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As críticas de Marcuse à concepção leninista de partido

Resumo

Marcuse acredita que a concepção leninista de partido está atrelada a uma


interpretação equivocada sobre a situação da classe trabalhadora em seu compasso com as
tendências históricas do capitalismo. Para ele, deve-se compreender a configuração da luta
de classes a vinculando sempre às relações materiais existentes, o que o leva a contestar a
noção clássica do marxismo de proletariado revolucionário e a consciência de classe como
base para a organização materializada no partido revolucionário. Distanciando-se do que
entende como a ortodoxia marxista – figurada na teoria de Lenin -, Marcuse enxerga um
processo de integração da classe trabalhadora ao capitalismo, o que impediria a
explicitação da contradição entre capital e trabalho. Deste modo, em uma situação social
de prosperidade relativa ou de harmonia aparente, como seria possível que uma base de
massas concebesse essa contradição sobre a qual constitui seu próprio ser? E se esta
contradição for constantemente maquiada de modo a não ser percebida em uma escala de
massas, ainda podemos conceber a primazia da força política ao proletariado tal qual fez
Marx e também Lenin? Como pensar a função revolucionária do partido dentro destas
condições?

Palavras-chave: Herbert Marcuse. Partido revolucionário. Lenin.

Em O Marxismo Soviético (1958)1, ao empreender sua análise crítica sobre aspectos


teóricos, políticos e culturais da sociedade soviética, Marcuse produziu análises
interessantes sobre as relações de classe, chegando a conclusões decisivas para sua
orientação política. O filósofo tematiza a mudança de situação de classe do proletariado,
desenvolvendo sua visão acerca do que acredita ser um processo de integração do
capitalismo, uma transformação estrutural que, a seu ver, abala o conceito clássico de
proletariado revolucionário. Isto porque, de acordo com Marcuse, este conceito se liga à
“noção da coincidência histórica objetiva entre o progresso da civilização e a ação
revolucionária do proletariado industrial”, coincidência esta entendida por Marx como
derivada “das leis intrínsecas do desenvolvimento capitalista” (MARCUSE, 1969: 27).
Marcuse entende que, para Marx, a transição do capitalismo para o socialismo é a função
histórica da classe proletária por seu vínculo essencial com a lógica objetiva do capital.
Contudo, para o autor de O Marxismo Soviético, avaliando os passos preconizados por
Marx acerca deste processo de transição, seria possível demonstrar o quanto ele se baseia
em uma visão específica do capitalismo – pautada na tese da inevitabilidade do declínio do
capitalismo - que, ao não ser concretizada historicamente, fragilizaria algumas noções
marxianas associadas a esta questão, como a noção do proletariado revolucionário. No
entender de Marcuse, deu-se no desenvolvimento real do capitalismo uma nova
conformação entre as classes que ameaça a possibilidade de haver a coincidência
histórica entre progresso e ação revolucionária da classe proletária. Dentro deste estágio
apareceriam novas condições históricas, com uma força e contradições específicas.
Segundo Marcuse, a possível variabilidade do processo revolucionário já
preconcebido por Marx tem como base em comum a organização do proletariado como
classe. Mesmo sua noção de partido é diretamente vinculada à noção de auto-organização
do proletariado e não de uma direção que deve manipular uma massa sem consciência de

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MARCUSE, Herbert. O Marxismo Soviético. Rio de Janeiro: Editora Saga, 1969.
sua condição de classe. Nesse sentido, quando uma configuração histórica faz desaparecer
esta base de massas, o agente histórico não tem mais como constituir sua identidade
revolucionária. Assim, a forma partido pensada pelo marxismo não estaria em cheque?
Sobre uma nova fase do capitalismo, em 1958, Marcuse indica que houve uma série
de produções teóricas marxistas tratando sobre o que seria sua fase imperialista. Este
imperialismo entendido de modo mais geral permitia concordâncias, porém, quando a
discussão se voltava para as tendências históricas, davam-se sérias discordâncias, que
poderiam ser mais bem compreendidas, segundo ele, mediante a abordagem de duas linhas
principais. Por um lado, o “campo reformista”: tendo como exemplo a figura de Bernstein,
este campo - também conhecido como revisionista - acreditava na melhora progressiva do
proletariado dentro do que seria o “capitalismo organizado”, uma forma do sistema que
permitia que a luta socialista se desse por instrumentos democráticos. Por outro lado, o
“campo ortodoxo”: Marcuse via em Lenin seu representante máximo, interpretando a
estabilização enquanto uma condição transitória do capitalismo, a teoria leninista
desenvolveu compreensões - entendidas por Marcuse como insuficientes - como a de
aristocracia do trabalho, para explicar uma série de modificações na classe trabalhadora.
O maior problema da teoria leninista, na visão marcuseana, foi reconhecer certas
mudanças fundamentais nas condições históricas e, ainda assim, manter velhas concepções
teóricas: “De fato, a recusa em se extrair as consequências teóricas da nova situação
caracteriza todo o desenvolvimento do Leninismo, e é uma das principais causas da
distância que separa a teoria da prática no Marxismo soviético2” (Ibid.: 37-38). Para
Marcuse, com a teoria da vanguarda revolucionária e da aristocracia do trabalho, o
leninismo procurou reformular as perspectivas de desenvolvimento capitalista na era
imperialista procurando manter a noção clássica do proletariado revolucionário. Assim,
não contemplava verdadeiramente a situação dada porque “antes mesmo da Primeira
Guerra Mundial, tornou-se claro que a parte ‘colaboracionista’ do proletariado era
quantitativa e qualitativamente diferente de uma pequena camada que havia sido
corrompida pelo capital monopolista, e que o Partido Social Democrático e a burocracia
sindicalista eram mais que ‘traidores’ (...).” (Ibid.: 38).
Partindo destes equívocos, a constituição do partido leninista enquanto
“representante real do proletariado” demonstrava “a distância entre a nova estratégia e a
velha concepção teórica” (Ibid.: 39). Ocorria, então, uma mudança do agente da revolução,
“que deixou de ser o proletariado conscientizado para ser o Partido centralizado, o qual
passou a desempenhar a função de vanguarda proletária” (Ibid.: 46). Assim o era, para
Marcuse, porque, ainda que quisesse manter a noção de proletariado revolucionário de
Marx, Lenin não mais tinha condições materiais que a sustentasse. Neste âmbito, Marcuse
aponta para sua tentativa em trazer o campesinato para esta órbita justamente quando
declinava o potencial revolucionário do operariado industrial em todos os países de
capitalismo avançado. Esta situação histórica teria forçado o marxismo – dentro dele, o
leninismo - a enfatizar sua atuação nos “países atrasados, predominantemente agrícolas,
cuja fraqueza do setor capitalista parecia oferecer melhores oportunidades para uma
revolução” (Ibid.: 37). Observando que esta noção está mais presente em Trotsky, Marcuse
não deixa de ressaltar como foi orientadora para o leninismo em seu interesse em se voltar
para os camponeses. E o que era uma concepção “dirigida à ‘imaturidade’ do proletariado

