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Psicologia,Violência

e Direitos humanos
C744p Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região (Org.)

Psicologia, violência e direitos humanos./ Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região,


Karen Meira Dotto, Paulo Cesar Endo, Sandra Helena Sposito, Teresa Cristina Endo (Orgs.) –
São Paulo: CRP SP, 2011.
300f.; 23cm.

Bibliografia
ISBN: 978-85-60405-18-3

1.Psicologia 2.Violência 3.Direitos humanos


I.Título
CDD 362.7

Ficha Catalográfica elaborada por: Vera Lúcia R. dos Santos – Bibliotecária - CRB 8ª Região 6198
Psicologia,Violência
e Direitos humanos
sÃO PAULO | 2 0 12 | 1ª ED IÇÃO
Co nsel h o R eg io nal d e Ps i colo g i a S P
XIII Plenário (2010-2013)
Diretoria
Presidente Carla Biancha Angelucci
Vice-presidente Maria de Fátima Nassif
Secretário Luis Fernando de Oliveira Saraiva
Tesoureira Gabriela Gramkow

Conselheiros efetivos
Ana Ferri de Barros, Carla Biancha Angelucci, Carolina Helena Almei-
da de Moraes Sombini, Fabio Souza Santos, Fernanda Bastos Lavarello,
Gabriela Gramkow, Graça Maria de Carvalho Câmara, Janaína Leslão
Garcia, Joari Aparecido Soares de Carvalho, Leandro Gabarra, Maria
de Fátima Nassif, Mariângela Aoki, Maria Orlene Daré, Patrícia Unger
Raphael Bataglia, Teresa Cristina Lara de Moraes.

Conselheiros suplentes
Alacir Villa Valle Cruces, Cássio Rogério Dias Lemos Figueiredo, José
Ricardo Portela, Leonardo Lopes da Silva, Lilihan Martins da Silva,
Luis Fernando de Oliveira Saraiva, Luiz Eduardo Valiengo Berni, Luiz
Tadeu Pessutto, Makilim Nunes Baptista, Marília Capponi, Marly Fer-
nandes dos Santos, Rita de Cássia Oliveira Assunção, Roberta Freitas
Lemos, Rosana Cathya Ragazzoni Mangini, Teresa Cristina Endo.

Gerente geral
Diógenes Pepe

c r ed ito s da p u b l icação
Coordenação de Comunicação
Christiane Gomes
Organização do Livro
Karen Meira Dotto, Paulo Endo, Sandra Elena Sposito e
Teresa Cristina Endo
Revisão
Grace Alves da Paixão
Projeto Gráfico e Editoração
Fonte Design
Imagem da Capa
Gráfica
Impressão
1ª impressão
Prefácio

Quem foi, quem foi


Que falou de boi voador?
Manda prender esse boi,
Seja esse boi o que for.
(Chico Buarque)

Para a psicologia, memória é tema precioso em si, ainda mais quando falamos do longo
período de ditadura em que vivemos no nosso país, bem como das sequelas por ela dei-
xadas até os dias de hoje. É essencial que consideremos o sentido que esse tema adquire
e as consequências do lembrar e do esquecer para os indivíduos e para a coletividade no
Brasil contemporâneo.
Em situações de violência, o olhar da psicologia volta-se para o cenário e seus com-
ponentes, procurando abranger os(as) diferentes envolvidos(as), restituir sentidos, aco-
lher sofrimentos e, com isso, proporcionar condições para a implicação de todos(as) e
de cada um(a) no processo. Delicadíssimo trabalho – em que são muito bem-vindas as
intervenções multiprofissionais – esse de possibilitar que as pessoas narrem suas lem-
branças e, com isso, reencontrem-se com sua própria história. Também delicadíssima a
composição e restauração dos laços entre a história individual e a história de um grupo,
de uma sociedade, de uma nação: trabalho esse que merece cuidado para que relações
maniqueístas e simplistas não sejam reproduzidas, para que não se produza a história
unidirecional dos(as) vencedores(as). Tal processo, para guardar a complexidade que lhe
faz jus, exige atenção às dissonâncias, aos sentidos específicos, às incompletudes e aos
diversos destinos que cada narrativa oferece à construção da memória coletiva.
Mais um campo de cuidados se impõe: há quem não queira, não consiga, não possa
lembrar, afinal, estamos falando de situações em que o corpo e a mente foram dobrados,
submetidos, humilhados das mais variadas, intensas e insistentes maneiras. Não à toa,
costumeiramente usamos a expressão “impensável” para designar o ocorrido durante os
muitos anos em que a tortura era pretensamente justificada como prática que visava à
segurança nacional. Impensável pode ser o sofrimento de uma jovem assistindo à viola-
ção dos corpos de seus parentes; impensável pode ser a dor de um homem que aguentou
por anos o encarceramento; impensável pode ser a agonia dos que foram simplesmente
acompanhando a morte de seus colegas. Assim como pode ser impensável a repulsa de
uma pessoa, hoje, diante da descoberta da participação de um familiar seu na violência
cotidiana efetivada em algum dos inúmeros porões da ditadura.
Assim, não cabe, neste momento, exigir, individualmente, que cada um(a) de nós
lembre o que aconteceu, narre detalhada e reiteradamente tudo aquilo por que passou, e
tudo isso sem nenhum respaldo social, sem nenhuma garantia de acolhimento e acompa-
nhamento dos efeitos provocados por todo esse processo de rememoração. É fundamen-
tal que possamos criar condições para que o trabalho da memória ocorra, é fundamental
que não revitimizemos as pessoas nesse processo.
É preciso criar condições para que o trabalho da memória ocorra. Aprendemos
com Ecléa Bosi, em seu tão significativo estudo, Memória e Sociedade1, que lembrar não
é simplesmente acessar um volume de dados, mas é entrarmos em contato com a expe-
riência, deixar-mo-nos afetar por ela e, com isso, resignificarmos os acontecimentos. Tal
trabalho implica a instauração de um campo intersubjetivo que dê sentido à recuperação
do passado, o reconhecimento social da importância da narrativa como aproximação de
uma determinada realidade, e a legitimidade da figura do(a) narrador(a) como alguém
que tem o que dizer sobre os acontecimentos.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Como poderemos acompanhar ao longo deste livro, no Brasil, não é consensual o


reconhecimento da necessidade de constituição de um campo de memórias e compreen-
sões sobre a ditadura; ainda há quem interrogue – o termo é proposital – inclusive sobre
a existência de violações de direitos no Brasil durante o governo militar. Assim, a psico-
logia, ao comprometer-se com a promoção de direitos, entre eles o direito à memória e à
verdade, tem importante função social, juntamente com outras áreas do conhecimento,
ao garantir a voz aos(às) que foram torturados(as), aos(às) que tiveram seus familiares
desaparecidos(as), aos(às) que testemunharam os massacres, enfim, a todos(as) que, ain-
da hoje, são muitas vezes colocados(as) na absurda posição de portadores(as) de uma
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visão equivocada sobre o que ocorreu.
É também uma contribuição da psicologia auxiliar na construção de um cenário
social, em que esse passado seja valorizado, como história concreta – produzida por pes-

1 BOSI, E. Memória e sociedade - lembranças de velhos. 3ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
soas determinadas, em um tempo e uma cultura determinados. Afinal, o passado, sendo
também experiência acumulada, permite refletir sobre as formas de socialização que já
criamos e suas consequências, o que deve nos servir para recontratar nossos caminhos
e nossa convivência. Em muitas situações deste livro, o(a) leitor(a) será convidado(a) a
pensar sobre as instâncias sociais, como os serviços públicos que visam à garantia de di-
reitos, e suas possibilidades (des)humanizadoras, o que provoca a reflexão sobre o quanto
esquecer o passado violento de nosso país tem nos aberto chances de reproduzir siste-
mas de relações sociais que submetem e despersonalizam os(as) usuários(as) e, assim,
distanciam-se do projeto, apontado em nossa Constituição, de universalização de direitos
e de participação social.
Quanto à legitimidade do(a) narrador(a) como alguém cujo relato merece respeito
e confiança, ainda há muito o que conquistar. Somos um país em que a história é cos-
tumeiramente apresentada de maneira linear, como sucessão de fatos acumulados em
um varal evolucionista de acontecimentos. Assim, a ditadura é apresentada como “mal
necessário”, os combatentes como “desordeiros” e a tortura como um meio justificável
diante da “ameaça vermelha”. Nossas estradas e avenidas carregam os nomes de algozes
e muitos de nossos pretensos heróis são aqueles que dizimaram populações, desde as
nações indígenas até a carnificina de civis. Recuperar a força e a dignidade de familiares e
de sobreviventes é tarefa que pede zelo e responsabilidade. Instituições como o Conselho
Regional de Psicologia de São Paulo devem criar encontros (presenciais e virtuais, como
este livro) entre aqueles que têm lembranças a compartilhar. Aí, sim, podemos compar-

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tilhar memórias e, no mínimo, estabelecer coletivos que se interessam genuinamente por
conhecer o que houve e resgatar a dignidade das pessoas que foram aviltadas.
É preciso cuidar para não revitimizar as pessoas. É premissa básica para a psi-
cologia que entrar em contato com situações de violência carrega uma dose de sofri-
mento. Assim como vimos discutindo nas situações de escuta de crianças e adolescentes
envolvidos(as) em situação de violência2, é direito do indivíduo não recordar. E sustentar
esse direito é também promover situações que garantam a autonomia da escolha, bem
como os cuidados relacionados aos efeitos disparados pelo próprio convite à rememora-
7
ção. Igualmente necessária é a oferta de apoio àqueles(as) que tomam a decisão de lem-

2 Conselho Federal de Psicologia. Serviço De Proteção Social A Crianças E Adolescentes Vítimas De Violência, Abuso E Exploração Sexual
E Suas Famílias: Referências Para A Atuação Do Psicólogo / Conselho Federal De Psicologia. Brasília: CFP, 2009. Disponível em: http://
www.pol.org.br/pol/export/sites/default/pol/publicacoes/publicacoesDocumentos/CREPOP_Servico_Exploracao_Sexual.pdf. Aces-
so em: 17 de mar. 2012.
brar e de partilhar coletivamente suas memórias. Podemos imaginar a pluralidade e a inten-
sidade de afetos derivados das narrativas, o que implica a garantia de um trabalho de apoio
psicológico, sob o risco de gerarmos irresponsavelmente aproximações com situações antes
nunca acessadas e que, se não trabalhadas, podem desencadear ainda mais angústia.
Por fim, é imperativo ressaltar que a escolha individual sobre a possibilidade ou não
de relembrar não deve ser contraposta à necessidade social da memória sobre o ocorrido
durante os governos totalitários. Resguardar o direito de uma pessoa e de uma famí-
lia, eventualmente, não se pronunciarem, deve ser entendido como parte desse mesmo
contexto coletivo, no qual cabe também a presença silenciosa e igualmente contundente
desses(as) para quem lembrar é por demais sofrido ou desses(as) para quem o acesso à
memória de fatos e afetos está quase impedido. Porque o sofrimento de não mais poder
recordar e pensar também é fruto da violência anterior e deve ser recebido coletivamente,
como ferida que não estanca, sua revivescência atinge direta e visceralmente, sem antepa-
ros. Por isso mesmo, tal insuportável dor deve encontrar lastro comunitário para existir
e reencontrar sentido histórico.
Há muito que colocar em evidência no que se refere à tortura no Brasil e seus des-
dobramentos: nossa timidez em relação à luta pela garantia de direitos, nossa conivência
com a agressão a setores vulneráveis da sociedade, nossa condescendência com movimen-
tos higienistas. Por tais motivos, este é um livro necessário. Seus(as) autores(as) têm se
dedicado nos últimos anos à sua elaboração, entendendo que a profissão de psicólogo(a)
Psicologia,Violência e Direitos humanos

convoca nossa consciência histórica, da mesma maneira que convoca nosso exercício
crítico sobre a contribuição da psicologia para a domesticação dos modos de ser, pensar
e agir. A iniciativa do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo de publicar textos
como os que aqui se apresentam explicita a adesão a uma histórica aberta, que comporta
as versões daqueles(as) que foram calados, maltratados(as), tidos como inadequados(as)
ou mortos(as), e que resgata enfrentamentos anteriormente estabelecidos. Com cuidado
ético e político, o livro desenterra esqueletos e retoma vozes; isso tudo para lhes recupe-
rar o vigor e, como todo bom trabalho da memória, colocar a nós, leitores(as), diante da
antiga e essencial pergunta: o que temos feito do processo de emancipação humana que,
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um dia, dissemos querer alcançar e pelo qual tantos(as) já morreram?

Carla Biancha Angelucci


Presidenta do CRP SP
Gestão 2010-2013
SUMÁRIO

12 Introdução

15 Notas sobre Psicologia e Direitos Humanos no âmbito do


Conselho Regional de Psicologia de São Paulo
Sandra Elena Sposito

Psicologia, políticas públicas e direitos humanos

22 A MELHORA DO BEM-ESTAR PSICOSSOCIAL DE REFUGIADOS E PESSOAS QUE BUSCAM ASILO


Angela Burnett e Kate Thompson

56 Direitos Humanos, violência e o desafio do atendimento a vítimas:


a busca por justiça
Flávia Schilling

69 O SUS e os mecanismos de exclusão: a saúde mental à margem do sistema de saúde


Teresa Cristina Endo e Manoel Tosta Berlinck

78 Direitos humanos e interfaces psi-jurídicas: uma pauta ético-política


para a questão dos adolescentes “perigosos”
Miriam Debieux Rosa, Maria Cristina G. Vicentin e Jorge Broide

95 Violência e Direitos Humanos: o analista face a um paradoxo


Caterina Koltai

Psicologia, ditaduras e justiça

98 A VERGONHA E A INTERPELAÇÃO DO ESTRANGEIRO


Paulo Endo

114 Os trabalhos da memória: os testemunhos dos familiares de mortos


e desaparecidos políticos no Brasil
Janaína de Almeida Teles
140 A prisão da juíza Afiuni – Um exemplo do processo autoritário
em curso na Venezuela
Belisário dos Santos Jr.

144 A justiça tão temida (Tempos subjetivos de uma luta contra a impunidade)
J. Guillermo Milán-Ramos

176 A lei de anistia no Brasil: as alternativas para a verdade e a justiça


Paulo Abrão

198 Caixa-Preta
Edson Luiz André de Sousa

Psicologia, crueldade, intolerância e memória

208 Dor e desamparo – filhos e pais, 40 anos depois


Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes

220 Por que a crueldade? notas para uma reflexão sobre a guerra e a paz
Betty Bernardo Fuks

238 Walter Benjamin. “Esquecer o passado?”


Jeanne Marie Gagnebin

248 FREUD E A PAZ


Jaime Ginzburg

257 A LONGA TRAjETÓRIA DOS DESLOCAMENTOS E DAS INTOLERÂNCIAS no Brasil


Zilda Márcia Grícoli Iokoi

274 Democracia e utopias sociais: sobre os problemas da razão


e da história na pós-modernidade
Eduardo C. B. Bittar

entrevistas

292 Nigel Rodley

299 wim muller


Introdução

O projeto desse livro nasceu em 2008. Sua proposição inicial era produzir um mate-
rial organizado em torno do eixo psicologia, violência e direitos humanos que discutisse
questões fundamentais no campo dos direitos humanos e da produção de violências, po-
rém a partir de uma perspectiva interdisciplinar, tensionada pelas preocupações propos-
tas há anos pela Comissão de Direitos Humanos do CRP SP, responsável por colocar na
agenda, com constância e pertinácia, o debate sobre psicologia e direitos humanos entre
os psicólogos, em São Paulo e no Brasil.
A definição dos autores, do Brasil e do Reino Unido, resultou num trabalho mais
extenso envolvendo longa preparação e preocupação com os originais, alguns deles a
serem transcritos, traduzidos e revisados pelos autores. Conseguimos com isso dar ao
livro uma visão mais abrangente que extrapola a situação brasileira sem perdê-la de vis-
ta. Ao mesmo tempo conseguimos reunir alguns importantes interlocutores brasileiros,
que advindos de outras áreas, dialogam constantemente com a psicologia e a psicanálise
contribuindo decisivamente na constituição desse tecido transdisciplinar, amalgamado
pelo debate constante e a disposição para deslocamentos metodológicos, para a criação
Psicologia,Violência e Direitos humanos

teórica e a militância política.


Ao longo dos 4 anos de trabalho necessários para a finalização desse livro, acompa-
nhado pelo suporte e amparo incondicional do CRP SP, comemoramos a conclusão da
coletânea Psicologia, Violência e Direitos Humanos. Ainda sob os ventos da celebração dos
60 anos da Declaração dos Direitos Humanos acompanhada da luta, no Brasil, por uma
Comissão da Verdade digna desse nome, da condenação do Estado brasileiro pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia, dos recentes acontecimentos da
desocupação no Pinheirinho, em São José dos Campos, da ação militarizada da polícia
12 contra os usuários de álcool e outras drogas na região central da cidade de São Paulo, a
concepção de organização dessa coletânea é pautada por uma preocupação fundamental
e norteadora: reunir importantes pesquisadores da psicologia, da psicanálise, da literatu-
ra, do direito, da filosofia, da história e da sociologia em torno do eixo psicologia, violên-
cia e direitos humanos.
Separadamente cada uma dessas disciplinas propõe sua própria complexidade e
articulam-se dentro de seu próprio campo disciplinar, mas provocados como campo ten-
sional evidenciam problemas específicos e de natureza ímpar.
Que conceito, noção e ideia de violência é sustentada e defendida no campo dos di-
reitos humanos e qual a sua importância na radicalização dos debates sobre as violências
múltiplas, paradoxais e derivadas? Os direitos humanos podem combater a violência do
direito? As psicologias alcançam e influenciam os debates contemporâneos no campo dos
direitos humanos, a ponto de esclarecer e introduzir nesse debate os danos psíquicos ex-
tensos, sem representação e, muitas vezes, irreparáveis; cada vez mais explícitos e eviden-
tes na produção testemunhal, na literatura de testemunho e nos depoimentos produzidos
nos tribunais de direitos humanos e comissões da verdade no mundo todo? E, consequen-
temente, como pensar e agir sobre o irreparável, o vazio e o inominável, efeito da preser-
vação de práticas de violência e violações de direitos continuadas e institucionalizadas?
O conjunto de textos que o leitor tem em mãos apresenta material conceitual, meto-
dológico e orientador da práxis para aqueles profissionais e pesquisadores que se insur-
gem e trabalham lá onde o mutismo e a comiseração da linguagem são a tônica e a inten-
ção – o campo das atrocidades onde permanece suspenso o terror e a ausência da ação
política. Cada um dos 24 autores convidados pesquisando e militando dentro ou fora do
país, e reunidos aqui pela primeira vez, são reconhecidos por seu trabalho contínuo, rigo-
roso e inovador no trato dos temas propostos. Assim o material que foi produzido revela-
-se como contribuição ímpar e uma referência importante nos debates transdisciplinares

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sobre direitos humanos e violência.
Do mesmo modo os elementos que se pode recolher desse debate, ora apresen-
tado, refletiram a densidade, a condensação e o avanço das reflexões, pesquisas e mo-
bilizações que têm ocorrido nos últimos anos no Brasil e o desejo de continuar a re-
fletirmos em diálogo, dialeticamente implicados nas parcerias transdisciplinares sobre
questões liminares.
Em franca ascensão, dentro e fora da academia, em consonância com os movimen-
tos sociais e atravessados pelo sentido de urgência e rigor, esses diálogos contribuem para 13
avançarmos criando perspectivas novas e metodologias ousadas quando amparados por
um referencial temático claro, capaz de convocar pesquisadores, estudiosos e militantes
de formações diversas inspirados pelo afã do trabalho comum.
Esperamos que, em seu conjunto, essa coletânea possa dar testemunho, através das
análises que a compõem, de uma resistência que ainda vige e vigia no mesmo ambiente
onde as violências se exercem com segurança e impunidade e onde ainda sobram a indi-
ferença e o esvaziamento da democracia.
Nossa intenção é a de apresentar um material que instrua, provoque e alimente de-
bates entre profissionais, militantes e pesquisadores – psicólogos e não psicólogos – num
país carente de suas verdades históricas e acostumado ao cotidiano de violações do qual
se alimentam as violências. Que os artigos aqui reunidos sejam geradores de mais palavra,
novas gramáticas e gere perturbação no que tantas vezes se apresenta como monolítico,
imperturbável e inultrapassável: as violências, violações e os atentados contra a democracia.
Que o livro, através de seus leitores, alcance seu objetivo.

Paulo Cesar Endo


Teresa Cristina Endo
Karen Meira Dotto
Sandra Elena Sposito

Comissão Organizadora do livro


Psicologia,Violência e Direitos humanos

Psicologia, Violência e Direitos Humanos

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Notas sobre Psicologia e
Direitos Humanos no âmbito do
Conselho Regional de Psicologia
de São Paulo

Sandra Elena Sposito

O vínculo entre a psicologia e os direitos humanos se estabelece no âmbito éticopolítico,


numa interlocução construída historicamente a partir do entendimento de que a ciência
e a prática psicológica devem contribuir e garantir os princípios que regem a Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Transformar esse vínculo em algo concreto no cotidiano dos profissionais em suas
áreas de atuação faz parte das atribuições dos Conselhos de Psicologia do Brasil. E, uma das
primeiras ações que objetivaram materializar essa interlocução foi a publicação do Código

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de Ética do Psicólogo no ano de 1987 (Resolução do Conselho Federal de
Psicologia 12/87), que apresentou os direitos humanos como princípio fundamental:
7. O Psicólogo, no exercício de sua profissão, completará a definição de suas responsa-
bilidades, direitos e deveres, de acordo com os princípios estabelecidos na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela Assem-
bleia Geral das Nações Unidas.

Tal diretriz ética se manteve na versão seguinte e atual do Código de Ética (Resolução 15
CFP 10/05), nos princípios fundamentais:
1. O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da
dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que
embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A formalização da relação direitos humanos e psicologia presente nas duas últimas
versões do Código de Ética do Psicólogo possibilitou que o papel dos profissionais nas
diferentes áreas de atuação comungasse do mesmo referencial que promove uma lógica
unificadora num contexto marcado também por diferentes abordagens teóricas.
Contudo, não bastava que os direitos humanos fossem uma diretriz ética formaliza-
da, era necessário também que a psicologia fomentasse na sociedade brasileira a defesa
dos mesmos. Assim, criou-se no âmbito do Conselho Federal de Psicologia a Comissão
de Direitos Humanos (oficializada na Resolução CFP 11/98) cujas funções podem ser
citadas conforme o artigo 2º da referida Resolução:
Art. 2º - São atribuições da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de
Psicologia: I – incentivar a reflexão sobre os direitos humanos inerentes à formação, à
prática profissional e à pesquisa em psicologia; II – intervir em todas as situações em
que existam violações dos direitos humanos que produzam sofrimento mental; III –
participar de todas as iniciativas que preservem os direitos humanos na sociedade bra-
sileira; IV – apoiar o movimento internacional dos direitos humanos; V – estudar todas
as formas de exclusão que violem os direitos humanos e provoquem sofrimento mental.

A Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia atua desde 1998


de modo a demonstrar o impacto que a violação dos direitos humanos e a desconside-
ração de seus princípios acarretam, pois, além de danos físicos, há o sofrimento mental
Psicologia,Violência e Direitos humanos

e suas consequências.
Dar visibilidade ao aspecto psíquico dos agravos à saúde mental decorrentes da violação
de direitos humanos foi e ainda é uma ação fundamental promovida pela referida Comissão.
Nos anos seguintes à criação da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Fe-
deral de Psicologia, pode-se observar que os diversos Conselhos Regionais de Psicologia
também criaram suas respectivas Comissões de Direitos Humanos, com a finalidade de
atuar de acordo com as demandas regionais e estaduais no âmbito da relação psicologia
e direitos humanos.
16 Atualmente há uma articulação constante entre as Comissões de Direitos Humanos
dos Conselhos Regionais de Psicologia e a do Conselho Federal, que realizam ações con-
juntas relacionadas à fiscalização e as Campanhas de defesa dos direitos humanos com
temáticas que atingem diretamente à psicologia.
Contudo, como a diretriz ético-política de defesa dos direitos humanos na psicolo-
gia se materializa no cotidiano dos psicólogos e psicólogas do Brasil?
Esse questionamento motivou diversos debates e eventos que promoveram diálogos
com a categoria para abrir espaços de reflexão e esclarecimentos sobre essa problemática.
Várias publicações foram disponibilizadas e distribuídas nos sites e jornais dos Conselhos
de Psicologia.
Concomitantemente, emerge das práticas profissionais e das denúncias do movi-
mento de defesa dos direitos humanos, uma série de situações que revelam a ausência da
garantia dos direitos humanos em diversas instituições ou entidades em que o profissio-
nal da psicologia atua, particularmente aquelas em que há privação de liberdade (sistema
prisional, hospitais psiquiátricos, abrigos para crianças e idosos, Fundação CASA, entre
outras).
Neste contexto, um grande desafio se apresenta no âmbito da relação psicologia e
direitos humanos: como garantir a diretriz ético-política da prática profissional defensora
dos direitos humanos num local que permite violá-los?
Num primeiro momento, há a necessidade de reconhecer a contradição que psicólo-
gos e psicólogas vivenciam no seu cotidiano de trabalho nas instituições com privação de
liberdade. De um lado, o Código de Ética do Psicólogo e a irrestrita defesa dos princípios
e valores que embasam os direitos humanos juntamente com os Conselhos de Psicologia
demonstrando as danosas consequências das violações para a saúde mental das pessoas;
por outro lado, as normas e regras das entidades que violam e violentam os indivíduos
institucionalizados.
Na Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo

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(CRP SP) nos debruçamos sobre essa contradição e através da interlocução com várias
dessas entidades acusadas de realizar violações de direitos humanos pode-se observar
que os profissionais da psicologia em algumas situações manifestaram conivência com as
violações e violências propagadas na instituição. Em alguns casos, inclusive defendendo
o uso de práticas como a tortura, castigos e humilhações para coibir determinados com-
portamentos incompatíveis com as regras da entidade.
Essa realidade, ainda que não predominante, tornou-se foco de ações de fortale-
cimento das dimensões éticas da prática do psicólogo, de modo a impedir que alguns
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profissionais possam aceitar ou naturalizar as atividades de violação de direitos presentes
nestas entidades.
As ações de fiscalização realizadas pelos Conselhos de Psicologia também foram
fundamentais para a compreensão da realidade que apresenta a contradição direitos hu-
manos e psicologia nas referidas instituições.
Além das fiscalizações de rotina direcionadas ao exercício profissional dos(as)
psicólogos(as), ocorriam periodicamente fiscalizações coletivas e simultâneas promo-
vidas pelo Sistema Conselhos de Psicologia e organizadas pela Comissão de Direitos
Humanos do Conselho Federal de Psicologia em parceria com outras entidades e mo-
vimentos sociais. Tais fiscalizações periódicas eram ações derivadas das campanhas de
defesa dos direitos humanos organizadas pelo Conselho Federal de Psicologia em relação
a temáticas específicas na área da psicologia (violações de direitos no âmbito da interna-
ção nos hospitais psiquiátricos e manicômios judiciários, nas instituições para crianças
e adolescentes e idosos, o preconceito racial, dentre outros). As visitas de fiscalizações
foram realizadas em entidades como: hospitais psiquiátricos, penitenciárias, instituições
de longa permanência para idosos, unidades da Fundação Casa.
Para a efetivação dessas fiscalizações, equipes de profissionais especializados elabo-
raram roteiros de inspeção que apontavam aspectos a serem observados, documentos
que poderiam ser acessados e questões para entrevistas com os responsáveis pela insti-
tuição e se possível com as pessoas que estavam no regime de privação de liberdade. Tais
protocolos de fiscalização eram diferenciados de acordo com a característica da institui-
ção a ser inspecionada, pois buscavam atender às especificidades de cada local.
Os resultados destas fiscalizações foram sistematizados em publicações disponíveis
no site do Conselho Federal de Psicologia (www.pol.org.br). E também possibilitaram
a melhor compreensão da realidade destas instituições e o impacto no trabalho dos(as)
Psicologia,Violência e Direitos humanos

psicólogos(as) atuantes nas mesmas.


As experiências decorrentes das fiscalizações promoveram interlocuções constantes
entre a Comissão de Direitos Humanos e a Comissão de Orientação e Fiscalização (COF)
no âmbito do CRP SP.
A COF possui uma rotina de fiscalizações de psicólogos(as) para verificar se sua
atuação profissional atende às exigências do Código de Ética e das Resoluções que nor-
matizam a profissão no Brasil. Obviamente que a inspeção do trabalho do profissionais
da psicologia perpassa por verificar se os mesmos atuam garantindo e defendendo os di-
reitos humanos, conforme preconizado nos princípios fundamentais do referido Código.
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Contudo, o termo de fiscalização utilizado pelos Conselhos de Psicologia que é o roteiro
que norteia o trabalho de inspeção dos fiscais não contemplava aspectos que envolviam
diretamente os direitos humanos. No formulário, constava um item que solicitava a indi-
cação de violações éticas por parte do psicólogo(a) fiscalizado(a), caso verificadas; e somen-
te se o(a) fiscal identificasse algo relacionado ao direitos humanos anotaria nesse campo.
Nos diálogos entre COF e Comissão de Direitos Humanos, houve o entendimento
de que esse formulário dificultava o “olhar” dos que realizavam a fiscalização, pois não
trazia à tona questões específicas dos direitos humanos.
Na busca de soluções, ambas as comissões propuseram duas medidas: a primeira
foi capacitar as pessoas que realizavam as fiscalizações (conselheiros e assistentes téc-
nicas) para identificarem violações de direitos humanos nas instituições inspecionadas
e questionarem os(as) psicólogos(as) atuantes nas mesmas acerca do seu envolvimento
nessas violações; e a segunda foi iniciar um processo de estudo para alteração do termo
de fiscalização, de modo que o mesmo incluísse itens específicos dos direitos humanos.
Tais propostas foram aprovadas no âmbito do plenário do CRP SP e foram implantadas
nos últimos três anos.
A capacitação em direitos humanos ocorreu através de encontros com os(as)
funcionários(as) da COF e com os(as) conselheiros(as) e discussão de temas que se re-
lacionavam com o aprofundamento dos princípios que regem a Declaração de Direitos
Humanos e também a ocorrência das violações de direitos mais comuns nas instituições
de privação de liberdade, em especial a questão da tortura.
As modificações no termo de fiscalização foram realizadas após diversas discussões e
paulatinamente, sendo as mesmas incorporadas a cerca de um ano e atualmente todas as
fiscalizações efetivadas pelo CRP SP contemplam questões específicas de direitos humanos.

Referências

CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA SP


Conselho Federal de Psicologia. Código de Ética Profissional do Psicólogo. Resolução CFP nº
02/1987. Disponível em: http://www.crpsp.org.br/portal/orientacao/codigo/fr_codigo_etica_psi.aspx.
Acesso em: 02 de jul. de 2011.
______. Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. Resolução CFP Nº 011/98, de 22 de
novembro de 1998. Disponível em: http://www.pol.org.br/pol/cms/pol/legislacao/resolucao/#. Acesso em:
02 de jul. de 2011.
______. Dispõe sobre o Código de Ética dos Profissionais da Psicologia. Resolução CFP n° 010 de 21 de julho
de 2005. Disponível em: www.crpsp.org.br/portal/orientacao/codigo/fr_cfp_010-05.aspx. Acesso em 02 de
jul. de 2011.
19
Psicologia,
políticas públicas
e direitos humanos
A MELHORA DO BEM-ESTAR
PSICOSSOCIAL DE REFUGIADOS E
PESSOAS QUE BUSCAM ASILO

Angela Burnett

Kate Thompson

Vamos falar sobre psicologia quando a guerra terminar. Quando a guerra terminar,
vou sonhar todos os sonhos que não posso me dar ao luxo de sonhar agora... Se eu me
sentasse e começasse a pensar nos meus sentimentos, eu poderia sucumbir... Vocês, os
europeus, podem desfrutar do luxo de analisar seus sentimentos. Nós temos simples-
mente que aguentar.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

— Uma mãe palestina (apud Punamäki, 1992, p. 4)

Este capítulo, escrito a partir de uma perspectiva do Reino Unido, refere-se à maneira
como tanto as experiências passadas, como as presentes afetam o bem-estar de pessoas
que buscam asilo e os refugiados. Ele está dividido em três seções: a primeira é uma breve
visão dos números, local e experiências de pessoas no exílio, com alguns exemplos de
questões decisivas, tais como cultura, segurança e múltiplas perdas, na qual discutimos
22
problemas que afetam grupos específicos, inclusive mulheres, homens, idosos, crianças,
famílias e sobreviventes de tortura e violência organizada; a segunda seção descreve e
exemplifica como os serviços podem ser adaptados para atender às necessidades espe-
cíficas das pessoas examina a adequação do diagnóstico do transtorno de estresse pós-
-traumático (TEPT) neste contexto e enfatiza a necessidade da intervenção holística; e a
seção final discute o impacto do sistema de imigração sobre a prestação de serviços.
Definição de Termos
Em todo o capítulo, a expressão pessoa que busca asilo é utilizada para descrever um
indivíduo que apresentou um pedido de proteção sob a Convenção de Genebra. Para ser
reconhecida oficialmente como refugiada, a pessoa que busca asilo deverá satisfazer os
termos da Convenção de Genebra de 1951 e demonstrar que, por conta de um temor bem
fundamentado de ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, associação
a um grupo social particular ou opinião política, estar fora do país de sua nacionalidade
e ser incapaz ou, por causa de tal temor, resiste a valer-se da proteção daquele país. (Na-
ções Unidas [ONU], 1951).
Os termos refugiado e exílio podem ser utilizados algumas vezes em relação a pesso-
as que buscam asilo, aquelas cuja reivindicação foi bem sucedida e as que não têm a opor-
tunidade de apresentar uma solicitação. O capítulo está colocado predominantemente
dentro de um contexto britânico, mas muitas das questões descritas têm uma relevância
mais ampla.

Questões
Quase 21 milhões de pessoas em todo o mundo são consideradas como pessoas que bus-
cam asilo ou refugiados (United Nations High Commissioner For Refugees
[UNHCR]), com a estimativa de outros 21 milhões internamente desalojados dentro de seus

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próprios países. Os números de pessoas que buscam asilo em cada país flutuam, principal-
mente segundo a situação local dos direitos humanos. A vasta maioria permanece em países
vizinhos, a maioria dos quais tendo recursos escassos para sustentar suas necessidades.
Somente aqueles com recursos consideráveis viajam para países industrializados. A
maioria das pessoas que buscam asilo em países industrializados é de homens solteiros
abaixo dos 40 anos, embora em todo o mundo a maioria dos refugiados seja de mulheres.
Muitas famílias estão sem um dos pais, que pode estar desaparecido ou morto, e um nú-
mero significativo de crianças, desacompanhadas. 23
Os que deixam seus países experimentam muitas perdas. Além de perderem paren-
tes por morte ou separação, eles perdem o lar, a família, os amigos, o dinheiro, o emprego
e a identidade e podem perder também a dignidade e a esperança. Estas várias perdas e,
talvez o mais importante, a perda do papel, do status e das redes de apoio habituais po-
dem ter um impacto profundo sobre seu bem-estar psicológico.
Alguns foram aprisionados e torturados em seus próprios países – e a exposição à
violência é comum – o que pode ter consequências importantes sobre a saúde psicoló-
gica. Algumas pessoas foram perseguidas por suas crenças e atividades políticas ou reli-
giosas, outras por pertencerem a um grupo étnico minoritário, por conta seu gênero ou
orientação sexual. Alguns partiram por causa de um desastre ambiental, enquanto outros
migram por conta da pobreza, uma vez que as disparidades entre ricos e pobres, tanto
entre os países como dentro deles, continuam a aumentar.
Aqueles que estão fazendo a viagem para o exílio, muitas vezes árdua e perigosa, são
corajosos, desembaraçados e resistentes, e estas qualidades os ajudam a reconstruir suas
vidas, embora os indivíduos exibam graus diferentes de resistência e vulnerabilidade.
Depois do alívio inicial da chegada, podem seguir-se a frustração e a decepção, à medida
que a realidade da vida fica aparente. É importante capacitar as pessoas para desenvolve-
rem a independência, aprender a língua e ter acesso à educação e ao emprego. Para esta
integração, é preciso o apoio da comunidade local.
A maioria dos refugiados espera de maneira compreensível, que um dia, quando a
situação ficar mais segura, eles possam voltar para casa. Durante 2002, quase 2,5 milhões
de refugiados em todo o mundo voltaram para seu país nativo (United Nations
High Commissioner for Refugees [UNHCR]).

Questões essenciais para este grupo de clientes


Psicologia,Violência e Direitos humanos

Surgem várias questões essenciais ao se trabalhar com refugiados. Estas estão descritas
nas próximas seções, mas esta lista não deve ser considerada completa. Um dos fatores
centrais neste trabalho é a tentativa de realmente ouvir as preocupações do cliente, o que
permite um foco adequado no indivíduo que assim pode apresentar as questões de maior
importância.

Cultura e saúde
24
O comportamento relativo à saúde e às expectativas de cuidados com ela, são ambos
afetados pela cultura e pelas crenças. Cada cultura tem suas próprias estruturas para a
saúde psicológica e para buscar ajuda numa crise. O comportamento considerado como
doença mental ou sofrimento emocional nos países ocidentais pode ser interpretado de
um modo muito diferente por outras culturas, visto como possessão por um espírito,
um sinal de punição divina, fraqueza genética ou comportamento normal. O compor-
tamento associado à doença mental pode trazer consigo um estigma, impedindo que as
pessoas busquem ajuda. A cultura afeta a interpretação do comportamento individual e a
tolerância ao sofrimento emocional e pode influenciar no diagnóstico da doença mental.
Algumas pessoas talvez queiram observar certos rituais e costumes ligados ao nas-
cimento e à morte. Elas podem interpretar os valores de sua cultura de maneira diferente
e não seguir normas adotadas de cultura ou religião. Como assistentes sociais e profis-
sionais da saúde, precisamos estar cientes de nossas próprias suposições, estereótipos e
interpretações. Intérpretes, defensores da saúde e profissionais vindos de outros lugares
talvez consigam auxiliar com detalhes de uma experiência cultural.

Segurança

A maioria das pessoas que buscam asilo e dos refugiados veio de situações politicamente
instáveis, de modo que as questões relativas à segurança e ao perigo podem ser muito
evidentes para eles, continuando assim no país de exílio, onde a segurança muitas vezes
não é garantida.
1. O longo processo de busca de asilo na Grã Bretanha cria uma grande ansiedade essas
pessoas. É difícil sentir-se seguro até haver a concessão de permanência, e muitos
que procuram asilo apresentam depressão e ansiedade. Frequentemente tal medo é
tratado como infundado pelas autoridades de imigração. Ainda em 2001-2002 hou-

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ve relatos de pelo menos sete suicídios de pessoas em busca de asilo no Reino Unido,
alguns depois da recusa de um pedido de asilo ou ameaça de deportação.1
2. Ao refletir sobre o local onde se sentem mais seguras, a maioria das pessoas diz “em
casa”. Aqueles que buscam asilo e refugiados não têm lar, no sentido mais profundo
da palavra. Eles foram forçados a abandonar lares estabelecidos e a construir um
novo sentido de lar em outro lugar. As questões práticas relacionadas à moradia
podem ter grande importância, especialmente se a pessoa se sente insegura ou mora
numa área perigosa. 25
As pessoas comumente acham que se perdem mais facilmente ou não conseguem
usar sua capacidade de orientação habitual, o que é frequentemente complicado por
sintomas de depressão e dificuldades com a memória. No Reino Unido, uma política

1 G. Hinshelwood, comunicação pessoal, 2002.


de dispersão em que os que procuram asilo são enviados para fora de Londres, onde
pode ser difícil identificar comunidades locais de refugiados do mesmo país que fa-
lam a mesma língua, pode acrescentar a falta de segurança experimentada no novo
ambiente.
3. Não se devem subestimar os efeitos psicológicos negativos de não acreditarem na
pessoa. A natureza contestante do sistema de asilo e os relatos da mídia sobre a “ta-
peação” dos que procuram asilo (Refugee Council) criam um ambiente hostil, no
qual os indivíduos acham difícil sentir-se seguros. Tal insegurança pode aumentar
se as pessoas contam suas experiências mais assustadoras, humilhantes ou secretas
sem serem ouvidas ou acreditadas

Desamparo

As experiências das pessoas que buscam asilo e dos refugiados em seu país de origem,
bem como o desafio de lidar com sistemas não familiares no Reino Unido (especial-
mente sistemas de imigração, moradia e saúde) podem estimular sentimentos de impo-
tência e desespero. Os exilados muitas vezes se convencem de que não têm praticamen-
te nenhum controle sobre suas circunstâncias e poucas opções de melhorar a situação.
Esta percepção não carece de sentido, particularmente em relação ao processo de asilo
(Asylum Aid, 1995, 1999).
Psicologia,Violência e Direitos humanos

O sistema de asilo bretão cria muitas condições para o desenvolvimento de uma


sensação de impotência naqueles que precisam de asilo. Depois do pedido apresentado, a
pessoa aguarda sem ideia de quanto tempo o processo vai demorar e com pouco controle
sobre o resultado. Depois de uma recusa, esta sensação de incontrolabilidade pode ficar
mais aguda, ainda mais se a pessoa não conseguir entender as razões e não puder prever
o que acontecerá com a apelação. Os sentimentos de impotência e de falta de controle são
exacerbados conforme a pessoa é obrigada a revelar experiências passadas dentro de uma
atmosfera de suspeita e incredulidade.
26
Embora a compreensão significativa e o apoio social tenham sido arrolados como
fatores que amortecem os efeitos do abandono experimentado (Silver; Wortman,
1980), o sistema tende a minar essa proteção. A dispersão pode separar indivíduos do
apoio oferecido por uma rede de organizações de comunidades de refugiados e a diáspo-
ra de exilados. Com a proibição de trabalhar, a grande maioria torna-se dependente, sem
nenhuma escolha de onde viver.
As acomodações e os serviços podem ser inadequados, principalmente para aque-
les mais vulneráveis, inclusive os deficientes. Além disso, muitos refugiados contam que
conseguiram aturar muitas privações no seu próprio país porque conseguiam entender a
situação em termos políticos, religiosos, ou de alguma maneira significativa. As dificul-
dades encontradas no país de exílio, por outro lado, podem parecer esmagadoras, pre-
cisamente porque contradizem as expectativas de uma resposta solidária e sustentadora
para a procura por asilo.

A tensão continuada do paradoxo

A experiência do exílio é cheia de paradoxos aparentes. Ao trabalhar com refugiados e


pessoas que procuram asilo, sempre se é confrontado por dois lados de suas experiências.
Eles podem ser vistos, e talvez vejam a si mesmos, como vítimas de perseguição no pas-
sado e dos sistemas políticos, tanto no país de origem, como no exílio. Entretanto, focar
apenas o aspecto de vítimas é ignorar o outro lado do paradoxo, sua própria resistência
como sobreviventes.
Estas são pessoas que podem ter conhecido as experiências mais desafiadoras pos-
síveis e que continuam a viver e a funcionar no mundo. Focar um destes aspectos em de-
trimento do outro é perder uma parte fundamental da experiência da pessoa. Em muitos
casos, uma abordagem equilibrada tenta ajudar a pessoa vitimada a reconhecer que ela
também é um sobrevivente. Talvez também seja necessário ajudar alguns sobreviventes a

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expressarem o quanto ainda continuam a se sentirem vitimados.
De maneira semelhante, é preciso reconhecer tanto a natureza de mundo real das difi-
culdades que os refugiados enfrentam, contextualizando e normalizando seus problemas e
sintomas, como deixar espaço para a natureza simbólica do que pode estar sendo exprimi-
do. Por exemplo, os indivíduos muitas vezes apresentam-se com dificuldades de moradia.
Em um nível, isto é bastante compreensível, uma vez que os exilados podem ser alojados
em acomodações de qualidade inferior e se envolverem em brigas para mudar a situação.
Em outro nível, entretanto, estes refugiados estão expressando mais uma coisa so- 27
bre o significado da perda de lar e segurança. Os profissionais que prestam serviços aos
refugiados precisam dar espaço para ambos os níveis de experiência, reconhecendo a
realidade concreta das dificuldades de moradia e como administrá-las e dando oportu-
nidade para reflexão sobre o sentido destas dificuldades e como elas se relacionam com a
percepção geral de si mesmos e do mundo daqueles que procuram asilo. Este equilíbrio
é crucial, mas muitas vezes pode ser negligenciado quando os profissionais têm uma
percepção de si mesmos como terapeutas ou assistentes sociais e sentem que sua área só
alcança parte da angústia do refugiado.
Além disso, pode haver uma tensão entre sentir a pessoa como singularizada por
sua experiência e permitir que ela seja comum (Jones, 2002). É importante reconhecer
a natureza esmagadora e, algumas vezes cataclísmica, das experiências de um refugiado,
bem como permitir que ele seja um ser humano como qualquer outro, que gosta de certas
comidas, esportes, música, e assim por diante.
Um resultado do debate político polarizado sobre as pessoas que buscam asilo no
Reino Unido foi permitir apenas dois papéis – o de refugiados genuínos sofredores e mar-
tirizados ou o de tapeadores procurando asilo, mentirosos e fraudulentos. Isto nega à pes-
soa qualquer outra percepção do eu (self) e o sentido maior de sua própria humanidade.
Os prestadores de serviços devem permanecer atentos para permitir algum espaço para
o comum, ao mesmo tempo jamais negando a singularidade e o horror das experiências
dos refugiados.

Enfrentar a perda

O exílio é por natureza uma experiência de perdas múltiplas – lar, amigos, lugares conhe-
cidos, cultura, profissão, significado, etc. Assim que a segurança é garantida, a maioria
Psicologia,Violência e Direitos humanos

dos exilados começa a sentir a tristeza das perdas sofridas, especialmente se estiverem
sozinhos no Reino Unido e se tiveram de deixar parentes próximos. Em alguns casos, os
exilados terão tido perdas extremamente traumáticas envolvendo o assassinato de amigos
e da família. Tais perdas, combinadas com situações de solidão e isolamento social neste
país, podem ser muito difíceis de administrar.
Eisenbruch (1990) argumentou que uma reação de privação parece uma maneira
adequada de conceituar o que os refugiados experimentam. Ele descreve o exílio como
uma forma de “privação cultural” – uma reação normal para a situação anormal de exílio,
28
em vez de um sinal de distúrbio psiquiátrico. O trabalho de Eisenbruch com jovens refu-
giados cambojanos na Austrália demonstrou que o tratamento tradicional é mais efetivo
do que os modelos ocidentais de apoio psicológico.
Neste ponto, a reconstrução de relacionamentos e encontrar fontes de apoio social
muitas vezes têm importância crucial. As organizações comunitárias de refugiados po-
dem ser contatos decisivos nisto, embora alguns exilados desconfiem dos outros do mes-
mo país por causa de diferença política ou por conflito étnico ou religioso. É um desafio
desenvolver uma nova rede social a partir do zero – muitos exilados relatam sentimentos
de ansiedade social e timidez, e tornam-se muito retraídos socialmente.

Efeitos da perseguição passada

A experiência de perseguição dos refugiados e dos que procuram asilo em seu país de
origem pode incluir ser envolvido na guerra ou em bombardeios; ser acossado, preso e
torturado por forças de defesa; ser alvo de assédio e tortura; e ver outros serem maltrata-
dos ou mortos. Tais experiências tendem a mudar o modo como os indivíduos se sentem
em relação a si mesmos, a outras pessoas e ao mundo. Muitos exilados relatam sintomas
comumente associados às experiências traumáticas, como pesadelos, pensamentos im-
portunos, hipervigilância e sentimentos de ansiedade. Sons, cheiros ou cores específicos
podem lembrá-los de experiências passadas de violência, o que pode ser difícil de tolerar.
Embora seja possível a diminuição desses efeitos, especialmente quando as pessoas
começam a se sentir seguras em seu novo ambiente, eles provocam muita angústia. Tais
sintomas frequentemente são tolerados até que os efeitos da impotência e falta de segu-
rança tornam-se esmagadores, levando a pessoa a buscar ajuda. Uma vez que os serviços
de intervenção visam principalmente o trauma, o tipo de ajuda oferecido pode concen-
trar-se nos efeitos da perseguição, excluindo outras questões, frequentemente mais difí-
ceis. Isto será discutido na seção sobre TEPT.

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A redescoberta de significado e direção

Um desafio importante para todos os exilados é aquele de decidir em que direção eles que-
rem que sua vida se desenvolva no país de exílio. Algumas vezes, este desafio é disfarçado
por um foco no luto pelo passado, o que impede a pessoa de seguir em frente, especialmen-
te porque acatar o desafio de construir uma nova vida cria grandes ansiedades e questões.
Em países como o Reino Unido, onde as pessoas que buscam asilo esperam uma decisão, 29
algumas vezes durante anos, há um sério impedimento para o desenvolvimento de um foco
futuro e de um planejamento. Novamente, os relacionamentos que fornecem apoio social
oferecem um espaço onde os indivíduos podem decidir se envolver como escolherem com
seu novo ambiente. Isto ajuda a transformar a experiência do exílio de tal modo que ela
passa a ser vista como um novo desafio, com potencial para desenvolvimentos positivos.
Questões para grupos específicos

Questões de gênero

A mudança de lugar é difícil para todos os refugiados, mas as mulheres são afetadas sig-
nificativamente por conta de seu status de menos poder na sociedade (Ferron; Mor-
gan; O’Reilly, 2000). Como mães solteiras, ou pelas dificuldades que afetam a viagem
do parceiro, imigração, emprego e assim por diante, elas às vezes têm de assumir papéis e
responsabilidades até então desconhecidos, como chefe de família e provedora do sustento
em um momento em que não têm o apoio de redes familiares e comunitárias importantes.
Muitas mulheres são sobreviventes da violência, talvez de natureza sexual, nos pa-
íses que deixaram ou que atravessaram. Além disto, aquelas que vivem em instituições
no Reino Unido podem sofrer assédio sexual (Hinton, 2001). Suas necessidades talvez
não sejam identificadas ou priorizadas, particularmente em culturas onde os homens são,
tradicionalmente, os porta-vozes. As refugiadas têm menos habilidades para a língua in-
glesa e podem ter uma alfabetização precária no seu próprio idioma, o que as exclui ainda
mais da sociedade anfitriã.
Como resultado destes fatores, algum membro da família pode servir como intér-
prete para elas, mas isto cria dificuldades para ouvir verdadeiramente as vozes femininas.
Um intérprete profissional independente tem mais probabilidade de oferecer a neutrali-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

dade necessária, e muitas mulheres a quem se ofereceu a escolha preferem uma intérpre-
te, principalmente quando existe uma história de violência sexual.
Os homens muitas vezes sentem de uma forma mais aguda a mudança nas circuns-
tâncias que acompanham o exílio, achando difícil lidar com seu status inferior e a inefici-
ência. Os sentimentos de depressão e ansiedade são comuns (Burnett; Fassil, 2002),
podendo haver um aumento no uso de álcool e drogas e índices mais altos de fumo como
resultado do tédio e da frustração. Para muitos homens, o exílio traz desemprego e difi-
culdades para manter suas identidades profissionais, uma vez que muitas vezes o Reino
30 Unido não reconhece as qualificações de países estrangeiros.
As mulheres acham mais fácil conseguir emprego, o que leva a uma mudança no equi-
líbrio de poder dentro da família e um risco de violência doméstica (Burnett; Peel,
2001a). Os homens em geral têm maior relutância para procurar tratamentos de saúde e
talvez precisem de iniciativas e serviços mais extensos, por exemplo, sessões de tratamento
de saúde em albergues ou centros de ensino voltados especificamente para eles.
Embora muitas pessoas prefiram que tanto o profissional de saúde, como o intér-
prete sejam do mesmo sexo que elas, nossa experiência indica que, de modo algum, isto
seja universal, portanto, sendo importante o oferecimento de escolha do gênero. Também
temos consciência, entretanto, das limitações dos serviços para oferecer isto.

As crianças e suas famílias

Como resultado das circunstâncias que os forçaram a fugir, as crianças às vezes estão vi-
vendo em famílias fragmentadas, em que faltam membros importantes. Algumas chegam
com alguém que não conhecem bem ou parentes distantes, e outras são menores desa-
companhados que chegam sozinhos em exílio. As crianças às vezes sofreram violência ou
tortura ou podem ter testemunhado a tortura de membros da sua família. Algumas foram
levadas à força para serem soldados e forçadas a cometer atos violentos.
Todas estas situações diferentes trazem pressões específicas sobre as crianças, mas,
mesmo que a família esteja inteira, as crianças podem estar vivendo com pais que, sob as
pressões da tortura, do exílio e da perda, estão passando por grandes dificuldades para
agir como genitores. Como consequência, as crianças desenvolvem uma crença entra-
nhada de que os adultos não são confiáveis e de que seus pais são incapazes de protegê-las
(Dawes, 1992).
Os jovens sofrem perda da família, amigos, lar, cultura etc., e encontram dificulda-
de para fazer amigos em um ambiente desconhecido no qual não existem suas redes de

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apoio habituais. Eles podem mostrar dificuldades de desenvolvimento, parecendo mais
amadurecidos quando com seus pais, talvez assumindo um papel protetor ou parental
eles mesmos, enquanto imaturos em outras situações, como por exemplo, na escola.
Embora eles possam experimentar ansiedade, ter pesadelos e comportamento re-
gressivo, como “molhar a cama”, manifestar retraimento ou hiperatividade, é importante
notar que poucos precisam de tratamento psiquiátrico. A reestabilização de seu ambiente
é a intervenção chave, fornecendo apoio multifacetado que visa criar uma vida o mais
normal possível, com um sentido de segurança, promovendo educação, autoestima e pais 31
que os amparem (Melzak; Kasabova, 1999). As crianças desacompanhadas são es-
pecialmente isoladas e vulneráveis e precisam de ajuda e apoio adicionais.
De uma importância crítica para a saúde e desenvolvimento de uma criança é a
habilidade dos pais ou responsáveis para garantir que as necessidades da criança sejam
atendidas, devendo ser oferecido apoio tanto para os pais, como os filhos (Richman,
1998). Pode ser muito útil na identificação de quais fatores ajudam os pais a desempenhar
seus papéis parentais, uma compreensão de como a família funciona normalmente e como
funciona sob estresse. A qualidade e a natureza do relacionamento dos pais, como isto afeta
a criança, e a qualidade do relacionamento entre os irmãos é de particular importância.
Além disso, é preciso estar ciente da diversidade das estruturas familiares e as di-
ferenças de quem é considerado como família e quem é importante para a criança. Ao
avaliar as necessidades da família, deve-se considerar seu nível de integração social e o
acesso aos recursos da comunidade, ao mesmo tempo tendo em mente que estes últimos
podem ser limitados para muitas famílias de refugiados e que, talvez, seja necessário um
trabalho multidisciplinar coordenado.
Conforme as famílias se estabelecem, os pais podem sofrer mais estresse provocado
por suas preocupações em relação às crianças assumirem os valores do país anfitrião e
perderem sua identidade cultural, idioma e costumes. Os jovens muitas vezes descrevem
suas dificuldades em termos de ficarem “presos entre duas culturas”, aquela de seus pais e
a de seus pares, uma situação que exige uma alternância sofisticada de uma cultura para
outra (Dualeh, 2002). Embora isto crie uma pressão psicológica sobre os indivíduos,
também representa uma adaptação às dificuldades do exílio, o que, potencialmente, pode
ser enriquecedor.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Pessoas mais velhas

As pessoas mais velhas não são representadas em grandes números entre os refugiados
recém-chegados. Elas enfrentam dificuldades específicas e suas necessidades raramente
são priorizadas no planejamento e prestação de serviços. Comparativamente, elas têm
uma saúde pior e mais probabilidade de ter problemas crônicos de saúde. Podem estar
sofrendo por perdas já antigas e ter medo da morte e do enterro em um país estrangeiro. O
isolamento e a perda dos mecanismos de apoio habituais também compõem este quadro.
32
A perda da memória recente e tanta mudança, com poucos padrões e ambientes co-
nhecidos, podem resultar em confusão e desorientação, e elas talvez estejam menos aptas
a enfrentar as atividades cotidianas (HelpAge International, 2000). Embora seja
verdade que as famílias cuidem dos mais idosos nas comunidades de refugiados, a supo-
sição de que isto acontecerá necessariamente pode significar que não lhes sejam ofereci-
dos serviços e eles fiquem vulneráveis. Os mais idosos são frequentemente considerados
menos capazes para apreender uma nova língua e adquirir habilidades, e os programas
de educação raramente são voltados para eles. De fato, os idosos possuem uma série de
estratégias de enfrentamento e contribuição, inclusive conhecimento e experiência nati-
vos, curas e ofícios tradicionais, preservando e transmitindo a herança cultural, relatos e
atividades, e um papel importante na resolução do conflito familiar ou comunitário.

Tortura e violência organizada

A tortura é “a imposição intencional de dor ou sofrimento severo, seja físico ou mental,


sobre uma pessoa sob a custódia ou o controle do acusado” (Estatuto de Roma
da Corte Internacional Criminal, Artigo 7.2 [e], 1998). Considera-se que a
violência organizada, da qual a tortura é uma forma, tem um motivo político. Os sobrevi-
ventes da violência organizada podem ter sido maltratados por agentes governamentais,
como o exército, a polícia ou forças de proteção, ou grupos revoltosos e milícias locais
cujo poder lhes permite agir como órgãos quase-governantes.
As estimativas da proporção de pessoas que buscam asilo e foram torturadas variam
de 5% a 30%, dependendo da definição de tortura utilizada e seu país de origem (Anis-
tia Internacional, 2000). Há diversos métodos diferentes de tortura (Burnett;
Fassil, 2002). As pessoas normalmente descrevem terem sido surradas, chutadas, esta-
peadas, insultadas ou ameaçadas. Alguns métodos de tortura são típicos de determinadas
áreas geográficas: por exemplo, a chamada falaka no Oriente Médio e Turquia (que con-

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siste em bater nas solas dos pés) e na Índia o ghotna (uma estaca posta através das pernas,
sobre a qual o torturador fica em pé).
Em outros lugares, os sobreviventes relatam o uso de queimaduras com cigarro ou
choques elétricos em várias partes do corpo, enquanto a extração à força de unhas dos
pés ou das mãos ou infligir fraturas são utilizados como métodos de tortura em alguns
locais. As pessoas podem ser forçadas a testemunhar ou a ouvir outros sendo torturados
ou serem obrigadas a torturar outras. Muitos sobreviventes também relatam o uso de exe-
cuções falsas e, na experiência dos autores, estas podem compor uma parte especialmente 33
angustiante de sua experiência de tortura.
Os efeitos da tortura são um acúmulo de violência física, as privações da detenção
e as consequências psicológicas tanto da própria experiência, como a dos outros (Bur-
nett; Peel, 2001b), exigindo uma avaliação cuidadosa do significado que a tortura
tem para o indivíduo (Basoglu; Paker, 1995; Burnett; Peel, 2001b).
Muitas pessoas hesitam em admitir a experiência de tortura, que ainda podem con-
siderar extremamente assustadora, vergonhosa e humilhante. A sensibilidade das per-
guntas deve evitar qualquer repetição da experiência de interrogatório. É aconselhável
permitir ao sobrevivente seguir seu próprio ritmo e revelar apenas a as informações com
que se sinta à vontade. As informações sensíveis, como o relato de violação sexual, podem
ser difíceis de revelar a qualquer pessoa, especialmente alguém do sexo oposto.
Isto pode criar dificuldades no processo de asilo, uma vez que se espera que os indi-
víduos contem detalhes completos de suas experiências para a polícia de imigração usan-
do um estilo contestador de questionário. Os profissionais da saúde estão numa posição
melhor para criar a confiança e a empatia necessárias para perguntar sobre experiências
de tortura ou maus tratos.
Como resultado, não apenas das atrocidades que as pessoas sofreram, mas também
de sua situação atual no Reino Unido, os refugiados mostram sintomas de ansiedade,
depressão, culpa ou vergonha (Burnett, 1999). Estas são reações comuns e precisam
ser contextualizadas em relação a situações muito difíceis que podem ter levado os indi-
víduos ao exílio e às dificuldades contínuas de viver como refugiado.
Além disso, em alguns casos, os sobreviventes sentem que seus corpos foram preju-
dicados de maneira irreparável pela tortura e têm um sofrimento crônico. Em algumas
pessoas, a dor é ligada aos danos físicos, mas em outras, as investigações talvez não liguem a
dor a qualquer patologia ou lesão presente. Elas talvez estejam apresentando uma disfunção
Psicologia,Violência e Direitos humanos

do sistema sinalizador de dor causada pelos ferimentos originais (Wall, 1999). “Pode ser
proveitoso fazer uma ligação entre a dor e a experiência original, explicar que a exacerbação
da dor neste contexto não se equipara ao dano feito ao corpo e desenvolver estratégias de
administração da dor”2.
Embora uma minoria de pessoas que busca asilo desenvolva problemas psicológicos
ou doença mental que precisem de intervenção psicológica ou psiquiátrica, é importante
não “medicalizar” demais a angústia relacionada à injustiça e à perseguição política.

34 Estupro/tortura sexual

Muitas mulheres e homens que procuram asilo sofreram violência sexual, incluindo es-
tupro (Burnett; Peel, 2001b), amplamente utilizado em situações de conflito para

2 A. Williams, comunicação pessoal, 2003.


degradar e humilhar um inimigo. A violação sexual pode estar subjacente à angústia e
à ansiedade não explicadas e persistentes, mas tão difícil de discutir que a experiência
continua secreta. Em muitos países, o estupro é tabu. As mulheres podem ser banidas da
comunidade e da família e consideradas desqualificadas para casamento.
As mulheres que ficam grávidas como consequência do estupro precisam de apoio
para tomar uma decisão quanto à gravidez. Embora algumas possam optar subsequente-
mente pelo aborto, outras desejam dar continuidade à gravidez, especialmente se o bebê for
sua única família restante. Entretanto, em seguida ao nascimento, algumas mães podem re-
jeitar um bebê concebido como resultado do estupro (Kozaric-Kovacic et al., 1995).
Os homens podem apresentar dúvidas quanto à sua sexualidade e ter sentimentos
intensos de vergonha, e é mais provável que não relatem experiências de estupro. Tanto
homens, como mulheres sobreviventes normalmente relatam dificuldades sexuais e pre-
cisam de confirmação quanto à função sexual e à fertilidade (Burnett; Fassil, 2002).
Deve-se oferecer uma triagem da saúde sexual para excluir infecção, inclusive HIV. A
sensibilidade e a escolha do sexo do intérprete e do profissional da saúde são importantes
(consulte a seção sobre questões de gênero).

Detenção no país de exílio

Muitos países, incluindo a Grã-Bretanha, prendem as pessoas que buscam asilo em cen-
tros de detenção de imigração. Esta talvez seja a experiência mais desafiante com a qual os

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exilados se confrontam, uma vez que podem ficar detidos durante meses sem saber quan-
to tempo ficarão ali ou por que motivos. Pourgourides, Sashidharan e Bracken (1996)
entrevistaram detidos e encontraram entre eles indivíduos com altos níveis de depressão.
Para aqueles que foram detidos anteriormente no próprio país, a experiência de uma
prisão subsequente pode ser devastadora, trazendo lembranças poderosas da perseguição
passada que persistem por muito tempo depois da soltura (Burnett; Peel, 2001b;
Summerfield et al., 1991).
35
Adaptação de serviços para atender às
necessidades específicas das pessoas que buscam
asilo e refugiados

Tratamento das necessidades de idioma


dentro da prestação de serviços
A maioria das pessoas não fala a língua do país de exílio como sua primeira língua, e os
serviços precisam tratar deste problema como parte do seu desenvolvimento integral.
Existem vários modos possíveis de tratar as necessidades linguísticas dentro dos serviços
principais, mas, dados os limites de recursos e da disponibilidade de médicos bilíngues,
é provável que qualquer serviço em desenvolvimento precise usar uma combinação de
métodos diferentes para fornecer o acesso máximo à população atendida.
Uma opção é o uso de intérpretes e profissionais da saúde bilíngues. Vários autores
têm observado as maneiras pelas quais um intérprete pode afetar o trabalho terapêutico
de uma maneira positiva (Holder, 2002; Tribe, 1991). A presença de um intérprete
atua como uma forma de restabelecimento da confiança para o cliente, colocando-o à
vontade, podendo também funcionar como pessoas biculturais que informam os profis-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

sionais sobre aspectos da cultura e do idioma do cliente que, de outra forma, eles pode-
riam deixar escapar. Entretanto, a maioria dos intérpretes não tem nenhum treinamento
especializado em trabalho com saúde mental e pouca supervisão ou apoio para fazer tal
trabalho de interpretação. Os profissionais da saúde também precisam de treinamento
para trabalhar com os intérpretes.
Um intérprete que trabalha em um ambiente de aconselhamento precisa ser sensível
para o fato de que a troca de informações não é necessariamente o objetivo principal,
estando ciente, por exemplo, da importância do silêncio e de não intervir em algumas si-
36 tuações. O terapeuta também pode achar que as opiniões do intérprete alteram a relação
de empatia terapêutica estabelecida se não estiverem devidamente colocadas separadas.
Além disso, no caso de clientes que deixaram seu país de origem depois de perseguição,
é preciso ser sensível a possíveis temores relacionados ao intérprete por motivos político-
-ideológicos (Jaffa, 1993).
Uma outra opção em alguns casos é o uso de pessoas biculturais com o mesmo
idioma e/ou cultura dos clientes refugiados. Entretanto, há que garantir que os serviços
não sejam estabelecidos de tal maneira que os profissionais precisem trabalhar além de
suas competências para atender às necessidades dos clientes do mesmo idioma ou grupo
cultural. Os serviços de especialistas devem ter como objetivo dar poder aos clientes, as-
segurando a igualdade do serviço, em vez de criar pequenos bolsões isolados em guetos,
nos quais profissionais pouco treinados e com poucos recursos são obrigados a atender
às necessidades de serviços completos para uma população específica, por que os colegas
dos serviços principais relutam em fazê-lo. Isto pode ser feito assegurando-se que todos
os médicos estejam ligados à prestação do grupo principal, com pessoas biculturais aptas
a compartilhar sua especialização, treinamento e informações com seus colegas para me-
lhorar a prestação dos serviços em geral.
Uma outra opção utilizada criativamente pelas pessoas que buscam asilo e os pro-
fissionais que trabalham com eles é o uso da comunicação em um segundo idioma, o
que permite trabalhar diretamente sem um intérprete, mas tem outros efeitos no modo
como a língua é utilizada terapeuticamente. Em muitos casos, as pessoas que buscam
asilo preferem trabalhar em inglês como sua segunda língua e sentem que isto os capacita
muito (Holder, 2002). Outros cenários envolvem o trabalho em um idioma que não
é a primeira língua do profissional ou a língua habitual de trabalho. Isto talvez crie uma
ligação exclusiva entre o profissional e o refugiado como resultado desta maneira especial
de se comunicarem. É preciso investigar mais o impacto destas formas de comunicação

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mediada (Holder, 2002).

Adaptação do processo de avaliação


As expressões de angústia e os modos como as pessoas lutam diferem tanto entre as cul-
turas, como dentro delas, tornando complexa a avaliação e o tratamento dos problemas
de saúde psicológica dos refugiados. Podem ser necessários um período mais longo de
avaliação e uma compreensão de como o cliente entende e reage ao sofrimento psicológi- 37
co a partir de sua cultura. É preciso considerar o risco de suicídio, a violência doméstica
e as preocupações com a proteção das crianças, mas os tabus culturais e religiosos podem
impedir a discussão de tais questões.
Entre aqueles que necessitam de intervenção de saúde mental, alguns tiveram um
histórico de problemas de saúde psicológica e contato com serviços de saúde mental antes
de se tornarem refugiados (Summerfield, 1996). Entretanto, as diferenças culturais e
as dificuldades com a língua e a comunicação aumentam a possibilidade de um diagnós-
tico errado de doença mental. As perguntas utilizadas para este diagnóstico podem não
ser confiáveis quando utilizadas em tradução ou através de culturas, especialmente uma
vez que os conceitos de diagnóstico são frequentemente impossíveis de traduzir.
Tem sido demonstrado que os negros e a população de minoria étnica no Reino
Unido são diagnosticados desproporcionalmente como esquizofrênicos, são seccionados
sob a Lei de Saúde Mental (Minnis et al., 2001) e recebem altas doses de drogas antipsi-
cóticas em vez de uma terapia de conversação (Fernando, 1991).

O uso do diagnóstico “Transtorno de Estresse


Pós-Traumático”(TEPT)
Tem havido um crescimento relativamente recente de serviços especializados em trau-
mas, que se concentram no trabalho com aqueles que recebem o diagnóstico de TEPT
(American Psychiatric Association, 1980), o que reflete a opinião de que a
especialização é sempre necessária no trabalho com efeitos de trauma. Os refugiados e as
pessoas que buscam asilo que frequentemente descrevem experiências devastadoras de
perseguição são cada vez mais encaminhadas para tais serviços. Ao mesmo tempo, há um
Psicologia,Violência e Direitos humanos

debate intenso em relação a se a categoria de diagnóstico de TEPT descreve exatamente


os sintomas de refugiados e pessoas que buscam asilo.
O TEPT é visto como uma reação universal a experiências traumáticas, observável
tanto em crianças como adultos. Ainda se pressupõe que “expressa conflitos e distúrbios
que acontecem dentro da mente” (Bracken, 1998, p. 39). Neste sentido, tem sido va-
riavelmente visto como um distúrbio da memória, surgindo por causa de lembranças
traumáticas processadas de maneira incompleta pelo cérebro, ou como um distúrbio de
significado, originado porque o trauma não pode ser reconciliado com a visão do indi-
víduo do mundo antes da experiência traumática. Assim, o relacionamento imaginado é
38 diretamente causal e ligado ao tipo de eventos oprimentes precipitantes descritos como
formas de perseguição aturadas antes da fuga.
A proximidade deste relacionamento de causa e efeito pode ser a explicação de a pala-
vra trauma ser utilizada tanto para a experiência traumática que foi impingida como para as
reações da pessoa “traumatizada”. Compreensivelmente isto pode levar a alguma confusão e à
suposição de que qualquer pessoal que sofra uma “experiência traumática” é necessariamente
“traumatizada”, quer ela experimente alguma mudança, quer não. Inversamente, não se deve
supor que a ausência de sintomas de angústia torne menor a probabilidade de experiências
traumáticas passadas: o TEPT não é um marcador de tortura (Summerfield, 1996).
Existem várias críticas sobre o uso do TEPT para pessoas que buscam asilo e re-
fugiados. Primeiro, o TEPT/modelo de trauma reflete uma visão bastante limitada dos
motivos causadores potenciais. Ele foi desenvolvido para a relação com um dos eventos
de choque: acidentes de carro, ataques pessoais, testemunho de um único incidente de
violência etc. Sua utilidade é questionável onde há um passado de perseguição contínua
ou vários eventos “traumáticos”. Embora ele pudesse ser visto como um “bom ajuste” no
caso de alguém que tenha sobrevivido a um acidente de carro cujo mundo era estável
antes do acidente e poderia potencialmente voltar a esta estabilidade depois, a situação
para os refugiados e as pessoas que buscam asilo é muito diferente.
Sua posição no Reino Unido dificilmente seria descrita como pós-traumática, uma
vez que eles confrontam preocupações continuadas com sua segurança e uma sensação
de impotência. Em tais casos, o conceito de estresse pode ser mais útil do que o de trau-
ma. Ele inclui dificuldades contínuas, tais como desemprego, pobreza, falta de um lar,
desigualdade social e marginalização, que em geral são as razões dadas pelos indivíduos
para seu desespero, insônia, dores de cabeça ou pesadelos.
Em segundo lugar, o TEPT/modelo de trauma parece focalizar uma faixa limita-
da demais de reações. De fato, pode haver uma ampla faixa de respostas para eventos
chocantes, não esgotada pelos três agrupamentos de “sintomas” descritos anteriormente.

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Também existe uma grande área de sobreposição com outras categorias de diagnóstico,
tais como depressão e ansiedade, o que torna difícil determinar a validade do TEPT como
uma entidade separada de distúrbio psiquiátrico (Bracken, 1998).
Muitos “sintomas” podem ser vistos como reações de adaptação à guerra ou à vio-
lência; por exemplo, um susto exagerado pode ser uma adaptação aprendida ao viver sob
tiroteios mais do que um sintoma de doença. De modo semelhante, o afastamento dos
outros e a falta de confiança podem salvar a vida ao se viver em situações de violência
política. Embora as pessoas precisem desaprender tais reações depois de deixarem tais
39
situações e ao quererem viver mais adequadamente nos novos ambientes, elas não repre-
sentam necessariamente “doença mental”.
Em terceiro lugar, tem sido discutido que o TEPT/modelo de trauma mina as estraté-
gias de enfrentamento tradicionais, levando a uma sensação aumentada de impotência e a
uma maior dependência de ajuda externa nas comunidades de refugiados (Giller, 1998).
Apesar das diferenças observadas nas concepções culturais sobre as reações à violência,
os programas de tratamento buscam reproduzir o setting terapêutico do estilo ocidental
nos campos de refugiados ou cidades destruídas. Isto pode ser nocivo, porque os recursos
financeiros escoam para formas inadequadas de intervenção, correndo o risco de alienar os
sobreviventes ou substituir formas de mais capacitação de enfrentamento por intervenção
psiquiátrica de estilo ocidental. O papel potencialmente decisivo dos curandeiros tradicio-
nais, dos xamãs e de outras figuras importantes é considerado na próxima discussão.
Em quarto lugar, e talvez o mais importante, o TEPT/modelo de trauma parece igno-
rar o papel do mundo social e da cultura na conformação do significado (Summerfield,
1998). Em caráter similar, alguns autores argumentam que o foco nos aspectos médicos do
trauma no TEPT ignora as implicações políticas de experiências traumáticas criando uma
doença a partir de uma reação normal à violência. Como Summerfield aponta, transformar
em “doença” a angústia reconhecível depois de experiências intoleráveis torna isto um pro-
blema técnico mais do que político. Os problemas técnicos (ou médicos) exigem soluções
técnicas, soluções que podem ser apresentadas como politicamente neutras e evitar pergun-
tas difíceis sobre proteção e justiça, que poderiam de outra forma exigir respostas.
Não existe um modo apolítico de se trabalhar com pessoas que buscam asilo. E vá-
rios comentaristas enfatizaram a necessidade de os profissionais aceitarem a política ine-
rente em seu trabalho (Jones, 1998; Swartz; Levitt, 1989). Jones salienta que “uma
tendência de focalizar a psicologia individual enquanto se ignora o contexto político e
Psicologia,Violência e Direitos humanos

social pode parecer conferir neutralidade, porém terá consequências psicológicas e po-
líticas adversas” (Jones, 1998, p. 239). Jones (1988, p. 233) comenta sobre o clínico que
ele tem um dever não apenas de ser sensível psicologicamente, mas também instruído
politicamente e bem informado; caso contrário não é possível entender os problemas
nem os medicamentos mais efetivos para nossos pacientes... As tentativas de permane-
cer neutro em face do genocídio provavelmente são interpretadas como uma colabora-
ção tácita com o agressor e tornam impossível qualquer trabalho terapêutico.

40
Terapias e aconselhamento psicológico
Muitas pessoas em angústia que buscam asilo são encaminhadas para psicoterapia e acon-
selhamento. Embora tenha sido discutido que isto pode representar uma forma muito
efetiva de intervenção para refugiados (van der Veer, 1998), o aconselhamento frequen-
temente é um conceito desconhecido para as pessoas que buscam asilo, que podem estar
mais acostumadas com a discussão dos problemas com a família e a comunidade do que
com um estranho. As questões relacionadas à confidencialidade exigem uma explicação
cuidadosa e monitoramento, especialmente em pequenas comunidades.
O significado psicológico é contextual e modelado socialmente, e as intervenções
para os refugiados devem refletir isto. Embora a psicoterapia e o aconselhamento possam
ser adequados, também é importante oferecer outras opções, como a cura tradicional
e o apoio social prático. Também há a necessidade de reconhecer o contexto coletivo e
sociopolítico da experiência das pessoas que buscam asilo, em vez de focalizar apenas o
mundo interior da pessoa. Em alguns sentidos, as formas de terapia que focalizam o uso
de “depoimento” e de construir narrativas preferidas podem ser mais úteis no trabalho
com as pessoas que buscam asilo. Um psicólogo descreve a importância de “ser uma
testemunha” e de “politizar em vez de patologizar a raiva” (Webster, apud Burnett;
Fassil, 2002).
Cienfeugos e Monelli (1983), que trabalham no Chile, descreveram o trabalho que
envolve o testemunho político com aqueles que sofreram repressão do governo e tortura.
Para estes autores, o que é necessário para a cura não é uma intervenção “terapêutica”
individual, mas o reconhecimento coletivo inerente ao se fazer um depoimento pessoal
perante testemunhas. Tal intervenção política é vista como intimamente ligada a questões
de justiça coletiva e protesto político, agindo para neutralizar o silêncio frequentemente
imposto e mantido por autoridades repressivas.

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O relato da história de perseguição, então, torna-se um modo de informar publica-
mente a sociedade sobre os crimes cometidos contra os indivíduos, onde a “doença” está
firmemente localizada dentro do sistema político da sociedade mais do que no cliente
(Martín-Baró, 1990). Tais métodos também foram empregados para trabalhar com
pessoas que buscam asilo em países de exílio com algum sucesso (Agger; Jensen,
1990; Aron, 1992), sugerindo o benefício das intervenções que reconhecem a necessi-
dade que a pessoa tem de justiça em relação tanto à perseguição passada, como às dificul-
dades inerentes à busca de asilo.
41
Algumas pessoas relutam para falar sobre suas experiências e acham o foco do
aconselhamento no trauma doloroso e inútil. É importante que isto seja respeitado, es-
pecialmente ao se trabalhar com pessoas que buscam asilo numa situação não segura. As
questões de controle e impotência são decisivas, e oferecer ao indivíduo a escolha sobre
quando e como ele quer discutir as experiências, se quiser, é de importância vital. O tra-
balho suave de revelação acontecendo dentro de um relacionamento de confiança e aliança
é muitíssimo proveitoso, enfatizando a humanidade comum entre o terapeuta e o exilado.
Até que a situação social do cliente esteja relativamente estável e que ele esteja se sentin-
do “seguro”, é melhor focalizar na melhora de sua situação social e fortalecer suas habilida-
des de enfrentamento para ajudar nas lembranças angustiantes. O trabalho em grupo pode
oferecer apoio e reduzir o isolamento social, quer os grupos se concentrem nos aspectos
terapêuticos, quer tenham uma natureza mais social e prática (Fischman; Ross, 1990).

Intervenção em um nível mais holístico


A experiência do exílio significa uma mudança tão enorme que pode ser relevante e útil
a intervenção em muitas áreas. É benéfico ter uma visão holística das necessidades dos
refugiados em sofrimento. As próximas seções descrevem algumas das áreas envolvidas.

Reconhecimento da importância da reconstrução do mundo social

Talvez não exista um desafio maior para os exilados do que o de se assenhorear do seu
mundo social. Mesmo para aqueles que fugiram com outros membros da família, o im-
pacto do exílio é o encolhimento das redes de apoio social disponíveis e a obrigação de
formar novos relacionamentos sem a proteção habitual fornecida por um conjunto esta-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

belecido de laços estreitos sobre os quais construir.


Para as pessoas que buscam asilo e chegam sozinhas no país de exílio, o impacto
pode ser um isolamento social completo e uma dependência de outras pessoas encon-
tradas aleatoriamente, com quem o refugiado pode se comunicar. Beiser (1993) observa
que o refugiado sem acesso a uma comunidade “similar etnicamente” pode desenvolver
graus de depressão três ou quatro vezes mais altos do que outro que tem acesso a tal re-
curso. De fato, tem sido argumentado que colocar indivíduos isolados em contato com
organizações relevantes de comunidades de refugiados (RCOs) é uma das intervenções
42 psicológicas mais importantes (Duke, 1996).
As RCOs fornecem conselhos em áreas vitais como imigração, moradia e benefícios,
bem como apoio social, interpretação e tradução para as pessoas que buscam asilo e re-
fugiados. Algumas trabalham com comunidades específicas (de países ou grupos étnicos
específicos) e outros com subseções da comunidade, tais como mulheres ou deficientes
físicos. É possível oferecer atividades educacionais, inclusive aulas da língua materna e
atividades culturais para as crianças e inglês ou aulas de computação para os adultos. Tais
atividades podem ser recursos fundamentais para reduzir o isolamento social, combater
a sensação de desamparo e melhorar as habilidades.
A pesquisa feita por sobreviventes de tortura oferece mais evidências da importân-
cia do apoio social no exílio. Basoglu et al. (1994) estudaram ativistas turcos com uma
história de tortura. Sua pesquisa revelou que as consequências secundárias de suas expe-
riências – na vida familiar, social e econômica – foram prognósticos mais importantes do
bem-estar posterior do que a experiência de tortura isoladamente.
De maneira similar, Gorst-Unsworth e Goldenberg (1998) focalizaram os sobrevi-
ventes de tortura no Iraque, encontrando novamente que o pouco apoio social foi um
prognóstico melhor da dificuldade a longo prazo e da prevalência dos sintomas do que a
gravidade da tortura. Isto sugere que o apoio social pode ter um papel crucial de media-
ção, diminuindo o impacto total das experiências de perseguição e as dificuldades conti-
nuadas. Isto se ajusta à profusão de pesquisas sobre a depressão e mostra o modo como
o apoio social de alta qualidade pode proteger contra o choque depressivo (Brown;
Harris, 1978; Harris, 1992).
Dada esta situação, são importantes as intervenções que visam tratar do isolamento
que muitas vezes as pessoas que buscam asilo enfrentam no país de exílio. Um trabalho
recente da Escócia enfatiza a necessidade de possibilitar o contato com a família e com as
redes coétnicas e a ligação com a população nativa (Ager et al., 2002). Esquemas para
fazer amizades, conduzidos pelo setor voluntário, ajudam a transpor a lacuna e formar

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ligações entre refugiados e a comunidade local.

Capacitação dos clientes

Dados os modos como o sistema enfrentado pelas pessoas que buscam asilo induz as sen-
sações de impotência, os prestadores de serviços podem ter um papel vital para opor-se
à situação. Não só é importante evitar os sentimentos compostos de impotência, como
também lutar ativamente contra as crenças de inadequação pessoal quando expressas pe- 43
los que procuram asilo e enfatizar seus pontos fortes e recursos, evidenciados pelo fato de
terem sobrevivido às dificuldades que experimentaram e estão continuando a enfrentar
no exílio. É inútil tratar os refugiados e os que buscam asilo como vítimas ou lançá-los
em um “papel de doente” permanente. Os profissionais precisam fortalecê-los para fazer
coisas para eles mesmos e evitar serem arrastados para o papel de salvadores.
Aproveitando o trabalho de Seligman, entre outros (Mikulincer, 1994; Peter-
son; Maier; Seligman, 1993; Seligman, 1975), os profissionais poderiam ana-
lisar com os clientes que procuram asilo a extensão até onde os eventos estão realmente
dentro do seu poder. Isto pode contribuir para corrigir a noção generalizada de impotência
e começar a revigorar um senso de iniciativa e desenvoltura. Embora as decisões das auto-
ridades de imigração permaneçam fora do seu controle, eles podem ser encorajados a fazer
escolhas, envolver-se em atividades e participar o máximo possível da sociedade anfitriã.
Uma ênfase nas habilidades de enfrentamento será proveitosa (Mikulincer, 1994).

Outras formas de terapia e cura

Medicação

Embora algumas condições de saúde mental sejam sensíveis à medicação, a prescrição


pode não ajudar muitos dos problemas que os refugiados sofrem. Devem ser conside-
radas alternativas para as drogas, como por exemplo a massagem para dor. Os antide-
pressivos podem ser úteis para depressão clínica, se utilizados em conjunto com apoio
prático e social. Caso receite, o médico deve garantir que o paciente entenda claramente
as informações sobre a droga e possíveis efeitos colaterais.
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Terapias com arte, artes criativas e terapias complementares

As terapias com artes (pintura, movimentos de dança, teatro e música) oferecem uma
diversidade de canais de comunicação nos quais é possível trabalhar com problemas psi-
cológicos. Os terapeutas que têm um treinamento profissional podem combinar uma ou
mais estruturas psicológicas (p. ex. psicodinâmica, sistêmica) com a dimensão criativa de
sua forma de arte. As terapias criativas demonstraram oferecer benefícios às pessoas que
viveram situações de conflito político, em combinação com apoio prático e tratamento de
44
saúde. Além disso, outros projetos relacionados à arte, inclusive teatro, música, literatura
e poesia podem ser úteis para combater o isolamento, comunicar significado, aumentar a
autoestima e fortalecer a identidade e o sentido de pertencer (Dokter, 1998).
As terapias como massagem, fisioterapia, osteopatia, relaxamento e remédios fito-
terápicos podem diminuir a dor crônica, a ansiedade, a insônia, o estresse e alguns dos
efeitos físicos e psicológicos da tortura.
Apoio espiritual

A religião é importante para muitos refugiados, oferecendo muito amparo e força, bem
como uma estrutura significativa onde colocar suas experiências: “É muito difícil ver sua
vida inteira virada de cabeça para baixo sem ser sua culpa. Posso dizer, honestamente,
que não conseguiríamos enfrentar a mudança de vida se não fosse pela fé em Deus, uma
vez que sendo muçulmano você está preparado para qualquer dificuldade que surja na
sua vida e tem de ser resistente, aceitá-la e ir em frente” (Hassan; Farah; Smith,
1999). Os grupos religiosos e as comunidades oferecem apoio emocional e prático, bem
como uma nova rede social com um ponto de vista em comum. Os líderes espirituais ou
comunitários agem como colaboradores de maneiras designadas para facilitar o apoio
social e a redescoberta de significado no exílio.

