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GERMER, C.M. As tendências de longo prazo da economia capitalista e a transição para o socialismo.

In:
BRAGA, S. et al. Marxismo & Ciências Humanas : leituras sobre o capitalismo num contexto de crise; ensaios em
comemoração aos 15 anos de Crítica Marxista. Curitiba : UFPR/Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, 2011,
p. 117-138.

UFPR/SCHLA

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O


CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

Ensaios em comemoração aos 15 anos de Crítica Marxista


Org. Sérgio Braga, Pedro Leão da Costa Neto, Marcos Vinícius Pansardi e Adriano Codato.
Curitiba-PR

1ª Edição

Coletânea de textos apresentados no evento realizado em Curitiba


em Homenagem aos 15 anos da revista CRÍTICA MARXISTA.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SISTEMA DE BIBLIOTECAS
BIBLIOTECA CENTRAL
COORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS
Ficha catalográfica
Universidade Federal do Paraná. Setor de Ciências Humanas,
U58 Letras e Artes.
Marxismo & Ciências Humanas : leituras sobre o Capitalismo
num contexto de crise: ensaios em comemoração aos
15 anos de Crítica Marxista / Org. Sérgio Braga...
[et al.]. -- Curitiba, 2011.
161p.
Vários autores
Coletânea de textos apresentados no evento realizado em
Curitiba em homenagem aos 15 anos da revista Crítica Marxista.
Inclui referências e notas
ISBN - 978-85-99229-08-8
1.Capitalismo. 2. Ciências Sociais – Coletânea. 3. Marxismo
– Discursos, ensaios, conferências. 4. 15 anos de Crítica
Marxista. I. Braga, Sérgio. II. Título.
CDD 22.ed. 335.4
Samira Elias Simões CRB-9/ 755
Capa
Diagramação
Gustav Diaz
gustaveaux@gmail.com
Marti Pansardi
martiguerreiro@yahoo.com.br
SCHLA/UFPR,2011

Sumário
Pág.
Apresentação (Os organizadores) _______________________________ 5
Caio Navarro de Toledo: Desafios e problemas de uma publicação
marxista no Brasil: Crítica Marxista faz 15 anos._________________
7
Armando Boito & Luiz Eduardo Motta: Karl Marx no Brasil.________ 17
João Quartim de Moraes: O marxismo e os impasses do capitalismo
contemporâneo. ___________________________________________
27
Isabel Loureiro: A recepção de Rosa Luxemburgo no Brasil._______ 43
Robespierre de Oliveira: A teoria crítica como teoria da mudança
social: o marxismo de Marcuse. ______________________________
59
Anita Helena Schlesener: Gramsci e a cultura de seu tempo:
observações sobre arte e literatura.____________________________
71
Marcos Viníci/us Pansardi: Gramsci e as Relações Internacionais:
hegemonia, dependência e imperialismo. ______________________
85
Francisco Paulo Cipolla: A evolução da teoria da crise em Marx. ____ 101
Claus Germer: As tendências de longo prazo da economia capitalista
e a transição para o socialismo. ______________________________
117
Sérgio Braga: Nicos Poulantzas, as elites e a sociologia política
norte-americana. __________________________________________
139
Adriano Codato: Política, ciência e ideologia: sobre o "teoricismo"
de Nicos Poulantzas. ______________________________________
165
Pedro Leão da Costa Neto: Notas introdutórias sobre o
desenvolvimento do marxismo no Leste Europeu.______________
175
Ligia Regina Klein: A luta pelas leis fabris do século XIX e a
definição das idades do trabalho: um estudo sobre a constituição
das noções de infância e adolescência. ________________________
185

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
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As tendências de longo prazo da
economia capitalista e a transição
para o socialismo
Claus M. Germer (UFPR)70

INTRODUÇÃO

A análise deste tema é oportuna em um momento em que o capitalismo se considera triunfante e os críticos do capitalismo, mesmo no
campo do marxismo, vacilam na afirmação do caráter historicamente passageiro do presente modo de produção ou jogam para um
futuro remoto e incerto a possibilidade da transição para o novo modo de produção, o comunismo. Uma das principais críticas feitas
por Marx à teoria econômica burguesa (a Economia Política clássica, na sua época, cujo caráter científico reconhecia) foi o seu caráter
a-histórico, isto é, o fato de não reconhecer a natureza passageira do capitalismo. Atualmente, no campo do marxismo, isto é
geralmente reconhecido, mas, ao contrário de Marx, parece ser aplicado, na análise teórica, praticamente apenas ao passado,
principalmente como análise do processo de gênese do capitalismo no interior do feudalismo. Raramente é aplicado à tentativa de
identificar o processo corrente de gestação dos elementos que emergem no interior do capitalismo e que apontam para a sua
superação, na forma de elementos constitutivos de um novo modo de produção. Um esforço neste sentido não se confunde com a
tentativa de prever o futuro ou elaborar receitas sobre a forma concreta que deveria assumir o novo modo de produção. O de que se
trata é de procurar identificar os elementos emergentes deste no interior do capitalismo.
70Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico da Universidade Federal
do Paraná.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
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Uma tentativa deste tipo não é uma empresa fácil, uma vez que a evolução social está sendo tecida cotidianamente, por intermédio da
atividade de milhões de indivíduos e grupos de indivíduos agindo sem coordenação consciente, portanto sem um objetivo comum
conhecido. As mudanças meramente incrementais podem ser previstas até certo ponto, mas apenas para o futuro próximo, uma vez
que são mera extrapolação da situação vigente, que é conhecida. Mas as mudanças que implicam saltos qualitativos dificilmente
podem sê-lo. O desenvolvimento da manufatura, a partir de meados do século 16, é um exemplo deste tipo. No início daquele século,
quando a produção artesanal era a forma vigente da produção industrial, nada permitia prever o surgimento e a difusão da produção
manufatureira, algumas décadas depois, cujas condições de emergência estavam, porém, sendo gestadas a partir de diferentes pontos
da sociedade, mas cuja combinação em um processo de convergência para o que viria a ser a manufatura era imperceptível a qualquer
observador. Do mesmo modo, durante o domínio da produção manufatureira, nada permitia antever o desenvolvimento da indústria
mecanizada a partir dela. Sendo assim, como é possível antecipar uma mudança qualitativa tão significativa quanto a natureza do
modo de produção que tomará o lugar do capitalismo? Ou seja, como é possível identificar o comunismo como o novo modo de
produção? O objetivo desta exposição é retomar os fundamentos teóricos que tornam isto possível.

