as instituições públicas e privadas, ente as corporações

empresariais e sindicato de trabalhadores. Esta intenção e prática em torno da produção de

consensos através do embate – mesmo que caloroso - e da prática da colaboração entre os

distintos entes sócio-políticos acaba por substituir no campo da esquerda possível o

discurso e prática revolucionária que têm na luta de classes seu eixo de realização. O risco

da social democracia brasileira e dos seus mais novos convertidos é o populismo, isto é,

ceder facilmente à tentação da execução a curto prazo de uma agenda de longo prazo e com

isto inviabilizar e comprometer a possibilidade de um projeto de inclusão de milhares de

pessoas no mercado em uma economia forte, saudável e autosustentável, que garanta ao

país sua soberania comercial pela inserção em um mundo globalizado.

A título de conclusão, gostaria de retomar Hegel, filósofo tão respeitado atualmente

pelas hostes marxistas e sociais democratas e tecer alguns comentários sobre esta forma

específica de violência política e que remonta a significação do Estado como um regime de

absoluta supressão da sociedade civil e das garantias individuais. Sobre isto – o terror -,

Hegel faz referência a possibilidade da usurpação da esfera política por uma forma de

consciência de si que ao querer a realização de uma forma política universal, não tolera

para si os limites que qualquer forma de ordem impõe e requer. A sua vontade é, então,

regida por uma liberdade negativa, que Hegel descreve como aquela que representa o

objeto do querer como para além de si, não se reconciliando com as instituições que cria,

produzindo somente fúria e destruição. No século passado, as referências ao terror são

óbvias. Entretanto, este apareceu sob uma nova forma, o terror da consciência utópica. Esta

forma de terror – ainda engastada na modernidade - encontra a necessidade de sua

existência não em qualquer forma de reciprocidade com uma esfera autônoma da sociedade

civil, ou em uma ordem universal de direitos, mas na sua própria vocação, a saber: a
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vocação para a realização de um projeto que prescreve, para além do presente e da história,

para além da condição humana, a própria superação do domínio da Política e da História. O

Estado nesta acepção, diriam seus vogais, não encontra em si mesmo e na sua relação com

os homens no presente a sua própria fundamentação, mas na utopia que o rege. É uma

forma de instituição absolutamente vocacionada para a realização de algo que lhe é externo,

seja uma utopia de esquerda ou mesmo de direita. A necessidade enunciada por aqueles que

defendiam ou ainda defendem esta forma de instituição provisória se fundamenta tão

somente nas diretrizes de sua utopia. A provisoriedade das instituições do Estado totalitário

é remissiva ao seu compromisso com o futuro e nele encontra sua forma de justificativa,

mesmo quando castas e nomenclaturas já constituíram uma forma de domínio

absolutamente tirânico, extirpando, ironicamente, no presente qualquer possibilidade de

“redenção” no futuro, restando apenas fúria, medo e destruição. Muito obrigado!

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