Cura tradicional

Eisenbruch (1984, 1990) argumentou que a cura tradicional pode ser o modo mais ade-
quado de lidar com os efeitos do exílio. Esta conclusão é sustentada pelo trabalho de
Peltzer (1997), que descreve exemplos do uso da cura tradicional e da prática religiosa
em várias culturas diferentes, mostrando o uso feito dos significados culturais para tratar
da angústia.
Littlewood (1992) explica a efetividade de muitas práticas de cura tradicionais no

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fato de que a pessoa que cura e a que está em tratamento compartilham das crenças
profundas e “mitos” de uma cultura comum através da qual se experimenta a vida e que
contém ideias de identidade, personalidade e ação. A pessoa que visita a outra que cura vê
que esta última define suas dificuldades em termos destes mitos e faz intervenções dentro
deste contexto de fé.
A situação é complexa, entretanto, e dentro de qualquer sociedade haverá concepções
diversas de que forma de intervenção é adequada depois da violência. Littlewood (1992)
aponta que oferecer a cura tradicional como era utilizada no país de origem pode não
45
adiantar para um cliente no exílio, porque sua visão cultural está mudando constante-
mente e os significados estão sendo negociados de outra forma. Eisenbruch (1983, p. 325)
também reconhece isto:
Os pacientes individuais normalmente não estão cientes dos detalhes de sua “grande
tradição”, enquanto o observador ocidental bem intencionado, tendo lido os textos
clássicos e pesquisas da filosofia médica ocidental, pode sobrepor suas própria interpre-
tação das crenças orientais sobre o ponto de vista médico ocidental pré-existente. Isto
pode distorcer mais do que esclarecer sua opinião sobre a condição do paciente. Por-
tanto eu defendo enfaticamente o valor de investigar meticulosamente qual o paciente
pensa ser a explicação de seus sintomas.

Novamente, isto enfatiza o valor de ouvir verdadeiramente os refugiados e pessoas que


buscam asilo e entender o significado para eles de suas experiências, antes de tentar qual-
quer intervenção.

Prestação de serviços para crianças refugiadas

Como afirmado anteriormente, é importante restabelecer o ambiente da criança no exí-


lio, o que significa que a cadeia mais terapêutica de eventos para um jovem refugiado,
seja vivendo com responsáveis conhecidos ou estranhos, provavelmente é fazer parte da
comunidade escolar local, aprender e fazer amigos (Melzak; Kasabova, 1999). As
escolas precisam estar cientes de seu papel vital nisto e os perigos da provocação e do
preconceito racial na escola para a estabilização do ambiente da criança.
A maioria das crianças refugiadas tem de viver com uma incerteza enorme, e isto
pode levar a dificuldades visíveis comportamentais e emocionais e à angústia. Estas
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crianças beneficiam-se com conversas de apoio na escola e com os relacionamentos indi-


viduais com os professores e relacionamentos de grupo orientados com outras crianças
refugiadas. É benéfico que os jovens juntem-se em grupo para discutir sua situação com
pares que entendem o impacto da guerra e de conflitos, as perdas múltiplas e as dificul-
dades de se ajustar à vida em um novo ambiente com pressões da família.
É importante uma abordagem multidisciplinar e entre órgãos, onde todos aqueles que
têm responsabilidade por aspectos diferentes do bem-estar da criança trabalhem em par-
ceira, e que as organizações de comunidades de refugiados possam ser incluídas nisto. As
46 escolas suplementares da língua-materna também têm um papel importante para estimular
os jovens refugiados a conectar-se com a identidade cultural do país de onde saíram.
É preciso que as intervenções sejam ajustadas no sentido de melhorar a resistência
e os fatores de proteção, bem como para levar em conta elementos que permitem que a
criança “pertença” tanto à comunidade de cultura local como a dos refugiados. Isto é fa-
cilitado por um relacionamento especial com um responsável adulto, idealmente um dos
pais, mas não necessariamente. Cada criança precisa de tempo e espaço para pensar sobre
seus sentimentos e experiências e brincar com eles e expressá-los de um modo criativo
através da arte, teatro, música, contar histórias etc. Além disso, envolver as crianças na
tomada de decisão intensifica sua habilidade para fazer escolhas ativas.

Prestação de serviços para sobreviventes de violência organizada,


tortura e tortura sexual

Para muitos sobreviventes de tortura, o foco no restabelecimento de uma vida organi-


zada, até onde isto é possível, é um fator fundamental na promoção da saúde mental. A
maioria das pessoas prefere ser cidadãos ativos, independentes, do que dependentes do
recebimento de benefícios e apoio, e os esforços para estimular a independência agem
contra os sentimentos de impotência e estimulam o domínio da situação. Por definição,
os sobreviventes de tortura sobreviveram, frequentemente apesar de enorme desvanta-
gem, e sua resistência pode ser um ponto forte a ser aproveitado.
Ao fornecer serviços aos sobreviventes de tortura, há uma necessidade essencial de
momento adequado, de relacionamentos confiáveis e, se o idioma não for o mesmo, de um
intérprete treinado que não seja um parente ou amigo. É importante propiciar relaciona-
mentos consistentes e fidedignos para aumentar a confiança e devem-se tomar medidas
para assegurar o uso do mesmo intérprete em cada encontro, bem como evitar mudanças
sem aviso no trabalho terapêutico. Nos sistemas nos quais os profissionais da saúde mudam

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frequentemente por turno, por exemplo, é preciso uma explicação cuidadosa para os pa-
cientes refugiados e também um tempo para prepará-los para a mudança de profissional.
Como afirmado antes, ao receitar uma medicação, deve-se considerar se esta é re-
almente adequada, dada a natureza sociopolítica das causas do sofrimento. Entretanto,
podem aparecer alguns sintomas que exigem intervenção de um especialista, tal como a
falha consistente em atuar adequadamente, muitas vezes expressa com ideias ou planos
suicidas, afastamento social marcante, autonegligência e comportamento ou conversa
vista como anormal ou estranha dentro da própria cultura da pessoa e agressividade com 47
os outros (Shackman; Gorst-Unsworth; Summerfield, 1996).
Embora no todo a medicação deva ser utilizada criteriosamente, os antidepressi-
vos podem ser úteis para aqueles com sintomas de depressão. Entretanto, é crucial ter
em mente uma ampla faixa de intervenções potenciais, inclusive terapias de conversa-
ção, terapias complementares e ligações comunitárias, religiosas, espirituais e criati-
vas, como discutido anteriormente. O escutar de apoio pode ser experimentado como
muito proveitoso (van der Veer, 1998) e o papel de um apoio social como um fator
de proteção para os sobreviventes de tortura também é bem documentado (Gorst-
-Unsworth; Goldenberg, 1998).
Em alguns lugares, foram estabelecidos serviços que focam especificamente as ne-
cessidades de sobreviventes de tortura. Seu trabalho deve complementar, mas não substi-
tuir, os serviços da corrente principal; os últimos não devem considerar que este trabalho
está totalmente fora de sua área ou responsabilidade. Os serviços de especialistas podem
oferecer apoio e treinamento para outros envolverem-se neste trabalho.

Prestação de serviços para aqueles detidos no país de exílio

Embora os prestadores proclamem que os detidos na imigração recebam apoio e trata-


mento para problemas de saúde mental quando estão presos em centros de detenção de
imigração, pouco sugere que tal apoio seja de alta qualidade. Os serviços de saúde são
conduzidos em geral por enfermeiros, e embora eles possam ter a opinião regular de um
clínico geral e a capacidade de consultar fora os serviços de especialistas (Shephard,
2002), os relatórios sugerem que muitos problemas de saúde mental não são tratados
(Pourgourides et al., 1996).
Os aspectos do sistema de detenção também dificultam um tratamento de saúde
Psicologia,Violência e Direitos humanos

consistente, especialmente se houver acesso limitado para intérpretes e uma alta rotação
de detentos. Shephard (2002) observa as dificuldades de oferecer apoio psicológico den-
tro deste ambiente, e é discutível se é possível tentar tomar uma posição neutra e focalizar
o sofrimento psicológico quando os detentos estão em situações de insegurança aguda
com pouca noção de quando poderiam ser libertados. Isto coloca os profissionais da
saúde mental numa posição muito difícil, uma vez que podem ser vistos como uma ferra-
menta das autoridades que estão detendo as pessoas que buscam asilo, dificultando para
os profissionais concentrar-se no bem-estar dos detentos com quem trabalham. Também
48
poderia ser argumentado que isto tem uma validade mais ampla para incluir aqueles que
aguardam uma decisão quanto à sua solicitação de asilo.
Mantendo o foco da comunidade pelo
envolvimento e a avaliação
Um último ponto que vale enfatizar ao desenvolver serviços é a necessidade de envol-
ver os próprios refugiados. Isto pode ser uma questão de envolvimento do usuário,
mas também tratar-se de consulta com as RCOs. Vários autores têm acentuado a im-
portância de uma avaliação completa das necessidades ao se trabalhar com refugiados
e pessoas que buscam asilo (Harris; Maxwell, 2000). O envolvimento contínuo
de RCOs permite-lhes influenciar o desenvolvimento do trabalho e sua ênfase pelo
envolvimento em grupos de direção; colaboração frequente, treinamento e aumento de
consciência; e avaliação.
Os projetos que trabalham com pessoas que buscam asilo são muitas vezes amplia-
dos excessivamente e têm poucos recursos, podendo haver tendência a negligenciar áreas
como ligação de comunidades e avaliação de necessidades. Esse é um erro grave, porque
os projetos precisam demonstrar a efetividade dos modelos de trabalho com este grupo
de clientes, especialmente se carecem de fundos ou recursos. Raramente gastam o tempo
necessário com avaliação ou na criação de ligações com comunidades. Os métodos de
avaliação são mais efetivos quando combinam elementos tanto de avaliação interna (um
exame pelos profissionais de dentro do projeto de suas práticas de trabalho e limitações),
quanto de avaliação externa (utilizando um consultor avaliador de fora da organização
para observar a efetividade dos métodos empregados e o feedback de encaminhadores,

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usuários, comunidades e organizações ligadas).
No geral, é importante focar na melhora dos serviços, de modo que tanto os refu-
giados, como a população anfitriã se beneficiem. Isto pode diminuir a percepção errônea
de que os refugiados recebem serviços superiores, o que resulta em hostilidade e ressen-
timento. Embora haja a necessidade de alguns serviços de especialistas, principalmente
em curto prazo, para facilitar o acesso a serviços, é importante enfatizar a integração e
a inclusão nas correntes principais dos serviços de apoio psicológico para pessoas que
buscam asilo e refugiados. 49

OS EFEITOS DO SISTEMA DE ASILO SOBRE A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS


Deve-se considerar o impacto do sistema de asilo em qualquer país anfitrião sobre o que
pode ser oferecido às pessoas que buscam asilo. Em todo este capítulo, referimo-nos ao
sistema britânico, mas em outros países os prestadores precisam estar cientes do sistema
em seus países respectivos e como isto limita o que pode ser obtido com profissionais da
saúde mental, assistentes sociais e defensores.

As limitações do que pode ser obtido no clima atual


Dadas as dificuldades experimentadas pelas pessoas que buscam asilo ao ter sua con-
dição reconhecida e o impacto negativo do sistema de imigração e a cobertura conse-
quente da mídia sobre o bem-estar psicológico, os profissionais da saúde mental pre-
cisam estar preparados para as limitações no que eles podem oferecer para os clientes.
Em muitos casos, a importante intervenção de saúde mental que ocorre é a concessão
de permissão de permanência pelas autoridades de imigração, garantindo a segurança,
permitindo à pessoa tornar-se ativa na luta contra a impotência e no desenvolvimento
de uma nova vida, libertando-a para trabalhar de uma maneira objetiva sobre qualquer
sintoma remanescente.
Embora os exilados permaneçam inerentemente inseguros, pode ser difícil conti-
nuar trabalhando ou com as dificuldades do passado ou com as do futuro. É como se a
situação deixasse o indivíduo preso em um presente contínuo, onde o passado represente
algo ainda amedrontador, difícil ou doloroso de tocar, enquanto as esperanças para o
futuro parecem prematuras e arriscadas.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

A Importância do depoimento e
a questão da credibilidade
Uma vez que parte tão grande da dificuldade experimentada pelas pessoas que buscam
asilo está ligada à sua condição e à insegurança legal contínua, não é de surpreender que
o depoimento possa ter um papel importante no trabalho terapêutico. Além disso, o uso
do depoimento pode ajudá-las a se representar mais efetivamente, ao articular suas expe-
50
riências de um modo que possa ser ouvido mais claramente pelas autoridades de imigra-
ção. Isto, de muitas maneiras, é um ato político, buscar devolver o poder da autodefinição
aos indivíduos cujo poder lhes foi roubado tanto pelas circunstâncias que os enviaram
para o exílio como pelo tratamento recebido pelas autoridades de imigração.
Os profissionais podem intervir de maneira proveitosa escrevendo em apoio das pe-
tições de asilo, apresentando seu conhecimento da história e dos sintomas do cliente, de
modo que este possa ser genuinamente ouvido pelas autoridades (Harris, 2002). Deve-
-se observar, entretanto, que, quando as pessoas contam repetidas vezes suas experiên-
cias, ocorrerão discrepâncias entre os relatos e tais inconsistências não indicam necessaria-
mente uma falta de credibilidade (Cohen, 2001; Herlihy, Scragg; Turner, 2002).
Um discurso poderoso negativo sobre as pessoas que buscam asilo atravessa grande
parte da mídia atual e tinge o panorama político. Os profissionais que trabalham com
este grupo de clientes provavelmente sofrem os efeitos disto e precisam de ajuda para
monitorar seu impacto. Eles precisam ter muito cuidado ao questionar suas suposições
e o processo contínuo de seu envolvimento para determinar a influência das narrativas
dominantes no seu modo de trabalhar com os clientes e de ouvi-los (Harris, 2002).
As questões de crédito e descrédito podem ser particularmente salientes, invadindo
qualquer relacionamento de ajuda estabelecido com tais clientes (Harris, 2002). Os
profissionais podem achar que estão sendo arrastados para avaliar o material de seus
clientes como “genuíno” ou “falso” de uma maneira que pouco provavelmente fariam
com clientes de outros grupos. Isto é enfatizado pelo papel decisivo que os profissionais
da saúde mental têm ao redigir relatórios para casos de asilo, onde a sua posição pode
permitir que o cliente seja ouvido mais efetivamente pelas autoridades de imigração. Não
deve ser o profissional da saúde ou da saúde mental quem determina a credibilidade da his-
tória da pessoa que procura asilo, embora sejamos frequentemente pressionados a fazê-lo.

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Têm sido sugeridos aos médicos supervisão, apoio de pares, ação política e valida-
ção como mecanismos de proteção contra a corrupção de seus valores e suas abordagens
terapêuticas pela natureza insidiosa do discurso político. Os profissionais podem preen-
cher um papel decisivo com os clientes que procuram asilo formando um relacionamento
genuíno que deixa espaço para a pessoa toda, tornando-se uma testemunha dos efeitos da
injustiça, reconhecendo a necessidade de apoio social e validação e ajudando a capacitar
os clientes para começarem a construir novas vidas no exílio.
51
Racismo, discriminação e hostilidade
Os órgãos responsáveis pelo apoio às pessoas que buscam asilo devem estar cientes de
sua vulnerabilidade potencial ao racismo e garantir que estejam implantadas as dire-
trizes efetivas para lidar com qualquer incidente. Os refugiados enfrentam escárnios
racistas, ameaças, incêndios culposos, provocações na escola e violência física, que em
alguns casos resultou em morte. Pode-se considerar a prevalência de ataques e assédio
racistas ao se decidir a adequação de locais específicos para a colocação de pessoas que
buscam asilo.
As pessoas que sofrem o assédio racial precisam de apoio e defesa para comunicar o
incidente à polícia e ter acesso à proteção. O comportamento racista precisa ser comba-
tido por aqueles com o poder de fazê-lo, inclusive aqueles nas profissões médica e legal.

RESUMO
Neste capítulo tivemos como objetivo tratar das questões importantes que afetam o bem-
-estar psicológico de pessoas que buscam asilo e refugiados e sugerimos maneiras de
aperfeiçoamento. Defendemos a cautela ao patologizar o que podem ser expressões na-
turais de tristeza e sofrimento em relação a experiências altamente anormais. Ao dizer
isto, não estamos diminuindo tais sentimentos, mas sim sugerindo que o apoio prático
e psicológico pode ser mais efetivo tanto na prevenção como no tratamento do que um
modelo mais medicalizado. Em particular, enfatizamos a importância de tratar as pes-
soas como indivíduos; levar em conta suas convicções opiniões e práticas culturais; e de
refleti-las ao desenvolver o apoio.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

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55
Direitos Humanos, violência
e o desafio do atendimento a
vítimas: a busca por justiça

Flávia Schilling

Uma breve introdução à questão da violência:


as vítimas que se contam

Ao contrário dos desastres que podem ser universalmente reconhecidos como prejudi-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

ciais e indesejáveis, uma vez que golpeiam a esmo e não prestam atenção a privilégios
conquistados ou herdados, a justiça é um ponto notoriamente contencioso (Bauman,
1998, p. 74).

Iniciarei minha reflexão com uma breve observação sobre o conceito de “violência”. Isso
se justifica, pois, dependendo de como se compreenderá o conceito, e, assim, o uso que
daremos ao termo, depreender-se-á uma determinada compreensão do desafio do aten-
dimento a suas vítimas.
56
Propõe-se que “violência” seja visto como um termo que comporta múltiplas di-
mensões, uma série heterogênea de práticas que se deslocam no tempo histórico, se mul-
tiplicam, abrangendo novas práticas que eram vistas como “naturais”. Hoje temos um
exemplo dessa construção – com práticas antes vistas como comuns passando a ser vistas
como “violentas” – nas considerações sobre o bullyng. Uma série de situações deixa a
invisibilidade ou deixa de ser vista como “brincadeira” demarcando uma forma de vio-
lência que comporta agressores e vítimas.
Discute-se a contenção desse tipo de violência, sua prevenção, sua punição. Uma
grande quantidade de pessoas é chamada para falar sobre essa situação: professores, psi-
cólogos, pais, vítimas e agressores. Entram em cena os especialistas que propõem uma
percepção da dimensão do dano causado pelas práticas de bullyng e constróem-se políti-
cas públicas para dar conta do problema nas escolas: surgem campanhas contra o bullyng,
grupos de discussão, surgem pesquisas acadêmicas sobre a violência moral.
O que é violência? Uma definição, seguindo Marilena Chauí (1999, p. 3), é a seguinte:
Violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico ou psíquico contra alguém e
caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão e intimidação, pelo
medo e pelo terror. A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis,
dotados de linguagem e de liberdade, como se fossem coisas, isto é, irracionais, insen-
síveis, mudos, inertes ou passivos.

Essa definição ajuda a pensar um pouco sobre o que é violência. Com muitas dimensões:
física, psíquica, material, simbólica. Acontecendo em diferentes esferas: econômica, so-
cial, política, institucional. Aparecendo sob a forma de práticas muito heterogêneas, com
diferentes tipos e perfis de agressores e vítimas envolvidas.
Estas problematizações iniciais visam introduzir a noção da complexidade do con-
ceito. Portanto, cabe perguntar de que violência falamos quando enfrentamos o desafio
de falar sobre “violência” e suas vítimas. A da criminalidade urbana cada vez mais vio-
lenta? A violência da corrupção? Do desemprego, da fome? Da discriminação por idade,

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origem regional, sexo, religião e do racismo? Da violência dos crimes ambientais? Das
guerras, da polícia? Quem sabe falaremos da violência intrafamiliar, aquela “invisível”, ou
melhor, ocultada, tolerada, ajeitada, que afeta os idosos, as crianças, as mulheres? Violên-
cia vista como “menor”, ainda naturalizada, a violência que ocorre na família?
Há, por momentos, que fazer um esforço de delimitar a amplitude do conceito, não dei-
xar que tudo entre nesse conjunto de práticas. Essa é uma tendência contemporânea bastante
clara, que expressa nosso medo ambiente, nossos medos cotidianos e nos faz sermos intole-
rantes com práticas que, mesmo expressando conflitos e agressividade, não geram dano. Se 57
não duvidamos que o homicídio é uma violência, nem todas as situações de colocação de ape-
lido na escola, por exemplo, se encaixam no bullyng. Pensar o que é “violência” é o primeiro
desafio de quem trabalha com o tema e trabalha no atendimento a vítimas.
Essa mesma expansão das práticas vistas como “violentas” na atualidade ocorre
quando se pensa em suas vítimas. Houve, nos últimos anos, uma expansão da percepção
de quem é vítima em uma situação de violência. Percebe-se claramente a existência de
vítimas diretas, aquelas diretamente afetadas pelo dano. Mas percebe-se, também, a exis-
tência de outro círculo de vitimação, que afeta, por exemplo, a família da vítima direta,
seus amigos, as pessoas que a circundam e que se importam. São as vítimas indiretas do
ato violento. Fala-se em vitimação primária e secundária: quando aquela vítima de um
ato violento é novamente violentada, por exemplo, na instituição que deveria acolher seu
relato e atendê-la. Há uma vitimação, também, que poderia ser chamada de difusa, que
nos atinge indistintamente quando em contato com relatos, casos e fatos violentos.
Há, assim, violências que se contam e violências que não se contam. Há vítimas que
se contam e vítimas que não se contam. Se trabalharmos com o conceito como sendo
multidimensional e heterogêneo, o primeiro desafio do atendimento a vítimas fica deli-
neado: não há como pensar em um atendimento que repare, de forma homogênea, todos
os danos. Não há como pensar na possibilidade de uma única estratégia que dê conta da
heterogeneidade e diversidade – a singularidade – desse lugar. Uma pergunta também se
coloca: é possível reparar um dano? Caso optemos pela resposta afirmativa, segue-se a
interrogação: como é possível essa reparação?
Psicologia,Violência e Direitos humanos

O atendimento a vítimas

A ideia de justiça é concebia no momento de encontro entre a experiência da singula-


ridade (como se dá na responsabilidade moral pelo Outro) e a experiência da multipli-
cidade de outros (como se dá na vida social). (Bauman, 1998, p. 68).

Se trabalharmos com um conceito de violência que comporta sua complexidade, o atendi-


58
mento a vítimas de violência também repercute essa mesma complexidade. Que vítima é
essa? Qual foi a contexto da violação de seu direito? Há uma história dessa família em relação
à violência? Quem é esse agressor, qual o seu perfil? Quem mais foi afetado, além da vítima di-
reta? Como prevenir, restaurar, garantir o acesso à justiça? Como evitar a repetição do dano?
Evidencia-se, a partir dessa concepção, a necessidade de políticas de atendimento
integradas, em vários planos.
Ao recuperar essa história − em que se começa a perceber a necessidade do
atendimento das vítimas e a discussão sobre a possibilidade de reparação dos da-
nos − verifica-se um movimento que começa a envolver os governos1. Se os centros
precursores são fruto da iniciativa da sociedade civil, dos movimentos sociais, das
ONGs e, inclusive, de algumas igrejas, com alguma participação de universidades,
paulatinamente vai sendo criada uma rede nacional com centros de atendimento a
vítimas de crimes violentos.
Inicialmente, a presença mais forte é de centros de atendimento a mulheres vítimas de
violência, muitas vezes vinculados ou geridos por grupos feministas. Seguem-se os centros
de apoio a crianças vítimas de violência doméstica. Hoje, esta rede está ampliada, inclui
vítimas de crimes violentos de uma forma mais abrangente e incluindo o atendimento a ví-
timas de discriminação. Estes centros atuam nas capitais e em cidades em que há a detecção
da existência de altos índices de violência e governantes sensíveis a essa situação.
Mesmo com essa expansão2, que procura dar conta do mandato constitucional
(CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 88, art. 245), a situação ainda é precária. Cabe assinalar
que não há informações adequadas sobre os centros, seus objetivos, o serviço que pres-
tam: percebe-se uma carência de informação e muitas oscilações na prestação que fazem
à população por mudanças nas gestões governamentais e finalização de financiamentos.
Alguns centros são geridos diretamente pelos governos estaduais ou municipais, outros
são geridos por organizações não governamentais em parceria com governo federal e
estadual. Em todos, há a preocupação com a constituição de parcerias com outras orga-

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nizações estatais ou universidades. Há, contudo, poucos estudos e pesquisas que possam
nos dar um retrato fidedigno dessa importante atuação. As informações sobre os centros
e seus perfis são muito fragmentadas, há claramente uma falta de continuidade nas ações
e pouca geração de dados sobre os resultados alcançados.

1 Cabe destacar a atuação da Secretaria Especial de Direitos Humanos. O site nos informa: Desde a Constituição de 1988, artigo 245, o
Estado brasileiro ficou obrigado a dar uma atenção especial às pessoas vítimas de crimes e seus herdeiros e dependentes. Com esse
respaldo é que o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, decidiu fomentar, nos Estados, a criação
de centros de assistência e apoio a vítimas de crimes. Assim, no ano de 1999, o Ministério apoiou a implantação, nos Estados de Santa
Catarina e Paraíba, de centros de assistência e apoio a vítimas de crimes atuantes nas áreas de suas respectivas capitais: Florianópolis, 59
com o Pró-CEVIC - Programa Catarinense de Atendimento à Vítima de Crime, e João Pessoa, com o CEAV - Centro de Atendimento às
Vítimas da Violência. Em 2000, outros dois Estados também foram objeto de convênio com a Secretaria de Estado dos Direitos Huma-
nos para a implementação desses centros: Minas Gerais, com o Núcleo de Atendimento a Vítimas de Crimes Violentos, e São Paulo, por
meio do CRAVI - Centro de Referência e Apoio a Vítimas. Ainda neste ano, o Governo do Estado de Santa Catarina, com base no sucesso
da experiência do ProCEVIC de Florianópolis, promoveu a ampliação dessa iniciativa com a implantação de um centro para atendimento
específico na região de Lages. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/spddh/cgpvta/centros.htm. Acesso em 08 mar. 2011.
2 Em breve levantamento, há centros nos seguintes estados: PE, CE, Al, PB, BA, GO, PR, SC, RS, SP, MG, AC, entre outros, com centros
em capitais e outras importantes cidades dos estados. Os perfis variam de acordo com a situação da violência local.
Uma grande dificuldade encontrada em dois centros estudados em pesquisa de mes-
trado de Akemi Kamimura (2009) foi a da constituição das redes de apoio que pudessem
dar conta da complexidade do atendimento. Os dois centros estudados, o CRAVI3 (pro-
jeto governamental) e o CNRVV4 (projeto ligado ao Instituto Sedes Sapientae, instituição
privada ligada à PUC-SP, dedicada ao ensino e à pesquisa) apresentam relatos expondo a
dificuldade de dar conta, no trabalho imaginado a partir de assistentes sociais e psicólo-
gos – no caso do CNRVV − e de assistentes sociais, psicólogos e advogados − no caso do
CRAVI – de constituir uma rede de apoio ou conseguir dar conta das demandas múltiplas
das vítimas que acessavam os sistemas. Demandas essas sempre muito heterogêneas, que
requeriam tipos diferenciados de atendimento e apoio.
Trabalharei especificamente sobre essa dificuldade, discutindo dois planos de for-
mação de redes concomitantes e fundamentais:

Rede interna de apoio ao atendimento


Quem trabalha no atendimento a vítimas de violência necessita de apoio de vários tipos. Um
desses apoios necessários deriva da própria complexidade do termo “violência”, que implica
em uma heterogeneidade de práticas, produzindo diversos tipos de vítimas. Cabe mencionar
novamente que, em torno de um caso, quando em atendimento, verifica-se a existência de
outras violências ocorrendo, outras dimensões de violência envolvendo o caso concreto.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

A pesquisa, a reflexão, a produção de dados

Um dos apoios fundamentais para o trabalho é o de pesquisa sobre quais são as deman-
das, quais são os tipos de violência que estão ocorrendo, quais são os perfis das vítimas,
de suas famílias, onde moram, como vivem, quais são os antecedentes. Há, portanto, um
trabalho constante de coleta e análise de dados. Uma parceria, assim, fundamental, é com
as universidades ou centros de pesquisa interessados, apoiando um núcleo de produção
60 de dados e estudos internos. Esse é um setor que dificilmente se encontra nos centros de
atendimento. Os dados ficam dispersos, não estão analisados, se perdem na vertigem das
necessidades prementes que aparecem nos atendimentos.

3 Sua criação, em 1998, inaugurou um trabalho precursor de atendimento a familiares de vítimas de crimes fatais. Posteriormente,
ampliou sua atuação para o atendimento a vítimas de violência intrafamiliar e vítimas de abusos sexuais.
4 Centro que atende a vítimas de abusos sexuais.
Um lugar de reflexão constante é fundamental para que o trabalho não pareça eter-
no, circular, um “enxugar gelo”. A partir da sistematização (e divulgação ampla) dos da-
dos e das pesquisas, é possível propor ações locais de prevenção, propor sistemáticas de
atendimento integradas que poupem esforços individuais, é possível planejar a política
pública. Esse é um tipo de trabalho (em rede) fundamental para que o trabalho não se
torne uma rotina massacrante, para que consiga transcender o cotidiano do atendimento
individual. É essencial, pois os centros/núcleos de atendimento têm um papel fundamen-
tal na elaboração de políticas de prevenção à violência.

Supervisões, apoio à equipe

Outra rede fundamental – interna − de apoio aos que trabalham nos centros é a cons-
tituída pelas supervisões, supervisão institucional, grupos de discussão por área e in-
terdisciplinares. Trabalhar com vítimas e com o tema da violência é muito difícil, deixa
marcas naqueles que se dedicam a este tema. Fundamental é a reflexão, o apoio, a tomada
coletiva de algumas decisões. Nos Centros estudados, essa era uma das grandes queixas: a
ausência de supervisões sistemáticas, geralmente por falta de verbas. Esses momentos são
os que permitem que as coisas sejam ditas e permitem que se supere – no plano daqueles
que atendem – o silêncio que acompanha sempre a violência.
Silenciamento que é característico da violência, pela impossibilidade de pôr em
palavras o que se sente, de representar a catástrofe. Momento, portanto, absolutamente

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fundamental para que a equipe possa permanecer em contato com o outro, com aquele
que sofreu diretamente. Pois as equipes vivem uma situação de vitimação indireta cons-
tante, pelo contato e pela proximidade com os relatos. É possível imaginar outros traba-
lhos de apoio, outras redes de apoio internas: rede de voluntários que se dispunham ao
atendimento terapêutico aos técnicos, conformando uma rede de ações que permitam
aos técnicos preservar sua saúde.

Rede externa de apoio aos atendimentos 61

Há dificuldades em trabalhar com redes, em manter as redes vivas e funcionando em


todos os centros pesquisados. Exatamente por conta da complexidade da violência, da
heterogeneidade de casos, há demandas diferenciadas. Nada se resolve simplesmente
com uma cesta básica ou uma consulta. Há famílias deslocadas pelo tráfico de drogas,
por exemplo, que criam a necessidade de uma negociação com o sistema de habitação
para troca de moradia. Há famílias ou pessoas que sofreram violência da criminalidade
urbana que precisam retornar ao seu lugar de origem, gerando a necessidade de negocia-
ção com empresas de ônibus, ou dinheiro para passagens; há crianças vítimas de abuso
sexual, necessitando de apoio médico, psicológico, material, lugar onde viver, há feridos
de bala, casos de homicídio, onde o que se demanda é por acompanhamento do inquérito
e justiça. Em outros, há necessidade de proteção. Mulheres vítimas de violência, estupro,
casos e mais casos que exigem tratamentos diferenciados.
Como constituir a rede? É um trabalho incessante, incansável e sempre refeito. Há
parceiros que podem auxiliar em uma determinada questão, outros em outras, alguns
pouco, outros mais. Todas as variáveis são possíveis. Cabe mencionar que esta rede nun-
ca é sólida. Se estiver excessivamente apoiada em organizações não governamentais é de
conhecimento notório que estas dependem de patrocínios, financiamentos, não têm uma
equipe muito estável. As defensorias e centros de atendimento jurídico estão superlota-
dos, há prazo de espera. Quando a rede se apoia no trabalho de voluntários, por exemplo,
estes têm seu limite de atendimento, no caso de uma rede de apoio terapêutico. Mesmo
as redes compostas com as universidades apresentam seus limites, pelas variáveis dos
limites dos professores envolvidos e pela rotatividade dos estudantes estagiários.
Esse é, sem dúvida, um dos pontos vulneráveis do atendimento a vítimas de violên-
cia. Há experiências que integraram setores governamentais em suas parcerias. Mesmo
Psicologia,Violência e Direitos humanos

essas integrações, como, por exemplo, de uma Secretaria de Justiça com Secretaria de
Segurança e Assistência Social e Saúde, costuma ser fraca, pois não há uma cultura de
trabalho integrado e intersecretarial. Geralmente, realizam-se quando nesses acordos há
pessoas especiais, sensibilizadas e mobilizadas para o trabalho. Quando mudam, o traba-
lho, muitas vezes, cessa.
Não há como imaginar que a solução aos problemas dos atendimentos a vítimas
de violência se resolva com a constituição de uma rede de apoio. Esta é necessária, sua
busca é constante, é um dos trabalhos permanentes de uma instituição que se dedica
ao tema, mas são frágeis. Um dos dilemas, por exemplo, vividos em relação às redes
62
tanto no CNRVV quanto no CRAVI, era a distância, para as famílias, dos atendimentos
possíveis, nessa rede de organizações ou voluntários. Uma das soluções foi a criação de
pólos de atendimento por região da cidade, a descentralização dos serviços. Isso signi-
fica, com certeza, o aumento dos custos do trabalho. Pois, talvez, a maior violência que
enfrentamos, é a da pobreza da maioria das famílias atendidas. É importante pensar,
a partir da verificação dos tipos de casos mais comuns e das demandas apresentadas,
como constituir equipes sólidas e linhas de apoio constantes e integradas no próprio
núcleo/centro.
O trabalho com as redes é assim, necessário, porém claramente insuficiente para
atender as demandas das vítimas de violência, a não ser que seja vista como uma política
pública, criando obrigações mútuas e procedimentos consensuais.

Há alternativas? Uma política pública


integrada de direitos humanos

Não é preciso mencionar que o problema da justiça não pode ser sequer postulado a
menos que já haja um regime democrático de tolerância que assegure, em sua constitui-
ção e na prática política, os direitos humanos – ou seja, o direito de conservar a própria
identidade e singularidade, sem risco de perseguição (Bauman, 1998, p. 82).
Se a rede da sociedade civil ou de outras organizações governamentais se mostra frá-
gil, necessitando ser constantemente refeita e exigindo uma dedicação de parte da equipe
para esse trabalho, é, talvez, possível imaginar uma política pública integrada de atendi-
mento a vítimas, que consiga dar conta das diretrizes das normativas internacionais5 que

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nos dizem que os remédios para as graves violações de direitos humanos incluem:
(a) Acesso à Justiça de forma igualitária e efetiva;
(b) A reparação dos danos sofridos;
(c) O acesso às informações relevantes concernentes às violações e aos mecanismos
de reparação.
Citando o trabalho realizado por Kamimura (2009), estes três pontos, que se entre-
cruzam necessariamente, apresentam algumas características que deverão servir como
norte para o desenvolvimento das políticas de atendimento a vítimas de violência. 63

5 Resolução 60/147, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 2005 - Princípios e Diretrizes Básicas
sobre o Direito das Vítimas de Violações das Normas Internacionais de Direitos Humanos e do Direito Internacional Humanitário
a Interpor Recursos e Obter Reparações.
O acesso à justiça
O acesso à justiça inclui o dever do Estado disseminar informações (assim como reforçado
no item sobre acesso às informações) sobre todos os mecanismos disponíveis de proteção
e defesa em relação a graves violações de direitos humanos e do direito humanitário. Outra
série de medidas para garantir o acesso à justiça é o dever de tomar uma série de medidas
para a proteção da vítima e seus familiares, contra interferências arbitrárias em sua priva-
cidade, assim como assegurar sua segurança e proteção contra ameaças e intimidação de
vítimas e de seus familiares e testemunhas, durante e após os procedimentos judiciais, ad-
ministrativos e outros procedimentos que afetem os interesses das vítimas.
Os deveres do Estado abrangem também prover efetiva assistência às vítimas para
o acesso à justiça, tanto no que se refere ao direito interno, como ao direito internacional
humanitário, disponibilizando todo um aparato legal, diplomático e consular para que as
vítimas tenham assegurado o exercício de seus direitos à defesa e à proteção. Vale ressaltar
que o acesso à justiça tem abrangência individual e também coletiva para grupos de vítimas.

A reparação dos danos e a garantia da não repetição: o


desenho das políticas públicas
Psicologia,Violência e Direitos humanos

A normativa sobre a reparação pelos danos sofridos merece um destaque especial. Cabe
novamente perguntar: é possível reparar um dano sofrido?
Segundo a Resolução 60/147, a reparação deve ser proporcional à gravidade das
violações e os danos suportados pelas vítimas em razão de atos ou omissões do Estado.
Nesse sentido, a Resolução 60/147 ressalta a necessidade dos Estados se comprome-
terem com o estabelecimento de programas nacionais para reparação e outras assis-
tências às vítimas; assim como dos Estados preverem na legislação doméstica meca-
nismos efetivos para a efetiva realização de julgamentos de reparação. Essa reparação
contemplará, assim, a singularidade do caso, a singularidade da violação e da situação
64 de violência sofrida.
A completa e efetiva reparação inclui a restituição, compensação, reabilitação, satisfa-
ção e a garantia de não repetição. A resolução oferece os parâmetros para a compreensão
de cada uma dessas variáveis vistas como necessárias para a reparação do dano.
A restituição deve, sempre que possível, restaurar a vítima na condição original
antes da grave violação de direitos humanos ou grave violação ao direito internacional
humanitário. Claro que cabe, novamente, a problematização de se esta restauração à con-
dição anterior é possível. Mas essa ideia pode funcionar para que se tenha como um
objetivo do trabalho a construção, a partir de um novo lugar, de uma nova situação com
a possibilidade da restauração da liberdade, o gozo dos direitos humanos, reconstrução
de identidade, vida familiar e cidadania, retorno ao local de residência, restauração do
emprego e retorno da propriedade.
A compensação deve ser provida para qualquer dano economicamente mensurável,
adequada e proporcionalmente ao dano sofrido, que pode ser um sofrimento físico e
mental; a perda de oportunidades, inclusive de emprego, educação e benefícios sociais;
danos materiais e lucros cessantes; danos morais; custas legais ou assistência médica, hos-
pitalar, psicológica ou social. Aqui haveria a possibilidade de uma restauração da condi-
ção anterior a partir de uma compensação financeira.
Agiria em combinação com a chamada “reabilitação” que inclui cuidados médicos e
psicológicos, assim como serviço social e jurídico.
A satisfação deve incluir, quando aplicável, medidas efetivas para cessar a continui-
dade da violação. Este ponto é bastante similar ao último, a “garantia da não repetição”, só
que, nesse ponto, aplicada ao caso singular. Esse é o momento mais importante do traba-
lho envolvendo vítimas de violência: a da garantia de que essa situação não continuará,
essa violência cessará. Daí a necessidade de um diagnóstico preciso sobre a condição da
vítima e do agressor, sobre sua condição de vida. Nesse ponto, trata-se de verificar os fatos
e a verdade sobre as violações, desde que não cause mais danos ou ameaça à segurança

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e interesses das vítimas, familiares e testemunhas; investigar desaparecimentos e a iden-
tidade de vítimas. As formas da reparação podem incluir a declaração pública oficial ou
decisão judicial que restaure a dignidade e reputação das vítimas e seus direitos; pedido
público de desculpas, inclusive com o conhecimento dos fatos e reconhecimento da res-
ponsabilidade; sanções administrativas e judiciais; dentre outras medidas. É claro que a
“satisfação”, que se traduz na fala da vítima “foi feita justiça”, inclui a punição do agressor,
quando o caso assim o exige, transitando, assim, entre as várias formas da justiça retribu-
tiva e restaurativa.
65
A garantia de não repetição deve incluir, quando aplicável, uma série de medidas
que também contribuem com a prevenção de outras violações, além daquela especifica-
mente vivida por aquela vítima singular. Entre outras medidas citadas, estão: assegurar
o efetivo controle civil das forças militares e forças de segurança; assegurar que todos
os procedimentos civis e militares sejam compatíveis com os parâmetros internacionais
do devido processo, imparcialidade e justiça; fortalecer a independência do judiciário;
proteger pessoas em profissões legais, médicas e de cuidados de saúde, de mídia e outros
profissionais e os defensores de direitos humanos; promover, como prioridade e de for-
ma continuada, educação em direitos humanos e em direito internacional humanitário a
todos os setores da sociedade e treinamento para os profissionais de segurança, militares
e forças armadas; promover a observância de códigos de conduta e ética, nos parâmetros
internacionais, de todos os servidores públicos e empresas privadas; promover meca-
nismos para prevenção e monitoramento de conflitos sociais e suas resoluções; rever e
reformar a legislação que contribua ou permita graves violações de direitos humanos e
direito internacional humanitário (Kamimura, 2009).
É aqui que se apresenta, com grande clareza, a importância dos centros de atendi-
mento: centros em que é possível, a partir de um trabalho de direitos humanos das víti-
mas de violências, formular uma série de políticas públicas mais amplas que possam, de
múltiplas formas, quebrar ciclos de repetição de violações.
Por fim, os Estados devem promover o acesso à informação relevante sobre a vio-
lação e mecanismos de reparação a todos, especialmente às vítimas de graves violações
sobre seus direitos e medidas aplicáveis indicadas nessa Resolução 60/147 e em todos os
serviços disponíveis jurídicos, médicos, psicológicos, sociais, administrativos e todos os
serviços que a vítima tenha o direito de acessar.
É claro que há um longo caminho a ser percorrido. Vimos, nos últimos anos, avan-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

ços no país, no que se refere à criação de centros de atendimento e apoio a vítimas de


violências, em algumas de suas especificidades. Mas é possível falar em reparação? Em
acesso à justiça? Sequer em acesso à informação?

Brasil, violência, vítimas e direitos humanos

66 Parece cada vez mais provável que a justiça seja um movimento, em vez de um objeti-
vo ou qualquer “estado final” descritível; que ela se manifeste nos atos de identificar e
combater injustiças – atos que não indicam necessariamente um processo linear com
uma direção − e que sua marca registrada é uma perpétua autodesaprovação e des-
contentamento com o que foi alcançado. A justiça significa sempre querer mais de si
mesma. (Bauman, 1998, p. 89).
Pensar a justiça como um movimento nos permite propor, ir além. O mesmo pode ser
dito do grande marco desse debate: os direitos humanos, condição necessária, porém não
suficiente, na análise de Bauman (1998).
“Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Esta é
a primeira formulação de conteúdo dos direitos fundamentais, inscrita na Declaração
Universal de Direitos Humanos de 1948, da ONU, em seu artigo terceiro. A ideia de que
“todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e a de que “todo ser
humano tem capacidade de gozar os direitos e liberdades estabelecidos nesta declaração,
independente de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política, origem social ou nacio-
nal, nascimento” (Art.1), é uma ideia absolutamente recente. Nossa história é repleta de
guerras onde o outro é visto como o absolutamente “outro”, e que, assim, não pertenceria,
por motivo de raça, convicção religiosa, ou quase qualquer outro motivo, plenamente à
categoria do humano.
O direito à vida, que todos possuem pelo simples fato de pertencer à humanidade
ainda está precariamente constituído. Isto se reflete nos assassinatos urbanos, nos femicí-
dios, nos crimes na família. Se esse direito não é universal, está quebrado, tanto faz matar
pelos motivos mais banais. Se a vida está banalizada (somos medidos por nossa capaci-
dade de consumir) a morte também o estará.
Agora, podemos nos perguntar: o que é o direito à vida? É basicamente o direito a
não ser morto ou é algo mais? O direito à vida implica no direito a que tipo de vida? Tal-
vez a uma vida digna, com a possibilidade de ser tudo o que é possível ser, ter acesso aos

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“bens da humanidade”, ter a satisfação de suas necessidades.
Não é por acaso que os direitos à vida, à liberdade e à segurança, estão formulados
no mesmo artigo da Declaração. Dependendo de nossa capacidade de cuidar do direito à
vida, nossa liberdade e nossa segurança também se realizam.
O significado de “segurança”, na Declaração, também pode ser objeto do mesmo
tipo de trabalho que fizemos em relação ao direito à vida. Direito humano fundamental,
trata não apenas da segurança individual no sentido de não sermos roubados, agredidos,
violentados. Trata também de que aqueles bens imateriais que prezamos, nossos talentos,
67
o fruto do nosso trabalho e nosso esforço, sejam respeitados. O direito à segurança inclui
a certeza de que, em caso de doença, invalidez, seremos atendidos e amparados, teremos
a segurança necessária para recompor nossa vida. Inclui também a certeza de que, quan-
do mais velhos, teremos a possibilidade da aposentadoria digna. Muitos significados,
portanto, muita riqueza contida nestas simples palavras.
Se o marco dessa busca de justiça são os direitos humanos, o trabalho de atendimento
a vítimas pode, nessa compreensão, avançar. Quem sabe, pois, aqui no Brasil, não temos
uma lei específica que assegure os direitos das vítimas, poderíamos começar a pensar em
uma política pública integrada, que, a partir da verificação da complexidade do atendimen-
to a vítimas de violência, previsse o apoio – rede – interno para aqueles que trabalham na li-
nha de frente e criasse as condições de um atendimento – rede − integrado, juntando vários
setores de políticas públicas em torno dessa questão da reparação às violações de direitos
humanos, de forma permanente, estável, continuada, com total apoio dos gestores públicos
e das organizações que lutam pela efetivação dos direitos humanos?
Desafio fundamental e que precisa ser enfrentado, que possibilitaria a reparação
e quem sabe, a garantia da não repetição do evento violento, em um movimento em dire-
ção à justiça.

Referências
BAUMAN, Z. O Mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BRASIL. Constituição Federal, 1988.
BUORO, A. et al. Violência Urbana: dilemas e desafios. 5ª. ed. São Paulo: Editora Atual, 2010.
CASTANHO E OLIVEIRA, I. M.; PAVEZ, G. A; SCHILLING, F. (Orgs.). Reflexões sobre Justiça e Violência. São
Paulo: EDUC; Imprensa Oficial, 2002.
CHAUÍ, M. Uma ideologia perversa. Folha de São Paulo, Caderno “Mais”, São Paulo, p. 5-3,14 mar. 1999.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

KAMIRURA, A. A. A efetivação dos direitos humanos: o desafio do direito no atendimento interdisciplinar a víti-
mas de violência. 2009, 170 f. Dissertação (Mestrado em Direito) − Faculdade de Direito, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2009.
ONU. Resolução 60/147, 16 de dezembro de 2005 - Princípios e Diretrizes Básicas sobre o Direito das Vítimas
de Violações das Normas Internacionais de Direitos Humanos e do Direito Internacional Humanitário a
Interpor Recursos e Obter Reparações.
SCHILLING, F. Sociedade da Insegurança e violência na escola. São Paulo: Ed. Moderna, 2005.
______. A multidimensionalidade da violência. In: CARVALHO, J. S. F de. (Org.). Educação, cidadania e direitos
humanos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2004, p. 34-52.
______. (Org.). Direitos Humanos e Educação. Outras palavras, outras práticas. São Paulo: Editora Cortez, 2005.
68
O SUS e os mecanismos de
exclusão: a saúde mental à
margem do sistema de saúde

Teresa Cristina Endo


Manoel Tosta Berlinck

Um dos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS) é a universalidade:


todos os cidadãos têm o mesmo direito de acesso aos cuidados de saúde, que significa o
atendimento ao alcance de todos, sem distinção ou restrição de qualquer tipo. A pessoa
que procura o atendimento público não precisa possuir carteira de identidade, endereço
fixo, ou carteira de trabalho. O caráter de universalidade estabelece o atendimento indis-
tinto a qualquer pessoa.
Contudo, vemos a distinção ocorrer cotidianamente nos equipamentos de saúde por
outras vias, através da diversidade de concepção do que seja o doente, a doença e as for-

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mas de cuidar. A atenção à saúde pública tem história e revela uma origem imbricada de
valor moral no entendimento das doenças, e principalmente no julgamento das pessoas
pobres que adoecem. Na Inglaterra no século XVI, foi instaurada a “lei dos pobres”, um
sistema de assistência assumido pelo Estado, que designava a cada freguesia arrecadar
impostos para assistir aos pobres, conseguir empregos para os fisicamente capazes, punir
os indolentes e prestar caridade aos idosos, aos doentes e incapacitados.
No século XVIII, as pessoas que ganhavam abaixo do nível de subsistência recebiam
uma pensão pelo Estado, o que ocasionou num aumento tão grande nos gastos públicos, 69
que culminou na votação de uma nova lei, que considerava a pobreza entre os fisicamente
capazes como uma falha moral. Ao invés da caridade, deveria ser estimulada a busca de
empregos, a partir de então só lhes era oferecido assistência nos asilos. Assim, qualquer
tentativa de assistência através da Lei dos Pobres significava, em realidade, um obstáculo
à autoajuda, um pecado contra a necessidade filosófica, e um impedimento ao progresso.
Dever-se-ia, ao invés, compelir os pobres a resolverem por si mesmos os seus problemas
e estimulá-los a serem previdentes, a se ajudarem (Rosen, 1994).
No século XIX, com o crescimento do sentimento humanitário e a partir do relató-
rio da Comissão da saúde das Cidades, escrito em 1843 por Sir Robert Peel “desnudou-se
para quem desejasse ver, as apavorantes condições existentes. Mostrava-se que a super-
população e congestão, pobreza, crime, insalubridade e mortalidade alta, em geral convi-
viam” (Rosen, 1994, p. 174, grifos nossos).
E no século XX, com o fenômeno do desemprego industrial, mostrou-se que a po-
breza era mais que um problema moral. Revelou-se a íntima relação entre as taxas de
morbidade e mortalidade e as condições de vida das diferentes classes sociais (Rosen,
1994). A legislação social inglesa das décadas de 1930 e 1940 substituiu as “Leis dos po-
bres” por um sistema abrangente de serviços públicos.
Este recorte histórico ilustra como a pobreza era vista em diferentes épocas e recebeu
construtos ideológicos distintos, conforme interesses econômicos e políticos hegemôni-
cos de cada período. Ao se associar a pobreza à moralidade dos indivíduos, destituía-se
o Estado e responsabilizava-se a pessoa por sua condição de vida e de doença a partir de
seus atos transgressores ou falhas morais.
Aos usuários vistos como dependentes do SUS, parece restar a resignação com a
assistência ofertada, herdam o mesmo status da “Lei dos Pobres”, como se lhes fosse des-
tinado apenas o precário ou desqualificado como única alternativa de tratamento como
Psicologia,Violência e Direitos humanos

o nome sugere: “SUS dependente”. No entanto, o que se preconiza no SUS é um modelo


assistencial de ponta, em que deve ser garantido o acesso universal aos tratamentos, a
integralidade que garante a atenção a todas as áreas da saúde, e a equidade que determina
o atendimento de forma igualitária a todo cidadão.
Do outro lado da margem, do cidadão excluído da rede de cuidados do SUS, o ce-
nário é desalentador. Assistimos horrorizados, por exemplo, aos casos de maus tratos de
familiares aos seus parentes portadores de transtorno mental, sejam crianças, adolescen-
tes, jovens ou idosos. Causam indignação notícias como a da mãe que construiu, com a
ajuda da prefeitura, um quarto nos fundos da sua casa, nos moldes de uma cela forte, e
70
manteve seu filho nesta condição de cárcere privado durante quinze anos, com a anuên-
cia do poder público, da comunidade local e da própria família.
De acordo com a matéria denominada “Autistas em cativeiro”: “Sem saber como
lidar com filhos sofrendo de autismo severo, famílias optam por uma solução medieval:
prendê-los. A janela do quarto de Alexsandre Borges da Silva, de 18 anos, dá para dentro
da casa simples de Sapeaçu, no interior da Bahia. É um vão aberto para o corredor que
leva da sala à cozinha. Quando o dinheiro der, vamos colocar uma grade, diz o padastro Cos-
me Nogueira da Silva, enquanto com as mãos desenha barras de ferro no vazio”.
Por todo o Brasil, no século XXI, autistas como Alexsandre ainda recebem trata-
mento semelhante ao que os deficientes mentais recebiam na Idade Média. Naquela épo-
ca, era comum eles viverem como animais. Presos em jaulas, não recebiam educação,
eram alimentados por entre as grades, faziam as necessidades no chão. O descaso para
o autismo parece ter se tornado visível e objeto de indignação apenas após a ocupação e
tratamento da mídia sobre o caso. O sofrimento das pessoas autistas e familiares ganhou
um espaço de preocupação no contexto jornalístico, e passou a existir como problema aos
olhos da sociedade.
Testemunhamos, cotidianamente, não somente em celas forte, mas habitando as
calçadas de passagem, pessoas à margem do SUS, doentes, famintas, isoladas, alijadas da
família e da própria rede social. Seres invisíveis que vagam despercebidos e sem qualquer
assistência. Diante deste cenário, vemos se perpetuar verdadeiros vácuos de desproteção
no território da saúde pública.
A marca da exclusão atravessa necessariamente o trabalho da clínica no SUS, em
função da realidade social e psíquica da clientela atendida, que perdeu, na maioria dos ca-
sos, referências fundamentais de pertencimento a uma família, a um grupo, a um gênero,
à sua condição humana. Os termos inserção, reinserção e inclusão social estão presentes
no discurso cotidiano das práticas institucionais, nas portarias ministeriais, em artigos

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científicos, em fóruns e encontros de saúde mental. No entanto, ainda é um desafio pen-
sar numa clínica da inclusão.
Na resenha de Elisabeth Ferreira Mângia (2008) sobre o livro Psiquiatria Institucio-
nal: do hospício à Reforma Psiquiátrica (LOUGON, 2006), a autora observa:
Nas últimas décadas, o problema representado pelos transtornos mentais tem ocupado
cada vez mais a agenda das políticas de saúde. Muitos países têm construído políticas de
saúde mental comprometidas com o desenvolvimento de novas formas de cuidado, com
a melhoria da qualidade de vida, garantia dos direitos de cidadania e combate às formas 71
de violência, exclusão e estigma, de que são alvo as pessoas com transtornos mentais.

São elementos analisados: ...promover o resgate da cidadania, a inclusão social e a


ressocialização dos internos e as novas formas de atenção e escuta. O autor questiona
a viabilidade do projeto e reconhece que a inclusão social esbarra na impossibilidade
das famílias receberem seus membros improdutivos, ou mesmo na ausência de víncu-
los familiares ativos, daí sua preocupação com a necessidade de criação de dispositivos
capazes de impedir o abandono dos pacientes.

Com o advento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, a prioridade tem sido resgatar a noção
de cidadania e direitos humanos dos usuários e pensar a saúde mental numa condição
mais ampla de saúde integral. Na Declaração de Caracas para a reestruturação da Assis-
tência Psiquiátrica dentro dos Sistemas Locais de Saúde consta:
Que a reestruturação da assistência psiquiátrica ligada ao Atendimento Primário da
Saúde, no quadro dos Sistemas Locais de Saúde permite a promoção de modelos alterna-
tivos centrados na comunidade e dentro de suas redes sociais.
Que os recursos, cuidados e tratamentos dados devem:
• salvaguardar, invariavelmente, a dignidade pessoal e os direitos humanos e civis;
• propiciar a permanência do enfermo em seu meio comunitário;
Que a legislação dos países deve ajustar-se de modo que
• assegurem o respeito aos direitos humanos e civis dos doentes mentais;
• promovam a organização de serviços comunitários de saúde mental que garantam
seu cumprimento.
(www.fundamentalpsycopathology.org)

Vivemos um momento privilegiado, em que a saúde mental no SUS tem ocupado fóruns
Psicologia,Violência e Direitos humanos

de debate, tem sido objeto crescente de interesse na pesquisa acadêmica, na esfera jurí-
dica, na mídia e atinge o cidadão comum. Em fevereiro de 2007, é criado o Laboratório
de Saúde Mental, coordenado pelo Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck, pela Profa. Dra. Ana
Cecília Magtaz e pela psicanalista e jornalista Mônica Teixeira, que funcionou no âmbi-
to da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, reunindo
profissionais de saúde da rede pública e culminando em publicações importantes sobre o
acúmulo de experiências de saúde mental no SUS.
Este dispositivo – chamado de Laboratório de Saúde Mental – será um local (tório)
72 de trabalho (labor) onde trabalhadores de saúde mental possam, durante um certo
período, rememorar e escrever, de forma narrativa, aquilo que viveram na prática.
O principal objetivo do Laboratório de Saúde Mental será, então, o de possibilitar a
produção de textos narrativos escritos por trabalhadores, sobre o vivido na prática, sua
impressão e divulgação. Esses textos seriam publicados e divulgados não só entre os
trabalhadores de saúde mental, mas, também, na sociedade.
Assim, tendo engendrado novas práticas clínicas visando a integração dos usuários na
sociedade e na cultura, a Reforma Psiquiátrica Brasileira precisa, também, criar um
dispositivo para que tais vivências se transformem em experiências, ou seja, em saberes
socialmente compartilhados, desenvolvendo capacidades de pesquisa em saúde mental.

A complexa prática engendrada pela Reforma não afeta apenas os usuários. Os traba-
lhadores de saúde mental, profundamente envolvidos nesse processo, são personagens
tão importantes quanto os usuários e suas vivências precisam ser conhecidas para que
a Reforma possa ser aprimorada e atingir seus objetivos.

Para que isso ocorra, é necessário que as vivências eminentemente práticas dos traba-
lhadores de saúde mental sejam narradas e registradas constituindo, dessa forma, um
arquivo, parte fundamental da memória das práticas promovidas pela Reforma. Em
outras palavras, é necessária a realização de um trabalho de autoria junto aos traba-
lhadores de saúde mental, que implique um processo de transformação das vivências
em experiências, passando pela narrativa escrita, pelo registro narrativo da prática.
(www.fundamentalpsycopathology.org)

Da mesma forma, poderíamos comparar a visibilidade social provocada pela mídia sobre
os autistas com as iniciativas acadêmicas de registro sobre as práticas assistenciais, como
formas de inclusão da temática da saúde mental no SUS e na sociedade. O modelo as-

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sistencial do SUS preconiza como ação em saúde mental o enfrentamento e combate às
formas segregacionistas e de exclusão social aos usuários com transtornos mentais. Mas
ainda parece incipiente o entendimento e o manejo desta denominada Clínica da Refor-
ma Psiquiátrica, a clínica da inclusão, a clínica ampliada.
O apelo que se faz à sociedade brasileira a todos os atores diretamente envolvidos e
responsáveis pelo cuidado, pela assistência, é de que sejamos capazes de inverter a tra-
dição e criar condições de tratamento adequadas e coerentes com os direitos humanos.
Na clínica da Reforma Psiquiátrica, teremos que aprender a conjugar loucura com 73
cidadania, dignidade com tratamento, respeito com eficácia, ciência com ética.

A potência desta política e suas condições de possibilidades encontram-se articuladas


diretamente, de um lado, à posição da sociedade civil e por outro, o processo de cons-
trução e funcionamento do Sistema único de Saúde. A Reforma Psiquiátrica aprende
com o SUS que a política se faz no município, lugar onde vivem os sujeitos. A sua
elaboração, implementação e controle social é realizada por todos os atores que o mo-
vimento colocou em ação, categorias profissionais diversas, governos, instâncias do
poder judiciário e legislativo e principalmente, os usuários... tornando enfim real a
utopia que funda a lógica antimanicomial: a sociedade sem manicômios, onde todo
homem e toda mulher, loucos ou não, encontrem seu lugar e sua forma de pertenci-
mento, mantendo sempre intocado, seu direito à liberdade. (MANIFESTO EM DEFE-
SA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA, 2006 ).

Os equipamentos de atenção à saúde mental como CAPS, Residências Terapêuticas e


CECCOS (os denominados substitutivos ao modelo hospitalocêntrico) poderiam ser de-
nominados como os lugares privilegiados de experiências de ocupação e pertencimento.
Uma prática de inclusão poderia ser descrita numa atividade de trabalho chamado
“extra muros” num CAPS adulto. A psicóloga propiciou uma viagem à sua casa na praia
aos pacientes e familiares usuários do CAPS. Todos se divertiram muito, aproveitaram o
passeio e voltaram ótimos. Os comentários se seguiram nas semanas subsequentes sobre
como se surpreenderam com a capacidade de lidar com os percalços da viagem, da sensa-
ção de bem-estar, da maior aproximação com os familiares e do desejo de viverem outras
experiências como esta.
O resultado esperado nesta prática poderia ser o de deslocar o lugar manicomial his-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

toricamente privilegiado de pertencimento da loucura e do louco, para além dos limites


instituídos para pessoas com transtornos mentais, invertendo a lógica: “Lugar de louco é
no hospício”. A inclusão dar-se-ia na ocupação e apropriação dos espaços públicos.
Num Hospital psiquiátrico, no qual residem pacientes há anos, está sendo realizado
o processo de alta e transferências destes moradores para as Residências Terapêuticas.
Falamos sobre a casa em que iriam morar, espaçosa e bonita, com amplo quintal no qual
haveria jardim, piscina e churrasqueira. Seria totalmente equipada com aparelhos ele-
trodomésticos e mobiliários novos. E que receberiam roupas, toalhas, lençóis, edredons
74
e outros objetos de uso pessoal. Disporiam também de um benefício financeiro mensal-
mente do governo para usufruir como quisessem.
Ao ouvirem a notícia, as pacientes ficaram entusiasmadas, “A gente aqui não tem
nada que é da gente, esse chinelo um dia é meu, no outro dia já está no pé da colega, e com
a escova de dente também acontece isso...”. Uma paciente quis passar batom, outra falou
do incômodo de não usar roupas íntimas, começaram a expressar o desejo de pintar as
unhas, cortar os cabelos e ter roupas novas. Pareciam atingidas por uma provocação: uma
casa tão bonita não combinaria com mulheres tão descuidadas com a aparência, como
todas elas se apresentavam naquele dia.
Em relação à Residência, uma delas estranhou: “Para que tanta “bacanice” só pra
gente?”. O estranhamento da paciente com o que lhe parecia um excesso ou desperdício,
usando o termo “bacanice”, criado por ela, é coerente com a lógica pautada no “secu-
lar modelo de tratamento da loucura em hospital psiquiátrico, lugar de anulação dos
direitos civis e da supressão da subjetividade” (MANIFESTO EM DEFESA DA REFORMA
PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA, 2006).
A identidade de paciente historicamente construída nas práticas assistenciais marca
a trajetória profissional dos trabalhadores de saúde mental e restringem o indivíduo à
esfera da clínica terapêutica stricto senso e todas as considerações patológicas a que este
termo está aderido: doente, incapaz, limitado, dependente.
A partir do Movimento da Reforma Psiquiátrica, o usuário de um equipamento de
saúde mental passa a ser visto e concebido não como um paciente, mas ganha o status de
cidadão. A partir daí, há que se pensar numa prática assistencial coerente com esta nova
condição social. Nesse sentido, a tarefa assistencial implicaria na oferta de um espaço
clínico, num laboratório de experiências de pertencimento – destinado a este que chega
sem território, sem terra natal, sem nome de pai no sobrenome, e muitos, sem sequer
o primeiro nome: batizados de Fulano de Tal ou Desconhecida. Sobre a experiência de
pertencimento, podemos citar Berlinck (2000, p. 112):

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Ser detentor de uma experiência é característica de uma forma genuína de saber – o
saber fazer na realidade – que decorre de vivências que marcam a conduta. Quando a
experiência se acumula, o sujeito vai adquirindo uma certa sabedoria que lhe permite
distinguir aspectos da realidade e, principalmente, de seu próprio psiquismo.

Demorar-se nesta tarefa experiencial pode ser o caminho para se conseguir um lugar
identificatório com seus pares, cidadãos comuns que ocupam e se apropriam de seu ter-
ritório e não mais cidadãos-pacientes restritos a espaços demarcados. A base da expe- 75
riência residiria, então na focalização da subjetividade no centro do tratamento, como
considera Queiroz (1999, p. 99): “com a ideia de pathos, possibilitadora da construção da
experiência... tudo que é psíquico é psicopatológico”.
Mas como fundir numa mesma prática a experiência de pertencimento, a escuta do
sofrimento, o resgate da cidadania, a clínica da inclusão numa realidade de atendimento
SUS? No panorama da saúde pública, testemunhamos o abismo entre o princípio de uni-
versalidade proposto pelo SUS e as práticas assistências. Diante das distintas concepções
de atenção à saúde mental presentes nos discursos dos profissionais de saúde, podemos
considerar que os equipamentos especializados de atenção à saúde mental vieram somar
nas práticas de atendimento?
São inúmeras as justificativas para não se incluir o paciente num serviço de saúde: o
perfil do usuário, do profissional, os temas transversais presentes em cada caso (violência,
DST/ ASIDS, pessoas em situação de rua, adolescentes em situação de risco), a gravidade
ou complexidade da doença, ou a característica do equipamento:
• Este usuário não tem perfil para CAPS.
• Aqui não atendemos co-morbidade psiquiátrica.
• Este é um caso de polícia, deve ser encaminhado ao conselho tutelar.
• Interno da FEBEM nós não atendemos, só os de liberdade assistida, a não ser que
tenha um pedido do juiz.
• Paciente com AIDS tem um local específico para ser atendido.

O relato de uma paciente, a qual foi vista uma única vez, revela a ambiguidade de sen-
timentos produzidos no profissional de saúde, diante de uma queixa imprecisa e sem
destinação, à espera de um lugar para se assentar.
O meu problema é a bebida, eu vim aqui no CAPS para parar de beber. Uma amiga
Psicologia,Violência e Direitos humanos

me trouxe, falou que aqui com o tratamento ela melhorou, bebe bem menos, só às ve-
zes, mas consciente, socialmente. As pessoas me dizem: “você tem que parar de beber,
assim você está se acabando, vai no CAPS, eles dão remédio, tem psicólogo”. Inclusive
se não for abusar, ou pedir muito, aqui vocês dão passe de ônibus? Porque é difícil
pagar condução, de onde eu moro, é duas condução. Só agora deu coragem pra eu vir,
porque minha amiga me trouxe, vim ver como é. Meu marido bebia muito, sabe, e não
tinha jeito dele querer se tratar... ele morreu, quer dizer foi numa chacina, apagaram
ele, ele e meus três filhos junto. Dizem que foi tudo mandado, por causa das drogas,
76
dívida, sei lá. Um dia cheguei em casa e era sangue pra todo lado, nas paredes, no
chão. Você percebeu que eu não tenho essa vista? (apontando para o olho esquerdo)...
Então foi naquele mesmo dia, que eles me pegaram, me colocaram dentro de um saco,
me espancaram e furaram meu olho, acharam que eu estava morta e me jogaram num
lixão. Fiquei mais ou menos três dias, fui até dada como morta, até que os catadores de
latinha viram o saco se mexer e vieram ver o que era. Quase fiquei cega.
Seu relato era contundente, ia num crescendo expondo cenas cada vez mais trágicas, sem
sobressaltos. O fato de ter nomeado como chacina e não como morte ou assassinato im-
primia um horror maior ao acontecimento. Sua história produzia em mim uma torpe
impotência, que me fazia escapar de qualquer possibilidade de escuta e reflexão clínica.
Apeguei-me ao primeiro pensamento mais coerente que me ocorreu, no momento: Este
certamente não era um caso para o CAPS ad (álcool e drogas), mas um caso de polícia, dos
Centros de Atendimento às Vítimas de Violência, da Comissão dos Direitos Humanos.
A experiência da dor indigesta e impalpável, quando expressa de diversas formas e
exposta no campo analítico pode representar uma experiência de inclusão e um porvir
de destinação para o sofrimento. Pode vir a ganhar outra dimensão, na ultrapassagem do
horror e na forma peculiar de lidar com o fato inconsolável.
Naquele momento, com a paciente e seu relato de “chacina” à queima-roupa não foi
possível compartilhar nada. Acostumada com o termo nas notícias impressas em jornais
e revistas ou nas imagens de vídeo, a presença da paciente revelava-se de outro modo,
como algo incomparável: um testemunho vivo que se imbricava na minha escuta, colo-
cando-me também no terreno do testemunho de um crime e de um sofrimento, à espera
de um lugar de acolhimento, e não de exclusão.

Referências
BERLINCK, M. T. O sonho como lugar de experiência. In: BERLINCK, M. T. Psicopatologia Fundamental. São
Paulo: Escuta, 2000.

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______. Projeto: A Reforma Psiquiátrica Brasileira: Laboratório de Saúde Mental. Disponível em: http://www.
fundamentalpsycopathology.org. Acesso em: 02 de setembro de 2011.
MANIFESTO EM DEFESA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA, 24 de agosto de 2006 – Coordena-
ção de Saúde Mental de Belo Horizonte. Documento assinado em Encontro Nacional de Saúde mental de
Belo Horizonte em 2006. Disponível em: www.picica.com.br. Acesso em 02 de setembro de 2012.
LOUGON, M. Psiquiatria Institucional: do hospício à Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
2006. Coleção Loucura & Civilização. Resenha de: Mângia, E. F. Resenha do livro Psiquiatria Institucional:
do hospício à Reforma Psiquiátrica. Cadernos de Saúde Pública v. 24, n. 3, jan-mar 2008.
QUEIROZ, E. F. A pesquisa psicopatológica na Universidade. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fun-
damental, São Paulo, v. 2, n. 3, p. 96-108, set. 1999. 77
Autistas em cativeiro. Revista Época, Edição 520, 7/05/2008. Disponível em: www.revistaepoca.globo.com. Aces-
so em: 02 de setembro de 2011.
ROSEN, G. Uma História da Saúde Pública. São Paulo: Hucitec, 1994.
Direitos humanos e interfaces
psi-jurídicas: uma pauta
ético-política para a questão dos
adolescentes “perigosos”1

Miriam Debieux Rosa


Maria Cristina G. Vicentin
Jorge Broide

Introdução
São diversos os estudos e pesquisas em nosso país que nos informam que nos corpos dos
Psicologia,Violência e Direitos humanos

jovens pobres se inscreve um imaginário vinculado à “delinquência” e à violência, e, ao


mesmo tempo, uma realidade de mortes violentas, sendo paradigmática a posição que assu-
me, nesse contexto, a juventude em conflito com a lei: alvo sistemático da vitimização letal,
de tortura e de maus tratos nas instituições de internação2 (Anistia Internacional,
2000; Adorno, Lima, Bordini, 1999; Soares, 2000; Diógenes, 1998; Olivei-
ra, 2001; Teixeira, Vicentin, 2001; Vicentin, 2005a; Bocco, 2009). A imputa-
ção sistemática da violência à juventude não incide apenas sobre os jovens infratores, mas
em estigmatizações crescentes sobre os movimentos juvenis populares, condenando-os à
78 invisibilidade ou à proscrição, reduzindo-os à imagem ameaçadora do crime e da delinqu-
ência, como é o caso dos bailes funk e do rap (Arce, 1999; Herschmann, 2000).

1 O presente texto reúne reflexões anteriores dos autores, já publicadas nos textos referidos nas referências.
2 A vitimização letal atinge, sobretudo, os jovens pobres e negros, do sexo masculino, entre 15 e 24 anos. (Waiselfisz, 2006). Podemos
dizer que “em essência, na atualidade os jovens são mais frequentemente vítimas da violência” (Adorno; Lima; Bordini, 1999, p. 22).
Passados mais de vinte anos da vigência do paradigma da Doutrina da Proteção
Integral na relação com a infância e a juventude (traduzido na legislação brasileira pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA, de 1990), as demandas sociais pelo “controle”
da criminalidade juvenil ainda têm se desdobrado em processos crescentes de crimina-
lização, como nos indica o persistente clamor pela redução da idade penal, e de pato-
logização do adolescente em conflito com a lei, os quais configuram diferentes modos
de realizar a gestão dos riscos (Castel, 1987) que a juventude pobre coloca ao campo
social. Esses processos produzem práticas de fragmentação e fixação dos adolescentes e
jovens a espaços de exclusão e controle na mesma medida da redução das políticas sociais
a eles dirigidas.
Na direção da patologização, vimos detectando uma crescente utilização do apa-
rato psi na gestão das problematizações e dos conflitos que setores da juventude vêm
colocando no campo social, como é o caso, em São Paulo, do encaminhamento de ado-
lescentes cumprindo medida socioeducativa para perícias psiquiátricas que aferem sua
periculosidade; da proposta de lei de aplicação de medida de segurança e de internação
psiquiátrica para adolescentes com transtornos mentais, que “não disporiam de recursos
internos para assimilação de um processo de ressocialização”3, da internação psiquiá-
trica de adolescentes por mandato judicial4; da aplicação de simulacros de medidas de
segurança a jovens infratores5; enfim, de argumentos a favor da ampliação dos processos
de segregação que buscam conectar transtorno mental à criminalidade pela via da peri-
culosidade e dos transtornos de personalidade antissocial (TPAS), estes últimos quase

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“intratáveis”6 (Conselho Federal de Psicologia, Associação Nacional
dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente,
2007; Frasseto, 2008; Vicentin, 2005b; Vicentin, Rosa, 2009).
Vamos apresentar rapidamente um conjunto de elementos que contribuem para a
construção da figura do adolescente perigoso e intratável:

3 Cf projeto de lei do deputado Vicente Cascione, de 2003.


4 Verificada nos maiores hospitais psiquiátricos para adolescentes do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, caracterizada pela
79
compulsoriedade, pela estipulação de prazos para a internação subordinada aos critérios jurídicos, por tempo médio de inter-
nação superior aos dos demais internos admitidos por outros procedimentos e pela acentuada presença de quadros relativos a
distúrbios de conduta (portanto, não psicóticos) (Bentes, 1999; Joia, 2006, Scisleski, Maraschin, Silva, 2008).
5 Como é o caso da internação de jovens na Unidade Experimental de Saúde, inaugurada em dezembro de 2006 no estado de São
Paulo, num convênio entre as Secretarias da Saúde, Justiça e Administração Penitenciária, destinada a oferecer atendimento para
autores de ato infracional portadores de diagnóstico de transtorno de personalidade e/ou de periculosidade, durante o cumpri-
mento de medida socioeducativa de internação em regime de contenção. (Frasseto, 2008).
1. Os pressupostos teóricos e ideológicos que fundamentam as definições de adolescên-
cia nas políticas de saúde pública via de regra pautados na psicometria, psicologia e
pedagogia, ampliados com os aportes da medicina evolutiva e que, “em sua maioria
orientam-se a conduzir a criança a uma adaptação a estes modelos construídos pela
ciência” (Telles, 2006, p. 155).
2. A transformação de comportamentos – transgressões e/ou crimes – em sinais de pato-
logia da personalidade, que evidencia dois tipos de distorção. No campo da saúde,
distorce e dispensa a leitura clínica (e psicopatológica), invalidando a intervenção
em saúde. No campo jurídico, promove a substituição da punição do ato (direito
penal do fato) pela inspeção da conduta moral do autor (direito penal do autor). Em
relação ao adolescente em conflito com a lei, nota-se que, recentemente, a noção de
transtorno de personalidade ganha centralidade na tematização das questões de saú-
de mental, configurando um novo campo problemático (Vicentin, 2005b, 2006;
Vicentin, Rosa, 2009) e coloca o jovem na condição de intratável e irrecuperá-
vel. Tais diagnósticos costumam ainda ser aplicados independentemente da história
e contexto pessoal ou social do sujeito (Frasseto, 2005; Rauter, 2003)
3. A desconsideração do contexto em que os diagnósticos são realizados, especialmente
quando há institucionalização e atravessamentos pelos discursos e instituições ju-
rídicas. Grande parte dos diagnósticos realizados nos jovens em conflito com a lei
ocorre em contexto jurídico, de acusação criminal ou em situações de instituciona-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

lizações em situação precária. A situação de institucionalização e todos os estudos


referentes a ela também têm sido desprezada como elemento constitutivo de um
modo de apresentação do jovem diante dos peritos responsáveis pelo diagnóstico.
Quando declaramos importante estar atento ao tipo de clientela e suas condições
sociais, seu tipo de demanda, não é porque haveria uma psicologia para cada condi-

6 Os TPAS no campo da psicopatologia são considerados anomalias do desenvolvimento psicológico, e não doenças. Este tipo de
diagnóstico assenta-se junto à criação dos termos psicopata, sociopata, transtornos de conduta, delinquência juntamente com
conceitos tais como personalidade criminosa, personalidade psicopática, propensão ao Delito que estão sendo revistos pela psi-
quiatria. Os termos partem da concepção de K. Schneider (1923) sobre as personalidades psicopáticas observadas em adultos,
80
particularmente os “frios de ânimo” ou desalmados. A noção sustentava que estas características não são diagnosticáveis como
doença psiquiátrica, mas são traços de caráter anormais – fora da norma – constitucionais e inatos, pré-existentes às vivÊncias,
e considerados permanentes do indivíduo. Sendo assim, não caberia ao médico, portanto, uma atuação frente a estas pessoas
e seus comportamentos. Supõe, como já vinha de Lombroso (1895), que o homem “nasce” delinquente e está determinado por
causas e características morfofisiológicas, sendo intratável e irrecuperável. A figura do sociopata ou do indivíduo acometido de
Transtorno Antissocial de Personalidade é indicativa da crença em uma determinada essência não humana. Trata-se de um in-
divíduo incapaz, segundo os pareceres criminológicos, de culpa e arrependimento; desta forma, estariam como que apartados
do restante do humano, com um psiquismo próprio e degenerado. Essa posição desconsidera que as leis são fundamentadas na
cultura e comportamentos convencionados na diversidade dos grupos humanos (HOENISH; PACHECO, 2002).
ção social. Mas há interferências evidentes que dizem respeito à forma de relação que
cada classe social tem com os representantes da saúde, a priorização de seus objetivos
e a forma de expressar suas demandas de ajuda, para as quais nem sempre o psicólogo
está apto à escuta. A questão que se coloca não diz respeito à elaboração de novas
teorias, mas à maior necessidade de o psicólogo qualificar-se para detectar as sutis
malhas da dominação e não confundir seus efeitos com o próprio do sujeito (Rosa,
2004).
4. A associação do diagnóstico psiquiátrico/psicológico à periculosidade transforma
a periculosidade, uma noção jurídica, em diagnóstico clínico e a transpõe de adultos
para adolescentes.
A noção de periculosidade, que foi uma das bases da configuração de uma psiquia-
tria criminológica, passou a ser intensamente problematizada nos últimos trinta
anos. A consistência científica do conceito foi questionada pela ruptura do nexo
causal entre enfermidade e periculosidade; pelo questionamento da “certeza diag-
nóstica” e da competência e capacidade preditiva da psiquiatria no tocante à peri-
culosidade e pela “crise e dissolução do paradigma positivista-organicista”, com o
desenvolvimento dos enfoques sociais e interacionistas no tocante ao sofrimento
mental (Leonardis, 1998; Pitch, 2003). Com o acúmulo desses elementos crí-
ticos, o debate psiquiátrico evidenciou que a periculosidade é uma noção jurídica e
não um diagnóstico clínico ou médico.
No entanto, em pesquisa em torno das avaliações psicológicas realizadas a pedido

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do poder judiciário para decisões em torno da execução da medida socioeducativa,
Frasseto (2005) conclui que a periculosidade, não obstante tratar-se de conceito em
crise na criminologia e absolutamente não operacional do ponto de vista jurídico,
é parte significativa dos argumentos constantes nas avaliações sugestivas da neces-
sidade de internação. Essa previsão torna-se mais problemática quando se trata de
adolescentes, pois diversos e consistentes estudos sobre adolescência indicam que
a patologização desses sinais na adolescência tende a precipitar o comportamento
indesejado.
81
5. A utilização de diagnósticos psiquiátricos em que fica implícita a ineficácia de uma
atenção clínica ou de uma ação educacional. A colocação do sujeito como portador
de “transtorno de personalidade”, traço “quase incurável”, cria obstáculos a manu-
tenção dos laços sociais assim como dificulta formar novos laços. Nessa posição
de expulso, o sujeito perde sua visibilidade na vida pública, não tem voz, entra no
universo da indiferença. Trata-se de uma estratégia de controle social que lança os
jovens na posição de vida nua: a vida que pode ser descartada, pois foi empurrada
para fora dos limites do contrato social e da humanidade (Agamben, 2002).
Na clínica psicanalítica, entre outras, o ato diagnóstico é descritivo, referido à mo-
dalidade da relação transferencial que se estabelece e, necessariamente, posto em
suspenso. Portanto, não pode ser considerado procedimento conclusivo, destacado
e anterior à intervenção.

Em síntese, destacamos que a problemática composição do ato infracional com o trans-


torno mental vem, com esses instrumentos, construindo argumentos tanto para modi-
ficações no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (referentes ao tempo de aplica-
ção da medida ou à proposição do tipo de medida), quanto para a produção de práticas
dirigidas ao autor de ato infracional que são frontalmente contrárias à garantia de seus
direitos e aos paradigmas (do ECA) da Reforma em Saúde Mental. Tais argumentos diri-
gidos ao campo da saúde mental acompanham uma tendência à patologização de setores
da juventude pobre, isto é, compõem uma forma de encobrir, como doença mental, o
desinvestimento da sociedade em relação a esses jovens.
Outro encobrimento a destacar é a necessidade de problematizar as diretrizes
terapêuticas sempre que estejam atreladas à lógica individualista ou quando busquem
responder às exigências de defesa social e ampliar o olhar e a ação para a complexa e,
Psicologia,Violência e Direitos humanos

muitas vezes, restrita trama na qual esses jovens se inserem socialmente. Nesse aspecto,
nenhuma instituição isoladamente – mesmo a de saúde mental – é capaz de oferecer
alternativas para que os jovens saiam desse “destino”. Somente uma articulação coletiva
entre diversos atores sociais e instituições que acompanhem esses jovens poderá criar al-
ternativas a esse circuito (Bentes, 1999; Joia, 2006; Scisleski, Maraschin, Sil-
va, 2008; Vicentin, Rosa, 2009).
A psiquiatrização dos adolescentes caminha, assim, em consonância com o pa-
radigma emergente de gestão dos chamados indesejáveis e perigosos, marcado pela ra-
dicalização da política punitiva como resposta ao aumento da desigualdade social, da
82 violência e da insegurança (Kolker, 2002). Se a juventude concentra parte signifi-
cativa da violência física e das dinâmicas criminais hoje vivenciadas pelo conjunto da
sociedade, o saldo de tal lógica é previsível e conhecido: cada vez mais os jovens e as
jovens do país veem-se associados também – e antes de tudo – à violência e expostos,
por isso, à desconfiança pública.
O debate público sobre as políticas e iniciativas governamentais e sociais que de-
veriam beneficiá-los é reduzido aos seus aspectos de segurança. Para amplos setores da
sociedade e da mídia, falar em “políticas públicas de juventude” passa a ser, então, falar
simplesmente em estratégias de controle. Tal dinâmica não pode levar a outra coisa que
não à recusa por parte da juventude das soluções que lhe são propostas pela sociedade
política e adulta. Além disso, amplia o seu distanciamento e dificuldades de inserção e
participação social positivas, configurando, assim, o círculo vicioso de que falamos (INS-
TITUTO DA CIDADANIA, 2004).
Nesse contexto, onde se associam amplamente juventude e violência, consideramos
relevante apontar, problematizando com as concepções da psicanálise, essas associações:
violência-juventude, patologia-juventude, violência-patologia. Uma ampla discussão dos
vários aspectos que produzem esta associação não poderá ser desenvolvida neste mo-
mento, mas queremos realçar a amplitude das questões envolvidas que questionam a sim-
plificação arbitrária de uma suposta periculosidade intrínseca ao jovem.

Adolescência, Ato e Violência:


contribuições da Psicanálise
As concepções acima adotadas amparam a construção social da figura do adolescente
perigoso e intratável, coesa ao imaginário social relativo ao adolescente, e fundamentam

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práticas sociais e políticas em nosso contexto contemporâneo. Vamos problematizar a te-
mática da adolescência e as dimensões do ato, assim como a concepção de violência, para
exemplificar como outros pressupostos, no caso a psicanálise, podem contribuir para a
construção de políticas públicas para a Juventude.