Uma correlação de forças de classes extremamente desfavorável ao socialismo, principalmente nas últimas três décadas, parece ter
produzido uma forte desmotivação para o estudo do processo de transição em curso e até mesmo uma certa descrença de que isto
esteja ocorrendo. Como consequência, são escassas as análises que sintetizam os abundantes dados e informações que identificam o
curso deste processo. O objetivo deste artigo não pode, portanto, ir além da retomada dos fundamentos teóricos da existência deste
processo e da indicação de algumas evidências mais gritantes da sua realização.

A TEORIA DOS MODOS DE PRODUÇÃO

Não há dúvida de que Marx e Engels consideravam possível antever pelo menos as características fundamentais do modo de

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produção – o comunismo – que sucederia o capitalismo. Marx não só referiu-se ao novo modo de produção em numerosas passagens
da sua obra, como pretendia dedicar um volume do O Capital a este tema, intenção que, lamentavelmente, não pode realizar.
Rosdolsky, citando os Grundisse, esclarece que, “segundo o plano original de Marx, o último volume da sua obra deveria encerrar-se
com o exame dos momentos que apontam ‘para além do que está pressuposto’ e que ‘pressionam pela emergência de uma nova forma
histórica’ da sociedade. Este volume deveria ocuparse, portanto, com a análise da ‘dissolução do modo de produção e da forma de
sociedade baseados no valor de troca’ e da sua transição para o socialismo” (Rosdolsky, p. 486). Prossegue o mesmo autor: como
resultado da análise de Marx “o socialismo já não aparecia como um mero ideal, mas como uma fase necessária do desenvolvimento
da humanidade, para a qual tende a história decorrida até hoje, de modo que só se poderia falar da futura forma socialista da
sociedade, na medida que embriões visíveis desta futura sociedade pudessem ser descobertos na história decorrida e suas tendências
de desenvolvimento” (Ibidem, p. 487).

Isto significa que a transição para um novo modo de produção inicia-se quando elementos do mesmo começam a desenvolver-se no
interior do modo de produção vigente. Um pouco de reflexão é suficiente para indicar que esta é uma condição indispensável à
possibilidade da passagem a um novo modo de produção71. Sendo assim, os elementos emergentes e constitutivos do modo de
produção que se seguirá ao capitalismo devem poder ser observados no interior da sociedade capitalista atual.

Deve-se notar que, para que embriões visíveis da sociedade futura possam ser encontrados no interior do capitalismo atual, são
necessários critérios capazes de indicar quais seriam os fenômenos que constituem embriões da sociedade futura. Tais critérios só
podem ser derivados das leis que presidem a evolução do capitalismo. É preciso, portanto, identificar estas leis, função que cabe à
ciência. O que se necessita, por conseguinte, é que a sociedade capitalista seja analisada segundo o método científico usual, isto é,
procurando identificar as leis que presidem o seu funcionamento e sua evolução, a partir dos fatores materiais que objetivamente a
condicionam, e sem a intervenção da

71Segundo Marx, “...relações de produção novas e superiores nunca se instalam antes que as condições de existência materiais das mesmas tenham sido geradas no
próprio seio da velha sociedade” ( Marx, 1980, p. 101).

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intencionalidade humana. Como Marx esclareceu no prefácio ao primeiro volume do O Capital, tratava-se nesta obra de identificar as
“leis naturais da produção capitalista (...) [as] tendências que atuam e se impõem com necessidade férrea”, ou seja, “descobrir a lei
econômica do movimento da sociedade moderna”, que é a sociedade capitalista (Marx, 1983, p. 12). O método desenvolvido por
Marx e Engels para investigar o processo de desenvolvimento da sociedade humana, é o materialismo histórico, que consiste na
aplicação do materialismo filosófico e da dialética à análise da sociedade humana. Ao contrário do que se possa crer, o materialismo é
a filosofia na qual se baseia, consciente ou inconscientemente, a moderna pesquisa científica burguesa no campo das ciências
naturais72. Sendo assim, se a ciência é materialista em todos os campos, segue-se que a análise científica da sociedade requer
igualmente uma abordagem materialista.

Mas a possibilidade de analisar o movimento da sociedade capitalista depende crucialmente de se ter identificado as leis que presidem
a evolução da sociedade humana em geral, isto é, as leis que movem a ação do ser humano como tal e, mais especificamente, aquelas
que presidem a transição de um modo de produção a outro. As tendências a serem observadas na evolução do capitalismo nada mais
são do que manifestações da operação destas leis gerais. Sem elas seria impossível saber quais fenômenos deveriam ser observados
como indicadores do processo de transição. O estabelecimento destas leis foi realizado por Marx e Engels nas suas obras iniciais, de
cunho eminentemente metodológico, com destaque para a ‘A ideologia alem㒠e o prefácio da ‘Contribuição à crítica da economia
política’. Marx e Engels pretenderam analisar a evolução da humanidade cientificamente, isto é, sem atribuí-la a entes fantásticos ou a
inspirações geniais de grandes personagens. Nestas obras identifica-se o desenvolvimento das forças produtivas como o fator material
responsável pelo desenvolvimento da sociedade humana em geral, e a contradição entre as forças produtivas e as relações sociais de
produção como o fator responsável pelo desenvolvimento das lutas de classes que conduzem à transição de um modo de produção a
outro. Deste modo, a identificação das tendências de evolução das forças produtivas e da contradição entre estas e as relações de
produção, em determinado modo de
72Na filosofia não marxista das ciências naturais atuais isto é amplamente reconhecido: “Materialism is now the dominant systematic ontology among philosophers and
scientists, and there are currently no established alternative ontological views competing with it” (Moser and Trout, p. ix).