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Pode-se dizer que Marcuse, no texto de 1958, examina o vínculo entre o leninismo e o stalinismo pintando
como pano de fundo as dramáticas situações históricas desse contexto. O leninismo é muito criticado por ele,
principalmente, por ter sido, a seu ver, a base do marxismo soviético, considerando que a “teoria soviética
não se voltou às fontes primeiras da teoria marxista.” (Ibid.: 45).
russo tornou-se um princípio de estratégia internacional, face à persistente atitude
reformista do proletariado ‘maduro’ dos países industrializados” (Ibid.: 46).
A partir disto, pode-se avaliar a perspectiva de Marcuse sobre a possiblidade do
engajamento via partido: dentro destas novas condições, o partido se configura como uma
opção anacrônica que não oferece instrumentos para encarar os desafios sociais colocados
à emancipação. Por um lado, a ideia de partido revolucionário de Marx não condiz mais
com a modificação histórica ocorrida ao se centrar na concepção da classe revolucionária
do proletariado; por outro, a formulação leninista não é uma opção para o problema da
organização do proletariado e do desenvolvimento da consciência de classe nesta nova
situação, exatamente por seu apego a noção clássica de revolução. Acerca da perspectiva
leninista, desenvolver-se-ia uma noção autoritária de partido, pois “a fim de contrabalançar
a integração, ao sistema capitalista, de vastos setores do trabalho organizado, o ‘fator
subjetivo’ da estratégia revolucionária é monopolizado pelo Partido, o qual assume o
caráter de organização revolucionária profissional, dirigindo o proletariado”. (Ibid.: Idem).
O Partido leninista teria a função de subordinar os interesses subjetivos imediatos
aos interesses reais de classe até o momento em que, mediante crises e depressões, o
capitalismo se desequilibre de modo tal que conduza o proletariado à radicalização e, por
fim, faça coincidir interesses imediatos e reais. Preocupado com a distância entre teoria e
realidade, Marcuse questiona sobre a possibilidade deste momento de “crise final” não
acontecer e, ainda, sobre a parte mais substancial do proletariado não querer abrir mão de
seus interesses imediatos, auxiliando na configuração de uma relação apaziguadora entre as
classes. O caráter problemático da alternativa do leninismo à nova situação histórica foi
intensificado ainda, de acordo com Marcuse, pela concepção de socialismo em um só país,
de graves consequências para as formulações teóricas e, principalmente, para as opções
políticas levadas a cabo dentro do período stalinista.
Marcuse acredita que não se pode mais contar com condições objetivas para o
crescimento da conscientização da classe proletária. Encaminha-se para o entendimento de
que o proletariado se torna cada vez mais parte interessada para a continuidade desta forma
social. Falta clareza se, ao chegar a essas conclusões, Marcuse de fato coloque em xeque o
interesse de classe tal qual levantado por Marx e Lenin, pois ele continua a tratar sobre a
relevância da alienação do trabalho enquanto um descaminho para a vida social humana,
além de continuar a tematizar a urgência da revolução, mesmo que seja sobre novos
moldes desarraigados desta perspectiva classista de luta política. Tal falta de clareza talvez
demonstre como a abordagem marcuseana sobre esta questão em 1958, prenda-se mais à
forma falsa da consciência do proletariado, ou seja, a sua dimensão subjetiva, pois trata do
aspecto objetivo por uma perspectiva mais fenomênica, mais relacionada ao mundo da
aparência diretamente vinculada ao impacto subjetivo desta condição social. A dimensão
do problema é visto por um aspecto mais político, tomado pela desestruturação dos
comportamentos políticos frente à nova configuração do sistema. Esta novidade não é tão
discutida em sua transformação no âmbito econômico constitutivo para as relações sociais:
estas transformações haveriam rompido com a lógica histórica-mundial do capital?
O interesse de classe, em seu tratamento marxiano, deve se desfazer do ocultamento
da essência do trabalhador, esclarecendo sua dimensão objetiva: sua importância para a
produção social da vida humana. É a centralidade do trabalho produtivo para a constituição
objetiva da vida social que dá o papel histórico à classe proletária. Perdendo isto de vista,
Marcuse não teria superestimado a capacidade do capitalismo de resolver seus
antagonismos? Até que ponto estas compreensões de Marcuse ferem a noção de classes
sociais em sua validade analítica central para a teoria marxista?

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