O Crime e suas Incógnitas


Campo complexo e abordado sob inúmeros ângulos – em várias ciências, na filosofia, so-
83
ciologia, psicanálise, literatura e na política – é a questão do crime, suas motivações, suas
possibilidades. O campo jurídico desenvolve-a com estratégias específicas. Essa questão
escapa às pretensões deste artigo. Apenas pretendemos assinalar ao leitor que há outras
leituras sobre o crime que ultrapassam a polaridade vítima e agressor, sendo este últi-
mo aquele que tem personalidade antissocial, ou que atribui versão patológica ao crime.
Apresentamos a versão psicanalítica, escolhendo como ponto de partida o diálogo en-
tre Einstein e Freud em torno da guerra, travado em 1932, véspera da Segunda Guerra
Mundial e da ascensão de Hitler (1933): “Existe alguma forma de livrar a humanidade da
ameaça da guerra?”, pergunta Einstein a Freud (Einstein& Freud, 1932/2004, p. 1).
Podemos substituir o termo guerra por violência. Freud é convocado por Einstein
como um especialista “das dimensões obscuras regiões da vontade e do sentimento hu-
mano, situados mais ou menos fora dos objetivos da política” (p. 1). No entanto, os funda-
mentos teóricos, metodológicos e éticos da psicanálise pretendem ultrapassar a dicotomia
indivíduo-sociedade e as hipóteses de influência mútua. A dicotomia indivíduo-socieda-
de cria uma falsa ilusão de autonomia. O Sujeito do inconsciente não é intrapsíquico,
nem adjetivado por características x ou y, nem é do bem ou do mal. É constituído a partir
do desejo do Outro, recriado a cada relação com o outro e depende da modalidade de
laço social. Esse laço discursivo pode fazer surgir o melhor ou o pior. E o pior pode estar
travestido de boas intenções, de saber o que é o bem do outro.
No contraponto razão–lógica, em que o eu que conhece não se interroga e profere
verdades, a sexualidade no sentido freudiano comparece para interrogar e dimensionar a
existência. Ao retirar o caráter de doença da manifestação histérica, a psicanálise mostra
que não há apenas um organismo doente, mas que o sintoma é uma modalidade de ex-
pressão do sofrimento na relação com o outro, é mensagem da conflitiva pessoal, familiar
e sociopolítica-libidinal – podemos abordar desta forma também a violência. Assim, falar
Psicologia,Violência e Direitos humanos

de sujeito é falar de uma concepção ético-política e não de uma faceta do indivíduo recor-
tado em bio/psico/social. O sujeito é produto e produtor da rede simbólica que caracteriza
o que chamamos de social. A violência não se resolve com a submissão de uma das partes,
mas com a transformação que leve em conta o conflito propiciador dessa manifestação.
Outro aspecto é debatido por Freud a partir das perguntas: “É possível tornar o ho-
mem à prova das psicoses do ódio e da destrutividade? Por que é tão fácil inflamar nos
homens o entusiasmo pela guerra?”. As perguntas não se referem aos criminosos, mas
ao homem comum chamado para a guerra. Freud responde localizando a importância
da agressividade. Há dois tipos de manifestação: aquelas que tendem a preservar e a unir
84
– que ele denomina pulsão de vida– e aquelas que tendem a destruir e matar, as quais
agrupa como pulsão agressiva ou destrutiva. Entretanto, alerta: “Não devemos ser dema-
siado apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal. Nenhuma dessas pulsões
é menos essencial do que a outra; os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou
mutuamente contrária de ambos. [...] Assim, por exemplo, o instinto de autopreservação
certamente é de natureza erótica; não obstante, deve ter à sua disposição a agressividade,
para atingir seu propósito. E a origem da bem conceituada consciência está no desvio da
agressividade para dentro [...] De forma que, quando os seres humanos são incitados à
guerra ou violência podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar. [...] En-
tre eles está certamente o desejo da agressão e destruição facilitada por sua mistura com
outros motivos de natureza erótica e idealista – por exemplo, no caso das crueldades da
Inquisição – é como se os motivos idealistas tivessem assomado a um primeiro plano na
consciência, enquanto os destrutivos lhes emprestassem um reforço inconsciente. Ambos
podem ser verdadeiros” (Einstein; Freud, 1932/2004, p. 11). Conclui que: de nada
vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens, que não são negativas em si.
Outras, pretensamente referidas a ideais nobres também encobrem aspectos destrutivos.
Encerra criticando o pacifismo de Einstein.
Enfim, não é possível eliminar o mal-estar decorrente do processo civilizatório.
Muitos desenvolvimentos desse tema estão em Freud, Lacan e outros autores podem ser-
nos úteis nesta discussão. Por ora, apenas reforçamos a complexidade do tema e o excesso
de simplificação quando se aponta a relação do indivíduo com o crime cometido estrita-
mente relativo à personalidade ou ao caráter com características patológicas.

A Adolescência e as Dimensões do Ato


A adolescência para a psicanálise não é caracterizada por comportamentos ou persona-

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lidade, mas refere-se a um intenso trabalho psíquico, subjetivo e relacional. Este é geral-
mente desencadeado pela entrada na puberdade, trabalho necessário para recolocar a
criança para além do espaço familiar, possibilitando uma posição frente aos impasses no
encontro com o outro, particularmente com o Outro sexo, e engajamento nos campos
social e afetivo-sexual, bem como capacidade de escolha. O processo é trabalhoso e varia
muito em intensidade, momento disparador e consequências na interação familiar, amo-
rosa e social. Assim, há várias adolescências – cada adolescente expressa uma adolescên-
cia singular – e não uma adolescência, um único perfil que nos faz crer que conhecemos 85
antecipadamente o jovem.
A atenção à adolescência como um período particular da vida que reúne caracterís-
ticas específicas é relativamente recente na história político-social, iniciada na moderni-
dade. Ruffino (1998) concebe a adolescência como a produção de um processo subjetivo
tecido na modernidade para suprir as falhas nas estruturas sociais em atribuir-lhe lu-
gar condizente a sua condição de sujeito desejante. O processo da adolescência tem raiz
na ausência de lugares sociais pré-definidos para o jovem e na complexidade crescente
da entrada no mundo do trabalho, exigindo qualificação e longa formação escolar, que
adiam a entrada do jovem nesse mundo e exigem definições quanto aos valores e regras
que adotará, além de saber quem é e o que espera da vida, para poder escolher seu modo
de inserção social. Definições difíceis quando a referência ao pai sofre abalos, caído de
um pai ideal para um pai mortal, o que deixa o adolescente à mercê não mais da morte
simbólica, mas da morte real.
Sendo absolutamente Outro, diferença radical da qual o inverso é a identificação, o
pai, pelo golpe de força de uma semelhança que nenhuma identificação transcende, mas-
cara ou reduz, cessa de ser o representante único da ordem simbólica. Quando o filho se
mede ao pai, o corpo do pai entra em cena, não mais mítico, mas tomado em uma cadeia
na língua, e da qual o nascimento e a morte são as pontuações reais. O pai (destituído) é
designado, ao mesmo título que o filho, como elo na cadeia das gerações, garantidor pro-
visório e parcial da permanência do Nome na cadeia dos significantes (Rassial, 1997).
Desta forma, novas operações se processam para fazer valer outro discurso, além do
discurso do pai, operações que possibilitam o pertencimento e reconhecimento do jovem
como membro do grupo social e que dependem das formas, condições e estratégias ofe-
recidas pelo grupo social. É reatualizada a cena da sedução, que encena o assujeitamento
ao desejo do Outro, agora não mais tematizado pelo desejo da mãe ou pela Lei do pai,
Psicologia,Violência e Direitos humanos

mas pela organização social (nova versão do pai) poderosa, pois desencarnada, mas ainda
discurso, com seus ditos e não ditos (Rosa, 2002a). Convocado a saber sobre si mesmo,
o sujeito “vê-se obrigado a substituir as formações coletivas das que se acha excluído por
suas próprias formações sintomáticas” (Freud, 1921/1974, p. 103).
Desta forma, a adolescência é “o momento no qual o fantasma vai se constituir em
versão de uma tentativa de representação do movimento de alienação/separação do sujei-
to na relação com o Outro sexo” (Poli, 2003, p. 91). Nessa perspectiva, como operação
psíquica, a adolescência é uma tentativa de enlace do real, do imaginário e do simbólico,
e o sintoma no tempo da adolescência representaria o quarto elo, aquele que sustenta-
86
ria – provisoriamente, ou não – uma posição discursiva do sujeito, estabelecendo lugares
para o desejo e o gozo, diz a autora. Poli (2003) nos apresenta a adolescência como uma
operação psíquica, um dos tempos lógicos do sujeito, tempo em que ele estaria às voltas
com a construção de uma narrativa sobre sua origem, incluindo a alienação e a separação
do campo do Outro.
A consequência disso é que “uma narrativa das origens não é nem individual, nem
social” (Poli, 2003, p. 84), pois ela se situa no ponto de encontro entre a clínica social
e a psicopatologia individual – as narrativas de origem podem ser abordadas do lado da
cultura (ou do Outro) ou do lado do sujeito. Assim sendo, consideramos que os proces-
sos do adolescente não se referem apenas a certa estruturação subjetiva fixada e a priori,
mas revisitada a partir da cena social, cujos discursos constituem formas de laços sociais,
alguns perversos ou perversores. O adolescente reinscreve-se, superando, conservando e
revelando o histórico do sujeito e conferindo-lhe novas significações. As ações ou aciden-
tes, realizações, frustrações, encontros, desencontros, promovem reorganizações estrutu-
rais importantes (Rosa, 2002a).
Nessa perspectiva, o adolescente assemelha-se a um imigrante que ainda não en-
controu seu próprio lugar. Como este, seu dilema situa-se entre a ânsia identitária, uma
identidade social pela qual possa ser reconhecido e que o estabilize no laço com o outro,
e a ânsia desejante, que lhe abre novas experiências e possibilidades até então moduladas
por promessas de adiamento. Esse processo se dá no laço social, laço discursivo que nesse
momento de constituição subjetiva pode promover mudanças estruturais e/ou vincu-
lações a laços sociais perversos. Nesse sentido, Aulagnier (1979) afirma que o discurso
social projeta sobre o infans a mesma antecipação que é própria do discurso parental;
o grupo pré-investirá o lugar que o sujeito ocupará, na esperança de que ele transmita,
de forma idêntica, o modelo sociocultural. O sujeito deve encontrar nesse discurso re-
ferências que lhe permitam se projetar no futuro para que o afastamento desse primeiro

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suporte não se traduza em perda de todo suporte identificatório.
Consideramos a adolescência como a operação que expõe a cena social presente
na base da cena familiar, até então encarregada de fazer operar as funções maternas e
paternas para a constituição subjetiva. Exercer essas funções esteve articulado aos lugares
fálicos atribuídos, ou não, aos membros daquela família, daquela classe social, naquele
momento cultural. Sua eficácia não é independente desses fatores, pois a família é, ao
mesmo tempo, o veículo de transmissão dos sistemas simbólicos dominantes e a expres-
são, em sua organização, do funcionamento da classe social, do grupo étnico ou religioso,
87
em que está inserida (Rosa, 2002a).
A adolescência toma características particulares quando as perspectivas sociopolí-
ticas e econômicas dificultam o acesso, de modo diversificado entre os grupos sociais, ao
mundo produtivo e à independência econômica. Esse contexto social produz desdobra-
mentos importantes, a começar na família, onde se processa um distanciamento, ou mes-
mo uma quebra da identificação da geração anterior com a atual, dinâmica relacional que
gera ambiguidade dos pais em relação à própria posição em relação aos filhos. O discurso
social incide de modo mais intenso nas situações em que as famílias têm suas posições
desqualificadas enquanto transmissoras, evidenciando que a diferença de classes e de lu-
gar na estrutura social tem desdobramentos fundamentais no discurso sobre o jovem.
Não é indiferente o fato de o discurso social ser enunciado por pais que, marcados
pela divisão entre desejo e lei, têm o gozo no plano da fantasia e estão implicados na
relação com o filho, podendo lhes transmitir os significantes de sua filiação e sexuali-
dade. Em relação aos jovens de famílias marginalizadas, constata-se a desvalorização e
apagamento do discurso familiar, desautorizado pelo discurso social, intermediado pela
voz da mídia, da polícia, do promotor, a emitir enunciados identificatórios carregados de
predições desqualificadoras e generalistas como “é um menino da favela, da gang”, etc.
Para esses jovens, em oposição aos ditos de família, é oferecido apenas um discurso social
sem polissemia, sobre um jovem abstrato, que não lhes diz respeito, que não é “filho”. O
discurso, carregado de expectativas culturais, qualifica os seus atos de modo que pequenos
delitos – uso de drogas, desobediência e brigas – sejam qualificados como crimes, como
sinal de delinquência prevista ou de personalidade antissocial.
A relação do jovem com transgressões à ordem social e à política vigente percorre
uma trajetória histórica que fez dele tanto massa de manobra nas guerras, como perso-
nagem central em transformações políticas e sociais. Deve-se situar a função do ato na
Psicologia,Violência e Direitos humanos

adolescência – momento de um sujeito em constituição – e seus efeitos no campo social


em seus aspectos ideológicos e políticos. Em trabalhos anteriores, abordamos a caracteri-
zação do ato (Rosa, 1999, 2009), observando que muitas vezes a criança ou o jovem não
se reconhece no que faz; demonstramos que fica perturbado pelo estranhamento e/ou
sensação de impotência frente à própria ação. Esta se revela seja na alegação de inocência
ou acidente, “foi sem querer”, ou na sua simples negação.
O estranhamento é ligado à angústia de se saber incapaz de demonstrar a existência
por si mesmo, à precariedade da identidade, ao estado de desamparo primordial do su-
jeito que marca a condição humana de fazer do laço com o outro a sua marca distintiva,
88
condição de existência uma “necessidade” simbólica. Deve-se, também, ao fato de que as
ações, em várias circunstâncias, podem ser efeito de repetição, algo que se impõe ao sujei-
to como um azar do destino, à revelia do ego, pois regulado pela articulação significante
que circula entre as gerações e ofusca a divisão eu-outro. Presentifica a repetição, definida
aqui como agir algo não elaborado da história (Rosa, 2009).
A questão é que a referência ao Outro, ao simbólico, ainda que norteie o sujeito, não
é suficiente para marcar uma posição a partir de seu desejo e construir uma trajetória sin-
gular. É o ato que dá estatuto subjetivo, funda, legitima a subjetividade, lembra Melman
(1992). O ato atravessa o plano simbólico e cria uma cena no real, um acontecimento,
que marca a sua presença encenando seu desejo e abrindo a possibilidade de ser falado
pelo Outro a partir do enigma que lança e busca enlaçar o outro. Trata-se de um apelo de
pertencimento ao campo social com uma posição particularizada. O pertencimento pode
se mostrar antagônico à aposta sobre os ideais do campo social. A desidealização das
referências leva o sujeito a ter que inventar suas próprias soluções, e o que se apresenta é
que a possibilidade de encontro com o Outro se dá, paradoxalmente, através da ruptura,
através do ato, que pode ser tomado como violento, mas que é o modo pelo qual o sujeito
tenta salvar sua singularidade.
O ato parte de uma intenção, mas, uma vez desencadeado, tem efeito imponderável
no próprio sujeito, no objeto e no discurso do Outro sobre si. Uma vez iniciado, pode de-
sencadear, em si e no outro, efeitos imprevistos quanto ao grau e intensidade de emoções
e agressividade que desperta. Ou, dito de outro modo, o ato, qualquer ato, pela distância
do eu e proximidade à pulsão, traz sempre um risco e está sempre ligado à sexualidade,
em sua qualidade infantil e perversa. Dessa forma, o sujeito está ausente de seu ato que,
por sua vez, cria uma cena no real que encena seu desejo; a implicação do sujeito com o
ato se dá a posteriori, ou seja, quando falado pelo Outro pode retornar ao sujeito encade-
ado, associado a algo de seu desejo.

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O importante desta discussão para o tema deste capítulo é que o efeito do ato no
discurso social transcende ao ato em si ou sua consequência e diz respeito ao lugar que
aquele que age ocupa no desejo daquele que profere o discurso. Assim, dependendo da
posição social do jovem, as qualificações serão diversas; o discurso, carregado de expecta-
tivas culturais, qualifica diferentemente um ato ou seu autor como criativo, desobediente,
delito, como sinal de delinquência. Assim sendo, destacamos incisivamente que o que
muitas vezes é definitivo para nomear o ato como delinquente diz respeito menos ao ato
em si, à sua gravidade, do que a leituras sociais preestabelecidas sobre o autor (ator) do
89
ato. Essa questão está em jogo na criminalização ou patologização perpétuas no caso de
adolescentes autores de atos infracionais.
Reflexões ético-políticas sobre a relação
entre os campos Psi e Jurídico
A garantia de bem-estar social, quando este é tomado como a eliminação do conflito, é
uma ilusão perigosa. Em nome dessa ilusão e da eliminação do mal-estar, pode-se exercer
a violência institucional que exige sacrifício de todos – ou, mais exatamente, dos mais
sacrificáveis (Agamben, 2002) – que pagam o preço da civilização. Eleger sacrificáveis
desvirtua a condição da civilização de suportar o mal-estar das diferenças, que obriga a
estabelecer laços sociais para criar instâncias novas. O evitamento do conflito é operado
por estratégias de ilusão, pela ocultação dos processos e pela identificação. Domina-se de
formas mais sutis que a guerra, a guerra sem nome que se instala no campo social, com
novas figuras de “soldados”.
Cria-se uma modalidade de ilusão que visa a uma sociedade perfeita com suposta
igualdade, que persegue o bem-estar social. Segundo Guidens (2002), isso resulta em
grandes contingentes de segregados da vida social, já que facetas humanas que possibili-
tam criar um sentido para a vida são excluídas sob o nome de loucura ou criminalidade.
Nessa direção, Bauman (1988) analisa o atravessamento do bem-estar social na era do
consumo, pela produção de estranhos – definidos como aqueles que não consomem. Para
o autor a individualização do crime e a ideia de classes sociais inteiras tomadas como
perigosas geram a articulação do bem-estar às prisões.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Cabe-nos também criticar o apelo excessivo às leis como recurso para lidar com
conflitos sociais. Tomemos Zizek (1992): De uma maneira mais precisa podemos dizer
que uma fantasia ideológica vem tapar o buraco aberto pelo abismo, pelo cunho infunda-
do da lei social. Este buraco é delimitado pela tautologia “a lei é a lei”, fórmula que atesta o
caráter ilegal e ilegítimo da instauração do reino da lei, de uma violência fora da lei, real,
em que se sustenta o próprio reino da lei.
O campo social é um campo de forças e interesses antagônicos, complexo e confli-
tuoso. No entanto, ao lidar com esse contexto observam-se a fragmentação e a oposição
90 entre os discursos que se rivalizam pelo poder sobre a criança, o adolescente, a família;
promovem-se, por vezes, relações inconsistentes ou segmentam-se as práticas de inter-
venção social, seja no campo da saúde, da educação ou no campo jurídico. O conheci-
mento sobre os indivíduos ignora o contexto de produção e impõe patologias, retirando
do sujeito a efetividade do seu discurso e de sua denúncia. Cuidar do sofrimento deslo-
cado dos impactos do sofrimento social, da exploração social, cria uma série de distorções
que possibilitam que políticas mesmo quando gestadas com objetivos progressistas sejam
transformadas em práticas opressivas. E os discursos da saúde podem associar-se aos da
justiça para calar o pathos do sujeito e garantir aparente bem-estar – as práticas e discursos
sociais tornam-se violentos, como vimos na criação de imaginários sobre a adolescência.
Neste contexto, trata-se de reafirmar uma pauta ético-estético-política para os pro-
fissionais e pesquisadores psi, estrategicamente orientada para a realização dos direitos
de quaisquer homens ou, ainda, para a redução de suas violações, especialmente no to-
cante à infância/juventude, nas seguintes frentes de batalha:
1. No plano dos discursos e da produção de sentidos: devemos frear todas as produções
que comprimem e reduzem o espaço de debate em torno dos conflitos, tratando-os,
por exemplo, apenas na sua faceta criminal. Como nos diz Wacquant (2008), é ne-
cessário um estrito “controle de fronteiras”, na forma de uma rigorosa crítica lógica
e empírica, em relação às teorias de “lei e ordem” tais como as que vicejam nos EUA.
Os enunciados do imaginário social atual e dos discursos cientificistas atuam sobre
o adolescente e produzem um modo de evasão da responsabilidade da estrutura
social. Ler o discurso sobre a violência no seu avesso significa inverter o enunciado
do imaginário social. Nesse caso, a violência funda-se na ruptura dos fundamentos
do contrato social, na perda de um discurso de pertinência e de um lugar social que
promova gratificação narcísica que, aliada à exclusão dos ideais e valores do grupo,
produz o rompimento dos laços sociais e tem efeitos disruptivos no sujeito.
2. No front das práticas psi, principalmente daquelas que se dão na interface com os

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sistemas de justiça, de forma a impedir a multiplicação de medidas que ampliem a
rede penal e propor, onde for possível, uma alternativa social, sanitária ou educativa
(Wacquant, 2008). Trata-se, principalmente, de realizar a problematização do
campo psi quando este opera como fator de legitimidade para as tecnologias coer-
citivas. Ou seja, evitar qualquer utilização das práticas psicológicas a favor de uma
criminologia clínica entendida como aquela que se ocupa do diagnóstico e do prog-
nóstico da conduta do jovem, centrada nas “disfunções” sociais ou pessoais, como
base para legitimar/justificar a sanção. E trabalhar a favor de uma clínica da vulne-
91
rabilidade, como nos sugere Zaffaroni (2003), que busque identificar a etiologia da
vulnerabilidade individual ao sistema penal e que permita desenvolver saberes que
colaborem para a redução dos níveis de vulnerabilidade.
3. Na consolidação de uma dimensão ética. É necessário trabalhar para a redução de
violências e para a ampliação dos componentes solidários da vida em comum, mas
sem perder de vista a dimensão instável e conflituosa que os jovens autores de ato
infracional protagonizam. Ou seja, nosso compromisso é dar lugar às forças ins-
tituintes e de resistência que crianças e adolescentes forjam de diferentes modos:
transgressões, sintomas ou invenção de novas formas de vida.
4. No estreitamento dos laços entre ativistas e pesquisadores que trabalham no “front
penal e no front social” (Wacquant, 2008, p. 104). Entendemos que existem es-
paços para pensar as relações entre os sistemas assistenciais, os de saúde mental e
os de justiça de modo a que eles não se coloquem como mútua fonte de legitimação
ou a que as ações de saúde mental façam a função de continuum disciplinador com
o cárcere no centro. A modificação das condições de produção de vulnerabilidade
é uma operação em que vários atores devem estar envolvidos. Sistema de justiça
e sistema de saúde devem ser disjuntos quando se trata de definir as modalidades
legais (penais e de atribuição de medida) pelas quais um adolescente deve ser res-
ponsabilizado, mas devem estar juntos na direção dos processos de socioeducação,
de reabilitação psicossocial e de desinstitucionalização.

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Zaffaroni, E. R. Criminología: Aproximación desde un margen. Bogotá: Temis, 2003.

94
Violência e Direitos Humanos:
O analista face a um paradoxo

Caterina Koltai

Freud, assim como insistiu no fato de que a psicanálise não era e nem poderia ser uma
concepção de mundo, também se recusou a reduzi-la a um mero ramo da medicina, tendo
sempre insistido, como lembra Plon (2002), em alargar o campo de competência de sua
descoberta. Ele sempre se interessou pelo mundo em que vivia e não faz sentido imaginar
que ignorasse a política de seu tempo, tanto que não só não deixou de tirar suas conclu-
sões da Primeira Guerra Mundial, como tampouco ignorou a ameaça representada pela
barbárie nacional socialista e aquela que, de certo modo, vinha embutida no bolchevismo.
Se começo lembrando disso é porque um título como este que nos foi proposto
pelo Conselho Regional de Psicologia nos obriga, enquanto analistas, a enveredar pelo
caminho aberto por ele , o de nos debruçarmos sobre o mundo em que vivemos, no qual
violência e direitos humanos vêm sendo cada vez mais estudados por vários campos do
conhecimento. Um tema como esse desafia o analista, não apenas porque este, enquanto
cidadão, está inserido na polis, mas também porque ele não pode pretender nada querer

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saber do social e político que o afeta, assim como aos seus pacientes.
No que diz respeito à violência, Freud, em vários de seus textos, acenou para o fato
de que a civilização é um mero verniz atrás do qual se esconde um bando de assassinos.
De fato, de Totem e Tabu (1914), no qual chamou nossa atenção para o fato de que a hu-
manidade nasceu de um assassinato, a Moisés e o Monoteísmo (1939), onde nos alertava
para o fato que o genocídio e a barbárie fazem parte da humanidade, passando por Mal
estar na civilização (1930) ele nunca deixou de se debruçar sobre a violência que o huma-
no carrega em si tal qual um vírus adormecido. 95
Enquanto analistas, não podemos deixar de reconhecer que a barbárie faz parte da hu-
manidade e a famosa besta humana, de Brecht, nada tem a ver com a animalidade e sim com
o homem habitado pela pulsão de morte, o que me leva a desejar abordar esse tema com o
máximo cuidado, evitando abordá-lo a partir de uma posição moralista de antiviolência ,
caindo no politicamente correto, visto que tal postura não faz, a meu ver, avançar o debate.
Não basta condenarmos a violência, é preciso dar um passo a mais e reconhecer não só que a
violência é demasiadamente humana, como também que o moralismo antiviolência pode se
transformar num discurso anestesiante que visa convencer os oprimidos a não se rebelarem
(ainda que seja bem sabido que não existe revolução sem violência), convocando-os a supor-
tar suas dores e quando isso é realmente impossível, sugerindo-lhes se transformarem em
vítimas. Espero conseguir, ao longo do texto, dar conta da difícil tarefa a qual me proponho.
No que diz respeito mais especificamente aos direitos humanos, o analista não pode
se limitar a reconhecer sua importância e se manifestar a favor deles, pois, como afirmou
Alain Didier Weill num Colóquio realizado em 2008 na UNESCO, ao se deparar com
esse tema, ele se vê, necessariamente, exposto a uma série de contradições de ordem tanto
histórica, quanto estrutural.
No que diz respeito às contradições de ordem histórica, convém lembrar que a psicaná-
lise é tributária e filha do Iluminismo que engendrou os direitos humanos segundo os quais
todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. Essa herança segundo a
qual os humanos pertencem a uma mesma família universal, não só permitiu o surgimento de
uma nova cidadania e de uma nova subjetividade, como também deu origem a novos signifi-
cantes − como os de liberdade, igualdade e fraternidade − que vêm se banalizando e perdendo
o poder subversivo que tiveram um dia, e é importante que tal universalidade possa deixar de
ser apenas o de uma ideia para ser o de uma experiência acessível a cada humano.
Essa experiência acessível a cada humano nos remete à segunda contradição mencio-
nada pelo autor, a estrutural, que diz respeito ao sujeito dividido que lá onde o isso era terá
Psicologia,Violência e Direitos humanos

que advir. O que isso quer dizer? Segundo o autor, não podemos nos esquecer que existe na
psique uma voz, a do superego, que, independentemente do contexto político, diz o mesmo
que os tiranos, de que não existe nem liberdade, nem igualdade, nem fraternidade. Essa voz
do superego ensina ao psicanalista que o verdadeiro inimigo dos direitos humanos não re-
side exclusivamente nos regimes totalitários, mas no próprio sujeito, e se assim é , é porque
podemos supor que esse inimigo interno faz com que o sujeito humano possa ter mais medo
da liberdade, do direito a existir do que da injunção de não fazê-lo e renunciar a esse direito.

Referências
96
FREUD, S. Totem et Tabu. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1977.
______. Moïse et le monothéisme. Paris: Gallimard, Idées, 1972.
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PLON, M. Da política e o mal-estar na política ao mal-estar na política. In: Em torno do mal-estar na política.
São Paulo: Escuta, 2002.
WEILL, A. D. Psychanalyse et Droits de l’homme. Disponível em: www.oedipe.org/fr. Acesso em: 28 de nov. de 2008.
Psicologia,
ditaduras e justiça

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97
A VERGONHA E A INTERPELAÇÃO
DO ESTRANGEIRO1

Paulo Endo

Primo Levi (1990) atribuíra a si mesmo e a alguns dos que sobreviveram às atrocidades
nos campos de concentração o sentimento escuro da vergonha. Mais de uma vez disse-
-nos que a vergonha dos que sobreviveram se devia à experiência de ter testemunhado
um tipo de implicação impressionante de alguns diante das ameaças de morte, da hu-
milhação e da indignidade iminente. Em função disso, não cansou de repetir que os so-
breviventes do holocausto não eram as autênticas testemunhas da shoah. Fazendo assim
menção direta àqueles que morreram corajosamente nos campos.
Cito Primo Levi (1990, p. 47) sobre esses, as verdadeiras testemunhas:
Morreu Chaim, relojoeiro da Cracóvia, judeu piedoso, que a despeito das dificulda-
des de linguagem se esforçara por me entender e por se fazer entender, explicando a
Psicologia,Violência e Direitos humanos

mim, estrangeiro, as regras essenciais de sobrevivência nos primeiros dias cruciais de


encarceramento; morreu Szabó, o taciturno camponês húngaro, que, tendo quase dois
metros de altura, tinha mais fome do que todos, mas que, enquanto teve forças, não
hesitou em ajudar os companheiros mais fracos a se erguerem e seguirem adiante; e
Robert, professor de Sorbonne, que irradiava coragem e confiança ao redor de si, falava
cinco línguas, se consumia em registrar tudo em sua memória prodigiosa, e, caso vives-
se, teria respondido aos porquês que eu não sei responder; morreu Baruch, estivador
do porto de Livorno, imediatamente, no primeiro dia, porque respondeu com socos ao
primeiro soco que recebera, e foi massacrado por três Kapos juntos. Estes, e inúmeros
98
outros, morreram não apesar de seu valor, mas por causa de seu valor.

1 Este texto é uma versão bastante modificada do trabalho apresentado no Seminário Nacional sobre Tortura organizado pela Secreta-
ria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e realizado em maio de 2010, em Brasília. A primeira parte do trabalho
apresentado naquela ocasião foi publicada no Correio da APPOA, n. 196, em novembro de 2010. A segunda parte intitulada A inter-
pelação do estrangeiro: a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso Araguaia é inteiramente inédita.
O sentimento de desvalor encontra aqui, impressionantemente, sua vocação memorial e po-
lítica. Doravante Chaim, Szabó, Robert e Baruch serão lembrados de forma envergonhada,
como tributo a ser pago pelo seu não apagamento e persistência no rol dos exemplos huma-
nos, que só podem ser transmitidos quando enovelados na trama absurda onde nasceram.
Para Primo Levi (1990), essa reação imediata, sem hesitação, diante das atrocidades
e cuja consequência fora a aniquilação e a morte, deixava aos que sobreviveram nos cam-
pos uma rusga envergonhada e uma mácula que se superpunha em camadas a todas as
outras atrocidades lá vividas.
Dessa vergonha insuportável brotava, paradoxalmente e às acotoveladas, uma nova
ética recém inventada a qual Primo Levi (1990) deu relevo e tornou visível. Tratava-se da
ética da sustentação da memória da vida daqueles que se foram, psiquicamente destruí-
dos e fisicamente aniquilados nos campos, como consequência de suas ações, atitudes ou
palavras inquebrantáveis. A memória destes, esquecida e destruída pela máquina nazista,
sobrevivia agora, unicamente, no sentimento de vergonha e admiração radical naqueles
que sobreviveram, admirando os que se foram em situações extremas e, de algum modo,
desprezando-se diante do que lhes parecera tão admirável quanto inatingível.
A dor da vergonha faria existir então os que não estão mais aqui, ao mesmo tempo
como inscrição psíquica e histórica penosa, fazendo-se marca viva e paradoxal no corpo
e no psiquismo dos que sobreviveram e que, com Primo Levi, vieram depois a testemu-
nhar, seja por dever, culpa ou crença no porvir da linguagem.
É verdade, podemos nos sentir profunda e inexoravelmente envergonhados diante

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daqueles que levaram ao mais alto a dignidade do conceito de vida humana, morrendo
em seu nome e produzindo humanidade lá onde ela era contínua e vorazmente aniquila-
da, porém, mesmo aí, a vergonha exerce uma tarefa e se propõe como veículo de preser-
vação histórica de vidas que se foram e retroage reproduzindo sofrimento, mas também
dignidade e memória. Foi uma entre tantas outras coisas que compreendemos melhor
com os testemunhos sobre a Shoah e os campos de concentração e extermínio. Se não
tivermos nada mais a dar ou a fazer diante do atroz, resta-nos ainda nos envergonhar
diante daqueles que o fizeram.
99
A vergonha então, nesse caso, seria um sentimento decorrente da reconstrução de
uma ética forjada das ruínas das experiências liminares, onde quase tudo soçobra no sem
sentido e onde todo sentido é absorvido pela pulsão de sobrevivência e os imperativos
da necessidade. A vergonha sentida por Primo Levi é, portanto, ressurgência da ética em
meio ao esvaziamento ativo e à nadificação.
Vergonha confessa, ímpar e que anseia escandalosamente pelo não esquecimento
daqueles que não aceitaram, nem por um instante, conviver com o aviltamento imposto.
Em maio de 2010, assistimos no Brasil ao julgamento, pelo Supremo Tribunal Fe-
deral, da ADPF153 (arguição de descumprimento de preceito fundamental 153)2 . Nova-
mente era a vergonha que sentíamos enquanto observávamos voto por voto a confirma-
ção da anistia aos torturadores, aos assassinos e aos estupradores por crimes cometidos
durante o período da ditadura militar no país.
Enquanto uma oportunidade histórica esvaía-se, sentíamos uma outra vergonha,
pior e estéril, e nas antípodas da vergonha a que Primo Levi (1990) se refere. Era uma ver-
gonha infeliz, em alguns momentos, talvez autopiedosa (coitado de nós e dos brasileiros)
que se arrastava na tentativa de recolocar em pé tudo o que ruía a cada frase, a cada argu-
mento lógico em favor do absurdo, em favor de atrocidades cometidas e ainda presentes.
A nossa vergonha naquele episódio não cumpria o papel histórico de resgatar em
nós os desaparecidos – como a vergonha a que Primo Levi se referiu - nem aludia a um
possível orgulho recém perdido diante de um novo golpe em nossos anseios de justiça.
Nossa vergonha surgia diante da argúcia, da eloquência e da convicção discursiva e
legal que tornava possível sugerir, de forma magnânima (ou suprema) o esquecimento de
atrocidades, infâmias e destruição. Aquilo que já havíamos visto de modo fragmentário
em discursos de militares ou simpatizantes: “não houve tortura no Brasil”, “vamos esque-
cer o passado”, “não vamos abrir as feridas”, estávamos testemunhando ao vivo e a cores,
Psicologia,Violência e Direitos humanos

em rede nacional e em longo e ponderado discurso jurídico em situação de normalidade


democrática, amparado pela mesma lógica dedutiva que parecia se esgotar na mera obe-
diência a uma lei que, por sua vez, não aceita ser interpretada. Impossível não lembrar da
frase corriqueira que quer imputar à lei um caráter imanente e absoluto: “Estamos apenas
cumprindo ordens”.
Diante da ordem não haveria o que pensar.
Foi certamente vergonha o que nos afligia, porque desejaríamos nos vermos repre-
sentados ali pelos egrégios e supremos representantes da lei; desejaríamos, também nós,
100

2 A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) protocolou, no Supremo Tribunal Federal, uma Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF 153) na qual questiona a anistia aos representantes do Estado (policiais e militares) que, durante o regime
militar, praticaram atos de tortura. A ADPF contesta a validade do primeiro artigo da Lei da Anistia (6.683/79), que considera como
conexos e igualmente perdoados os crimes “de qualquer natureza” relacionados aos crimes políticos ou praticados por motivação
política no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.
sairmos para jantar3, e celebrar uma inflexão histórica em nosso país que daria início a
um novo marco legal, conceitual, político e subjetivo inédito no Brasil, capaz de iluminar
o porvir dos familiares, dos desaparecidos, dos torturados, feridos, ameaçados, perse-
guidos, exilados, machucados e de parte da sociedade brasileira que sequer sabe que a
ditadura militar existiu no Brasil.
Mas não foi assim. Previsível, diríamos, mas também assustador. Sem surpresas,
mas também escatológico. Consumado, mas também lastimável. E desse teor brotou a
nossa vergonha feita de lástima, infâmia e escatologia.
Diante da experiência do absurdo, o grande, tenaz e urgente esforço era, de novo, dis-
criminar-se. Diferenciar-se da onda grande e poderosa que põe fim a tudo afogando a vida
que, submersa, ainda persiste em seu interior. Novamente era preciso olhar no espelho e
não vermos entre os julgadores e nós parecença e semelhança alguma, era preciso, parado-
xalmente, não nos sentirmos tão brasileiros e, outra vez, produzir heteronomia diante de
uma hegemonia vigente e tardia que já não dá conta de justificar-se e nem poderá durar.
Tal como já aconteceu com o fim do próprio Estado Militar no Brasil, pelo trabalho
de muitos que hoje lutam pela democratização tardia do país, e de outros tantos que se
foram lutando por ela, sem jamais tê-la experimentado.
Tudo para que essa vergonha seja passageira – rútila constatação de uma repetição
que oprime e que clama por seus intérpretes – porque doravante será, como antes, a in-
dignação o que continuará pautando a agenda do, ainda hegemônico, desejo de oblívio e
da aposta nas estratrégias de esquecimento no Brasil.

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A vergonha por aqueles que tinham tudo nas mãos para elevar ao mais alto os ideários
da humanidade dos homens e optaram por não fazê-lo, se negando a assumir sua posição
paradigmática na frágil manutenção de ideais do eu vindouros numa democracia hesitante,
contrasta com a vergonha diante daqueles que, sem ter coisa alguma nas mãos, barganha-
ram a própria vida em troca de minutos, segundos de experiência saborosa e eterna de
dignidade e decência, onde o pensamento e a ação revelam-se como intérpretes do porvir.
A razão pela qual nos opomos contra a submissão violenta e atroz se enraíza num
sentimento ético e político aprendido no convívio e pautado pela convicção de que não
101
podemos aceitar, de modo algum, conviver com assassinos – ou com o assassino em nós,

3 Em entrevista ao portal G1, logo após o julgamento da ADPF153, Fábio Konder Comparato, que advogou contra a extensão da
anistia aos crimes comuns, portanto contra a anistia aos torturadores, assassinos e estupradores revela que, na noite imediata-
mente anterior à votação dos ministros do Supremo, o Presidente da República convidara todos os ministros do Supremo para um
jantar em Brasília. Disponível em: http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1255642-7823-STF+DECIDE+QUE+LEI+
DA+ANISTIA+PERDOA+CRIMES+POLITICOS+DA+DITADURA,00.html.
como já observara Hannah Arendt (1964/2004). A ética que pode ser sustentada, e que é
inibidora do ato assassino, não se ampara apenas nas leis, hábitos e costumes, mas numa
matriz identitária que a produz e reproduz afirmando o que é fundamental para seja pos-
sível e desejável vivermos juntos.
Cito Hannah Arendt (1964/2004, p. 107) a respeito daqueles que decidiram não
participar da matança nazista:
O seu critério, na minha opinião, era diferente: eles se perguntavam em que medida
ainda seriam capazes de viver em paz consigo mesmos depois de terem cometido certos
atos; e decidiram que seria melhor não fazer nada, não porque o mundo então muda-
ria para melhor, mas simplesmente porque apenas nessa condição poderiam continuar
a viver consigo mesmos. Assim eles também optavam por morrer quando eram obriga-
dos a participar. Em termos francos, recusavam-se a assassinar, não tanto porque ain-
da se mantinham fiéis ao comando ‘não matarás’, mas porque não estavam dispostos
a viver com assassinos – eles próprios.

A impunidade deixa um rastro de indecência e um afeto intransponível, revelado pela


ignorância imposta pelo recalque e pela repressão. A gravidade do esquecimento da au-
toria do assassinato do pai é aquela que faz prevalecer a possibilidade de assassinatos sem
assassinos. E, se não há assassinos, então não houve assassinato, tornando, desse modo,
impossível compreender o que somos e como nos tornamos o que somos. Ela se reflete
Psicologia,Violência e Direitos humanos

também na impossibilidade de significar uma ação a partir de sua incidência num campo
e numa conjuntura política que a define, e a singularizar a ação do homem como mani-
festação política por excelência.
A impunidade preserva a atmosfera turva que permite afirmar que todos somos culpa-
dos, o que significa o mesmo que afirmar que ninguém é culpado (Arendt, 1964/2004).
A anistia ampla, geral e irrestrita jamais pode ser indiscriminada, indiferenciada e
totalitária e ela só será um instrumento poderoso na consolidação da democracia, se con-
tribuir para determinar e definir culpas e responsabilidades aos que imaginaram poder
102 usufruir dos benefícios da democracia enquanto dedicavam suas vidas a atentar barba-
ramente contra ela.
A interpelação do estrangeiro:
a sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos sobre o caso Araguaia
Em 24 de novembro de 2010, poucos meses após a sentença do julgamento do Supremo
Tribunal Federal sobre a ADPF153, a Corte Interamericana de Direitos Humanos profere
sua sentença sobre o caso Araguaia, denominado Gomes Lund (guerrilha do Araguaia) e
outros vs. Brasil. O recurso jurídico à Corte Interamericana supõe que todas as instâncias
jurídicas internas do país foram esgotadas e aplica-se tão somente a crimes considerados
de lesa-humanidade.
Assim é reproduzida a demanda da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(2010, §2, p. 3-4, grifos nossos) no corpo da sentença:
Conforme salientou a Comissão, a demanda se refere à alegada “responsabilidade [do
Estado] pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas,
entre membros do Partido Comunista do Brasil […] e camponeses da região, […] re-
sultado de operações do Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 com o ob-
jetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar do Brasil
(1964-1985)”. A Comissão também submeteu o caso à Corte porque, “em virtude da
Lei No. 6.683/79 […], o Estado não realizou uma investigação penal com a finali-
dade de julgar e punir as pessoas responsáveis pelo desaparecimento forçado de 70

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vítimas e a execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva […]; porque os re-
cursos judiciais de natureza civil, com vistas a obter informações sobre os fatos, não
foram efetivos para assegurar aos familiares dos desaparecidos e da pessoa executa-
da o acesso a informação sobre a Guerrilha do Araguaia; porque as medidas legis-
lativas e administrativas adotadas pelo Estado restringiram indevidamente o direito
de acesso à informação pelos familiares; e porque o desaparecimento das vítimas, a
execução de Maria Lúcia Petit da Silva, a impunidade dos responsáveis e a falta de
acesso à justiça, à verdade e à informação afetaram negativamente a integridade pes-
103
soal dos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada”. A Comissão solicitou
ao Tribunal que declare que o Estado é responsável pela violação dos direitos estabe-
lecidos nos artigos 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito
à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 7 (direito à liberdade pessoal), 8 (garantias
judiciais), 13 (liberdade de pensamento e expressão) e 25 (proteção judicial), da Con-
venção Americana sobre Direitos Humanos, em conexão com as obrigações previstas
nos artigos 1.1 (obrigação geral de respeito e garantia dos direitos humanos) e 2 (dever
de adotar disposições de direito interno) da mesma Convenção. Finalmente, solicitou à
Corte que ordene ao Estado a adoção de determinadas medidas de reparação.

A Comissão Interamericana, que encaminhou o caso para ser julgado na Corte Interame-
ricana, apresentava uma demanda que não era nova, nem desconhecida, mas arrancava à
força, das tentativas de sepultamento jurídico dos crimes da ditadura civil-militar brasi-
leira, o direito à justiça, à verdade, ao luto e a retomada dos debates sobre a reparação no
Brasil no que se refere aos crimes de lesa-humanidade.
O Estado brasileiro advoga em causa própria amparando-se na lei da anistia de
1979. Argumentando que a anistia política concedida e aprovada por um congresso fun-
cionando sob coação do regime militar em 1979 é aplicada a todos os crimes políticos e
conexos cometidos no período, o que implica, segundo o Estado brasileiro, em estender
a anistia tanto aos crimes políticos cometidos pelos perseguidos políticos, quanto àqueles
cometidos pelos perseguidores políticos que agiam em nome do Estado e amparados por
ele para a prática da perseguição política aos opositores do regime instalado.
Cito alguns trechos da sentença da Corte Interamericana (2010, § 134-135, p. 50)
sobre o caso Gomes Lund e outros vs. Brasil:
134. Em 28 de agosto de 1979, após ter sido aprovada pelo Congresso Nacional, foi
Psicologia,Violência e Direitos humanos

sancionada a Lei No. 6.683/79, que concedeu anistia nos seguintes termos172:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com
estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servi-
dores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público,
aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e
representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Comple-
mentares.
104
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza
relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de
crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.
135. Em virtude dessa lei, até esta data, o Estado não investigou, processou ou sancio-
nou penalmente os responsáveis pelas violações de direitos humanos cometidas duran-
te o regime militar, inclusive as do presente caso. Isso se deve a que “a interpretação [da
Lei de Anistia] absolve automaticamente todas as violações de [d]ireitos [h]umanos
que tenham sido perpetradas por agentes da repressão política”.

Ou seja, o Estado brasileiro amparou-se na lei da anistia de 1979 para incluir entre os
anistiados aqueles que cometeram assassinatos, desaparecimentos, torturas, violações
sexuais e demais crimes de lesa-humanidade, interpretados pelos juízes do STF como
crimes conexos.
Os efeitos mais graves dessa interpretação é que ela deixa de fora e impossibilita, na
prática, a punição de quaisquer crimes comuns cometidos durante o período da ditadura
praticados por agentes do Estado contra a população civil. Isso afeta profundamente a
consolidação dos direitos humanos no país, na medida em que deixa de fora um dos pe-
ríodos mais violentos da história do Brasil, concedendo aos violadores o perdão jurídico
e impondo à sociedade o esquecimento forçado.
Considerando impossível o esquecimento forçado, do ponto de vista psíquico, so-
bretudo para aqueles que foram atingidos pelas graves violações, o que se propõe, na
verdade, é a resignação e a domesticação da indignação, a fim de manter, para aqueles
que gozavam de impunidade no período da ditadura, a mesma impunidade no período
de transição e consolidação democrática. Como se a experiência democrática não exigis-

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se mudanças políticas, sociais e psíquicas profundas como condição para sua efetivação
numa cultura democrática sustentável.
Tudo se passa como se a violência obtivesse a guarida de uma formalização jurídica
que a torna egrégia e inatingível, protegida e em lugar seguro. Se o sistema jurídico não
alcança as injustiças mais inequívocas: assassinato, tortura, violência sexual, crimes de
lesa-humanidade e desaparecimentos forçados, qual papel cumpre na consolidação das
democracias e no período de transição brasileiro?
Contra isso se opuseram muitos em extenso debate político-jurídico que não pre-
tendemos retomar aqui. Cito apenas trechos de entrevista de Streck (2009, p. 26): 105

Mas veja-se o caso sob discussão: a Lei da Anistia sequer necessita ser declarada nula,
afinal, ela jamais englobou os torturadores. O que é nulo, defeituoso em termos jurídi-
cos, é a sua interpretação em termos jurídicos e a sua interpretação e o alargamento de
seus efeitos, é dizer que a eficácia da lei foi para além de seu conteúdo semântico aceito
pela tradição (no sentido gadameriano da palavra). Fizeram com a Lei da Anistia e as
leis subsequentes o que estas não previam.

E mais adiante:
Com relação à segunda parte da pergunta (punição aos guerrilheiros), a lei 9140 deixa
claro que o Regime Militar não era um Estado de Direito. Esse é o ponto fulcral da dis-
cussão. Consequentemente era lícito lutar contra o estabilishment. E a própria Lei es-
tabelece que serão indenizadas todas as pessoas que, de um modo ou de outro, lutaram
contra o regime e por ele foram perseguidos, presos e mortos. Se não havia Estado de
Direito, todos aqueles que lutaram contra esse “Estado de coisas” estavam em legítimas
defesa, para usar uma figura do direito penal. (STRECK, 2009, p. 28).

Como é possível reivindicar a proteção do direito aos perpetradores dos crimes de lesa-
-humanidade no seio de uma lei lavrada num não estado de direito? Como violações
podem ser justificadas utilizando-se das leis que surgiram em regimes de exceção onde a
própria Constituição é violada e suspensa?
É exatamente nesse sentido que diversos países latino-americanos, excetuando-
se o Brasil, através de suas respectivas Cortes Supremas, tornam inoperante, nulo ou
questionável o recurso às leis de anistia com o objetivo de anistiar crimes de violações de
Psicologia,Violência e Direitos humanos

direitos humanos.
Reproduzo abaixo trechos e parágrafos específicos da sentença da Corte Interame-
ricana sobre o Caso Araguaia a esse respeito. São extensos, porém fundamentais para o
esclarecimento de nosso argumento e a compreensão do caso brasileiro como atípico no
contexto latino-americano:
163. Do mesmo modo, diversos Estados membros da Organização dos Estados Ame-
ricanos, por meio de seus mais altos tribunais de justiça, incorporaram os parâmetros
mencionados, observando de boa-fé suas obrigações internacionais. A Corte Suprema
106
de Justiça da Nação Argentina resolveu, no Caso Simón, declarar sem efeitos as leis de
anistia que constituíam neste país um obstáculo normativo para a investigação, julga-
mento e eventual condenação de fatos que implicavam violações dos direitos humanos:

[N]a medida em que [as anistias] se orientam ao “esquecimento” de graves violações


dos direitos humanos, elas se opõem às disposições da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e são, portan-
to, constitucionalmente intoleráveis. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS, 2010, § 163, p. 59, grifos nossos).

E mais adiante, no mesmo parágrafo:


[N]a medida em que [as leis de anistia] obstaculizam o esclarecimento e a efetiva pu-
nição de atos contrários aos direitos reconhecidos nos tratados mencionados, impedem
o cumprimento do dever de garantia com que se comprometeu o Estado argentino, e
são inadmissíveis.

Do mesmo modo, toda a regulamentação de direito interno que, invocando razões de


“pacificação”[,] disponha a concessão de qualquer forma de anistia que deixe impunes
violações graves dos direitos humanos, cometidas pelo regime que a disposição benefi-
cia, é contrária a claras e obrigatórias disposições do direito internacional, e deve ser
efetivamente suprimida.

[A] fim de dar cumprimento aos tratados internacionais em matéria de direitos huma-
nos, a supressão das leis de [anistia] é impostergável, e deverá ocorrer de maneira que
não possa delas decorrer obstáculo normativo algum para o julgamento de fatos, como
os que constituem o objeto da presente causa. Isto significa que os beneficiários dessas
leis não podem invocar nem a proibição de retroatividade da lei penal mais grave, nem

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a coisa julgada. [A] sujeição do Estado argentino à jurisdição interamericana impede
que o princípio de “irretroatividade” da lei penal seja invocado para descumprir os de-
veres assumidos, em matéria de persecução de violações graves dos direitos humanos.

164. No Chile, a Corte Suprema de Justiça concluiu que as anistias a respeito de de-
saparecimentos forçados, abrangeriam somente um determinado tempo e não todo o
lapso de duração do desaparecimento forçado ou seus efeitos:

[E]mbora o decreto-lei em comento tenha mencionado expressamente que se encon- 107

tram anistiados os fatos cometidos entre 11 de setembro de 1973 e 10 de março de


1978, o delito constante dos autos começou a ser praticado em 7 de janeiro de 1975
[...], existindo certeza de que, em 10 de março de 1978, data da expiração do prazo
disposto no artigo 1º, do D.L. 2191, Sandoval Rodríguez não havia aparecido e não
se tinham notícias dele, nem do lugar onde se encontrariam seus restos, no caso de ter
ocorrido sua morte, [...] o que torna inaplicável a anistia alegada, já que o sequestro
continuava em curso, uma vez que expirou o período de tempo compreendido por esta
causa excludente de responsabilidade criminal.

[O] Estado do Chile se impôs, ao subscrever e ratificar [tratados internacionais], a


obrigação de garantir a segurança das pessoas […], ficando vedadas as medidas ten-
dentes a amparar as ofensas cometidas contra pessoas determinadas ou conseguir a
impunidade de seus autores, tendo especialmente presente que os acordos internacio-
nais devem ser cumpridos de boa-fé. [Esta] Corte Suprema, em reiteradas sentenças,
reconheceu que a soberania interna do Estado [...] reconhece seu limite nos direitos que
emanam da natureza humana; valores que são superiores a toda norma que possam
dispor as autoridades do Estado, inclusive o próprio Poder Constituinte, o que impede
que sejam desconhecidos. (Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos, 2010, § 164, p. 60-61, grifos nossos).

166. Por outro lado, o Tribunal Constitucional do Peru, no Caso de Santiago Martín
Rivas, ao resolver um recurso extraordinário e um recurso de agravo constitucional,
precisou o alcance das obrigações do Estado nesta matéria:

[O] Tribunal Constitucional considera que a obrigação do Estado de investigar os fatos e


Psicologia,Violência e Direitos humanos

sancionar os responsáveis pela violação dos direitos humanos declarados na Sentença da


Corte Interamericana de Direitos Humanos não somente compreende a nulidade daque-
les processos a que houvessem sido aplicadas as leis de anistia [...], após ter-se declarado
que essas leis não têm efeitos jurídicos, mas também toda prática destinada a impedir a
investigação e punição pela violação dos direitos à vida e à integridade pessoal.

As obrigações assumidas pelo Estado peruano com a ratificação dos tratados sobre
direitos humanos compreendem o dever de garantir aqueles direitos que, em confor-
108
midade com o direito internacional, são inderrogáveis, tendo o Estado se obrigado
internacionalmente a sancionar sua afetação. Em atenção ao mandato contido no [...]
Código Processual Constitucional, recorre-se aos tratados que cristalizaram a proi-
bição absoluta daqueles ilícitos que, em conformidade com o direito internacional,
não podem ser anistiados, na medida em que infringem os parâmetros mínimos de
proteção à dignidade da pessoa humana. (Corte Interamericana de Direi-
tos Humanos, 2010, § 166, p. 61-62, grifos nossos).
E mais adiante, no mesmo parágrafo:
No mérito[,] o Tribunal considera que as leis de anistia [em questão] são nulas e care-
cem, ab initio, de efeitos jurídicos. Portanto, também são nulas as resoluções judiciais
expedidas com o propósito de garantir a impunidade da violação de direitos humanos
cometida por [agentes estatais]. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HU-
MANOS, 2010, § 166, p. 62).

167. No mesmo sentido, pronunciou-se recentemente a Suprema Corte de Justiça do


Uruguai, a respeito da Lei de Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado nesse país,
considerando que:

[ninguém] nega que, mediante uma lei promulgada com uma maioria especial e para
casos extraordinários, o Estado pode renunciar a penalizar atos delitivos. […] No en-
tanto, a lei é inconstitucional porque, no caso, o Poder Legislativo excedeu o marco
constitucional para acordar anistias [porque] declarar a caducidade das ações penais,
em qualquer hipótese, excede as faculdades dos legisladores e invade o âmbito de uma
função constitucionalmente atribuída aos juízes, pelo que, independentemente dos
motivos, o legislador não podia atribuir-se a faculdade de resolver que havia operado
a caducidade das ações penais em relação a certos delitos.

[A] regulamentação atual dos direitos humanos não se baseia na posição soberana

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dos Estados, mas na pessoa enquanto titular, por sua tal condição, dos direitos es-
senciais que não podem ser desconhecidos, com base no exercício do poder consti-
tuinte, nem originário, nem derivado.

Em tal marco, [a lei de anistia] em exame afetou os direitos de numerosas pessoas


(concretamente, as vítimas, familiares ou prejudicados pelas violações de direitos
humanos mencionadas), que viram frustrado seu direito a um recurso, a uma inves-
tigação judicial imparcial e exaustiva, que esclareça os fatos, determine seus respon-
sáveis e imponha as sanções penais correspondentes; a tal ponto que as consequên- 109
cias jurídicas da lei a respeito do direito às garantias judiciais são incompatíveis com
a Convenção [A]mericana [sobre] Direitos Humanos.

Em síntese, a ilegitimidade de uma lei de anistia promulgada em benefício de fun-


cionários militares e policiais, que cometeram [graves violações de direitos huma-
nos], gozando de impunidade durante regimes de facto, foi declarada por órgãos
jurisdicionais, tanto da comunidade internacional como dos Estados que passaram
por processos similares ao vivido pelo Uruguai na mesma época. Tais pronuncia-
mentos, pela semelhança com a questão analisada e pela relevância que tiveram, não
poderiam ser deixados de lado no exame de constitucionalidade da Lei [No.] 15.848 e
foram levados em conta pela Corporação para proferir a presente sentença.

168. Finalmente, a Corte Constitucional da Colômbia, em diversos casos, levou em


conta as obrigações internacionais em casos de graves violações de direitos humanos e
o dever de evitar a aplicação de disposições internas de anistia:

Figuras como as leis de ponto final, que impedem o acesso à justiça, as anistias em
branco para qualquer delito, as autoanistias (ou seja, os benefícios penais que os
detentores legítimos ou ilegítimos do poder concedem a si mesmos e aos que foram
cúmplices dos delitos cometidos), ou qualquer outra modalidade que tenha como
propósito impedir às vítimas um recurso judicial efetivo para fazer valer seus direi-
tos, foram consideradas violadoras do dever internacional dos Estados de prover
recursos judiciais para a proteção dos direitos humanos.

169. Igualmente, a Corte Suprema de Justiça da Colômbia salientou que “as normas
relativas aos [d]ireitos [h]umanos fazem parte do grande grupo de disposições de Di-
reito Internacional Geral, reconhecidas como normas de [j]us cogens, razão pela qual
Psicologia,Violência e Direitos humanos

aquelas são inderrogáveis, imperativas [...] e indisponíveis”248. A Corte Suprema da


Colômbia lembrou que a jurisprudência e as recomendações dos organismos interna-
cionais sobre direitos humanos devem servir de critério preferencial de interpretação,
tanto na justiça constitucional como na ordinária e citou a jurisprudência deste Tribu-
nal a respeito da não aceitabilidade das disposições de anistia para casos de violações
graves de direitos humanos.

170. Como se desprende do conteúdo dos parágrafos precedentes, todos os órgãos in-
110
ternacionais de proteção de direitos humanos, e diversas altas cortes nacionais da região,
que tiveram a oportunidade de pronunciar-se a respeito do alcance das leis de anistia
sobre graves violações de direitos humanos e sua incompatibilidade com as obrigações
internacionais dos Estados que as emitem, concluíram que essas leis violam o dever in-
ternacional do Estado de investigar e sancionar tais violações. (Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos, 2010, § 168-170, p. 62-64, grifos nossos).
171. Este Tribunal já se pronunciou anteriormente sobre o tema e não encontra
fundamentos jurídicos para afastar-se de sua jurisprudência constante, a qual, ade-
mais, concorda com o estabelecido unanimemente pelo direito internacional e pelos
precedentes dos órgãos dos sistemas universais e regionais de proteção dos direitos
humanos. De tal maneira, para efeitos do presente caso, o Tribunal reitera que “são
inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabele-
cimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investiga-
ção e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a
tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos
forçados, todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo
Direito Internacional dos Direitos Humanos”. (Corte Interamericana de
Direitos Humanos, 2010, § 171, p. 64, grifos nossos)

E a Corte prossegue, no parágrafo 172 da sentença:


172. A Corte Interamericana considera que a forma na qual foi interpretada e aplicada a
Lei de Anistia aprovada pelo Brasil (supra pars. 87, 135 e 136) afetou o dever internacio-
nal do Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir
que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme
estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana, e violou o direito à proteção judicial
consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento, precisamente pela falta de investigação,
persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo

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também o artigo 1.1 da Convenção. Adicionalmente, ao aplicar a Lei de Anistia im-
pedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e eventual sanção dos
possíveis responsáveis por violações continuadas e permanentes, como os desapareci-
mentos forçados, o Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno,
consagrada no artigo 2 da Convenção Americana. (Corte Interamericana de
Direitos Humanos, 2010, § 172, p. 64, grifos nossos).

E mais adiante, no parágrafo 174 : 111

174. Dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana, as dispo-


sições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves
violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos. Em consequência, não
podem continuar a representar um obstáculo para a investigação dos fatos do pre-
sente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, nem podem ter
igual ou similar impacto sobre outros casos de graves violações de direitos humanos
consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. (Corte Interame-
ricana de Direitos Humanos, 2010, § 174, p. 65, grifos nossos).

A Sentença da Corte Interamericana defende, a partir das diversas interpretações dadas


pelas Supremas Cortes de vários e importantes países latino-americanos de suas respec-
tivas leis de anistia lavradas durante os períodos de exceção e ditadura, a nulidade do
alcance legal da lei quando ela se aplica subalternizando os direitos humanos e colocan-
do-os em segundo plano. Caberia, portanto, aos juízes das respectivas cortes determinar
a prioridade em acordo com as normas e acordos do direito internacional e com as con-
venções de direitos humanos das quais cada país, respectivamente, é signatário4.
O problema brasileiro nesse cenário adquire uma complexidade assustadora. A Su-
prema Corte Brasileira não acompanha a tendência de suas congêneres de outros países e
mais ainda, acredita poder virar as costas ao direito internacional e aos tratados ratifica-
dos pelo próprio Estado Brasileiro.
A tentativa de bloquear o processo de construção da memória, da justiça e da repa-
ração esbarra na crença de que o Brasil é um país atípico, excepcional e paradoxal; repleto
de violações, cuja dívida não poderá quitar, conta com a resignação e a melancolia como
sintomas eficientes de preservação da culpa e da vergonha diante da mácula de jamais ter
colocado a dignidade em primeiro lugar. A dignidade, por vezes, é um epifenômeno nas
Psicologia,Violência e Direitos humanos

práticas políticas e sociais brasileiras e, portanto, os pressupostos do discurso e da ação


rumo à consolidação dos direitos humanos no Brasil é, muitas vezes, ininteligível no Brasil.
Felizmente, não se trata apenas do Estado Brasileiro, mas da sociedade civil orga-
nizada em inúmeras ações, movimentos e manifestos que conduziram ao mais alto a voz
dos que ainda creem na justiça como resultante das melhores esperanças e promotora
de um Estado em acordo com a sociedade que ele representa, e que ainda será capaz de
cortar e replantar suas raízes. A sentença da Corte Interamericana representa a voz aguar-
dada de muitos e é o resultado de décadas de ações militantes de tantos, muitos dos quais
112
4 Cito trecho de reportagem sobre entrevista do então Ministro da Defesa Nelson Jobim concedida a propósito da sentença da
Corte Interamericana sobre caso Araguaia:
O ministro Nelson Jobim (Defesa) afirmou nesta quarta-feira que é meramente política a decisão da Corte Interamericana de di-
reitos humanos de condenar o Brasil pelo desaparecimento de 62 pessoas na Guerrilha do Araguaia. Para o ministro, ela não tem
efeitos jurídicos no Brasil. Jobim disse também que não há possibilidade de punição para os militares que praticaram tortura no
país. (Disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/2010/12/15/jobim-nega-possibilidade-de-punicao-para-torturadores-
-da-guerrilha-do-araguaia.jhtm. Acesso em: 15/09/2011.)
assassinados, eliminados ou desaparecidos, para que a indecência histórica do Estado
brasileiro na proteção de seus algozes fosse um dia proferida.
Por fim, reproduzo o último parágrafo da Sentença do Caso Araguaia extraído do
voto fundamentado do juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas (2010, § 31, p. 9):
31. É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará em um
novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo para acabar com o círcu-
lo de impunidade no Brasil. É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária
na punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de
modo que a imperatividade do direito e da justiça sirvam sempre para mostrar que
práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas
e a qualquer tempo serão punidas. (Corte Interamericana de Direitos
Humanos, 2010, § 174, p. 65, grifos nossos).

Sem mais. Sigamos então, cientes do que fomos e do que queremos ser diante de um porvir
que lentamente se abre diante das possibilidades imensas de sua própria transformação.

Referências
ARENDT, H. (1964). Julgamento e Responsabilidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
CALDAS, R. F. Voto fundamentado do juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas com relação à sentença da Cor-
te Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund e outros (“guerrilha do araguaia”) vs. Brasil

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de 24 de novembro de 2010. In: CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes
Lund e outros (“guerrilha do araguaia”) vs. Brasil: sentença de 24 de novembro de 2010 (exceções preliminares,
mérito, reparações e custas). Disponível em: www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf.
Acesso em: 15/09/2011. § 31, p. 9.
COMPARATO, F. K. Entrevista ao portal G1. Disponível em: http://video.globo.com/Videos/Player/
Noticias/0,,GIM1255642-7823-STF+DECIDE+QUE+LEI+DA+ANISTIA+PERDOA+CRIMES+POLITIC
OS+DA+DITADURA,00.html. Acesso em: 25/11/2010.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“guerrilha do araguaia”)
vs. Brasil: sentença de 24 de novembro de 2010 (exceções preliminares, mérito, reparações e custas). Disponível
em: www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso em: 15/09/2011.
ENDO, P. Vergonha. Correio da APPOA, n. 196, nov., p. 61-67, 2010. 113

LEVI, P. Afogados e Sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.


STRECK, L. Entrevista. Revista Anistia Política e justiça de Transição, n.2, p. 24-28, Jul.-Dez., 2009.
ZAMPIER, D. Jobim nega possibilidade de punição para torturadores da Guerrilha do Araguaia. Disponível em
http://noticias.uol.com.br/politica/2010/12/15/jobim-nega-possibilidade-de-punicao-para-torturadores-
-da-guerrilha-do-araguaia.jhtm. Acesso em: 15/09/2011.
Os trabalhos da memória:
os testemunhos dos familiares
de mortos e desaparecidos
políticos no Brasil

Janaína de Almeida Teles

No Brasil, a Lei de Anistia de 1979, produto do Estado de exceção então vigente, embora
parcial1, foi considerada “recíproca”. Seu texto, apesar de não ter anistiado os crimes dos
torturadores e de seus mandantes, na prática, impediu que eles fossem levados ao banco
dos réus em função de uma redação ambígua e uma conveniente interpretação da lei:
esta considerou a tortura crime conexo aos crimes políticos cometidos pelos dissidentes,
Psicologia,Violência e Direitos humanos

garantindo-lhes a impunidade (TELES, 2005). Não obstante, a lei possibilitou a volta dos
exilados e banidos e a ampliação da atividade política, mas, ao impor obstáculos à investi-
gação do passado, negou aos familiares de mortos e desaparecidos políticos, aos sobrevi-
ventes e à sociedade, a possibilidade de conhecer a verdade sobre estes crimes e de contar
suas histórias, dificultando a constituição de uma memória pública sobre este período.
A “transição política” controlada, em grande medida, pelos civis e militares que ocu-
param o Estado durante a ditadura impediu um processo de ruptura com seu legado, limi-
tando a articulação e a transmissão da herança daqueles anos de violência. Na atualidade,
114 predominam versões conciliadoras da história, por meio das quais a sociedade brasileira
busca dialogar com esse passado “sem se atormentar com ele” (RIDENTI, 1997, p. 420).

1 Foram anistiados aqueles que cometeram crimes políticos e conexos a estes, excluídos os condenados definitivamente pelos
então chamados “crimes de sangue”. Além disso, milhares de pessoas não puderam regularizar suas carreiras interrompidas por
cassações e perseguições. Ver Lei 6.683/79 e suas modificações em: www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L6683compilada.htm.
Ao recolher e analisar os depoimentos orais dos familiares de mortos e desapareci-
dos políticos, procurei destacar seu papel como protagonistas das lutas de resistência à
ditadura e do processo de redemocratização do país. Neste artigo, analiso alguns aspectos
referentes à interdição do passado recente inscritos nos testemunhos dos familiares2.

Os desaparecidos políticos e a imposição


do silêncio e do esquecimento
A última ditadura brasileira do século XX (1964-1985) foi marcada por uma dinâmica de
práticas repressivas que oscilava entre esconder e mostrar a violência estatal, combinando
a intenção do governo de se legitimar, ocultando a tortura institucionalizada pelo regime,
com a necessidade de difundir o medo, forjando casos exemplares que se tornassem uma
ameaça permanente para todos. A repressão política atuou de maneira bastante seletiva,
articulando diversas modalidades repressivas que se constituíram num aparato repressi-
vo complexo e sofisticado.
Diferentemente do que ocorreu na Argentina, após o golpe de 1976, cujo “eixo da
atividade repressiva deixou de girar ao redor dos cárceres para passar a estruturar-se em
torno do sistema de desaparecimento de pessoas” (CALVEIRO, 2006, p. 29-30)3, no Brasil,
a repressão política utilizou o “desaparecimento forçado” combinado a outras estratégias
repressivas existentes. A seletividade na condução destas diversas modalidades repressivas,

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as que fizeram uso da legalidade de exceção e aquelas mantidas clandestinas, caracterizou
a administração do poder e suas disputas dentro do aparato repressivo durante a ditadura4.
Entre os anos de 1969 e 1971, o estado brasileiro constituiu uma rede de unidades
secretas e clandestinas que formavam o sistema DOI-CODI (Destacamentos de Opera-
ções de Informações-Centros de Operações de Defesa Interna), controlado pelo Exército.
Os centros clandestinos de tortura e extermínio como a Casa da Morte, em Petrópolis
(RJ), e os campos de concentração criados para reprimir a Guerrilha do Araguaia eram
parte constitutiva deste sistema articulado. Esta centralização obteve uma interação am-
115
pla entre os diversos braços do sistema, mantendo sua autonomia relativa (TELES, 2011).

2 Realizei 31 entrevistas com familiares de mortos e desaparecidos políticos utilizando a metodologia da História Oral de Vida
(TELES, 2005).
3 Tradução livre da autora.
4 No Brasil, sabe-se de 257 mortos e 169 desaparecidos por motivos políticos durante a ditadura, totalizando 426 pessoas. (AL-
MEIDA, 2009).
A partir de 1971, o “desaparecimento forçado” foi sendo progressivamente adotado,
conjugado com os assassinatos mascarados de tiroteio ou suicídio. Guerrilheiros foram
exterminados e desapareceram durante a repressão à Guerrilha do Araguaia, enquanto
outros eram assassinados sob tortura e enterrados com nomes falsos em cemitérios pú-
blicos como o de Perus, na cidade de São Paulo (SP), entre outros.
A justiça militar, o setor mais visível do sistema repressivo, também atuou de ma-
neira seletiva, absolvendo um número elevado de perseguidos políticos (após sofrerem
longos períodos de confinamento sem julgamento), mas condenando a penas severas os
mais comprometidos com as organizações clandestinas contrárias ao regime. Os tribu-
nais de exceção confinaram centenas de dissidentes nos presídios, modulando suas penas
sob a orientação direta dos órgãos de segurança e informação. Isso foi possível em função
dos altos níveis de colaboração entre civis e militares, o que possibilitou a divisão de res-
ponsabilidades, cargos e parcelas de poder (Teles, 2011).
A política de “abertura lenta, gradual e segura” do general Ernesto Geisel iniciada
em 1974 pretendia criar mecanismos que permitissem a sustentação prolongada do Es-
tado de Segurança Nacional. Neste período, aperfeiçoou-se a aplicação seletiva do poder
coercitivo sobre a sociedade civil: durante o ano de 1974, predominam as denúncias de
desaparecimentos políticos. Naquele ano, 53 dirigentes e militantes de diversas organi-
zações (desde as adeptas da luta armada até as mais críticas à guerrilha) sumiram sem
deixar vestígios5. Esta foi a maneira encontrada pelo regime para garantir ao governo do
Psicologia,Violência e Direitos humanos

general Geisel a representação de moderado e de lidar com os seus problemas de legiti-


midade criados pela repercussão das denúncias de abusos aos direitos humanos e pelo
declínio do “milagre econômico” (Teles, 2005).
No início dos anos 1970, apesar da repressão e do cerceamento de informação, atos
emblemáticos de resistência foram possíveis. A missa celebrada na Catedral da Sé em ho-
menagem a Alexandre Vannucchi Leme ganhou significativa repercussão. Estudante da
Universidade de São Paulo (USP) e militante da ALN (Ação de Libertação Nacional), ele
foi assassinado sob tortura no DOI-CODI/SP, em 17 de março de 1973. A missa contou
com a presença de 3 mil pessoas, apesar da intensa repressão policial. D. Paulo E. Arns
116
pronunciou um discurso contundente de indignação e o cantor Sérgio Ricardo interpre-
tou a canção de protesto “Calabouço”.

5 Há notícia de dois mortos oficiais em 1974: Afonso Henrique Martins Saldanha, militante do PCB, morreu em 08/12/74 em decor-
rência das torturas sofridas, depois de libertado; e Frei Tito se suicidou no exílio atormentado pelas torturas do delegado Sérgio P.
Fleury, em 07/08/74. (ALMEIDA et al., 2009, p. 591-92 e 600).
A reação à sua morte, entre outras, mobilizou setores da sociedade civil, especial-
mente o movimento estudantil, que aos poucos foram ocupando espaços institucionais
antes sufocados. Constituíram-se redes de solidariedade que conquistaram a opinião pu-
blica e levaram à organização de grupos e entidades de defesa dos direitos humanos.
Esta mobilização e atmosfera política levou à celebração das missas que homenagearam
Vladimir Herzog, em 1975, e Santo Dias, o líder metalúrgico assassinado em 1979.
O desaparecimento de dissidentes impôs novo sofrimento às famílias dos persegui-
dos políticos. O silêncio e isolamento impostos pelo terror do desaparecimento perpe-
tuaram a angústia que é vivenciar a ausência dos corpos e de informações a respeito de
parentes queridos. Aos familiares somente é permitido lembrar sempre a ausência, rea-
cendendo permanentemente o desejo de libertar-se de um passado que continua presente
(ADORNO, 1995). O desaparecimento, a falta de um corpo, de um momento de luto e de
uma sepultura assumem uma dimensão tal que, mesmo passados tantos anos dos fatos,
impossibilitam a emergência de representações de um corte, de um antes e um depois, e
o trabalho de luto (CATELA, 2001, p. 150; SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 85-93).
Neste contexto histórico, a partir de 1974 os familiares de desaparecidos políticos
começaram a se organizar. Sua atuação se iniciou com o apoio de setores progressistas
da Igreja Católica, especialmente, de D. Paulo Evaristo Arns, dos advogados de presos
políticos e do grupo dos “autênticos” do MDB. O desaparecimento de militantes levou
seus familiares a se reunirem regularmente no escritório de advogados e na Comissão
Justiça e Paz. Eles tentavam denunciar os desaparecimentos através de pedidos de habe-

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as corpus, cartas dirigidas às autoridades e instituições de defesa dos direitos humanos
nacionais e estrangeiras.
Desde o início dos anos 1970, os familiares encaminhavam denúncias ao Conselho
de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) e à Comissão Interamericana de
Defesa de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA)
com o objetivo de denunciar e apurar esses crimes. Em janeiro de 1975, os familiares fo-
ram a Brasília (DF) pedir apoio aos deputados do MDB para a proposta de instalação de
uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as violações dos direitos
117
humanos no país.
Setores da sociedade civil se manifestaram favoráveis à volta do respeito aos direitos
humanos, mas perseguições e pressões políticas do governo impediram que a proposta
fosse votada. A proposição da CPI foi retomada em 1979, mas novamente resistências e
manobras regimentais do Congresso Nacional a inviabilizaram. Essas campanhas de divul-
gação de denúncias, contudo, foram fundamentais para impor desgaste político à ditadura.
Os testemunhos e os trabalhos da memória
No Brasil, o trabalho de luto relacionado ao período ditatorial não teve o caráter social
ou coletivo como em outros países latino-americanos. Para as famílias e sobreviventes,
porém, não é possível esquecer eventos traumáticos como a tortura e o desaparecimento,
conforme relatou Felícia Mardini Oliveira, mãe de Ísis Dias de Oliveira, guerrilheira da
ALN desaparecida em janeiro de 1972. Ela, como outras mães, reiterou a impossibilidade
de esquecer: “Tenho outros dois filhos, mas sinto a falta de Ísis todos os dias”6. Felícia
traduziu a angústia decorrente do desaparecimento da filha nas seguintes palavras:
[...] Eu pensava: não vi, então não vou sofrer tanto, mas foi pior, porque fica uma an-
gústia que não termina nunca, principalmente, porque a gente fica pensando que ela
morreu sob tortura. [...] é difícil, uma angústia sem fim, porque vai passando o tempo
[e não se encontra nenhuma informação]7.

Torna-se ainda mais difícil lidar com estas memórias e experiências-limite quando o pas-
sado permanece reprimido ou silenciado. Sem uma ampla mobilização social e os rituais
e leis que garantam o direito à verdade e à justiça, os familiares de mortos e desaparecidos
políticos oscilam entre a busca por realizar o trabalho de luto e a repressão do passado.
A palavra de ordem da Associação Madres de Plaza de Mayo: “Aparición con vida. Con
vida los llevarón, con vida los queremos.”, expressa o conflito imposto aos familiares: os-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

cilam entre resistir e aceitar a morte dos seus entes queridos8. Eles têm que realizar esse
trabalho dúbio do trauma, mais inclinado à melancolia do que ao luto; e conviver com
essa ferida que nunca se fecha, que buscam compreender reiteradamente, mas que resiste
à representação.
O lema “Aparição com vida” das Madres nos remete com dramaticidade à questão
de como enfrentar o trauma: uma ferida na memória, uma incapacidade de recepção de
um evento que vai além dos limites da percepção. A experiência traumática, aquilo que
surpreende a consciência tumultuando-a, não pode ser totalmente assimilada enquanto
118

6 VILLAMÉA, L. Elo perdido. “A anistia completa 25 anos sem que o destino de 150 desaparecidos políticos seja esclarecido”.
Isto É, 01/09/2004, p. 34. Ísis desapareceu no Rio de Janeiro juntamente com Paulo Botelho Massa, em 30/01/72 (ALMEIDA et al.,
2009, p. 314-318).
7 Ver o documentário Vala Comum, de João Godoy. São Paulo, 1994, 39 min.
8 A discussão em torno da consigna “Aparição com vida” é intensa e controversa na Argentina. Em abril de 1986, a entidade das
mães se dividiu e foi criada a Madres da Plaza de Mayo – Linha fundadora. Estas apoiam as exumações, homenagens aos desapa-
recidos e os julgamentos, o que o outro grupo não aceita. (GORINI, 2006, 2008).
ocorre. O sobrevivente tem de lidar com “[...] a resistência à transposição (tradução) do
inimaginável para o registro das palavras [...]” (SELIGMANN-SILVA, 2003a, p. 50)9. Daí
a repetição constante do relato do sobrevivente, que tenta, por meio da linguagem, “[...]
cercar e dar limites àquilo que não foi submetido a uma forma no ato da sua recepção”
(SELIGMANN-SILVA, 2003a, p. 48). O testemunho se constitui, assim, na narração não
tanto dos fatos violentos, mas da resistência à compreensão dos mesmos, conforme subli-
nhou Freud (Seligmann-Silva, 2003a, p. 48).
A repetição da cena traumática que emerge nos testemunhos, na narrativa, nos so-
nhos ou no choro compulsivo dos familiares – como se essas mortes ou desaparecimentos
tivessem ocorrido no presente – é uma tentativa de se preparar, de maneira atrasada, para
aquele momento. O excesso de memória provocado por um trauma histórico e um agravo
sem solução, contudo, exige um trabalho coletivo de simbolização para evitar que o ressen-
timento ou outras maneiras de “abusos da memória” (KEHL, 2005, p. 232) se sedimentem
na sociedade. Cabe perguntar, porém, se podemos falar em “abusos de memória” no Brasil.
No Brasil predominam o silêncio e o esquecimento sobre os crimes da ditadura. Os
familiares enfrentam, na atualidade, enormes dificuldades de encontrar os restos mortais
de seus parentes, de conhecer as circunstâncias das mortes e de punir os responsáveis.
Desse modo, tentam contar/narrar essas histórias e memórias visando romper com a in-
diferença; para que estas experiências não sejam consideradas sem significado, como se
tudo tivesse sido “em vão”. Angela Mendes de Almeida, companheira de Luiz Eduardo da
Rocha Merlino, militante do Partido Operário Comunista (POC) assassinado sob tortura

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em 1971 (ALMEIDA, 2009, p. 259-262), relatou como vivenciou o sentimento de culpa
por ter sobrevivido e o silêncio sobre o passado com que se deparou ao retornar do exílio:
[...] Nesse período, [os cinco anos de militância clandestina], tinha a sensação de que
deveria fazer isso por ele, que a melhor coisa que podia fazer pela memória dele era
continuar militando, sentia isso como uma obrigação. Para que aquilo não fosse sem
sentido, porque quando cheguei ao Brasil, as pessoas me disseram que aquilo foi em
vão, outras se mostraram indiferentes, foi um choque muito grande para mim. [...]
parecia que estava mais distante do que quando estava viajando, foi aí que me ‘exilei’ 119
no Rio de Janeiro. Fui para o Rio, porque me ofereceram um emprego em uma univer-
sidade federal, mas em parte foi para sair de São Paulo.

9 A ambiguidade da palavra Aufgabe (que em alemão designa ao mesmo tempo tarefa e desistência), destacada por Walter
Benjamin, remete-nos à necessidade e concomitante impossibilidade da tradução. (SELIGMANN-SILVA, 2003b, p. 385).
[...] Eu entendo essas mortes como uma semente, sinto que a morte do Che tenha sido um
“elã” para a minha geração, não só para mim, teve um significado coletivo. A morte do
Merlino foi um “elã”, quase uma obrigação. Eu achava que, em memória a ele, tinha de
continuar lutando do mesmo jeito. Quando tomo uma decisão vou até o fim, mas você vai
até onde dá, você tem que ter um mínimo de racionalidade. As pessoas diziam que aquilo
era uma loucura e muitas dessas pessoas ficavam sentadas sem fazer nada. Não sei o que
elas ganharam com isso, porque a vida que levei valeu muito [...]. Acho que aprendi muito
mais, tudo que aprendi foi uma escola, vivi no sentido de aprender. Há momentos em que
você tem de parar, pelo menos parar de fazer as coisas como estão sendo feitas e foi o que
aconteceu. Parei de militar daquela maneira clandestina, mas não parei de fazer política.10

Nos relatos dos familiares emergem diversas referências ao sentimento de culpa por
terem sobrevivido e não terem conseguido evitar essas mortes e desaparecimentos. As
perseguições e o clima de terror vivido no país naquele período impuseram muitos obs-
táculos às buscas pelas informações dos parentes desaparecidos, conforme o testemunho
Suzana K. Lisbôa, integrante da ALN (Ação Libertadora Nacional) e esposa de Luiz Eurico
Tejera Lisbôa, desaparecido em setembro de 1972, na capital paulista (ALMEIDA, 2009,
p. 367-371). No final de 1971, o casal havia retornado de Cuba, onde os dois realizaram
treinamento de guerrilha. Logo voltaram a morar em Porto Alegre para tentar reorgani-
zar a ALN no Rio Grande do Sul:
Psicologia,Violência e Direitos humanos

[...] fui para São Paulo para ficar um mês, acho que para dar um treinamento ou fa-
zer uma ação. Viajei no dia 18 de junho de 1972, esse foi o último dia em que vi o Ico
[Luiz Eurico]. [...] Durante esse período [...], a direção da ALN percebeu e identificou
um “seguimento” descarado da repressão. Não conseguimos descobrir de onde vinha,
então, foi desmobilizado tudo o que poderia ter ocasionado esse “rabo” da repressão.

[...] Em função disso, tive que abandonar a pensão onde estava. [...] Enviei uma carta
[para uma caixa postal] dizendo que não poderia chegar na data prevista, pois muita
120 coisa havia acontecido etc.

10 Entrevista concedida por Angela Mendes de Almeida à autora. São Paulo/SP, 14/05/2004. Doravante, todas as citações de de-
poimento de Almeida são provenientes dessa entrevista. A família de Merlino moveu duas ações contra o coronel reformado do
Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do DOI-CODI/SP (1970-1974). A primeira, uma ação civil declaratória, foi extinta em
2008, sem que as testemunhas fossem ouvidas. A segunda, iniciada em 2010, é uma ação por danos morais causados pelo assas-
sinato de Merlino. Ver: http://www.conjur.com.br/2011-jul-28/manifestacao-cadeia-coronel-ustra-acusado-torturar-jornalista.
[...] Esses dias foram de uma angústia muito grande, queria mandar notícias e, ao mes-
mo tempo, não podia [...]. Sentia-me mal de pedir para sair de casa [onde ficamos escon-
didos], porque era mais um transtorno [...] para a direção que, por sua vez, estava com
dificuldades para operacionalizar o caos de insegurança instalado. [...] Consegui ir para o
Rio Grande do Sul e [...] acabei sabendo que o Ico tinha viajado para São Paulo. Ele tinha
visto a notícia da ‘queda’ do José Júlio11 e alertou meu irmão, que viria atrás de mim.

[...] Acabei fazendo novo contato com a minha família de São Paulo [...]. Soube que ele
tinha entrado em contato e estava desesperado atrás de mim, sem conseguir encontrar
ninguém. Na primeira semana de setembro de 1972 ocorreram os últimos contatos
dele. [...] Depois, desapareceu.

[...] Vivi durante muitos e muitos anos com um peso de chumbo na consciência por ele
ter morrido me procurando, pensando que alguma coisa havia acontecido comigo. Vivi
com uma sensação muito ruim de não ter pressionado mais para sair daquela casa,
para escrever para ele e antecipar meu retorno. Eu tinha certeza de que ele tinha rece-
bido minhas correspondências. Nunca consegui procurar as notícias da morte do José
Júlio para ver se havia a referência a uma mulher ferida, a qual ele teria pensado ser
eu. Isso é tão complicado [...] Não fui eu que o matei, é claro, mas é uma circunstância
difícil de administrar.

[...] Mesmo na clandestinidade [...] voltei outras vezes ao sul para procurar o Ico. [...]

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Viajei para o interior atrás de alguns contatos dele, tentando reconstituir o que poderia
ter acontecido com ele. Era muito difícil voltar lá. Não me lembro quantas vezes voltei
ao sul procurando notícias dele.12

Muitos familiares e sobreviventes convivem com este sentimento culpa, mas alguns não
conseguiram lidar com a morte ou o desaparecimento de seus parentes e se desestrutu-
raram completamente. O pai de Alceri Maria Gomes da Silva, militante da Vanguarda
Popular Revolucionária (VPR) assassinada em maio de 1970, adoeceu e morreu menos 121
de um ano depois. Valmira não suportou o impacto da morte de sua irmã e se suicidou13.