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produção, permite antecipar as características fundamentais do modo de produção seguinte. Deve-se ter em mente que as relações de
produção expressam-se na forma jurídica da propriedade ou da apropriação. Portanto, é necessário observar aemergência de novas
formas materiais de apropriação, conflitantes com a forma vigente e sua expressão jurídica. Por outro lado, esta contradição
desencadeia uma reação por parte da classe proprietária vigente, na tentativa de controlar e/ou deter o desenvolvimento das novas
forças produtivas e da nova forma material de apropriação que lhe corresponde 73. A existência destas reações acrescenta-se ao
observador como outro indicador da intensidade da contradição mencionada.

Não se pode de imediato dizer se as mudanças mais facilmente observáveis são as que se dão nas relações de produção ou nas forças
produtivas, embora estas sejam a causa daquelas. Os desenvolvimentos técnicos dos meios de produção ocorrem no interior das
unidades produtivas, longe das vistas da maioria da população e mesmo de observadores atentos, enquanto as mudanças nas relações
de produção, que se dão entre indivíduos que circulam na sociedade como portadores de uma nova relação social, tornam-se por este
motivo mais fácil e rapidamente percebidas. Por outro lado, porém, importantes desenvolvimentos técnicos nos meios de transporte,
que são também elementos das forças produtivas, e que desempenharam papel importantíssimo no impulso ao desenvolvimento das
novas forças produtivas e relações de produção como um todo em diversas fases da evolução da humanidade, principalmente nas mais
recentes, são mais fácil e extensamente percebidas. Finalmente, deve-se notar que não há leis que permitam antever as direções dos
desenvolvimentos técnicos e a natureza dos saltos qualitativos que caracterizam a emergência de forças produtivas portadoras de
mudanças cruciais. Sendo assim, parece que os melhores indicadores da emergência do novo modo de produção no capitalismo são as
mudanças nas relações de produção e a explicitação do seu conflito com a forma jurídica vigente da propriedade. Se as relações de
produção mudam, é porque as forças produtivas estão mudando.

Deste modo torna-se possível a identificação do processo em curso de constituição de uma realidade social futura, antes que esta tenha
se materializado. Esta possibilidade depende de se

73 Uma exposição detalhada da teoria da transição entre modos de produção, elaborada por Marx e Engels, encontra-se em Germer, 2009.

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poder antever, pelo menos em suas linhas gerais, o formato da realidade futura, que depende, por sua vez, de ser possível extrair, da
análise do processo evolutivo atualmente em curso, as tendências evolutivas essenciais e a sua convergência em direção a uma
transição determinada.

O resultado da análise de Marx está sintetizado na lei geral da acumulação capitalista (Marx, 1983, cap. 23), e pode ser assim
enunciado: na sociedade capitalista os produtores são independentes e concorrem uns com os outros pela sobrevivência como
produtores. A concorrência conduz à elevação contínua da composição orgânica do capital e à centralização crescente dos capitais,
isto é, à absorção dos capitais menores pelos maiores e à proletarização dos menores capitalistas e demais produtores porventura
existentes. Da centralização crescente decorrem duas tendências: a primeira é a polarização crescente da população em duas classes: a
classe capitalista, cujo número diminui gradualmente, por um lado, e a classe dos trabalhadores assalariados, que tende a absorver o
restante da população, ou seja, a maioria, por outro. A segunda tendência é o crescimento contínuo das escalas dos capitais individuais
e a correspondente expansão do caráter social do trabalho, com contingentes cada vez maiores de trabalhadores trabalhando
combinadamente em regime de cooperação técnica. Finalmente, com o advento e difusão da sociedade anônima, os capitalistas são
substituídos por trabalhadores assalariados nas funções de direção nas esferas da produção e da distribuição dos produtos do trabalho.
Todas estas tendências realizaram-se plenamente após a publicação do O Capital, mesmo aquelas que, à época, ainda não haviam se
manifestado claramente, como é o caso da difusão da sistema de crédito, da sociedade anônima e da centralização geral dos capitais.

Desta síntese decorrem as evidências a serem procuradasna evolução do capitalismo até este momento: por um lado, asevidências
sobre o processo de polarização social entre capitalistase assalariados; por outro lado, as evidências de uma tendênciaainda inexistente
quando da elaboração do O Capital, mas implícita no processo de centralização, que é a progressivasubstituição do mercado pelo
planejamento da atividade econômica, tanto ao nível dos capitais individuais quanto do capital global.

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OS ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DO COMUNISMO NO INTERIOR DO CAPITALISMO

Entre as referências feitas por Marx ao comunismo, encontra-se frequentemente a expressão ‘sociedade de produtores associados ’. O
conceito de ‘produtores associados’, cuja base é a propriedade comum dos meios de produção, opõe-se ao de ‘produtores
independentes em concorrência’, cuja base é a propriedade privada dos meios de produção. É clara nos textos de Marx a indicação de
que o comunismo baseia-se na propriedade comum ou coletiva dos meios de produção. A propriedade comum implica, logicamente,
que a gestão dos meios de produção é também comum e unificada, significando que o conjunto deles é gerido como uma totalidade,
ou seja, há planejamento global unificado da produção e da distribuição. Pode-se dizer, por conseguinte, que os dois componentes
fundamentais do comunismo são a propriedade comum dos meios de produção, por um lado, e o planejamento integrado ou global da
produção e da distribuição, por outro.
Ora, o novo modo de produção somente se torna possível na medida que os seus componentes fundamentais estejam desenvolvidos a
um ponto que se possa considerar suficiente, uma vez que eles constituem o fundamento material do desenvolvimento da classe social
portadora do projeto do novo modo de produção, projeto este que nada mais é que a expressão das exigências objetivas dos
componentes já desenvolvidos do mesmo74. Ou seja, a transição para o comunismo requer que se desenvolva previamente, no interior
do capitalismo, uma classe cujo destino depende desta transição, e uma tal classe só pode desenvolver-se caso a apropriação coletiva
dos meios de produção se desenvolva também previamente, em estado embrionário, no interior do capitalismo. Isto lembra a máxima
de Marx, segundo a qual a sociedade somente se propõe um problema quando as condições materiais para a sua solução já estão
presentes. Sendo assim, pode-se dizer que as duas tendências de longo prazo fundamentais do capitalismo são a progressiva
emergência da propriedade comum dos meios de produção, por um lado, e do planejamento global da produção e da distribuição, por
outro. Conseqüentemente, estas duas

“A existência de idéias revolucionárias numa época determinada pressupõe já a existência de uma classe revolucionária ” (Marx e Engels, 1975, p. 68). Ver também
74
Germer (2009).

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tendências devem poder ser observadas no processo objetivo de desenvolvimento do capitalismo.

A EMERGÊNCIA DA PROPRIEDADE COLETIVA DOS MEIOS DE PRODUÇÃO

A afirmação de que os componentes do comunismo


devem desenvolver-se até um ponto significativo no interior do
capitalismo não significa que se pretenda que estes se manifestem
abertamente como tais, de modo explícito. Assim, a emergência
da propriedade comum no interior do capitalismo não pode ser
entendido como a difusão desta nova forma de propriedade
explicitamente como propriedade comum, de todo o povo. Isto
nem poderia ocorrer, uma vez que a forma jurídica geral da
propriedade dos meios de produção é a propriedade privada.
Sendo assim, dada a dominância desta, é óbvio que a
propriedade coletiva não pode desenvolver-se a não ser como
uma forma encoberta da propriedade privada. O mesmo deu-se
na transição do feudalismo para o capitalismo, na qual o
capitalista desenvolveu-se na forma de arrendatário do nobre
feudal, ou seja, como uma espécie de vassalo de novo tipo, tanto na agricultura como na manufatura.
Parece legítimo sugerir que a propriedade comum pode
desenvolver-se de duas maneiras no capitalismo, por um lado de
maneira positiva, isto é, como propriedade efetivamente existente,
mas em forma encoberta pela propriedade privada; por outro lado
de maneira negativa, isto é, como processo de progressiva
redução do âmbito de existência da propriedade privada.

A PROPRIEDADE COMUM DOS MEIOS DE PRODUÇÃO COMO


FORMA ENCOBERTA PELA PROPRIEDADE PRIVADA

Segundo Marx, a propriedade comum dos meios de


produção desenvolve-se, no capitalismo, sob as formas da
sociedade por ações ou sociedade anônima, e das fábricas cooperativas 75
(Marx, 1985, p. 332-5). É significativo que estas
últimas, em contraste com a sociedade anônima, nunca se

75 Sobre o papel das fábricas-cooperativas na teoria de Marx, consultar Germer, 2006a.

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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tenham expandido, o que se explica pelo fato de constituírem uma


forma explicitamente comum de propriedade dos meios de
produção, por parte de não-proprietários convertidos diretamente
em proprietários comuns, e não como forma socializada da
propriedade privada, em âmbito limitado, como é caso da
sociedade anônima. Segundo Marx,
“As empresas capitalistas por ações tanto quanto as
fábricas-cooperativas devem ser consideradas formas de transição
do modo de produção capitalista ao modo associado, só que,
num caso a antítese é abolida negativamente e, no outro,
positivamente” (Marx, 1985, p. 335).

A sociedade anônima representa, para Marx, a forma


extrema da produção capitalista como forma embrionária da
propriedade comum. Ou seja, é a propriedade comum sob a
aparência da propriedade privada. Em carta a Engels, de 2 de
abril de 1858, Marx define a sociedade anônima de modo radical,
como “a forma mais perfeita (que desemboca no comunismo),
com, ao mesmo tempo, todas as suas contradições” (Marx e
Engels, 1974, p. 77). Coerentemente, quase dez anos depois, ao
redigir o livro III do O Capital, a define como “a abolição do capital
como propriedade privada, dentro dos limites do próprio modo de
produção capitalista” (OC, 1985, p. 332).

Assim, a sociedade anônima constitui uma socialização dos


meios de produção, embora no âmbito limitado da própria classe
capitalista. Deste modo, a propriedade comum desenvolve-se
amplamente como derivação da propriedade privada, assim
como a propriedade privada capitalista desenvolveu-se
amplamente no interior do feudalismo, como forma derivada da
propriedade feudal. Com efeito, atualmente a sociedade anônima
apresenta-se como a forma típica e mais geral da empresa
capitalista (Scott, 1986). Como consequência disto, como regra
geral estas empresas deixam de ser geridas, em qualquer
proporção, por capitalistas, para serem geridas por gerentes
especializados assalariados. Na medida que a sociedade anônima
se converte na forma geral da empresa capitalista, a classe
capitalista está afastada da gestão direta da produção e da
distribuição, sendo portanto dispensável do ponto de vista da
reprodução social, apresentando-se crescentemente como uma
classe parasitária, tal como se apresentava a nobreza feudal na
fase terminal do feudalismo. Ao mesmo tempo, a gestão efetiva
dos meios de produção passa às mãos de uma hierarquia de

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gerentes e especialistas assalariados. Embora agentes diretos de


capitalistas, são integrantes da classe dos não-proprietários de
meios de produção, o que significa que, na medida que a
sociedade anônima torna-se dominante, a gestão real dos meios
de produção do capitalismo transfere-se das mãos da classe
capitalista às mãos da classe oposta. O desenvolvimento da
sociedade anônima constitui, portanto, um momento do processo
histórico de transferência da gestão dos meios de produção para
uma nova classe de proprietários coletivos dos meios de produção
sociais.