11 José Júlio foi preso e assassinado sob tortura no DOI-CODI/SP em 18/08/72. Ver: ALMEIDA et al., 2009, p. 364-67
12 Entrevistas concedidas por Suzana Keniger Lisbôa à autora. Rio de Janeiro/RJ. 10 e 11/02/03, 05/01/04 e São Paulo/SP, 17 e
21/02/05. Doravante, todas as citações de depoimentos de Lisbôa são provenientes das referidas entrevistas.
13 Alceri foi assassinada juntamente com Antônio dos Três Reis de Oliveira, em São Paulo. Ambos foram sepultados no Cemitério de
Vila Formosa e seus restos mortais nunca foram encontrados. (ALMEIDA et al., 2009, p. 195-197).
No relato repetitivo dos familiares (que retorna sempre ao momento que gerou o
trauma) se manifesta o desejo de postergar a tomada de consciência de que se perdeu
definitivamente alguém muito querido. Este testemunho, porém, contém o fundamento
mesmo da identidade daquele que sobreviveu a uma morte inesperada e violenta. “Ence-
nar” o trauma no relato pode enfatizar a morte e revelar um dilema ético: o acordar para
responder a essa morte e para contar aos outros a história dessa perda (CARUTH, 2000,
p. 111-112). O testemunho pode ser uma forma de esquecimento, uma “fuga para frente”
em direção à palavra e à libertação do trauma (Seligmann-Silva, 2000, p. 85-93). Na
narrativa do sobrevivente, reside a dialética que liga o lembrar ao esquecer e a tentativa
de nomear o inimaginável e realizar a “leitura de cicatrizes”14.
O esquecimento sempre atravessa o fluxo narrativo constitutivo da memória e da
identidade e opõe a ele uma falha, um “branco” que apaga, renuncia e recorta a finitude
necessária da morte, tornando-a parte da narração (GAGNEBIN, 1999, p. 3). “[...] A
memória só existe ao lado do esquecimento: um complementa o outro, um é o fundo
sobre o qual o outro se inscreve” (Seligmann-Silva, 2003a, p. 52-53). Mas por meio
da narrativa, onde o simbólico e o “real” são recriados, pode-se transformar a dor em re-
cordação, contando uma história ou fazendo dela outra história (ARENDT, 1987a, p. 87).
Para os familiares sobreviventes, o desaparecido é alguém que, estando morto, ao
mesmo tempo ainda vive. Manter a esperança de ter a pessoa viva significa a preservação
de sua memória, mas isso implica também no prolongamento da agonia. Perpetuam-se
Psicologia,Violência e Direitos humanos

a desestruturação emocional e social de maneira insuportável (CORRADI et al., 1992,


apud MEZZAROBA, 2003, p. 82). Nos relatos dos familiares, há diversas referências a
uma “falha”, ao “vazio” deixado pelos parentes mortos ou desaparecidos, conforme o tes-
temunho de Carmen Navarro Rivas, mãe de Hélio Luiz Navarro de Magalhães, militante
do PCdoB desaparecido na Guerrilha do Araguaia em março de 1974:
[...] Para mim é muito difícil, é uma dor imensa. A vida da minha família modificou-
-se por causa dessa tragédia. [...] Houve uma dissolução da família. Realmente, é uma
dor imensa que custo muito a me refazer. Tentei escrever alguma coisa sobre meu filho,
122 do meu sentimento, mas choro muito. Não tenho a menor condição de escrever sobre
ele. O sofrimento é maior do que eu possa escrever ou processar mentalmente. Então,

14 Note-se que, em português, “[...] fica acentuada a dialética íntima que liga o lembrar ao esquecer, se pensarmos na etimologia
latina que deriva o “esquecer” de cadere, cair: o desmoronamento apaga a vida, as construções, mas também está na origem
das ruínas – e das cicatrizes. A arte da memória, assim como a literatura do testemunho, é uma arte da leitura de cicatrizes”.
(SELIGMANN-SILVA, 2003a, p. 56).
procuro, até hoje, através de advogados e pessoas amigas, obter algum relato sobre ele,
o que acho que é meu direito de cidadã brasileira. Mas isso, parece, ninguém respeita.
Os processos se iniciam e a resposta é “nada consta”. Enfim, estou vivendo no completo
desconhecimento sobre o meu filho. Desconhecimento significa o seguinte: a tela está
em branco. Se a tela está em branco você pode pregar nessa tela o que você quiser. En-
tão, ele está morto? Está vivo? É um morto-vivo? É um vivo morto?

São perguntas que carrego há 35 anos e não obtenho nenhuma resposta, porque é
muito fácil escrever uma notícia dizendo que o viu subindo no helicóptero ferido etc.
Mas subiu como? Com que unidade do Exército ou da Marinha ele subiu? Quem está
dando esta informação tem que dar de forma clara e objetiva. E isto não tenho absolu-
tamente. Por isso, tenho este vácuo dentro de mim. É um vácuo enorme. Tudo pode ter
acontecido e nada sei. Pelo visto, serei a última pessoa a saber. Isso me revolta muito
como mãe, como brasileira, como professora. [...] São dois os filhos que tenho. O Hélio
[...] sempre foi uma voz dentro da casa dele. E, por isso, deixou uma saudade imensa,
deixou um silêncio imenso. Até o seu violão está mudo. Tenho o violão, o piano e vários
instrumentos musicais que ele tocava muito bem e estão todos mudos. Isto é desespera-
dor e desestrutura as famílias.15

Os testemunhos dos filhos de desaparecidos políticos retratam de maneira ainda mais


dramática a complexidade do trabalho de luto nestas circunstâncias: eles têm de lidar

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com a figura dos pais que não conheceram, mas cuja imagem de herói é grandiosa e pe-
sada. Tessa Lacerda, filha de Gildo Macedo Lacerda, militante da AP-ML (Ação Popular
Marxista-Leninista) e vice-presidente da UNE (1969-1970) assassinado sob tortura em
Recife (PE), em outubro de 1973, relatou seu sofrimento:
Sempre tive essa visão de que não é justo, não dá para aceitar essa... quer dizer... É
difícil falar... Tirar assim a vida... o governo... é difícil falar isso [...]. E tentar construir
essa imagem [do meu pai], porque não sei nada. Eu não sei como meu pai era, não sei
as coisas mais banais. Eu sei o que ele fez e sempre, na minha cabeça, fica uma coisa 123
grandiosa de herói, porque, afinal de contas, ele morreu por um ideal. Ele estava dis-
posto a isso, enfim, fica aquela coisa gigantesca que até me oprime um pouco. [...] E,

15 Entrevista concedida por Carmen Navarro Rivas à autora. Rio de Janeiro/RJ, 02/03/2005. Doravante, todas as citações de depoi-
mento de Rivas são provenientes da referida entrevista. Destaques nossos.
até hoje, é muito difícil você aceitar uma morte que não é material, que você não tem...
mais que isso, mais que essa imaterialidade da morte, para mim, [há] a imaterialidade
da vida, porque eu não tenho... não conheci meu pai. Então, é absolutamente ‘pirante’,
você tentar, por um lado, imaginar como seu pai era e, por outro, aceitar que isso que
você imaginou, morreu.16

A morte de Gildo se torna menos palpável na medida em que a família recebeu seu ates-
tado de óbito, mas não seus restos mortais (ALMEIDA, 2009, p. 484-488). O “vazio” dei-
xado pelos desaparecidos registrado nos testemunhos dos familiares e o esforço imenso
descrito por Tessa para imaginar como seu pai era e, ao mesmo tempo, ter de aceitar que
o imaginado não existe mais, remete-nos à situação descrita por Maria Rita Kehl: a preco-
cidade da perda, “[...] deixou apenas a moldura vazia do ideal para o sujeito se identificar”
(Kehl, 2005, p. 38). O esforço de tentar imaginar ou não esquecer para trazer presente à
cena este outro que já se foi, prematuramente, é comum a todos familiares e favorece que
se crie “em seu lugar uma espécie de bela casca vazia” (Kehl, 2005, p. 39).
O vazio da ausência acompanha o esforço de imaginar, inclusive, como teria sido se
ele/a estivesse vivo, possibilidade que não se esquiva da dificuldade de imaginá-lo vivo
ou morto. A dor profunda e a recusa do luto podem fazer com que uma mãe mantenha o
quarto do filho intacto desde 1969, conforme fez Carmen Navarro Rivas. Diversas mães
e pais mantêm o endereço, número de telefone, roupas e mobília de seus parentes desa-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

parecidos na espera de seu retorno. O quarto de Hélio Navarro se constituiu na tumba na


qual Carmen mantém vivo o filho, com o que procura preencher a “tela em branco” cria-
da pelo seu desaparecimento. Este quarto se assemelha também a uma tumba vazia que
exige o reconhecimento do luto negado pelo Estado e pela sociedade. Esta referência ao
vazio nos remete às palavras de Maria Rita Kehl (2005, p. 39-40): “Tanto mais bela quanto
mais vazia: o que está mais perto da perfeição do ideal do que o vazio, a morte, o nada?”.
Diante desse vazio imposto e do confisco de sua própria história, inventar ou ima-
ginar como seria a vida da pessoa perdida, imaginar além da existência aprisionada no
124
passado, torna-se necessário ou inevitável ao familiar e sobrevivente. Neste vazio se loca-
liza a confirmação imaginária da “perfeição” dos mortos e desaparecidos políticos, o que
desvaloriza ainda mais os ganhos dos que sobreviveram, gerando uma profunda sensação
de impotência e fracasso. Na melancolia, a recusa da perda transforma-se também em

16 Ver o documentário 15 Filhos, de Maria Oliveira e Marta Nehring. São Paulo, 1996, 20 min. A família de Gildo recebeu seu atestado
de óbito, mas não os seus restos mortais (ALMEIDA, 2009, p. 484-488).
identificação daquele que sobreviveu com o morto, gerando a perda de amor-próprio
(Kehl, 2005, p. 38; Jelin, 2002, p. 15), quando “a sombra” daquele que perdemos, uma
imagem idealizada, “recai sobre o eu”17.
Ao identificar-se com aquele que se perdeu, o sujeito, de certa forma, o mantém vivo
dentro de si. A identificação é a manifestação de um desejo de ter algo em comum com
o outro, operação “na qual o eu incorpora alguns traços do objeto perdido de modo a
seguir amando em si mesmo o que lhe restou da lembrança de um outro” (Kehl, 2005,
p. 36-37) própria do luto. Muitas vezes, porém, o sujeito sucumbe à identificação. Esta situ-
ação emerge com clareza nos relatos dos filhos, conforme o testemunho de Tatiana Roque
(em entrevista à autora, 11/04/2004), filha de Lincoln Bicalho Roque, dirigente do PCdoB
assassinado sob tortura em março de 1973. Por um tempo, pode parecer à mãe, ao filho
ou à esposa, que não tenha sido capaz de se fazer amar, daí que a militância política do
pai ou do parente assassinado surge como abandono:
Para mim, meu pai era um herói, mas [...] eu tinha a sensação de que ele havia me
abandonado. Outras pessoas disseram que ele poderia ter se exilado se quisesse, mas ele
não queria. A sensação, em mim, era de que, se quisesse, ele poderia ter ficado comigo.
Era a revolução ou eu, ou seja, uma escolha.
A perda abrupta e violenta acentua o sentimento de abandono, sentimento muitas
vezes não declarado, mas presente nas referências recorrentes ao vazio e ao desamparo.
Essa identificação com os mortos se apresenta nas palavras e na luta das mães como
Zuzu Angel, que registrou em seu livro autobiográfico que buscava substituir o filho na

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luta contra a ditadura (Valli, 1987); da companheira que continuou a luta do marido
assassinado ou da Associação Madres da Plaza de Mayo, que se propõe a continuar a luta
revolucionária dos filhos desaparecidos.
A repetição do relato das vítimas e sua necessidade de realizar o “testemunho
delegativo”18, que fala pelo outro que se foi, foram retratadas na canção Angélica, de
Chico Buarque, feita em homenagem a Zuzu Angel. Nos versos, Chico repete a mesma
pergunta ao final de cada estrofe “quem é essa mulher que canta sempre o mesmo estribi-
lho?”, sublinhando sua insistente busca pelo filho. Ele expressou também o desejo dela de
125
“cantar” pelo filho: “só queria cantar por meu menino, que ele já não pode mais cantar”19.

17 Nas palavras de Freud (1999): “A sombra do objeto amado, desejado e perdido, sua imagem tanto quanto a imagem do eu, recai
sobre o eu, recobre-o e o decompõe”. De acordo com Nasio (1997, p. 108, 170): “Mais do que decompor, caberia dizer que a sombra
do objeto divide o eu em duas partes, com uma parte fora da sombra – chamada supereu – enfurecendo-se contra a outra parte
que permaneceu na sombra, identificada com o objeto perdido [...].”
18 Primo Levi (1990, p. 48) fala do “testemunho delegativo” ao referir-se ao testemunho dos sobreviventes dos campos nazistas.
19 Angélica, de Chico Buarque e Miltinho, 1977; gravada no disco Almanaque, de 1981 (site http://chicobuarque.uol.com.br).
No luto, toda energia está concentrada na cicatrização da ferida, é o tempo de re-
constituição da identidade/personalidade dos familiares e sobreviventes depois de uma
perda ou um fracasso. No Brasil, contudo, o trabalho de luto interminável da melancolia
é sustentado pela manutenção do segredo em torno dos crimes da ditadura. As lutas e
memórias dos familiares, por outro lado, confrontam-nos com os problemas relativos ao
desconhecimento da história, esta lacuna que nos afasta das experiências e lembranças do
passado, dificultando a simbolização de nossos traumas históricos.

Entre o luto e a melancolia:


as lutas por verdade e justiça
Durante a ditadura, campanhas de propaganda combinadas com o terror conseguiram,
com relativa eficácia, inscrever na consciência social que os desaparecidos eram os res-
ponsáveis por seu destino em decorrência de suas atividades “subversivas”. O regime in-
duziu à culpa quando responsabilizou as famílias pela formação ideológica de seus filhos,
o que teria levado a se deixarem influenciar pelo comunismo e ideologias estrangeiras:
“A dissidência [era] um sinônimo de enfermidade social e de culpabilidade” (MOLINA
THEISSEN, 1998). Criava-se, assim, a falsa sensação de que, se alguém se mantivesse a
margem de atitudes como estas, nada lhes aconteceria. De acordo com o Centro de Infor-
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mação do Exército (CIE), jornais como o Jornal do Brasil publicavam informações sobre
a tortura, a serviço dos “subversivos”, e novelas como Irmãos Coragem, Assim na Terra
como no céu e O espigão teriam propósitos “subversivos”. As Forças Armadas se diziam
preocupadas com a “apologia à dissolução da família” (FICO, 2001, p. 185-186), conside-
rada o núcleo gerador e responsável pela formação e educação dos jovens!
A campanha de “recuperação” de presos políticos nos anos 1970 levou alguns deles à
TV para se declararem “arrependidos” e criticar as esquerdas. A influência e colaboração
dos profissionais “psi” possibilitaram a construção da imagem dos presos políticos como
“desajustados”, situação decorrente da “crise na família”. Esses discursos procuravam in-
126 duzir as famílias ao sentimento de culpa, tornando “patológicas” as atitudes dos que se
lançaram na resistência à ditadura, por meio de pesquisas sobre o perfil psicológico do
“terrorista” realizadas pelo Exército (COIMBRA, 1994, p. 197-206). Assim, emerge nas
entrevistas dos familiares a reafirmação constante de que seus filhos foram criados com
amor e educação de qualidade.
Esses familiares não estão apenas reagindo, muitos não se resignaram no papel de
vítima e lutam pelo direito à “verdade e à justiça”. Eles falam de um “lugar” existente entre
a perda de natureza ideal, mais comum na melancolia, e o reconhecimento da perda real,
relacionada ao luto. Em muitos casos, não lhes foi permitido ver o corpo morto e saber
como morreram, daí “a imaterialidade da morte”. Por outro lado, vivenciam a perda de
referencial representado pelos ideais políticos dos seus entes queridos, com os quais mui-
tos se identificaram numa tentativa de aproximação. Daí a sensação dolorosa de que suas
mortes representam para a sociedade algo “inútil”, de valor restrito ao passado, acentuan-
do os aspectos que indicam a “imaterialidade” de suas vidas.
Para superar essas perdas irreparáveis se requer a perlaboração, de forma a incorpo-
rar memórias e recordações, em lugar de reviver e “agir”20. Por outro lado, a impunidade,
a inexistência de investigação sobre esses crimes e a recusa em abrir os arquivos militares
contribuem decisivamente para que esse ciclo não se feche, interditando o luto. Esse é o
sentido do relato de Carmen Navarro Rivas:
[...] Teria que haver esse respeito pelo cidadão e dizer-lhe as coisas que se passaram.
[...] É isso que busco até hoje – saber sobre meu filho. Não tenho a informação de
morte ou de vida. Já ouvi falarem que ele é traidor e que estaria nos garimpos do Mato
Grosso, mas isso é uma coisa terrível! Não tem expressão nenhuma, porque não tem
autenticidade, não tem verdade. O que nós queremos saber é a verdade, não é dinheiro
que procuramos. Dinheiro não paga uma vida humana! Você não pode usar dinheiro
para se referir à vida humana, porque isto significa vilipendiá-la. Dinheiro é útil para

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outras coisas, não para isso. Tem que haver respeito para com esse sentimento, para
o ser humano poder sentir-se digno. Essa falta de dignidade cometida é que não se
descobriu até hoje. E é o que está faltando a essa geração. Isso me corrói a vida e me
desanima, mas tenho tido muita força espiritual para ver se algum dia descubro a
verdade. É para isso que batalho, para conhecer a informação correta e com dignidade.

[...] todos nós queremos enterrar os nossos mortos. Todos! Isso já vem desde a época
da Grécia Antiga, quando Antígona enterrou o irmão dela. O preço pode ser altíssimo, 127
mas isso é do ser humano. E esse respeito nós não tivemos. Nós não temos os ossos, não
temos nada que possamos chorar ou deixar. [...] Mas a história não acabou, parece

20 De acordo com Freud, o indivíduo está “agindo” quando, sob a influência dos seus desejos e fantasmas (fantasias) inconscientes,
vive fatos e situações antigas no presente com um sentimento de atualidade tanto mais vivo quanto lhes desconhece a origem e
o caráter repetitivo (LAPLANCHE, PONTALIS, 1985, p. 36-37).
uma novela e há sempre mais um capítulo. Isto é terrível em termos humanos. É deses-
perador. A pessoa fica desestruturada, chora, é terrível não ver o filho. Não desejo isso
ao meu pior inimigo. [...] Isso é que mais dói. Dói, pelo drama humano, e por ser um
direito a que não se tem respeito.21

No período democrático, os sucessivos governos têm bloqueado o conhecimento do pas-


sado e refreado esses conflitos, impondo aos familiares uma narrativa do reclamo recor-
rente. Para muitos, porém, este reclamo está ancorado na “loucura pela verdade e pela
justiça”22 e pela “paixão de compreender”23, que busca na história dos eventos o elemento
que lhes assegure o valor de suas denúncias e a compreensão, algo que confira significado
às experiências que marcaram suas vidas. Conscientes da dimensão trágica de sua histó-
ria, para os familiares não bastam o relato heroico ou vitimário, falta-lhes a história que
ressignifique o passado e procure transmitir o legado de seus parentes. Relatos sobre a
indiferença de parte considerável da sociedade e a importância da dimensão política de
sua luta aparecem em diversas entrevistas dos familiares, assim como na de Angela M.
de Almeida:
[...] Eu posso ter sentido, em alguns momentos, a vontade de me culpar, por razões
subjetivas, mas achar que foi tudo em vão, não, porque de qualquer forma estávamos
na luta e continuamos na luta. Assim, como o Grupo Tortura Nunca Mais faz, temos
que fazer um trabalho de memória, o que não está sendo feito com frequência. Estou
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te dando esta entrevista, mas não é fácil para mim. Esse processo de reflexão deveria
vir de reuniões em que o assunto seja tratado no tom em que estamos tratando agora e
não como é normalmente. [...] Em público tenho um mal-estar de que pareça que estou
atribuindo a mim uma coisa que é dele [Merlino].

21 Recentemente, jornalistas divulgaram que o desaparecido Hélio Luiz Navarro de Magalhães, conhecido como Edinho, teria sido
um agente da Marinha infiltrado na Guerrilha do Araguaia. Ele teria simulado sua morte e assumido nova identidade. As notícias,
porém, não apresentam provas que confirmem essas informações. Sua mãe, com esperança de encontrá-lo com vida manteve
regularizado o pagamento de imposto de renda, seu CPF e conta em banco até 2004. Em 2010, o Ministério da Defesa e a Advoca-
128 cia-Geral da União (AGU) encaminharam um ofício à Justiça Federal pedindo que a PF investigue se cinco guerrilheiros estariam
vivos, entre eles, Helio Navarro. O pedido teria se baseado em depoimentos colhidos entre camponeses e ex-militares, que não
ofereceram nenhuma evidência disso. Ver: (BELÉM, 2002); (LEITÃO, 2009); (SEQUEIRA, 2011). Desde a ditadura, as famílias rece-
bem notícias falsas de que seus parentes estariam vivos e os teriam abandonado. Persistem as medidas que visam intensificar o
sofrimento das famílias e tergiversar a apuração da verdade. Ver os protestos dos familiares (GTNM/RJ, 2009).
22 O escritor socialista francês David Rousset, judeu e sobrevivente do campo de concentração de Buchewald, define assim a postura
daqueles sobreviventes que procuraram transformar sua experiência passada em razão para agir no presente. (TODOROV, 2002, p. 178).
23 Essa é, segundo Todorov, uma das virtudes de Germaine Tillion, sobrevivente francesa do campo de concentração de Ravensbrück.
(TODOROV, 2002, p. 342).
[...] Acho que deveríamos nos dedicar mais a essas atividades de reconstituir a memó-
ria das pessoas, não só a morte, mas a vida deles, o que eles pensavam e fizeram etc.
A gente chama essas pessoas que morreram de heróis, mas não gostaria de assumir
ou que assumissem publicamente uma coisa como se eu fosse uma heroína, ou que eu
representasse um herói, essa parte é dele não é minha. [...] Acho que a reconstituição
da memória é uma das coisas mais importantes e dessa reconstituição e da história das
organizações é que pode sair a história de uma geração.

O dilema dos familiares e sobreviventes reside no fato de que o luto se realiza através
do testemunho, mas o sobrevivente precisa conviver com a dificuldade permanente de
estabelecer correspondências entre a experiência e a narrativa, entre o vivido e a palavra
(SELIGMANN-SILVA, 2003b, p. 385). Essa ambiguidade do testemunho emerge nas nar-
rativas dos familiares. O luto se apresenta nos seus relatos como tarefa árdua e ambígua
que envolve um confronto permanente com a ferida aberta, envolvendo a resistência e
a negação desses traumas e as tentativas de sua superação a cobrar um consolo, nunca
totalmente alcançável (Jelin, 2002, p. 68).
Os relatos nos informam que o trauma é aquilo que não se consegue esquecer, mas
que, ao mesmo tempo, é intolerável recordar ou até impossível de transmitir. Narrar é,
portanto, parte do trabalho da memória, algo fundamental para a superação dos traumas
individuais e coletivos. É o trabalho da memória que expõe aquilo que permanecia escon-
dido a se manifestar na repetição, possibilitando certo “esquecimento” – o desligamento

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das energias e investimentos fixados às representações do trauma. Narrar e se fazer ouvir
nos remete à importância do outro na reconstrução da memória, operação fundamental
para o enfretamento dos traumas.
O testemunho exige necessariamente a presença de um outro que escute ativamente
e torne-se um participante, ainda que diferenciado e com distintas reações. Assim, a tes-
temunha seria também “[...] aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração
insuportável do outro e aceita que suas palavras revezem a história do outro” (Gagne-
bin, 2004, p. 93). Este processo empático pode afirmar e ser veículo de reconhecimento 129
do sobrevivente e suas histórias. Neste contexto, o testemunho pode ir além da reatua-
lização da situação traumática e contribuir para que o sobrevivente assuma suas perdas,
nomeie e atribua sentido a essas experiências (Jelin, 2002, 84-89, 92-95), conforme a
experiência relatada por Angela Mendes de Almeida:
[...] O nome dele é Luiz Eduardo da Rocha Merlino, hoje eu o chamo de Merlino, mas
é um processo complicado de explicar. Nós nos tornamos militantes. Eu já era e ele
entrou imediatamente para o partido, que tinha se transformado em POC. Eu sem-
pre o chamei pelo “nome de guerra”, que é Nicolau. Depois, quando tive um filho, o
chamei Nicolau, como uma homenagem a ele. A família dele, por exemplo, o chama
de Eduardo. É um nome que me soa estranho e, quando hoje, o chamo de Merlino é
como se tivesse conseguido, depois de muito trabalho psicológico, transformá-lo numa
personagem pública [...].

[...] Durante o período em que estava no Chile ou na Argentina, tentava reviver tudo
o que ele sentiu. Tinha, por momentos, essa questão, tentei reviver a tortura física e
solitária dele. Depois, tive uma vida intelectual muito ativa quando fui para Portu-
gal e entrei na carreira da maternidade. Seria mãe, finalmente, pois queria muito
ser mãe. [...] Voltei ao Brasil [...]. Durante esse tempo, vinha para São Paulo sempre,
participando de várias coisas do tempo da Erundina, pois colocaram o nome dele em
uma rua. Acabei me afastando do passado e comecei a lembrar dele como uma pessoa
pública, como o Merlino.

No Brasil, como em outros países, além da enorme dificuldade de simbolizar o trauma, o que
torna o trabalho de luto e a elaboração tarefas sem fim, e da política de eliminação simbólica,
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foi necessário enfrentar a eliminação física daqueles que ficariam para contar essas histórias.
Alguns familiares sobreviveram aos cárceres, à tortura e às ameaças de morte – outros como
Zuzu Angel não conseguiram. Ela foi assassinada em abril de 1976, porque insistia em exigir
a apuração do desaparecimento do filho, Stuart Angel Jones, em maio de 197124.
Os familiares de mortos e desaparecidos percorreram distintos caminhos procu-
rando maneiras de sobreviver, denunciar esses crimes e realizar o luto, testemunhando
a herança de dor deixada pela ditadura. O luto dos traumas históricos, porém, só pode
se realizar a partir de um esforço político e social. Os familiares enfrentam resistências e
obstáculos em busca da superação desses agravos e da vitimização, postura que recusa a
130
ação e mobiliza apenas o lamento e a queixa.

24 Sobre Stuart Edgar Angel Jones e Zuleika Angel Jones, ver: ALMEIDA et al., 2009, p. 246-48 e 649-651. Há outro caso de uma mãe que
pode ter sido assassinada porque denunciava a morte da filha: Esmeraldina, mãe de Nilda Carvalho Cunha, foi encontrada enforcada
em sua casa, em 20/10/72. Nilda havia sido presa durante a Operação Pajussara, que resultou na morte de Iara Iavelberg e Carlos
Lamarca, e morreu em consequência das torturas sofridas, em 14/11/71, em Salvador (BA) (ALMEIDA, 2009, p. 291-292 e 382-383).
A luta dos familiares e militantes de defesa dos direitos humanos pela apuração das
mortes e desaparecimentos políticos reuniu uma significativa rede de solidariedade e mo-
bilizou a opinião pública contra a ditadura. Em abril de 1979, os familiares reunidos no
Encontro Nacional das Entidades de Anistia, no Rio de Janeiro (RJ), descobriram pistas
de que dissidentes assassinados eram enterrados no cemitério Dom Bosco, em Perus, na
cidade de São Paulo, com os nomes falsos utilizados na clandestinidade. Em 22 de agosto
daquele ano, dia da votação do projeto de lei de anistia, eles divulgaram a localização da
sepultura de dois desaparecidos: Dênis Casemiro25 e Luiz Eurico Tejera Lisbôa. Em plena
ditadura, enquanto o governo buscava controlar o protesto popular impondo uma anis-
tia que criava a declaração de “morte presumida”, os familiares divulgaram a notícia da
localização dos primeiros desaparecidos políticos. A denúncia teve grande repercussão26.
A esposa de Luiz Eurico, Suzana Lisbôa, havia encontrado o registro com seu nome
falso (Nelson Bueno) no livro de óbitos do cemitério de Perus. Familiares e jornalistas da
revista Isto É investigaram a versão oficial, segundo a qual Luiz Eurico teria se suicidado
numa pensão do bairro da Liberdade, na capital paulista. Os moradores, apesar de apa-
vorados, gravaram depoimentos desmentindo essa versão. Com a repercussão da notícia,
encontrou-se o inquérito policial, que versava sobre o suposto “suicídio”. Luiz Eurico teria
disparado quatro tiros antes de embrulhar uma das armas numa colcha para abafar o tiro
desferido na sua cabeça. O laudo necroscópico confirmava a versão de suicídio.
Em outubro de 1979 foi solicitada a reconstituição da identidade e retificação do
registro de óbito de Luiz Eurico. Em novembro do ano seguinte, o inquérito policial foi

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reaberto, pois o corpo exumado da sepultura que seria de Nelson Bueno não correspon-
dia à descrição do laudo do IML. Foram realizadas novas exumações até encontrarem
um corpo que correspondia às características do laudo. Durante as investigações fica-
ram evidentes as manobras realizadas junto aos moradores da pensão. Alguns mudaram
completamente seus depoimentos. O promotor nada investigou, limitando-se a ratificar
a versão de suicídio. As circunstâncias de sua morte não foram restabelecidas.
Nesse período, Romeu Tuma, então diretor do DEOPS/SP, respondeu ao juiz da
1ª Vara informando que nada sabia sobre o caso. Em 1992, porém, um documento de
131
1978 endereçado a Tuma foi encontrado nos arquivos do DEOPS/SP, informando a

25 Dênis era militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Ele foi preso pelo delegado Sérgio P. Fleury e desapareceu em
18/01/71. Seus restos mortais foram enterrados na Vala de Perus e identificados na Unicamp apenas em 13/08/91 (ALMEIDA,
2009, p. 249-251).
26 A manchete de capa da revista Isto É foi “Aqui está enterrado um desaparecido” disposta sobre uma foto de página inteira da
sepultura de Luiz Eurico (CARVALHO, 1979, p. 4-8).
morte de Luiz Eurico em setembro de 1972. As estruturas do aparelho repressivo da
ditadura estavam intactas.
Em 1990, o repórter Caco Barcellos registrou outra versão sobre a morte de Luiz
Eurico, quando fazia as investigações para o programa “Globo Repórter”, que levaram à
abertura da vala clandestina de Perus, em setembro daquele ano. Moradores da pensão
relataram que ele teria sido assassinado e seu suicídio foi uma farsa “montada” no local.
Em 1996, a responsabilidade do Estado pelo desaparecimento de Luiz Eurico foi
reconhecida pela Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) da
Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH). Anos depois, nada foi encontrado so-
bre sua morte nos documentos do acervo do Serviço Nacional de Informações (SNI),
custodiados pelo Arquivo Nacional desde 2005. Não obstante, encontrou-se uma carta do
ministro da justiça Armando Falcão, de outubro 1975, dirigida ao presidente da CNBB,
D. Aloísio Lorscheider, na qual afirmava que Luiz Eurico não havia sido encontrado para
cumprir a pena de seis meses de prisão. Não obstante, exista nos arquivos do SNI um
relatório sobre o traslado de seu corpo, datado de 8 de setembro de 1972.
Apesar da longa e persistente busca de Suzana Lisbôa, não foi possível reconstituir as
circunstâncias da morte de seu companheiro e nem conhecer os nomes dos responsáveis.
Ela continua sua militância na atualidade. Atuou durante dez anos como representante
dos familiares na CEMDP, de onde saiu em 2005 em protesto contra a inoperância da
comissão e do governo. Seu testemunho, contudo, é marcado pela frustração e o senti-
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mento de culpa por não ter avançado na recuperação dos fatos, mesmo consciente de que
é dever do Estado investigar. Sua fala é ambígua e pontuada pela angústia e o sentimento
de incompletude próprio do luto inconcluso:
[...] meu advogado, à época, Luis Eduardo Greenhalgh, dizia que eu deveria fazer
uma ação contra o Estado de São Paulo, para que pudesse prosperar. Eu achava que
com isso eximiria a ditadura da responsabilidade pelos crimes cometidos. Com esse
impasse, o tempo foi passando e nunca fiz ação alguma [...]. Os depoimentos integrais
da testemunha da pensão, bem como todas as gravações completas feitas pelo Caco
132 Barcellos, sumiram na sede da Rede Globo.

[...] com a Lei dos Desaparecidos [lei 9.140] e a descoberta desses documentos novos,
fiquei muito mal, porque incorporei a luta de todos, mas não consegui encaminhar o
meu caso, acho até que em função das minhas próprias características. [...] Sou capaz
de orientar os outros para fazer o que eu mesma não faço. Fico muito mal, porque o
caso do Ico [Luiz Eurico] é emblemático: foi o primeiro desaparecido a ser encontrado,
é o único que tem uma história com começo, meio e fim. Ele tinha que ter uma ação
judicial, que caracterizasse esse crime, o que ninguém fez.

[...] Houve um grupo de advogados em Brasília que estava discutindo o problema da


prescrição, se deveria contar a partir da lei 9.140 [de 1995] ou não etc. Eles me ofere-
ceram ajuda, não cobrariam, [...] mas eu não os conhecia [...] e fiquei insegura. Esta
questão jurídica é complicada e, no fim, não dei o caso para ninguém.

No nível pessoal, não ter dado andamento ao meu caso [...] me faz me sentir muito
mal. Mas a minha avaliação da luta é muito positiva. A gente conquistou muita coisa
nesses anos todos e graças à nossa persistência, à persistência de um pequeno número
de pessoas [...].

A gente conseguiu demonstrar que a ditadura militar tinha mentido nas versões de sui-
cídio, atropelamento e tiroteio. Acho que a nossa maior vitória foi essa. E também con-
seguimos incluir uma quantidade muito maior de desaparecidos na lista de pessoas re-
conhecidas como assassinadas pela ditadura. No começo, a gente achava que seriam uns
30 e poucos, mas até agora aprovamos 134, quer dizer, 100 nomes a mais. É muita coisa.

[...] Faltou apoio, ficamos sobrecarregadas [...]. Do ponto de vista pessoal foi extrema-

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mente desgastante, mas, ao mesmo tempo, muito gratificante.

Para Gertrud Mayr, mãe de Frederico Eduardo Mayr, o desfecho de um ciclo, o da busca
do corpo do filho, ocorreu com a identificação de seus restos mortais, em 1992. Ele era
militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo) e foi torturado até a morte no
DOI-CODI/SP, em fevereiro de 1972. A identificação de seus restos mortais, encontra-
dos na vala clandestina do cemitério de Perus, gerou uma grande transformação de seus
sentimentos. A situação vivida de privação da morte, a falta de um corpo que a tornasse 133
concreta e definitiva, assim como a falta dos rituais do período de luto, modificou-se,
embora continue o desconhecimento sobre as circunstâncias de sua morte. Apesar disso,
o reconhecimento dos restos mortais do filho representou para ela um momento de pas-
sagem e de ruptura com esse passado:
Me senti muito gratificada ao vê-lo identificado e de não haver mais a dúvida. E só
agora com a identificação, com a missa, o traslado do corpo, o sepultamento é que a
coisa ficou consumada. Antes, era uma coisa que só ficava lá dentro e não saía. Não que
eu estivesse reprimindo, mas era algo que não conseguia sair. Agora não, agora é o nor-
mal. É o que acontece a qualquer pessoa, a qualquer mãe, irmão quando perde alguém
da família. Ver a pessoa morta... enterrar a pessoa e saber que ela está morta... Eu só
comecei a viver isso agora. Eu o vi, vivo na tela, sorrindo, quando da apresentação da
superposição do crânio com a foto, na qual ele estava sorrindo. Era como se ele estivesse
vivo, era como se eu o estivesse vendo numa televisão, com um vídeo dele vivo27.

A maioria dos familiares de desaparecidos políticos, contudo, não teve esse direito respei-
tado. Os entraves políticos que impediram a aprovação de uma lei de anistia “ampla, geral e
irrestrita” para os perseguidos políticos em 1979, e a investigação dos crimes cometidos pela
ditadura – conforme reivindicação do movimento pela anistia e de diversos grupos políticos
da época – e a resistência à adesão ao Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo Esta-
do brasileiro, dificultaram o enfrentamento do passado. Desse modo, não se desenvolveu na
sociedade brasileira uma “postura de escuta” e nem uma memória pública sobre esses fatos.
Os familiares, especialmente, as mães, surgiram na cena pública ancoradas nos vín-
culos naturais, os laços primordiais, reproduzindo e reforçando o estereótipo do papel
tradicionalmente atribuído a elas pela sociedade, vinculado à esfera privada: o de apoiar,
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cuidar e procurar por seus parentes presos ou desaparecidos (LEITE, 2004, p.160-163).
Elas articularam uma ação própria burlando esquemas oficiais do aparato repressivo na
procura de indícios da prisão e localização de seus parentes. No início, algumas mães te-
miam se integrar ao Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), entre outros, com medo
de que tal atitude os prejudicasse, pois não sabiam se estavam presos ou mortos. Aos
poucos, consolidaram laços de companheirismo, formando uma rede de solidariedade e
apoio mútuo (JELIN, 2002, p. 115).
A ação dos familiares não se pautou pela lógica da política partidária; sua atuação
134
originou novos grupos e práticas políticas que perduram na atualidade. Nessa trajetó-
ria, “uma apelação ao privado marcou a fogo as estratégias e as legitimidades que se

27 Ver: Vala Comum de João Godoy, São Paulo, 1994. Frederico foi enterrado como indigente no cemitério de Perus com o nome
falso que usava na clandestinidade, Eugênio Magalhães Sardinha, apesar de ter ficha no DEOPS/SP com foto e nome verdadeiros,
datada de 24/02/72. Seus restos mortais foram identificados pela equipe do Departamento de Medicina Legal da Unicamp, em
25/06/92. (ALMEIDA et al., 2009, p. 323-325).
desdobrariam ao longo dos anos. A dinâmica e tensa relação entre o público e o priva-
do foi a fronteira a ser deslocada em todas as suas experiências individuais e grupais”
(Catela, 2001, p. 371).
Este trabalho solidário foi fundamental na luta de resistência à ditadura e para dis-
seminar a cultura de respeito aos direitos humanos. Ao interferirem na política do país,
essas mulheres surgiram como portadoras da memória social das violações aos direitos
humanos. A carga ética significativa de sua luta empurrou os limites da política ao bus-
carem legitimar a expressão pública do luto e da dor. Elas ocuparam, na expressão social
das memórias, um lugar destacado tornando-se narradoras, mediadoras e analistas desse
período (Jelin, 2002, p. 115).
Essa busca pela simbolização e elaboração das perdas e mortes é uma mediação entre
a palavra, da prática da escrita ou do testemunho, e a luta do tipo de Antígona, que desejava
erigir símbolos nos quais o imperativo do luto pudesse ser sancionado no espaço público. A
exigência de “verdade e justiça” tenta mostrar que é possível nomear essas experiência-limi-
te e reinscrevê-las na história do país, processando jurídica e simbolicamente esse passado.
No Brasil, contudo, os direitos civis e a justiça, muitas vezes, não são respeitados,
como demonstra o caso emblemático da ação declaratória dos familiares de desapare-
cidos da Guerrilha do Araguaia. Iniciada em 1982, apenas em 2007 os autores da ação
obtiveram a sentença definitiva na justiça brasileira. Diante da demora, esta demanda foi
encaminhada à OEA em 1995, mas a condenação do Estado brasileiro ocorreu apenas em
novembro de 2010. Com a visibilidade internacional, o governo adotou algumas iniciati-

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vas visando o cumprimento da sentença28.
Diversas ações judiciais de responsabilização civil promovidas pelos familiares não
chegaram ao término ou não foram cumpridas, assim como a da Guerrilha do Araguaia.
Essas demandas têm sido proteladas por todos os governos civis instaurados desde o fim
da ditadura. Pouco se esclareceu sobre as circunstâncias dos crimes cometidos e persiste
o segredo quanto aos fatos relacionados à repressão estatal do período ditatorial29.
Em outubro de 2004, outro fato divulgado pela imprensa expôs a persistência desse
135
28 Ver: Sentença da Ação Ordinária dos familiares de desaparecidos da Guerrilha do Araguaia, Processo nº I-44/82-B, juí-
za Solange Salgado, 20/6/2003; e Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Ara-
guaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de Novembro de 2010 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas). Disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf.
29 O presidente Lula sancionou a Lei 11.111, em 2005, estabelecendo que os documentos cujo sigilo seja “imprescindível à segurança
da sociedade e do Estado” podem ficar indefinidamente vedados à consulta. Essa lei fere o “direito à verdade”, garantido pela Consti-
tuição de 1988 (WEICHERT, M. “O direito à verdade e os arquivos sigilosos”. Disponível em: www.desaparecidospoliticos.org.br).
passado “que não passa” (Rousso, 2007). Fotos desconcertantes de um homem nu e hu-
milhado no cárcere, supostamente de Vladimir Herzog, foram publicadas no jornal Cor-
reio Braziliense. As fotos desenterraram da memória do país a história de um assassinato
brutal e tornaram-se alvo de uma nota do Exército favorável à ação repressiva exercida
pelo Estado durante a ditadura. A crise gerada pela posição inicial dos militares levou
à renúncia do então ministro da Defesa, José Viegas, mas nenhum membro das Forças
Armadas foi atingido. Não obstante, Clarice Herzog exigiu a apuração de todos os casos e
declarou: “Ficar à mercê do jogo político é a única coisa que me mete medo” (HERZOG,
2004). Logo depois, documentos do antigo Serviço Nacional de Inteligência (SNI) foram
mostrados à viúva e confirmou-se que as fotos não eram de Herzog, o que reacendeu o
debate sobre o acesso aos arquivos públicos.
Nesta ocasião, Clarice Herzog falou da dificuldade de cicatrizar as feridas constan-
temente reabertas, que prolongam a dor de um luto inconcluso, mesmo depois de sua
vitória na pioneira ação declaratória que responsabilizou o Estado pela morte de Herzog,
em 1978. Ela desabafou:
Por um lado, foi um tremendo alívio ver que o homem nu, com o relógio no pulso, não
era o meu marido no cárcere. Mas o saldo de toda essa confusão é a reabertura de fe-
ridas não cicatrizadas, é o viver de novo sentimentos terríveis, é a constatação de que
todo esse passado sombrio precisa ser esclarecido (HERZOG, 2004)30.
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Em 2010, a interpretação de que os crimes dos torturadores foram conexos aos dos
perseguidos políticos foi confirmada pelo o Supremo Tribunal Federal (STF)31, apesar
da análise contrária de juristas e advogados (Teles, 2005). A Corte Suprema confir-
mou a legitimidade da lei de Anistia, sublinhando a atualidade de um acordo político
feito por lideranças em 1979, de modo a encobrir uma série de conflitos e manobras
que impediam a participação política da sociedade naquele período. O STF preferiu
não se pronunciar quanto à sua legalidade, à luz da Constituição de 1988 e dos tratados
internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, relegando ao poder
136 legislativo a incumbência de debater sobre possíveis mudanças de uma lei estabelecida
durante a vigência do estado de exceção! A história brasileira foi reescrita novamente
sob o signo da conciliação e da impunidade.

30 Tratava-se do padre canadense Leopold d’Astous, cuja prisão ilegal ocorreu em 1974 e foi conduzida pelo extinto Serviço Nacional
de Inteligência (SNI). Ver: GREENHALGH, L. Fotos não são de Vlado, admite Clarice. O Estado de S. Paulo, p. A11. 29/10/2004.
31 Ver: OAB: julgamento da ADPF 153 objetiva recompor dignidade do Estado brasileiro perante as nações. Disponível em:
http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2167601/oab-julgamento-da-adpf-153.
Neste contexto, os familiares, embora protagonistas dessas lutas, não se tornaram a voz
hegemônica das narrativas e memórias da ditadura. Conhecemos alguns poucos livros de
testemunho feitos por familiares32. Nos últimos 30 anos, surgiram dois filmes que retratam
sua luta, Pra Frente Brasil (1982) e Zuzu Angel (2006). Ao insistirem em depositar flores em
praça pública, muitos familiares tornaram-se conscientes de que sua luta emerge da neces-
sidade de estabelecer uma ruptura com o passado de ditadura e seu legado (Teles, 2005).
Os familiares, ao colecionarem dossiês com fotos, cartas e objetos que pertenceram
aos seus entes queridos, tornaram-se colecionadores das marcas do passado. À semelhança
do “colecionador” de Walter Benjamin, indicam uma perspectiva que propõe mais do que
o combate ao impedimento à memória sobre nosso passado recente (BENJAMIN, 1980;
ARENDT, 1987b). Eles realizam uma aproximação íntima e privada, mas constroem tam-
bém uma maneira de “provar” o legado dos seus e as responsabilidades dos que comete-
ram tais crimes.
Através de sua luta, provocam, perturbam, interrogam e redimensionam o presente.
Como sobreviventes de um tempo difícil de rememorar, assumem-se como os herdeiros
da dor, aqueles que possuem o privilégio do herdeiro, o de compartilhar e, de algum
modo, transmitir, transportar a experiência do passado. Através das lutas por “verdade e
justiça”, os familiares traçam e retraçam os limites de suas e nossas identidades e da inces-
sante busca por realizar o encontro entre memória, história e justiça.
Essa herança carrega algo de obrigação e de fardo, mas não precisa assumir a dimen-
são de um dever de falar do passado. Trata-se mais de encontrar no passado o que se pode

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constituir em um horizonte a partir do qual se insere um devir, a construção de uma nova
história (ROQUE, 2005).

137

32 Ver: (MORAES; AHMED, 1994); (ASSIS, 1985); (VALLI, 1987); e (MOURA, 1982).
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A prisão da juíza Afiuni – Um
exemplo do processo autoritário
em curso na Venezuela

Belisário dos Santos Jr.

“A Justiça morreu!”, esse foi o desabafo da juíza venezuelana Maria Lourdes Afiuni, em
prisão domiciliar, aos advogados da missão da International Bar Association (IBA) que
a visitavam em Caracas. O crime da magistrada: haver reconhecido excesso de prazo
para a prisão preventiva do acusado Eligio Cedeño, acusado de fraude financeira, preso
provisoriamente desde fevereiro de 2007 e, portanto, há quase três anos. A previsão da
lei processual penal local: um máximo de dois anos para a prisão processual. A especial
circunstância: Cedeño era um “preso de Chávez”. Ou seja: juízes mais “prudentes” não
ousariam enfrentar o onipotente presidente da Venezuela.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

A juíza foi presa quinze minutos após a decisão, tomada a 10 de dezembro de 2009.
O escândalo ou a prova do interesse presidencial: no dia seguinte ao da prisão, em cadeia
nacional de rádio e televisão, Chávez pediu pena de trinta anos para Afiuni, após chamá-
-la de “bandida!”. Dias depois, pensando melhor, o Presidente da República bolivariana
da Venezuela retorna ao ar para exigir trinta e cinco anos para a ousada magistrada. É
claro que a lei penal não contempla essa condenação para qualquer crime. Mas, tentem
compreender (!): um inimigo do regime havia sido posto em liberdade.
A rigor, o preso não havia sido solto. Teve sua prisão substituída por outras medidas
processuais e inclusive entregou seu passaporte à Justiça. Mas, por haver seguido a lei,
140 a Juíza foi acusada de vários crimes, inclusive o de “quadrilha”, acusação que teve de ser
deixada de lado, à falta de qualquer “cúmplice” possível. A Juíza decidira só, como o fa-
zem os juízes de bem. A acusação de corrupção também ficou inconsistente, quando os
promotores reconheceram, em audiência preliminar, não haver prova de oferta de valor
econômico ou promessa indevida qualquer.
Detalhe importante: o Grupo de Trabalho da ONU sobre detenções arbitrárias já
havia se ocupado da prisão de Cedeño, considerando-a abusiva, emitindo resolução a
respeito, meses antes.
Além da Juíza Afiuni, a missão da IBA à Venezuela entrevistou-se com outros ma-
gistrados, inclusive do Tribunal Supremo, advogados, defensores de direitos humanos,
ademais de ter acesso a documentos processuais, entrevistas, publicações e relatórios
oficiais e de entidades de direitos humanos. Solicitou outras tantas entrevistas com
autoridades, todas negadas. A missão entrevistou-se com o representante do governo
encarregado de direitos humanos e representante da Venezuela ante a Corte Interame-
ricana de Direitos Humanos.
O relatório está para ser publicado, mas a impressão pessoal que fica é a de desinstitu-
cionalização progressiva do país. Em outras palavras, as instituições continuam existindo,
mas não servem ao objetivo a que se destinam. Na Venezuela, o Estado é Chávez. Desde
1999, a Constituição Bolivariana dá autorização para a livre remoção de Juízes, em autênti-
co processo de depuração da Justiça. Nada de processos burocráticos ou direito de defesa.
Mais da metade do Poder Judiciário é hoje composta de juízes provisórios, de livre nome-
ação. E, é claro, todos podem ser destituídos livremente, sem garantias reais de defesa.
São inúmeros os casos de juízes destituídos por decisões contrárias ao interesse do
Governo. Algumas dessas destituições foram levadas à Corte Interamericana de Direitos
Humanos, como é o caso da Juíza Mercedes Chocrón, destituída arbitrariamente desde

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2003. O crime da Juíza Chocron? Determinar inspeção para verificar se haviam sido respei-
tadas medidas de proteção garantidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos
a um dissidente político. Chávez obteve o aumento da composição do Tribunal Supremo de
Justiça, tendo nomeado, em dezembro de 2004, 17 membros efetivos e 32 suplentes, grande
parte dos quais são ativistas políticos do partido oficialista, com o que o Governo na prática
se apoderou desse tribunal, segundo análise da organização Human Rights Watch.
Igualmente, grande parte dos promotores públicos é composta de “fiscales pro-
visorios” nomeados às centenas, já que às centenas são também os destituídos. Os ad-
vogados também não escapam ao rígido controle político do Governo venezuelano. O 141

Colégio de Advogados de Caracas está sob intervenção judicial do Tribunal Supremo


de Justiça, desde 2007. O motivo real: duas chapas disputaram as eleições e ganhou a
independente, por maioria de votos. A chapa perdedora, oficialista, foi à Justiça boliva-
riana de Chávez e obteve a intervenção!
Nada a estranhar, quando se vê o pronunciamento da Chefe do Poder Judiciário, em
maio de 2009, a afirmar publicamente que o princípio de separação de poderes debilita o
Estado! Isso foi igualmente sustentado dias atrás, em fevereiro de 2011, em solenidade da
abertura do ano judiciário, em que um magistrado da sala eleitoral do TSJ, falando em nome
do Tribunal, afirmou que a função principal do Poder Judiciário na Venezuela é a de apoiar a
política de estado do governo nacional que busca um socialismo bolivariano e democrático.
No mesmo pronunciamento, pode-se ler: a Justiça não é um valor, senão um sentimento; e
ainda: a lei que foi justa ontem, hoje pode não ser mais, ainda que não revogada.
Este conjunto expressivo, ainda que meramente exemplificativo, de medidas e de-
clarações permite afirmar que a Justiça na Venezuela tornou-se mero instrumento ideo-
lógico do Governo Chávez.
Mas, não só a Justiça. A Assembleia Nacional esvaziou os Estados e Municípios de
suas competências, por meio de Leis do Poder popular, substituindo aqueles entes de
raiz na Constituição, pelas comunas organizadas que não são previstas no texto consti-
tucional, verdadeiro Estado paralelo. Em dezembro de 2010, às vésperas do final de uma
legislatura dócil a Chávez, foram aprovadas, sem nenhum debate, várias leis permitindo
desapropriação de terras, mesmo que produtivas, controle dos meios de comunicação,
entre outras medidas de indiscutível sabor autoritário.
E, aprovou-se, a pretexto de medidas urgentes para combater os efeitos das fortes
chuvas na Venezuela, que causaram mais de 130 mil pessoas desabrigadas, uma nova Lei
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Habilitante que faculta ao Presidente da República ditar decretos-lei, por doze meses, em
matéria de infraestrutura, transporte e serviços públicos, habitação, ordenação territo-
rial, e também na esfera financeira e tributária, da segurança e defesa nacional, coopera-
ção internacional e no âmbito socioeconômico. Traduzindo em miúdos: o Presidente da
República pode gerar medidas com natureza, valor e força de lei, em qualquer matéria. E
por que a Lei Habilitante veio em dezembro? É que em janeiro de 2011 tomava posse uma
nova Assembleia Nacional, agora integrada pela oposição.
A propósito dessa Lei Habilitante, Pedro Nikken, renomado jurista venezuelano,
que já presidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos e agora lidera a Comissão
142
Internacional de Juristas, sentenciou: está definitivamente instalado um estado opressor
na Venezuela. Uma conceituada juíza venezuelana, respeitada por sua experiência e sa-
ber, fala publicamente que, desde 1999, as sentenças eram proclamadas sob o risco de
pronta destituição do magistrado. Agora, as decisões são adotadas sob o terror da prisão
imediata. É o efeito Afiuni.
À autoridade encarregada de representar aquele país ante os órgãos de direitos
humanos, perguntamos a razão de jamais ter sido permitido o ingresso no país do Relator
para a Venezuela da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o advogado
brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro. A resposta veio de forma rápida: pode entrar quando
quiser, mas não como Relator da CIDH. Nem Stroessner, que governou com idêntica
concentração de poderes e a mesma disposição de exercê-la, responderia melhor. (O pa-
ralelo não é à toa, porque os mesmos fenômenos da politização da Justiça e da judiciali-
zação da política são parecidos).
A mesma autoridade não soube explicar por que os promotores, tão rápidos para
prender a Juíza Afiuni, nunca recorreram de sua decisão! Não é absurdo pensar que a
Juíza Afiuni tenha sido mandada para a prisão para enfrentar a morte. As prisões vene-
zuelanas são das mais violentas do mundo. Há notícias de 450 mortes por ano. A juíza
Afiuni conviveu, no Instituto Nacional de Orientação Feminina, com presas que ela havia
condenado. Foi submetida a todo tipo de humilhações e maus tratos. Teve recusada aten-
ção médica em várias oportunidades. Determinações da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos e medidas provisionais da Corte IDH no sentido de lhe dar lugar mais
apropriado e seguro foram ignoradas por longo tempo. O clamor internacional levou-a,
dias atrás, à prisão domiciliar.
Maria de Lourdes Afiuni era juíza titular penal até ser presa, por ironia, no dia 10 de
dezembro de 2009, dia internacional dos direitos humanos. E apenas por ter cumprido
a lei. Os membros da missão da International Bar Association prometeram a Afiuni, à

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vista de sua mãe, de sua filha e de seus advogados, e aos ouvidos dos quatro militares
que se acotovelavam no pequeno corredor do andar, o que de resto é o compromisso dos
advogados ante toda a injustiça: divulgar sempre esta absurda história real e o aparato
ideológico arbitrário que a envolve.
Ao saírem da modesta residência, já na rua, os membros da missão da IBA puderam
ler, grafitado nas paredes de todos os muros em volta, o desagravo dos moradores daquele
bairro: Juíza Afiuni, integridade e valor.
143
A justiça tão temida
(Tempos subjetivos de uma luta
contra a impunidade)1

J. Guillermo Milán-Ramos

[A minha irmã Alicia Milán]

Hace un buen rato ya que doy trabajo y vengo acostumbrándome al desuso de mi


alma, a la razón del enemigo, a mis sesenta cigarrillos diarios, a las malas costumbres
de mis canciones, que de algún modo siempre fueron nuestras, vos lo sabés, guitarra
negra... Hoy reanudo en un cómico enderezo la hora de ayer parada en su nostalgia.
Me hacen sufrir las alas que me puse para volar, mas grito y se alzan, gimo y me acom-
pañan, río y baten de a dos, como que están amándose y se odian, sin embargo mis
dos alas se odian, se enderezan, se hacen amigas mías para llevarme por todas partes:
allá está la canción, aquí la nada... Más allá el pueblo y más acá el amor... Pero el pue-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

blo está también más acá... Y antes estaba allá también, detrás del pueblo el pueblo...
Hemos viajado por todos mis caprichos y el pueblo hozando el piso, amándose con alas
como las mías... Odiando su destino, odiándome y amándome sin alas, con millones
de pies, con manos y cabezas y lenguas... Y sus mil bocas dicen: “Ahora, la suerte ya
está echada...”.
Alfredo Zitarrosa, Guitarra negra

144 1 Quero agradecer e compartilhar a alegria da publicação deste texto, tão improvável, com Alicia Milán e Estela Acosta y Lara, que
moram em Montevidéu. Alicia acompanhou a escrita passo a passo, suas ideias e observações estão no miolo do texto, como
na custosa, espinhosa elaboração a respeito da clivagem do eu. Muitos meios-dias, antes de continuar escrevendo, liguei para
consultá-la sobre pequenos incidentes, brancos de memória, detalhes de estilo, e assim várias vezes o próprio endereçamento
da escrita acabou transformado. Muitas passagens foram escritas, pois, a duas, três mãos. Estela, por sua vez, leu o texto na fase
final, de ajuste, quando mais se aprecia o impacto de uma mente como a dela, enciclopédica e insensatamente lúcida, sabedora
como poucos do que os uruguaios andam pensando, dizendo, escrevendo. Acabo agora de redigir o parágrafo que menciona Hugo
Cores, o último acrescentado ao texto, e escrevo essa nota sob a instigação de suas alfinetadas. Se a extensão e a persistência
foram minhas, a intensidade será delas.
Como dizia Lacan, a verdade tem estrutura de ficção – convidando tolos e incautos a
errar pelas palavras, lendo-as no lugar do equívoco, com a condição, interposta na
“Abertura” dos Escritos, de dar um pouco de si.
Em vista do exercício que aqui vou fazer, de antemão peço indulgência – um
exercício custoso e incerto, em parte crônica sobre fatos recentes, matéria ainda de
conjuros, em parte exame de consciência sobre fantasmas do passado, que, pelos efeitos
atuais, melhor seria considerá-los fantasmas do presente, mortos-vivos.
O passado recente é um lugar privilegiado para compreender a estrutura de ficção que
carrega a verdade: como no relato de um sonho que nos embaraçou há algumas horas atrás,
resulta um pouco mais difícil desengajar-se na narração, dissimular os lugares de enuncia-
ção, reduzir a verdade a um cristal frio – “a verdade objetiva” – e por essa via driblar a ética
em seu aspecto crucial de fidelidade, que invoca lealdades e traições2. Tratando-se de even-
tos recentes, é mais difícil furtar-nos à verdade em seu caráter essencial de processo e acon-
tecimento, que haverá de incluir, sempre, um fragmento de escolha e interesse em cada um.
Lancemos uma palavra de ordem sem alcance certo: que cada um se deixe afetar
pelo que sabe da história recente do próprio país – recente, porque ainda a história e a
memória não tiveram tempo – nem, às vezes, oportunidade, disso se trata – de realizar
ou concluir rituais de sepultamento. Sobra para mim o lugar de tolo e incauto, armado
de algumas poucas certezas.
Fazendo esse exercício, se somos suficientemente perseverantes, é inevitável
chegarmos a um estado de certa confusão, no qual não mais sabemos distinguir o mito

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da realidade, o fato da mentira, a história da literatura. A oscilação do íntimo imaginário
“historiográfico” de cada um é o passo prévio ao encontro com uma experiência que, a
cada nova manifestação, como o roçar de um fantasma, nos reduz a um instante de
perplexidade. Qual experiência?
Quando mito e fato enredam-se suficientemente, percebemos que juntos construí-
ram este mundo, que a realidade e a ficção não se opõem como “verdadeiro” e “falso” nos
manuais de lógica; que nosso senso de realidade, cerne das convicções evidentes, susten-
ta-se numa estrutura de fantasia, uma ficção verdadeira. Pô-la a serviço de atos concretos,
145
eficazes e sem volta, nos faz mais humanos, mas quando esta ficção verdadeira coloca-se
em jogo, vacila, o coração do sujeito pulsa com velocidade, e é a vida tal como ela é.

***
2 Ver: Badiou (1993/1995).
Hay Cadáveres
Néstor Perlongher

Guarda e passa.
(Virgilio a Dante, sobre o inferno; Divina Comédia, III, 51)

No meu caso, a palavra de ordem faz referência ao Uruguai. Já em vias de deslizar


pelo imaginário, observe-se como este país é mencionado pelos brasileiros, nesse
registro, na ponta da língua do mais puro imaginário. A Cisplatina, ex-província do
Império...; a exceção na região, a “Suíça da América”, de população culta e politizada...;
o país-fazenda, oportunidade de uma experiência sublime de ingestão de churrasco; a
lembrança traumática de um nefasto jogo de futebol, em 1950...; o país-cassino, paraíso
fiscal, complacente com operações financeiras ilícitas realizadas sotto voce, ajuizada-
mente, sombrio suplemento do caráter discreto e tolerante de sua população (diferente
dos argentinos, expansivos e barulhentos); e mais uma vez o futebol, o país provedor
de tremendos zagueiros, donos de uma estranha fórmula de jogo que consegue ser, ao
mesmo tempo, violento e leal, que no conhecedor brasileiro desperta, ao mesmo tempo,
censura e cumplicidade, repúdio e admiração. Os uruguaios: “como os argentinos, só que
Psicologia,Violência e Direitos humanos

mais legais”..., mas que “agora estão em crise, não?”.


A “Suíça da América” ou o que resta dela – mitos e fatos aparecem entreverados.
A “Suíça da América” ou outro nome do mesmo mito, de uso interno: o “Uruguai
Batllista”3. Com devoção, o imaginário rende culto à imagem de um passado que se
condensa neste ideal de integração e homogeneidade: o pequeno país latino-ameri-
cano que, conjugando democracia política, um estado paternalista, um modelo eco-
nômico desenvolvimentista e um tecido social solidarista, consegue sulcar com grande
sucesso as águas bravas da primeira metade do século XX; a nação democrática, com
uma vasta classe média que age como amortecedor (e silenciador) dos conflitos sociais;
146
o país com partidos políticos “tradicionais” (“Blanco”/“Nacional” e “Colorado”), tão an-
tigos como sua própria história, que distribuem os empregos públicos por “clientelismo”
ou “amiguismo”; o país em que 1 peso vale mais que 1dólar e cada peso tem seu respaldo

3 Referência a José Batlle y Ordoñez (1856-1929), presidente de Uruguai, pelo Partido Colorado, em dois períodos, 1903-1907 e
1911-1915. Impulsor de leis sociais avançadas para a época, reconhecido como o fundador do Uruguai moderno.
em ouro; o “país de imigrantes” que se orgulha de seu padrão de população homogêneo,
“europeu”, e se arrepende do massacre de famílias indígenas em Salsipuedes (Sai-se-po-
des!); o país orgulhoso de seu ensino público – “laico, gratuito e obrigatório” – que, antes
que qualquer outro país latino-americano, reduziu o analfabetismo a índices mínimos; o
país monolíngue, que com uma extraordinária rede de escolas públicas ensinou língua
espanhola aos filhos dos imigrantes, reduzindo o “bayano” ou “portunhol” a um ele-
mento folclórico da fronteira norte... ou pelo menos isso é o que diz o mito; enfim, o
país vitorioso, que colou fragmentos dispersos de identidade com a solda das grandes
façanhas futebolísticas4.
No início dos anos de 1960, essa imagem começa a descobrir, e na segunda metade
da década algo se dilacera no corpo sublime do país integrador e homogêneo: emerge
com particular violência algo que, em velha e boa linguagem marxista, chama-se “luta
de classes”. Um fato dá o marco histórico que anuncia o início da crise: em 1959 – ano
em que triunfa a Revolução Cubana – o Partido Nacional no governo assina o primeiro
de uma série de acordos (“cartas intenções”) com o Fundo Monetário Internacional. A
“Suíça da América” começa a ruir pela economia. A conjuntura econômica que tinha
permitido sua sobrevivência começava a dar sinais de esgotamento. Vagarosamente,
Uruguai começa a abandonar sua posição de exceção e, como qualquer país latino-
-americano, sofrerá com a perda de soberania que implicou a aquisição de empréstimos
externos condicionados à implantação de políticas econômicas neoliberais.
Com a polarização e a violência política e social que se anuncia, é inevitável que o

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mito do país integrador e homogêneo também se polarize, porque, em termos reais,
volta-se cada vez mais distante dos planos que as elites (“a direita”) e o FMI reservavam
para o pequeno país. Na medida em que as contradições iam se manifestando de modo
mais e mais agudo, o mito em questão já não será capaz de amenizá-las com a mesma
eficácia. Também poderá jogar como um fator molesto, pois alguns de seus traços
essenciais – o solidarismo social, o desenvolvimentismo econômico e paternalismo
estatal – era tudo o que precisava ser desmontado e substituído pelo modelo neoliberal.
No Uruguai, nos anos de 1960, as reivindicações dos militantes políticos e das orga-
147
nizações de trabalhadores e estudantes não apenas estavam determinadas pela utopia de
uma sociedade mais justa, mas também pela sensação concreta de que um tipo de laço

4 1924, Jogos Olímpicos de Paris/ Colombes, quando seus atletas ovacionados, de acordo com o mito, “inventam a volta olímpica”;
1928, Jogos Olímpicos de Amsterdam; 1930, quando organiza e ganha a primeira Copa do Mundo acima da imbatível Argentina
(4-2).
social estava em franco deterioro e que conquistas sociais adquiridas ou herdadas pode-
riam ser perdidas. Mas também as elites conseguiam recuperar e fazer uso do mito: atra-
vés do aparelho do estado e do controle dos meios de comunicação apresentavam, para
um setor importante da população, todas as ações de resistência e desobediência cíveis
como semeadoras do caos que colocava em perigo as conquistas do Uruguai tradicional.
Sendo assim, percebe-se que o mito pode ser recuperado e adaptado tanto desde
a “esquerda”, quanto desde a “direita”, se é que não aparece, em um momento de trégua
e apaziguamento, em uma posição de “neutralidade” – quer dizer, de “centro”. Ele é
complacente, belo e indiferente, infinitamente traduzível, mas no país politizado nada
se furta à polarização esquerda-direita5. O mito poderá sobreviver muito bem a ela, mas
não poderá escapar-lhe...
Os anos de 1960 deixarão claro que a “Suíça da América” será ferida de morte
pelo autoritarismo político e o neoliberalismo econômico que assomam no horizonte.
Mas ela sobreviverá enquanto mito, da mesma forma em que sobrevivem os seres que
estão feitos de matéria sublime. O mito do país integrador e homogêneo se mostrará
particularmente obstinado, resistirá à ditadura militar (1973-1985) e se projetará para
frente: um sentimento de restauração do país perdido será um dos componentes centrais
dos discursos que articulam a saída da ditadura e a “transição democrática”, vale dizer,
o período de “democracia tutelada” que se inicia em 1985 e que, até os dias de hoje,
como veremos, faz sentir seus terríveis efeitos.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

***
A história do Uruguai apresenta uma estranha obstinação de vocabulário que contribui à
criação de um sentido de continuidade e herança – pelo vocabulário reforça- se cotidia-
namente tal sentido, como uma mensagem que se transmite desde o passado, que deve
ser escutada e interpretada de forma fiel. Nesse terreno, a maior façanha dos uruguaios é
possuir os dois partidos políticos em atividade mais antigos do mundo – o Partido Blan-
148 co/Nacional e o Partido Colorado, nascidos da fidelidade nos campos de batalha a dois
grandes caudilhos, Lavalleja (a quem Artigas, antes de exilar-se, consideraria seu herdei-
ro) e Rivera (este, primeiro presidente do Uruguai). As duas facções lutariam durante a

5 Com a mesma naturalidade com que no Brasil se diz que algo é “do bem” ou “do mal”, no Uruguai se diz que algo é “de esquerda”
ou “de direita” (“reacionário”), e muitas vezes com um significado bastante aproximado.
“Guerra Grande” (1839-1851), e para diferenciarem-se usavam lenços (“divisas”) brancos
e colorados. Sobre o tal realce da antiguidade destes partidos políticos, escutei várias
vezes a anedota. Se não for apenas autoproclamada, pelo menos fielmente transmitida.
Tal tendência à manutenção dos nomes vai se repetir entre as organizações so-
ciais e políticas que foram mais perseguidas durante a ditadura militar. A CNT da
pré-ditadura vê sua continuidade garantida no PIT-CNT da pós-ditadura6, e o mesmo
fenômeno acontece com a FEUU e a ASCEEP-FEUU7. A coalizão de esquerdas “Frente
Amplio” (doravante, FA), fundada em 1971, proscrita e perseguida a partir do golpe de
1973, teve sua continuidade garantida na pós-ditadura: todos os partidos e movimentos
que o integraram na origem voltaram a reunir-se sob seu lema, com o mesmo esquema
organizativo, uma combinação de movimento de bases e partido político que acabaria se
constituindo em seu principal traço de identidade. Mas talvez o caso mais surpreendente
seja o da organização guerrilheira MLN-T8, que depois de ser perseguida e virtualmen-
te dizimada, com seus principais dirigentes encarcerados em condição de “reféns da
ditadura”9, ressurge na pós-ditadura como uma força política legal formada por vários
dos dirigentes e militantes dos anos de clandestinidade, integrando-se organicamente ao
FA em 1989. Hoje, pelo menos por número de votos obtidos nas eleições de 2009, é a
maior força política dentro da esquerda10.
Outra forma de captar este sentido de herança e continuidade é através da saga
política da família Batlle, que acumulou quatro presidentes ao longo de quatro gerações
sucessivas, chegando a exercer seis períodos presidenciais, desde a segunda metade do

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século XIX até o início do século XXI11.
Podemos também sentir esta ideia de continuidade e herança quando irrompeu al-
guma forma de interrupção que fez estremecer o corpo social e ideológico que sustenta o

6 Proscrita a CNT (Convenção Nacional de Trabalhadores), a sigla PIT (Plenário Intersindical de Trabalhadores), foi o nome adotado
por um grupo de sindicatos que organizaram o ato do 1º de maio de 1983 sob o lema: “Um só movimento sindical”, menos de dois
anos do final da ditadura.
7 Respectivamente, Associação Social e Cultural de Estudantes do Ensino Público e Federação de Estudantes Universitários do Uru-
guai.
8 Movimento de Liberação Nacional – Tupamaros. 149
9 Um estatuto diferenciado em relação aos outros presos políticos, numa espécie de zona de “ilegalidade interna à ilegalidade”, em
condições de sobrevivência duríssimas orientadas à destruição do sujeito, comparável hoje à prisão que os EUA mantêm na base
de Guantánamo, ilegal do ponto de vista da legalidade norte-americana.
10 O MLN-T tem uma expressão muito significativa dentro do agrupamento de organizações denominado Movimento de Participa-
ção Popular (MPP), que hoje, pelo número de votos recebidos nas eleições de 2009, é a maior força dentro do FA. O Presidente da
República, José Mujica Cordano, ex-dirigente guerrilheiro e ex-refém da ditadura, pertence a essa organização.
11 Lorenzo Batlle (1868-1872); o filho dele, José Batlle y Ordoñez, o célebre “Pepe Batlle” (1903-1907; 1911-1915); o sobrinho deste
último, Luis Batlle Berres (1947-1951; 1955-1956) e ainda o filho deste, Jorge Batlle Ibañez (2000-2005).
mito. A interrupção em sua forma definitiva de catástrofe foi o período da ditadura mili-
tar (1973-1985), mas também podemos nos referir à crise econômica iniciada em 2002. A
“Crise de 2002” – efeito rebote do colossal afundamento político e econômico-financeiro
que a Argentina viveu em 2001 – deixou como saldo formas extremas de comportamento
urbano “marginal”, às quais a sensibilidade média uruguaia não estava acostumada e re-
agiu com horror. A “crise de 2002” afetou com especial crueza aos jovens, que lhe deram
muita visibilidade12.
Hoje, o diagnóstico diz que o Uruguai vive uma situação de “emergência educativa”,
havendo caído muito a confiança e participação dos jovens no ensino secundário público
e com uma universidade pública que, de vários pontos de vista, nunca se recuperou
do processo de sucateamento e desmantelamento que sofreu durante o período de inter-
venção militar. Para o mito do país integrador, culto e politizado, isso é uma tragédia de
alcance incalculável.

***
Em todo este processo de ascensão e queda da “Suíça da América”, se tivéssemos que des-
tacar apenas um personagem da elite governante que tenha combatido com eficácia – e
muita visibilidade – o mito do país integrador e homogêneo, eu ficaria em dúvida entre
Psicologia,Violência e Direitos humanos

o ex-presidente colorado Jorge Pacheco Areco, que governou entre 1967 e 1971, e seu
sucessor, o também colorado Juan Maria Bordaberry, que governou entre 1972 e 1976,
período no qual aconteceu o Golpe de Estado (27 de junho de 1973).
Em dezembro de 1967, acontece um fato que é referido pelos historiadores como
um marco na pré-ditadura uruguaia: depois de poucos meses no exercício da presidência,
falece o general retirado Oscar Gestido (1901-1967), eleito pelo Partido Colorado, dei-
xando o lugar a seu vice, Jorge Pacheco Areco (1920-1998), que, ao longo de 1968, ano de
assinatura de uma nova “Carta intenção” com o FMI, dá um espantoso giro autoritário
a seu governo. Pacheco Areco foi pego de surpresa por sua fulgurante ascensão ao cargo
150 mais importante do país, mas rapidamente se recompõe e ganha coragem (“Sozinho, com
meu povo”), não tarda em introduzir uma lógica antinômica (“ou com o Presidente ou
contra ele”) e, com o apoio das elites empresariais e rurais, decide prescindir dos meca-

12 Quem andou pelas ruas de Montevidéu em algum momento posterior a 2002 sabe quem são os “planchas”, jovens submersos
na marginalidade que pedem “uma moedinha” aos motoristas quando estes se detêm nos semáforos, em troca de uma rápida
enxugada do pára-brisa – “Cualquier monedita sirve!”. Identificam-se entre si pela possessão de custosos tênis importados.
nismos tradicionais de arbítrio dos conflitos sociais13. Satirizado pelos chargistas como
um boxeador careca de lânguido olhar perverso14, começa a se apresentar como campeão
da ordem e da “luta contra a subversão”.
Ao longo de 1968, a moeda se desvalorizou, preços e salários foram congelados,
vários órgãos estatais foram militarizados, foi invadida a universidade, eliminadas sub-
venções estudantis no transporte, proibidas as reuniões ao ar livre, e as denúncias de tor-
turas em prédios policiais são cada vez mais frequentes. O ano acabou com 3 estudantes
assassinados durante protestos, 6 organizações políticas ilegalizadas e um jornal de
oposição proibido de circular. Nesse ano, o MLN-T realiza seu primeiro sequestro
político, marca inequívoca da polarização que estava em curso. Pacheco Areco governou
quatro anos aplicando de forma ininterrupta o mecanismo de “medidas prontas [pro-
visórias] de segurança”, que suspendiam garantias individuais. Não são poucos os que
afirmam que 1968 é o verdadeiro ano do início da ditadura no Uruguai.
Se Pacheco Areco arremeteu contra o mito como um lutador furioso, J. M. Borda-
berry (1928-2011) foi mais tático, combateu com consciência, por doutrina e convicção.
Fiel expoente da mais rançosa direita católica, antiliberal e antimaçom raivoso, Borda-
berry foi eleito nas eleições de novembro de 1971 em meio a amplos boatos de fraude.
Assumiu a presidência em 1º de março de 1972 e apenas 45 dias depois já deveu lidar com
um “estado de guerra interno” que implicava a suspensão de garantias constitucionais.
Em junho de 1973, apesar de que o MLN-T já estava derrotado, desmantelado e
com a grande maioria de seus integrantes presos ou exilados, Bordaberry compactua

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com as forças armadas para dissolver o Parlamento (Congresso), dando início à ditadura
militar, que o manteve como presidente de fato até sua destituição pelos militares em
junho de 1976. Bordaberry tinha planos para Uruguai: maneja-se como causa de sua
destituição um plano defendido por ele para a erradicação definitiva dos partidos polí-
ticos e a implantação de um estado corporativista, no qual as forças armadas, enquanto
fonte natural de poder, iriam ter forte participação. Para Bordaberry, a participação no
governo é incompatível com as fidelidades partidárias e com a dinâmica de debate e elei-
ções – “paralisantes” – própria de uma democracia. Quer dizer, Bordaberry pretendia o
151
fim da política15.

13 Isto é, via uma atitude de consulta e de procura de apoio político no Parlamento (Congresso), através de mediações e soluções
políticas negociadas, dentro e fora do partido de governo.
14 Na sua juventude, o “Bocha” praticou com destaque o esporte das luvas, ganhando vários títulos sul-americanos. Foi presidente
da Associação Uruguaia de Box.
15 A partir de certo momento, também, Bordaberry começou a cultivar os ideais monárquicos do “Carlismo”, de filiação espanhola.
Na internet há abundante material sobre isso – inclusive, textos “carlistas” reivindicando a figura do ex-ditador.
Em 1980, os militares no poder tentaram impor uma reforma constitucional16 que
legitimava a ditadura e instaurava um regime pseudodemocrático com forte tutela militar,
porém sem a audácia, deve reconhecer-se, de propor a dissolução total e definitiva dos par-
tidos políticos... O Uruguai democrático e politizado acabaria ganhando essa forte parada17
e, depois de eleições internas dos partidos políticos (novembro de 1982)18, e de negociações
secretas entre políticos19 e militares (“Pacto del Club Naval”, agosto de 1984), realizaram-se
eleições nacionais em novembro de 1984. Julio Maria Sanguinetti, eleito pelo Partido Colo-
rado, assumiria a Presidência em março de 1985. Iniciava-se assim a “Mudança em paz”20
e um período longo e complexo de democracia de transição, tutelada, vigiada desde os
quartéis21, o regime que foi extorquido nas negociações secretas entre políticos e militares.
O mito do país politizado, certamente, teve forte incidência neste modo de desfecho
da ditadura militar – negociada, concertada, com um imaginário restaurador. Na “Suíça da
América” muito haveria por reparar e restituir, mas os uruguaios, se alguma coisa intuíam,
se alguns podiam ver e sentir o desastre, ninguém podia vê-lo na sua totalidade, ninguém
poderia ter uma noção, nem sequer aproximada, da dimensão e da profundidade do dano.

***
Aproximadamente 15 mil pessoas passaram pelos centros de detenção da ditadura uru-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

guaia por motivos políticos. Em termos proporcionais, para um país com uma população
que não supera os 3 milhões de pessoas, essa é uma cifra espantosamente elevada, não su-

16 O plebiscito constitucional foi realizado em 30 de novembro de 1980. Durante a “campanha” predominou de forma quase
absoluta a propaganda pelo “Sim” e nos dias prévios foi divulgada amplamente uma pesquisa de opinião realizada pela em-
presa GALLUP que apontava que o projeto dos militares resultaria ganhador com 60% dos votos. Porém, o “Não” acabou levando
quase o 57% dos votos, marcando o início do declínio final da ditadura militar e inaugurando o processo de restabelecimento da
democracia.
17 Uma experiência contrária viveu o Chile. Na mesma época, Pinochet levou a plebiscito uma reforma constitucional que legitimava
a ditadura, e obteve sua aprovação.
18 O FA e todas as organizações políticas que tinham formado parte dele tiveram impedida sua participação.
152 19 Participaram das negociações representantes do Partido Colorado, FA e o pequeno partido (católico) “Unión Cívica”. O principal
líder nacionalista, Wilson Ferreira Adunate, ferrenho opositor da ditadura no exílio, retornou a Montevidéu em junho e foi ime-
diatamente preso. Isso tirou os nacionalistas das negociações. A prisão de Wilson Ferreira durou 6 meses. Pouco mais de 2 anos
mais tarde Wilson Ferreira também mostraria que sabia de “pragmatismo político” quando definiu o voto de seu setor – a maioria
do Partido Nacional – a favor da “lei de caducidade”.
20 “Cambio en paz”, lema propagandístico do setor colorado que resultou triunfador nas eleições.
21 Há um nome emblemático nesse aspecto: o General Hugo Medina, Comandante em Chefe do Exército a partir de junho de 1984
e protagonista de primeira linha do “Pacto del Club Naval”, permaneceu no comando até fevereiro de 1987, para ser nomeado
imediatamente ministro de Defesa do governo de Sanguinetti, cargo no qual permaneceu até 1990.
perada por nenhuma ditadura da região, e diz respeito à especificidade de uma estratégia
de repressão e controle. Como se afirma na “Investigación Histórica sobre la Dictadura y
el Terrorismo de Estado em el Uruguay” (UNIVERSIDADE DE LA REPÚBLICA, 2008,
v.2, p. 8), “A detenção massiva de pessoas e seu confinamento carcerário prolongado foi o
mecanismo repressivo principal aplicado pela ditadura uruguaia”.
Era comum que as pessoas fossem levadas para prisão “sem invocar razões nem
tempo determinado para as penas a cumprir” e “sem nenhuma garantia jurídica ou pro-
cessual [...], apesar da passagem de muitas delas (mas não todas) pela Justiça Militar”.
Os estabelecimentos carcerários eram concebidos com o objetivo da “destruição física e
psíquica da pessoa” (UniversidAd de la República, 2008, v.2, p. 349), sendo a
tortura e a instauração de um cotidiano de “instabilidade total” seus instrumentos privi-
legiados. Os militares sabiam que a destruição física seguida de morte e/ou desaparição
os expunha a denúncias internacionais mais contundentes, motivo pelo qual investiram
em mecanismos mais sutis tendentes a um vagaroso aniquilamento psíquico dos reclu-
sos. De acordo com um testemunho citado no informe:
o cárcere é uma prolongação da tortura, mais sutil, cientificamente planejada a
longo prazo [...]. Tortura que não deixa marcas muito ostensivas mas que produz
um desgaste enorme na batalha cotidiana e constante que é aprender a viver em
instabilidade total. (UniversidAd de la República, 2008, v.2, p. 283).

Estamos no cerne aqui do conceito jurídico atual de “Terrorismo de Estado” e de sua

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versão uruguaia, um microcosmo de horror concentracionário no qual cada calabouço
de cada cárcere irradiava efeitos para toda a sociedade22, por exemplo, através de ame-
aças sistemáticas envolvendo familiares. Essa e outras práticas, como a censura prévia
da imprensa e a limitação ou proibição de toda forma de reunião ou expressão grupal,
contribuíram para instalar na população uma “cultura do medo”, que marcou a convi-
vência das pessoas, ferindo de morte o país solidário: “Um dos efeitos mais importantes
dessa situação é a restrição nas formas de solidariedade social dado que os mecanismos
153

22 De acordo com um informe do organismo uruguaio Serviço de Paz e Justiça (1989): “A tortura não é um ato irracional de carcerei-
ros inescrupulosos, ela integrou-se como um instrumento de poder cuidadosamente administrado” (apud UNIVERSIDAD DE LA
REPÚBLICA, 2008, v2, p. 266). O objetivo é basicamente quebrar o prisioneiro/a, mas também pode-se afirmar que a tortura não
se dirige [apenas] ao corpo do detido, mas à sociedade em seu conjunto, o castigado é o corpo social que se transforma em
um prisioneiro multitudinário. Nessa fase superior a tortura transforma-se, sendo originariamente um método para fazer falar
alguém, agora procura calar a todos.
repressivos provocaram medo generalizado e o fechamento das famílias e pessoas sobre
si” (UniversidAd de la República, 2008, v.2, p. 432). Acrescenta o informe:
A dimensão da “colaboração” da população com o regime, além daqueles que coin-
cidiam com os objetivos do governo de fato, deve ser compreendida dentro de um cenário
total onde o medo era um elemento onipresente e, em muitos casos, determinante das
condutas sociais e pessoais. A “cultura do medo” gera uma paralisia nas manifestações de
oposição ao statu quo e constitui um fator disciplinador de condutas cotidianas. (Uni-
versidAd de la República, 2008, v.2, p. 432)
Os efeitos na trama social e na organização psíquica familiar e individual são de longo
prazo. Na pós-ditadura, a “cultura do medo” prolongou-se como “cultura da impunidade”
e novas formas de indiferença-individualimo (a chamada cultura do “não te metas”), e suas
consequências se fazem visíveis cotidianamente23. Cumplicidade, convicção, medo, certeza
de impunidade? Em outubro de 2009, no momento mais quente da campanha eleitoral, o
ex-presidente e candidato Luis A. Lacalle (Partido Nacional) compareceu ao programa te-
levisivo argentino “Almoçando com Mirtha Legrand”, onde afirmou: “no Uruguai há meia
dúzia de desaparecidos, ou uma dúzia de desaparecidos”.
Porém, de acordo com a organização “Madres y Familiares de Uruguayos Detenidos
Desaparecidos”, há mais de 210 casos denunciados de desaparições forçadas nas ditaduras
militares da região que apontam para algum tipo de responsabilidade do estado uruguaio,
seja porque a detenção-desaparição aconteceu em território uruguaio (mais de 30 casos)
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seja porque se trata de uruguaios detido-desaparecidos em outros países, sobretudo Ar-

23 No Uruguai, 2011 foi também o ano do debate sobre a diminuição da idade de imputabilidade dos menores (de 18 para 16 anos),
que os responsabiliza pela crise de segurança pública que vive o país. O mais entusiasmado impulsionador desta medida tem
sido o senador Pedro Bordaberry [n.1960], principal liderança do Partido Colorado e filho do ex-ditador Juan Maria Bordaberry –
mais um exemplo de continuidade dos nomes, agora com matizes revulsivos. Quanto à diminuição da idade de imputabilidade,
tudo aponta a que estamos perante a um efeito perverso da “cultura da impunidade”. Castigue-se aos menores, não aos adultos.
Bordaberry (pai), já ancião, foi enviado à prisão em novembro de 2006, e permaneceu em prisão domiciliar desde janeiro de 2007
até seu falecimento em julho de 2011, com 83 anos. Chegou a ser condenado a 30 anos por “atentado à Constituição” (quer dizer,
por golpista e ditador) nove delitos de coautoria de desaparição forçada e dois homicídios especialmente agravados. A causa
contra Bordaberry (pai) transformou-se em uma mega-causa, com múltiplas ramificações, entre elas, o sequestro em Buenos
154 Aires e posterior traslado e assassinato em território uruguaio do casal Floreal Garcia e Mirtha Hernández. Na ocasião também foi
sequestrado o filho do casal, Amaral Garcia, de 3 anos de idade, que com identidade trocada foi criado por agentes da repressão.
O jovem Amaral Garcia, que em 1985 foi identificado, recuperado e levado de novo para Uruguai pelas “Abuelas de Plaza de Mayo”,
endereçou, em maio de 2011, uma carta à opinião pública sobre a imputabilidade dos menores: “Estamos tratando aos adoles-
centes como culpados pela insegurança [...]; porém a impunidade que outros gozam (falo dos militares e cíveis que participaram
da ditadura), que acontece com eles? Não percebemos que toda essa impunidade se transforma em um hábito da sociedade? [...]
Agora estamos em um ponto de cegos e surdos, onde queremos responsabilizar aos menores de que são culpados da insegurança
imperante [...] desde os anos 70 [...] [O] problema não é o futuro, é o passado não encerrado, o que nos está devorando”. A trans-
missão de pai em sua própria carnadura, em tempos de debate sobre o alcance do “declínio do Nome-do-Pai”.
gentina (mais de 100), mas também no Chile e no Brasil24, com a intervenção de militares
uruguaios e/ou em coordenação sistemática com os aparelhos repressivos dos países em
questão (Operação Condor).
Em maio de 2009, nas considerações introdutórias de uma lei de reparação a vítimas
da ditadura (lei Nº 18.596), pela primeira vez o estado uruguaio reconheceu oficialmente
sua responsabilidade “na realização de práticas sistemáticas de tortura, desaparição for-
çada e prisão sem intervenção do Poder Judicial, homicídios, aniquilação de pessoas em
sua integridade psicofísica, exílio político e desterro da vida social”, desde junho de
1968, data em que o presidente colorado Jorge Pacheco Areco começou a governar com
“medidas prontas [provisórias] de segurança”, que suspendiam garantias individuais.