Ao longo do século 20 a emergência da propriedade


comum deu mais alguns passos significativos. Por um lado, nos
países capitalistas, ingressaram na cena econômica a propriedade
e a gestão estatais diretas de meios de produção, principalmente
a partir da grande depressão dos anos 30 e aprofundando-se após
a II Guerra Mundial, de modo que o Estado assumiu importantes
funções diretas no processo global de reprodução do capital.
Embora o Estado represente a classe capitalista, a sua intervenção
direta na economia amplia consideravelmente o processo de
socialização em relação ao representado pela sociedade
anônima, uma vez que o vínculo direto do Estado ao capital está
oculto pela sua representação como poder acima das classes.
Deve-se também ressaltar o fato de que a direção das sociedades
anônimas é eleita pela sociedade dos acionistas, enquanto a
direção do Estado é eleita pela sociedade dos eleitores.
Por outro lado, o socialismo como forma de organização da
sociedade fez sua aparição histórica, embora apenas na periferia
do capitalismo, mas em dimensões geográfica e populacional
significativas. A abolição da propriedade privada e sua substituição
pela propriedade comum converteram-se em realidade, embora
ainda caracterizando uma fase de transição e sendo interrompida
como consequência de contradições internas e externas.
A propriedade estatal, tanto nos países capitalistas quanto
nos socialistas, vista em perspectiva histórica, constitui um passo
decisivo no processo de desenvolvimento dos elementos do
comunismo no interior do capitalismo como sistema mundial, e no
processo histórico de transição do capitalismo ao comunismo. Nos
países capitalistas, a propriedade comum, que até então se
apresentava apenas na forma da sociedade anônima, encoberta
sob a aparência da propriedade privada, e representando uma
socialização limitada à classe capitalista, converte-se
explicitamente, embora apenas formalmente, em propriedade
comum de todo o povo. Na empresa estatal a forma de sociedade

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anônima é inicialmente apenas uma ficção jurídica, uma vez que o


Estado detém a quase totalidade das ações. Posteriormente, como
reação burguesa à atuação do Estado como produtor direto, a
venda pública de ações e o controle de empresas estatais por
acionistas privados procuram encobrir o caráter público das
empresas estatais que escaparam da onda de privatizações do
período iniciado nos anos 1980. A diluição da participação
acionária do Estado nas empresas estatais toma ainda a forma de
uma associação de capitalistas, que, no entanto, mal encobre a
realidade da socialização capitalista de parte dos meios de
produção nos países capitalistas mais avançados.
Independentemente das vicissitudes das experiências
socialistas ao longo do século 20, constituem elas momentos do
processo histórico de gestação do comunismo, experiências de
gestão unificada da produção e da distribuição, baseada na
propriedade comum dos meios de produção por toda a
sociedade, abolidas a propriedade e a gestão privadas76. Pode-se
dizer ‘independentemente das vicissitudes’, porque os processos
objetivos, materiais, movem-se com a força irresistível das leis da
natureza, como dizia Marx, mesmo que os indivíduos e as classes,
que colocam tais processos em movimento, não compreendam o
sentido histórico do que fazem, oculto sob o manto muitas vezes
espesso das suas contradições.

A POLARIZAÇÃO CRESCENTE ENTRE PROPRIETÁRIOS E NÃOPROPRIETÁRIOS DE MEIOS DE PRODUÇÃO: A


EXTINÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA

A propriedade comum dos meios de produção também se


desenvolve pelo seu negativo, isto é, pela expropriação de uma
proporção crescente da população de qualquer propriedade. A
expropriação de um proprietário implica a sua conversão em não proprietário
e, de modo geral, em trabalhador assalariado. Deste
modo, a progressiva extinção da propriedade privada pode ser

76É interessante notar que os críticos de esquerda das experiências socialistas do século 20
concentram-se na acusação de que a socialização dos meios de produção teria se reduzido à mera
estatização, em contraste com a esperada e verdadeira socialização. Concentram-se em um aspecto,
mesmo que relevante, mas, na medida que esquecem a contradição presente em todos os processos
sociais, vulgarizam a sua crítica ao ignorarem o significado histórico destas experiências.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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avaliada pelo crescimento da proporção dos não-proprietários, isto


é, dos assalariados na população77.

Este processo tem se realizado consistentemente, indiferente


às contestações tendenciosas dos críticos do marxismo. Com
efeito, a proporção da classe dos trabalhadores assalariados na
população total tem crescido sistematicamente nos países
capitalistas. Nos mais adiantados, como por exemplo os EUA, os
assalariados já ultrapassam os 90% da população (Schneider, 1976,
p. 317; OIT, para dados atuais). No Brasil, segundo o censo
demográfico de 2000, os assalariados somam cerca de 75% da
população total, e entre eles o proletariado propriamente dito
(industrial e comercial/bancário) constitui cerca de 52% da
população total (IBGE). Em todo o mundo, segundo estimativa de
Bensaïd, a proporção da classe de trabalhadores assalariados
aumentou de cerca de 5% no início do século 20, a cerca de 33%
no início do século 21 (Bensaïd, 2001).