***
Produzida a “transição democrática”, logo depois da assunção do Parlamento (15 de feve-
reiro de 1985) e da posse do colorado Julio M. Sanguinetti na presidência da República
(1° de março), começaram a ser procuradas fórmulas para efetivar a liberação dos 260
presos políticos que ainda restavam nos presídios da ditadura. Arribou-se a uma “fór-
mula transacional”, na qual se diferenciava os “presos de consciência”, que resultavam
anistiados, daqueles que tinham cometido “delitos de sangue”, os quais, através de um
cômputo especial baseado no “extremo rigor” da reclusão já sofrida, também resulta-

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riam rapidamente liberados. A lei N° 15.731 de “Pacificação Nacional” foi sancionada a
8 de março, e entre 10 e 14 de março foram soltos todos os presos políticos remanes-
centes da ditadura. A lei não era “mão dupla”: excluía explicitamente de seu alcance os
crimes cometidos pelos militares durante a ditadura.
Finalizada a ditadura, cidadãos não comprometidos com o “Pacto do Clube Naval”
– como, por exemplo, familiares de detido-desaparecidos, familiares de presos políticos
assassinados na tortura, entre outros – começaram a denunciar na Justiça as mais graves
violações dos direitos humanos acontecidas durante a ditadura militar. Em dezembro de
1986, configurou-se um quadro de desacato25 da corporação militar perante as convoca- 155

tórias judiciais de alguns proeminentes violadores de diretos humanos, o que precipitou

24 Como no caso do sequestro em Porto Alegre e traslado para Uruguai de Universindo Rodriguez e Lilian Celiberti, em dezembro de
1978, por agentes repressores uruguaios.
25 O General Hugo Medina [1929-1998], que era o Comandante do Exército desde os tempos do “Pacto del Club Naval”, anunciou
que as convocatórias judiciais estavam em sua caixa-forte e que não iam sair daí.
no Parlamento a aprovação da lei N° 15.848, conhecida como “lei de caducidade” ou “lei
de impunidade” (por extenso: “Lei de Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado”) que
permitiu ao governo de Sanguinetti “contornar” a crise26. Esta lei não foi uma declaração de
anistia irrestrita dos crimes do terrorismo de Estado – por exemplo, não incluiu os crimes
cometidos antes do golpe de Estado de 1973, crimes cometidos no exterior, crimes cometi-
dos por cíveis, ilícitos econômicos, e habilita a investigação das denúncias sobre detido-de-
saparecidos e crianças sequestradas e desaparecidas27 – porém seria aplicada como se fosse
exatamente isso, geral e irrestrita, durante três períodos de governo do Partido Colorado
(Sanguinetti, durante dois períodos, e Batlle) e um do Partido Nacional (Lacalle).
A “Lei de caducidade” foi a consumação do “Pacto do Clube Naval”, vale dizer, do
aspecto extorsivo mais sombrio da “transição democrática”. Medo e pragmatismo polí-
tico se conjugaram para selar o “pacto de convivência” dos uruguaios. A saga do país
“batllista”, integrador e bipartidista, mostra certa tradição de anistias, graças, indultos,
perdões... Funcionaria dessa vez?
Em 1989 e em 2009, organizações políticas e sociais de esquerda promoveram
consultas populares com a intenção de anular a “lei de caducidade”, sem sucesso. Em
1989, o resultado foi 57% a 43% pela ratificação da lei28. Em 2009, o resultado foi de 48%
a favor da anulação da “lei de caduzidade”, insuficiente de acordo ao particular procedi-
mento plebiscitário utilizado29.
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26 Os primeiros comparecimentos estavam marcados para o dia 22 de dezembro, e a lei foi aprovada pelo Parlamento na noite do dia
anterior, com os votos do Partido Colorado e a maioria do Partido Nacional. Um dos senadores do FA, José Germán Araújo [1938-
1993], dono de uma retórica ardente que comovia e convocava muita gente desde a época da luta contra a ditadura, foi expulso
do Senado com os votos do Partido Colorado e do Partido Nacional. Foi eleito senador novamente em 1989.
27 No artículo 4 do cap. 1, a lei diz: “O Poder executivo disporá de imediato as investigações destinadas ao esclarecimento” de denún-
cias a respeito de “pessoas supostamente detidas em operações militares ou policiais e desaparecidas, assim como de menores
supostamente sequestrados em similares condições”, concedendo um prazo (120 dias) para dar a conhecer o resultado de tais
investigações. Nenhum caso de detido-desaparecidos ou de menores sequestrados foi esclarecido.
28 De acordo à organização “Madres y Familiares de Uruguayos Detenidos-Desaparecidos” a ratificação da lei foi “incidida por uma
campanha de intimidação sobre um possível retorno das forças repressivas e uma atitude totalmente parcial dos meios massivos
de comunicação” (Ver www.desaparecidos.org.uy).
29 Especialistas em ciências políticas que estudaram o caso afirmam que não deveria interpretar-se que o 52% restante foi a favor da
ratificação da “lei de caducidade”. O procedimento utilizado não permitiria isso. O votante apenas contava com a opção de dizer
156 “Sim” à anulação da lei. Este procedimento não permite introduzir nenhuma distinção “no resto”, vale dizer, discriminar os que
eram efetivamente contrários à anulação daqueles que não queriam (ou julgavam que não estavam em condições de) marcar
posição. Todo o universo de votos anulados e dos votos “em branco” – os que não desejam pronunciar-se, os que não acreditam
no procedimento do voto, os desinformados... – foram contabilizados como votos de apoio à ratificação da lei. Também, a simul-
taneidade do voto com o primeiro turno das eleições nacionais tem sido apontada como um fator de distração que não ajudou
no aprofundamento do debate de uma questão tão crucial, nem no interior da esquerda (dentro do FA houve acusações de que
importantes setores não apoiaram ou não apoiaram o suficiente) nem de cara à cidadania. No Uruguai as eleições nacionais
acontecem a cada 5 anos. O eleitor escolhe os principais cargos do Poder Executivo (Presidente, Vice-presidente) e a totalidade de
senadores e deputados; em época de eleições, normalmente, a campanha política absorve todo o esforço de militantes e candi-
datos. Talvez essa sucessão de erros incidiu no resultado do plebiscito.
Veja-se o aspecto paradoxal de ambas as situações, e ao mesmo tempo a dimensão
e a importância do empenho: por vias estritamente legais e constitucionais, grupos de
cidadãos se esforçam por modificar ou anular os efeitos de uma lei sancionada em uma
situação “de fato”, como foi ilustrado acima, em um contexto de intimidação, resultado
da ameaça militar no período pós-ditadura. Como resolver dentro da legalidade jurídica
uma questão imposta de fora da legalidade jurídica?
A “lei de caducidade” introduz enormes distorções na legalidade jurídica e no conví-
vio democrático. Supõe uma exceção plena e vigente à obrigação do Estado de promover
justiça. Isso se dissemina e se transmite como uma causa permanente de desigualdade(s)
perante a lei: aquele que tem meios, recursos e/ou força de pressão e intimidação suficien-
tes, não estaria em seu direito ao promover seu caso à categoria de exceção?
Mas o pior fator de distorção introduzido pela “lei de caducidade” é o tipo de
escolha impossível que impõe: justiça vs. aceitação dos resultados das consultas populares.
É possível plebiscitar a obrigação do estado de promover justiça? É possível plebiscitar
os direitos humanos? Seria possível organizar um plebiscito para que a população ma-
nifeste sua aceitação ou não da tortura em delegacias de polícia? Depois de sua sanção
extorsiva, depois de duas frustrantes consultas populares, será que o único meio que res-
taria a disposição da cidadania para anular os efeitos da “lei de caducidade” é organizar
um novo plebiscito, induzindo o cidadão a pronunciar-se novamente a favor ou contra
dos direitos humanos e do princípio de igualdade perante a lei?30

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***
Uma cena emblemática: em 2 de agosto de 2005, Macarena Gelman, uma jovem de
28 anos, acompanhada por Gonzalo Fernández, Secretário da Presidência da Repúbli-
ca31, foi até o “Batallón de Infantería Paracaidística Nº 12”, um prédio militar situado
nas proximidades de Montevidéu. Havendo chegado a este lugar, foi ao encontro do
Comandante em Chefe do Exército, Angel Bertolotti, que a conduziu até um recanto do
extenso campo militar, onde indicou para ela o lugar exato no qual teria sido sepultada 157

30 Lembre-se que os instrumentos de consulta popular direta (plebiscito, referendum) tiveram incidências positivas cruciais em
ocasiões anteriores, como em 1980 (rejeição da reforma constitucional proposta pelos militares no poder) e em 1992 (derrogação
de lei de corte neoliberal que habilitava a privatização das maiores empresas públicas).
31 Trata-se da presidência de Tabaré Vázquez (2005-2009), eleito pelo “Encuentro Progresista – Frente Amplio”, primeira vez na his-
tória de Uruguai que as forças de (centro-)esquerda ganharam as eleições nacionais.
clandestinamente sua mãe, Maria Cláudia García Iruretagoyena de Gelman. De acordo
com as crônicas jornalísticas, enquanto Macarena Gelman permaneceu em silêncio, du-
rante alguns minutos, no lugar indicado, o Chefe do Exército ficou junto a ela. Nos dias
seguintes foram realizadas extensas escavações, mas nada foi encontrado.
Esta arrepiante cena de “revitimização” foi o inusitado desfecho da investigação que
o presidente da República, Tabaré Vázquez (2005-2009) solicitou a seu Comandante em
Chefe, para obter informações entre os militares sobre o destino dos detido-desapare-
cidos durante a ditadura. Havia alguma chance de que os implicados se denunciassem
a si mesmos, talvez sob um manto do anonimato? O Presidente Vázquez concordou em
que a investigação fosse feita secretamente, sem necessidade de identificar os militares
implicados no caso. Depois que a ingenuidade e descaminho da iniciativa ficou evidente
para todos, o Comandante em Chefe admitiu que algum informante teria mentido, mas
que ele considerava cumprido seu dever, declarando encerrada a investigação.
Maria Cláudia Garcia Iruretagoyena de Gelman era uma jovem de 19 anos, em
estado de gravidez, quando foi sequestrada em Buenos Aires, junto a seu esposo Marcelo
Gelman, em agosto de 1976. Conduzidos a um local argentino-uruguaio da Operação
Condor, ambos permaneceram ali até outubro, quando Marcelo Gelman foi assassinado e
ele trasladada a Montevidéu num voo clandestino da força aérea uruguaia, junto a outros
20 presos políticos. Maria Cláudia foi mantida em reclusão em uma instalação militar
(SID) 32; em novembro deu à luz Macarena no Hospital Militar, e poucos dias depois do
Psicologia,Violência e Direitos humanos

nascimento foi separada de sua filha, assassinada e sepultada clandestinamente em local


até hoje não revelado pelos militares.
O bebê teve sua identidade roubada, sendo entregue a um comissário de polícia, que
a criou como filha dele. Em 1999, 23 anos depois, o poeta Juan Gelman, avô de Macarena,
conseguiu localizá-la e iniciar um processo de reencontro e recuperação da identidade
de sua neta. Tudo isso sem ajuda do governo nacionalista de Lacalle (1990-1994) nem do
governo colorado de Sanguinetti (1995-1999). Gelman solicitou-lhes ajuda várias vezes,
mas eles negavam que acontecimentos dessa natureza tivessem acontecido no Uruguai, e
afirmavam que não havia casos registrados de execuções de detido-desaparecidos, nem
158
de sequestro de bebês com roubo de identidade.
De Acordo com declarações de Gelman, Sanguinetti afirmava que ele estava queren-
do atrapalhar a campanha eleitoral do Partido Colorado33. Depois de recuperar a neta, Gel-

32 SID, “Servicio de Información y Defensa”.


33 Entrevista, jornal Página 12, Buenos Aires, 24/11/2010.
man continuou produzindo iniciativas direcionadas a obter esclarecimentos sobre a morte
de Maria Cláudia e o reconhecimento de responsabilidade por parte do estado uruguaio.
Em 2000, assume o Poder Executivo o colorado Jorge Batlle34, que conformou a
denominada “Comissão para a paz”, com o objetivo de obter informações que permitis-
sem esclarecer o destino dos detido-desaparecidos. Foi a primeira vez que um órgão
oficial reconhecia a existência de detido-desaparecidos e crianças nascidas em prédios
militares que continuavam sequestradas, declarando-os crimes de lesa-humanidade35.
De acordo com a organização “Madres e Familiares...”, através da atuação da Comissão
para a Paz, “vários casos foram esclarecidos a respeito da situação de uruguaios detido-
-desaparecidos na Argentina, com o apoio e gestões de organismos de direitos humanos”
desse país36. A referida Comissão encerrou suas atuações em abril de 2003, “deixando
em aberto uma série de questões relativas ao destino final dos detido-desaparecidos”37.

***

Outra cena emblemática: em outubro de 2006, Pedro Bordaberry – o filho de ex-ditador −,


em ascendente carreira política, compareceu ao vivo em um programa televisivo anun-
ciando que apresentaria “provas” de que seu pai não tinha nenhuma responsabilidade
em relação ao sequestro e assassinato do senador do FA, Zelmar Michelini (1924-1976),

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acontecido em Buenos Aires em maio de 1976, época em que Bordaberry (pai) era
ditador no Uruguai38. Trinta anos depois, Bordaberry (filho) gravou de forma oculta

34 Seria o primeiro presidente, na pós-ditadura, que concede entrevistas a representantes dos organismos de direitos humanos do
país.
35 A expressão de “crime contra a humanidade” apareceu nas sentenças do tribunal de Nürenberg para castigar ilícitos cometidos
“em ocasião de conflito armado” e que afetaram cíveis. A partir de 1998 (tratado de Roma, ONU), os ataques generais e siste-
máticos contra a população civil, por motivos políticos, étnicos, raciais, religiosos ou de nacionalidade, independentemente da
existência ou não de “conflito armado”, passa a ser considerado delito de Lesa-humanidade. Com base em este tratado se aplica o
conceito de Lesa-humanidade ao terrorismo de Estado. No Uruguai, os crimes contra a população cometidos durante as “medidas 159
prontas de segurança” (1968-1973) e durante a vigência do terrorismo de Estado (1973-1985) constituíram delitos de Lesa hu-
manidade, mas está em debate se esse conceito pode ter efeitos jurídicos, porque na época em que foram cometidos os crimes a
figura de Lesa-humanidade não existia no código penal uruguaio. Os delitos de Lesa-humanidade são imprescritíveis, à diferença
dos ilícitos comuns.
36 Em abril de 2003 Néstor Kirchner assumiria a presidência na Argentina, declarando questão de Estado o esclarecimento das vio-
lações aos direitos humanos durante a ditadura.
37 Ver www.desaparecidos.org.uy
38 O corpo do senador Zelmar Michelini foi achado junto ao do deputado do Partido Nacional Héctor Gutiérrez Ruiz [1934-1976], e
os de dois ex-integrantes do MLN-T.
conversações pessoais que manteve com o filho do senador assassinado, o também
senador Rafael Michelini, e apresentou trechos de uma conversa na qual Michelini (filho)
supostamente faria referência à inocência do ancião ex-ditador39. Poucos minutos depois
da transmissão do áudio, Rafael Michelini se apresentou no estúdio de TV e discutiu
em voz alta, frente a câmeras, com Bordaberry (filho), e a situação ficou tão tensa que o
âncora do programa mandou cortar o áudio. O país educado e discreto assistiu à cena
com angústia e embaraço – melhor deixar aqui um espaço em branco, que cada um
imagine a emboscada e os ardis de linguagem40.
O país conciliador olhou de novo para suas feridas, abertas e profundas. O país
culto quer entender – racionaliza e interpela esta versão crioula do grotesco. Com infini-
ta perplexidade, alguns lembraram a tragédia de Macarena Gelman – o teatro perverso
onde uma sombra de uniforme volta a roubá-la 28 anos depois; o sinistro roteirista que
com grande economia de meios – uma tumba sem ossos para enterrar – põe Antígona do
avesso; a peça inconclusa de horror mínimo que agora se revive e volta-se a repetir – só que
amplificada, maximizada, uma repetição alucinada perante milhares de espectadores.
Por que não, tentemos colocar-nos na pele do ludibriado, do filho do político assassinado
pela ditadura que confiou no filho do ditador... e resulta um ensaio demasiado artificial
de racionalização, mediação e “visão política”. Ficamos de mãos vazias, curtos em con-
tradição e desespero. Talvez alguém pense agora que o perigo, a fraude e a impunidade
moram aqui do lado; que não há como sabê-lo; que se transmite de pai para filho; que no
Psicologia,Violência e Direitos humanos

final das contas o ditador foi condenado a 30 anos de prisão por “Atentado à Constitui-
ção” e responsabilidade em múltiplos sequestros e assassinatos políticos.

***

39 Bordaberry (filho) também apresentou outra gravação na qual constaria que os assassinos foram membros de uma gangue
paramilitar argentina que estavam em busca de uma grande soma de dinheiro que estaria em poder do senador exilado.
160
40 Além do pai assassinado, Michelini (filho) teve uma irmã sequestrada e outra presa durante a ditadura. Ele continua sendo um
dos protagonistas na luta por “verdad y justicia” no Uruguai, e foi reeleito senador em 2009. Nesse mesmo ano Bordaberry (filho)
ganhou as eleições internas do Partido Colorado, foi candidato a presidente, elegeu-se senador e virou secretário geral do partido.
Sabendo do karma que carrega, os marqueteiros do Partido Colorado “foracluíram” o nome do pai do candidato do material de
propaganda (cartazes, spots televisivos etc.), restando apenas “Pedro” – curiosamente, num país em que é muito comum chamar
até os amigos pelo sobrenome. Foi derrotado por José Mujica Cordano, candidato da centro-esquerda, mas foi considerado o
grande fenômeno da eleição.
Em dezembro de 2003, no IV Congresso Extraordinário do FA, quando já se pressentia a
vitória nas eleições presidenciais do próximo ano, houve um duro debate em torno da Lei
de caducidade. Promovendo sua colocação no centro da cena, como uma questão crucial
que a força política e o país deviam atacar de frente, o deputado Hugo Cores (PVP-FA)
defendeu a necessidade de incluir explicitamente a anulação da Lei de caducidade no
programa de governo, mas ele foi contradito veementemente pelo senador Fernandez
Huidobro (MPP-FA), que afirmou que a consulta popular de 1989 devia ser respeitada e
que trazer à tona essa questão, com a eleição presidencial tão próxima, só iria favorecer à
direita.41 A posição de Fernandez Huidobro saiu triunfante (746 contra 569 dos votos dos
delegados), e o programa do FA acabou aludindo ao tema por um rodeio de palavras que
ganha valor de eufemismo: “reafirma-se a posição clara de que as normas de tratados in-
ternacionais sobre direitos humanos têm igual valor que as leis nacionais, e a esse respeito
se promoverá a adequação da legislação interna aos tratados internacionais ratificados
pelo país” (FRENTE AMPLIO, 2003, p. 7).
Nas eleições de outubro de 2004, pela primeira vez o “Encuentro Progresista – Frente
Amplio” (doravante EP-FA) saiu vitorioso na eleição para a Presidência da República. Seu
candidato, o ex-prefeito socialista de Montevidéu, Tabaré Vázquez, assumiu o cargo em
1° de março de 2005. Vagarosamente, durante o governo de Vázquez (2005-2009), algo
começa a mudar no panorama da impunidade no Uruguai, pois se mostrará favorável à
exploração de algumas “brechas” deixadas pela “Lei de Caducidade” que, como referimos
acima, não compreendia, entre outros, os crimes cometidos por cíveis, como Bordaberry,

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nem crimes cometidos no exterior, como o assassinato de Zelmar Michelini, e habilitava
investigações das denúncias sobre o destino de detido-desaparecidos e crianças sequestra-
das e desaparecidas42. O governo de Vázquez reiniciou essas investigações e pela primeira
vez foram localizados restos de dois detido-desaparecidos sepultados clandestinamente em
prédios militares. Inquéritos judiciais filtraram-se pelas brechas da “Lei de Caducidade”
o que permitiu o processamento e prisão do ex-ditador Gregório Alvarez, presidente de

41 De acordo com as palavras de Fernandez Huidobro: “Também temos argumentos políticos, companheiros: entregar-lhe-íamos 161
em bandeja de prata […] à direita, amanhã mesmo, esse argumento para colocá-lo como tema central da campanha eleitoral, des-
focando a campanha eleitoral dos problemas de nosso povo e desde ali até as eleições vamos ter que ficar discutindo todos os dias
a crise institucional na qual esse partido pode colocar o país, ainda que não seja verdade, com a derrogação da lei de impunidade.
Este é o congresso da vitória, companheiros, e a todo se pode renunciar menos à vitória, e não lhe faríamos nenhum bem a nosso
povo e a nossas crianças que hoje passam fome arriscando, com uma torpeza política como a que se nos propõe, a vitória que
está ali, hoje, ao alcance da mão” (ver: http://hugocoreslamemoriacombatiente.blogspot.com/2008/11/ao-2003.html, acesso em
15/6/2011).
42 Também não abrangia os crimes perpetrados antes do golpe de Estado (junho de 1973), nem os ilícitos econômicos.
fato entre 1980 e 1985, por ilícitos econômicos, e de um punhado de militares acusados de
múltiplos assassinatos, tortura e desaparições. Do ponto de vista jurídico-legal, nada tinha
mudado desde 1986, apenas a vontade política do Poder Executivo.
A figura do senador Rafael Michelini encarna o maior dilema prático que atravessa
a esquerda uruguaia, condensado na tensão permanente entre ética e pragmatismo; en-
tre a fidelidade subjetiva à questão dos direitos humanos, uma questão excludente, abso-
luta, inegociável, cimentada em décadas de procura de respostas sobre as circunstâncias
da morte do pai, e a fidelidade ao partido político, o FA, em cujo seio alguns políticos e/
ou agrupações deslizam para posições não tão firmes, manifestando a conveniência de
“relativizar” o problema dos direitos humanos, retirando-lhe esse caráter de “absoluto”;
que há que “aceitar” o resultado das consultas populares, deixar os problemas “do pas-
sado” para trás e dedicar-se aos múltiplos e urgentes problemas “do presente”.
No debate sobre os direitos humanos, o próprio FA encarna o desentendimento que
define a ética política. Há uma batalha interna entre a fidelidade aos princípios funda-
dores e a real politk, o pragmatismo político, a mutação que transforma o próprio rosto
de muitos políticos de esquerda quando passam a ser “da situação”, assumindo posições
ambivalentes a respeito de antigos princípios de uma negociação dos princípios. Na mar-
gem esquerda do país politizado, quem viu a força política progredir e firmar-se a si
mesma sob a bandeira dos direitos humanos, e hoje assiste atônito como o pragmatismo
político tem avançado sobre esse terreno, pode sentir-se traído em sua ética, no próprio
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princípio de sua fidelidade política.43

***
Na cidade de Montevidéu, basta dirigir-se a um ponto qualquer da periferia, andar
um pouco a esmo, para começar a avistar, em grande número, antigas estruturas fabris
abandonadas, de tijolos vermelhos, altas chaminés e janelas quebradas. É o que resta
do antigo cinturão industrial da cidade, o esqueleto do país desenvolvimentista que pro-
162 moveu um “modelo de substituição de importações”. Os livros de história dizem que a
abertura neoliberal – a invasão de produtos importados – o levou à falência.
Nas ruas da cidade, também é comum a presença dos “carritos” – os catadores de

43 Como disse uma amiga uruguaia, brincando com a letra da música “Ideologia”, de Cazuza: “meus heróis morreram de overdose,
meus (ex-)amigos estão no poder”.
lixo, os “pichis”, com seus carros de mão ou charretes – percorrendo os bairros de maior
consumo na procura de restos de comida e de materiais recicláveis – “tudo serve”. A maio-
ria deles mora em “cantegriles”, assentamentos precários (favelas) da periferia, “sob a linha
da pobreza”, e muitos montevideanos os consideram responsáveis pela endêmica sujeira
da cidade. A “partilha do sensível”44 montevideana reduz os “pichis” a entidades quase in-
visíveis, mas, durante a campanha presidencial de 2009, muitos deles atraíram os olhares
estranhados do país culto, quando começaram a pendurar, nos “carritos”, cartazes com
inscrições de apoio ao candidato presidencial do EP-FA, José Mujica Cordano [n.1934]45.
Tratando-se do candidato da esquerda, isso era um fenômeno inédito no Uruguai.
Eleito deputado em 1994 pelo MPP-FA, a desarrumada figura de Mujica irrompeu no
âmbito da política formal. Se tivesse detido sua ascensão aí, de qualquer modo o folclore
político não iria esquecer a imagem do ex-guerrilheiro chegando ao Palácio Legislativo de
“fusca” ou “lambreta”, estacionando nas vagas exclusivas de deputados e senadores. Mujica
cultivou um estilo de comunicação radicalmente descerimonioso e pungente que, além de
conquistar muitos simpatizantes dentro do FA, atraiu políticos e eleitores dos partidos tra-
dicionais, que passaram a simpatizar ou a formar parte do Encontro Progressista (EP), anel
exterior do FA. Mas seu maior sucesso, sem dúvida, foi a adesão entre os “pichis”, marginais
absolutos da política, alheios a qualquer manifestação do país culto, sem voz, sem lugar: ne-
nhum candidato anterior do FA tinha conseguido despertar neles um mínimo de interesse.
Mujica mostrava-se um político diferenciado, um grande “incluidor”, e na medida em
que foi ganhando projeção conseguiu aborrecer ao país culto. Seu estilo passou a incomo-

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dar cada vez mais, e foi feito (quase) tudo para deter sua ascensão política. Em outubro de
2003, faltando um ano para as eleições presidenciais, Mujica foi entrevistado em um pro-
grama de TV aberta, cujo âncora era Néber Araujo, o jornalista político mais prestigioso do
país. O jornalista iniciou a entrevista em tom desafiante, e em certo momento fez referência
à produção agropecuária com um toque de ironia. Mujica replicou como um raio: “Sem
desprezar, que é o único que está andando. Respeito. Não seja nabo”. Pouco depois, o jornalis-
ta se referiu a si mesmo como “homem que vem do campo”: “Deixa ver as mãos... Não, você
nunca atravessou um arame” – e assim por diante, continuou puxando o tapete discursivo
163
sobre o qual se sustentava a imagem do jornalista. Lembrada como a entrevista do “Não
seja nabo, Néber”, logo depois desta jornada sem fortuna o prestigioso âncora encerrou a

44 Conceito elaborado por Rancière (1995; 2000).


45 José Mujica Cordano possui uma surpreendente biografia – agricultor e ex-dirigente guerrilheiro (MLN-T), foi uns dos presos
políticos que a ditadura manteve como refém, para depois da retomada democrática transformar-se em dirigente do MPP-FA,
deputado, senador e Ministro de Pecuária, Agricultura e Pesca durante o governo de T. Vázquez.
carreira de jornalista... e, um ano depois, Mujica foi o candidato ao Senado mais votado,
cimentando com seu arraste o triunfo em primeiro turno do socialista Tabaré Vázquez
(EP-FA). Os episódios se seguiram... Para a esquerda, por assim dizer, “universitária”, tam-
bém foi difícil “engolir o sapo” quando em junho de 2009 Mujica triunfou nas eleições in-
ternas do FA, para cima do economista Danilo Astori, o bem sucedido ex- ministro de Eco-
nomia e Finanças. Em setembro do mesmo ano, o principal rival na corrida presidencial,
o nacionalista Luis A. Lacalle, disse em um ato público que Mujica vivia em um “sucucho”
[pardieiro], em um “cueva” [caverna]. O país culto olhou para outro lado, mas dois meses
depois viu a Mujica derrotar a Lacalle no segundo turno.

***
De qualquer lugar por onde se mire, as cenas de assunção de mando de José Mujica tive-
ram um caráter inusitado, extraordinário. Não apenas o ex-guerrilheiro sendo investido
Comandante em Chefe das Forças Armadas, as mesmas que o mantiveram preso durante
os 13 anos de ditadura. Porque, de fato, se existem os milagres, que Mujica tenha sobrevi-
vido à ditadura, que continue entre os vivos, deveria ser considerado um milagre maior,
um milagre da vida. Durante a ditadura, nove prisioneiros pertencentes ao MLN-T foram
separados dos outros presos políticos e declarados “reféns”46, entre eles, José Mujica. Eles
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tiveram que suportar um regime de detenção especialmente cruento, em desumano iso-


lamento, e padecer atrozes torturas47.
Mas Mujica sobreviveu, e no 1° de março de 2010, junto a ele, assumia também a Pri-
meira Dama, a senadora Lucía Topolansky, ex-guerrilheira e ex-presa política; o senador
Eleutério Fernández Huidobro [n.1942], ex-refém, que inciava seu terceiro período conse-
cutivo no Senado; e nos Ministérios de Defesa e do Interior dois renomados ex-guerrilhei-
ros e ex-presos políticos; entre outros. O principal convidado de honra de Mujica foi um

46 Isto significava que se o MLN-T ou outro grupo armado iniciava ações contra a ditadura, os reféns seriam executados.
164 47 Como diz a jornalista Maria Urruzola (2004), a respeito de Mujica: “Em sua história figura ter caído preso pela primeira vez em
1964, numa tentativa falida de assalto do MLN que se fez passar por ‘roubo comum’; ter confrontado a polícia a tiros e ter fugido
pelo esgoto da cidade; ter sido ferido gravemente de seis tiros (salvou-se da morte por milagre); ter fugido duas vezes do presídio
de Punta Carretas; ter ficado 13 anos preso; ter sido torturado sistematicamente e ter integrado o grupo de nove presos conhecido
como ‘os reféns’. Pouco depois do golpe de Estado de junho de 1973, nove dirigentes fundadores do MLN, entre eles Sendic, Muji-
ca, Mauricio Rosencof e Eleutério Fernández Huidobro, foram levados do “Penal de Libertad” [sic] e conduzidos permanentemente
de um quartel a outro durante sete anos. Viviam literalmente em um poço subterrâneo, isolados uns dos outros e praticamente
sem mobilidade. ‘O sintoma mais evidente de vida eram sete rãzinhas, às quais alimentava com migalhas de pão. Você sabia que
as formigas gritam? Descobri isso colocando-as perto do ouvido, para me entreter’, contou o senador Mujica numa das inumerá-
veis entrevistas que já fez desde seu ingresso ao Congresso”.
trabalhador da cana de açúcar (um “peludo”), do sindicato de camponeses (UTAA) que, na
primeira metade dos anos 60, ajudaram a fundar o MLN-T. O que faria o novo presidente?
No país político havia prudência e comedimento, mas a expectativa era enorme.
Apesar dos avanços durante o governo anterior em torno da questão dos direitos hu-
manos e a punição de alguns crimes do terrorismo de Estado, Mujica herdou o miolo do
problema jurídico-legal, a “Lei de Caducidade”, em meio a um clima de cautela e esperança
nas organizações de direitos humanos. Há um descompasso evidente: nos termos de Mujica,
o problema militar apenas começa a ser tratado agora, no entanto, o problema dos direitos hu-
manos provocado pelo terrorismo de Estado vem se colocando e amadurecendo há mais de
duas décadas. O descompasso não é um problema menor, porque pode gerar um “bloqueio
ético” dentro das forças políticas e sociais que dão sustento ao governo de Mujica48.
No plano de estratégia política a aposta de Mujica é alta, e talvez, de propósito, não
muito bem explicada. Quando foi sancionada a “Lei de Caducidade” (1986), as vítimas
da ditadura foram objeto de “revitimização” – vale dizer, foi renovada e reatualizada sua
condição de vítimas. Foram colocadas novamente fora da comunidade, fora-da-lei, num
limbo jurídico-legal: “sem direitos”, ou “com direitos restringidos” – como na ditadura,
“não iguais perante a lei”, sem direitos de exigir justiça. Nesse plano, continua vigente um
exercício passivo, atenuado, dissimulado do terrorismo de Estado, visível apenas desde
o lugar das vítimas ou de quem se mantém fiel a elas.
Se Mujica quer incluir as vítimas do terrorismo de Estado dentro da comunidade, ao
mesmo tempo não quer “perder o bonde” do problema militar. Uma avalanche de pro-

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cessos e de prisões de militares poderia ser interpretada como “vingança”, “revanchismo”:
a instituição militar reforçaria seu autismo e os planos inclusivos de Mujica teriam
fracassado. Como dissemos acima, trata-se de um grave descompasso que compromete
os planos militares de Mujica, ao mesmo tempo em que expõe a força política EP-FA a um
bloqueio ético de curso tão doloroso como incerto.

48 Não há como ler esse problema sem incluir-se nele. Se se subordina a solução do problema dos direitos humanos aos tempos do
problema militar, inevitavelmente haverá “re-vitimização”, nova ofensa, infidelidade, deslealdade, sacrifício da dimensão ética do 165
sujeito no altar da pragmática política. Daí certos chamados a “desdramatizar” o problema, vale dizer, a desubjetivá-lo, a retirá-lo
do plano da ética. Em 13/5/2011, Mujica declarou ao jornal uruguaio La República: “O que não aceito é que isto seja colocado no
plano da ética. No plano da ética tudo vira bosta. Porque então eu posso dizer o contrário, respeitar os plebiscitos é uma questão
de ética democrática, e entramos em [um terreno] onde não há argumentos”. “É bom lembrar-se dos direitos humanos do meu
bisavô, mas é fundamental lembrar-se dos direitos humanos do meu neto”. Veja-se a tensão ética política vs. pragmática política.
Mujica não admite que um processo ético, vale dizer, um processo de fidelidade subjetiva, determine as questões da justiça/ direi-
tos humanos. Retirando-os daí abre-se um jogo de múltiplas perspectivas, que permite manter a ética à distância, em suspenso,
enquanto procura-se a forma de cadenciar os tempos, mas, no país político, por isso se paga um preço.
Há uma lógica dupla, um funcionamento que, a partir de certo ponto, volta-se sobre
si mesmo e ganha uma nova perspectiva, uma dobra que introduz a razão de uma “pers-
pectiva subjetiva” dentro da racionalidade do plano ideológico-estratégico – entramos aqui
na controversa dimensão do sintoma social em Psicanálise, um terreno escuro que apenas
se ilumina em clarões fulgurantes. Sua primeira forma de manifestação é precisamente a
dificuldade de incluir as vítimas do terrorismo de Estado no discurso ou plano político-
estratégico. Isso provoca desassossego, desolação e raiva nas vítimas. Para situar de vez o
terreno em que pisamos, uma referência a um texto de Maria R. Kehl (2010, p. 125-126):
Toda “realidade” (social) produz, automaticamente, uma espécie de “universo parale-
lo”: o acervo de experiências não incluídas nas práticas falantes. Experiências loucas,
desviantes, proscritas ou simplesmente doentias. Pois mesmo aquilo que temos de mais
singular, o modo de cada um de padecer e adoecer, nem sempre pertence exclusiva-
mente a nós. Por vezes a doença, sobretudo a chamada doença mental, não passa de
um fragmento do real, um pedaço excluído da cultura – e o doente é seu “cavalo”, como
se diz no candomblé. O doente é o lugar (social) onde a doença encontrou uma brecha
para se manifestar. Nietzsche acertou ao afirmar que a doença institui um ponto de
vista privilegiado sobre a realidade.

Nesse “universo paralelo” as experiências não compartilhadas pela coletividade, ex-


periências excluídas das práticas falantes e (consequentemente) da memória, vivem
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também, pelo menos parcialmente, os que tiveram seus corpos torturados nos subter-
râneos da ordem simbólica ou sofreram a perda de amigos ou parentes desaparecidos,
vítimas de assassinatos nunca reconhecidos como tais por agentes de regimes autori-
tários.

Só a morte é de graça, diz Freud em “A clivagem do eu no processo defensivo” (1938/1977),


comentando o mecanismo pelo qual um sujeito que sofre um trauma psíquico às vezes
responde com “duas reações contrapostas, ambas válidas e eficazes”, o reconhecimento e a
166 recusa do perigo/ameaça. Mas, “como se sabe, só a morte é de graça. O resultado se alcan-
çou a expensas de uma rasgadura no eu que nunca se reparará e ficará maior com o tempo”,
e acrescenta: “As duas reações contrapostas perante o conflito subsistirão como núcleo de
uma clivagem do eu” (FREUD, 1938/1977, p. 275-276). A referência de M.R. Kehl a um
“universo paralelo” na realidade social se encaixa nesta estrutura de clivagem defensiva des-
crita por Freud. Ante uma situação traumática extrema – como a tortura – esta referência
ilustra a moeda que a vítima paga para preservar a sua vida. Diz respeito a uma dor insu-
portável que gera um conflito ou antagonismo inconciliável, e também diz da dificuldade
posterior de constituir uma ligação entre dor e fala, entre dor e saber.
A clivagem do eu – manifesta na alternância entre rejeição e reconhecimento – tam-
bém é o esquema que subjaz o rearranjo que Žižek realiza na teoria da ideologia, quando
afirma que a ideologia “parece envolver a sustentação e a evitação no tocante ao encontro
com a Coisa” (grifos nossos), vale dizer, funciona como uma forma de “regular a distân-
cia” com o objeto de desejo e/ou a Coisa (das Ding), “[sustentando] no nível da fantasia,
exatamente aquilo que procura evitar no nível da realidade”. Nesse ponto, Žižek inverte
o enunciado lacaniano “O Real é o possível” para “O impossível é Real”, procurando en-
fatizar que o encontro com o Real acontece no trauma e no ato49, embora seja difícil de
suportar, integrar e manter (ŽIŽEK; DALY, 2004/2005, p. 90).
Se uma experiência traumática cinde o eu e abala ou destrói as fidelidades, não deve-
mos perder de vista que o trauma contém seu próprio antídoto (phármakon), sua “cura”,
mas para isso produzir-se deverá mediar uma decisão ética: a partir de uma “violência
ética” que deverá exercer sobre si mesmo, o sujeito produz um objeto particular, marcado
pela intensidade e o deslumbramento, um objeto sublime portador de sua própria cisão
(que não devemos confundir com a clivagem do eu). Que objeto é esse?
A ideologia esforça-se em “nos convencer de que a Coisa nunca pode ser encontra-
da, que o Real escapa permanentemente a nossa apreensão”, e por isso seria preciso aceitar
de antemão a impossibilidade da relação, a existência de uma lacuna intransponível entre

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o vazio da Coisa e o objeto empírico-contingente que vem preenchê-la (ŽIŽEK; DALY,
2004/2005, p. 90)50. A clivagem do eu seria uma consumação acabada da colonização
ideológica da estrutura subjetiva, produzindo uma divisão estanque entre o domínio da
Coisa angustiante (angústia que abre para a castração) e o domínio do objeto contingente
que adquire o estatuto de fetiche (recusa da castração). Mas qual é o antídoto, o doloroso
phármakon? Em princípio, identificar-se ao trauma, e a partir daí produzir um objeto éti-
co, sublime e intenso – construído a partir da própria matéria (abjeta) do trauma.
167
49 Ato, aqui, em sua concepção psicanalítica lacaniana.
50 Em sua “autocrítica”, �i�ek se declara corresponsável do grave erro que supôs alimentar uma concepção transcendental do Real
como a Coisa impossível, grande ausência, vazio básico, algo “traumático demais para ser encontrado: confrontar diretamente o
Real seria uma experiência impossível, incestuosa e autodestrutiva”. Afirma: “Creio que isso não só é teoricamente errado, como
também teve consequências políticas catastróficas, uma vez que abriu caminho para uma combinação de Lacan com uma certa
problemática derridiana-levinasiana: Real, divindade, impossibilidade, alteridade. A ideia é que o Real é o Outro traumático a
quem nunca se pode responder adequadamente. Só que estou cada vez mais convencido de que esse não é o verdadeiro foco do
Real lacaniano” (�I�EK; DALY, 2004/2005, p. 85).
Adotando como modelo o esquema de pulsão, Žižek faz referência a uma relação
“particularmente intensa” entre um sujeito e um objeto privilegiado, relação na qual, para
o sujeito, o objeto empírico-contingente é a Coisa, coincide com a Coisa, só que “esse ob-
jeto é estranhamente cindido”, “duplo dele mesmo” – vale dizer, “a cisão está no próprio
objeto”, produzindo uma distância segura no interior do próprio objeto (Žižek; Daly,
2004/2005, p. 86)51. O objeto não é cindido de antemão, pelo contrário, ele se cinde a
partir da relação intensa e apaixonada que mantemos com ele, uma relação veemente,
arrebatada, e ao fazê-lo estaremos sublimando-o, elevando-o “à dignidade de Coisa”. Isso
constitui uma nova fidelidade com o objeto, o torna objeto ético, inegociável. No país
político, como ilustrar isso a partir da Lei de caducidade e de uma fidelidade possível às
exigências de “verdade e justiça”?
Sobre os planos presidenciais, dizemos que há uma lógica dupla ligada por uma
dobra interna, um instante a partir do qual a objetividade do raciocínio estratégico acusa
um desdobramento, um curto circuito, e é invadido desde algum ponto interior por uma
perspectiva subjetiva, como na anamorfose – ponto a partir da qual percebemos que
ele sempre esteve sujeito aos embates e assaltos do “universo paralelo” das experiências
loucas, desviantes, e/ou proscritas. Com um pouco mais de especificidade, marquemos o
terreno a que estamos pisando.
Antecipemos uma questão que servirá de guia: por que, para muitas vítimas, a pos-
sibilidade certa de obter justiça se transforma em algo tão difícil de suportar e integrar?
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Paremos para pensar: e se o objetivo de “verdade e justiça” é nosso próprio objeto cindido
e privilegiado? E se algumas das mais sérias dificuldades de confrontar os efeitos do ter-
rorismo de Estado se derivam do fato de que, na subjetividade das vítimas, a exigência
de “verdade e justiça” carrega consigo um estranho e abominável avesso, a lembrança do
trauma e a injustiça, da tortura e da humilhação?
Com toda sua carga de angústia e inibições, o Real traumático surge com maior
violência precisamente no momento em que o objetivo de “verdade e justiça” deixou de
ser uma chance abstrusa e remota; quando nosso sujeito, a vítima, percebe que já está
acontecendo, que o objetivo de “verdade e justiça” já está sendo realizado embaixo de
168
seus narizes..., mas isso é insuportável porque atualiza sua condição de vítima, o coloca
novamente perante a imagem, as lembranças e as sensações de sua humanidade hu-
milhada e de seu corpo torturado. Quer dizer, as inscrições do trauma que o aparelho

51 Sublinhamos novamente que não se trata aqui da distância transcendental entre objeto e das Ding, distância que, como obser-
vamos acima, é o complemento ideológico da clivagem do eu.
psíquico se esforçou em rejeitar permaneceram em grande parte não ligadas pela palavra;
a vítima pode ter realizado tentativas, sempre mais ou menos penosas, de reintegrá-las
e elaborá-las numa cadeia de significações, e esse trabalho pode tê-la ajudado a sentir-
-se um pouco mais segura no mundo, mas sempre esteve sujeita às possíveis falhas das
defesas, ao retorno no real dos acontecimentos traumáticos, com a força devastadora e a
sensação absoluta de presença com que um pesadelo é capaz de reviver uma experiência,
sem deslocamento nem algum outro recurso defensivo52.

***
Vamos ao encontro agora de dois argumentos que, no país politizado, costumam apa-
recer como enunciados de opinião política, mas que, a partir de nossas considerações
anteriores, começamos a perceber que eles surgem também, se insinuam e se filtram no
discurso com a função de “regular uma distância” com o Real traumático. O primeiro
argumento, a “teoria dos dois demônios” compõe uma racionalização de alcance mais ou
menos amplo, à que qualquer um pode aderir e identificar-se; pelo contrário, o segundo
argumento, a “lógica do combatente”, constitui uma racionalização que só adquire todo
seu valor e eficácia quando é produzida desde a posição da vítima, por tratar-se de uma
fantasia de combatente derrotado (porém, honroso e resistente, que se manteve fiel à luta
nas condições mais difíceis etc.).

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Ambas têm a função de álibi descrita acima: pôr-se à distância do lugar do “crime”,
recusar uma dor própria ou alheia. É claro que a enunciação – a condição do falante par-
ticular – determina o modo em que, em cada caso, estes argumentos são subjetivados. Se
a vítima realmente foi guerrilheiro e/ou preso político, talvez a “lógica do combatente”
tenha mais chances de captá-lo, e a clivagem defensiva adquirir um viés mais dramático,
mas não se trata aqui de desvendar uma “essência” da condição de vítima, mas de inter-
rogar por que algumas das vítimas diretas do acionar mais atroz das forças repressivas
deslizam e aderem com tanta frequência à teoria dos dois demônios e à lógica do comba-
tente, e examinar, a partir daí, os efeitos e funcionamentos relacionados a este “universo 169

paralelo” que se manifestam no corpo social.


De acordo com a teoria dos demônios, a sociedade uruguaia teria sido vítima do
enfrentamento entre guerrilha e militares, duas forças simétricas e antagônicas que luta-

52 Tal como Freud aponta em Além do princípio do prazer (1920), sobre o stress pós-traumático dos feridos nos campos de batalha
da I Guerra Mundial [1914-1918].
ram no passado em igualdade de condições, e hoje dividem entre si, em partes iguais,
responsabilidade e danos. Consente-se assim o golpe de estado: a guerrilha chama
e justifica a repressão, e nesse contexto o advento da ditadura teria sido inevitável. A
“sociedade civil” é representada como uma entidade fora do conflito em curso: testemu-
nha passiva, de antemão se declara inocente53. Trata-se de uma lógica do complemento
(totalizante) e da desculpa (a qualquer preço), mas há um fator que não explica nem
consegue dissimular: o terrorismo de Estado e seus efeitos em toda a sociedade, parti-
cularmente, sua enorme produção de vítimas. “Se não há vítimas, não há terrorismo de
Estado”; “Ocultar a existência de vítimas é a forma mais eficaz de negar o terrorismo
de Estado” – temos aqui dois raciocínios plausíveis que se derivam da teoria dos dois
demônios. Por isso, esta teoria exige um suplemento subjetivo secreto, a “lógica do com-
batente” (em termos psicanalíticos, a “fantasia do combatente”), que se propõe reintegrar
ao antagonismo-entre-dois-inimigos a perspectiva subjetiva das vítimas.
A “lógica do combatente” é uma operação de totalização e fechamento identitário
que uma vítima do terrorismo de Estado realiza para desmentir tal condição, consa-
grando para si mesmo uma imagem de “combatente”. Ela recusa e coloca uma barreira
aos afetos e representações do trauma provocado durante a sua vitimização. No passado,
para sobreviver às condições de detenção mais terríveis, fortemente traumáticas, a víti-
ma teve que aferrar-se à sua identidade de combatente, guerrilheiro, militante etc. Tal
representação de si mesmo o ajudou, o sustentou e talvez o salvou, mas à custa de uma
Psicologia,Violência e Direitos humanos

clivagem defensiva entre a condição real de vítima e a identidade de combatente.


A imagem de combatente também o amparou na saída do cárcere, na recupera-
ção da vida social, no reencontro com antigos amigos e companheiros, no retorno à
militância, e em muitas outras situações. Retornar agora sobre seus passos e reconhecer
sua condição de vítima suporia voltar a confrontar a vulnerabilidade e a indefensabili-
dade, a luta contra o horror e a morte, e os sentimentos que acompanharam essa condi-
ção – medo, ódio, raiva etc. Como a testemunha que se recusa a denunciar um crime que
aconteceu perante seus próprios olhos, o “combatente” nega para si mesmo e para todo
o universo de vítimas a condição de tal, contribuindo na prática para a invisibilização
170
do terrorismo de Estado e a perpetuação da impunidade. No fechamento identitário do
“combatente”, não há algoz nem vítima; não há torturador, delito, nem torturado. Todas
as vítimas foram combatentes e idealmente se mantêm nessa condição; os assassinados

53 Afugenta-se assim o fantasma da cumplicidade ou passividade de cíveis perante o terrorismo de Estado.


na tortura e desaparecidos são caídos em combate; os familiares dos presos políticos e
desaparecidos são combatentes; tudo aquilo que não se encaixa na cena (por exemplo,
o roubo de crianças), são os excessos próprios de uma guerra, e assim por diante.
Na discussão política, fora do alcance do controle consciente, a teoria dos dois
demônios filtra-se no raciocínio até de seus detratores mais implacáveis. Da mesma
forma, a barreira que separa as representações da vítima e do combatente é porosa.
As “duas reações contrapostas, ambas válidas e eficazes” (Freud, 1938/1977, p. 275),
funcionam como dois registros dissociados, mas os conteúdos de um lado costumam
vazar nos conteúdos do outro. Em um momento, a lógica do combatente toma conta
do discurso da vítima, e pouco depois a imagem do combatente vacila perante as im-
pressões traumáticas da vítima.
Ao nível social, durante muito tempo a Lei de caducidade funcionou como uma efi-
caz “barreira de defesa”, excluindo do debate público qualquer questionamento compre-
ensivo sobre as consequências do terrorismo de Estado, e em particular sobre a situação
das vítimas. Acontecimentos como a extorsão militar de 1986, a partir da qual surge a Lei
de caducidade, encaixam-se na visão traçada pela teoria dos dois demônios. A interrup-
ção das investigações em 1986 jogou um manto de esquecimento sobre a condição das
vítimas, e o silenciamento e a invisibilização criou o ambiente necessário para que a ló-
gica do combatente vigorasse sem sobressaltos na subjetividade de muitas delas. Porém,
a partir do final da década de 1990, a aparição de crianças sequestradas com substituição
de identidade e a comprovação de que agentes repressores do estado uruguaio tinham

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sequestrado na Argentina, trasladado para Uruguai (nos chamados “voos da morte”) e
assassinado e/ou desaparecido militantes políticos foram elementos que, pouco a pouco,
começaram a abalar o manto de silêncio. Como dissemos acima, com a Comissão para
a Paz, criada em 2000, foi a primeira vez que um órgão oficial reconhecia a existência de
detido-desaparecidos e de crianças que continuavam sequestradas, declarando-os crimes
de lesa humanidade.
Mas a clivagem continuará produzindo efeitos em duas direções. Talvez o exemplo
mais evidente deste funcionamento seja a verdadeira cisão interna que apresenta a “Lei
171
de reparação” de vítimas do terrorismo de Estado (Lei N° 18.596), aprovada em outu-
bro de 2009. Nas considerações prévias, no capítulo I (“Reconhecimento por parte do
estado”) e no Capítulo II (“Definição de vítimas”), a lei realiza uma análise compreensi-
va da situação política no Uruguai entre os anos 1968 e 1985, introduz uma definição
abrangente de vítima e promulga um amplo reconhecimento de seus direitos a uma
reparação integral – “medidas adequadas de restituição, indenização, reabilitação, satis-
fação, e garantias de não repetição” –, tudo em sintonia com a moderna jurisprudência
internacional em matéria de direitos humanos, mas, no Capítulo III (“Da reparação”)
recorta drasticamente o universo de vítimas elegíveis para serem indenizadas e, para as
vítimas ainda compreendidas, define valores indenizatórios muito inferiores aos pratica-
dos na jurisprudência internacional54, estabelecendo que aquele que se acolher aos bene-
fícios da lei renuncia a toda futura ação contra o estado uruguaio, em qualquer jurisdição.
Coletivos de vítimas e organismos de direitos humanos qualificaram este tipo de
ações como formas de “revitimização”. Quem lê a lei com um olho na lógica do comba-
tente, percebe que as vítimas excluídas dos benefícios indenizatórios (a grande maioria
das vítimas) são os adultos que se encaixam – ou deveriam se encaixar – no universo
da fantasia do combatente derrotado, honroso e resistente, que se manteve fiel à luta
nas condições mais difíceis etc.; e os adultos incluídos na lei são os que já não resultam
“úteis” para o combate (mortos, desaparecidos, os que sofreram lesões gravíssimas, e
assim por diante). Estritamente falando, a lógica do combatente despreza a reparação
indenizatória, porque é desonroso traduzir em dinheiro situações que só podem ser in-
terpretadas e avaliadas do ponto de vista dos ideais e da luta. A reparação indenizatória
ocultaria interesses econômicos e de enriquecimento inconfessáveis.

***
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Na cola das celebrações do bicentenário da Independência realizadas em vários países


latino-americanos, em 18 de maio de 2011, o Uruguai celebrou, na localidade de Las
Piedras, o bicentenário do “processo de emancipação nacional” e os 200 anos do exér-
cito. Neste lugar próximo à cidade-fortaleza de Montevidéu, tropas revolucionárias ir-
regulares comandadas por José Artigas (1764-1850) derrotaram no campo de batalha
um contingente do exército imperial espanhol55. Estava presente o exército, e no público

172
54 Por exemplo, na sentença de fevereiro de 2011, correspondente ao “Caso Gelman vs. Uruguai”, a Corte Interamericana de Direi-
tos Humanos obriga ao estado uruguaio a pagar uma indenização aproximadamente 5 vezes maior do que a prevista na Lei de
reparação. A Corte Interamericana chegou aos valores indenizatórios realizando um estudo do caso, levando em conta cálculos
de ingressos não recebidos por Maria Cláudia Garcia de Gelman e o dano imaterial (“dano moral”). A Lei de reparação não prevê a
possibilidade de calcular os valores indenizatórios de acordo à especificidade de cada caso.
55 Distante ainda estava o estado independente, que só viria em 1830, e bem mais distante ainda a elevação do “tirano” e “anar-
quista” Artigas ao pedestal de herói nacional. Artigas lutou por ideais federalistas, e depois de derrotado, em 1820, exilou-se no
Paraguai, onde permaneceria por 30 anos, até sua morte em 1850, sem jamais voltar ao Uruguai.
assomavam os emblemáticos cartazes com as fotos do detido-desaparecidos, carregados
por seus familiares. A cena é propícia para o emotivo discurso conciliatório do presi-
dente Mujica: “Piedade para os vencidos!”56;“Ao ódio há que sujeitá-lo dentro das nossas
tripas porque apenas serve para a barbárie”; “Não devemos trasladar às gerações futuras as
frustrações das nossas – digo isso como um velho que pus uma arma no cinto”; “Há dores
ocultas e velhas que choram pelos ossos de seus filhos, há muita dor e injustiça”; “Que cada
um carregue sua mochila”.
Já adquirimos perícia, que cada um encontre aí o presidente, a vítima, o combaten-
te, o refém, o político, o torturado. No dia seguinte, um representante da organização
de mães e familiares de detido-desaparecidos chamou a atenção sobre a palavra “ódio”,
usada por Mujica57. Que disse o presidente? Não era coincidência que no dia seguinte
ao ato em Las Piedras estava marcada na Câmara de Deputados a votação que sancio-
naria a chamada “Lei interpretativa”, uma lei que, de acordo com seus proponentes do
EP-FA, reduzia a “letra morta” a Lei de caducidade. Também não era coincidência que
a referida votação tinha sido marcada na véspera da “Marcha do Silêncio”, convocada
pela organização de mães e familiares de detido-desaparecidos58. O país político assistia
dividido o desenrolar dos acontecimentos – assombro, indignação, saturação, alarme e,
claro, sonolência e sentido da oportunidade. A anedota diz que o EP-FA contava com os
votos necessários para a sanção da Lei interpretativa, uma maioria estreita59, mas que,
por interferência direta de Mujica, não foi aprovada. Mas a anedota não se iguala com o
efeito catalisador e revulsivo, com a aceleração dos tempos subjetivos acontecido durante

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o debate em torno da Lei interpretativa.
À medida que transcorriam os dias, reduziram-se as peças no tabuleiro, e o jogo
ficou mais aberto, ganhando em clareza: do ponto de vista jurídico- legal, a Lei inter-
pretativa fazia vigorar dentro do sistema jurídico a declaração de inconstitucionalida-

56 “Clemencia para los vencidos”, frase pronunciada por Artigas uma vez finalizada a “Batalla de Las Piedras”, num tempo e circuns-
tância onde a prática comum seria passá-los na degola.
57 “Familiares: La palabra odio es muy fuerte”. Jornal El País, 19/5/2011.
58 Convocada todos os anos em 20 de maio, aniversário do assassinato do senador Michelini e do deputado Gutierrez Ruiz. 173
59 Uma maioria estreita, mas que opera eficazmente no governo. O Senado tinha dado sua meia -sanção, e o FA tinha mandatado
os deputados da legenda para proceder à sanção definitiva (o “mandato” envolve a disciplina e a ética partidária, e é emitido por
uma instância superior no FA, o Plenário de delegados). O presidente Mujica tinha dito que não interferiria na discussão do pro-
jeto em nível parlamentar e que aceitaria o resultado; mas, faltando poucos dias para sua sanção, solicitou uma reunião com os
deputados do EP-FA e argumentou fortemente contra a aprovação da lei. Isso foi suficiente para que um deputado se declarasse
em rebeldia e se ausentasse durante a votação, impedindo a aprovação. A maioria do EP -FA em Deputados é 50-49. A votação
foi 49-49. Houve quem falou em “imolação”, e alguém disse, depois da votação: “Não vamos matar o mensageiro”, solicitando
piedade para o velho deputado rebelde.
de da Lei de caducidade emitida pela Suprema Corte de Justiça em outubro de 2009
(consolidada em diversas resoluções e sentenças). Igualmente, sincronizava os tempos
de Uruguai com a lei internacional, ante a demolidora condenação que a Lei de cadu-
cidade recebeu na Corte Interamericana de Direitos Humanos. A decorrência geral era
a anulação retroativa dos efeitos da Lei de caducidade, porém, de acordo com vários
advogados constitucionalistas, isso lesava o princípio constitucional segundo o qual as
normas penais mais gravosas não podem ter efeito retroativo. Se fosse aprovada, dis-
seram alguns juristas, a Lei interpretativa também seria declarada inconstitucional. No
país conservador, a ilegalidade da Lei de caducidade tinha se firmado e encontrado um
nicho protetor dentro da legalidade.
No país político, a Lei interpretativa gerou um escândalo mor, porque desprezava o
resultado das consultas populares. A esquerda titubeante entrou em cena e o país impune
se deleitou com o que viu: traumas, temores e inibições, o horror ante a ousadia, a falta de
coragem e entusiasmo no momento crucial de tirar as necessárias consequências diante
da evidência de que a Lei de caducidade era ilegal. Quando a Lei interpretativa chegou
ao Senado, quem se mostrou mais afetado foi o ex-guerrilheiro e ex-refém da ditadura
Eleutério Fernandez Huidobro, o porta-voz mais esclarecido da “lógica do combatente”60.
Por disciplina partidária, votou a favor da lei, mas fez a mais veemente argumentação
contrária e, para surpresa de todos, renunciou à sua cadeira. Agitado pela oposição e
por vários representantes do partido de governo, o argumento do desrespeito às consul-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

tas populares viria a afetar principalmente a esquerda vacilante, sonolenta, indecisa, que
acredita ser possível enfrentar a impunidade sem pagar o preço (sem perder votos). As
tensões se expandiram no interior do EP-FA, conduzindo-o ao que parecia seu destino, a
encruzilhada ética. O pesadelo interrompia um longo sono.
Por que a lei interpretativa teve esse efeito catalisador, repulsivo? Porque mostrou
limites e impasses no discurso. Também impotências, cegueiras. Como restituir a justi-
ça quando uma lei ilegal foi incorporada no sistema jurídico? Parece temerário dizê-lo,
porém, se da vida legal se trata, a justiça só poderá ser restituída pela via de uma nova
“lei ilegal” – “ilegal” do ponto de vista do sistema que incorporou, para todos os efeitos, a
174
lei ilegal inicial, a que abre o ciclo de ilegalidade. A Lei interpretativa era uma “lei ilegal”

60 Ver, por exemplo, “Una cosa son los muertos en combate, y otra en las torturas”, entrevista, jornal El Observador, Montevidéu,
26/4/2011; “La verdadera dirección está exiliada y desterrada”, entrevista, jornal La República, Montevidéu, 18/4/2011.
do ponto de vista do sistema que incorporou a impunidade. Os técnicos em direito pro-
curam e acham as fórmulas jurídicas para superar situações, mas nisso não resta mérito
ao fato de que, em uma encruzilhada como a descrita, uma situação política chama uma
solução política. O filósofo Jacques Rancière utilizou uma fórmula engenhosa, a “parce-
la dos sem-parcela”, para localizar, em cada sociedade, o “lugar da política”: “A política
existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma
parcela dos sem-parcela” (RANCIÈRE, 1995/1996, p. 26). Talvez a analogia funcione para
compreender que, com a Lei interpretativa, o que estava em jogo era – através de um
gesto político puro e “ilegal”, um gesto político de ruptura com o sistema que aceitou a
impunidade – a reincorporação dos “sem-justiça” ao sistema da justiça – uma forma de

Referências
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Žižek, S.; Daly, G. (2004). Arriscar o impossível. Conversas com Žižek. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

175
A lei de anistia no Brasil:
as alternativas para a verdade
e a justiça

Paulo Abrão

1. Brevíssimo panorama sobre a Justiça


de Transição no Brasil
Psicologia,Violência e Direitos humanos

O processo de Justiça de Transição após experiências autoritárias compõe-se de pelo me-


nos quatro dimensões fundamentais: (i) a reparação, (ii) o fornecimento da verdade e
construção da memória, (iii) a regularização da justiça e restabelecimento da igualdade
perante a lei e (iv) a reforma das instituições perpetradoras de violações contra os direitos
humanos (TEITEL, 2000; ZALAQUETT, 1999; GENRO, 2009). O Brasil possui estágios
diferenciados na implementação de cada uma destas dimensões e muitas medidas têm
sido tardias em relação a outros países da América Latina1.
A principal característica do processo de Justiça de Transição no Brasil é o de que as
176 medidas de reparação têm sido o eixo estruturante da agenda que procura tratar do lega-

1 O fato é que as experiências internacionais têm demonstrado que não é possível formular um “escalonamento de benefícios”
estabelecendo uma ordem sobre quais ações justransicionais devem ser adotadas primeiramente, ou sobre que modelos devem
ajustar-se a realidade de cada país, existindo variadas experiências de combinações exitosas. (CIURLIZZA, J. Para um panorama
global sobre a justiça de transição: Javier Ciurlizza responde Marcelo Torelly. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília:
Ministério da Justiça, n. 01, p. 22-29, jan/jun. 2009).
do de violência da ditadura militar de 1964-1985 (ABRÃO; TORELLY, 2010). Com im-
plantação gradativa, a gênese do processo de reparação brasileiro ocorreu ainda durante
o regime autoritário. A reparação aos perseguidos políticos é uma conquista jurídica pre-
sente desde a promulgação da lei de anistia brasileira (lei 6.683, de 1979) – marco legal
fundante da transição política brasileira – que previu, para além do perdão aos crimes
políticos e conexos, medidas de reparação como, por exemplo, a restituição de direitos
políticos e o direito de reintegração ao trabalho para servidores públicos afastados arbi-
trariamente. É fundamental compreender que a lei de anistia no Brasil é fruto de uma
reivindicação popular2 e constitui-se também em um ato de reparação.
A reparação não se limitou à dimensão econômica3. As leis preveem outros direitos,

2 Neste sentido, confira: GRECO, H. A. Dimensões fundacionais da luta pela anistia. Tese (Doutorado em História) - Universidade
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2003. 2 v. Exemplificando: enquanto na Argentina a anistia foi uma imposição do regime
contra a sociedade, ou seja, uma explícita autoanistia do regime visando o perdão aos crimes perpetrados pelo Estado; no Brasil,
a anistia foi amplamente reivindicada por meio de manifestações sociais significativas e históricas, pois se referia originalmente
ao perdão dos crimes de resistência cometidos pelos perseguidos políticos, que foram banidos, exilados e presos. A luta pela
anistia foi tamanha que, mesmo sem a aprovação no Parlamento do projeto de lei de anistia demandado pela sociedade civil que
propunha uma anistia ampla, geral e irrestrita para os perseguidos políticos e diante da aprovação do projeto de anistia restrito
originário do poder executivo militar, a cidadania brasileira reivindica-o legitimamente sua conquista para si e, até a atualidade,
reverbera a memória de seu vitorioso processo de conquista nas ruas em torno dos trabalhos realizados pelos Comitês Brasileiros
pela Anistia e também pelas pressões internacionais, como relata GREEN, J. Apesar de vocês. São Paulo: Companhia das Letras,
2009, sobre a mobilização internacional nos EUA.
3 A lei 10.559/02 prevê como critério geral de indenização a fixação de uma prestação mensal, permanente e continuada em valor
correspondente ou ao padrão remuneratório que a pessoa ocuparia, se na ativa estivesse caso não houvesse sido afastada do seu

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vínculo laboral, ou a outro valor arbitrado com base em pesquisa de mercado. O outro critério fixado, para quem foi perseguido,
mas não teve perda de vínculo laboral, é o da indenização em prestação única em até 30 salários mínimos por ano de perseguição
política reconhecida com um teto legal de R$ 100.000 reais. A lei 9.140/95 prevê também uma prestação única que atingiu um
máximo de R$ 152.000,00 para os familiares de mortos e desaparecidos. A crítica que se faz ao modelo é a de que resultou daí que
pessoas submetidas à tortura ou desaparecimento ou morte e que não tenham em sua história de repressão a perda de vínculos
laborais podem acabar sendo indenizadas com valores menores que as pessoas que tenham em seu histórico a perda de emprego.
Uma conclusão ligeira daria a entender que o direito ao projeto de vida interrompido foi mais valorizado que o direito a integrida-
de física, o direito à liberdade ou o direito à vida. Esta conclusão deve ser relativizada pelo dado objetivo de que a legislação prevê
que os familiares dos mortos e desaparecidos podem pleitear um dupla indenização (na Comissão de Anistia e na Comissão de
Mortos e Desaparecidos) no que se refere à perda de vínculos laborais ocorridos previamente às suas mortes e desaparecimentos
(no caso da prestação mensal) ou a anos de perseguições em vida (no caso da prestação única). Além disso, a maioria dos presos
e torturados que sobreviveram concomitantemente também perderam seus empregos ou foram compelidos ao afastamento de
suas atividades profissionais formais (de forma imediata ou não) em virtude das prisões ou de terem que se entregar ao exílio ou
à clandestinidade. Estes casos de duplicidade de situações persecutórias são a maioria na Comissão de Anistia e, para eles, não 177
cabe sustentar a tese de subvalorização dos direitos da pessoa humana frente aos direitos trabalhistas em termos de efetivos. Em
outro campo, a situação é flagrantemente injusta para um rol específico de perseguidos políticos: aqueles que não chegaram a
sequer inserir-se no mercado de trabalho em razão das perseguições, como é o caso clássico de estudantes expulsos que tiveram
que se exilar ou entrar na clandestinidade e o das crianças que foram presas e torturadas com os pais ou familiares. Para reflexões
específicas sobre as assimetrias das reparações econômicas no Brasil e o critério indenizatório especial, destacado da clássica di-
visão entre dano material e dano moral do código civil brasileiro, confira-se: ABRÃO, P. et al. Justiça de Transição no Brasil: o papel
da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, n. 01,
p. 12-21, jan/jun, 2009.
como a declaração de “anistiado político”4, a contagem de tempo para fins de aposenta-
doria, o retorno a curso em escola pública, o registro de diplomas universitários obtidos
no exterior, a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos, dentre outros
direitos5. Desde 2007, a Comissão de Anistia realiza atos públicos de Pedidos de Descul-
pas aos ex-perseguidos políticos.
A par disso, podem ser identificadas pelo menos três vantagens no processo transi-
cional brasileiro, a partir da pedra angular da reparação: (i) o fato de que o trabalho das
Comissões de Reparação6 tem revelado histórias e aprofundado a consciência da necessi-
dade de que as violações sejam conhecidas, impactando positivamente para a promoção
do direito à verdade; (ii) ainda, os próprios atos oficiais de reconhecimento, por parte do
Estado, de lesões graves aos direitos humanos, produzidos por essas Comissões, soma-
dos à instrução probatória que os sustentou, tem servido de fundamento fático para as
(poucas) iniciativas judiciais no plano interno e no plano externo a ação junto à Corte

4 A lei 10.559/02 prevê, portanto, duas fases procedimentais para o cumprimento do mandato constitucional de reparação: a
primeira, a declaração da condição de anistiado político pela verificação dos fatos e previstos nas situações persecutórias discri-
minadas no diploma legal. A “declaração de anistiado político” é ato de reconhecimento ao direito de resistência dos perseguidos
políticos e também de reconhecimento dos erros cometidos pelo Estado contra seus concidadãos. A segunda fase é a concessão
da reparação econômica. O conceito de reconhecimento aqui trabalhado remete ao trabalho de HONNETH, A. Luta por reconhe-
cimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003. Para um aprofundamento teórico da ideia de anistia
enquanto reconhecimento, confira: BAGGIO, R. Justiça de Transição como Reconhecimento: limites e possibilidades do processo
Psicologia,Violência e Direitos humanos

brasileiro. In: SANTOS, B.; ABRÃO, P.; MACDOWELL, C.; TORELLY, M. (Orgs.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-America-
no. Brasília/Coimbra: Ministério da Justiça/Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 2010. A tradição do “direito à
resistência” remonta aos primeiros estudos contratualistas e acompanha-nos até a atualidade. Bobbio refere à existência de duas
grandes linhas de sustentação da questão, uma que se vinculada à obediência irrestrita ao soberano, outra que defende o direito
de resistência a este em nome de uma causa maior – como a república ou a democracia – filiando-se a segunda: “O primeiro pon-
to de vista é o de quem se posiciona como conselheiro do príncipe, presume ou finge ser o porta voz dos interesses nacionais, fala
em nome do Estado presente; o segundo ponto de vista é o de quem fala em nome do anti-Estado ou do Estado que será. Toda a
história do pensamento político pode ser distinguida conforme se tenha posto o acento, como os primeiros, no dever da obediên-
cia, ou, como os segundos, no direito à resistência (ou à revolução). Essa premissa serve apenas para situar nosso discurso: o ponto
de vista no qual colocamos, quando abordamos o tema da resistência à opressão, não é o primeiro, mas o segundo.” (BOBBIO, N.
A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 2004, p. 151).
5 O que se pode depreender da legislação vigente no Brasil, tomando-se em conta o universo de possíveis medidas de reparação
sistematizadas por Pablo DE GREIFF (DE GREIFF, P. Justice and reparations. In: The Handbook of Reparations. New York e Oxford:
Oxford University Press, 2006. 40p), quais sejam: medidas de restituição, compensação, reabilitação e satisfação e garantias de
178 não repetição, é que existe a implantação de uma rica variedade de medidas de reparação, individuais e coletivas, materiais e sim-
bólicas, em especial, após o governo Lula que inovou na política de reparação agregando uma gama de mecanismos de reparação
simbólica e ações para aperfeiçoar a busca pela verdade.
6 Coube ao governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) implantar as comissões de reparação. A primeira, a Comissão Especial
de Mortos e Desaparecidos Políticos, limitada ao reconhecimento da responsabilidade do Estado por mortes e desaparecimentos
(lei 9.140/95). A segunda, a Comissão de Anistia, direcionada a reparar os atos de exceção, incluindo, as torturas, prisões arbi-
trárias, demissões e transferências por razões políticas, sequestros, compelimento à clandestinidade e ao exílio, banimentos,
expurgos estudantis e monitoramentos ilícitos (lei 10.559/02).
Interamericana de Direitos Humanos7, incentivando, portanto, o direito à justiça num
contexto onde as evidências da enorme maioria dos crimes já foram destruídas; (iii) fi-
nalmente, temos que o processo de reparação está dando uma contribuição significativa
na direção de um avanço sustentado nas políticas de memória, seja pela edição de obras
basilares, como o livro-relatório Direito à Verdade e à Memória (BRASIL, 2007), que con-
solida oficialmente a assunção dos crimes de Estado, seja por ações como as Caravanas
da Anistia8, o projeto Marcas da Memória e o projeto do Memorial da Anistia9, que, além
de funcionarem como políticas de reparação individual e coletiva, possuem uma bem
definida dimensão de formação de memória.
As reformas das instituições têm sido uma tarefa constante e são levadas a cabo por um
conjunto de mudanças estruturais que são implantadas em mais de 25 anos de governos de-
mocráticos10. Vale registrar que existe inegável institucionalização da participação política e
da competência política com efetiva alternância no poder de grupos políticos diferenciados
brasileiros, crescentes mecanismos de controle da administração pública e transparência,
além de reformas significativas no sistema de justiça. Ainda aguarda-se, por exemplo, uma
ampla reforma das Forças Armadas e dos sistemas de segurança pública.

7 OEA. CIDH. Caso Gomes Lund e outros x Brasil. Em uma primeira ação, por iniciativa do CEJIL – Centro Internacional para a Justiça
e o Direito Internacional representando familiares de mortos e desaparecidos durante o episódio da Guerrilha do Araguaia, a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) interpelou o Estado brasileiro perante a Corte Interamericana de Direitos
Humanos pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento durante a ditadura militar (1964-1985) de 70 pessoas ligadas à

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Guerrilha do Araguaia e camponeses que viviam na região. É a primeira vez que o Brasil é levado à Corte sobre violações ocorridas
durante o seu regime militar. As audiências ocorreram em 20 e 21 de maio de 2010 e aguarda-se a publicação de sentença.
8 A partir de 2007, a Comissão de Anistia passou a formalmente “pedir desculpas oficiais” pelos erros cometidos pelo Estado con-
substanciado no ato declaratório de anistia política. Corrigiu-se, dentro das balizas legais existentes, o desvirtuamento interpreta-
tivo que dava ao texto legal uma leitura economicista, uma vez que a anistia não poderia ser vista como a imposição da amnésia
ou como ato de esquecimento, ou de suposto e ilógico perdão do Estado a quem ele mesmo perseguiu e estigmatizou como
subversivo ou criminoso. Para um panorama mais amplo deste processo, confira-se: ABRÃO, P. et al. As caravanas da anistia: um
instrumento privilegiado da justiça de transição brasileira. In: SANTOS, B. de S.; ABRÃO, P.; MACDOWELL, C.; TORELLY, M. Repressão
e Memória Política no contexto Ibero-americano: Estudos sobre o Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Coimbra: Uni-
versidade de Coimbra; Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p. 185-227.
9 Para um maior aprofundamento sobre o Memorial da Anistia, sugerimos a leitura da seção “Especial” do primeiro volume dessa
revista: SILVA FILHO, J. C. M.; PISTORI, E. Memorial da Anistia Política do Brasil. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília:
Ministério da Justiça, n.º 01, p. 113-133, jan/dez 2009.
10 Vide, por exemplo, a extinção do SNI – Serviço Nacional de Informações; a criação do Ministério da Defesa submetendo os co- 179
mandos militares ao poder civil; a criação do Ministério Público com missão constitucional que envolve a proteção do regime
democrático, da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis; a criação da Defensoria Pública da União; a
criação de programas de educação em direitos humanos para as corporações de polícia promovidos pelo Ministério da Educação;
a extinção dos DOI-CODI e DOPS; a revogação da lei de imprensa criada na ditadura; a extinção dos DSI’s (divisões de segurança
institucional) ligados aos órgãos da administração pública direta e indireta; a criação da Secretaria Especial de Direitos Humanos;
as mais variadas e amplas reformas no arcabouço legislativo advindo do regime ditatorial; a criação dos tribunais eleitorais inde-
pendentes com autonomia funcional e administrativa.
Já na dimensão do fornecimento da verdade e construção da memória, percebem-se
avanços11, mas ainda são sonegados à sociedade os arquivos específicos dos centros de
investigação e repressão ligados diretamente às Forças Armadas12. Até hoje não se pode
identificar e tornar públicas as estruturas utilizadas para a prática de violações aos direi-
tos humanos, suas ramificações nos diversos aparelhos de Estado e em outras instâncias
da sociedade, e não foram discriminadas as práticas de tortura, morte e desaparecimento,
para encaminhamento das informações aos órgãos competentes, além dos familiares es-
tarem sem informações sobre os restos mortais dos desaparecidos políticos.
De todo modo, algo marcante do caso brasileiro é, sem dúvida, o não desenvolvi-
mento da dimensão da regularização da justiça e restabelecimento da igualdade perante
a lei, entendida como restabelecimento substancial do Estado de Direito, com a devida
proteção judicial às vítimas e a consecução da obrigação do Estado em investigar e punir
crimes, mais notadamente as violações graves aos direitos humanos, tudo isso acompa-
nhado da formulação de uma narrativa oficial dos fatos coerente com os acontecimentos
para a desfeita de falsificações ou revisionismos históricos13.

11 Além do livro Direito à Verdade e a Memória, a Secretaria Especial de Direitos Humanos mantém uma exposição fotográfica
denominada “Direito à memória e à – a ditadura no Brasil 1964-1985” e recentemente lançou mais duas publicações “História
de Meninas e Meninos Marcados pela Ditadura” e “Memórias do Feminino”. O Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil
(1964-1985) - Memórias Reveladas foi criado em 13 de maio de 2009 e é coordenado pelo Arquivo Nacional da Casa Civil da Presi-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

dência da República. O fato é que alguns dos mais ricos acervos de arquivos da repressão encontram-se sob posse das comissões
de reparação, que tem colaborado para a construção da verdade histórica pelo ponto de vista dos perseguidos políticos. O gover-
no Lula enviou ao Congresso um projeto de lei (PL 7376/2010) para a criação de uma Comissão Nacional da Verdade, ainda em
tramitação. A Comissão de Anistia mantém o projeto Marcas da Memória, com publicações, registros de história oral, audiências
públicas e chamadas públicas para financiar projetos de Memória da sociedade civil. O Memorial da Anistia está em construção
na cidade de Belo Horizonte.
12 Os centros da estrutura de repressão dos comandos militares: o CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica); o CIE
(Centro de Informações do Exército) e; o CENIMAR (Centro de Informações da Marinha).
13 Para maiores informações sobre isso confira: FÁVERO, E. A. G. Crimes da Ditadura: iniciativas do Ministério Público Federal em São
Paulo. In: SOARES, I. V. P.; KISHI, S. A. S.. Memória e Verdade – A Justiça de Transição no Estado Democrático Brasileiro. Belo Horizonte:
Editora Fórum, 2009, p. 213-234 e também WEICHERT, M. A. Responsabilidade internacional do Estado brasileiro na promoção da
justiça transicional. In: SOARES, I. V. P.; KISHI, S. A. S. Memória e Verdade – A Justiça de Transição no Estado Democrático Brasileiro.
Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009, p. 153-168. Diante desta constatação e diante das obrigações assumidas pelo Brasil em com-
promissos internacionais, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça promoveu a Audiência Pública “Limites e Possibilidades
para a Responsabilização Jurídica dos Agentes Violadores de Direitos Humanos durante o Estado de Exceção no Brasil” ocorrida
180
em 31 de julho de 2008. Foi a primeira vez que o Estado brasileiro tratou oficialmente do tema após quase trinta anos da lei de
anistia. A audiência pública promovida pelo poder executivo rompeu com o “tema proibido” e teve o condão de unir forças que
se manifestavam de modo disperso, articulando as iniciativas da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério Público Federal
de São Paulo, das diversas entidades civis, como a Associação dos Juízes pela Democracia, o Centro Internacional para a Justiça e
o Direito Internacional (CEJIL), a Associação Brasileira de Anistiados Políticos (ABAP), a ADNAM (Associação nacional Democrática
Nacionalista de Militares) , e, ainda, fomentando a rearticulação de iniciativas nacionais pró-anistia. A audiência pública resultou
em um questionamento junto ao Supremo Tribunal Federal, por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Funda-
mental (ADPF n.º 153).
2. A eficácia da lei de anistia no Brasil: uma análise
das razões da não responsabilização judicial dos
perpetradores de graves violações aos Direitos
Humanos durante a ditadura militar (1964-1985)
Quais poderiam ser as razões que levam à lei de anistia no Brasil a ser eficaz ao longo do
tempo e impedir os processamentos judiciais dos crimes cometidos pelo Estado?
Para fazer esta análise, importam sobremaneira dois conjuntos de fatores: os de natu-
reza jurídica e os de natureza política, sabendo que, como bem assevera Teitel (2010, p. 28),
“sempre houve um contexto político para a tomada de decisões sobre justiça de transi-
ção”. Por isso, cabe verificar como determinadas pretensões políticas e culturas jurídicas
operam fora do marco constitucional que estabelece a relação entre direito e política14,
criando espaços de “vazios de legalidades”, onde a impunidade do autoritarismo se man-
tém enfeza ao novo Estado de Direito.
Fazer a análise do desenvolvimento da justiça transicional em um contexto concreto
nada mais é do que verificar as estratégias de mobilização pró-justiça empregadas por um
conjunto de atores e o êxito que estas estratégias tiveram para vencer obstáculos postos,
tanto na esfera política, quanto na jurídica, por outros atores ligados ao antigo regime,
que pretendem conservar em alguma medida sua base de legitimidade social e, para tan-
to, obstaculizam as medidas de justiça. É nesse sentido que Filipinni e Margarrell (2005,

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p. 151) afirmam que “[...] el éxito de una adecuada transición depende de la correcta
planificación de las acciones, observando todos los componentes del processo”.
O restabelecimento do Estado de Direito dá-se de forma combinada: (i) pelo es-
tabelecimento de garantias jurídicas mínimas para o futuro e, ainda, (ii) pela repara-
ção e justiça em relação às violações passadas. Zalaquett (1999, p. 10) destaca que “Los
objetivos éticos y medidas [...] deben cumplirse enfrentando las realidades políticas de
distintas transiciones. Estas imponen diferentes grados de restricción a la acción de las
nuevas autoridades”, no caso brasileiro, como se pode verificar, as medidas de abrangên-
cia temporal retroativa, como a investigação de crimes passados, enfrentaram de forma 181

mais marcada as restrições políticas do antigo regime por atingirem diretamente a seus
membros, enquanto as medidas de reparação às vítimas e garantia de direitos futuros se

14 A este respeito, confira-se o conceito de “constituição como acoplamento estrutural entre direito e política”. (NEVES, M. Entre
Têmis e Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2006).
mostraram mais eficientes em romper o cerco político, na medida em que não afetavam
de forma direta os membros do antigo status quo e as limitações que estes impuseram à
transição quando ainda estavam no poder.

2.1. Razões de ordem política

Podemos identificar pelo menos três causas estruturantes que veremos a seguir.

2.1.1. O contexto histórico da transição: o controle do regime e a luta pela anistia

O processo transicional brasileiro caracteriza-se, primeiramente, por um forte controle


do regime, a tal ponto de Samuel Huntington (1993, p. 126) classificar a transição bra-
sileira, conjuntamente com a espanhola, como uma “transição por transformação”15 e
afirmar que “[...] o gênio da transformação brasileira é que é virtualmente impossível dizer
em que ponto o Brasil deixa de ser uma ditadura e se torna uma democracia”.16 Esse forte
controle do regime sobre a democracia insurgente nasce juntamente com o próprio mo-
vimento de abertura, simbolicamente aludido com a aprovação da lei de anistia em 1979,
e se estende pelo menos até 1985, quando as forças políticas que sustentaram a ditadura,
mesmo sob forte pressão popular, impedem a aprovação da emenda constitucional em
favor da realização de eleições diretas para presidente. Com as eleições indiretas de 1985,
Psicologia,Violência e Direitos humanos

o candidato das oposições democráticas, Tancredo Neves (MDB) alia-se a um quadro


histórico do antigo partido de sustentação da ditadura como seu vice-presidente, José
Sarney (ex-ARENA, deixa o PDS para se filiar ao PMDB), o que resultou em uma chapa
vitoriosa na eleição indireta e representou um espaço de conciliação entre oposição ins-
titucionalizada com antigos setores de sustentação do regime.

15 Numa transição por transformação:


182 [...] those in power in the authoritarian regime take the lead and play the decisive role in ending that regime and changing into
a democratic system. [...] it occurred in well-established military regimes where governments clearly controlled the ultimate
means of coercion vis-à-vis authoritarian systems that had been successful economically, such as Spain, Brazil, Taiwan, Mexico,
and, compared to other communist states, Hungary.” [...] “In Brazil, [...], President Geisel determined that political change was
to be “gradual, slow, and sure”. [...] In effect, Presidents Geisel and Figueiredo followed a two-step forward, one-step backward
policy. The result was a creeping democratization in which the control of the government over the process was never seriously
challenged. (HUNTINGTON, S. The third wave. Oklahoma: Oklahoma University Press, 1993, p. 124-126).