A classe capitalista, em contrapartida, nunca representou


uma proporção significativa da população, o que é comum a
todos os modos de produção baseados na propriedade privada.
No Brasil, ainda segundo o censo demográfico de 2000, a classe
capitalista (empregadores, segundo o Censo) conta menos de 3%
da população. Segundo estimativa de Labini, nos anos 1970,
referente a alguns dos países capitalistas mais desenvolvidos, em
nenhum deles a classe capitalista contava mais de 5% da
população (Labini, 1983). É curioso constatar que mesmo autores
que se dizem marxistas dispõem-se a admitir que a luta pelo
socialismo perde a sua legitimidade porque o ‘proletariado’,
definido tendenciosa e restritamente como proletariado fabril,
representa supostamente uma proporção ‘decrescente’ da
população, mesmo assim em torno dos 20%, com o que admite,
impliciticamente, que uma classe – a burguesia –, que nunca
ultrapassa os 5% da população, mantenha seu domínio absoluto

77“Horrorizais-vos porque queremos abolir a propriedade privada. Mas em vossa sociedade a


propriedade privada está abolida para nove décimos de seus membros. E é precisamente porque não
existe para estes nove décimos que ela existe para vós. Acusais-nos, portanto, de querer abolir uma
forma de propriedade que só pode existir com a condição de privar de toda propriedade a imensa
maioria da sociedade” (Marx e Engels, s/d, p. 33). O número parece exagerado, talvez por terem os
autores incluído os pequenos camponeses, maioria da população à época, entre os excluídos da
propriedade, entendida provavelmente como a propriedade especificamente capitalista, utilizando
trabalhadores assalariados. Em importante obra posterior, Marx afirma que “o ‘povo trabalhador ’
compõe-se, na Alemanha, na sua maioria de camponeses e não de proletários” (Marx, 1875).

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

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em um sistema baseado no monopólio dos meios de produção


sociais e na exploração desenfreada da força de trabalho da
imensa maioria da população.

Note-se que, no caso das transições anteriores, entre modos


de produção baseados na propriedade privada, o
desenvolvimento das forças produtivas dava origem a uma nova
forma privada de apropriação dos meios de produção, base de
uma nova classe proprietária privada, que se tornaria dominante
no novo modo de produção. Na transição do capitalismo ao
comunismo, ao contrário, o desenvolvimento das forças produtivas
não dá origem a uma nova forma de apropriação privada. O que
cresce persistentemente, ao contrário, é a não-propriedade, ou
seja, a privação da propriedade privada, forma negativa da
propriedade comum em desenvolvimento. Como resultado das leis
de movimento do próprio capitalismo, como se indicará adiante,
expande-se o caráter social da produção, isto é, o seu caráter
cooperativo geral; expande-se a interconexão técnica entre as
unidades independentes de produção e distribuição; cresce a
contradição entre este caráter social da produção e a
manutenção da apropriação privada por uma minoria, de modo
que o caráter privado da apropriação entra crescentemente em
conflito com a destinação social da produção.

A EMERGÊNCIA DO PLANEJAMENTO DA ECONOMIA

À propriedade comum ou coletiva dos meios de produção


corresponde a sua gestão comum ou coletiva, isto é, o
planejamento integrado e global da produção e da distribuição
dos produtos do trabalho social, substituindo o mercado. Sendo
esta uma característica fundamental do comunismo, deve-se
esperar que o planejamento da atividade econômica também se
desenvolva, de modo perceptível e em escala crescente, no
interior do próprio capitalismo. Quando se fala em planejamento
econômico, isto geralmente se refere ao planejamento realizado
pelo Estado. De fato, o desenvolvimento do planejamento da
economia pelo Estado, em graus variáveis de abrangência, em
todos os países capitalistas, é evidente ao longo do século 20. No
entanto, o planejamento econômico não se restringe ao Estado.
Embora o Estado seja uma instituição política da classe proprietária,
e embora o planejamento estatal tenha sido e continue sendo
relevante, do ponto de vista da transição para o comunismo, é

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

130

essencial que o planejamento se desenvolva, principalmente,


como elemento do funcionamento corrente da economia, isto é,
como elemento da dinâmica do capital, individual e
coletivamente. No momento da revolução política, é necessário
que a estrutura básica do planejamento já esteja constituída no
próprio coração do movimento do capital. Juntamente com a
abolição, na prática, da propriedade privada dos meios de
produção para a maioria da população, à medida que o
capitalismo se desenvolve, o planejamento da produção e da
distribuição deve também desenvolver-se espontaneamente e
deve estar constituído no momento da transição política.

Com efeito, a observação mais rigorosa permite constatar


que o planejamento da economia surge e se desenvolve sob duas
formas e não apenas uma: por um lado o planejamento ao nível
da economia como um todo, realizado pelo Estado e, por outro
lado, e mais importante, o planejamento ao nível dos capitais
individuais. Ambos emergem como emanação direta do crescente
caráter monopolista do capitalismo, isto é, constituem uma
característica do imperialismo, entendido como fase estrutural do
capitalismo. Não é casualidade que a gradual substituição do
mercado pelo planejamento, ao nível das empresas, tenha
começado a desenvolver-se no último quarto do século 19, e que o
planejamento estatal da economia tenha começado a
desenvolver-se no século 20, a partir da grande depressão iniciada
em 1929.

Sendo assim, deve-se distinguir duas modalidades de


planejamento econômico: o planejamento na esfera do capital
privado, que se pode denominar planejamento econômico
privado, e o planejamento econômico na esfera do Estado, que se
pode denominar planejamento econômico estatal.
O PLANEJAMENTO GLOBAL DA PRODUÇÃO E DA DISTRIBUIÇÃO

O planejamento econômico pelo Estado desenvolveu-se,


no século 20, em dois aspectos: por um lado nos países capitalistas,
como evolução das contradições do próprio capitalismo e, por
outro lado, nos países socialistas, como momento da transição ao
socialismo. Ambos os processos estão mergulhados em
contradições específicas, mas o que sobressai é o seu significado
no processo histórico do desenvolvimento social

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

131

A força irresistível dos processos sociais objetivos pode ser


ilustrada pelo fato de que, durante o século 20, a própria burguesia
foi autora de audaciosos experimentos de planejamento global
sob condições capitalistas. A superação da assustadora crise
econômica desencadeada pelo colapso da bolsa de Nova Iorque,
em 1929, foi em grande parte obra da intervenção direta do
Estado capitalista na gestão da economia. A ação planejada do
Estado aprofundou-se durante a II Guerra Mundial: nos EUA, país
hegemônico do capitalismo, a economia foi colocada sob o
controle direto do Estado durante toda a guerra. A produção
industrial foi convertida em produção militar. Como exemplo
paradigmático pode-se citar a proibição da fabricação de
automóveis de passeio pela indústria automobilística e a
destinação total da sua atividade à produção de veículos militares
de todos os tipos. O mesmo ocorreu na indústria da aviação e em
todas as demais. Os investimentos, os preços, o crédito, etc.,
passaram a ser administrados diretamente pelo Estado. O mercado
entrou temporariamente em recesso. A própria classe capitalista
aboliu temporariamente as sagradas leis do mercado, não porque
lhe agradasse, mas porque agia sob a compulsão de uma
realidade objetiva irresistível.

No processo de descolonização, que se seguiu ao fim da II


GM, o planejamento do desenvolvimento, pelo Estado, e não o
mercado, tornou-se o mecanismo central da promoção do
crescimento econômico das ex-colônias. Mesmo nos países
capitalistas mais atingidos pela guerra o planejamento econômico
explícito tornou-se regra: a França e o Japão, por exemplo,
elaboraram planos quinquenais de desenvolvimento até os anos 60
e 70, respectivamente.

No entanto, o planejamento econômico estatal, no


capitalismo, como não poderia deixar de ser, substituiu o mercado
apenas parcial e temporariamente, e não substituiu a propriedade
privada dos meios de produção. Mas constitui um sintoma da
emergência da propriedade social no interior do sistema da
propriedade privada capitalista. Constitui ainda um sintoma de que
o mercado é incapaz de continuar assegurando a reprodução
normal da economia, exigindo a intervenção de um poder
regulador não mercantil, que é o Estado, que deve ser entendido
como embrião de uma autoridade social como gestora global na
economia no socialismo. Dado o seu caráter não mercantil, o
planejamento econômico estatal reflete o crescimento da
propriedade social e entra em choque com a propriedade

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

132

privada. Segundo a tese de Marx, de que a classe proprietária


dominante reage aos desenvolvimentos das relações de produção
que refletem uma nova forma objetiva de apropriação e se
opõem, portanto, à propriedade privada, era de esperar que o
planejamento econômico estatal, nos países capitalistas, entrasse
em choque com os interesses da classe proprietária, a burguesia, e
que esta tudo fizesse para bloquear e mesmo abolir o
planejamento estatal. Efetivamente, o chamado neoliberalismo
pode ser reduzido a uma grande ofensiva da burguesia mundial
contra o planejamento econômico estatal, imposto pelas
circunstâncias dramáticas da crise geral dos anos 1930 e pelos
imperativos do pós-II Guerra Mundial.

É oportuno notar que já é impossível impedir a interferência


direta e ampla do Estado se não no planejamento, pelo menos no
direcionamento da economia, por diversas vias. A receita pública
absorve atualmente, nos países capitalistas avançados, em torno
de 40% do PIB. Por um lado esta receita converte-se em despesas,
que movem uma proporção importante da economia; por outro
lado, a forma da arrecadação e os canais bancários e financeiros
que esta volumosa receita percorre convertem-se em outros tantos
meios através dos quais o Estado influencia o destino de empresas,
ramos de atividade, regiões, etc. Adicionalmente, a centralização
do sistema bancário sob a coordenação do banco central fornece
ao Estado um poderoso meio de influenciar a economia por
intermédio da regulação do crédito e do câmbio. Todas estas
formas de intervenção do Estado não devem, porém, ser
encaradas como se estivesse ao alcance do Estado determinar
características essenciais da economia, sujeita que está esta, e o
Estado por seu intermédio, às leis de movimento do capital. Mas a
proporção da renda que passa pelo Estado, assim como os fluxos
de dinheiro, de crédito e de transações internacionais, que se
centralizam no banco central, fornecem ao Estado meios de intervir
na realização destas leis dentro de certos limites.

As iniciativas estatais no sentido de conter o processo de


centralização do capital, por intermédio das chamadas leis antitruste
e outras, podem ser interpretadas como uma reação da
classe capitalista representada pelo Estado ao desenvolvimento
das forças produtivas, na medida que a centralização acelera o
aumento das escalas de produção e da produtividade do trabalho
e reduz o âmbito da concorrência, ameaçando a supremacia do
mercado. A relativa ineficácia destas leis apenas reflete a
impossibilidade de bloquear definitivamente o avanço inexorável
do desenvolvimento das forças produtivas. As leis sobre direitos

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

133

autorais atuam no mesmo sentido, na medida que procuram


conter a velocidade de difusão do progresso técnico e a erosão
da concorrência. O mesmo se pode dizer das leis que, nos países
capitalistas mais avançados, bloqueiam o avanço do processo de
centralização do capital na agricultura78.

O PLANEJAMENTO AO NÍVEL DAS EMPRESAS

Nas últimas décadas do século 19 o capitalismo


experimenta um conjunto de transformações que o elevam a uma
nova fase, o imperialismo (Lênin, 1979, p. 594). O imperialismo,
segundo Lênin, não é uma política, mas uma fase estrutural do
capitalismo, caracterizada pelo domínio do processo de
centralização do capital e do monopólio gerado por este
processo, motivo pelo qual Lênin também a denominou fase do
capital monopolista. Nos três primeiros capítulos desta importante
obra, Lênin expõe o processo de formação das grandes empresas
que caracterizam a nova fase, e a elevação generalizada do grau
de concentração em todos os setores da economia. Esta fase é,
segundo Lênin, uma fase de transição “entre a absoluta liberdade
de concorrência e a socialização completa”, e a caracteriza
como um “novo regime social” (594), em que o âmbito do
mercado se contrai, substituído pelo controle dos mercados pelas
empresas monopolistas. Há uma certa complementaridade entre a
ampla análise da evolução histórica da ‘grande empresa industrial
moderna’ (big business), realizada por Alfred Chandler Jr, e a
análise de Lênin, com exceção, obviamente, da base teórica
totalmente divergente.