16 Tradução dos organizadores.


No Brasil, ocorreu uma “transição sob controle”17, onde os militares apenas aceita-
ram a “transição lenta, gradual e segura” a partir de uma posição de retaguarda no regime,
delegando aos políticos que os defendiam a legitimação da transição em aliança com a
elite burocrática e política que emergiu do regime e orientou a conciliação com a maior
parte da oposição legal. A partir daí, procurou-se impor burocraticamente um conceito
de perdão através do qual os ofensores perdoariam os ofendidos, o que limitou a adesão
subjetiva à reconciliação, tentando-se transformar a anistia em processo de esquecimen-
to, como se isso fosse possível.
A ditadura brasileira valeu-se de dois mecanismos-chave para garantir um nível
de legitimidade suficiente para manter este controle sobre a transição: (i) os dividendos
políticos da realização de um projeto de nação desenvolvimentista que, por um longo
período (o chamado “milagre econômico”) alçou o país a níveis de desenvolvimento re-
levantes18 e, ainda, (ii) a construção semântica de um discurso do medo, qualificando
como “terroristas” aos membros da resistência armada, e de “colaboradores do terror”
e “comunistas” aos opositores em geral. Será graças à adesão social a esse discurso fun-
dado no medo do caos e na necessidade de progresso econômico que se desenvolverá o
argumento dos opositores como inimigos e, posteriormente, da anistia como necessário
pacto político de reconciliação recíproca, sob a cultura do medo e ameaça de uma nova
instabilidade institucional ou retorno autoritário.
Durante a luta pela anistia, a sociedade mobilizou-se fortemente pela aprovação de
uma lei de anistia “ampla, geral e irrestrita”, ou seja: para todos os presos políticos, inclusive

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os envolvidos na luta armada e crimes de sangue (VIANA; CIPRIANO, 2009). O movimento
pela anistia passa a significar a volta à cena pública das manifestações, passeatas e reivin-
dicação de direitos, funcionando como meio de induzir o despertar de uma sociedade
oprimida, que volta lentamente a naturalizar a participação cívica.

17 Sobre este raciocínio ver: GENRO, T. Teoria da Democracia e Justiça de Transição. Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 30-31.
18 O projeto econômico desenvolvimentista da ditadura foi, certamente, um de seus maiores aliados na conquista de legitimação
social e garantiu ampla adesão civil ao regime. Ainda em 1978, antes da anistia, Celso Lafer, fazia a seguinte avaliação:
A que título, portanto, os que governam hoje o Brasil exercem o poder? Consoante se verifica pelas exposições dos Atos Insti-
183
tucionais que fundamentam o uso da moeda da coerção organizada, uma legitimidade de negação ao caos, ao comunismo e
a corrupção, vistos como características principais da República Populista dos anos 60. Esse fundamento negativo deseja ver-
-se assegurado, num processo de legitimação positiva face aos governados, pela racionalidade da administração econômica, na
presidência Castello Branco (gestão econômica dos Ministros Roberto Campos e Octavio Gouveia de Bulhões), e pela eficácia
econômica, isto é, pelo desenvolvimento, nas presidências Costa e Silva e Médici (gestão econômica do Ministro Delfim Netto).
(LAFER, C. O Sistema Político Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1978, p.74.)
Inobstante esta luta, a proposta da sociedade foi derrotada no Congresso Nacional
restando aprovado o projeto de lei de anistia “restrita” oriundo do governo militar19. O
elemento do controle do regime volta a se fazer presente neste momento, uma vez que
um terço do congresso nacional era composto pelos chamados “senadores biônicos”, que
eram parlamentares indicados pelo próprio Poder Executivo. É neste período de abertura
que se passa a construir, por meio de um judiciário tutelado pelo o controle do Poder
Executivo, a tese da “anistia bilateral”.
Com a crescente evidenciação de que muitos desaparecimentos e mortes eram pro-
duto da ação estatal, cresceu a pressão social por investigações dos delitos, o que levou o
judiciário – ressalte-se: controlado pelo regime – a sistematicamente ampliar interpreta-
tivamente o espectro de abrangência da lei, passando a considerar “conexos aos políticos”
os crimes dos agentes de Estado e, ainda, a aplicar a lei até para crimes ocorridos pós-
1979, fora da validade temporal da lei (como para os responsáveis pelo Caso Rio Centro
em 1980) sob o manto do princípio da “pacificação nacional”.
Com o passar dos anos, o lema da anistia “ampla, geral e irrestrita” para os perse-
guidos políticos, clamada pela sociedade organizada e negada pelo regime, passou a ser
lido como uma anistia “ampla, geral e irrestrita” para “os dois lados”, demonstrando a
força de controle do regime, capaz de apropriar-se do bordão social para o converter em
fiador público de um suposto “acordo político” entre subversivos e regime para iniciar a
abertura democrática. É insurgindo-se contra o falseamento histórico de afirmar que a anistia
Psicologia,Violência e Direitos humanos

defendida pela sociedade abarcaria aos crimes de agentes de Estado que Greco (2009, p. 203)
assevera que:
Na luta pela Anistia Ampla, geral e Irrestrita, a iniciativa política está com a sociedade
civil organizada, não com o Estado ou com a institucionalidade – os sujeitos ou atores
principais são os militantes das entidades de anistia, os exilados e os presos políticos. O
lócus dessa iniciativa, o lugar de ação e do discurso ou, melhor ainda, o lugar da histó-
ria, é a esfera instituinte do marco de recuperação da Cidade enquanto espaço político
– é esse o ponto de fuga a partir do qual essa história deve ser lida, em contraposição
184 ao espaço instituído ou à esfera do institucional.

A tese da anistia recíproca, construída pelo regime militar e fiada por sua legitimidade
e poder ao longo da lenta distensão do regime, viria a ser convalidada, ainda, de forma

19 Para uma mais ampla descrição deste processo, confira-se: GONÇALVES, D. N. Os múltiplos sentidos da Anistia. Revista Anistia
Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, n.º 01, p. 272-295, jan/jun. 2009.
expressa pelo judiciário democrático e de forma tática pela própria militância política,
que acabou, ao longo dos anos que seguiram a democratização, deixando de acionar o
judiciário para que este tomasse providências em relação aos crimes do passado20.

2.1.2. A atuação do Poder Judiciário: a ditadura “legalizada”

Como visto, é o judiciário que aceita a tese de que todos os crimes do regime seriam cone-
xos aos crimes da resistência (como se esta precedesse àqueles), e consagra formalmente
a tese jamais expressa no texto legal de que um entendimento entre “os dois lados” ha-
veria gerado o consenso necessário para a transição política brasileira. Essa constatação
permite vislumbrar outra característica político-institucional importante da ditadura e
da transição brasileira: o judiciário aderiu ao regime.
A tabela comparativa (tabela 1) produzida por Anthony Pereira (2010) para seu es-
tudo comprado entre Brasil, Argentina e Chile é ilustrativa de como cada um dos três
regimes procurou “legalizar” sua ditadura através de atos ilegítimos de Estado:
Da visualização da tabela, percebe-se que, embora as medidas de exceção sejam
muito próximas nos três países comparados, é no Brasil que existe a maior participação
de civis no processo, verificando-se a presença destes nas cortes militares, bem como a
adesão dos juízes à legalidade do regime, coisa que fica expressa no número de expurgos
do judiciário brasileiro, infinitamente inferior ao do judiciário argentino.
Comparando especificamente Brasil e Chile, Pereira (2010) verifica outra impor-

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tante questão: enquanto no Chile os promotores eram membros das forças armadas, no
Brasil eram civis nomeados pelo regime. A adesão dos civis ao regime militar brasileiro,
sobremaneira em função do projeto econômico por eles apresentado, mas também pela
ideologia defendida, tem uma faceta especial no judiciário e nas carreiras jurídicas, haja
vista que este espaço institucional, por suas características singulares, poderia ser um
último anteparo de resistência da sociedade à opressão e de defesa da legalidade, porém,
na prática, verificou-se serem raros os magistrados que enfrentaram o regime21.
A ausência de um processo de depuração do Poder Judiciário pós-ditadura permitiu que 185
ali se mantivesse viva uma interpretação da lei compatível com o discurso de legitimação do

20 Ressalta-se que algumas famílias de perseguidos tiveram, sim, importantes iniciativas, mas constituem-se como casos isolados
dentro do amplo conjunto de perseguidos que poderiam ter acionado a justiça e não o fizeram.
21 Foram cassados os seguintes ministros do STF: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.
regime autoritário. Sabe-se que as alterações culturais ocorrem de modo muito lento, com o
acesso de novos membros à carreira por via de concursos públicos, como previsto na Consti-
tuição democrática. Apenas ilustrativamente, insta referir que o último Ministro da Suprema
Corte indicado pela ditadura militar afastou-se do cargo apenas em 2003, passados quinze
anos da saída do poder do último ditador militar, em função não de um afastamento, mas sim
de sua aposentadoria. Isso permitiu que, nas carreiras jurídicas brasileiras, sobrevivesse uma
mentalidade conservadora que, parcialmente, se mantém transgeracionalmente.

tabela 1 Características da legalidade autoritária no Brasil, Chile e Argentina

Características Brasil Chile Argentina

Declaração de Estado de sítio à época do golpe não sim sim

Suspensão de partes da antiga constituição sim sim sim

Promulgação de nova Constituição sim sim não

Tribunais militares usados para processar civis sim sim não


Psicologia,Violência e Direitos humanos

Tribunais militares totalmente segregados dos civis não sim sim

1964-1968
Habeas Corpus para casos políticos não não
1979-1985
algumas
remoções e
Expurgos da Suprema Corte não sim
aumento do
número de juízes

Expurgos no restante do judiciário limitado limitado sim

186
Revogação da inamovibilidade dos juízes sim não sim

Fonte: PEREIRA, A. Repressão e Ditadura: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil Chile e Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p.58.
Como se verá adiante nas razões jurídicas para a não apuração dos crimes de Estado,
a percepção do Judiciário sobre o que foi a ditadura e a anistia e como estas se relacionam
com o Estado de Direito será fundamental para a tomada de uma decisão política pela não
implementação da justiça por meio dos tribunais, sendo suficiente para este momento ape-
nas a alusão a esta característica relevante da formação do judiciário brasileiro pré-1988.

2.1.3. Os movimentos sociais pós-1988 e o efeito do tempo


na Justiça Transicional

Um último fator relevante para o entendimento das raízes políticas do estado de im-
punidade no Brasil diz respeito à própria atuação da sociedade civil quanto ao tema ao
longo dos anos pós-democratização. Como visto, foi a sociedade civil quem mobilizou as
forças necessárias para impor ao governo a concessão de anistia aos perseguidos políticos
(mesmo não tendo sido a anistia por eles desejada). Ocorre que, especialmente após a
aprovação da Constituição, as pautas tradicionais dos movimentos de direitos humanos,
relacionados à luta por liberdade política, são substituídas pelos “movimentos sociais de
novo tipo”, caracterizados mais por criticar déficits estruturais dos arranjos institucionais
e menos por propor alternativas de natureza política global (RUCHT, 2002).
A arena política pós-1988, com a entrada em vigor da nova Constituição democrá-
tica, caracterizou-se fortemente pelo surgimento de novos movimentos sociais atuantes
em pautas antes não priorizadas ou sufocadas, como a reforma agrária, os direitos de

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gênero, o direito à não discriminação em função de etnia, os direitos das crianças e dos
adolescentes, o movimento ambiental, os direitos dos aposentados e idosos, portado-
res de necessidades especiais, e assim por diante. Desta feita, a pauta da sociedade civil
fragmentou-se amplamente, considerando tanto o “atraso reivindicatório” produzido pe-
los anos de repressão, quanto por um realinhamento destes movimentos com os atores
internacionais em suas temáticas.
A luta por justiça de transição no Brasil não constou da pauta destes novos movi-
mentos sociais, ficando adstrita ao movimento dos familiares de mortos e desaparecidos 187
políticos, sempre atuante e relevante, porém restrito a um pequeno número de famílias,
e também ao movimento por reparação, capitaneado sobremaneira pelo movimento dos
trabalhadores demitidos ou impedidos de trabalhar durante a ditadura em função do
exercício de seu direito de associação ou de livre manifestação. Da luta do primeiro mo-
vimento, surge a lei 9.140/1995, que reconhece as mortes e desaparecimentos de oposito-
res do regime, reparando as famílias, e da luta do segundo grupo, a lei 10.559/2002, que
estabelece as medidas reparatórias para os demais atos de exceção.
Sem dúvida nenhuma, a pressão social é o pilar central para a implementação de
medidas transicionais, especialmente em um contexto como o brasileiro, onde uma tran-
sição por transformação ocorre dentro de uma agenda que tende a focar-se na reconquis-
ta das eleições livres. Avaliando esta questão Teitel (2010, p. 36) afirma que “A sociedade
civil joga um grande papel em manter esse debate [da Justiça de Transição] vivo, em seguir
dizendo que é necessário mais do que simplesmente eleições para que uma transição seja
completa”.
No Brasil, em função do controle da agenda da transição pelo regime, articulada
com a insurgência de novas pautas sociais e pouco êxito do movimento de vítimas em
agregar apoios mais amplos na sociedade, a questão da responsabilização acabou secun-
darizando-se em relação a outras reivindicações sociais que passaram a ser assumidas
institucionalmente por órgãos como o Ministério Público.
Agrega-se ainda a este fato outra variante, destacada por Zalaquett (1999, p. 11):
“luego de un processo gradual de apertura política, las peores violaciones han llegado a ser
parte del pasado relativamente lejano y existe cierta medida de perdón popular”22. A soma
do fator tempo com a baixa articulação social tornam-se em um obstáculo político de
grande relevância para o não avançar da ações judiciais criminais no Brasil.
É similar o diagnóstico de Catalina Smulovitz (informação verbal)23, que, compa-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

rando o caso brasileiro ao caso argentino, destaca pelo menos três distinções-chave que
importam em diferentes conformações políticas para a realização de julgamentos por
violações aos direitos humanos durante os regimes de exceção. Iniciando pelo já referido
fato do (i) regime brasileiro ter controle sobre a agenda política da transição, diferente-
mente do que ocorreu na Argentina, com a derrota militar dos ditadores na Guerra das
Malvinas/Falkland; somando-se a questão (ii) da maior densidade de reivindicação social
sobre o tema na Argentina que no Brasil e, por fim; (iii) do maior lapso de tempo trans-

188 22 A única pesquisa de opinião realizada no país sobre os crimes da ditadura foi realizada após a decisão do STF contrariamente a
responsabilização dos agentes de Estado perpetradores de violações aos direitos humanos na ditadura militar. O Instituto Data-
folha, mantido pelo jornal A Folha de São Paulo revela que 40% dos brasileiros defendem a punição, enquanto 45% se declaram
contrários. Outros 4% são indiferentes, e 11% não sabem opinar. O Datafolha também ouviu os brasileiros sobre o tratamento a
pessoas que praticaram atos “terroristas” (sic) contra o governo militar no período. Neste caso, o apoio ao perdão é maior: 49% se
dizem contra qualquer tipo de punição, e 37%, a favor. Outros 3% são indiferentes, e 11% não sabem opinar. O levantamento foi
feito em 20 e 21 de maio de 2010, com 2.660 eleitores e a margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou para menos.
23 Informação fornedida por: SMULOVITZ, C. Represión y Política de Derechos Humanos en Argentina. Recurso Digital. Em apresenta-
ção de PowerPoint. Centro de Derechos Humanos. Universidade do Chile, março de 2010.
corrido entre as violações mais graves e o restabelecimento democrático no Brasil. Os
ditadores brasileiros conseguiram construir uma “estratégia de saída” que lhe garantisse a
impunidade por vias políticas, diferentemente do que ocorreu na Argentina:
[...] la intensificación de los conflictos intramilitares, que se produjo como consecuen-
cia de la derrota de Malvinas, les impuso a las Fuerzas Armadas grandes dificultades
para acordar internamente un plan de salida global. Sin embargo, las trabas que el
Poder Ejecutivo encontró para iponer su autoridad ante la sociedad y en las proprias
Fuerzas Armadas no impidió que el mismo intentara administrar políticamente la
retirada del poder. (ACUNA; SMULOVITZ,1995, p. 83)

De toda forma, vale registrar que, mesmo diante da baixa intensidade dos níveis de mo-
bilização, comparativamente aos similares casos argentino ou chileno, deve-se ao movi-
mento social dos familiares dos mortos e desaparecidos e aos movimentos dos demitidos
por perseguição política os existentes avanços no rumo à responsabilização por meio das
próprias comissões de reparação, mesmo que de forma difusa. Esta mobilização alcançou
o nível de obrigar as Forças Armadas a saírem da posição que Cohen (2005, p. 124) define
como de “negação literal”, onde o perpetrador da violação defende-se da imputação de
responsabilidade desde uma “desmentida lacônica de que ‘nada ha sucedido’.”

2.1.4. O estágio atual da mobilização social

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O cenário da baixa amplitude de demandas por justiça transicional começa a se alterar
em 2001, com a aprovação da lei 10.559/02 prevendo a responsabilidade do Estado por
todos os demais atos de exceção que não “morte ou desaparecimento”. A partir deste
momento, para além da atuação intensa e histórica do movimento de familiares mortos
e desaparecidos e dos Grupos Tortura Nunca Mais, especialmente do Rio de Janeiro e
de São Paulo, e o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (em
especial nas perseguições no Cone Sul e operação Condor), emergem novas frentes de
189
mobilização segundo pautas amplas da Justiça de Transição.
Entre estes grupos, estão aqueles vocacionados para a militância pelo direito à re-
paração, como a Associação 64/68 do Estado do Ceará, a Associação dos Anistiados do
Estado de Goiás, o Fórum dos Ex-presos Políticos do Estado de São Paulo, a ABAP (As-
sociação Brasileira de Anistiados Políticos), a ADNAM (Associação Democrática Na-
cionalista de Militares), a CONAP (Coordenação Nacional de Anistiados Políticos), a
AMPLA (Associação de Defesa dos Direitos e Pró-Anistia Ampla dos Atingidos por Atos
Institucionais) e dezenas de outras entidades vinculadas aos sindicatos de trabalhadores
perseguidos políticos durante as grandes greves das décadas de 1980.
Em momento mais recente, o que se constitui em novidade é a incorporação das
pautas mais ampliadas nos marcos do conceito de “Justiça de Transição” – a defesa do
direito de responsabilização dos agentes torturadores, a defesa da instituição de uma Co-
missão da Verdade, a defesa da preservação do direito à memória e do direito à reparação
integral – inclusive, por diferentes organizações como os Grupos “Tortura Nunca Mais”
da Bahia, Paraná e Goiás e de novas organizações e grupos sociais, tais como os “Amigos
de 68”, os “Inquietos”, o “Comitê Contra a Anistia dos Torturadores” ou a “Associação
dos Torturados na Guerrilha do Araguaia”. Um destaque especial deve ser concedido à
perspectiva ampliada e sistematizada do trabalho do Núcleo de Memória Política do Fó-
rum dos Ex-Presos Políticos de São Paulo que vêm desenvolvendo muitas iniciativas não
oficiais de preservação da memória e de busca da verdade (seminários, exposições, pu-
blicações, homenagens públicas, atividades culturais e reuniões de mobilização em torno
da justiça de transição).24
É este novo cenário que leva ao ressurgimento da pauta transicional na agenda polí-
tica brasileira, apresentada agora como um assunto de interesse coletivo da democracia, e
não como um interesse compreendido apenas como privado daqueles lesados diretamen-
te pelo aparelho da repressão. Com o reaquecimento desta pauta, as limitações jurídicas
Psicologia,Violência e Direitos humanos

da anistia voltam a ser objeto de questionamento social, como se demonstrará a seguir.

2.2. Razões de ordem jurídica: a cultura jurídica prevalecente e a decisão do


Supremo Tribunal Federal sobre o alcance da lei de anistia

O principal obstáculo jurídico é a interpretação dada à lei de anistia pelo judiciário da


ditadura, recentemente reiterada pelo Supremo Tribunal Federal democrático por meio

190

24 Com a atuação destes novos grupos somada a dos grupos históricos, a temática da Justiça de Transição passou a fazer parte da
agenda de associações mais amplas de defesa de direitos humanos, como a Associação Nacional de Direitos Humanos - Pesquisa
e Pós-Graduação (ANDHEP), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Associação Juízes pela Democracia (AJD), a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e mesmo de movimentos com pautas absolu-
tamente setorizadas, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). O tema da Verdade e da Memória ganhou
durante a Conferência Nacional de Direitos Humanos um capítulo próprio no Plano Nacional de Direitos Humanos.
do julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 (ADPF 153)25,
num fato que corrobora a tese da sucessão intergeracional de leituras não democráticas
sobre o Estado de Direito no Brasil. Como levantado anteriormente, o poder judiciário
(em especial o STM) sucessivamente ampliou o espectro de aplicação da lei de anistia,
primeiro quanto ao objeto, valendo-se da tese de que a lei fora bilateral para anistiar
membros do regime, depois no tempo, estendendo-a para fatos posteriores à 1979.
No caso da ADPF 153, a decisão do STF, em apertada síntese, reconheceu como legí-
tima a interpretação dada à lei, fundamentando-se na ideia de que a anistia surgiu de um
pacto bilateral e, ainda, constituiu-se em pilar da democratização e do Estado de Direito
no Brasil. Desta feita, a Suprema Corte (i) reconheceu no regime iniciado após o golpe de
Estado em 1964 os elementos essenciais de um Estado de Direito, (ii) considerou legítimo
o suposto pacto político contido na Lei de Anistia, que mesmo sendo medida política
teria o condão de subtrair um conjunto de atividades delitivas da esfera de atuação do
poder judiciário e (iii) consequentemente, como efeito prático, negou o direito à proteção
judicial aos cidadãos violados em seus direitos fundamentais pelo regime militar.
É neste sentido que se manifestou o ministro relator do caso na Corte, Eros Roberto
Grau, ao afirmar que “toda a gente que conhece a nossa história sabe que o acordo político
existiu, resultando no texto da Lei n.º 6.683/1979”, aclamando a tese da pacificação nacional
por meio do esquecimento e reiterando a semântica autoritária de equiparar resistência e
terrorismo e ao considerar as supostas “partes” em conflito como simétricas e dotadas de
igual legitimidade. Ainda, seguiu: “O que se deseja agora em uma tentativa, mais do que de

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reescrever, de reconstruir a história? Que a transição tivesse sido feita, um dia, posteriormente
ao momento daquele acordo, com sangue e lágrimas? Com violência?” (GRAU, 2010).

25 Diante das reivindicações sociais e das obrigações assumidas pelo Brasil em compromissos internacionais, a Comissão de Anistia
do Ministério da Justiça promoveu a Audiência Pública “Limites e Possibilidades para a Responsabilização Jurídica dos Agentes
Violadores de Direitos Humanos durante o Estado de Exceção no Brasil” ocorrida em 31 de julho de 2008. Foi a primeira vez que o
Estado brasileiro tratou oficialmente do tema após quase trinta anos da lei de anistia. A audiência pública promovida pelo poder
executivo, com a devida representação de posições jurídicas e políticas divergentes, rompeu com uma espécie de mito em torno
do “tema proibido” e teve o condão de unir forças que se manifestavam de modo disperso, articulando as iniciativas da Ordem dos
Advogados do Brasil, do Ministério Público Federal de São Paulo, das diversas entidades civis, como a Associação dos Juízes pela
Democracia, o Centro Internacional para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), a Associação Brasileira de Anistiados Políticos 191
(ABAP), a ADNAM (Associação nacional Democrática Nacionalista de Militares), e, ainda, fomentou a rearticulação de iniciativas
nacionais pró-anistia. A audiência pública resultou em um questionamento junto ao Supremo Tribunal Federal, por meio de uma
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n.º 153) pelo Conselho Federal da OAB. Ressalte-se que a contro-
vérsia jurídica debatida e levada ao STF pela Ordem dos Advogados do Brasil advinha, inclusive, do trabalho do Ministério Público
Federal de São Paulo ao ajuizar ações civis públicas em favor da responsabilização jurídica dos agentes torturadores do DOI-CODI,
além das iniciativas judiciais interpostas por familiares de mortos e desaparecidos, a exemplo do pioneirismo da família do jorna-
lista Vladimir Herzog que, ainda em 1978, saiu vitoriosa de uma ação judicial que declarou a responsabilidade do Estado por sua
morte a afastou a versão oficial e inverídica de seu suicídio.
Um conjunto de ministros entendeu que a lei positiva, mesmo que abominável
por encobertar a tortura, teria sido útil à reconciliação nacional e, ainda, teria esgotado
seus efeitos, sendo ato jurídico agora perfeito. Apenas dois ministros da Corte, Ricardo
Lewandowski e Carlos Ayres Brito, votaram pela procedência da ação da Ordem dos
Advogados, por entender que a anistia à tortura e a crimes de lesa-humanidade seria não
apenas inconstitucional como também contrária ao direito internacional, e que a tese da
anistia bilateral seria falha, haja vista que anistias aos “dois lados” em um mesmo ato não
anularia o fato de, no ato, o regime estar anistiando a si próprio.
Inobstante, o fato é que a decisão do STF torna a lei de 1979 formalmente válida no or-
denamento jurídico democrático brasileiro, estabelecendo uma continuidade direta e obje-
tiva entre o sistema jurídico da ditadura e o da democracia, vedando de forma peremptória
a investigação de ilícitos penais que tenham ocorrido e se esgotado entre 1961 e 1979.
Se, até a decisão da Corte Suprema, poder-se-ia tratar a lei de anistia como um en-
tulho autoritário ilegítimo e pendente de uma interpretação conforme à Constituição
(o art. 8º do ADCT expressamente concede anistia aos que, no período de 18 de setem-
bro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrên-
cia de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou com-
plementares, ou seja, destina-se aos perseguidos e não aos perseguidores) para deixar de
ser um obstáculo jurídico a se superar para a obtenção de responsabilização penal de
graves delitos, da decisão em diante, restou a lei legitimada pela ordem democrática e a
Psicologia,Violência e Direitos humanos

possibilidade de responsabilização criminal restou muito restrita, a despeito da omissão


da referida decisão em matéria de tipificação da categoria dos crimes de lesa-humanidade
e do tratamento consoante os precedentes do próprio tribunal em sede da imprescritibi-
lidade dos crimes de desaparecimento forçado.

3. Alternativas para a verdade e a justiça no Brasil


Por todo o exposto, ao buscar conclusões sobre a justiça de transição no Brasil, parti-
192 mos da convicção de que a reparação é o eixo estruturante das estratégias sociais para
obtenção de avanços, e desde onde se construíram importantes processos de elucidação
histórica. É o processo de reparação que tem possibilitado a revelação da verdade histó-
rica, o acesso aos documentos, o registro dos testemunhos dos perseguidos políticos e a
realização dos debates públicos sobre o tema.
Não obstante, é flagrante que os dois grandes desafios por enfrentar na transição
brasileira são estão no campo da verdade e da justiça. Do ponto de vista ético, a revelação
do passado e o processamento dos crimes mostram-se como uma sinalização ao futuro
de não repetição, enquanto do ponto de vista político, entende-se que a combinação en-
tre anistias a um determinado conjunto de condutas, cumulada com julgamento seletivo
para determinadas outras (os crimes de lesa-humanidade), permite um maior avanço
democrático e dos direitos humanos, aplicando-se prescritivamente aquilo que Olsen,
Payne e Reiter (2010) identificaram empiricamente e descreveram como o modelo do
“equilíbrio da justiça”.
No sentido de promover a verdade, aguarda-se a instituição de uma Comissão da
Verdade. Após recente debate público, em processo de conferência nacional com delega-
dos de todo o país, a proposta de criação de uma Comissão da Verdade foi incluída no
Plano Nacional de Direitos Humanos e um grupo de trabalho, especialmente designado
para esta feita pelo Presidente da República, formulou o projeto encaminhado pelo Go-
verno ao Congresso Nacional. Se aprovado conforme enviado pelo governo, o projeto
criará uma Comissão com as seguintes principais características:

Comissão da Verdade (PL 7.376/2010)


Número de membros:
• 07, designados pelo Presidente da República

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Duração do mandato dos Membros:
• Para todo o processo, que termina com a publicação do relatório

Mandato da Comissão:
• esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos hu-
manos ocorridos entre 1946 e 1988;
• promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desapa- 193
recimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no
exterior;
• identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstân-
cias relacionados à prática de violações de direitos humanos, suas eventuais ramifi-
cações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;
• encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida
que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desa-
parecidos políticos, nos termos da lei que criou a Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos (Lei n° 9.140/95);
• colaborar com todas as instâncias do Poder Público para apuração de violação de
direitos humanos, observada a Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79) e a lei que criou a
Comissão de Anistia (Lei n° 10.559/02);
• recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos
humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e
• promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de
graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada
assistência às vítimas de tais violações.

Poderes e Faculdades da Comissão


• Receber testemunhos, informações, dados e documentos que lhe forem encami-
nhados voluntariamente, assegurada a não identificação do detentor ou depoente,
quando solicitado;
• Requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades do Poder Públi-
co, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo;
• Convocar, para entrevistas ou testemunho, pessoas que guardem qualquer relação
Psicologia,Violência e Direitos humanos

com os fatos e circunstância examinados;


• Determinar a realização de perícias e diligências para coleta ou recuperação de in-
formações, documentos e dados;
• Promover audiências públicas;
• Requisitar proteção aos órgãos públicos para qualquer pessoa que se encontre em situ-
ação de ameaça, em razão de sua colaboração com a Comissão Nacional da Verdade;
• Promover parcerias com órgãos e entidades, públicos ou privados, nacionais ou in-
ternacionais, para o intercâmbio de informações, dados e documentos; e
• Requisitar o auxílio de entidades e órgãos públicos.
194

Duração da Comissão:
• 02 anos

Por sua vez, no campo das alternativas para o exercício do direito à proteção judicial
das vítimas as possibilidades estendem-se ao (i) direito de petição aos tribunais interna-
cionais e, no plano nacional (ii) em ações de natureza civil, declaratórias ou indenizató-
rias e (iii) para casos criminais não alcançados pela decisão do STF.
No cenário internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos é, certa-
mente, o lócus a ser acionado como forma de superar o obstáculo da lei de anistia de
1979, inobstante, importa pontuar que a CIDH não possui meios para promover conde-
nações penais efetivas, apenas recomendando ao Estado condenado que investigue, res-
ponsabilize e repare a violação, coisa que poderá novamente esbarrar na justiça brasileira,
inserindo a decisão internacional no círculo vicioso da cultura de nosso judiciário. De
toda sorte, a condenação em cortes internacionais, como ocorreu no caso Gomes Lund
x Brasil junto a CIDH, cumpre o papel de mobilizar a sociedade e, ainda, de pressionar
o judiciário para que se aperceba dos preceitos jurídicos internacionais, como a figura
jurídica dos crimes de lesa-humanidade.
Uma possibilidade factível é a de que a decisão da CIDH não seja compreendida
como uma oposição à decisão do Supremo, mas seja vista, em razão da convenciona-
lidade (o Estado brasileiro tem o dever de implementar na íntegra a decisão da CIDH
no Caso Araguaia), como complementar a esta. Em outras palavras − e na medida em
que a jurisprudência das cortes internacionais e os tratados e convenções internacionais
não proibem anistias em geral, mas apenas as anistias diretamente voltadas a delitos de
lesa-humanidade − estariam efetivamente anistiados todos os crimes em geral pratica-

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dos pelos agentes de Estado (tais como os relacionados a violações da privacidade, do
direito de ir e vir, da honra, do patrimônio, dos direitos políticos, das liberdades públicas
em geral, de violação da ordem constitucional), conforme a decisão do STF, exceto os
que configuram lesa-humanidade (torturas, desaparecimentos, massacres praticados de
modo sistemático).
No plano nacional, resta explorar as situações não desenvolvidas durante o julga-
mento do STF. Em tese, seguiriam abertas as seguintes discussões e possibilidades, para
além do rol dos delitos tipificados como de lesa-humanidade: (i) a apuração de delitos
195
cometidos após agosto de 1979, haja vista terem sido praticadas torturas, mortes e desa-
parecimentos mesmo após esta data; (ii) o acionamento na esfera civil dos responsáveis
por graves violações aos direitos humanos, especialmente em ações declaratórias; (iii) a
implementação de ações similares aos “juízos da verdade” ocorridos na Argentina, com
o acionamento do judiciário para o esclarecimento de fatos históricos obscuros com o
objetivo de busca das verdades judiciais mesmo sem perspectiva punitiva; (iv) na inter-
pelação ao STF relativa aos crimes de desaparecimento forçado sobremaneira em razão
de jurisprudência anterior da própria Corte Suprema que os consideram como crimes
continuados e permanentes.
O que há de se destacar é que, em todos os casos, o fundamental é a articulação so-
cial entorno da questão. É a pressão social que alimenta a agenda da justiça transicional,
especialmente em contextos de transição por transformação, onde a cultura do regime
autoritário se espraia para parcelas substanciais do poderes instituídos. Qualquer das es-
tratégias acima descritas, tanto no que toca a Comissão da Verdade, quanto no que toca
ao acionamento da justiça nacional e internacional dependem, sobremaneira, da capaci-
dade dos movimentos pró-direitos humanos e pró-democratização de ativarem institui-
ções de Estado, como o Ministério Público, ou mesmo de acionarem individualmente a
justiça, como forma de gerar novas decisões que, gradualmente, possam problematizar
a agenda pendente da transição e provocar o desenvolvimento teórico e jurisprudencial
da matéria.

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197
Caixa-Preta

Edson Luiz André de Sousa

“Ser forçado a presenciar o suplício, como espectador, destroça mais do que o suplício
em si. De simples vítimas, passamos a ser vítimas da brutalização das vítimas.”
Flavio Tavares (2005, p. 73)

“Não existe um único pensamento importante que a estupidez não saiba imediata-
mente utilizar. A estupidez de que se trata aqui não é uma doença mental; nem por
isso deixa de ser a mais perigosa das doenças do espírito, pois ameaça a própria vida.”
Robert Musil (1994, p. 31)

Stefan Zweig publicou um livro sobre nosso país, que o acolheu em sua fuga da barbárie
nazista, intitulado Brasil: país do futuro. Era sua forma de homenagear esta terra prome-
tida, talvez de forma exagerada, pois naquele momento o Brasil já trancava suas portas
Psicologia,Violência e Direitos humanos

aos que fugiam da Europa. Este livro foi fruto de um negócio com o governo. Escreveria
um ensaio sobre o Brasil em troca de um visto permanente para ele e sua mulher. Como
lembra Alberto Dinis (2006) no prefácio de uma das edições brasileiras, ele enxergou em
nosso país um espírito de conciliação.
Contudo, basta lermos o final da introdução de Zweig para lembrar o quanto acabou
sendo um joguete político nas mãos da ditadura de Getúlio Vargas. Conciliação impos-
sível quando não há garantia de cumprimento de alguns preceitos éticos que possam
honrar a verdade e a justiça. A conciliação brasileira tem sido muito “prejudicial à nossa
história já que não permitiu rupturas em nosso processo histórico lembra Paulo Ribeiro
198
da Cunha” (SAFATLE; TELES, 2010, p. 38).
Zweig se enganou e talvez esta decepção o tenha levado ao suicídio. Mas foi lúci-
do o suficiente para apontar no final do seu prefácio o que considera fundamental para
que haja futuro. “Onde quer que forças éticas estejam trabalhando é nosso dever forta-
lecer esta vontade. Ao vislumbrar esperanças de um novo futuro em novas regiões em
um mundo transtornado, é nosso dever apontar para este país e para tais possibilidades”
(ZWEIG, 1941/2006, p. 23).
Só há futuro se podermos não virar as costas para nossa história, como indica com
precisão cirúrgica Walter Benjamin em seu ensaio “Sobre o conceito de história”. A par-
tir de um quadro de Paul Klee, Angelus Novus, ele indica este impasse entre Memória e
Esquecimento.
O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde
nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula in-
cansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para
acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade o impele irresistivel-
mente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce
até o céu. Esta tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1994, p. 226).

Progresso e Ordem/ Ordem e Progresso e a insistência em manter os arquivos da história


fechados, lacrados. Temos direito às caixas pretas que registram os desastres dos quais
fomos vítimas. Não podemos ler a faixa branca de nossa bandeira como uma interdição à
verdade! Fundamental lembrar que o lema positivista que inspirou este escrito dizia: amor,
ordem e progresso. Precisamos recuperar esta rasura insistindo sempre no amor à verda-
de, à justiça, ao respeito. Como canta Jardes Macalé “roubaram o amor de nossa bandeira”.
Como todos sabem, os torturadores em nosso país não foram julgados, continua
ão pode levar à desestabilização política”1. Fantasma que engendra um medo irracional,

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oportunista e que, como sabemos, não foi o caso de países como Argentina, Chile, Uru-
guai, África do Sul (onde mesmo que não tenha havido punição aos torturadores, estes
foram levados a confessar suas atrocidades). O que sabemos por vários estudos é que
onde houve punição foi significativa a diminuição da tortura nos crimes comuns.
Hoje, no Brasil, a tortura infelizmente é moeda corrente, e o que é pior, feita de
forma escancarada. Como é possível conviver com a ideia de que muitos torturadores
ainda são vistos como heróis, inclusive sendo premiados pela barbárie que cometeram? E
isto em um momento de plena vida democrática. Vejamos dois exemplos estarrecedores. 199
Como lembra Jorge Zaverucha, na grande maioria dos países democráticos, o Senado
tem o direito de aprovar ou vetar a promoção de oficiais superiores. No Brasil o artigo

1 Ver dossier sobre o tema: RONCOLATO, M. et al. Quando nos libertaremos deste pus? Revista Caros Amigos, Ano XII, n. 138, p. 30-
39, set. 2008.
84-XIII estipula que o presidente da República é a única autoridade responsável pela
promoção de generais. Diz Zaverucha que, ao receber a lista de promoções das autorida-
des militares, é praxe aprová-la. “As Forças Armadas tornam-se uma extensão do Poder
Executivo em detrimento do Legislativo” (ZAVERUCHA, 2010, p. 63).
Foi assim que Fernando Collor promoveu o General José Luiz da Silva, que co-
mandou a invasão militar de Volta Redonda, e que resultou na morte de três operários.
Também Itamar Franco promoveu o coronel-médico Ricardo Fayad ao posto de general,
cinco dias depois de ele ter sido condenado e perdido sua licença de praticar medicina
pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, por inúmeras acusações de ter
participado de tortura durante o regime militar. O Grupo Tortura Nunca Mais pediu, em
vão, que passasse este torturador para reserva.
Anistia não significa um arquivo lacrado, ela exige respeito aos mortos, a verdade
sobre a história. Como lembra Jeanne Marie Gagnebin (2010, p. 181) “anistia não pode
ser um obstáculo a busca da verdade do passado”.
Contudo, é ponto pacífico juridicamente que não pode haver anistia aos torturado-
res. Os acordos internacionais que o Brasil assinou, tais como a Declaração Universal de
Direitos Humanos, de 1948, reiterada pela Declaração dos Direitos Humanos de Viena,
de 1993, são claros no que diz respeito à absoluta proibição da tortura, o direito à verdade
e o direito à justiça. Flávia Piovesan no seu excelente texto “Direito Internacional dos Di-
reitos Humanos e Lei da Anistia: O caso brasileiro” também lembra que o Brasil ratificou
Psicologia,Violência e Direitos humanos

a convenção contra a tortura de 1948 em 1989. Diz Piovesan (2010, p. 100):


A convenção é enfática ao determinar que nenhuma circunstância excepcional, seja
qual for (ameaça, estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra
emergência pública) pode ser invocada como justificativa para a tortura (artigo 2º).
Portanto [continua a autora] o crime de tortura viola a ordem internacional e, por sua
extrema gravidade, é insuscetível de anistia ou prescrição. A tortura é crime de lesa-
humanidade, considerado imprescritível pela ordem internacional.

200 Não são poucas as estratégias políticas e os mecanismos psíquicos sintomáticos, inibi-
tórios, denegatórios que fazem com que muitos ainda se sintam à vontade respirando o
bafo do porão que sai pelas frestas das caixas-pretas fechadas. Verdadeiras máquinas de
ignorar o real, para tomar emprestada a expressão de Clément Rosset em seu ensaio sobre
a crueldade (ROSSET, 2002). Temos, portanto, que colocar imagens e palavras adormeci-
das, recalcadas nesta engrenagem diabólica e suportar como testemunhos os gritos ainda
silenciados desta história como “se o inferno falasse” afirma Flávio Tavares (2005, p. 14)
lembrando as sessões de tortura.
Abrir arquivos é processo civilizatório, lembra o jurista Célio Borja (BORJA, apud
CUNHA, 2010, p. 38). É neste ponto preciso que penso a utopia como construção de
novos discursos e imagens que buscam ir contra estas realidades que já se grudaram em
demasia às nossas peles. A utopia que indica nosso em falta com a história. O discurso utó-
pico tem a função, portanto, de esburacar o real, abrir intervalos na continuidade da histó-
ria e apontar nossa inconformidade com o que aí está. Para Fredric Jameson (1997, p. 85),
a vocação da utopia é o fracasso, o seu valor epistemológico está nas paredes que ela
nos permite perceber em torno de nossas mentes, nos limites invisíveis que nos permite
detectar por mera indução, no atoleiro das nossas imaginações no modo de produção.

Sabemos que os resistentes à ditadura lutaram por estas causas e foram mortos e tortu-
rados por não tolerarem o horror imposto pela escola dos tiranos, que não reconhece
nenhum outro discurso que não o seu slogan. Por isto, esta fúria em submeter os outros a
seu domínio e convertê-los em objetos.
Aproveito esta potente imagem da caixa- preta para lembrar que é a Aeronáutica que
controla o espaço aéreo comercial, a inspeção sobre segurança de aviões civis e realiza in-
vestigações sobre acidentes aéreos envolvendo aviões civis. É isto que indica Jorge Zave-
rucha no mesmo artigo que já mencionei anteriormente. Diz ele: “ela fiscaliza aquilo que
ela mesma controla” (ZAVERUCHA, 2010, p. 65). Ele lembra que o inquérito do acidente

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com os Mamonas Assassinas responsabilizou apenas o piloto. Diante da repercussão, a
polícia civil abriu outro inquérito paralelo e também responsabilizou dois sargentos que
trabalhavam na torre de controle.
A Aeronáutica não entregou a caixa-preta aos familiares, limitando-se a transcrever
trechos da mesma. Idêntico procedimento foi adotado com a caixa-preta do Fokker-
100 da TAM que caiu em São Paulo em 1996. Desta vez, com a agravante de que o
Superior Tribunal de Justiça determinou que a mesma fosse entregue aos enlutados.
201
(ZAVERUCHA, p. 65).

Caixas-pretas feitas para falar e que são forçadas a ficar em silêncio. Mas a questão é saber
como fazê-las falar, como buscar esta voz amordaçada? O testemunho é um compromis-
so com a transmissão e ter a coragem de falar por aqueles que não podem mais. Neste
ponto, é preciosa a reflexão de Maria Rita Kehl em seu texto “Tortura e Sintoma Social”
quando lembra o quanto a tortura busca separar corpo e sujeito.
Sob tortura, o corpo fica assujeitado ao gozo do outro que é como se a “alma” – isso
que, no corpo pensa, simboliza, ultrapassa os limites da carne pela via das representa-
ções – ficasse a deriva. A fala que representa o sujeito deixa de lhe pertencer, uma vez
que o torturador pode arrancar de sua vítima a palavra que ele quer ouvir, e não a que
o sujeito teria a dizer. (KEHL, 2010, p. 131).

São estas imagens que Primo Levi descreve com tanta precisão em seus textos, corpos
despossuídos de alma, entregues à animalidade mais crua da sobrevivência, do pragma-
tismo mais imediato. Mas ainda assim nos perguntamos: que força lhes permitia resistir?
Talvez a aposta que alguma voz, mesmo depois das cinzas, viesse a lembrar a fúria do
carrasco e a dor do torturado. É isto que lembra Benjamin no fragmento que mencionei
acima: alguém ainda acordará os mortos e juntará seus fragmentos?
Mesmo que seja nosso dever, o que vemos com mais frequência é uma grande apa-
tia. Aí o signo da decadência de uma civilização. Cioran em seu História e Utopia mostra
que utopia não significa esperança ingênua, mas ter a coragem de ver e denunciar o medo
e as identificações inconfessas ao carrasco, mecanismo este que precisamos identificar
para que efetivamente algo possa mudar. Não há revolta potente sem um entendimento
mínimo da decadência cultivada.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Diz Cioran (1994, p. 95): “Nossa decadência é tal que aceitamos sem enrubescer
excessos, profusões de admiração falsas e premeditadas, pois preferimos as cortesias da
mentira às censuras do silêncio”. Romper com este cenário implica produzir atos de fala
que venham a honrar nossos mortos e sua história. Como afirma Kehl (2010, p. 131), “se
a tortura separa corpo e sujeito, cabe a nós assumir o lugar de sujeito em nome daqueles
que já não têm direito a uma palavra que os represente”.
As caixas-pretas de Janett Cardiff e George Miller falam. Estes dois artistas cana-
denses fazem uma espécie de escultura de som colocando em cena uma arquitetura
202 do medo. Metáfora potente da tirania do poder que se transfigura em um pesadelo
que contamina o espectador. Vi este trabalho em Inhotim – Minas Gerais. Entro na
grande sala branca, sento-me em uma das cadeiras e acompanho a narração de um
pesadelo vertido pelos 98 alto-falantes. As vozes surgem de vários lugares da sala,
assim como o som de máquinas, músicas e o voo de corvos que funcionam como uma
espécie de refrão do trabalho.
A obra tem como título “O assassinato dos corvos” e foi inspirado na famosa gravura
de Goya de 1799 da série Los Caprichos “O sono da razão produz monstros”. Sou convoca-
do ali a testemunhar. Testemunho requer saber esperar o tempo do outro, aguardar que
tudo seja dito. Pergunto-me: onde estou neste pesadelo que escuto? Pesadelo do outro,
mas também meu, já que minha emoção pelo que escuto mostra que me sinto também
naquela voz.
O “Assassinato dos corvos” introduz pela palavra uma fissura na máquina de ignorar
o real. Mostra o que é o medo, mas também como desmontar o medo. Em um momento
é a voz de um torturador sádico que escutamos: “cortem a perna dela!”. Ela grita para
não fazerem isto. A ameaça continua e finalmente o torturador diz “Não lhe cortamos as
pernas de verdade, apenas lhe damos um susto pavoroso”. Não lhe cortaram as pernas? O
que foi cortado? Impossível dormir depois desta cena.
Ruído dos corvos e uma voz irônica em tom de canção de ninar “close your eyes
and try to sleep” (feche os olhos e tente dormir). Lembro de uma passagem do livro de
Flavio Tavares, Memórias do Esquecimento. Ele foi um dos 15 presos políticos “trocados”
pelo embaixador dos Estados Unidos em 1969. No terceiro dia de tortura com choques
elétricos, o sargento que o torturava gritou:
– Fala, fala, senão trago a tua filha, dou choque nela e depois fodo, fodo ela aqui na tua
frente. Ele ameaçava tocando-se os testículos e fazendo, com as mãos e o ventre, aquele
gesto vulgar e obsceno de quem estupra. A caricatura do gesto foi tão forte e eu estava
tão desfeito que acreditei que ele cumpriria a ameaça. O horror me invadiu ainda mais

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forte que a dor do choque elétrico. (TAVARES, 2005, p. 266).

Imagem pesadelo que o acompanhou por muitos anos ao imaginar sua filha de quatro
anos ali na sua frente, como a ameaça da perna cortada. Impossível distinguir entre o que
é e o que não é. Situações que acionam em qualquer um a mais profunda confusão men-
tal e intoxica a alma de horror. O próprio Flavio Tavares esclarece que cenas como esta
o faziam pensar nos inquisidores “no seu delírio eufórico de vitorioso tem direito a tudo
inventar e em tudo sentir-se, irrebatível e inquestionável, transformando até a verdade 203
que não é na verdade que é” (TAVARES, 2005, p. 249).
As caixas-pretas continuam narrando o pesadelo. Impossível dormir, diante de um
abusador que não poupa ninguém. Estarrecedor pensar que a ditadura brasileira pro-
duziu monstros como o brigadeiro João Paulo Penido Burnier, chefe do gabinete do mi-
nistro da Aeronáutica, com seu plano de incendiar em 1968 o Rio de Janeiro, explodir o
gasômetro Novo-Rio, postos de gasolina, Embaixada dos Estados Unidos para em suas
palavras “incriminar os comunistas”. O capitão que recebeu estas ordens, Sérgio Miranda
de Carvalho, comandante da tropa de elite da FAB, e que se recusou a executá-la e foi ex-
cluído das Forças Armadas em 1969; e o brigadeiro Eduardo Gomes, que encampou esta
denúncia contra Burnier, morreu em um “acidente de automóvel” meses depois − o que,
segundo seus próximos, foi um claro atentado por parte da extrema-direita militar.
História que continua queimando dentro de tantas caixas pretas lacradas. Até quan-
do? Nem os corvos abandonam seus mortos. Cardiff intitulou seu trabalho “O Assassinato
dos corvos” numa clara evocação do ritual fúnebre destes pássaros. Sempre que um deles
morre, os demais ficam em revoada por 24 horas em uma espécie de ato solene ao corpo.
Já se passaram 24 horas, 24 semanas, mais de 24 anos, mas precisamos continuar
em revoada e exigir o que está escrito nos tratados internacionais de direitos humanos
assinados por nosso país: punição aos torturadores, direito à verdade e à justiça. Corvos
como testemunhas. Como lembra Paulo Endo (2009, p. 55): “A aniquilação do testemu-
nho não é a ausência do que dizer, mas não ter quem escute o que se pode dizer”. Neste
ponto, um dever de memória a preservar. Quem sabe um dia poderemos então fechar os
olhos, dormir e sonhar novamente.

Referências
Psicologia,Violência e Direitos humanos

BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. In: ______. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994, 1 v. p.
222-232.
CIORAN, E. História e Utopia. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
CUNHA, P. R. Militares e anistia no Brasil: um dueto desarmônico. In: SAFATLE, V.; TELES, E. (Orgs.). O que
resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 15-40.
DINIS, A. Préfacio. In: ZWEIG, S. (1941). Brasil um país do futuro. Porto Alegre: LPM, 2006, p. 7-9.
ENDO, P. A dor dos recomeços: luta pelo reconhecimento e pelo devir histórico no Brasil. Revista Anistia –
política e justiça de transição. Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Brasília, n. 2, p. 50-63, julho/
dezembro 2009.
204 GAGNEBIN, J. M. O preço de uma reconciliação extorquida. In: SAFATLE, V.; TELES, E. (Orgs.). O que resta
ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 177-186.
JAMESON, F. As sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1997.
Kehl, M. R. Tortura e Sintoma Social. In: SAFATLE, V.; TELES, E. (Orgs.). O que resta ditadura. São Paulo:
Boitempo, 2010. p. 123-132.
MUSIL, R. Da Estupidez. Lisboa: Relógio D’Agua,1994.
PIOVESAN, F. Direito Internacional dos Direitos Humanos e Lei da Anistia: O caso brasileiro. In: SAFATLE, V.;
TELES, E. (Orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 91-107.
Roncolato, m. et al. Quando nos libertaremos deste pus? Revista Caros Amigos, Ano XII, n. 138, p. 30-
39, set. 2008.
ROSSET, C. O princípio de crueldade. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
SAFATLE, V.; TELES, E. (Orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010.
TAVARES, F. Memórias do Esquecimento - os segredos dos porões da ditadura. São Paulo: Editora Record, 2005.
ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988. In: SAFA-
TLE, V.; TELES, E. (Orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 41-76.
ZWEIG, S. (1941). Brasil, um país do futuro. Porto Alegre: LPM, 2006.

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205
Psicologia,Violência e Direitos humanos

206
Psicologia,
crueldade,
intolerância e
memória

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207
Dor e desamparo – filhos e pais,
40 anos depois1

Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes

Tendo vivido pouco, cumpriu a tarefa de uma longa existência”.


Edgard Godoy da Matta Machado (1973) homenagem a José Carlos Novaes da Matta
Machado, seu filho, assassinado no Brasil, durante a ditadura militar, aos 27 anos de idade.

TORTURA
Psicologia,Violência e Direitos humanos

A lógica do ordenamento político-jurídico contemporâneo, na qual a banalidade do mal


e a liquidez das relações entre os homens escorre pelos clusters dos computadores, atesta
a volatilidade da violência, que, como um vírus interplanetário, se propaga pelo ar e pela
rede de informação elétrica, eletrônica, digital. Quando a autoridade de um governo ins-
titui a tortura como forma permitida e legítima de extrair confissões de prisioneiros sob
sua guarda, ou como um ato de coação ou de estabelecimento da ordem, este governo
reinstala a barbárie, apesar da civilização. Neste aspecto se confirma a concepção freudia-
na de que a cultura e a civilização não trouxeram a paz, não eliminaram o conflito entre
208
os homens e nem portaram a felicidade tão almejada.

1 Este texto foi publicado originalmente na Revista Psicologia Clínica 20.2. Publicação do Departamento de Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro em Novembro de 2008. Temática: direitos humanos.
A TORTURA É UMA PRÁTICA CRIMINOSA E
NEM POR ISSO MENOS PRATICADA
No Brasil, nos locais de isolamento, sobretudo nas prisões, nas delegacias de bairro, em
instituições, em hospitais psiquiátricos e casas de abrigo de idosos e de jovens e crianças
em conflito com a lei, a tortura é prática comum para extrair confissões, para humilhar,
para amedrontar, para fazer cumprir uma ordem. Durante a ditadura militar, implantada
pelo golpe de 1964, a tortura foi um ato de Estado e uma política sistemática.
Os protocolos e instrumentos jurídicos contra a tortura, assinados por todos ou
quase todos os países que compõem a comunidade internacional, dizem que a tortura é
uma prática que se efetiva por agentes do governo e em nome de autoridades de qualquer
natureza para extrair informações, confissões, que possam beneficiar seus mandantes.
Uma definição internacionalmente aceita de atos que constituem tortura a explicita como
qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos graves, de natureza física ou mental, são
infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa,
informações ou confissões; “[...] castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha
cometido ou seja suspeita de ter cometido; [...] intimidar ou coagir essa pessoa ou ou-
tras pessoas, ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza;
quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por funcionário público ou outra pessoa
no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou
aquiescência.” (Foley, 2003, p. 11).

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A proibição é considerada um princípio do direito internacional geral no qual ocupa
uma posição especial, é uma norma imperativa, de aplicação obrigatória. Além do Artigo
V da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, “Ninguém será submetido à
tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”, várias outras me-
didas internacionais e regionais reescrevem a proibição da tortura. A prática da tortura é
um ato proibido e, como decorrência, sua prática é crime e deve ser punida.
Todos os instrumentos internacionais indicam, como uma das formas de prevenção
à prática da tortura, a relação estreita e continuada de organismos de defesa dos direitos 209
humanos e da sociedade civil com os locais de detenção e de isolamento de indivíduos, de
qualquer natureza. O acesso e a visita continuada a estes locais se constitui uma maneira
de prevenir a prática da tortura com o objetivo de sua total erradicação. Há um protocolo
construído com este fim específico, o Protocolo facultativo à Convenção das Nações Uni-
das contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes,
que o Brasil assinou em 2003 e ratificou em 20 de dezembro de 2006. As visitas a locais de
detenção e de isolamento estão previstas neste Protocolo como forma de prevenção, de
coibição e de eliminação da tortura.
Outra forma de conhecer as condições de tratamento das pessoas presas é o acesso
aos documentos que registram o período em que ficou presa, detida, isolada e/ou em
outras formas sob a responsabilidade dos órgãos públicos ou de seu conhecimento e que,
mesmo privados, fossem de aquiescência do poder público ou de autoridade com esta
função. Logo, o acesso a todo e qualquer documento de registro, informação que pos-
sibilite esclarecer condições de prisão e isolamento no Brasil é uma decorrência natural
dos instrumentos de proteção à vida, à integridade física e mental e de esclarecimento de
circunstâncias que envolvam a prisão e o tratamento dado a estas pessoas.

BRASIL: 1964 – FILHOS E PAIS


No Brasil, o golpe militar e a implantação da ditadura não foram um ato isolado e muito
menos engendrado dentro do território brasileiro. Hoje se sabe que os Estados Unidos,
através da Agência Central de Inteligência (CIA), tiveram papel no golpe de 1º de abril de
1964, sobretudo em apoio às forças golpistas. Hoje podemos compreender que os atos de
assassinato e de tortura não foram fruto de mentes doentias e de psicopatas. A política de
repressão, de prisão, de assassinato, de tortura, de desaparecimento e do banimento são
Psicologia,Violência e Direitos humanos

práticas exercidas em todos os países em que o poder político, aliado ao poder militar, se
outorga o papel de dono do corpo, da mente e do direito à vida e à morte dos habitantes
e cidadãos do país.
Exercer atos que sustentem esta política autorizada é um gesto que lentamente se tor-
na, também, sobre-humanamente desumano: apaga aos poucos a repugnância inata ao cri-
me. Por isso é que certamente vários dos esclarecimentos ainda estejam por ser prestados e
a política de manutenção de sigilo sobre documentação que comprove tais atos ainda seja
objeto intocável, pois diz respeito a uma política de governo ainda nos porões do Estado.
210 Ao escolher falar da tortura, da prisão, do assassinato, do desaparecimento nesta
época, escolhi como testemunhos e relatores os filhos de pais atingidos pela violência.
Falaram simplesmente sobre seus pais e mães que, ali, frente a eles, exibiam a marca da
tragédia brasileira.
Para me referir à memória de filhos e de pais atingidos pela ditadura militar, recorro
ao filme-documentário 15 filhos, dirigido por Marta Nehring e Maria de Oliveira, feito
a partir do depoimento de quinze filhos de militantes políticos brasileiros. À época do
filme, eles já têm em torno de 30 anos de idade, e quando seus pais foram atingidos pela
prisão, pelo exílio, pelo assassinato ou tortura, tinham entre 5 e 16 anos de idade. Alguns
ainda sequer haviam nascido, estavam em gestação quando suas mães foram presas. O
documentário é realizado a partir de suas lembranças desta época. Singelo e pungente, o
filme dura 20 minutos e é um testemunho singular das marcas de cenas e de atos desuma-
nos, degradantes e cruéis, exercidos contra os pais e contra estes 15 filhos.
As cenas apresentadas no filme desafiam as leis do tempo. Só mesmo a crença de
que o inconsciente é regido pela intemporalidade ou atemporalidade e a compreensão de
que o passado pode irromper no presente carregado de afeto podem explicar a emoção
renovada ao assistir 15 filhos mais uma vez, mais de uma vez, ou muitas vezes.
As falas e depoimentos não pertencem somente ao nosso tempo e nem apenas são
referências a acontecimentos em nosso país. Poderiam ser contadas em qualquer tempo
e em qualquer país, e todos, com certeza, seriam afetados pelas lembranças reveladas. O
psicanalista Helio Pellegrino (1982), escreveu:
a tortura busca introduzir uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente e
mais do que isto: procura, a todo preço, semear a discórdia e a guerra entre o corpo e a
mente. [...] Na tortura, o discurso que o torturador busca extrair do torturado é a negação
absoluta e radical de sua condição de sujeito livre. A tortura visa o avesso da liberdade
(Pellegrino, 1982, apud Arquidiocese de São Paulo, 1985, p. 281).

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OS 15 FILHOS, SEUS PAIS E SEUS IRMÃOS
Marta Nehring conta que o documentário foi realizado em 1996, para um seminário da
UNICAMP intitulado A revolução possível, com a finalidade de discutir a repressão política,
o esquecimento e as possibilidades de reparação. A proposta das diretoras era colher lem-
branças dos filhos de militantes políticos. Lembranças de sua infância, dos pais, do tempo
de escola. Não a opinião de cada um sobre o que ocorreu, mas, tão somente, a lembrança.
Para poder acompanhar o desenvolvimento do filme, apresento os filhos, pais e ir- 211
mãos, recorrendo, principalmente, a textos elaborados pelos Comitês Brasileiros de Anis-
tia (CBAs) do Rio de Janeiro e de São Paulo (1979) e ao livro Dos filhos deste solo, de
Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio (1999).
Abertura do vídeo: Ivan Seixas já tinha uma atividade política, embora adolescente,
e suas lembranças, provavelmente, estão também marcadas pela experiência como mili-
tante. Foi convidado para abrir o filme; é, por assim dizer, o “filho 16”. Seu pai, Joaquim
de Alencar Seixas, foi preso juntamente com Ivan, que tinha então 16 anos de idade, em
abril de 1971. Foram espancados com tal violência que a corrente da algema que prendia
os dois pelos pulsos se rompeu. Foram torturados um frente ao outro. A polícia também
prendeu a mãe, Fanny, e suas duas irmãs, Iara e Ieda. Joaquim Seixas morreu na tortura;
os jornais informaram que morreu em confronto armado contra a polícia. Ivan, menor
de idade, ficou preso durante seis anos sem julgamento, dos quais os três últimos na Casa
de Custódia e Tratamento de Taubaté (SP).
Telma Lucena e Denise Lucena, filhas de Antonio Lucena, morto a tiros na porta de
sua casa, na frente da família. Além das duas irmãs, depoentes no filme, presenciaram o
assassinato de Lucena a esposa, Damaris, e o filho, Ailton, então com apenas 3 anos de
idade. Posteriormente, os três filhos foram para o exílio com a mãe. O filho mais velho,
Ariston, em função de sua militância política, foi preso em março de 1970; condenado
inicialmente à pena de morte, esta foi comutada para prisão perpétua e depois a 25 anos
de prisão. Tendo sido preso menor de idade, foi solto após 8 anos de prisão, permanecen-
do em livramento condicional por 16 anos.
Joca – João Carlos – Grabois, filho de André Grabois e Criméia de Almeida, nasceu
na prisão e não chegou a conhecer o pai, que foi assassinado em outubro de 1973 na guer-
rilha do Araguaia – e até hoje desaparecido. O Estado reconheceu sua morte, mas não
informou à família o que foi feito com André. Mauricio Grabois, pai de André e avô de
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Joca, também morto no Araguaia em dezembro de 1973, continua desaparecido.


Gregório Gomes e Wladimir Gomes, filhos de Virgílio Gomes da Silva, morto em
1969 na OBAN. Virgílio foi torturado com os pulsos algemados às costas, tendo seu cor-
po sido chutado, sobretudo na cabeça, durante 15 minutos ininterruptos; logo após, des-
maiou. Sua prisão e morte não foram reconhecidas pelos órgãos de repressão, apesar de
numerosos testemunhos de militantes que confirmam sua presença na prisão, onde ouvi-
ram seus gritos, e a denunciaram perante tribunais militares. Recentemente, fotos de seu
corpo foram localizadas e divulgadas pela imprensa, permitindo aos filhos providências
junto à Justiça.
212
Francisco Guariba – Chico – e seu irmão, João Vicente Guariba, são filhos de
Heleni Guariba – presa em 1970, solta em 1971, presa novamente e assassinada sob
tortura. Conforme testemunhos de militantes, esteve na chamada “Casa da Morte”, em
Petrópolis. A responsabilidade do Estado pela morte de Heleni foi reconhecida no ane-
xo da Lei 9140/95.
Ernesto Carvalho, filho de Pedrina e de Devanir José de Carvalho. Devanir recebeu
uma rajada de metralhadora e foi preso, aos 28 anos, em 5 de abril de 1971; levado ao DOPS,
morreu após ter sido torturado ininterruptamente durante dois dias pelo delegado Fleury.
André Herzog, filho de Clarice e de Vladimir Herzog, morto sob tortura horas após
sua prisão em 25 de outubro de 1975. A versão oficial de suicídio dentro da prisão, com o
cinto do macacão de presidiário, foi desmontada a partir de numerosos depoimentos de
presos na mesma época e também pelas contradições apresentadas nos depoimentos dos
médicos-legistas. A União foi responsabilizada por sua morte.
Rosana Momente, filha de Orlando Momente, desaparecido na guerrilha do Ara-
guaia desde 1973. Orlando casou-se em 1961 e em 1964 entrou na clandestinidade,
indo para o sul do Pará, onde desapareceu. Somente muito mais tarde, 18 anos depois,
Criméia de Almeida, ex-guerrilheira do Araguaia, contou para Rosana a verdadeira
identidade do seu pai.
Tessa Lacerda, filha de Gildo Macedo Lacerda e de Mariluce. Gildo e Mariluce foram
presos, em outubro de 1973, em Salvador. Mariluce estava grávida de um mês. Quando
se encontraram dentro da Superintendência da Polícia Federal, olharam-se angustiados
e longamente; foram separados e nunca mais se viram. Gildo foi torturado até a morte,
no dia 29, no DOI-CODI do Recife. Nota oficial anunciou sua morte, junto com a de José
Carlos Novaes da Matta Machado, “por enfrentamento na rua”. Com o nascimento de
Tessa, 8 meses após a morte do pai, Mariluce travou incansável batalha judicial, que se
arrastou por 18 anos, para que a paternidade de Gildo fosse reconhecida. Gildo, enterra-

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do como indigente no cemitério da Várzea no Recife, teve seu corpo necropsiado e seus
restos mortais foram enterrados em valas comuns do “Buraco do Inferno” (1986) e depois
no Cemitério das Flores, sem jamais chegar à sua família.
Marta Nehring, filha de Norberto Nehring e Maria Lygia Quartin de Moraes. Nor-
berto foi preso em 1969 e, após sair da prisão, exilou-se. Um ano depois, em 1970, de-
sembarcou no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, e nunca mais foi visto. Foi morto
sob tortura. A versão oficial é que teria sido encontrado morto em um quarto de hotel,
próximo ao DOPS, em São Paulo, enforcado com uma gravata. A família requereu uma
213
autópsia e a exumação, que nunca foram feitas. Enterrado com nome falso, no Cemitério
de Vila Formosa, em São Paulo, somente muito tempo depois seus familiares finalmente
conseguiram trasladar os restos mortais para o jazigo da família.
Maria Oliveira, filha de Eleonora Menicucci e de Ricardo Prata, ex-presos, ambos
torturados. Ficaram presos durante 2 e 4 anos, respectivamente.
Janaina Teles e Edson Teles – filhos de Amélia e César Teles, ex-presos. Foram presos
juntamente com os pais em 1972, sendo permanentemente ameaçados de ser torturados.
Presenciaram a tortura dos pais. Janaina, Edson, os pais Amélia e César e a tia Criméia
iniciaram, em 2006, Ação Declaratória contra a União, para que seja reconhecida a respon-
sabilidade do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI/São
Paulo, por estes fatos.
Priscila Arantes, filha de Maria Auxiliadora A. C. Arantes e Aldo Arantes, ex-presos.
Priscila e seu irmão André foram presos com sua mãe, no interior de Alagoas, no dia 13
de dezembro de 1968 – uma hora após ter sido lido, na Hora do Brasil, o Decreto AI-5.
Permaneceram presos durante 4 meses, juntamente com sua mãe, em diferentes locais de
detenção na cidade de Maceió: hospital, cadeia pública, delegacia de bairro, entre outros.
Aldo, após fugir do DEOPS em Maceió, foi preso novamente em São Paulo em 1976, no
episódio conhecido como “Chacina da Lapa”. Saiu da prisão com a decretação da Anistia,
em 28 de agosto em 1979.

UM PASSADO EM LEMBRANÇAS
O elenco dos 15 filhos reunidos por Marta e Maria para a gravação do documentário de-
veria falar sobre suas lembranças de infância. As diretoras propuseram como perguntas a
serem respondidas: o que você lembra, não o que você acha: a infância. As músicas, uma
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cena, uma frase. A casa da avó, a hora do recreio. Como era sua mãe? O que você lembra
do seu pai? Não a opinião, a lembrança. O nome (às vezes falso), o álbum de fotos, o exílio
(no país distante ou no bairro onde nasceu), as visitas (na prisão, ou o nome que se desse
a ela: hospital, trabalho). As perguntas que conduziram as entrevistas do vídeo “15 filhos”
foram assim, tiradas da própria infância das diretoras (Nehring, 2006, p. 387).
A diferença entre a memória dos pais e a dos filhos tem uma radicalidade: os pais
poderiam relatar fatos decorrentes das vicissitudes de suas escolhas políticas e pessoais.
São memórias impregnadas de afeto, tingidas pela dor dos acontecimentos, pela recusa
214 das más lembranças, diminuídas ou aumentadas pela importância das perdas e do de-
samparo. Sabemos que a memória é seletiva, não é um ato mecânico ou químico, ela é co-
lorida pelos afetos e este é o principal ingrediente da crença de que a lembrança relatada
poderá ir ressignificando momentos, situações, e sua repetição e sua rememoração é que
poderão ir desfazendo o peso de um acontecimento doloroso. Recordar, repetir, elaborar
é a proposta freudiana para o processamento dos sintomas que se organizaram para dar
conta da dor, dos conflitos e dos momentos de desamparo. Falar de uma lembrança até
que ela se torne um passado.
Há um tipo especial de experiências da máxima importância, para o qual lembrança
alguma, via de regra, pode ser recuperada. Trata-se de experiências que ocorreram em in-
fância muito remota e não foram compreendidas na ocasião, mas que subsequentemente
foram compreendidas e interpretadas (Freud, 1914/1969, p. 195).
A memória dos filhos, então crianças, na época da prisão e/ou assassinato dos pais,
é atravessada pela impossibilidade de compreensão dos fatos, já que eram apenas filhos
de pais iguais a tantos outros pais e que de repente foram roubados de sua frente, assassi-
nados diante de seus olhos, apresentados disformes pela tortura, inchados pelos edemas
do espancamento, tingidos de sangue. Uma das filhas conta que não reconheceu sua mãe,
nem mesmo sua voz, totalmente deformada pela tortura, com os dentes quebrados, in-
chada e disforme.
São lembranças de pais “sem profissão”, porque clandestinos, sem família com avós,
tios ou primos. Lembranças de conversas que não podiam ser explicadas. Sussurros e corre-
-corre à noite, cheiro de papel queimado – textos e documentos sendo destruídos –, armá-
rios trancafiados e sem chave, escondendo o que não podia ser visto. Este mistério que
envolveu os filhos dos militantes políticos tem o peso de algo que era segredo, pesado
e improcessável. São estas lembranças que reúnem os filhos neste filme e que, embora
sejam estes filhos, são certamente as mesmas lembranças de muitos, senão de todos os
filhos de pais militantes, atingidos pela ditadura militar e pela repressão política.

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Destas lembranças relatadas, as que estão atravessadas pela morte dos pais e pelo
seu desaparecimento são as que deixaram inconcluso qualquer raciocínio possível. Filhos
que nasceram após o assassinato do pai e filhos que só mais tarde souberam que seus pais
são desaparecidos políticos. A tentativa de recomposição da imagem do pai desaparecido
constrói, dentro destes filhos, a imagem de um pai que é puro pai, um pai interno, enorme,
não um pai de carne e osso, falível, cotidiano. Como disse uma das filhas, são lembranças de
um pai enorme, gigantesco, sem possibilidade de troca, de perguntas e de respostas.
São estas as marcas que a ditadura militar jamais imaginou que deixaria através
215
das gerações, e são estas as histórias de memória que agora tentamos compreender. De
todas as lembranças, umas das mais tocantes é a da filha que, durante muito tempo, ficou
imaginando seu pai aparecer, um pai vivo, porém imaterial. Quando chegou a notícia de
que seu pai é um desaparecido político, teve que reunir à imaterialidade da vida a imate-
rialidade da morte!
Os militantes que ficaram no Brasil durante a vigência da ditadura militar se torna-
ram, quase todos, clandestinos políticos, única possibilidade para os que permaneceram
no país e que continuaram a luta de resistência. Abandonaram sua casa paterna, seus
nomes de família, seu emprego e profissão, seus documentos de identidade e se tornaram
anônimos, sem sobrenome, sem o que dizer para os filhos, sem lhes contar o que real-
mente faziam. Homens reservados, mulheres taciturnas, relações entrecortadas no con-
vívio familiar. Eram os tios e as tias de todos os sobrinhos, que eram os filhos de outros,
igualmente, tios ou tias.
Esse anonimato desconcertante foi passando para os filhos como o pulsar de um
abraço materno, que é inscrito como uma sensação, por isso indizível e, exatamente por
isso, inesquecível. Porém a própria clandestinidade, que a princípio era uma defesa para o
militante, como um bumerangue se tornou também seu principal ponto vulnerável: a re-
pressão aproveitou o anonimato dos militantes capturados com seus nomes frios e iden-
tidades fabricadas para negar, às famílias e advogados, o verdadeiro nome do militante
preso. E desta forma os eliminou, os enterrou, os fez desaparecer, com nomes frios, como
indigentes, nenhum-nome, os NN. A ditadura implantou no Brasil a figura tragicamente
conhecida como o desaparecimento político.
O desaparecimento é copiado dos métodos de Hitler. Nacht und Nebel – noite e
neblina – é o nome da operação que os nazistas conceberam para fazer sumir opositores do
regime. Desaparecer sem deixar rastro, sem direito à sepultura, sem direito de serem vela-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

dos. São os corpos insepultos de que Sófocles falava na sua Antígona (Arantes, 1994).
A tragédia, escrita há 2 mil anos, se repete. Passados mais de 40 anos do golpe de
1964, no Brasil ainda há mais de uma centena de desaparecidos políticos. O país mantém
arquivados informações e documentos que poderão certamente ser decisivos no esclare-
cimento de vários destes casos.
Alguns pais destes 15 filhos estão entre estes brasileiros desaparecidos. Entre eles,
militantes do combate na região do Araguaia. O desarquivamento do Brasil passa pelos
documentos que podem vir a esclarecer a situação destes combatentes e também podem
esclarecer as circunstâncias que envolveram o desaparecimento de numerosos militantes
216
clandestinos, capturados vivos, certamente mortos sob tortura.
OUVINDO OS FILHOS
Ouvindo as lembranças dos filhos, o que é mais radical é a posição de descentramento
dos pais que foram atingidos ao escutar seus próprios filhos. Aos pais fica o lugar de de-
samparo, que é quase uma prerrogativa de filho. Aos pais cabe cuidar, amparar, ser um
para-raios que ameniza as descargas fulminantes das dores do corpo e, sobretudo, das
dores da alma. Neste relato de memória, desdobra-se a materialidade e o desvelamento
do deslocamento dos pais. Ao perceber tudo o que foi improcessável para os filhos, a
imensidão do segredo e o estranhamento do que lhes deveria ser familiar e acolhedor
tornam-se um documento com que os pais deverão se haver, se ainda não o tiverem feito.
O relato destes 15 filhos fala do que é antes e aquém da palavra e que é pleno de sen-
tido: o som de um assobio do pai, seu jeito de avisar que estava chegando em casa. Um
dos filhos conta que durante anos e anos ficou escutando este assobio após o assassinato
do pai. Uma filha, que teve seu pai assassinado, fala sobre um piscar de olhos que tro-
caram, dentro de um elevador, no exílio: tinham combinado não se falar publicamente.
Outros se lembram de um abraço contido e apressado, e provavelmente furtivas lágrimas,
transbordando palavras liquefeitas do que não podia ser falado. Os filhos se lembram de
coisas, de gestos, de atos, que durante muito tempo e não se sabe quanto, e se ainda, re-
verberam em suas cabeças e em seus corações.
Falam, 10, 15 anos depois, do que era a névoa que envolvia as relações com os seus
pais e com suas mães. Sentiram, mais que muitos, o peso de um segredo, que, se escutado,

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não podia ser repetido. Sentiram o que de tão familiar lhes era ao mesmo tempo estranho
e o que, de tão secreto, era profundamente assustador. A genealogia do segredo familiar
remonta aos avós, que contam, muito depois, sobre o pai que não pôde ser. Sentiram
o impacto do mistério que os enlaçava aos próprios pais que, embora não pudesse ser
decifrado, ao mesmo tempo que não podia ser esquecido, paradoxalmente, não podia
ser lembrado. Estabeleceram, na alvorada de suas vidas, ao tempo ainda incipiente de
constituição de seu equipamento psíquico, uma defesa maciça, a única então possível;
organizaram uma negação da dor e seus corpos adoeceram febrilmente, ao duvidar de
217
uma quase certeza: a morte do pai.
As lembranças dos filhos estão ancoradas no cenário que as sustenta: as grades da
prisão; os ferrolhos mal azeitados das portas de ferro da cadeia; o carro em alta velocidade
fugindo de uma viatura policial; os muros da embaixada; o pátio da escola que lembrava
o presídio; uma música assobiada; a bandeira vermelha na parede do quarto juvenil.
A tentativa desajeitada de reconstrução da imagem paterna através de uma foto an-
tiga, 3x4, a proximidade com os pais durante a barbárie da tortura, a tentativa de reco-
nhecer a voz da mãe no rosto desfigurado são acontecimentos que jamais qualquer pai
ou qualquer mãe supôs que fosse vivida pelos seus filhos. A violência da prisão e o avilta-
mento da tortura descentraram os pais, o pai e a mãe, de seu lugar essencial: seu lugar de
proteção, de cuidado, de acolhimento e sustentação dos filhos.
A ditadura conseguiu fazer, com requinte, o mais cruel: obrigar os filhos a presenciar
o desamparo dos pais. E conseguiu. Conseguiu mais do que isso: sem aviso e sem pudor,
decidiu assassiná-los diante dos filhos: outros convivem com a impossibilidade de velar o
pai, no corpo ainda desaparecido. Promoveu a terrível impossibilidade de materializar o
pai, assassinado antes que pudesse ter sido seu pai. Não haverá discurso lógico que obture
o que ficou como uma fenda por onde escorrega, lentamente, a lembrança viscosa do que
não pode ser explicado.

BANALIDADE DO TEMPO
Quase 40 anos se passaram e explicações sobre os casos de morte, de desaparecimentos,
ainda não foram apresentadas e, com o decorrer do tempo, essas explicações podem vir
a ser consideradas desnecessárias. O tempo já apagou, poderá se supor, a necessidade de
que ocorram. É exatamente este viés que este texto quer repudiar. O acostumar-se com
Psicologia,Violência e Direitos humanos

um descaso pode fazer pensar que se tornou banal após tanto tempo decorrido, a ponto
de ter amarelado uniformes verde-oliva e apequenado a imensidão do poder militar rei-
nante no país, por quase 21 anos, após o golpe de 1964.
A banalidade do mal, concepção formulada por Hannah Arendt, inspirou Dejours
(2005) na sua construção de banalização da injustiça social.
Minha análise parte da banalidade do mal no sentido em que Hannah Arendt em-
prega essa expressão com referência a Eichmann. Não, como fez ela, no caso do sistema
nazista, mas no caso da sociedade contemporânea, na França, em fins do século XX.
218 (Dejours, 2005, p. 21).
A banalização do mal é o “processo graças ao qual um comportamento excepcio-
nal, habitualmente reprimido pela ação e pelo comportamento da maioria, pode erigir-se
como norma de conduta e ao mesmo tempo de valor” (Dejours, 2005, p. 110).
Nesta banalização, há uma cooperação de todos para que a banalidade se imponha
como uma reação ao medo da perda de privilégios, ao medo frente a ameaças de qualquer
natureza. O que acaba ocorrendo é a perda de capacidade de mobilização e de indignação
frente à injustiça social, encoberta por um véu de infelicidade, com o qual nos acostuma-
mos a conviver. A mobilização só acontece quando se considera que a injustiça se torna
intolerável.
Podemos pensar também na banalização do tempo, como se pudéssemos nos acos-
tumar com um vazio não preenchido e uma resposta não formulada. Esta resposta pode
ser uma resposta coletiva ou resposta a um pedido individual. No caso dos desaparecidos
políticos, a exigência é de uma resposta individual e coletiva, pois o ato foi um ato de go-
verno. O esclarecimento dos casos de mortes não explicadas e dos desaparecimentos não
esclarecidos é uma dívida do Estado brasileiro para com os cidadãos e para com todos,
filhos e pais, que buscam respostas há 40 anos.

Referências
ARANTES, M. A. A. C. Pacto re-velado – psicanálise e clandestinidade política. São Paulo: Escuta, 1994.
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais. São Paulo: Vozes, 1985.
COMITÊ BRASILEIRO PELA ANISTIA – CBA. Os presos, os mortos, os desaparecidos. Rio de Janeiro: Mimeo,
1979.
DEJOURS, C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005.
FOLEY, C. Combate à tortura – Manual para magistrados e membros do Ministério Público. Centro de Direitos
Humanos, Universidade de Essex, UK. Publicação em português sob responsabilidade da Sub-secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República em colaboração com a Embaixada Britânica, Brasília, 2003.

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FREUD, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar. Rio de Janeiro: Imago, 1969. (Obras Completas, ESB, v. XII).
MIRANDA, N.; TIBÚRCIO, C. Dos filhos deste solo – mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar:
a responsabilidade do Estado. São Paulo: Boitempo Editorial/Fundação Perseu Abramo, 1999.
NEHRING, M. (2006). Vídeo-memória. In: SELIGMAN-SILVA, M. (Org.). Palavra e imagem: memória e escri-
tura. Chapecó: Argos. p. 387-397.
Presos políticos do Presídio do Barro Branco e Comitê pela Anistia de São Paulo – CBA – SP. São Paulo: Mimeo,
1979.
15 FILHOS. Vídeo. Direção: Maria Oliveira e Marta Nehring, p & b, 20min, 1996.

219
Por que a crueldade?
notas para uma reflexão
sobre a guerra e a paz1
Betty Bernardo Fuks

A história universal é essencialmente uma sequência de assassinatos dos povos


(FREUD, 1915/1976, p. 293).

1914. Início da Grande Guerra. Freud, acometido por um forte sentimento de perple-
xidade e desilusão diante da desrazão que aflorava no coração da civilização moderna,
indagava-se atônito: por que todas as conquistas intelectuais e científicas da cultura mo-
derna não foram suficientes para diminuir a violência e a destruição entre os homens?
No ano seguinte, com um tom de profunda descrença no poder de liderança das nações
Psicologia,Violência e Direitos humanos

mais avançadas técnica e cientificamente, e profundamente decepcionado com intelec-


tuais e cientistas que, então, demonstravam uma clara afinidade para com o infernal,
transpõe para o papel suas reflexões sob o título, De guerra e morte. Temas da atualidade
(1915/1976). Em seguida, articulou esses dois eixos temáticos à atitude do sujeito do in-
consciente para com a morte, criando, assim, condições para pensá-los, exclusivamente,
a partir do que observava como analista.
O objetivo não era o de explicar a guerra a partir da psicanálise, mas, ao revés,
examinar a crueldade e a destruição como realidades do psiquismo e disso extrair con-
220 sequências teóricas. A lógica de sua argumentação − baseada na experiência clínica que
lhe abriu as veredas do inconsciente e que fez da pulsão o limite de sua disciplina − foi
precisa: se, no homem, amor e ódio intensos convivem conflitantes (ambivalência de sen-

1 Este artigo foi publicado em 2010 na revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, Trieb, na edição especial
“Português: línguas e existências” (volume IX, números 1 e 2). No presente livro acrescentei um subtítulo.
timentos), e as pulsões são aquilo que são − nem boas, nem más, dependendo do destino
que seguem na história do sujeito e da civilização −, então os atos cruéis e destrutivos que
atingem a civilização não são apenas momentos efêmeros, fadados à superação no futuro.
Muito ao contrário, trata-se de acontecimentos inexoráveis que incorporam um elemento
radicalmente social e histórico.
Moral da história: impossível erradicar o Mal. Mesmo porque alguns impulsos con-
siderados como maus são de natureza primitiva. Por exemplo: não existe sujeito sem
uma boa dose de agressividade; o que é bem diferente das manifestações que ocorrem
no registro da agressividade não erotizada tais como o assassinato e o extermínio. Nesta
mesma linha, não existe cultura sem uma dose de violência capaz de sustentar os laços
sociais. De acordo com o mito narrado em Totem e tabu (1913/1976), direito e lei são
originários de transformações da violência. Daí porque em psicanálise este termo é usa-
do, em geral, para designar movimentos culturais mais amplos e superdeterminados. Por
outro lado, usa-se também o termo violência para indicar a presença bruta e arcaica de
uma força que incessantemente inunda a civilização de sangue e dor.
Na prática, as diferentes intensidades com que estas forças se manifestam através
dos tempos levaram Freud a desconstruir a fantasia de “superioridade” moral das civiliza-
ções mais avançadas sobre as mais primitivas e a defender uma certa unidade da espécie:
o sujeito moderno e o selvagem das cavernas podem ser igualmente bárbaros, cruéis
e malignos. Pode-se depreender desta crítica um dos motivos pelos quais, alguns anos
mais tarde, Freud enunciará o conceito de pulsão de morte. Se os fenômenos recorrentes

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de sonhos traumáticos, da reprodução na transferência e o brincar infantil o levaram a
conceituar a compulsão à repetição de situações desprazerosas e a partir daí encontrar
as evidências da pulsão de morte, a força que coage o homem a sair dos limites da vida,
isto é “à margem para além da vida que a linguagem assegura ao ser pelo fato de ele fa-
lar” (Lacan, 1960/1998, p. 817); do mesmo modo, “a inclinação inata do ser humano
ao ‘mal’, à agressão, à destruição e, com elas, também à crueldade” (Freud, [1929-
1930]/1976, p. 116) confirmou a existência da pulsão de destruição, uma das faces da
pulsão de morte. O mito da pulsão de destruição − o que dissolve e destrói ruidosamente
221
o outro − contém o horror que, em suas múltiplas transfigurações, revela o caráter inex-
pugnável da guerra no reino dos animais pensantes. Isto é o que encontramos enunciado
em Mal-estar na civilização, na passagem em que Freud questiona a vocação da huma-
nidade de “satisfazer no outro a agressão, explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo,
usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, tirar-lhe a posse de seu patrimônio, hu-
milhá-lo, infligir-lhe dores, martirizá-lo e assassiná-lo” (Freud, [1929-1930]/1976, p. 108).
Ao fim e a cabo, o leitor do Mal estar se confrontará, tanto no plano clínico, como no da
cultura, com a crueldade humana, o desejo de fazer ou se fazer sofrer “por sofrer”, o gozo
mortífero visado no exercício do mal pelo mal.
Seria a apreensão da crueldade um dos horizontes mais apropriados ao campo da
psicanálise? Esta foi a questão que levou Jacques Derrida (2001), o pai da desconstru-
ção, a enfatizar que, se de fato existe uma crueldade psíquica, cabe à psicanálise fornecer
repostas ao que nela há de enigmático. Como pensador de fora do campo psicanalítico,
num encontro dos Estados Gerais da Psicanálise, em Paris, o filósofo em sua intervenção
intitulada de Estados-da-alma-da psicanálise: o impossível para além da soberana cruel-
dade, mais tarde transformada num pequeno livro, convocou os herdeiros de Freud a
refletir sobre o lugar da crueldade nos processos simbólicos que sustentam a cultura e
no plano da política do Estado e da sociedade. Para o filósofo, caberia à psicanálise se
confrontar com a crueldade permanentemente, e desconstruir quaisquer modelos fisica-
listas, positivistas e espiritualistas que possam, por sua vez, resistir a seu papel subversivo
e questionador. E, neste sentido, afirma de modo peremptório: a psicanálise deveria de
ser um pensamento “sem álibi”.
Na intenção de fazer aparecer as ferramentas excepcionais da disciplina freudiana
na abordagem da relação entre crueldade e soberania, Derrida desdobra sua intervenção
apoiado na correspondência que Freud e Einstein mantiveram, durante a pré-guerra de
Psicologia,Violência e Direitos humanos

1939, em atenção ao pedido da Liga das Nações e de seu Instituto Internacional para a
Cooperação Intelectual de que ambos se pronunciassem sobre a essência da guerra e de
como liberar a humanidade de seus estragos. Proibidas pelo Terceiro Reich de virem a pú-
blico, as cartas foram editadas em Paris, em alemão e francês, sob o título Por que a guerra?
(Freud, [1932-1933]/1976a). Derrida inicia sua exposição estabelecendo uma relação
entre o pensamento de Freud e o de Nietzsche: ambos reconhecem a crueldade como algo
que não tem termo, “uma crueldade sem fim, a crueldade da psique, um estado da alma,
portanto do ser vivente, mas uma crueldade não sanguinária” (Derrida, 2001, p. 7).
Na visão do filósofo, tanto para o pai da psicanálise, como para o autor de Genealo-
222
gia da moral, a crueldade não tem contrário e está ligada à essência da vida e da vontade
de poder (Derrida, 2001, p. 74). Ao longo do livro, Derrida retoma o uso freudiano da
palavra crueldade e sua não ilusão: a impossibilidade de “erradicar as pulsões de cruel-
dade e das pulsões de poder e soberania” (Derrida, 2001, p. 74), para refletir sobre o
modo como a psicanálise pode se relacionar com atos cruéis do Estado e da sociedade
civil, como por exemplo, a pena de morte. Não podemos deixar de nos espantar com a
pertinência dessas indagações e observações. A bem da verdade, elas convocam o leitor
a dar um salto para traz, rastrear o tema da crueldade nas Obras Completas e indagar o
porquê dos analistas, ao longo de um século, não terem dado o devido valor a conceitu-
ação desta força.
Comecemos pelo livro inaugural da psicanálise, A Interpretação dos sonhos
(1900[1899]/1976), onde pela primeira vez a crueldade surge como constitutiva da subje-
tividade. Na análise do “Sonho do besouro de maio”, Freud se pergunta, a partir das asso-
ciações de sua paciente em torno de ações cruéis cometidas na infância, sobre a relação da
crueldade com a sexualidade. Sem maiores teorizações, uma vez que aquilo que o preocu-
pava no momento era decifrar os mecanismos psíquicos de condensação e deslocamento
em jogo na interpretação dos sonhos, conclui que as ações cruéis cometidas na infância,
em geral, são transformadas na idade adulta em sentimento de bondade e piedade. Deste
modo, Freud começa a delinear a ideia de que a crueldade é um dos componentes do que
mais tarde designará de pulsão sexual.
Mais adiante, no capítulo dedicado aos sonhos sobre a morte de pessoas queridas,
será a vez da mitologia fornecer a Freud exemplos paradigmáticos da crueldade prati-
cada pelos homens desde as eras mais primitivas da cultura: Cronos, o velho violento,
devorando seus próprios filhos e Zeus que se vingou castrando o pai. (Freud, 1900
[1899]/1976, p. 266)2. Nota-se que estes exemplos contêm elementos do mito de Totem e
tabu (1913/1976), a narrativa freudiana da saga de um pai violento e cruel e de seus filhos

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que o depõem do lugar de poder através do assassinato. Que o mito freudiano sobre a
origem da cultura seja uma narrativa sobre as transformações da crueldade e da violência
em direito e lei, como já foi dito, responde por si só a preocupação de Freud em refletir
sobre a presença e os destinos destas forças na cultura.
Enfim, a partir do exposto, conclui-se que, desde A interpretação dos sonhos
(1900/1976), o termo crueldade aparece ligado tanto à sexualidade como à morte.
Na obra introdutória do conceito de pulsão – Três ensaios sobre as teorias sexuais in-
fantis (1905/1976) − a figura da crueldade é inserida na base da metapsicologia das pulsões
223
sexuais: “A história da cultura [escreve Freud] ensina, fora de qualquer dúvida, que a cruel-
dade e a pulsão sexual se interligam de modo muito estreito” (Freud, 1905/1976, p.144).
Todo o encaminhamento é no sentido de afirmar esta hipótese e chama atenção do leitor

2 Para uma análise detalhada destes sonhos em relação ao significante crueldade confira: FUKS, B. B.; JAQUES, A. A. B., Rastreamento
da formulação freudiana da crueldade, 2009. Disponível em: www.psicanalisebarroco.com.br .
o número de vezes em que aparecem referências ao prazer na dor, à crueldade experi-
mentada na perversão: “Quem sente prazer em provocar dor no outro na relação sexual
é também capaz de gozar, como prazer, de qualquer dor que possa extrair das relações
sexuais” (1905/1976, p. 145). Mas, longe de encerrar o quadro da perversão numa simples
aberração da conjunção sexual aos critérios sociais estabelecidos e incluí-la na esfera da
degenerescência patológica, o mestre de Viena dedica-se a pensar de que forma algo que
é da ordem do inato nas perversões se estende a todos os homens; embora a disposição
possa variar de intensidade e ser aumentado pelas influências da vida real. Chega a ser
tocante o modo como Freud demonstra que a crueldade é parte da “natureza” humana e
que algumas de suas expressões são absolutamente normais e universais.
Observa-se ao longo dos Três ensaios que o termo crueldade é elevado à categoria
de pulsão: “A ausência da barreira da compaixão traz consigo o risco de que esse vínculo
estabelecido na infância entre as “pulsões cruéis” e as erógenas torne-se indissolúvel na
vida” (Freud, 1905/1976, p. 175). Ou ainda quando Freud introduz, pela primeira vez, a
expressão pulsões parciais para designar metas sexuais que se apresentam, na maioria das
vezes, como pares de opostos: “a pulsão do prazer de ver e do exibicionismo, e a pulsão
de crueldade em suas formas ativa e passiva” (1905/1976, p. 151). Neste momento em que
estavam sendo lançadas as bases da primeira teoria pulsional, as referências à pulsão de
crueldade surgem lado a lado da pulsão de dominação. “A crueldade é um componente
perfeitamente natural no caráter infantil, já que a repressão social à pulsão de domina-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

ção − a capacidade de se compadecer – desenvolve-se tardiamente (Freud, 1905/1976, p.


175). Essa pulsão que se dirige “cegamente” para o exterior – e indiferente ao sofrimento
alheio −, sobreleva-se ao que Freud chamou de organização pré-genital da vida sexual
infantil. Portanto, para a psicanálise, a crueldade tem um papel relevante no domínio do
outro, já que o impulso cruel “provém da pulsão de domínio e surge na vida sexual numa
época em que os genitais ainda não assumiram seu papel posterior” (Freud, 1905/1976,
p. 175). Esta relevância do papel da crueldade na constituição do sujeito é um dos deter-
minantes do caráter infantil da sexualidade.
Entretanto, a sexualidade não é único universo conceitual em que Freud circunscre-
224
verá a crueldade. Em Introdução à Psicanálise e neurose de guerra (1919/1976), ela rea-
parece associada ao conceito de trauma como efração. A partir deste texto, a questão do
trauma externo volta a ser decisiva para a psicanálise, sem que com isso Freud precisasse
abrir mão da teoria do trauma fantasmático. As neuroses de guerra são caracterizadas
pela fixação no momento do acidente traumático que está na sua base − a crueldade
sofrida ou praticada no front. Como as neuroses traumáticas, as neuroses de guerra são
afecções de repetição regular da situação traumática vivida e impossível de representar.
(Freud, [1916-1917]/1976).
Mas, apesar de terem sido provocadas por acidente externo, o sofrimento que estas
neuroses provocam é semelhante aos das neuroses comuns, fixadas em situações trau-
máticas ligadas às diferentes fases libidinais. No Apêndice ao texto de 1919, intitulado
Memorando sobre a eletroterapia em neuróticos de guerra (Freud, [1920-1955]/1976),
encontramos o termo crueldade adjetivando o método clínico de choques elétricos que,
acima de tudo, visava restaurar, apenas, a aptidão do doente para o serviço militar. Freud
contrapõe a esta terapêutica o trabalho de recomposição do evento traumático através
da escuta da narrativa do paciente. O direito à palavra traria alívio à dor provocada pelo
trauma que, em geral, o paciente repetia regularmente nos seus pesadelos diurnos e no-
turnos. A posição ética de Freud em relação ao sofrimento da alma se mostrava, mais
uma vez, firme e contundente diante da pressão política e social do tempo em que viveu.
Com a introdução do conceito de pulsão de morte nos anos vinte, o tema da cruel-
dade é claramente circunscrito aos atos de destruição do outro, como veremos mais
adiante. O importante, neste momento, é sublinhar que, com essa nova conceituação, o
que se segue, como sabemos, é a introdução de uma nova tópica na qual os paradoxos
do supereu oscilam entre duas vertentes: a de manter o sujeito voltado ao ideal (ideal do
eu) ou a vertente sádica e cruel que o impregna de culpa. É no encontro dessa dimensão
destrutiva que se situa o masoquismo.

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Com isso, urge retornar ao texto de Da Guerra e da Morte (1915/1976) para mos-
trar a posteriori que, antes de introduzir na teoria o conceito de pulsão de morte, Freud
apontava para esta estranha e interminável compulsão à repetição de experiências trau-
máticas:
Então, a guerra na qual nos recusávamos a acreditar irrompeu, e trouxe consigo a desi-
lusão. Não é apenas mais sanguinária e mais destrutiva do que qualquer outra guerra
de outras eras, devido à perfeição enormemente aumentada das armas de ataque e de-
fesa; é, pelo menos, tão cruel, tão encarniçada, tão implacável quanto qualquer outra 225
que a tenha precedido (Freud, 1915/1976, p. 280).

Esta unidade poeticamente descrita entre diferentes guerras ao longo da história revela
um paradoxo: o perigo mora ao lado do progresso. Ciência e tecnologia protegem o ho-
mem das forças da natureza, trazem bem-estar e mudanças consideráveis à civilização;
mas, por outro lado, concedem poderes desmesurados ao homem moderno, essa espécie
de “deus de prótese” (Freud, [1929-1930]/1976, p. 111) que mergulha, cada vez mais, a
civilização na barbárie. Sem dúvidas, uma crítica premonitória diante de acontecimentos
como os de Auschwitz e Hiroshima. A leitura do texto de 1915 caminha, cada vez mais,
para iluminar a ignomínia que foi a Segunda Guerra: a invenção da morte planificada
nos campos de extermínio e o uso da bomba atômica pelo Estado incrementaram, com
requintes nunca vistos ou mesmo imaginados, a crueldade sanguinária, segundo a ex-
pressão cunhada por Derrida (2001).
Daí porque muitos teóricos da atualidade pensam a humanidade, ao longo do século
XX e até mesmo esta primeira década do século XXI, como parte de uma sociedade carac-
terizada pela invenção industrial da morte (Nestrovsky; SelIgman-Silva, 2000).
Esta análise encontra nas narrativas dos sobreviventes de campos de extermínio o testemu-
nho do excesso de crueldade que determinou o Holocausto, o trauma inenarrável, o real
impossível de dizer. O testemunho é a prova viva de que, apesar de irrepresentável, é preciso
incorporar esta catástrofe, reinscrevê-la dentro de uma memória para tornar possível, ain-
da que apenas parcialmente, a narrativa do que foi transformar homens em “insetos” para
assassiná-los cruelmente (SelIgman, 2000, 2003; Kupferberg, 2009).
Jacques Lacan, que teve como fundo contemporâneo a tragédia do Holocausto, se-
guiu os passos de Freud: circunscrevendo, em sua Proposição (1969) ao analista de sua
Escola, o real em jogo na constituição dos campos de concentração e de extermínio, mos-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

trou que “aquilo que a humanidade viu deles emergir representa a reação de precursores
com relação ao que irá se desenvolver no remanejamento dos grupos sociais pela ciência,
em sua tentativa de universalização e normalização da sociedade” (Lacan, 1969, p. 29).
A abordagem lacaniana se mostra bastante útil no entendimento de certos fenômenos,
como a segregação, que no atual estágio de predomínio de certo discurso da ciência ali-
menta o sonho de normalização da sociedade. Nessa mesma linha de reflexão, Koltai
(2000, p. 77) mostra que a invenção de máquinas fabricantes de cadáveres − que os fa-
ziam entrar no ciclo da produção/consumo (reciclagem sob a forma de sabão) − não foi
apenas um acidente único da história, mas inerente ao próprio progresso técnico-cientí-
226
fico, a serviço do ideal de construção de uma sociedade sem outro.
A crítica de Freud à Primeira Guerra não incidiu apenas no uso da tecnologia cien-
tífica que substituiu a força muscular do homem primitivo, sem abrir mão do gozo de
eliminar cruelmente o adversário. A degradação dos laços sociais em função da barbárie
tomou conta de seu pensamento:
[A guerra atual] esmaga com fúria cega tudo o que surge em seu caminho, como se,
após seu término, não mais fosse haver nem futuro nem paz entre os homens. Corta
todos os laços comuns estabelecidos entre os povos contendores e ameaça deixar um
legado de exacerbação da que tornará impossível, durante muito tempo, qualquer re-
novação desses laços (Freud, 1915/1976, p. 280).
O termo exacerbação, por si só, indica que a pulsão de crueldade, como qualquer
outra, se apresenta sob diferentes modalidades, intensidade ou até mesmo qualidades.
Conforme salienta Derrida (2001, p. 74-75), “existem somente diferenças de crueldade,
diferenças de modalidade, de qualidade, de intensidade da mesma crueldade”. Em psica-
nálise, o excesso tem a ver com a ultrapassagem de um limite. Tomemos a distinção que
Lacan faz do conceito que circunscreve o paradoxo do prazer no desprazer da satisfação
pulsional − o gozo (jouissance) como sendo algo determininante do trajeto pulsional que
transpõe as barreiras do prazer. O caráter excessivo do gozo é sempre traumático: uma
intrusão violenta e excessiva.
A guerra é a experiência maior de confronto com o limite da morte. Perscrutá-la
através dos tempos descortina outro paradoxo: as sociedades primitivas são profunda-
mente mais éticas e civilizadas que as modernas, na medida em que estas descartam mais
facilmente a vida e dessacralizam a morte. Ainda que no inconsciente não haja represen-
tação da morte − o que dificulta dar à guerra o lugar na realidade que lhe é devido − e que
o homem seja inclinado ao assassinato e ambivalente para com aqueles que ama, a expe-
riência da perda exige o trabalho de luto do objeto, mesmo quando este é um inimigo ao

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qual endereçamos nosso ódio.
Enquanto o guerreiro primitivo responsabilizava-se pela morte infligida ao inimigo,
e realizava o luto através de um conjunto de práticas cerimoniais e tabus que buscavam
expiar a culpa pelo homicídio, nas sociedades ditas modernas, vigora o desrespeito pela
morte, no sentido mais amplo do termo. Pensemos no filme de M. Scorcese, Gangues de
Nova York (2002) , em que o açougueiro, personagem violento, primitivo, mas não des-
provido de uma concepção particular de valor e honra, enquanto chefe da gang nativista,
mantém presente a lembrança do arqui-inimigo − o chefe da gang de imigrantes irlande- 227
ses que ele próprio matara numa operação guerreira. É o que se depreende nas cenas em
que, endereçando o olhar para o retrato do morto, o açougueiro reverencia as virtudes e
qualidades do inimigo.
O cuidado que dispensa ao filho do morto acusa a singularidade ética de preservar,
numa sociedade de iguais, o lugar do Outro. Já o filme de R. Polansky, O pianista (2002),
exemplifica o modo como o descaso pela morte está no cerne da invenção do extermínio.
Ao reproduzir em seu filme a famosa foto do general Jurgen Stroop da SS nazista tomado
pelo gozo, olhando com escárnio e desdém para o Gueto de Varsóvia arder, o cineasta
polonês congela o espírito mesmo de um tempo marcado pela tecnologia moderna da
morte que, talvez, conduza à extinção do que hoje conhecemos como raça humana.
O que é certo é que a invenção moderna do extermínio em massa figura o ato de
destruição da vida, após negar a questão do seu sentido − assassinato da ordem simbó-
lica − matando a própria morte. Num estudo sobre o extermínio armênio no início do
século XX, a psicanalista Hélène Piralian considerou, com acuidade interpretativa, que o
genocídio visa destruir a morte como estrutura simbólica da transmissão transgeracional
(Piralian, 1989). Tal análise se baseia no fato de que o extermínio dos armênios, se-
guido da destruição de todo o patrimônio histórico e social deste povo, foi de tal monta
que até hoje, por falta de provas, o governo turco teima em não reconhecer um dos geno-
cídios mais bárbaros da história.
Em resumo: as considerações da psicanálise sobre o incremento da crueldade as-
sassina na modernidade estabelecem relações diretas entre as pulsões de morte − em sua
dimensão de negatividade − e as transformações desse tempo histórico, a saber: (1) de-
senvolvimento crescente da tecnologia e da ciência que, no lugar de oferecer bem-estar e
segurança, fomenta a barbárie; (2) o ineditismo da foraclusão da morte que poderá levar,
cada vez mais, à total destruição do simbólico.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Política da crueldade
No início da década de 1920, Viena estava sendo tomada pelo nazifascismo. Foi sob
este tempo histórico que Freud sistematizou e aprofundou a incursão da psicanálise no
campo da política. Ainda que raramente esse termo apareça designado como tal em sua
obra, Psicologia das massas e análise do eu (1921/1976), Mal-estar na cultura ([1929-
1930]/1976/1976) e Moisés e o monoteísmo ([1938-1939]/1976) são textos que testemu-
228 nham suas inquietações para com a política do ódio que então se perfilava no leste da
Europa. Inaugurando esta trilogia, o primeiro texto circunscreve a constituição da massa
moderna e do outro, movimento pelo qual se forja uma identidade nacional, baseada
na defesa contra a alteridade. O Estado moderno está vinculado à fabricação de uma
unidade fictícia, com o objetivo de perpetuar a dominação real sobre todos. A coesão
comunitária está na dependência direta dos afetos − amor e ódio − orquestrados pela
ordem de amor entre os idênticos e ódio ao outro. Ou seja, a palavra de ordem do Estado
a seus cidadãos é reprimir a hostilidade e o ódio contra o próximo, a quem se deve amar,
e dirigi-los, justamente, à “malvada” alteridade.
Este fenômeno grupal de amor aos seus e ódio ao outro, que conhecemos como a
lógica do narcisismo das pequenas diferenças, base da constituição do “nós” e do outro, se
levado ao paroxismo desemboca, inevitavelmente, na segregação do estrangeiro, outro a
quem os idênticos endereçam o ódio que circula entre eles próprios. O racismo traduz o
ódio à diferença em nome da indiferença entre a maioria compacta. Situado assim, talvez
pudéssemos afirmar, em base ao dispositivo político de extermínio, que o racismo se
alimenta de algo mais além do narcisismo das pequenas diferenças: ele emerge do lugar
onde vigora a eliminação de qualquer diferença, do mundo “ilimitado” que é a principal
das ilusões do totalitarismo.
No contexto desta interpretação, uma passagem de Mal-estar na cultura adquire um
peso maior. “Perguntamo-nos o que farão os sovietes, depois de exterminarem todos os seus
burgueses?” (Freud, [1929-1930]/1976/1976, p. 111). Nesta indagação, estava contido o
futuro que a humanidade iria viver: no empenho de alcançar a unidade almejada − todos
iguais a Um − a soberania moderna caminhou da segregação ao extermínio. A vontade de
uniformização dos indivíduos manifesta pelo nazismo, pelo fascismo e pelo stalinismo, se
inscreve para além da tendência de apagar a diferença no interior do grupo e passá-la para
fora. Ela propõe o pior: a cruel eliminação da diferença, mesmo quando fora do conjunto.
Os argumentos de Freud sobre a segregação constitutiva do outro passam por uma

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profunda reflexão em Moisés e o monoteísmo ([1938-1939]/1976). Trilhando, pelo avesso,
os passos da barbárie política que se anunciava no horizonte, Freud recorre à figura para-
digmática do judeu, o ancestral Estrangeiro das massas, para refletir sobre o ódio à diferen-
ça. A situação histórica da diáspora, a vivência contínua de deslocamentos geográficos e de
renúncias do povo judeu era uma espécie de sinal negativo para o que insistiam em projetos
totalitários. A errância e o nomadismo milenar ameaçavam o sonho de um império nacio-
nal-socialista (lembremos que a Solução Final envolveu também os ciganos). Disse Freud
que, não por acaso, o Partido Nacional-Socialista precisou de seu complemento − o anti-
229
-semitismo − para a construção progressiva de uma alteridade demonizada. Sabemos que
o discurso médico e social, largamente usado pelos nazistas na cultura austríaca fim de sé-
culo, anunciava o corpo do judeu em termos absolutamente depreciativos e paranoicos. Ao
mesmo tempo, era construído o ideal de raça pura para o povo alemão e traçadas as metas
básicas do totalitarismo que procurariam eliminar, para sempre, os “objetos” fora da norma.
Se a análise freudiana sobre o mal-estar da política de seu tempo parece verossí-
mil, podemos, então, buscar uma ajuda estrangeira em outros campos do conhecimento,
onde existe uma preocupação mais sistemática em pensar a contemporaneidade e suas
estruturas político-estatais. Trata-se de encontrar metáforas e exemplos conclusivos que
explicitem de forma contundente a transfiguração, que a psicanálise acusa, do horror ao
estrangeiro no mundo contemporâneo. Atravessar a fronteira entre o psicanalítico e os
estudos filosóficos e políticos representa uma possibilidade fértil de apreender melhor as
pulsões presentes nos processos de destruição e construção da cultura.
Giorgio Agamben é um desses pensadores que traz uma contribuição de peso à
crítica ao poder soberano. Resgatando uma figura do direito arcaico romano − Homo
Sacer − Agamben (2003) circunscreve, no coração da sociedade moderna e contempo-
rânea, nas quais milhões de seres humanos são transformados em objetos de aniqui-
lamento, o homem sacro, a vida exterminável ou vida nua, a vida que não merece ser
vivida. O Homo Sacer ocupa uma zona de indiferenciação, fora do espaço jurídico e
político, e, ao mesmo tempo, funda a possibilidade da cidade dos homens. Condenado
por algum delito, ele não pode ser sacrificado, mas quem o matar, a rigor, não pode ser
acusado de homicídio.
A análise magistral de Agamben sobre a política ocidental moderna inclui as meta-
morfoses da vida sacra e os mecanismos que a criam e recriam incessantemente. Discí-
pulo de Foucault, o filósofo italiano considera que a biopolítica − o processo de inclusão
Psicologia,Violência e Direitos humanos

da vida natural na política de Estado − tornou-se uma verdadeira tanatologia, e que o


campo de extermínio não pode ser considerado apenas um fato histórico do passado,
mas sim a matriz escondida do espaço político em que vivemos. Na contemporaneidade,
os campos de concentração e refugiados traduzem a vontade coletiva de desumanizar o
outro, transformá-lo, conforme anunciara Hitler, em piolho. Por isso mesmo, o novo pa-
radigma da modernidade será esses campos que se inserem no limiar de indiferenciação,
ao mesmo tempo de exclusão e inclusão no espaço político e jurídico. Em todos eles, o
que prevalece é a impossibilidade do recurso à Lei que impede a redução do homem à
vida nua, à vida eliminável e descartável.
230
Entre os inúmeros exemplos de vida nua que se pode encontrar no mundo atual, os
judeus, o “povo que se recusa a ser integrado no corpo político nacional, são os repre-
sentantes, por excelência, e quase símbolo vivo daquela vida nua que a modernidade
cria, necessariamente, no seu interior, mas cuja presença não mais consegue tolerar”
(Agamben, 2003, p. 185). Depreende-se da análise agambeniana que o nazismo, na
tentativa de produzir o Um, procurava com a sistematização do extermínio, libertar-se
de uma sombra intolerável.
O que é bastante instigante e fascinante no pensamento deste filósofo é considerar
que o processo de inclusão da vida nua na política, não é uma exclusividade dos regimes
totalitários de exceção, mas está inscrito, também, no conteúdo dos direitos do homem,
que incluem até mesmo o nascimento como a categoria que deve ser absorvida pelo es-
paço político. Em O Homo sacer, o poder soberano e a vida nua, o leitor se dá conta da
cumplicidade profunda existente entre Estados modernos, supostamente democráticos
do Ocidente, e a lógica da exclusão capaz de converter em vida nua um grande segmento
da população (por exemplo: eliminando os doentes mentais e os portadores de doenças
hereditárias). Nesse sentido, diríamos que Agamben é bastante freudiano: toda organi-
zação, possui um incalculável potencial virtual de crueldade contra o outro a ser reatu-
alizado toda vez que “estrangeiro” e “inimigo” se fundem num conceito único (Freud,
1915/1976).

“Onde isso estava, devo advir” ou sobre o pacifismo


Tratemos, por último, do modo como Freud pensou e formulou estratégias de promover
a paz, mesmo tendo reconhecido que a guerra é sem fim. Retornemos ao texto Por que a
guerra? ([1932-1933]/1976a). Na visão de Michel Plon, este título na interrogativa, esco-
lhido e exigido por Freud, dá lugar a pelo menos duas leituras contraditórias: a primeira

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ligada a uma posição filosófica e política, o pacifismo; e a outra “inscrita na perspectiva
do infinito, escapando ao a priori de qualquer forma de consideração moral” (Plon,
2003, p. 31), apenas abrindo a possibilidade do analista continuar a constatar a existência
da guerra em si, “fenômeno, processo ou fato que não se deixa erradicar ou substituir”
(Plon, 2003, p. 31 ). Em que pese a clareza e importância destas interpretações, é pos-
sível formular, levando em conta que Freud ao inscrever a guerra no campo do pulsional
necessariamente precisou considerar a paz como efêmera e transitória, uma tese talvez
um pouco mais ousada: as duas leituras, embora mutuamente opostas, não se excluem 231
mutuamente. Muito ao contrário: se complementam.
Vejamos. No início da carta a Freud, Einstein propõe a instalação de uma autori-
dade legislativa que pudesse arbitrar sobre os litígios entre as nações. (Freud, [1932-
1933a]/1976, p. 183). Entretanto, no curso de sua argumentação, esbarra com o in-
transponível: o desejo de poder do Estado absolutamente recalcitrante a golpes contra à
própria soberania; o interesse de pequenos grupos econômicos que em geral usufruem
do estado de guerra e, finalmente, a adesão da massa submetida à ideologia do poder.
Surpreendentemente, o físico escreve que tais barreiras têm raízes plantadas no psiquis-
mo e que espera poder extrair da psicanálise uma nova e frutífera modalidade de ação
contra a guerra (Freud, [1932-1933a]/1976, p. 185-186). Em seguida, dirige ao ilustre
correspondente a seguinte questão: “É possível controlar a evolução mental do homem
para salvá-lo da loucura do ódio e da destrutividade?”
Freud, que também se indentifica como um pacifista, responde ao iminente colega
com uma outra pergunta: “Por que nos revoltamos tanto contra a guerra, o senhor e eu, e
tantos outros, por que não a aceitamos como uma entre outras tantas necessidades peno-
sas da vida?” (Freud, [1932-1933 a]/1976, p. 196). Com estilo de escrita inconfundível,
responde a própria questão de modo inteiramente inusitado. Longe de considerar, como
era de se esperar, que a recusa à barbárie é uma consequência imediata da lógica da ra-
zão, afirma que, para alguns homens, o horror à guerra resultaria, provavelmente, de um
determinismo quase orgânico.
De que forma isto teria ocorrido? Expondo sua última posição sobre a guerra, Freud
considera que ao longo do processo civilizatório determinados gozos incomensuráveis
que o homem um dia experimentou foram sendo reprimidos, a ponto de determinar
“fundamentos orgânicos nas modificações de cânones estéticos e éticos” (FREUD, [1932-
1933a]/1976, p. 197) da humanidade. Ou seja, do ponto de vista da psicanálise, no curso
Psicologia,Violência e Direitos humanos

da história, as repressões das satisfações cruéis mais primitivas adquirirem uma carac-
terística transmissível. Isto é o que determina que o gozo obtido pelo bárbaro seja indi-
ferente ou mesmo insuportável, para alguns homens. Ainda que poucos, por razões de
”degradações estéticas” que a destruição inflige, estes homens tornaram-se pacifistas de
modo absolutamente singular.
Freud não nutre ilusões: quando o homem experimenta o horror da guerra diante
das crueldades perpetradas, isto se dá porque, no lugar da vítima, imagina um de seus fa-
miliares ou amigos. Seu narcisismo fica ferido no momento em que se identifica com a ví-
tima. Por outro lado, qualquer comoção de ordem caridosa despida da responsabilidade
232
que cada um deve abrigar em si mesmo, é igualmente inócua e perigosa: pode se tornar
um álibi aos próprios assassinos que, rápida e cinicamente, transformam-se em arautos
da paz e assim se desculpabilizam. Apenas a aversão estética e ética, experimentada por
poucos, situada mais além do ideal de erradicar o mal, ou da ilusão da construção de um
mundo sem violência e sem ódio, é capaz de minorar a experiência da barbárie no plano
político. É assim que devemos entender a resposta a Einsten: indignar-se contra a guerra,
significa simplesmente que “para nós pacifistas, trata-se de uma intolerância constitucio-
nal, de uma idiossincrasia” (FREUD, [1932-1933a]/1976, p. 196).
Talvez o uso da expressão “intolerância constitucional” tenha sido apenas um recur-
so da retórica freudiana para falar de uma estratégia de combate à crueldade e à guerra
que só pode emergir no campo da ética. Neste campo, toda insistência e persistência
contrária ao traço compulsivo e indestrutível de assassinar, humilhar, destruir e infligir
dores ao outro que a humanidade carrega mantém a chama do desejo de construir a vida
permanentemente acesa.
De que forma seria possível sustentar esta estratégia? Para indicar uma pista, é pre-
ciso voltar às últimas linhas do artigo “Da guerra e da morte....”:
Lembramo-nos do velho ditado: Si vis pacem, para bellum. Se queres preservar a paz,
prepara-te para a guerra. Estaria de acordo, com o tempo em que vivemos, alterá-lo
para: Si vis vitam, para mortem. Se queres suportar a vida, preparar-te para a morte.
(Freud, 1915, p. 301).

Nestes termos, Freud conclui, recordando a sabedoria dos antigos e tendo em vista a
subjetividade de seu tempo, que a responsabilidade pela vida exige o reconhecimento
da morte. Desmentir as evidências de que a crueldade é sem termo, de que a violência
do desejo de poder do Estado viola os laços sociais e de que a paz é apenas temporária,
significa entregar-se à fantasia utópica de felicidade eterna, sabendo.de sua impossibili-

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dade. Em contrapartida, reconhecer a existência do desejo de destruir o outro e admitir
a existência de uma crueldade sanguinária que invade, de tempos em tempos, o espaço
público e privado conforme atesta a história não significaria, por si só, um exercício de
vigilância pela paz?
Tomemos o rumo da Conferência 31 (Freud, [1932-1933]/1976b), escrita no mes-
mo ano da carta a Einstein, na qual Freud enuncia uma das “mais claras, talvez a única
formulação relativa à ética da Psicanálise” (Rudge, 1996, p. 136) e que se tornou co-
nhecida através do adágio “Onde isso estava, devo advir”. Nesta ocasião, já consciente 233
dos limites da psicanálise, admite que os propósitos terapêuticos de sua disciplina se as-
semelham à uma obra da cultura, não diferente da drenagem de um rio caudaloso: à psi-
canálise caberia “fortalecer o eu, fazê-lo mais independente do supereu, [...] de maneira
a poder assenhorear-se de novas partes do isso. Onde isso estava, devo advir” (Freud,
[1932-1933 b]/1976, p. 74). Mas “o inconsciente não é terreno exclusivo das pulsões vio-
lentas [lembra Slavoj Zizek]; é também o lugar de onde uma verdade traumática fala
abertamente” (Zizek, 2010, p. 9). Influenciado pela ideia de Lacan de que é na apreensão
desta verdade que reside a prática psicanalítica, Zizek, com muita propriedade, traduz
o adágio freudiano da seguinte maneira: “Eu deveria ousar me aproximar do lugar de
minha verdade [ uma] verdade insuportável com a qual devo aprender a viver” (Zizek,
2010, p. 9). Em última instância, esta versão reafirma a psicanálise como teoria e prática
que põe o sujeito diante do real traumático para despertá-lo para o acontecer da vida e a
alteridade da morte 3.
Com isto, estamos em condições de voltar à estratégia de paz enunciada no final do
texto De guerra e morte. Temas da atualidade (1915/1976) e fazer nossa própria leitura
do antigo “Se queres preservar a paz, prepara-te para a guerra”, em consonância com a
leitura lacaniana do adágio freudiano “Onde isso estava, devo advir”; a saber: “se queres
preservar paz, aproxima-te da crueldade que te habita e com a qual deves aprender a
viver”. Maneira de fazer com que o excesso de crueldade passe à palavra que diga não ao
insuportável. Por outro lado, a exigência do compromisso ético de leitura das marcas,
traços e dos signos que compulsivamente retornam à cena do social em ações violentas
e cruéis, significa uma tentativa de reinscrição do trauma determinado pela terceira fon-
te inesgotável de sofrimento humano: a falência permanente das normas reguladoras das
relações entre os homens. Neste sentido, seria interessante trazer as reflexões do cientista
político Yanmis Stravakakis, sobre o encargo de se transmitir na atualidade os horrores da
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Segunda Guerra Mundial: ao tomarmos “consciência do que aconteceu aos judeus, ciganos
e homossexuais torna-se possível dizer: “Posso ser eu a próxima vítima” (Stavrakakis,
2007, p. 189). O que se promove aqui é a identificação com o excluído do campo social,
aquele que sofre a crueldade impossível de representar, até chegar ao ponto de estarmos
aptos a lutar pela paz estando preparados para a guerra.
Ainda que no plano do coletivo o analista seja impedido de exercer a clínica sob
transferência (como ocorre no desenrolar da análise do sujeito), por razões éticas não
pode deixar de se opor às manifestações de barbárie que se perpetuam através dos sé-
culos. Esta posição que impede a psicanálise de ficar neutra na luta entre o obscuran-
234
tismo da barbárie e a cultura, liga-se à sua responsabilidade cívica, de modo inexorável.

3 Em Modalidades do Despertar Traumático, Cathy Carrut (In: NESTROVSK, A.; SELIGMAN-SILVA, M. Catástrofe e Representação. São
Paulo: Escuta, 2000.) discute a interpretação de Lacan sobre o sonho da criança morta que diz ao pai estar sendo queimado pelo fogo
de uma vela, relatado por Freud em “A interpretação dos sonhos”. A autora mostra de que modo a história de um trauma, o real da
morte, que se repete em pesadelos, desperta o pai para o fardo ético da transmissão do que significa a morte de um filho.
Espera-se de um analista que, em nenhuma circunstância, por distinguir as forças mais
enigmáticas da natureza humana, justifique condutas que venham a colocar em risco o laço
social entre os homens. O saber psicanalítico não pode legitimar a crueldade, sob pena de
torná-la mais violenta. Por outro lado, o analista não deve, a rigor, alimentar o sonho de
um futuro messiânico que possa vir a vencer as tendências humanas cruéis e destrutivas.
Tampouco deve regar o pessimismo desenfreado de que Tanatos conduzirá à extinção
da raça humana. Segundo Freud, estes são falsos dilemas que implicam na tendência a
apagar todas as diferenças no interior das reflexões e críticas sobre os destinos da cultura
e o futuro da psicanálise.
Justamente porque a teoria freudiana reconhece a guerra como uma realidade inin-
terrupta da história, o psicanalista deve se comprometer com toda e qualquer iniciativa
pública de minorar o exercício da crueldade e da destruição. Trata-se de uma questão
ética e política; arte pela qual podemos seguir combatendo a crueldade que incita à guer-
ra homens nobres ou vis (Freud, [1932-1933a]/1976, p. 78). Nunca é demais seguir o
exemplo deste mestre. Sem pessimismo, nem tampouco otimismo − dois lados de uma
mesma moeda, que se contentam em enxergar apenas uma face dos problemas − ele, que
já havia muito cedo reconhecido a impossibilidade de uma humanidade pacificada com
o bem, não deixou de reconhecer que “tudo aquilo que trabalha pelo desenvolvimento
da cultura, trabalha também contra a guerra” (Freud, 1960/1982, p. 398). Aposta con-
centrada na luta imbatível entre dois gigantes: o amor e a morte. Os ecos do poema bí-
blico, “O cântico dos cânticos” − o amor é forte, é como a morte − ressoam na convicção

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freudiana de que Eros é forte; é como Tanatos. Até mesmo porque, que espécie de futuro
nos aguardará “se não aprendermos a distrair as nossas pulsões do ato de destruir a nossa
própria espécie, se continuarmos a odiar um ao outro por pequenas disputas e matar um
ao outro por um ganho mesquinho?” (Freud, 1960/1982, p. 398).

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237
Walter Benjamin.
“Esquecer o passado?”1

Jeanne Marie Gagnebin

Não é fácil tomar a palavra no fim desse colóquio, mais uma vez. Primeiro, porque este
lugar é carregado de lembranças, de lembranças dolorosas; e, também, porque já escuta-
mos muitas falas a respeito da necessidade do lembrar. Minha proposta será precisa: gos-
taria de ressaltar a exceção que constitui a política de memória do governo brasileiro – ou
melhor, suas estratégias extremas de esquecimento maciço em relação à ditadura militar
de 1964 a 1985; e fazer isso para distinguir o contexto brasileiro daquele de um país como
a Argentina, por exemplo. A partir dessa análise, vou retomar alguns conceitos da filoso-
fia da história, de Benjamin, que podem nos ajudar a pensar como lutar hoje contra essa
política de esquecimento.
Como nasci na Europa, e num país profundamente tradicional como o é a Suíça,
Psicologia,Violência e Direitos humanos

gostaria de insistir, em primeiro lugar, na diferença existente entre certas discussões sobre
o famoso “dever de memória”, uma expressão, aliás, muito discutível, na Alemanha ou na
França, e as diversas formas de relação com o passado num país da América latina mar-
cado pela colonização, pela escravidão e pela ditadura, como o Brasil.
Enquanto na Europa surge certa lassidão, em particular depois de um longo tra-
balho de “Aufarbeitung der Vergangenheit”, retomando uma expressão de Adorno que,
por sua vez, retoma uma expressão de Freud (Durcharbeitung, trabalho de perlaboração),
trabalho cumprido notadamente a respeito da Segunda Guerra, em particular da Shoah,
238 não porque se trataria de esquecer, mas porque se trata de passar à questão do presente – a
questão da memória, da memória dita nacional particularmente, não se coloca nestes ter-
mos, pelo menos no Brasil.

1 Esse texto foi escrito como conferência em francês para o colóquio sobre “Walter Benjamin e a questão da memória”, no centro
Haroldo Conti, Buenos Aires, 26-30 de outubro de 2010. Aproveitei a “semana contra a anistia aos torturadoes”, na USP, em início
de outubro para traduzi-lo para português.
Uma certa imagem positiva de país do futuro, no qual tudo é possível e no qual
restam vastos horizontes a descobrir, país da juventude e da inventividade, acompanha
uma outra imagem, mais capciosa, de um país no qual as estruturas de poder quase não
mudam desde a colonização até as alianças do governo Lula, país de uma “elite” corrup-
ta, de um povo resignado e submisso, misto de alegria e ignorância, de diversos truques
(o famoso jeitinho) e de expedientes sempre no limite da legalidade.
Essa ideologia da cordialidade e do favor, tão bem analisada por Sérgio Buarque de
Holanda e Roberto Schwarz, sustenta uma outra convicção, a saber, que não é necessário
lembrar-se, porque de fato nada muda realmente, e também porque se deve olhar para
frente. Por isso, os filhos ou os amigos dos desaparecidos durante a ditadura, que insistem
em saber onde estão os corpos dos mortos e quem os matou, atrapalham: eles são rapi-
damente taxados de vingativos ou de ressentidos, notadamente pelos representantes das
forças armadas que não parecem, no entanto, ter lido Nietzsche.
Quando a grande crítica argentina Beatriz Sarlo (2005, p. 45) afirma num dos seus
últimos livros que “quando acabaram as ditaduras do sul da América Latina, lembrar foi
uma atividade de restauração dos laços sociais e comunitários perdidos no exílio ou des-
truídos pela violência do Estado. Tomaram a palavra as vítimas e seus representantes...”,
deve-se dizer que o Brasil não pertence a este sul da América Latina. No Brasil, as vítimas
não tomaram a palavra, primeiro pela simples razão de que não existe nenhum estatuto
de vítima, que nenhum texto oficial, de lei ou de história, use essa palavra que acarreta, e,
em geral, uma questão complementar: quem foram os carrascos?

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Como o ressalta Glenda Mezzaroba (2010, p. 115-116), a palavra “vítima” não faz
parte do vocabulário da legislação brasileira sobre os desaparecidos e os direitos de seus
descendentes. Os “desaparecidos”, isto é, na maioria as vítimas da tortura e do assassinato
durante a ditadura, são sempre designados como aqueles que foram “atingidos”, ou aqueles
que são considerados oficialmente falecidos ou até, quando se trata de pessoas ainda em
vida, mas cuja carreira foi prejudicada pela ditadura, como aqueles que foram “anistiados”.
Essas sutilezas linguísticas remetem ao eixo principal da política de “reconciliação
nacional” promovida pelos militares e defendida com obstinação até hoje pelas instâncias
239
políticas e jurídicas dos diversos governos civis – como o demonstrou recentemente a
votação a esse respeito do Supremo Tribunal Federal, em abril de 2010: a saber, a pro-
mulgação, em agosto de 1979, isto é, cinco anos antes de passar o poder aos civis, da “Lei
de anistia” (BRASIL, Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979), que, segundo Buff (2010, p. 182)
“excluía os ‘condenados por crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal’,
porém incluía os acusados de tortura, assassinato e desaparecimento durante o regime mi-
litar”; uma lei, portanto, que mantinha o encarceramento de vários militantes de esquerda,
por exemplo, aqueles que assaltaram um banco à mão armada, mas incluía, portanto anis-
tiava, os militares ou policiais que torturaram, mataram e fizeram desaparecer os presos do
regime, porque essas execuções são classificadas como “crimes conexos” a crimes políticos.
Essa lei de anistia, eixo do desígnio de reconciliação da “família brasileira”, como
gostam de dizer seus partidários de ontem e de hoje, nunca foi nem revista nem abolida2,
pelo contrário, sua validade acaba de ser novamente ratificada pelo STF. Podemos obser-
var que a lei sobre os “desaparecidos” (Lei 9140, 4 de dezembro de 1995) e as leis sobre as
formas de reparação aos perseguidos pelo regime militar (Lei 10.559, 13 de dezembro de
2002), mesmo que reconheçam oficialmente a morte dos desaparecidos, não acarretam
nem a devolução dos restos mortais, nem a pesquisa a respeito das circunstâncias de sua
morte, em particular a abertura dos arquivos militares secretos.
Isso significa que, embora o Brasil tivesse assinado vários tratados internacionais con-
tra a tortura3, a jurisdição internacional é simplesmente ignorada quando se trata dos tortu-
radores e dos assassinos da ditadura, sob o pretexto de reconciliação; isso significa também
que o Brasil é o único país da América do Sul no qual “torturadores nunca foram julgados”
(nem denunciados como tais), “onde não houve justiça de transição, onde o Exército não
fez um mea culpa de seus pendores golpistas” (Teles; Safatle, 2010, p. 10).
Isso significa ainda que a prática de tortura, mesmo se ela for hoje oficialmente con-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

denada, continua de fato a ser tolerada. Como ninguém foi condenado em razão dessas
práticas durante o governo militar, a impunidade é pressuposta e está na base da prática
dos interrogatórios policiais. Assim, como o denunciam todas as pesquisas sobre direitos
humanos, há hoje mais casos de tortura e de assassinato perpetrados nas prisões e nas
dependências da polícia brasileiras que durante a ditadura (Kehl, 2010; Piovesan,
2010). Crimes cometidos, em sua imensa maioria, contra homens jovens, pobres, negros
ou “pardos”, desempregados ou sem emprego fixo, rapidamente acusados de serem trafi-
cantes ou bandidos potenciais, crimes que não provocam nenhuma indignação séria, até
causam certo alívio por parte dos privilegiados que se sentem, et pour cause, ameaçados.
240

2 Sua aplicação foi ampliada pela emenda constitucional” 26/85, do 27 de novembro de 1985 (portanto, depois do restabeleci-
mento da democracia e no contexto da preparação de uma Assembleia Constituinte), em benefício das pessoas punidas por atos
cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, datas sobre as quais legifera a lei de anistia.
3 Em 1992 o Brasil ratificou a Convenção Americana dos Direitos Humanos de 1969, que considera os crimes de tortura como im-
prescritíveis (BUFF, 2010, p. 238)
Conclusão: a ditadura brasileira, tantas vezes celebrada como ditadura suave (ver
o jogo de palavras infame entre “ditadura” e “ditabranda”), porque não assassinou um
número tão grande de vítimas como seus ilustres vizinhos, é uma ditadura que não é
somente objeto de uma violenta coerção ao esquecimento, mas também é uma ditadura
que se perpetua, que dura e contamina o presente. Trata-se não só de um caso de recalque
social e político violento, mas também da “naturalização da violência como grave sinto-
ma social no Brasil”, como o afirma a psicanalista Maria Rita Kehl (2010, p. 124); trata-se,
então, na luta pela revisão da lei de anistia, pela abertura dos arquivos secretos e pela
restituição dos restos mortais dos desaparecidos, não só de uma luta pelo esclarecimento
do passado, mas, sobretudo, de uma luta pela transformação do presente.
Não é inútil repetir que o reconhecimento oficial e social da tortura durante um
regime ditatorial, reconhecimento estabelecido por instituições governamentais, jurí-
dicas e objeto de discussão e de debate no seio da sociedade civil, permite ao corpo
social na sua integridade realizar um processo de elaboração do trauma histórico com-
parável a um luto coletivo. Repetir igualmente que este processo é essencial para que a
vida em comum no presente seja possível. A situação de muitos filhos de desaparecidos
brasileiros pode ser comparada à situação dos descendentes das vítimas do genocídio
armênio, durante tanto tempo negado pela maioria das nações: não tinham direito nem
mesmo ao estatuto oficial de órfãos porque ninguém ousava afirmar o assassinato ou a
morte de seus pais.
Os filhos dos desaparecidos são certamente reconhecidos como órfãos, mas não

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sabem nem onde ficam os restos mortais de seus pais, nem quem os matou; os desapa-
recidos são ditos oficialmente falecidos, sem que se possa saber em que circunstâncias
ocorreu essa morte. Assim, a questão do passado, em vez de se tornar uma herança dolo-
rosa, mas comum a todos brasileiros, uma questão a ser elaborada em conjunto por todo
corpo social, é reduzida, graças a leis de “reparação”, a uma regulamentação de indeniza-
ções individuais; é como se essas mortes e essas violências fossem meros acontecimentos
singulares, acidentes ou incidentes de percurso, o que torna uma elaboração coletiva da
violência passada e presente impossível, ao reduzir a memória da ditadura a histórias
241
individuais, pessoais, “casos” excepcionais que deveriam ser resolvidos rapidamente para
melhor poderem ser esquecidos, recusando portanto a possibilidade de uma memória
social e coletiva compartilhada por todos.
O impedimento desse processo de luto é duplo: primeiro porque os corpos não são
efetivamente procurados pelas autoridades competentes para poder ser enterrados; tam-
pouco os arquivos abertos para saber, em particular nos casos nos quais nenhum resto
físico pode ser encontrado, como morreu a pessoa. Remeto aqui à longa luta, iniciada em
1982 e levada até hoje em vão, dos familiares dos guerrilheiros do Araguaia4. Em segun-
do lugar, porque o trabalho do historiador no Brasil é prejudicado por essas estratégias
oficiais de esquecimento, impedindo uma relação da nação brasileira em seu conjunto a
seu passado, passado este que deveria ser objeto de pesquisas, de estudos, de discussões.
Assim, fica bloqueada uma relação de liberdade diante do presente. Parto aqui da bela de-
finição da escrita da história, da historiografia, como sendo um “ritual de sepultamento”,
assim que o definiu Michel de Certeau (1975/1982, p. 107):
Por um lado, no sentido etnológico e quase religioso do termo, a escrita representa o
papel de um rito de sepultamento [un rite d’enterrement]; ela exorciza a morte intro-
duzindo-a no discurso. Por outro lado, tem uma função simbolizadora; permite a uma
sociedade situar-se, dando-lhe, na linguagem, um passado, e abrindo assim um espaço
próprio para o presente: ‘marcar’ um passado, isso significa também dar um lugar ao
morto, mas também redistribuir o espaço dos possíveis, determinar negativamente o
que está por fazer e, por conseguinte, utilizar a narratividade, que enterra os mortos,
como um meio de estabelecer um lugar para os vivos.

Pelo intermédio de Michel de Certeau, reencontramos Walter Benjamin de quem no fun-


do nunca nos afastamos. Com efeito, no último texto que ele escreveu, as famosas teses
Psicologia,Violência e Direitos humanos

“Sobre o conceito de história”, Benjamin coloca algumas balizas para uma historiografia
verdadeiramente “militante”; não porque militaria em favor de um partido ou de uma
tendência, mas porque milita por uma memória do passado que permite não só salvar
a memória dos vencidos, mas também liberar outras possibilidades de luta e de ação
no presente do historiador – no seu caso, um presente paralisado pelo fascismo e pelos
dogmatismos tanto da historiografia burguesa quanto do marxismo ortodoxo e stalinista.
Essa enunciação no presente é uma exigência fundamental e acarreta a consequência
que história “a contrapelo” (“gegen den Strich”, tese VII) do passado e reflexão crítica so-
242 bre o presente coincidem (tomo a liberdade de justificar assim “benjaminiamente” minhas
reflexões iniciais sobre o presente brasileiro, presente no qual estou inscrita!). Ora, a ques-
tão dos mortos e do destino que lhes reserva a historiografia dominante é absolutamente
crucial nas teses, ela é o trunfo de uma luta no presente que a tese VI torna mais precisa:

4 Ver a esse respeito o artigo de Janaina Teles, no livro O que resta da ditadura (2010), especialmente as páginas 284 e seguintes.
Cada época deverá novamente enfrentar essa rude tarefa: libertar do conformismo
uma tradição que está sendo por ele violada. Lembremos que o Messias não vem so-
mente como redentor, mas como o vencedor do Anticristo. Somente um historiador
convencido que um inimigo vitorioso não vai se deter, nem diante dos mortos – somen-
te esse historiador saberá insuflar no coração mesmo dos acontecimentos a centelha
de uma esperança. Até agora, e nesse momento, o inimigo ainda não cessou de vencer.
(BENJAMIN, 1974, p. 1262).5

A tradução para francês do próprio Benjamin talvez não seja muito elegante, mas ela
tem o mérito de muitas vezes tornar seu pensamento mais preciso. Assim, onde o texto
alemão diz: “auch die Toten werden vor dem Feind, wenn er siegt, nicht sicher sein” (lite-
ralmente: “os mortos, eles também, não estarão a salvo diante do inimigo, se ele vencer”),
Benjamin realça, na versão francesa, a atividade de profanação do inimigo, “que não se
deterá nem diante dos mortos”. Essa tendência à profanação (que Benjamin já notava na
ação das personagens das Afinidades Eletivas de Goethe que não hesitam em deslocar
túmulos para transformar um cemitério num jardim!) marca de maneira precisa o limite
onde o poder político se converte em violência (ver a palavra “violée” na tradução france-
sa), violência mítica diria Benjamin, fora do espaço de uma sociabilidade comum.
Espaço de violência, o sabemos desde os relatos dos sobreviventes, pelo menos tais
quais os analisam Giorgio Agamben (1995/2004), que parece surgir como o nomos im-
plícito do estado moderno enquanto estado de exceção instituído. A insistência de Ben-

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jamin no perigo que correm os mortos de serem, por assim dizer, mortos mais uma vez,
lança uma luz paradoxal sobre a resistência do poder ditatorial, depois democrático, a
procurar e identificar os desaparecidos. Tratar-se-ia não só de não querer confessar os
crimes cometidos. Tratar-se-ia mais ainda de afirmar que cabe ao poder político decidir
do destino dos mortos e que as “leis não escritas” dos sobreviventes, que desejam ainda
respeitar a prática humana (e sagrada) do funeral e da inumação6, não têm força de lei.

243
5 Tradução própria do francês para o português do seguinte trecho traduzido do alemão para o francês realizada pelo próprio
Walter Benjamin: “Chaque époque devra, de nouveau s’attaquer à cette rude tâche : libérer du conformisme une tradition en
passe d’être violée par lui. Rappelons-nous que le messie ne vient pas seulement comme rédempteur mais comme le vainqueur
de l’Antéchrist. Seul un historien, pénétré (de la conviction) qu’un ennemi victorieux ne va même pas s’arrêter devant les morts
– seul cet historien-là saura attirer (peut-être Benjamin veut-il plutôt dire ‘attiser’) au coeur-même des événements révolus
l’étincelle d’un espoir. En attendant, et à l’heure qu’il est, l’ennemi n’a pas encore fini de triompher».
6 Essa alusão à Antígona, de Sófocles, foi-me sugerida pelo belo artigo de Vladimir Safatle, “Do uso da violência contra o Estado
ilegal”, no livro O que resta da ditadura (2010), p. 237-252
Um outro conceito de W. Benjamin pode ser precioso nesse contexto de elabora-
ção coletiva do passado. Mesmo que o vocabulário referente à memória e à atividade do
lembrar não seja sempre muito rigoroso em seus escritos, o conceito de Eingedenken (“re-
memoração”, “recordação”) tem um peso específico. Certos comentadores, como Ursula
Link-Herr (2009), propõem a hipótese de um “golpe semântico” por parte de Benjamin,
reservando de preferência a palavra Eingedenken à memória de um único destino (Ein-
gedenken). Tomo a liberdade de discordar dessa interpretação e ressalto mais o caráter de
ritual coletivo, religioso e político do conceito.
Assim Lutero traduz o famoso versículo de Deuteronômio 5:15: “Recorda (Du sollst
gedenken) que foste escravo na terra do Egito, e que Iahweh teu Deus te fez sair de lá com
mão forte e braço estendido”. Devemos observar que a rememoração é coletiva e política,
mesmo que tenha suas fontes numa teologia do lembrar. Não confirma, portanto, a “gui-
nada subjetiva”, denunciada por Beatriz Sarlo (2005), como sendo o risco que espreita os
relatos singulares, muitas vezes autobiográficos, de testemunhos da violência passada, e
mais ainda, que ameaça sua leitura complacente a qual, mais uma vez, reduz esses relatos a
exemplos certamente terríveis, mas singulares e circunscritos a lamentáveis exceções, que
usa, portanto, essas “memórias” para não proceder a uma análise política do passado.
Agora, se a “rememoração” (Eingedenken) é coletiva e política, ela não é de jeito nenhum
uma “comemoração” oficial, organizada com bandeiras, desfiles ou fanfarras para comemorar
uma vitória, ou, então, pedir perdão, como parece ter se tornado um prática governemental,
Psicologia,Violência e Direitos humanos

aliás, muito honorável, em certos países. Pelo contrário, Benjamin (1977) a associa à memória
involuntária de Proust, traduzindo muitas vezes “mémoire involontaire” (memória involuntá-
ria) por “ungewolltes Eingedenken” (rememoração involuntária), em particular nos primeiros
parágrafos de seu ensaio sobre o autor da Recherche, consagrados à dinâmica do esquecer e
do lembrar. Aliás, essa combinação entre dimensão coletiva, e mesmo política, e dimensão
involuntária, portanto inamissilável ao resultado de uma preparação estratégica por parte de
um partido ou de um comitê central, constitui uma das características e igualmente uma das
dificuldades maiores da concepção de decisão revolucionária nas teses.
Benjamin parece tentar pensar uma atenção ao kairos da ação política que não se
244
resume nem à confiança na espontaneidade das massas (espontaneidade às vezes de-
sastrosa), nem aos cálculos conjunturais de uma pseudo avant-garde. Não acho que se
possa resolver de maneira definitiva essas ambiguidades da definição de “sujeito históri-
co” no texto das teses, aliás, não tenho certeza que isso seja desejável. No entanto, algu-
mas balizas teóricas, que Benjamin mesmo indica, podem ajudar a traçar essa noção de
atenção ao presente histórico e ao “momento do perigo” (tese VI): a teoria da memória
involuntária em Proust, aquela da atenção flutuante (schwebende Aufmerksamkeit) em
Freud, enfim, a rememoração num contexto teológico. Três modelos de disponibilidade
ao acontecimento muito mais que de soberania da consciência coletiva.
Respondendo a uma carta de Horkheimer que argumentava que o passado não pode
verdadeiramente ser dito “aberto” (unabgeschlossen), suscetível de transformações pos-
teriores, que, nesse sentido, as injustiças e os sofrimentos do passado são irremediáveis,
Benjamin anota no livro das Passagens (2007, p. 513):
O corretivo desta linha de pensamento pode ser encontrado na consideração de que a
história não é apenas uma ciência, mas igualmente uma forma de rememoração. O
que a ciência ‘estabeleceu’ pode ser modificado pela rememoração. Esta pode transfor-
mar o inacabado (a felicidade) em algo acabado, e o acabado (o sofrimento) em algo
inacabado.Isto é teologia; na rememoração, porém, fazemos uma experiência que nos
proíbe de conceber a história como fundamentalmente ateológica, embora tampouco
nos seja permitido tentar escrevê-la com conceitos imediatamente teológicos.

Talvez esse fragmento torne o pensamento de Benjamin mais obscuro ainda quando mi-
nha intenção era de clarificá-lo! No mínimo, ele ressalta uma dimensão da história como
sendo uma narração aberta que permite não encerrar a imagem do passado numa úni-
ca “constatação”, mas modificar essa imagem, e assim também a apreensão do passado
pelo presente. Com efeito, se o passado é bem findo (vergangen) e nesse sentido imutá-

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vel, continua porém a ter sido (gewesen), a passar, a perdurar no presente. Esse estatuto
“enigmático” (Ricoeur) do passado presente se transforma com o presente, quando os
sujeitos históricos de presente dão ao passado uma outra interpretação, o transmitem
(überliefern) contra o “conformismo da tradição” (Tradition), como o diz Benjamin na
tese VI, portanto agem no presente de tal maneira que a continuação da história não
mais se inscreve no esquema narrativo (e prático) ditado por essa tradição dominante. A
ruptura deste enredo é, em Benjamin, uma ruptura teológica e política, não no sentido de
uma intervenção divina segundo um modelo religioso, mas no sentido de uma dimensão 245
irredutível ao dado, ao “amontoado de ruínas” (tese IX).
Gostaria de concluir essa comunicação com uma advertência: não façamos de Ben-
jamin o rapsodo incondicional de memória e da conservação, como se se tratasse de
nada esquecer e de tudo guardar. Leitor crítico, mas assíduo de Nietzsche (mais do que
de Hegel!), Benjamin cita várias vezes a Segunda consideração intempestiva, em particu-
lar no início da tese XII. Com efeito, Nietzsche é o primeiro pensador que condenou os
excessos daquilo que Benjamin chama de historicismo, essa ciência burguesa da história,
caracterizada por seu ideal de exaustividade e objetividade.
Nietzsche também é o pensador de uma noção positiva de esquecimento, na linha-
gem do pensamento grego, do êxtase dionisíaco e erótico, das figuras do “desligar”, o
luein, que se traduz em alemão por lösen, verbo associado ao campo semântico da dissolu-
ção e da solução (Lösung) e, igualmente, da redenção (Erlösung), um conceito que eu gos-
taria de distinguir do de salvação (Retttung), na reflexão de Benjamin. Essas figuras de um
esquecimento feliz surgem, em particular, na evocação de uma experiência paradigmática
da infância: a criança doente se acalma pouco a pouco graças às mãos que acariciam e à
voz que conta uma história, traçando assim ao rio da dor um leito que a levará até o “mar
do esquecimento feliz” (“ins Meer glücklicher Vergessenheit”) (BENJAMIN, 1972, p. 430.)
Essas imagens evocam uma narração sempre recomeçada, sempre retomada e enri-
quecida. Esse esquecimento feliz é, portanto, exatamente o contrário de um esquecimen-
to imposto, ou de uma “memória impedida”, como Paul Ricoeur (2000, p. 576) definiu
muito acertadamente o conceito de anistia. Isso também significa que todas as políti-
cas de esquecimento imposto, porque são o contrário de um processo de elaboração do
passado, não vão ajudar a esquecer um passado doloroso, mesmo que, num primeiro
momento, o façam calar-se. Essas políticas preparam muito mais o retorno do passado
Psicologia,Violência e Direitos humanos

recalcado, a repetição e a permanência da violência, uma forma de memória pervertida


que, na verdade, nos impede de nos livrar, de nos desligar do passado para poder, enfim,
viver melhor no presente.

Referências
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BENJAMIN, W. Berliner Kindheit. In: Gesammelte Schriften. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1972. v. IV.
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246 ______. Passagens. Belo Horizonte; São Paulo: Ed. UFMG; Imprensa oficial, 2007.
______. Version française des thèses. In: Gesammelte Schriften. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1974. v. 1-3.
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CERTEAU, M. de. (1975). A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
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247
FREUD E A PAZ

Jaime Ginzburg

É complexa a construção formal do texto de Freud Por que a guerra (FREUD, 1996). Ori-
ginalmente foi redigido em Viena, como uma carta dirigida a Albert Einstein, em 1932.
Incorporado à correspondência do autor e à edição de suas obras completas, ele assume
valor teórico. Examinando de perto, a reflexão conceitual nele incluída tem um caráter
epistemológico, perguntando sobre as funções do conhecimento produzido. Para além de
tudo isso, a troca epistolar é também um debate, e nesse sentido teoria e epistemologia
estão em pauta de avaliação crítica.
Como texto teórico, não é um trabalho comum. É extremamente condensado, ar-
ticulando questões de elevado nível de exigência em poucas páginas. Embora seja con-
densado, não é sintético, isto é, não é conclusivo. Seu final não apresenta uma resolução
linear para os problemas que formula. A lógica que predomina no texto não é positivista,
nem cartesiana, nem matemática. É necessário dar cuidadosa atenção à maneira singular
como Freud conjuga tema e forma, argumentação e estrutura.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Partimos da pergunta indicada no título, que é uma questão de âmbito causal. O que
de fato pode Freud determinar, objetivamente, sobre as razões da guerra, a partir da psi-
canálise? De modo mais abrangente, o que ele pode estabelecer como causas da violência
a partir de qualquer fator, com certeza e segurança?
Na passagem do texto em que aborda diretamente o problema da motivação para
a guerra, Freud afirma que pode estar nisso envolvido um “grande número de motivos”
(FREUD, 1996, p. 3212). Essa pluralidade é um problema epistemológico importante para
a reflexão. A existência de vários fatores para a guerra, embora deixe aberto o campo de
248 determinações para que o debate continue, também não especifica o suficiente para que
uma resposta se delimite de modo conclusivo.
A teorização apresentada, nesse sentido, está matizada por um componente de li-
mitação incontornável: não é possível, no momento da escrita da carta, nem para Freud,
nem para Einstein, resolver de modo exato quais são as causas da violência. Isso não
impede que a carta seja escrita. Nem que a pergunta do título seja feita.
Trata-se, portanto, de um momento de produção de conhecimento em que Freud sabe
de suas limitações, e não deixa de confrontar um problema. O tema de investigação se im-
põe – trata-se de um momento histórico em que ainda se observa o impacto da Primeira
Guerra Mundial, e é possível observar a ascensão de forças articuladas com o fascismo na
Europa.
A interlocução com Einstein está associada com a necessidade de qualificar o debate
sobre a guerra, de modo a trazer a compreensão do assunto a um campo de maior lucidez.
Além de estudar o assunto, trata-se ainda de estabelecer uma posição frente ao processo
histórico.
Freud já havia dedicado reflexões às neuroses de guerra, em simpósio de 1919. Paulo
Cesar Endo, ao comentar reflexões do autor sobre a Primeira Guerra Mundial, enfatiza
com razão o impacto destruidor do evento sobre as “obrigações entre povos e nações,
respeito à vida dos civis, laços de solidariedade”, em nome da hipocrisia do Estado, que
reduz “cidadãos a uma massa de obedientes”. Nesse contexto, na pulsão de destruição se
expressaria “uma força que se caracteriza por ignorar todos os esforços de ligação, repre-
sentação e linguagem” (ENDO, 2005, p. 119). A carta para Einstein pressupõe um percur-
so anterior, em que o autor detalhou suas percepções sobre danos coletivos e individuais
do empreendimento da guerra.
Uma atitude tomada por Freud perto do final do texto, referindo a si mesmo e a
Einstein como “pacifistas” (FREUD, 1996, p. 3214), define uma configuração para o con-
junto e condiciona a leitura. A frase, inclusive, propõe o pacifismo como um dever. Mais

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adiante, há um reforço do mesmo tópico, em primeira pessoa do plural, com a indicação
de que “em nós, os pacifistas, se agita uma intolerância constitucional”, mais do que “uma
aversão intelectual” (FREUD, 1996, p. 3215).
O texto de Freud ultrapassa a reflexão que é definida por seu título, caracterizada
por uma busca de causas para a guerra. Ele alcança uma posição efetivamente contrária
à continuidade da violência. De acordo com Habermas (1983), a produção de conheci-
mento, incluído seu núcleo lógico, está diretamente articulada com o interesse do pesqui-
sador. É o caso deste trabalho, em que a posição pacifista condiciona o modo de pensar
249
os tópicos de psicanálise.
No Brasil, no mesmo momento em que Freud estava envolvido em reflexões sobre a
guerra, uma escritora enviava à imprensa textos voltados à defesa da paz. Hoje sabemos
muito pouco sobre as crônicas de Cecília Meireles dos anos 30, raramente estudadas.
Em um artigo de 1932 extremamente corajoso intitulado Mussolini e a paz, a escri-
tora brasileira menciona que Mussolini não considerava a paz “nem possível nem útil”
(MEIRELES, 2001, p. 291). Ele faz parte de um conjunto de reflexões contundentes em
oposição às inclinações violentas do processo histórico.
A perspectiva de Meireles é pedagógica. Ela acredita que o caminho para a redução
da violência histórica está associado às políticas educacionais brasileiras. Por essa razão,
ela entra no delicado terreno imagético das relações entre crianças e violência.
Em Brinquedos, a autora chama a atenção para os “pequeninos observadores” que po-
deriam manifestar “sentimentos cruéis”, “explosões de rancor” e “conquistas da força”. Ela
acredita que – em uma cadeia mimética – crianças podem “repetir candidamente a imagem
das atrocidades que os homens têm cometido sobre a terra” (MEIRELES, 2001, p. 299). Re-
vólveres de brinquedo, declara a autora, servem para nutrir esse movimento.
No precioso artigo A paz pela educação, Cecília Meireles (2001, p. 302) tem uma
atitude propositiva, idealista e otimista.
Esse mundo que se espera terá de ser um produto de forças simpáticas, agindo com a necessária
liberdade, mas conciliando-se nesse comum acordo que põe em cada destino o sentido da sua
finalidade. Teremos, pois, de nos conhecer para o realizarmos. É, afinal, uma coisa assim fácil.
Mas que tem sido difícil.

As condições evocadas pela autora têm ligação com a articulação proposta por Freud
Psicologia,Violência e Direitos humanos

entre a justiça e a liberdade individual, em O mal-estar na cultura. De um lado, o pensa-


dor propõe a expectativa, proposta pelo conceito de justiça, de uma “garantia de que o
ordenamento jurídico estabelecido não venha a ser quebrado em favor de um indivíduo”.
Com relação à liberdade individual, com o “desenvolvimento cultural”,
ela sofreu restrições, e a justiça exige que ninguém seja poupado de restrições. [...] Uma boa parte
da luta da humanidade se concentra em torno da tarefa de encontrar um equilíbrio conveniente,
ou seja, capaz de proporcionar felicidade, entre essas exigências individuais e as reivindicações
culturais das massas. (FREUD, 2010, p. 97-99)
250

O “comum acordo” e a “necessária liberdade” indicados por Meireles apontam para a


expectativa de equilíbrio entre justiça e liberdade. O sentido da finalidade, para ela, é de-
finido em termos da integridade humana e de um mundo sem violência. A expectativa de
um conhecimento de si indica que, para a autora, as condições para o empreendimento
dependem de interrogar quem se é, o que se está fazendo.
A posição de Meireles não é típica nem considerada, em princípio, a mais apropriada para
a tradição nacionalista brasileira. Cabe lembrar as palavras de José de Alencar (2008, p. 133):

SEXTA CARTA

Sobre a guerra
Senhor
A paz é uma grande vergonha...
O coração brasileiro se congela ao som desta palavra cruel. Reflui o sangue açoitando
as faces do cidadão brioso, que se estremece pela honra nacional.
A paz é um ato de miséria...
O Brasil, a segunda nação da América, destinado à primazia do mundo, abater seu
estandarte ante o arreganho de um pequeno déspota, quase selvagem?
Não há filho deste império que se não possua de horror ante a possibilidade de seme-
lhante opróbrio.
A paz é uma vilania...

O autor de O Guarani foi responsável pela configuração negativa do conceito de paz no


nacionalismo brasileiro, ideia com forte presença em tradições autoritárias que perma-
necem até o presente. Trata-se de uma defesa da concepção ideológica de que o pacifismo
fragiliza, ameaça a soberania, as fronteiras, e com isso se torna um fator de prejuízo à

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identidade nacional.
A inteligência de Cecília Meireles se apresenta contra a tradição autoritária brasi-
leira de Alencar, e o pensamento fascista europeu. E no ano de 1932, entra em sintonia
com Freud. Em ambos surge uma indignação, a “intolerância constitucional” ao que está
acontecendo. No caso de Meireles, a postura é propositiva e o horizonte são as crianças.
A estratégia é abordar a política educacional.
Nesse sentido, ela acena com preocupações de Theodor Adorno em Educação após
Auschwitz. Depois da Segunda Guerra Mundial, o pensador se debruçaria sobre a Peda- 251
gogia, preocupado com o que considerava, como leitor atento de Freud, a “inclinação
arcaica para a violência”, e o desdobramento de “tendências regressivas como tendências
globais” (ADORNO, 1986, p. 38). Daí sua preocupação, expressa na ideia de que Aus-
chwitz não se repita, de uma educação contra a destruição. Para Adorno, as propostas
pedagógicas deveriam priorizar a crítica à violência.
No caso de Por que a guerra?, de Freud, há um esforço interpretativo. A argumentação
dedicada à conversação com Einstein inclui referências a estudos anteriores e procura cons-
truir conhecimento sobre o problema. A comparação entre as crônicas de Cecília Meireles e
a carta de Freud, escritas na mesma época, no início da década de 1930, chama a atenção: a
semelhança ostensiva consiste na caracterização que os autores fazem de si, a favor da paz.
A diferença está no modo de estabelecer uma relação entre a paz e o horizonte concreto.
Freud estabelece uma interrogação inconformada – “Quanto devemos esperar até
que os outros também se tornem pacifistas?” (FREUD, 1996, p. 3215) – referente à sua
expectativa. Meireles é propositiva, articulando hipóteses associadas à política educa-
cional e ao comportamento de crianças. A leitura de Educação após Auschwitz mostra
uma profunda complementaridade entre as duas posições. Em Adorno aparecem tanto a
inconformidade freudiana como a proposição político-pedagógica de Meireles. São inte-
grados os componentes teórico e empreendedor.
A argumentação de Freud tem um componente expositivo de propriedades narrati-
vas, indicando etapas da história da humanidade no que se refere ao modo de lidar com o
problema das diferenças. Em um período, os conflitos seriam resolvidos pela força, sendo
a vantagem física decisiva para estabelecer um vitorioso. Com a possibilidade de emprego
de ferramentas, a habilidade no emprego de armas influencia a perspectiva, definindo o
rumo do conflito. De fato, aponta o autor, a solução de conflito está ligada ao ato de infli-
gir dano ao outro (FREUD, 1996, p. 3208).
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Um período posterior corresponderia à emergência do direito. Nesse ponto, a força


cederia diante de uma organização coletiva. Diversos indivíduos, ainda que mais frágeis,
poderiam se articular contra um mais forte, e vencer um conflito (FREUD, 1996). No
entanto, em situações específicas, podem ocorrer confrontos com relação ao direito ins-
tituído, suprimindo as organizações legais e estabelecendo guerra civil (FREUD, 1996).
Trata-se de uma argumentação com estrutura narrativa, que parte de uma pressu-
posição pautada pelo princípio de gradação. O início é caracterizado como sendo a pura
barbárie, sendo a violência o modo de resolver dificuldades. Em um grau primário, essa
violência ocorre na luta corpo a corpo. Noutro grau, ela se instrumentaliza, com ferramen-
252
tas, isto é, ela ganha vantagens pelo emprego de raciocínios, de pensamentos de apoio.
Depois disso, vem um momento que poderíamos chamar de civilizatório, com a
emergência do direito. Ele permite a proteção de muitos e, mais do que isso, a defesa dos
frágeis. Com isso, Freud indica que o raciocínio pode servir em um momento para apoiar
a violência, construindo ferramentas para a destruição, e para contê-la, protegendo os
seres humanos. Isto é, violência não se opõe necessariamente a capacidade de pensar, mas
se relaciona com esta de mais de um modo.
Ao chegar à guerra civil, que suprime o estado de direito, Freud aponta para a pre-
sença de uma violência que supera em força a capacidade de negociação do pensamento.
No fluir de sua reflexão, faz uma série de apontamentos sobre o passado da humanidade,
relacionando a presença da guerra com o próprio modo de constituição da história.
O autor observa o passado como uma “série ininterrupta de conflitos entre uma co-
munidade e outra ou outras, entre conglomerados maiores ou menores, entre cidades,
comarcas, tribos, povos, Estados; conflitos que quase invariavelmente foram decididos
pelo confronto bélico das respectivas forças” (FREUD, 1996, p. 3210).
Ao realizar esse movimento argumentativo, Freud elabora um trabalho engenhoso
do ponto de vista epistemológico, deixando configurado um impasse – ao mesmo tempo
conceitual, narrativo e histórico-político. A primeira parte do argumento tem um perfil
que não contraria uma linearidade científica previsível. Ela não surpreenderia um leitor
evolucionista, darwinista, nem um positivista, nem um hegeliano. Iniciamos na barbárie,
passamos gradativamente à civilização. Lutas corpo a corpo, ferramentas, armas, e final-
mente um estado de direito. De fato, o problema central não está em saber se é possível
demonstrar historicamente esta gradação, ou se essa narrativa é uma espécie de mitologia
exemplar de efeito cosmogônico. O principal aqui é que o estado de direito representaria
uma condição sintética com relação aos estados dispersos e erráticos anteriores. O pensa-
mento teria chegado a uma organização produtiva e afirmativa do comportamento.

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O andamento da argumentação dissolve inteiramente a ilusão de síntese que o leitor
sustenta por um momento, com a entrada na narrativa das guerras civis. Síntese nenhu-
ma, sistematização alguma. O próprio direito é posto em questão constantemente, o que
indica que a capacidade humana de conter a violência não é suficiente.
Freud então realiza um procedimento argumentativo muito próximo da dialética ne-
gativa, que viria a ser proposta por Theodor Adorno poucas décadas depois, após a Segun-
da Guerra. Contrário à tradição metafísica e às concepções lineares de história, o filósofo
alemão propõe uma crítica da categoria da totalidade, e rompe com as heranças de Hegel. O
253
movimento do processo histórico é calcado em antagonismos, em conflitos que potenciam
uns aos outros, seguindo uma “razão antagônica” (ADORNO, 1999, p. 317-318). Em seu
esforço de propor um modo de pensar que permita refletir sobre o impacto das catástrofes
do século nas categorias de pensamento da tradição, o livro Dialética Negativa propõe a
percepção do processo histórico como um percurso inquietante e nunca totalizado.
O que cai por terra, de modo implacável, no livro de Adorno, é a crença ingênua no
pensamento causal: na segurança com que se sustentam verdades absolutas pautadas por
relações de causas e efeito que, em última instância, exigem fundamentos metafísicos.
Freud estava, em Por que a guerra, evitando argumentar em termos de uma causa única
e linear, ao expor a ideia de um grande número de fatores de motivação para a guerra.
É extremamente importante o momento do texto em que Freud diz que Einstein
teria manifestado assombro diante do fácil entusiasmo dos homens para a guerra, e que
o interlocutor suspeita existir um instinto humano de ódio e destruição. “Uma vez mais,
não posso senão compartilhar com você sem restrições sua opinião”, reage (FREUD,
1996, p. 3211). A concordância exata entre Einstein e Freud, cabe enfatizar, está em dois
aspectos: o assombro com relação ao entusiasmo pela guerra, e a suspeita de existência
de um instinto de destruição.
Freud, didaticamente, como um professor meticuloso, expõe a Einstein um breve re-
sumo de sua concepção dos instintos humanos, distinguindo os eróticos e os agressivos.
Apresenta a ideia de que ambos os tipos são imprescindíveis, mesmo sendo antagônicos.
Escreve, no mesmo parágrafo, sobre o instinto de conservação (FREUD, 1996).
A exposição a Einstein não encaminha para uma solução sintética, mas para uma
acentuação da complexidade dos problemas, cai em uma dificuldade, pois ela é conduzida
ao reconhecimento das limitações do saber no momento da enunciação. E quando o texto
se aproxima do final, vão se apresentando construções interrogativas. “Por que nos indig-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

namos contra a guerra, você, e eu, e tantos outros? Por que não a aceitamos como uma a
mais entre muitas dolorosas misérias da vida?” (FREUD, 1996, p. 3214) “Quanto devemos
esperar até que também os demais se tornem pacifistas?” (FREUD, 1996, p. 3215).
A configuração interrogativa é fundamental em termos formais. O texto não está
apenas voltado para seu objeto, a guerra. Ele está voltado para seu sujeito e seu inter-
locutor, em primeira pessoa do plural – indignamos, aceitamos, devemos. A presença
de “tantos outros” é articulada com o componente dêitico do pronome, que permite a
identificação inclusiva eventual do leitor, bem como a abertura do referente, para uma
generalização – uma imagem coletiva bem mais abrangente, por exemplo, poderia estar
254
implicada aqui. Por outro lado, “os demais”, “eles”, constituem também um campo inde-
terminado de referência, que diz respeito à facilidade de entusiasmo com a guerra que
deixa assombrados os dois interlocutores.
Este movimento em direção ao sujeito é mais do que um aproveitamento da liber-
dade concedida pelo fato de se tratar de uma carta. Ele faz parte do processo reflexivo em
pauta. Se a caracterização do movimento do instinto de agressão, tal como pensada por
Freud, for constitutiva do humano, genericamente, se ela estiver em todos, independente-
mente de condições espaciais e temporais, isso inclui o próprio Freud, e seu interlocutor.
Essa hipótese talvez venha a tornar Freud e Einstein parte integrante do passado
intelectual contra o qual eles querem trabalhar, a tradição de pensamento que é incapaz
de impedir que a violência continue em escala de destruição inconcebível, que veio a ser
descrita por Adorno.
Daí a determinação em estabelecer um perfil distintivo claro entre “nós” e “os demais”,
e a articulação da linguagem com “tantos outros”. Há uma sugestão de confinamento nesse
texto, em que Freud e Einstein poderiam estar sós e isolados, em seu pacifismo, assombrados
em um mundo de apreciadores de violência. As perguntas têm relação com a expectativa de
que esse confinamento pudesse acabar, em um mundo de maior presença do pacifismo.
Cecília Meireles tem, a seu modo, uma atitude propositiva para evitar a percepção
do pacifismo como isolamento. Trata-se de propagá-lo junto à infância brasileira, por
meio de uma educação distinta do militarismo. A Pedagogia esteve em seu horizonte
como rota para mediar um trabalho contrário à guerra e ao Fascismo. As companhias
preferenciais de Cecília Meireles para a pacificação são as crianças.
Freud espera que “os demais” alterem seu comportamento. E conta com o medo das
consequências da guerra futura para isso. Com base na insegurança, a civilização se orga-
nizaria – o princípio de conservação prevaleceria sobre o princípio de destruição.
O texto inclui, pelo menos em parte, o próprio contra-argumento para a sua expec-

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tativa otimista. A emergência do estado de direito poderia ter sido suficiente para orga-
nizar as situações de conflito, e não foi. “A paz depende da ampliação contínua dos ganhos
obtidos com a instauração das leis, da comunidade e da civilização. Quando esse processo
estanca, estamos diante da possibilidade da guerra” (SOUSA; ENDO, 2009, p. 94). Se a
narrativa exposta por Freud nas páginas iniciais não configura uma síntese harmoniosa
no final, por que se esperaria para o futuro algo diferente? Pelo fator do medo, pela
expansão da insegurança?
Freud (1996) gostaria que o fortalecimento do intelecto resultasse em um domínio
255
da vida instintiva, reprimindo as forças agressivas. Seria de fato uma vitória da civilização
sobre a barbárie, da reflexão sobre a violência. No entanto, a observação cautelosa con-
trária ao determinismo linear – muitos fatores podem resultar no interesse pela guerra,
não é possível explicá-la por uma única causa – leva a ponderar a expectativa de impacto
dessa estratégia. Se a guerra pode ser causada por muitos fatores, possivelmente o forta-
lecimento do intelecto não poderá controlar todos eles. Até mesmo porque, no momento
da enunciação da carta, não é possível descrever e enumerar quais são todos eles. Na
década seguinte, Adorno escreveria com Max Horkheimer a Dialética do esclarecimento,
livro que apontava o emprego instrumental da razão como um procedimento articulado
com a prática política do autoritarismo e da violência.
O que prevalece como princípio formal, no final do texto, é seu caráter interrogativo,
inconcluso, com as questões sem solução − “Por que nos indignamos contra a guerra,
você, e eu” (FREUD, 1996, p. 3214) e “Quanto devemos esperar até que também os de-
mais se tornem pacifistas?” (FREUD, 1996, p. 3215) como elementos centrais do conjun-
to. As questões sobre o interior do sujeito, a demanda de paz, e sobre o tempo incerto de
espera. Juntas, elas indicam o descompasso entre Freud e o mundo à sua volta; apontam
a guerra como problema motivador de reflexão teórica e exigência de pensamento e in-
terlocução com Einstein.
Mais do que isso, a guerra é indicada como motivação para o autor perguntar sobre
si mesmo – por que Freud é como é, e não aceita o sofrimento simplesmente? Por que
fica indignado? Ele não precisa apenas compreender a violência, interpretar o passado da
humanidade; precisa também – e sem resposta – voltar o conhecimento sobre si mesmo.
Ser pacifista é tão desafiador e tão difícil em um mundo de constante violência, que a
determinação de interesse pela paz se torna objeto de interrogação.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Referências
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SOUSA, E.; ENDO, P. Sigmund Freud. Porto Alegre: L&PM, 2009.
A LONGA TRAjETÓRIA DOS
DESLOCAMENTOS E DAS
INTOLERÂNCIAS no Brasil

Zilda Márcia Grícoli Iokoi

Primeiro Ato
Com que direito um homem escraviza o outro? A cor da pele faz um melhor do que o
outro? Os negros acorrentados também nos fazem escravos dessa barbárie. Há coisas
que assoberbam o espírito. Dói-me ver a raça dos tiranos ferir com chicote a face de
um povo imenso. A indignação me faz parir versos de sangue, feitos de dor e de revolta
bruta. (Castro Alves, 1868, apud Tendler, 2011, p. 42)

20 anos antes da Abolição da Escravidão, Castro Alves compõe o poema “Navio Negreiro”.

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Parte V

Lá nas areias infindas, 


Das palmeiras no país, 
Nasceram crianças lindas, 
Viveram moças gentis... 
Passa um dia a caravana, 
Quando a virgem na cabana  257

Cisma da noite nos véus ... 


... Adeus, ó choça do monte, 
... Adeus, palmeiras da fonte!... 
... Adeus, amores... adeus!... 
Ontem a Serra Leoa, 
A guerra, a caça ao leão, 
O sono dormido à toa 
Sob as tendas d’amplidão! 
Hoje... o porão negro, fundo, 
Infecto, apertado, imundo, 
Tendo a peste por jaguar... 
E o sono sempre cortado 
Pelo arranco de um finado, 
E o baque de um corpo ao mar... 

Ontem plena liberdade, 


A vontade por poder... 
Hoje... cúmulo de maldade, 
Nem são livres p’ra morrer. . 
Prende-os a mesma corrente 
— Férrea, lúgubre serpente — 
Nas roscas da escravidão. 
E assim zombando da morte, 
Dança a lúgubre coorte 
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Ao som do açoute... Irrisão!... 

Parte VI

Existe um povo que a bandeira empresta


Pr’a cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
258 Que impudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...

Auriverde pendão de minha terra,


Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!


Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!...
...Mas é infâmia de mais... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!