A história da grande empresa de Chandler e do novo


sistema social ao qual dá origem inicia-se também no final do
século 19 e estabelece-se definitivamente no início do século 20. A
grande empresa surge e cresce com base no salto tecnológico da
segunda revolução industrial, ocorrido neste período, e alimenta-se
da absorção contínua de empresas concorrentes e da integração

78Em diversos países europeus ocidentais e em diversos Estados dos EUA, há leis que limitam o
tamanho da propriedade da terra agrícola. Nos EUA há também uma proibição legal ao
estabelecimento de sociedades anônimas na agricultura. Estas e outras leis de mesmo sentido
constituem sem dúvida obstáculos opostos pelo Estado burguês ao desenvolvimento das forças
produtivas. É interessante notar que a motivação, neste caso, é a manutenção de uma pequena burguesia
conservadora no meio rural, como uma barreira ao avanço da luta pelo socialismo na
agricultura (Germer, 2006b, p. 53-55).

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

134

vertical, que Lênin também destaca sob o nome de ‘combinação’.


Ou seja, a grande empresa moderna, de Chandler, que coincide
com o grande capital monopolista, de Lênin, é a empresa típica da
fase imperialista do capitalismo. Com a integração vertical, ou
combinação, o comércio entre empresas independentes de uma
cadeia produtiva é substituído pela conexão planejada, no interior
da empresa integrada, entre as etapas sucessivas da cadeia de
produção/distribuição, que vai da produção das matérias-primas
até a distribuição do produto final. Segundo Chandler,

“a moderna empresa tomou o lugar dos


mecanismos de mercado na coordenação das
atividades da economia e na alocação dos seus
recursos. Em muitos setores, a mão visível da
gerência substituiu o que Adam Smith
denominou de mão invisível das forças de
mercado (...) Antes do advento da moderna
empresa, as atividades da pequena firma pessoal
eram coordenadas pelos mecanismos de
mercado e de preço. A moderna empresa, ao
assumir o controle de muitas unidades, começou
a operar em diferentes lugares, geralmente
exercendo diferentes tipos de atividades
econômicas e lidando com diferentes linhas de
bens e serviços. As atividades dessas unidades e
as transações entre elas foram portanto
interiorizadas, passando a ser monitoradas e
coordenadas por empregados assalariados e não
pelos mecanismos de mercado” (Chandler, 1998,
p. 248-9).

A necessidade de planejamento cada vez mais detalhado


cresce nas empresas, como resultado da centralização sempre
maior do capital, que resulta em empresas de dimensões cada vez
maiores, cuja produção atende uma proporção cada vez maior
de cada mercado, não só no interior dos países, mas também no
âmbito mundial. Como consequência, as empresas produtoras de
cada produto, ao planejarem a sua produção, planejam
concomitantemente o abastecimento de proporções crescentes
das populações (Schneider, pp. 125ss). Ao combinarem,
forçosamente, o planejamento da produção e da distribuição, tais
empresas traçam, na realidade, planos sociais parciais de
produção e distribuição.

O surgimento da ‘grande empresa moderna’ tornou-se


possível como resultado de um conjunto de transformações na

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

135

base material da sociedade. Na base de todas está o


desenvolvimento das forças produtivas ou, mais restritamente, o
desenvolvimento tecnológico. Nas palavras de Chandler, a grande
empresa moderna

“surgiu pela primeira vez na história


quando o volume das atividades econômicas
atingiu um nível que tornou a coordenação
administrativa mais eficiente e mais vantajosa do
que a coordenação pelo mercado. Este maior
volume de atividades foi possível graças à nova
tecnologia e à expansão dos mercados (...) Assim,
a moderna empresa comercial [big business –
CMG] surgiu, cresceu e continuou a prosperar
justamente nos setores e indústrias que tinham
tecnologia avançada e mercados em expansão
(Ibidem, p. 255)

Lênin traduz o mesmo fenômeno como um processo no qual


“a concorrência transforma-se em monopólio”. A redução do
âmbito de atuação do mercado e sua substituição pelo
planejamento interno e externo das grandes empresas, que se
caracteriza como uma situação de transição entre o mercado e o
plano como reguladores da economia, representa, ao mesmo
tempo, “um gigantesco progresso na socialização da produção.
Socializa-se também, em particular, o processo dos inventos e
aperfeiçoamentos técnicos” (Lênin, p. 593).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta exposição foi mostrar que a expectativa


de que o capitalismo será sucedido pelo comunismo não é
arbitrária, mas baseia-se em uma análise científica, representada
pelo materialismo histórico, da evolução da sociedade humana. A
pretensão de que o materialismo histórico constitui o método
científico de análise da sociedade baseia-se na utilização, de que
ele lança mão, do método de toda ciência, que é o materialismo,
não necessariamente aos resultados da análise nele baseada.
Assim, os resultados da análise de Marx e Engels podem ser
contestados, mas só podem sê-lo consistentemente, com base,
igualmente, no uso do método científico geral, que é, repita-se, o

MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE

136

materialismo. Marx e Engels denominaram socialismo científico a


nova forma de sociedade para a qual o capitalismo converge,
como resultado da sua análise, porque esta foi baseada no
método geral da ciência e não em preferências ou motivações
subjetivas.

Procurou-se demonstrar que, na medida que seja possível


identificar, metodicamente, as leis de movimento da sociedade
humana em geral, e com base nestas as da sociedade capitalista,
especificamente, partindo exclusivamente dos fatores materiais ou
objetivos que as condicionam e determinam, como Marx e Engels
pretenderam ter feito, deve ser possível identificar, por um lado, as
tendências gerais de longo prazo que conduzem a sociedade
capitalista à passagem para um novo modo de produção e, por
outro lado, a natureza do novo modo de produção. Esta foi, em
essência, a pretensão de Marx e Engels.

Finalmente, procurou-se também apontar algumas


evidências históricas sobre a realização das tendências
fundamentais de longo prazo do capitalismo, a partir da
elaboração do O Capital. Esta exposição tem um caráter
exploratório inicial, devido à escassez de pesquisas extensas e
aprofundadas sobre este tema.

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