Segundo Ato
Juliano Lobão, do Comitê Interinstitucional de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas, denuncia o crime de tráfico, conforme definição do Protocolo de Palermo,

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ratificada pelo Decreto Nacional nº 5.948, de 26 de Outubro de 2006, que instituiu a
Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. (Bianca Pyl, Repórter
Brasil, 2011)

Bolivianos são encontrados em oficinas de costuras clandestinas vivendo em situação


equivalente à escravidão em São Paulo produzindo mercadorias para as Lojas Marisa
e Casas Pernambucanas. (Tarso Veloso. O Estado de São Paulo, 07/04/2011)80% dos
Africanos que vivem no Brasil são refugiados, muitos deles sem documentos de prote-
ção à permanência na cidade de São Paulo. (Jason Parle. Folha de São Paulo, 2010) 259

Quais as simbioses existentes entre a indignação de Castro Alves em 1868 e a de repór-


teres, advogados e religiosos na primeira década do século XXI? Como entender que
passados mais de um século das lutas abolicionistas enfeixadas por escravos e libertos,
com apoio de intelectuais, advogados e parlamentares, as liberdades não tenham se con-
solidado como valores fundamentais em nosso país? Trata-se de fenômeno da natureza
dos brasileiros? Dependem de atitudes individuais? Como reverter os condicionantes
históricos dessas intolerâncias e violências que não deixam de aparecer na cena pública?
E as solidariedades?

Desenlace

Intolerância em decorrência do autoritarismo

Há entre os historiadores e cientistas sociais brasileiros um debate que se reproduz nos dife-
rentes trabalhos sobre o caráter das relações políticas, do Estado e dos organismos da socie-
dade a respeito de nossas tradições: totalitárias ou autoritárias. Essa polaridade, entretanto,
não descarta a existência das intolerâncias que se reproduzem nos mais variados âmbitos da
vida social e política revelando dimensões dos preconceitos e da ignorância sobre o outro,
o diverso, a quem se deve o reconhecimento do eu, ou seja dos traços particulares de per-
tenças que se destacam nas relações sociais tendo por base os fundamentos da alteridade.
Mario Stoppino (1998, p. 93-104), responsável pelo verbete autoritarismo no Dicio-
nário de Política de Norberto Bobbio, afirma que:
Psicologia,Violência e Direitos humanos

[…] são chamados de autoritários os regimes que privilegiam a autoridade governa-


mental e diminuem de forma mais ou menos radical o consenso, concentrando o poder
político nas mãos de uma só pessoa ou de um só órgão, colocando em posição secundá-
ria as instituições representativas.

Diferente do totalitarismo que impõem limites rígidos e busca destruir as capacidades


políticas de todos em relação à vida pública, pela desagregação de grupos e instituições
que formam o tecido das relações dos homens, privando-os de seu próprio eu, conforme
260 estudado por Hannah Arendt (1998), o autoritarismo se rege por simulacros de participa-
ção, definidas por formas de controles aparentemente participativos. Nele, as divergências
desaparecem, pois a vontade do soberano impõe-se ao conjunto social por normas exclu-
sivas, já que as manifestações, quando existem, não são levadas efetivamente em conta.
Em nossa tradição, o autoritarismo é estrutural e institucional, uma vez que na tra-
jetória política do Brasil o poder pessoal, as ambiguidades do liberalismo e o patrimonia-
lismo definiram a formação social e política nos primeiros tempos. Autoritarismo e patri-
monialismo transportados de Portugal se impuseram no vivido da Colônia. A escravidão
dos indígenas e depois dos africanos alimentou a exploração e a expropriação e firmou
a hierarquia como um valor diferencial entre os homens e os não homens. Coerção, re-
pressão e violência compõem a tríade registrada por cronistas e religiosos como o Padre
Antônio Vieira que, em sermões, referiu-se ao trabalho dos escravos como o gênero de
vida mais parecido como a Paixão de Cristo.
Esse sistema permitiu que a violência se estendesse do escravo ao pobre livre, pois ela
servia à manutenção da ordem, amparada pela recorrente força das armas ou do cacete,
com as quais se fazia a apropriação das terras das populações tradicionais ou das áreas de
posses. Essa violência de origem é continuamente atualizada pela ação de jagunços ou pis-
toleiros profissionais, denunciados pelos meios de comunicação, tendo seus mandantes
permanecido impunes nos diferentes momentos históricos. Evidentemente, essa forma-
ção social se espraia para outros segmentos da sociedade e envolve inclusive a estrutura
da família brasileira, que apresenta também, em diferentes ângulos, violências continuas.
Podemos afirmar, portanto, que o autoritarismo estrutural desta formação históri-
ca se tornou também institucional, pois fez parte do regime jurídico que se manteve na
legislação desde o século XIX. A descolonização e a proclamação da República se fize-
ram graças ao autoritarismo institucional e ao estrutural respectivamente. Constituição
outorgada, poder moderador, golpe da maioridade, expansionismo sobre as fronteiras.
Ao mesmo tempo, monarquia e escravidão mantidas para o conforto dos proprietários

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de terras. O liberalismo foi considerado por Sérgio Buarque de Holanda (1985) como o
mau humor dos liberais históricos contra os conservadores. Depois da crise do tráfico de
escravos, em meados do século XIX, a imigração europeia para o trabalho rural e urbano,
sem direitos e golpe militar para a implantação da República.
No novo regime, controles do espaço, pelo deslocamento dos moradores da orla,
no Rio de Janeiro e sua inserção nos morros, higienização e intervenção sobre o corpo e
criminalização dos protestos (CHAlHOUB, 2001). Além desses atos, por si só explícitos,
sobre o autoritarismo, entram em cena os militares graduados nas ações e intervenções
261
políticas e os de baixas patentes no protesto. Ao longo de toda a Primeira República, a
repressão foi utilizada contra os trabalhadores rurais e urbanos que insistiam em se orga-
nizar e ter remuneração pelo trabalho realizado.
O Golpe de Estado em 1937, que se fez com apoio e direção das forças armadas a
partir de um fato forjado pelo futuro Ministro da Guerra, impediu o funcionamento da
Constituição promulgada em 1934, ela mesma fruto do hibridismo, pois liberal no pla-
no da política, mantinha o intervencionismo na economia. Com o golpe, estruturou-se
ação coordenada entre a polícia política e o executivo, que, ao fechar o Congresso, pôde
perseguir os imigrantes italianos, alemães e japoneses ao criar campos de confinamento
para esses prisioneiros que se viam impedidos de se expressar por suas línguas e demais
costumes e impedir os trabalhadores de se organizarem livremente pelos direitos traba-
lhistas. Criação do Departamento de Imprensa e Propaganda e ampliação da esfera de
ação da repressão, ao mesmo tempo que o Presidente Getúlio Vargas, por um mecanismo
de difusão radiofônica, passou a se apresentar como pai dos pobres.
Mesmo depois do fim do Estado Novo e da queda de Vargas em 1945, essas forças auto-
ritárias ensaiaram novo golpe e tentaram se interpor contra o presidente eleito em 1955, que
paradoxalmente, para tomar posse contou com um contragolpe em defesa da legalidade1.
Mas foi em 1964 que o autoritarismo se estruturou de modo cabal nas instituições
brasileiras. Golpe a mano militari, que durou vinte e um anos, a chefia do executivo exer-
cida apenas por general do exército, de quatro estrelas, indica seu centralismo estruturan-
te. Além disso, o governo impôs um conjunto de atos institucionais pelos quais se impe-
dia o funcionamento do regime jurídico constitucional, portanto, as eleições e a escolha
dos presidentes definidas por um grupo restrito de parte do setor militar no poder. Pela
Lei de Segurança Nacional, além do vigiar e punir2, também se procedeu a hipertrofia do
executivo, retirando-se da alçada do Parlamento qualquer possibilidade de interferência
Psicologia,Violência e Direitos humanos

da sociedade civil nos destinos da nação.


Os direitos constitucionais dos Estados da Federação foram violados e a governança
se fez por Decretos-Leis, que impuseram censuras, prisões, cassações de mandatos parla-
mentares, executivos estaduais e municipais e a suspensão de direitos políticos. O arbítrio
foi intenso e a ação do poder judiciário, restringida frente aos desmandos cometidos. Fo-
ram suspensos o habeas corpus e os mandados de segurança. A violência apareceu como
método e o autoritarismo seu estilo. Para Octávio Ianni (1996), o autoritarismo no Brasil,
quando visto do ponto de vista histórico, pode ser entendido como uma espécie de con-
tra-revolução burguesa permanente. Foi por esta análise que o historiador José Honório
262
Rodrigues (1965) conceituou o liberalismo brasileiro como autoritário, pois sua forma
política se fez por meio da conciliação pelo alto, cujas reformas se limitavam a frear os
ímpetos e interesses populares. Sérgio Buarque de Holanda (1985) foi mais longe, quan-

1 Eleito em 1955, Juscelino Kubitschek só tomou posse por um golpe preventivo liderado pelo Marechal Henrique Teixeira Lott.
2 Definido por: FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1975.
do analisou a fragilidade ideológica do republicanismo desse grupo como já afirmamos
anteriormente, decorrente do mau humor do liberalismo histórico. Ou seja, a República
permaneceu como res privada e o espaço público restrito aos ditames dos donos do po-
der. Para Rodrigues (1965),
o espírito antirreforma dominou nossa história, e a conciliação formal, partidária,
visava romper o circulo de ferro do poder para que as facções divergentes, os dissiden-
tes, pudessem dele fazer parte. Quando o acordo, feito sempre sem nenhum benefício
nacional e popular demorava muito, os dissidentes indignavam-se e conspiravam. Foi
esse o papel dos liberais na história brasileira. Derrotados nas urnas e afastados do
poder, eles foram se tornando, além de indignados, intolerantes, e construíram uma
concepção conspiratória da História, que considerava indispensável a intervenção do
ódio, da intriga, da impiedade, do ressentimento, da intolerância, da intransigência,
da indignação para o sucesso inesperado e imprevisto, tal como sucedeu em várias
partes de suas forças minoritárias.

Assim, o estilo paranoico na política liberal brasileira foi, de certo modo, o campo fértil
para que o autoritarismo antipopular se introjetasse não apenas no seio da classe domi-
nante, mas em parte significativa dos intelectuais e das classes médias, sempre fiéis aos
projetos de dominação pela força contra os pobres, os dependentes de políticas públicas
para o desenvolvimento de cidadanias que deveriam estar amparadas numa democracia
contínua e ampliada.

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Ao se utilizar do adjetivo paranoico, Rodrigues (1965) diagnostica tal comportamen-
to na crença ilusória da superioridade que este grupo tem de si sobre os que pensam dife-
rente. Foi dessa reflexão que o autor percebeu que para esse grupo há uma presciência das
elites, por se considerarem os melhores, acreditarem que enxergam além do que o povo
pode perceber e, por se sentirem responsáveis pela recuperação moral do país. Por isso, ao
serem repudiados pelas urnas, essas minorias reagem acusando os adversários como au-
tores de fraudes, e desqualificando os eleitores em geral que, por estarem constantemente
equivocados, votam contra os melhores candidatos, os únicos salvadores da pátria. 263
Para essas elites, o povo sempre erra. Por verem o povo não como ele é, mas como
gostariam que ele fosse, as elites passam a agir contra eles. Nesses momentos, apelam aos
sabres por se sentirem perseguidos e por uma evidente teoria conspiratória da história.
Essa desqualificação do povo fez com que constituíssem programas educacionais com
conteúdo pretensamente civilizatório, cuja tarefa seria regenerar o povo bárbaro. Mani-
festando contínua ignorância sobre o povo e seus valores, as elites desprezam as solida-
riedades dos homens simples e, por seus preconceitos, traçam políticas que impedem a
incorporação dos pobres, dos trabalhadores ao espaço do poder.
Para Tendler, (2011, p. 103) Glauber Rocha
considerava a vanguarda intelectual brasileira é colonizada pela ideologia norte americana! O
Movimento do Cinema Novo, que era importante nos anos de 1960 e criou o cinema brasileiro,
[…] esse movimento foi destruído por várias correntes que se entregaram à pornochanchada ou
ao subcinema comercial, negando o papel desse movimento no desenvolvimento de uma nova
estética e uma nova técnica voltada para a descoberta do sentido radical do Brasil profundo.

Milton Santos (em Fragmento do filme Encontro com Milton Santos, apud TENDLER,
2011, p. 168), afirmou:
Eu creio que é difícil ser negro e é difícil ser intelectual no Brasil. Essas duas coisas
juntas, dão o que dão. É difícil ser negro porque, fora das situações de evidência, o co-
tidiano é sempre muito pesado para os negros. É difícil ser intelectual porque não faz
parte da cultura nacional ouvir tranquilamente uma palavra crítica. Nós decidimos
ser europeus e insistimos em ser europeus. Nos recusamos a pensar como nós próprios
porque achamos mais chique pensar como os europeus e os americanos, e aí temos
uma enorme dificuldade para entender o mundo, e essa enorme dificuldade nos deixa
Psicologia,Violência e Direitos humanos

meio atarantados, meio tolos diante da história que se está fazendo.

De fato, se desejarmos escapar à crença de que este mundo assim apresentado é ver-
dadeiro e não querermos admitir a permanência da percepção enganosa, devemos
considerar a existência de, pelo menos, três mundos num só. O primeiro seria o mundo
tal como nos fazem vê-lo – a globalização como fábula. O segundo seria o mundo tal
como ele é – a globalização como perversidade. E o terceiro, o mundo tal como ele pode
ser – uma outra globalização.

264
Do autoritarismo estrutural e institucional, difundem-se os valores da classe dominante
que ganham hegemonia no campo simbólico e definem comportamentos machistas e
sexistas que se interpõe contra os diferentes. Agressões a negros e a homossexuais são
hoje recorrentes à luz do dia e em frente às câmeras de controle instaladas nas vias pú-
blicas. Grupos agridem e matam moradores de ruas nas madrugadas na cidade, milícias
e comandos criminosos instalam-se nas favelas e bairros populares impondo o medo e
recrutando moradores para o crime organizado. Diferentes facções de criminosos divi-
dem os bairros e se territorializam realizando os negócios do tráfico de drogas e armas.
Quando o Estado que detém o monopólio da violência entra para impor a ordem, o saldo
da ação é a identificação de uma quantidade de mortos muitas vezes sem nenhuma ficha
criminal, fundamentalmente jovens e crianças.
Reféns de intolerâncias cada vez mais amplas, os violados organizam-se em defesa de
uma cultura da paz e buscam criar alternativas para romper com o círculo vicioso da rela-
ção entre a pobreza e a violência. Acostumada com o massacre dos pobres, a sociedade civil
se manifesta e a mídia repercute quando os atingidos pertencem aos outros setores sociais.

As solidariedades na formação histórica brasileira


Na formação histórica brasileira, muitos foram os subterfúgios utilizados pelos oprimidos
para sobreviverem à extrema violência senhorial. Fugas, embrenhamentos pelos matos,
deslocamentos para regiões invisíveis nas florestas, rebeliões e guerras são registros de
nativos e africanos para livrarem-se da escravidão. Várias foram as vitórias dos escravos
para a conquista das liberdades. Entretanto, a aceitação tácita da versão do poder fez com
que historiadores indolentes deixassem os acervos intactos reproduzindo a versão da ou-
torga da liberdade pelo poder. Ao invés de nomear os líderes das conquistas parciais, as
homenagens foram dirigidas à Princesa Regente, especialmente porque houve muitos

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dias de festa no Rio de Janeiro quando da assinatura da Lei Áurea. Esses dias de quebra do
cotidiano foram registrados como agradecimento à redentora Izabel, não como tomada
do espaço público pelos que lutaram pelas liberdades.
A extinção do tráfico e as leis de terras possibilitaram a vinda de grandes contin-
gentes de pobres europeus e os escravos passaram a reivindicar espaços de liberdade e
alforrias, especialmente os de ganho e libertos, assim como brancos pobres entre os quais
podemos agregar os desgarrados dos núcleos coloniais que perambulavam pelas ruas em
cidades como Salvador, Recife, São Paulo e, especialmente, no Rio de Janeiro. 265
Maria Silvia de Carvalho Franco (1974), estudou o lugar e o papel dos homens li-
vres na sociedade escravista desvendando um conjunto de práticas de sociais, costumes e
produção da sobrevivência existentes fora dos marcos reguladores da escravidão. Maria
Odila Dias, em Quotidiano e Poder (1995), destacou papel das mulheres quituteiras que
abasteciam a cidade, sendo responsáveis pelo sustento de filhos e netos na Província de
São Paulo. Sylvia Lara encontrou em Campos da Violência (1998) negócios e pequenas
fortunas advindas de atividades dirigidas por negros libertos, em um cotidiano pleno de
violência. Ilana Blaj, em A trama das Tensões (2002), realizou profunda revisão na litera-
tura que consagrou São Paulo como uma província de pobres rebeldes, desprovidos de
projetos e interesses no mando político do país, destacando um conjunto de negócios e
fortunas que se contrapunham à miséria dos mamelucos e demais pobres que perambu-
lavam pelos núcleos e nas várias regiões da Província.
Sydnei Chalhoub em Visões da Liberdade (2005) e na obra Trabalho, Lar e Bote-
quim (2001) desvendou um conjunto de práticas sociais que ficaram apagadas nos es-
tudos realizados pelos historiadores. Destacou as formas de sobrevivência de escravos,
libertos e imigrantes, quer como trabalhadores, desempregados ou gatunos; as relações
entre patrões e empregados, senhorios e inquilinos; as vivências amorosas e as disputas
entre os camaradas da estiva, por mulheres da gandaia, trabalhadoras e comadres, mas
também, o como as escravas recorreram à justiça para denunciar seus senhores de as te-
rem prostituído, quando a prática passou a ser considerada crime.
Para verificar as complexas relações que se desenvolveram no meio social e as mui-
tas representações do tema da violência, especialmente os processos crimes, foi sendo
verificada a documentação judicial que permitiu encontrar a voz dos pobres e desvendar
que, de certa forma, a representação da violência migra de um estatuto moral para ser
considerado como da natureza humana das classes perigosas. Assim, nasce a cultura do
Psicologia,Violência e Direitos humanos

medo que torna negros e pobres como portadores do mal. Ao desvendar o modo de vida
e as solidariedades entre esses grupos demonstramos como eles conseguem, em meio às
inúmeras adversidades, manter valores como a cooperação, a honra, a dedicação ao tra-
balho e a alegria. Ao tratar dos processos crimes ocorridos na cidade do Rio de Janeiro,
Chalhoub acompanhou as lutas, os conflitos e as solidariedades que se desenvolveram
entre os trabalhadores nos morros e na cidade, formando um novo modo de morar que
persiste nos dias atuais, apesar das profundas modificações realizadas nesses lugares.
No campo e nas cidades, as lutas dos trabalhadores foram intensas e suas formas
organizativas contaram com as experiências vivenciadas nos lugares de origem e no próprio
266
país. Greves nas fazendas de café e nas fábricas, edição de jornais em língua dos países de
origem e em português, encontros e congressos para estabelecer as estratégias de reversão da
violência do trabalho e da miséria foram contínuas. Entre 1905 e 1917, as greves produziram
a ocupação do espaço público e a denúncia da situação de mulheres e crianças no trabalho.
As organizações se multiplicaram e o anarco-sindicalismo projetou um novo modo
de pensar, formar e produzir em algumas cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Fá-
bricas insalubres, fios de qualidade questionável, teares impossíveis de tecer no ritmo
intensificado do trabalho e nas dimensões das peças eram denunciados nas pautas de
reivindicações. As palavras de ordem passaram a ser: pão, terras e bibliotecas! Com a
presença dos jornais e dos espaços de manifestações públicas, desenvolveu-se a cultura
operária que integrou os trabalhadores em novos processos sociais. Conferências, organi-
zação e lazer foram constantes e os registros apontam o amplo conteúdo de experiências
intercambiadas nos bairros, nos cortiços, moradias coletivas cujo grau de sociabilidade e
de solidariedade garantiam convívios e festas.
A apropriação da memória das lutas, estratégia das elites para se arvorarem em de-
fensoras dos violados, fez parte dos mecanismos de constituição da ideologia da presci-
ência, portanto, da necessidade de conter o clamor do povo e manter a ordem para a lenta
e gradual inserção desses grupos ao construto jurídico do país (IOKOI, 2006). Mas, ao
longo dessa história, as chamadas classes perigosas só foram consideradas quando levadas
pelas extremas dificuldades, puderam engendrar formas de organização e de cooperação
entre si, ocuparam os espaços públicos, sofreram repressão e morte, para que finalmente
suas expectativas de direitos rompessem o silêncio. As conquistas de pequenas vitórias no
campo do trabalho e dos direitos sociais foram fruto de muita participação, demoradas
negociações com lideranças locais e regionais e cobrança de favores nos pleitos eleitorais.
Entretanto, é necessário afirmar como as relações sociais de cooperação entre vizi-

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nhos têm desempenhado papel fundamental na vida cotidiana das regiões da pobreza ex-
trema. Destacamos o papel das mulheres mais velhas no cuidar das crianças, como avós
ou apenas cuidadoras; das lavadeiras, das camponesas no desenvolvimento de atividades
consideradas menores, como D. Maria, matriarca do clã da comunidade de Pilões, no
Vale do Ribeira, ao se referir aos filhos que deixavam o lugar para trabalhar em serviços
urbanos: “pois é moça, hoje ninguém quer trabalhar, só ganhar dinheiro. Meus filhos não
sabem fazer sabão, cuidar dos meninos, plantar! Só querem ganhar dinheiro”.
Para essa moradora de uma comunidade quilombola, trabalho significa produção
267
para a vida, e ganhar dinheiro tira os filhos do contato diário com as lides no arraial, no
pasto, no fazer o necessário para uso, o fim do trabalho e a desagregação do bem viver.
Importante também destacar como os moradores da favela do Heliópolis consegui-
ram um processo de auto-organização para pôr fim à violência, integrar os jovens em
atividades criativas na rádio comunitária, nas três orquestras que se formaram a partir
da solidariedade do Maestro Baccarelli, que se ofereceu aos moradores, seu trabalho, de-
pois de um incêndio que destruiu quase a totalidade dos barracos com a perda de muitas
vidas. Mas, também é possível perceber movimentos criativos como o autorregistro de
histórias locais inteiramente concebidos pelos próprios moradores, ou atividades de di-
vulgação como as da Coperifa, na zona Sul de São Paulo, saraus realizados pelos morado-
res no Bar do Seu Zé, para que a população local possa apresentar seus textos literários e
debater com os participantes as diferenças e as conexões dessa produção e com as obras
da literatura universal clássica.
Outro exemplo está nos projetos educacionais criados pelo Movimento Sem Terra
(IOKOI, 1996), desde a Ciranda onde os sem terrinhas aprendem a partir dos elementos
de seu próprio vivido até a construção e a concepção pragmática de teoria e prática da
Escola Florestan Fernandes, em cujo ensino superior se realiza a integração político-filo-
sófica no desenvolvimento das formações ali desenvolvidas. As solidariedades também
se fizeram por projetos mais estruturais, como as lutas contra o domínio de latifúndios
improdutivos ou da expansão da monocultura nas terras de pequenos produtores, ou
ainda, nas áreas de demarcação indígena (IOKOI, 2005).
Vale a pena destacar que essas lutas atuais beberam nas experiências contínuas dos
trabalhadores e nos movimentos de resistência às duas longas ditaduras impostas por
golpes e contragolpes. Ao assumir o espaço público e expor as necessidades e os direitos
os trabalhadores se fizeram visíveis por diferentes formas, mas todas elas permitiram re-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

cuperar outras dimensões históricas, negadas pelos donos do poder que fizeram e ainda
fazem um enorme esforço para criminalizar os movimentos sociais. Sejam eles de lutas
contra a carestia, por emprego e remuneração, por moradia, educação, saúde e lazer. Mas,
a marca do protesto popular e das narrativas que apontam outras possibilidades de com-
preensão do papel dos indivíduos no desenvolvimento do país e, da força de combate
desses muitos migrantes e imigrantes produtores das riquezas, nos leva ao compromisso
de registrar as muitas outras trajetórias e como essas presenças enriquecem as análises e
a compreensão sobre o passado.
Muitos morrem para deixar uma marca de protesto, uma denúncia de violação de di-
268
reitos, as intolerâncias que são ainda são intensas . Há aqueles que se apoiam em estruturas
religiosas, muitas delas produtoras de ilusões, como se a reversão das intolerâncias depen-
dessem da fé. Outros que buscam apoiar, registrar e denunciar as práticas intolerantes, têm
na cooperação e nas religiosidades estímulos para enfrentarem as dificuldades cotidianas,
especialmente as decorrentes dos deslocamentos de regiões e países, como as atividades dos
padres Scalabrinianos na Pastoral e na Casa do Migrante ou no Centro de Estudos Migra-
tórios, para destacar apenas os novos parceiros que se agregaram ao programa de estudo
das Migrações Contemporâneas em Cidades Globais sob minha coordenação.
Os registros dos que migram neste novo tempo da globalização apontam o ressur-
gimento de práticas consideradas improváveis nas relações de trabalho. A submissão do
humano a regimes equivalentes aos da escravidão, as rotas de deslocamentos nos mes-
mos espaços do narcotráfico, colocam pessoas nas mãos de preadores de mão de obra,
os coyotes – que tornam latino-americanos reféns de patrões que os exploram e expro-
priam. Os novos imigrantes, originários da Bolívia, do Peru ou do Paraguai destacam-se
nas paisagens da cidade e são discriminados ou acusados de roubarem os empregos dos
nacionais. Africanos pelos deslocamentos sazonais realizam comércio legal ou ilegal, ten-
do suas mercadorias apreendidas pela polícia. Refugiados das guerras são inseridos em
diferentes cidades pela mediação do Alto Comissariado das Nações Unidas. Novos sujei-
tos compõem o cenário da pobreza nas grandes cidades do país e vivem continuamente
práticas de discriminação e intolerâncias.
Mas, é preciso ainda destacar que não nos indignamos verdadeiramente contra a
banalização da vida. Aceita-se sem nenhum constrangimento a existência dos sem-teto,
dos desabrigados, dos que precisam de solidariedades em um novo modo de conviver.
Entretanto, também podemos criar sinergias em redes de conhecimentos, hoje possíveis,
se nos apropriarmos do fazer pelo uso das tecnologias da terceira revolução industrial.
Para Milton Santos (2011, apud TENDLER, 2011, p. 169-170):

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nunca na história da humanidade, houve condições técnicas e científicas tão adequa-
das a construir um mundo da dignidade humana. Apenas essas condições foram apro-
priadas por um punhado de pessoas que decidiram construir um mundo perverso,
reintroduzindo a super exploração do trabalho humano, a escravidão e a miséria mo-
ral de uma parte da humanidade.

Há circunstâncias que permitem compreender a necessidade de uma “globalização mais


humanizada” como sugerida também por Joseph Stiglitz (2002), ao propor algumas re- 269
formas para tornar a globalização mais justa e mais capaz de aumentar os níveis de vida,
sobretudo o dos pobres. Reformas essas que implicam não apenas alterações nas estrutu-
ras institucionais, mas também nas ideias a este respeito que têm de mudar.
É nesta lógica que desde há alguns anos tem emergido a necessidade de promoção
do desenvolvimento de forma a superar a visão marcadamente de natureza economicista,
e a consequente planificação de “cima para baixo”, que o caracterizou. Isto é, os progres-
sos econômicos devem ser acompanhados das melhorias sociais e culturais, porque o
desenvolvimento não pode ser encarado como um simples crescimento. Trata-se pois de
um fenômeno multidimensional que se exprime no bem estar e qualidade de vida das
populações. Na sequência das críticas dirigidas à perspectiva funcionalista da abordagem
do desenvolvimento, surgiram novos modelos com o intuito de articular a perspectiva
econômica com a social (integrando componentes como: saúde, educação, meio ambien-
te, condições de vida e de trabalho, etc.).
Estes novos conceitos do desenvolvimento são complementados por outros, quais
sejam: desenvolvimento local, desenvolvimento humano, desenvolvimento comunitário e
desenvolvimento social. Para além da aposta nos recursos endógenos, apelo à mobilização
e participação das populações locais, começaram a ser enfatizadas questões relacionadas
com a satisfação das necessidades essenciais dos indivíduos mais carentes, preservação de
todos os sistemas naturais – água, atmosfera, seres vivos, solos – que servem de sustentáculo
à vida na terra e o reconhecimento dos direitos humanos e à vida para todas as espécies.
É neste contexto que o conceito de desenvolvimento social eclodiu, cujas premissas
orientadoras foram definidas com base em princípios que a Conferência de Copenhague
veio consolidar em 1995. Esta reunião Mundial do Desenvolvimento Humano fazia parte
de um “ciclo de conferências patrocinadas pela ONU iniciado em 1992 com a do Ambiente
e terminou em 1996 com a Conferência dos Estabelecimentos Humanos (Habitat II). Com
Psicologia,Violência e Direitos humanos

esta iniciativa, as Nações Unidas pretendiam chamar a atenção mundial para a necessidade
de uma profunda alteração das políticas e comportamentos que contrariassem a ênfase ex-
cessiva no crescimento econômico, a persistência da utilização desmedida dos recursos na-
turais e o crescimento de situações de miséria e exclusão marcado nas décadas anteriores.
Foram definidos como pilares do desenvolvimento social a erradicação da pobreza
e a integração social com vista à construção de uma sociedade mais justa. Pressupostos
baseados na necessidade de conciliar o desenvolvimento econômico, a proteção do am-
biente e o desenvolvimento social. De igual modo ênfase na luta contra qualquer tipo de
descriminação, favorecendo os mecanismos de participação e associação das populações,
270
em particular as que se encontram em situações de inclusão perversa (MARTINS, 2002).
A solidariedade deve deixar de ser vinculada a programas assistenciais e se tornar
uma exigência, na formação de outro mundo. Neste momento, as histórias de vida das
populações dos rincões esquecidos, das populações urbanas, ainda submetidas a vio-
lências e sem direitos, ganharam relevo nas descobertas dos sonhos e necessidades dos
outros e têm apontado legitimidades não previstas nas estruturas jurídicas decorrentes
da insurgência pelo uso. Nessas narrativas, temos podido encontrar outros nexos não
apontados pela historiografia, de tal modo que, as oralidades nessas circunstâncias, são
elas mesmas epistemes.
A pesquisa em Ciências Humanas deve levar em conta essa exigência do nosso tempo
e criar redes de pesquisadores voltados ao estudo das potencialidades da vida nua, confor-
me definida por Giorgio Agambem (2010) e colher outras narrativas que demonstrarão
possibilidades infinitas da vida simples na reversão das histórias que apenas reproduzem
uma dimensão de valores e interesses restritos ao modo economicista de ver o mundo.
O totalitarismo nazista ou stalinista do século XX não pode ser substituído pelo
totalitarismo fundamentalista do mercado. O viver livre, o bem viver depende de outros
construtos socioculturais onde todas as vidas sejam garantidas e as singularidades desta-
cadas no enriquecimento dos muitos modos de viver com autonomia, já que preservadas
e difundidas as várias maneiras de viver, elas possibilitam empréstimos culturais de ou-
tros. Relembrando a canção de Luiz Carlos Sá e Sérgio Magrão interpretada por Milton
Nascimento, somos sempre estrangeiros de nós mesmos:

Caçador de Mim

Por tanto amor


Por tanta emoção
A vida me fez assim

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Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu caçador de mim

Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar 271
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mim
Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito a força, numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura
Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
O que me faz sentir
Eu, caçador de mim

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273
Democracia e utopias sociais:
sobre os problemas da razão e
da história na pós-modernidade

Eduardo C. B. Bittar

Introdução: sobre história e a falibilidade da teoria


A mundanidade humana é um cemitério de injustiças; a história reúne os cadáveres inse-
pultos, os vestígios mortais e as doses de letalidade dos movimentos de realidade humana.
Por isso, se somente podemos extrair potenciais de transcendência histórica a partir dos
quadros de teorias emancipatórias e experiências exemplares, também temos de avaliar se
as teorias fornecem os subsídios corretos e adequados para estas transformações. É sempre
reconfortante apegar-se a um paradigma, e enxergar a realidade sob a dimensão que se quer
Psicologia,Violência e Direitos humanos

prestigiar; no entanto, olhar a complexidade é mais difícil do que aceitar a simplicidade.


Superar, transcender ou transgredir esse quadro parece ser um desejo humano, des-
de longas eras, e uma pretensão de todos os sistemas de orientação do comportamento,
dos religiosos aos morais, dos políticos aos filosóficos. Sistemas filosóficos não são, por-
tanto, os únicos a se motivarem pelo impulso de transformação da realidade a partir de
um ideal. A modernidade construiu os seus, e muitos são o horizonte possível do pensar
em contraste com o estado de coisas. De qualquer forma, a pretensão de superar o estado
de coisas responde a uma justa pulsão de vida e autossuperação, na condição humana,
274 que exprime um desejo transformador que também revela um nobre sentimento. Mas,
essa pulsão tem de ser avaliada também por sua irrealidade.
A experiência de mundanidade envolve, na aceitação da falibilidade, o reconheci-
mento da pobreza de nossa condição. Se podemos exigir muito do pensamento, não po-
demos exigir muito dos outros, e da complexidade que se extrai dos processos de socia-
lização. A alteridade, a regulação da vida social, a complexidade de fatores em convívio
na atmosfera social contemporânea formam tempestades de sentido a impedirem a visão
clara do horizonte iluminista intacto. Quando a teoria social e a crítica do direito se dei-
tam os olhos sobre o seu objeto de pesquisa, devem admitir que viver em sociedade não
se faz por uma matemática, e é por isso que a teoria diante da realidade é falível; todo teó-
rico deve saber reconhecer que a teoria é também expressão de subjetividade, e, por isso,
de impotências, de incapacidades, de inabilidades, de desvios, que decorrem da própria
historicidade do sujeito racional.
Equívocos há inúmeros na história do pensamento. Adorno exagerou em seu juízo
devastador sobre o jazz, em sua Aesthetichetheorie, na mesma medida em que Platão, na
República, incentivava a eugenia de crianças deficientes em sua cidade ideal1. Por sua
vez, Aristóteles, na Política, legitimava a escravidão por natureza. Por isso, a descoberta
da fórmula teórica para a sociedade sempre corre o risco de ser a expressão de um sub-
jetivismo autoritário. Nesta mesma medida, cada sistema teórico, na história da filosofia,
é sempre o espelho de um autor e de uma época; isso coube a Hegel demonstrar com
clareza2. Mas, estas reflexões conduzem a um ponto crucial da discussão atual sobre a
racionalidade da filosofia; se a theoría é útil para iluminar a práxis, é também verdadeiro
que toda teoria tem o seu ponto-cego.
A filosofia crítica não se desincumbe da sobrecarga de reconstruir os horizontes da-
nificados da vida moderna, a partir da própria razão. Quando a experiência é devidamen-
te sopesada, é a razão que deve reduzir as suas pretensões. Ao desprender-se do que está
(statu quo), não pode pretender mentalizar para que simplesmente seja de outra forma,

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tratorando categorias prévias da experiência. É neste ponto que a história faz a diferença.
O limite das filosofias está na sua capacidade de erro, no seu incalculado, no seu conteúdo
necessário de inconsciência. A psicanálise e a hermenêutica bem o demonstram, e nesse
sentido, demonstram também o confinamento no qual está posto o sujeito moderno,
dentro de suas premissas de ação e pensamento racionais.
Por isso, se as utopias filosóficas alimentam transformações reais, também é ver-
dade que as utopias filosóficas se constituem a partir de verdades autoinoculadas. Neste
ponto, há que se reconhecer a falibilidade da filosofia, e nisso está um reconhecimento
275
necessário de uma castração parcial, que não prejudica a função mais ampla que a razão

1 Ademais, constata-se no pensamento contido na República, de Platão, forte tendência autoritária, como constata Wellmer: “[...] e
não poderia conduzir a outra coisa senão uma concepção repressiva de uma sociedade ideal” (tradução livre) (WELLMER. Finales
de partida: la modernidad irreconciliable, 1996, p. 51).
2 “Cada filosofia deveria ter aparecido assim no tempo conveniente, nenhuma poderia ter saltado sobre seu próprio tempo, mas
todas as filosofias compreenderam conceitualmente o espírito de sua época” (HEGEL. Introdução à história da filosofia, 1986, p. 48).
filosófica desempenha para a vida social. Que ela não seja um convite à inércia, mas que
sirva como autorrestrição narcísica às pretensões hipertróficas que são o nascedouro do
personalismo na filosofia política, e, portanto, a expressões concretas e heroicas das dita-
duras unipessoais e regimes totalitários. O mundo não será moldado à nossa imagem e
semelhança, e nem se converterá no espelho narcísico de si, por mais que isto deprima a
teoria, ou por mais que isto signifique um aparo letal à forma de constituição do Sujeito
moderno cartesiano (Sc), e ao antropocentrismo legado do início da vida moderna.

Diagnóstico da política e morte das utopias


As vias revolucionárias estão exauridas. Quando o sonho é grande, o retorno à realidade
pode ainda ser mais duro de ser administrado. É duro sentir a frieza e a dureza do chão.
Em verdade, do diagnóstico do tempo presente deve ser capaz de identificar, como tare-
fa filosófica, o grave déficit político das grandes democracias contemporâneas. Maio de
1968 já significou um sinal histórico da alteração do sujeito da história, não mais a classe
trabalhadora, mas o movimento estudantil, e as diversas lutas identitárias, em evidência.
Atualmente, pode-se computar: trabalhadores desorganizados, apatia política, burocra-
tização sindical, partidarismo de Estado, ascensão social das classes trabalhadoras como
consumidoras, desmobilização do movimento estudantil, desinteresse social pelas urnas,
elitização do debate democrático, promiscuidade entre interesses particulares e interesses
Psicologia,Violência e Direitos humanos

de Estado, entre outros fatores a condicionarem a sensação de exaustão utópica na atmos-


fera social. O individualismo apenas acirra essa sensação de distensão amórfica da vida
social (WELLMER, 1996). As conclusões de hoje são as mesmas da década de 1920, do
século XX, que deram nascimento e motivação ao nascimento da assim chamada primei-
ra geração da Escola de Frankfurt.
Por isso, quando se trata de pensar à sombra do Muro de Berlim, é para se considerar
importante tê-lo, de fato, em consideração, quando se calculam os riscos políticos dos pro-
jetos sociais utópicos contemporâneos. Não é mais possível voltar a colar os cacos do Muro
276 de Berlim. Em A condição política pós-moderna, Agnes Heller e Ferenc Féher (1998, p. 14)
afirmam: “Qualquer tipo de política redentora é incompatível com a condição política
pós-moderna”. Nestes tempos, é sintomático que o anarquista-libertário de Maio de 1968,
Daniel Cohn-Bendit, em recente entrevista, afirme: “Em 68, queria a transformação da
sociedade por processo revolucionário, mas isso só é possível dentro das instituições democrá-
ticas”. Em seguida, vem o seu: “Esqueçam 68!”, bradado em 27 de agosto de 2010, em Porto
Alegre, no Brasil. A depressão social e a sensação de falência da crítica estão intimamente
associadas a esta condição na qual impera a impotência transformadora. Mas, a maior
demonstração de equilíbrio teórico se encontra nas palavras de Slavoj Zizek (2010, p. 47):
Se for esse o caso, talvez a decepção pós-comunista não deva ser descartada como sinal
de expectativas imaturas. Nos protestos contra os regimes comunistas no Leste Euro-
peu, as pessoas, em sua maioria, não pediam o capitalismo. Queriam solidariedade
e um tipo bruto de justiça, queriam liberdade para viver suas vidas fora do controle
estatal, queriam se reunir e falar do jeito que bem entendessem, queriam se libertar
da doutrinação ideológica primitiva e da hipocrisia. Aspiravam a algo que podia ser
melhor descrito como ‘um socialismo com face humana’. Talvez essa opinião mereça
uma segunda chance.

Há utopias antigas, medievais, modernas, sendo que a morte da busca de uma utopia
social universal marca a questão social e filosófica pós-moderna, como cenário de reava-
liação e estagnação imagética, no interior da autorreflexão crítica sobre a vida moderna.
Aí está implicada a discussão sobre a morte da razão ocidental, depois de Adorno. Em seu
livro de 1985, Sobre a dialética entre modernidade e pós-modernidade (Zur dialektik von
Moderne und Postmoderne), Albrecht Wellmer (2004, p. 49) afirma:

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[…] trata de se articular a consciência de que se está no umbral de uma época cujos
contornos são ainda confusos, pouco claros e ambíguos, mas cuja experiência central,
no entanto – a norte da razão – parece apontar ao final definitivo de um projeto his-
tórico: o projeto da modernidade, o projeto da Ilustração europeia, ou inclusive, por
último, o projeto da civilização greco-ocidental. (tradução nossa)

Mas, as utopias continuam representando um papel fundamental de renovação social, pois


os cenários históricos tendem a se acrisolar; se não são modificados pelos homens em 277
ação, são modificados pelo caráter implacável da história; a história aqui é mais do que
a história dos homens, e mais do que o conceito que possamos atribuir a ela. Por isso, a
história tem de assumir um novo sentido, e isso significa a aposta em novas utopias sociais.
Os arcanos modernos da ideia de revolução
A ideia de revolução como forma de transformação radical da vida social é uma invenção
moderna. A ideia de revolução funciona como um estopim transformador para o redi-
mensionamento da realidade social, em direção a utopias constituídas no ambiente da
razão e dos valores sociais historicamente predominantes. Como categoria nascida dos
ideais do pensamento moderno, é um fruto da razão moderna, e, portanto, uma forma
de construir uma arquitetura que siga os padrões de uma lógica linear, através da qual
se constrói o panorama da vida social, segundo imposições da formalidade lógica e do
rigor do pensamento. Não é coincidência que a própria filosofia da história seja um fruto
do pensamento moderno, e que o fim da filosofia da história construa a derrocada das
perspectivas de “terminação da história”, por uma narrativa que esteja acima de sua lógica
própria, que os modernos tentaram decifrar, dando ensejo ao que se tem convencionado
chamar de contexto pós-moderno (BITTAR, 2005).
Através da revolução, ao conjunto das injustiças sociais, se responde com uma for-
ma de intromissão transformadora da história, como meio de alteração completa das
condições de exercício do poder, fato este que altera a equação entre liberdade e po-
der. Daí, as margens da utopia se inscreverem como consolação a posteriori de todo o
processo revolucionário; a conduzir os revoltosos estão um conjunto de construções
racionais indicativas de um caminho erguido por diretrizes racionais em torno das quais
Psicologia,Violência e Direitos humanos

devem girar as ações históricas modificadoras das condições sociais. A filosofia da histó-
ria assume um papel de redentora da história, a iluminar o futuro, coberta de dúvidas e
trevas, convidando os homens a construírem a história, num mundo, enquanto moder-
no, laicizado e despido de ideais.
As utopias revolucionárias estão contaminadas por aquilo que pretendem superar.
As revoluções modernas revolucionam, mas não atacam o coração do problema da orga-
nização social: o poder. As revoluções modernas, historicamente passadas, apenas trans-
feriram o poder de mãos, e, por isso, não conseguiram pôr fim ao problema da relação de
domínio mantida entre indivíduos. Não por outro motivo, a modernidade produz catás-
278
trofes humanas inomináveis como o Holocausto. Em Uma crise global da civilização: os
desafios futuros, no pensamento de Agnes Heller (1999, p. 20), se encontra a afirmação,
segundo a qual: “O totalitarismo foi – ou é – uma entre elas nascido na Europa, ele é o
filho intelectual feio da modernidade, mas é absolutamente moderno”. Na mesma linha
de análise, considerando o saldo do século XX, no capítulo “O significado do processo
civilizador”, de Modernidade e holocausto, o sociólogo Zygmunt Bauman (1998, p. 32)
afirma: “A civilização moderna não foi a condição suficiente do Holocausto; foi, no entan-
to, com toda a certeza, sua condição necessária. Sem ela, o Holocausto seria impensável.
Foi o mundo racional da sociedade moderna que tornou possível o Holocausto”.

Crise da razão e fragmentação das utopias


A radicalização da modernidade conduz à maximização da instrumentalidade. O pro-
jeto de renovação, ou de revisão da modernidade, deve passar pelo crivo da crítica dos
excessos que nela estão embutidos, o que revela que a modernidade levada à sua má-
xima potência conduz a humanidade à sua autodestruição, pois junto ao seu lado luz,
habita o seu lado sombra. A modernidade radicalizada não é sinônimo de liberdade,
e nem de igualdade.
E isso porque a tentativa revolucionária de libertar a modernidade da razão instru-
mental pode ela mesma representar uma forma de instrumentalização. As revoluções
liberais são formas mesmo de realização desse processo, e consagram a plenificação da
vida moderna aprisionada pela técnica e encapsulada pelo poder alienador. Por isso, a
face oculta da modernidade impede de se desejar mais modernização.
Apesar da modernidade não estar finda, e apesar da modernidade não poder ser su-
perada senão pelos seus próprios meios, e em seu interior, a visão dialética deve impedir
que a teoria se socorra da ação voltada a fins para realizar emancipação histórica. Esses

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são problemas que uma teoria contemporânea da transição não pode ignorar, e dos quais
deve dar conta, se pretende propor a finalização da opressão de classes.
Quando se visita, historicamente, este tema, percebe-se que há graves questões incu-
tidas na discussão sobre a racionalidade moderna em jogo, tornando-se, por isso, oportu-
no rever seus ditames e formatos.
A razão moderna foi feita de excessos e é essa história que é necessário superar.
A pretensão de onipotência da razão moderna deve ser revista, para ser criticada e
superada. Muitas das utopias modernas foram constituídas a partir destas pretensões 279
racionais, e um exemplo claro se colhe nos ideais libertários cujos excessos estão cla-
ramente motivados pelo idealismo racional moderno. O incalculado de todo o projeto
racional moderno é a possibilidade de se tropeçar com o outro, este humano-diverso-
-oposto-complementar a incomodar a acomodação de objetivos racionais, entre a ação
imediata e os resultados almejados.
Precisamos avaliar a evidência de que o processo civilizador é, entre outras coisas,
um processo de despojar a avaliação moral do uso e exibição da violência e emanci-
par os anseios de racionalidade da interferência de normas éticas e inibições morais.
(BAUMAN, 1998, p. 48)

Por isso, os abusos do planejamento social moderno estão estritamente ligados com a
imprevisão ou com a negação do lugar político do outro.
A questão é do limite da razão, e, por isso, do limite da ciência, que não pode prever,
e, por isso, apesar de antever racionalmente, jamais é capaz de controlar as consequências
e os resultados históricos. Existe, por isso, uma opacidade hermenêutica perspectiva da
ciência que a impede de ver adiante. Ao se pretender descrever o tracejado da sociedade
almejada, atividade esta de possibilidade remota e inalcançável, se incorre em erro. Todo
arquiteto erra ao dimensar mal entre o planejamento e a realidade de execução da obra.
Daí a limitação a que se entregam as ciências sociais, após o fim da filosofia da história.
A consciência dessa problemática, no entanto, é clara ao pensamento novecentista
do anarquismo. Em Questões de tática, texto saído no Almanaco libertário, em Genebra
(1931), de autoria do anarquista italiano Errico Malatesta (2004, p. 35), lê-se:
Negligenciar todos os problemas de reconstrução ou preestabelecer planos completos e
uniformes são dois erros, dois excessos que, por vias diferentes, conduziriam à nossa
derrota enquanto anarquistas e ao triunfo de novos, ou antigos, regimes autoritários.
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A verdade está a meio caminho.

Mesmo para as correntes anarquistas libertárias, que apostam grandiosamente na força


da liberdade humana e da solidariedade pós-revolucionária, a racionalidade que define
a sociabilidade futura é indescritível. Da desordem completa à ditadura autoritária, tudo
pode se dar, a partir do momento em que se detona uma ação revolucionária.
Por isso, inexistindo uma visão política clara do que seja o processo político pós-re-
volucionário, tudo o demais se torna alvo da oportunidade e da conveniência das forças
280 políticas predominantes. Daí o elevado risco revolucionário ter de ser visto com cautela
e prudência. O grande problema das revoluções se encontra na reconstrução da ordem
social. A remontagem racional da ordem social pode escapar à capacidade filosófica e
sociológica de prever a influência de outros fatores no processo de condução dos ideais
revolucionários. Platão foi vendido como escravo; Danton e Robespierre foram guilhoti-
nados; Trotski foi perseguido e morto; Pachukanis foi preso, condenado e executado. As
revoluções são também muito injustas para com seus próprios teóricos.
Na crítica da razão deve-se ter presente que a posse de certezas infalíveis e a constru-
ção de universais inquebrantáveis fazem parte do universo de formas-mortas da moder-
nidade. Há que se impor dúvidas em torno dos pensamentos enrijecidos e que ressoam
não terem dúvidas, uma vez que o poder pode levar a ação em direção a fins, desprezan-
do-se os meios, tudo, inclusive, em nome de certos ideais. Ao estudar o tema da razão to-
talizadora, é o teórico alemão frankfurtiano Albrecht Wellmer (2004, p. 52) que, citando
Frederic Jameson, afirma: “Frederic Jameson vê nessa renuncia pós-moderna à violencia
de uma razão totalizadora a oportunidade de um novo conceito de totalidade por assim
dizer dialógico, pós-moderno” (tradução nossa).
Por isso, o atual exercício de reflexão crítica sobre a modernidade não envolve a
ressuscitação dessas “formas-mortas”, mas a construção de novas formas historicamente
situadas e relevantes de pleito por emancipação e justiça. O nosso exercício é o de olhar
para frente, em condições presentes, considerando o rastro de homens e mulheres que
erraram no passado, e, portanto, pensando o saldo da história, sem nenhum conteúdo
de idealização. Isso significa responder a um impulso pós-moderno de autossuperação,
necessária e significativa, na reconsideração da condução dos caminhos e descaminhos
da razão (WELLMER, 2004).
Por isso, no cenário de crise da modernidade, fica difícil entrever uma única utopia
social a preencher todo o horizonte de sentido das lutas sociais. Os abalos sofridos no

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projeto do iluminismo foram suficientes para limitarem sua capacidade de dizer verda-
des universais. Porém, isso não pode significar um abandono completo do universalismo
democrático, fator de equilíbrio político que nos resta, e, muito menos, da autonomia do
sujeito a partir da força emancipatória que a teoria tem a desempenhar na vanguarda dos
horizontes de compreensão da vida social (WELLMER, 2004).
Nesse sentido, a pós-modernidade também pode ser compreendida pelas tarefas
que tem a empreender em direção ao futuro, mais do que pelos escombros do passado
que se deve criticar. Por isso, Albrecht Wellmer (2004, p. 107) afirma:
281
Entendida corretamente, a pós-modernidade seria um projeto. Porém, o pós-modernismo, na
medida em que seja realmente algo mais que uma mera moda, uma expressão de regressão ou
uma nova ideología, também se pode entender antes de tudo como um movimento de busca,
como um intento de constatar indícios de mudança e fazer ressaltar com mais nitidez os con-
tornos desse projeto.
Nesse cenário, a fragmentação das utopias é uma constatação de claro sentido, que não
implica abandono, mas revisão, reconsideração e pluralização: “Este fim da utopía não
representaría nehum bloqueio das energias utópicas; melhor, sua reconfiguração, sua
transformação e pluralização; pois nenhuma vida humana, neuma paixão, nenhum amor
humano seriam pensáveis sem um horizonte utópico” (WELLMER, 1996, p. 76).

Violência, autoridade, utopia e revolução


A promessa de um mundo melhor jamais poderá ser implantada pelos caminhos da vio-
lência; o que ela ensina é antitético com relação àquilo que promete. A história tem vio-
lências demais, os povos têm formas de violências tantas e o presente as reinventa com
tanta criatividade e fúria, que custa achar que se possa eliminá-la da história; ela é um
traço constante da história, e, por isso, ela “pertence” ao cálculo da existência. Nada, no
entanto, nos permite afirmar que tenhamos que ser tolerantes com sua permanência e
com sua continuidade. E, muito menos, nos permite categoricamente afirmar que pela
violência histórica se apagam as demais violências de dominação, como a dominação
econômica ou ideológica. Se ansiedade e imediatidade transformadoras não são senão
o caminho obtuso e repentino para a repetição do mesmo, é neste sentido que a teoria
crítica deve acautelar-se em face dos anarquismos momentâneos para enxergar, além do
entusiasmo juvenil e da empolgação, se os ajustamentos sociais dão sinais de regressão
Psicologia,Violência e Direitos humanos

ou de progressão.
Há muitas formas de revoluções. Há revoluções pacíficas e há revoluções violentas.
Prefiro as revoluções que se operam no silêncio, na invisibilidade e que operam mu-
danças sem volta. As revoluções que vêm para perdurar não operam na base do código
da violência, mas lutam de fato contra todas as formas de opressão. Com isso, quer-se
dizer que, dificilmente, baionetas e canhões convencerão multidões. Medo, terrorismo,
vitimização e vontade de vingança, hostilização de opositores políticos, tortura, saldos
humanos negativos, militarização da política, prejuízos materiais e morais, perseguição
282 ideológica, supressão de direitos fundamentais são danos que progridem em escaladas
incontroláveis na vida social, cujos prejuízos irrecuperáveis tornam as chances de conso-
lidação política. Já afirmava o anarquista Malatesta (2004, p. 50):
O terror, bem como a guerra, desperta os sentimentos atávicos de ferocidade ainda mal
cobertos pelo verniz da civilização, e iça aos primeiros postos os elementos perversos
que se encontram na população. Em vez de servir para defender a revolução, o terror
serve para desacreditá-la, torná-la odiosa às massas, e, após um período de lutas fe-
rozes, desemboca necessariamente no que hoje denominarei normalização, isto é, a le-
galização e a perpetuação da tirania. Qualquer que seja o partido vencedor, sempre se
chega à constituição de um governo forte, o qual assegura, a alguns, a paz às expensas
da liberdade, e aos outros, a dominação sem perigos demasiado grandes.

Dificilmente, um mundo melhor prosperará após a passagem de tanques e morteiros, em


função dos traumas sociais gerados ao longo do processo revolucionário, e por quanto
tempo durar o processo de sua afirmação política. Os estragos provocados pela radica-
lidade dos processos revolucionários são danosos às finalidades teleológicas das revolu-
ções. Por isso, a escalada em direção à humanidade, dos atos e dos gestos, das práticas e
das atitudes, não encontra na violência sua forma natural de expressão. Ainda mais, as
ditaduras tendem a se perenizar e a se personalizar, a burocratização tende a enrijecer o
modo de ação do Estado e a utopia do comunismo aparece como um ideal regulatório e
normativo inalcançável a sociedades modernas concretas. Ditadura, mesmo que do pro-
letariado, e mesmo que transitórias, são sempre ditaduras. O grande e grave problema,
sob a promessa de serem transitórias, é o de se perenizarem.
Por isso, as “utopias terminativas” são antidialéticas, pois se propõem a “encerrar
a história”. A dialética é um impulso da história que lhe confere dinâmica e movimento,
independente dos homens. Ela preexiste na mecânica das leis naturais antes da existên-

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cia dos homens e da invenção da filosofia. Neste sentido, ela não pode ser “contida” pela
razão. Isso não convida a um imobilismo, mas a pensar que, apesar das intervenções
na história, ela continua escapando à nossa capacidade de controlá-la. Uma sociedade
onde prospera a liberdade não nasce de uma sociedade de controle e nem a razão teórica
tem alcance para prever o fluxo da história do futuro, por isso a história se passa para
nós como um fluxo do imprevisível, que amedronta e surpreende. Também por isso, o
capitalismo continua sendo um sistema histórico, e, por isso, existe um horizonte pós-
-capitalista, pois o capitalismo não controla a história, mas um momento histórico, não 283
controla a roldana da história, mas sim homens singulares que se encontram determina-
dos pela história presente.
O fim das violências pela violência revolucionária não pode redimir os homens da
violência na civilização. Acima de tudo, ao problema da racionalidade do futuro e do po-
der soma-se o problema da virilidade com a qual se quer interromper o fluxo da história,
para transformá-la. Será que a virilidade é capaz de fundar uma sociedade solidária? Será
que a sociedade ideal brota de união entre razão e violência? A própria discussão sobre o
ato revolucionário coloca este tema em questão, uma vez que, em sua obra Psicologia de
grupo e análise do ego, de 1921, Freud (1996, p. 88) afirma, sobre o caráter instintual da
psique coletiva que age em grupo:
Um grupo é impulsivo, mutável, irritável. É levado quase que exclusivamente por seu
inconsciente. Os impulsos a que um grupo obedece, podem, de acordo com as circuns-
tâncias, ser generosos ou cruéis, heroicos ou covardes, mas são sempre tão imperiosos,
que nenhum interesse pessoal, nem mesmo o da autopreservação, pode fazer-se sentir.
Nada dele é premeditado. Embora possa desejar coisas apaixonadamente, isso nunca
se dá por muito tempo, porque é incapaz de perseverança. Não pode tolerar qualquer
demora entre seu desejo e a realização do que deseja. Tem um sentimento de onipotên-
cia: para o indivíduo num grupo a noção de impossibilidade desaparece.

Uma vez que toda revolução é operada por indivíduos concretos, com seus vícios e vir-
tudes, limites e objetivos, dores e paixões, há de se esperar, portanto, da revolução que
seja um ato de razão, ou será mais um ato de paixão? Se se trata de um ato de paixão, que
opera a transformação da vida social, o que garante que a revolução não seja guiada ex-
clusivamente pela cegueira daqueles que seguem um líder sanguinário, voltando-se para
a satisfação de interesses pessoais? A paixão é, em geral, mãe das distorções e das expres-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

sões febris de cegueira coletiva, e não pode, portanto, representar um porto seguro na
equação da reconstrução da vida social. Pela análise da psicologia de grupo, Freud chega
a concluir que a violência é o que marca a identidade instintual do grupo: “O que exige de
seus heróis, é força ou mesmo violência. Quer ser dirigido, oprimido e temer seus senho-
res. Fundamentalmente, é inteiramente conservador e tem profunda aversão por todas
as inovações e progressos, e um respeito ilimitado pela tradição.” (FREUD, 1996, p. 89).
As utopias revolucionárias concebem a possibilidade de supressão da autoridade so-
cial constituída. Por isso, justificam o processo de instauração do poder social nas mãos de
284 grupos imbuídos de ideais transformadores. Através de Totem e tabu, esta discussão pode
ser analisada a partir da ideia da revanche instintual de supressão do pai-autoritário-injusto.
A ideia de Totem e tabu de que o homem primitivo vivia em pequenas hordas, e de que cada
horda se encontrava sob a liderança de um macho poderoso e concentrador é retomada em
Moisés e o monoteísmo, onde Freud dá seguranças de que sua hipótese não parte do vazio,
mas de premissas darwinianas, e das ideias de Atkinson3. Neste texto, fica claro que o pai era
fonte de todo poder, e, por isso, de toda violência, praticante, portanto, de uma despropor-
cional condição de mando e subordinação quanto aos demais dependentes e filhos4.
Amor e devoção, gratidão e reverência acompanham a figura do pai, mas sua ambi-
valência, também leva à inveja, ao ódio, à raiva, à vingança, à violência. “A ambivalência
faz parte da essência da relação com o pai: no decurso do tempo, também a hostilidade
não podia deixar de despertar, o que mais uma vez impulsionou os filhos a matarem seu
admirado e temido pai” (FREUD, 1997, p. 116). Após o banquete totêmico, é a instaura-
ção da lei, como sucessora e memória do pai, que possibilita e condiciona a continuidade
irrestrita da preservação da autoridade paterna carnalmente desaparecida. Essa questão
apontada por Freud abre uma pista interessante para a pesquisa sobre o caráter revolu-
cionário e as lutas humanas mais concretas, fatores que devem ser ponderados, quando
se quer pensar a sociedade até o limite dos laços sociais.

Liberdade, reciprocidade e direitos humanos: os riscos


da democracia
Toda a análise sobre os limites da revolução e da razão colocam em questão o problema
político concreto, e atual, da aposta na democracia. Isso significa, de seu aprofunda-
mento, de sua atualização, de seu redimensionamento histórico, e de sua radicalização,

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o que implica na assunção de riscos. No entanto, a maturidade política de um povo
é o que faz brotar a possibilidade de novos horizontes sociais, como um seu melhor
produto. Nesse percurso, a única garantia é mesmo a manutenção do jogo de opostos
existente dentro da democracia, e, isso significa, o convívio com a ideia de irresolução,
de tensão de opostos dialéticos5, e, também do que é processual em termos de avaliação
dos valores sociais primordiais.
Isto é histórico, ou seja, com a vida moderna, perdeu-se a possibilidade de um todo
reconciliado. As utopias atuais devem estar conscientes de que se operou uma castração
285

3 O trecho é o seguinte: “Apresentei essas asserções já um quarto de século atrás, em meu Totem e Tabu, e basta que eu as repita
aqui. Minha construção parte de um enunciado de Darwin e inclui uma hipótese de Atkinson. Afirma ela que, em épocas primei-
ras, o homem primitivo vivia em pequenas hordas. Cada uma das quais o domínio de um macho poderoso” (FREUD, 1997, p. 72).
4 “O macho forte era senhor e pai de toda a horda e irrestrito em seu poder, que exercia com violência” (FREUD, 1997, p. 72).
5 “Se a liberdade no mundo moderno inclui um dualismo normativo de liberdade negativa e liberdade positiva, comunal, então a
própria ideia universalista de liberdade leva inscrita uma tensão dialética” (WELLMER, 1996, p. 74).
parcial de seu potencial de realização. Nesta medida, no reconhecimento da castração
parcial não está implicado o abandono da esperança emancipatória e nem do espírito de-
mocrático. No entanto, aprender a lidar com a castração parcial é encaminhar a luta social
para rumos renovados. Os ideais emancipatórios, se não utilizados, tendem a azedar, ou
a se tornarem perversos, por revelarem uma libido insatisfeita e contida numa progressão
estagnada, que se volta contra o próprio sujeito da emancipação, sedento de concretiza-
ção onipotente, de conversão do princípio de prazer em princípio de realidade. A supe-
ração deste quadro depende da aceitação de que a vida moderna implica um bloqueio a
horizontes de plena emancipação social. No outro lado, estão, desistência e horror, que
são apenas dois extremos da práxis, temperados à luz da decepção política prática.
Em Uma crise global da civilização, Agnes Heller (1999, p. 20) afirma: “Um arranjo
sociopolítico que garanta a liberdade pessoal e política pode acomodar melhor a dinâ-
mica da modernidade”. Essa afirmação conduz à reflexão sobre a situação atual de uma
Teoria Crítica, que é a de pensar os desafios da radicalização da democracia, ao lado de
projetos políticos emancipatórios e perspectivas de efetivação dos direitos humanos. Ru-
mando em seu atual sentido, a Teoria Crítica pode falar de uma ética de democracia sem
que isto implique em decisão sobre valores; a ética democrática é aquela que constitui e
orienta projetos políticos que não devem impedir nem a liberdade, e nem a igualdade,
e estes fatores sim têm de ser conciliados espaços de nucleação da vida política comum,
voltados para a justiça social e para a consolidação do convívio regulado6.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

A vida moderna possui seus paradoxos, quais os indicados por Adorno e Horkheimer,
na Dialética do Esclarecimento, porém estes paradoxos devem ser mitigados, em favor da
aceitação de uma possibilidade de convivência entre liberdade e igualdade. Por isso, não se
trata de opor Locke a Marx, nem Smith a Lênin, mas de pensar os desafios continuados e
atuais da vida moderna, em seu atual estágio. E isto, especialmente porque a vida moderna
implica um conjunto de necessidades irreversíveis, que não mais podem ter seu fim decla-
rado, como no limiar de seu surgimento, e, especialmente, logo após a Revolução Francesa.
No início do século XXI, os desafios são outros, e qualquer perspectiva política para
sociedades modernas deve implicar na aceitação da modernidade e de seus arcanos bá-
286
sicos de funcionamento. Em sua dinâmica interna, dialética e histórica, a modernidade é
um projeto que não pode ter seu fim declarado.

6 “O conceito de uma eticidade democrática não define, portanto, de si mesmo um ideal de vida boa, mas a forma de uma coexis-
tencia comunicativa igualitária de uma pluralidade de ideias de bem que competem umas com as outras. E isto significa que a
vida política nã pode ser já o único lugar, o lugar privilegiado da vida boa” (WELLMER, 1996, p. 91).
O projeto da modernidade é, políticamente falando, o projeto da reconciliação entre
liberdade negativa e liberdade comunal. Contra Marx e Hegel há que se dizer que
este projeto é um projeto sem fim, sem soluções últimas, um projeto em que ener-
gias utópicas sempre novas haverão de transformar-se em novas soluções concretas
(WELLMER, 1996, p. 75)

Neste quadro, as liberdades são insuprimíveis, pois já consolidadas, daí a constatação de


Albrecht Wellmer (1996, p. 64): “A razão dessa crítica radica em que não é pensável uma
liberdade comunal no mundo moderno que não descanse na institucionalização de uma
igual liberdade negativa para todos”. Mas, a questão da liberdade ainda pode ser proble-
matizada como se pode fazer, pensando com Hegel, através de Wellmer. Em sua obra
Endspiele: Die universöhnliche Moderne (1993), no capítulo Liberdade negativa e liberdade
comunicativa, Wellmer (1996, p. 42) afirma: “As teorías individualistas da liberdade se
centram em torno do conceito de direitos fundamentais; a liberdade acaba nos direitos
fundamentais dos indivíduos. As teorias comunalistas da liberdade colocam, ao contrá-
rio, a liberdade numa forma intersubjetiva de vida”.
Os dois extremos teóricos da discussão sobre a noção de liberdade levam a polari-
dades e a modelos sociais opostos: o individualismo radical (Nozick) e o comunalismo
radical (Lênin) (WELLMER, 1996, p. 42). Deve haver um tempo entre ambos que permita
o equilíbrio entre os fatores em ebulição na vida moderna. É apoiando-se em Hegel que
Wellmer encontrará a possibilidade de falar politicamente da organização social moderna,

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sem que isto represente uma fratura radical com seus princípios (WELLMER, 1996, p. 46).
Por isso, a discussão forjada por Wellmer, em sua retomada de Hegel, indica ca-
minho para a atualidade hegeliana do pensamento de Honneth, que se conforma a res-
ponder a esta questão, dando ao termo liberdade um sentido-síntese entre estas pola-
ridades. Liberdade não é incompatível com igualdade, desde que liberdade signifique
reciprocidade e reconhecimento. Essa análise aparece na teoria do reconhecimento de
Axel Honneth, e figura especialmente delineada em Justice as institutionalized freedom: a
hegelian perspective (Honneth, 2010, p. 179). No balanço crítico sobre o duplo legado 287
da modernidade, Honneth se posiciona não no sentido da polarização entre liberdade e
igualdade, como opções extremas, mas no sentido de afirmar perspectivas conjuntas de
construção entre estes campos semânticos, enquanto termos mínimos da vida moderna.
As teorias contemporâneas sobre a justiça não podem ignorar o ponto de parti-
da da liberdade, sobre a qual se constrói a própria legitimidade da vida democrática
(Honneth, 2010, p. 172). Daí o papel desempenhado pela reciprocidade do reco-
nhecimento na vida política em comum, na vida política que assume as tensões e dife-
renças, e as torna possíveis num mesmo espaço de convívio: “Nesse sentido, Hegel pode
concluir que indivíduos apenas podem realizar plenamente suas liberdades se partici-
parem das instituições sociais que são formadas por relações de mútuo reconhecimen-
to” (Honneth, 2010, p. 185, tradução nossa). Justa é a sociedade na qual, no uso de suas
liberdades individuais, agindo, os singulares realizam igualmente objetivos de uma justiça
comum, considerando-se recíproca e respeitosamente. As doses de indivíduo, de coletividade,
de Estado e de mercado devem todas estar sopesadas nesta equação. Daí, a processualidade do
jogo democrático caber como fórmula adequada ao equilíbrio destas tensões, na distribuição
e gestão do poder social, extraído das relações humanas (Honneth, 2010, p. 196).
Por isso, as apostas atuais da vida política que se podem fazer giram em torno da
predisposição ainda maior, na vida social, aos empenhos por: solidariedade, educação,
cidadania, democracia, igualdade, liberdade (WELLMER, 1996, p. 48). Estes valores de-
vem ser cultivados, com responsabilidades compartilhadas, mesmo em ambientes coleti-
vos em que o protagonismo das relações de reconhecimento e respeito se expressem, caso
contrário as aparições dos autoritarismos figuram como formas de imposição de vonta-
des nas relações entre ego e alter. Por isso, não se pode imaginar um horizonte democrá-
tico senão como a forma política da justiça, e se democracia e justiça devem caminhar
lado a lado, fica claro que este caminho se dá dentro das instituições da modernidade,
Psicologia,Violência e Direitos humanos

revisitadas, refletidas e aprimoradas.

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Psicologia,Violência e Direitos humanos

290
entrevistas

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291
Entrevista: Prof. Sir Nigel Rodley
concedida ao Prof. Dr. Paulo Endo
Colchester, Inglaterra, junho de 20081

Sir Nigel, é um prazer conversar com o senhor a respeito do tema de direitos huma-
nos. Primeiramente, o senhor poderia sumarizar a sua carreira em direitos humanos?
Comecei a trabalhar seriamente com o tema em 1973, quando assumi o recente cargo de
consultor jurídico, na Anistia Internacional. Antes disto, fui professor de direito e havia
trabalhado nas Nações Unidas, não em direitos humanos, mas em questões econômicas
de direito internacional.
Fui professor de direito internacional e escrevi um pouco sobre direitos humanos. Es-
crevi um artigo, para um jornal científico, sobre o papel das Nações Unidas na investigação
de violações de direitos humanos no Oriente. Mas foi em 1973, com a Anistia, que o traba-
lho com direitos humanos se tornou uma atividade central. Fui o primeiro jurista como tal
recrutado pelo Secretariado Internacional da Anistia Internacional, e este foi o começo de
Psicologia,Violência e Direitos humanos

um importante momento nas questões internacionais em que os direitos humanos começa-


ram a ter um papel de importância, principalmente nos Estados Unidos e no Reino Unido.
Nos anos setenta e antes da presidência de Jimmy Carter, em 1976, alguns legisla-
dores haviam promovido, com sucesso, a legislação que obrigava o governo a reportar,
anualmente, o comportamento, sob o ponto de vista dos direitos humanos, daqueles pa-
íses que recebiam ajuda financeira dos Estados Unidos. Jimmy Carter, na sua campanha
para a presidência, assumiu um compromisso para com os direitos humanos. Para ele e
seus assessores, os direitos humanos constituíam uma internacionalização da luta pelos
direito civis, na esfera nacional.
292 Eles tiveram que descobrir que já havia um projeto internacional anterior à sua luta,
mas independentemente disto, politicamente, tudo se desenvolveu daquela forma; e havia

1 Esta entrevista foi concedida ao Professor Paulo Endo durante visita ao Centre of Human Rights da Universidade de Essex em
2008, onde Sir Nigel Rodley é professor.
um compromisso real de que, após a campanha, essa dimensão assumisse um papel pri-
mordial na política externa dos Estados Unidos; ela se tornou muito importante bilateral-
mente e multilateralmente, nas Nações Unidas e na Organização dos Estados Americanos.
Ademais, nós tínhamos uma nova administração neste país [Reino Unido], a admi-
nistração de Harold Wilson e, como Secretário de Estado para Assuntos Externos e da
Commonwealth, David Owen, que adotaram uma política positiva no que se referia aos
direitos humanos. Antes disto, era uma política de controle dos danos, de evitar proble-
mas e não necessariamente de fazer algo produtivo.
Então, passei 17 anos na Anistia Internacional, trabalhando na linha de frente do desen-
volvimento desse aspecto do direito internacional e dos direitos humanos, e foi um trabalho
muito interessante. Sempre tive o interesse de retornar para a vida acadêmica e a oportunida-
de surgiu em 1990 e, então, vim para cá [Universidade de Essex], acreditando que seria uma
vida menos atribulada, mais tranquila, mas não foi o caso, principalmente porque eu não
havia percebido a forma como o mundo mudou entre 1989 e 1991, com o fim da Guerra Fria.

Quais foram as mudanças mais importantes deste período?


O fim da Guerra fria foi a mais importante. Claro, durante a Guerra Fria, nas Nações
Unidas, havia um lado a favor da investigação de violações dos direitos humanos (o Oci-
dente), e outro lado (União Soviética e seus aliados) contrário a ela. Mesmo quando esses
últimos colocavam questões de direitos sociais e econômicos antes dos direitos civis e
políticos, eles não queriam, de forma alguma, explicar o seu comportamento nessa área,

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não queriam qualquer tipo de escrutínio internacional em matéria de direitos humanos
que se referisse, especificamente, a países. Mas depois da Guerra Fria, depois da Glasnost
e Perestroika e, acima de tudo, depois do colapso da União Soviética, tudo mudou. Em
virtude disso, tornou-se possível para alguém com uma história de alto nível de trabalho
em ONG, como eu, ser nomeado como Relator Especial para a Tortura. Isto se deu quan-
do o Ministério do Exterior, aqui do Reino Unido, pediu para lançar meu nome como
possível candidato para o cargo. Pensei que meu trabalho com a Anistia Internacional
houvesse me desqualificado politicamente, mesmo tendo me granjeado as qualificações 293
profissionais necessárias para desempenhar essa função.
Politicamente falando, isso era algo muito controverso. Mesmo depois que deixei a
Anistia, continuei a representá-la na ONU, no esboço de Declaração dos Defensores dos
Direitos Humanos. Então, a identificação com a Anistia era muito forte quando fui indi-
cado. A indicação, portanto, veio como uma grande surpresa para mim.
Até então, tortura era uma especialidade, um ponto de interesse especial para o senhor?

Sim, a maior parte do meu trabalho na ONU, na parte da Anistia Internacional, era um
trabalho a respeito dos instrumentos, a maior parte dos quais consistia em instrumentos
relativos à tortura, acordos contra a tortura, a declaração contra a tortura, o código de
conduta daqueles responsáveis pela aplicação das leis, e os princípios de ética médica
para as pessoas sujeitas à privação da liberdade.

Na sua área, qual foi o impacto dessa mudança, em que a ONU e o governo dos EUA
se envolveram, em relação aos direitos humanos e à tortura?
A mudança não se deu da mesma forma na Organização dos Estados Americanos. O tra-
balho de dedicar esforços para os direitos humanos, na OEA, foi determinado principal-
mente por dois fatores. O tipo de regime nos países da região, porque, nos anos de 1970 e
1980, havia muitas ditaduras militares que tinham reservas contra os direitos humanos.
Havia também o governo de Washington com os democratas mais inclinados a promover
os direitos humanos, no nível da OEA, do que os republicanos. Eu não quero acentuar mui-
to as diferenças entre os partidos políticos, mas, por exemplo, a administração de Reagan
comprometeu-se muito com direitos humanos, com atenção especial para as ditaduras de
esquerda, muito mais que em relação àquelas de direita, apesar de sua administração não
ter ignorado ditaduras de direita, e ter promovido democratização nessas ditaduras.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

É claro, por exemplo, que não foi por acidente que, até 1980, a Assembleia Geral
da OEA adotou resoluções com base nos relatórios da Comissão Interamericana para
Direitos Humanos, que envolveu parâmetros para os países sobre os quais a Comissão
havia emitido relatórios especiais. Depois dos anos 80, depois da administração de Jimmy
Carter, o interesse em relação a países específicos declinou e isso refletia então, o pequeno
interesse, diga-se, do governo de Washington.
Ao nível mundial, tudo tinha mais a ver com a Guerra Fria e, depois da Guerra Fria,
por alguns anos, houve um discurso relativamente semelhante com o discurso de direi-
tos humanos, um discurso relativamente em favor da validade do controle internacional
294
sobre os direitos humanos; após alguns anos, isso mudou novamente, na medida em que
alguns países em desenvolvimento, especialmente depois de meados dos anos noventa,
começaram a se organizar para resistir a essa abertura. Nós podíamos ver, em todas as
partes, que, ao que parecia, até o colapso da União Soviética, os países em desenvolvi-
mento que não estavam sob investigação por violações de direitos humanos, sentiam-se
protegidos pela União Soviética, e alguns anos depois de perderem o protetor, organiza-
ram-se para ter sua própria proteção, o que é um pouco da política que temos agora.

A administração dos governos na América Latina, na sua opinião, sofre um pouco


dessa tentativa de militarização? Dessa autoproteção dos valores militares?
Não sei, talvez haja certo paralelo com as prioridades das superpotências, mas é muito
mais um problema político geral, e não quero explorá-lo em termos particulares. Há um
excelente livro, chamado Word Politics [Política da Palavra] – e o título é um jogo de pa-
lavras: é “word” [palavra], sem o “L”, e não “world” [mundo] – é um livro que analisa pre-
cisamente o comportamento e a linguagem dos dois lados da Guerra Fria, no contexto de
suas intervenções militares na política, escrito por Thomas Franck e Edward Weisband. É
um livro interessante sobre esse tópico.

Professor, sua visita ao Brasil e o consequente relatório a respeito da mesma, reper-


cutiram dentro e fora do Brasil. Quais foram as repercussões? Porque sua presença
foi muito importante para alguns movimentos sociais que lutam contra a tortura,
voltados para os direitos humanos. Eu gostaria, então, de ouvi-lo sobre esse ponto.
É bastante difícil avaliar porque eu não tenho, agora, as informações necessárias para
uma boa avaliação. Não houve nenhum outro relatório especial depois de 2001, depois de
minha visita ao Brasil, e eu voltei a visitar alguns dos mesmos lugares com outro objetivo,
como professor relacionado com faculdades no Brasil e, algumas vezes, diversas pessoas

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abordavam alguns pontos da visita anterior.

Como professor?
Para participar de uma conferência no Dia dos Direitos Humanos, em uma universidade
em Belém, e no dia seguinte eu encontrei algumas pessoas com quem havia conversado
durante minha missão em 2000, e elas queriam me atualizar um pouco acerca do acom-
panhamento que fizeram das ações do governo como, por exemplo, a transferência da res-
ponsabilidade médico-legal dos organismos de segurança para a esfera judicial, algo que 295
eu havia recomendado, e eu fiquei satisfeito em saber que minha recomendação havia sido
adotada pelo Estado do Pará, mas eu não estou a par se outros estados fizeram o mesmo.
Eu acredito que o foco sobre a tortura dado pela ONU tornou-se algo fundamental
para o Brasil.
Isso é interessante! Seria interessante saber em qual forma e com quais efeitos.

Entendo. Eu digo isso porque alguns movimentos sociais que trabalham contra a tor-
tura no Brasil, movimentos importantes com os quais, acredito, o senhor tenha tido
contato, como, por exemplo, o “Tortura Nunca Mais”, consideram sua visita como
uma referência na matéria.
Isso é recompensador. É necessário dizer que, recentemente, no Comitê de Direitos Hu-
manos, nós recebemos uma resposta do Governo Federal Brasileiro sobre nossos comen-
tários finais, após a análise do seu relatório periódico, apresentado conforme as regras
internacionais, principalmente sobre suas políticas passadas. E o relatório afirma, expli-
citamente, que o Governo fez recomendações baseadas em meu  parecer, para o desenvol-
vimento de uma política nacional contra a tortura, o que é bastante recompensador. Se-
ria mais recompensador garantir que não houvesse mais tortura no Brasil, porque estou
convencido de que há vontade política no nível federal, mas não estou convencido de que
haja capacidade política para aplicá-la no nível estadual, onde os problemas são sérios.

A polícia que tortura é a polícia estadual...


Psicologia,Violência e Direitos humanos

Exato.

Não há qualquer vontade de erradicar a tortura como um instrumento de investigação.


É muito sério que o país não consiga desenvolver as instituições necessárias para cumprir
com suas obrigações internacionais.

Professor, como o senhor avalia o tema da tortura no Reino Unido e na Irlanda?


Uma coisa, uma última coisa... um esclarecimento sobre o que o senhor falou sobre a
vontade política no nível federal: Eu preferiria dizer que existe um desejo de uma política
296
no nível federal.
Eu prefiro dizer que se há uma política, talvez eles não tenham sido capazes de fazer
mais do que têm feito, certo?
No Reino Unido, parece-me que não há muita tortura, e quando fui Relator Espe-
cial, recebi muito poucas reclamações. A maior parte não constituía tortura no contexto
usual, qual seja, como um instrumento de interrogatório, para obter confissões ou outras
informações pertinentes. Às vezes, trata-se mais de uma brutalidade dirigida a minorias
e estrangeiros em processo de expulsão de seus países de origem. Há problemas desta
natureza. Algumas vezes, houve problemas com interrogatórios na Irlanda do Norte na-
quela época. Talvez não tortura física, mas coerção psicológica através de ameaças, que
são muito difíceis de ser comprovadas, mas, não obstante, com consequências sérias e
suficientes para dizer que talvez houvesse problemas; é também necessário dizer que a
maioria das pessoas interrogadas em tais circunstâncias era suspeita de pertencer ao IRA
[Irish Republican Army], que fez coisas deploráveis, e que as pessoas tinham medo sobre
o que na verdade poderia ocorrer. Claro, isso não justificava a utilização de meios ilegais
de investigação. O maior problema era a ameaça de informar a polícia militar protestante,
que poderia eventualmente fazer coisas negativas, letais, mortais contra aquelas pessoas
ou mesmo suas famílias; esse tipo de ameaça era bastante sério.
Mas isso é passado, de qualquer forma. Não há mais esse problema na Irlanda do
Norte. Esperemos que esse tipo de coisa não se perpetue, como ameaças contra pessoas e
suas famílias, esse tipo de brutalidade ou retaliação.
Mas esse problema, depois da criação do cargo de inspetor dos locais de detenção,
na Irlanda do Norte, já havia decrescido, antes do término do meu mandato. Então, pa-
rece que o problema não mais existe e eu ficaria feliz se ele não reaparecesse. Se algo
assim estivesse ocorrendo, nós saberíamos. Não é na sua forma clássica, mas há muitas
reclamações de pessoas entre os ciganos, africanos e outras minorias com ascendência

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estrangeira, vistas com desdém pela maioria da população, e isso pode ocorrer em diver-
sos países.

O senhor acha que, na Inglaterra, a grande presença de estrangeiros poderia provocar


algo nessa direção?
É algo de baixa probabilidade, porém pode ocorrer, mas eu não sou um sociólogo e essas
coisas flutuam. Pode ser que o problema da imigração apareça como um problema de
política geral, e talvez os casos de mau tratamento possam originar daí, mas eu não estou 297
certo se há ou não um paralelo aí.

Finalmente, quais os pontos mais problemáticos, na luta contra a tortura, e quais são
os pontos mais favoráveis, na sua opinião?
O ponto mais problemático ocorreu nos últimos anos: o mau exemplo dos Estados Uni-
dos, é importante dizê-lo. É verdade que eles não diziam que queriam torturar, mas eles
continuaram torturando e assim foi. E a estratégia diz “o que fazemos não é tortura”, mas,
obviamente, é tortura. Não são todos torturadores, há um pequeno grupo de pessoas que
comete tortura, mas é o suficiente para provocar um grande impacto no sistema. É um
péssimo exemplo. Em minha opinião, o ponto mais positivo é a resistência nos EUA e
internacionalmente – há esse aspecto da política antiterrorismo desse estado. Às vezes, é
necessário colocar algo à prova para fortalecê-lo. Provavelmente, eu sou um otimista, mas
tenho mesmo a sensação que o contra-ataque das pessoas em favor da proibição da tor-
tura tem sido tão forte que quase alcançou sucesso, e talvez a proibição saia efetivamente
fortalecida, como resultado da mobilização de tantas pessoas, tantas organizações, tantas
pessoas nos níveis nacional e internacional, a ponto de motivar a proibição.

Não podemos esquecer a resistência.


Exato.

Obrigado, professor!
Foi um prazer.

E quando vier ao Brasil, nos avise.


Com prazer.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

298
Entrevista: Wim Muller
concedida ao Prof. Dr. Paulo Endo
Colchester, Inglaterra, junho de 20081

Você poderia me contar sobre sua experiência e sua abordagem com os direitos hu-
manos no Reino Unido, assim como na Ásia, pois penso que sua pesquisa seja especi-
ficamente a respeito da China.
Sim. É lógico. Bem, acho que devo dar a você uma ideia geral sobre minha experiência
talvez. Atualmente, estou trabalhando para o Centro de Direitos Humanos em um proje-
to relacionado ao combate à tortura na China, e estou trabalhando aqui desde novembro
de 2006 nesse projeto. Antes disso, só para você ter uma ideia geral, lecionei direito in-
ternacional na Universidade de Leiden e na Universidade de Amsterdã e também traba-
lhei especificamente em um caso perante o Tribunal Internacional de Justiça, no qual a
Bósnia processou a Sérvia por genocídio. Então, minha experiência é muito focada em
Direito Internacional e, no direito internacional, sou especializado em direitos humanos
e direito humanitário. O projeto no qual tenho trabalhado aqui no Centro de Direitos

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Humanos é composto de diversos componentes.
Talvez seja útil dizer alguma coisa sobre a forma em que ele está organizado. Sua
maior parte é custeada pela União Europeia, e no projeto estamos trabalhando com
diversos parceiros − o Centro de Direitos Humanos é um dos parceiros principais,
e também estamos trabalhando com o Instituto de Direito Criminal Internacional e
Estrangeiro Max Planck, em Freiburg im Bresgau, na Alemanha, que é especializado
em direito criminal internacional e direito criminal comparativo. Estamos trabalhan-
do com a Universidade do Povo da China (ou Universidade Renmin), em Pequim,
China, e com uma pequena ONG em Londres chamada the Rights Practice (A Prática 299

dos Direitos), que também é especializada em projetos com relação ao império da lei

1 Esta entrevista foi concedida ao Professor Paulo Endo durante visita ao Centre of Human Rights da Universidade de Essex em
2008, onde Sir Nigel Rodley é professor.
na China. O projeto inteiro foi concebido e é coordenado pelo Centro Grã-Bretanha
China, em Londres.
Ele consiste em, eu diria, três componentes principais. O primeiro componente
principal é a pesquisa comparativa, ele é acadêmico, na qual as medidas para combater a
tortura são comparadas entre a Europa e a China. E como cenário de fundo dessa pesqui-
sa, temos ainda outros dois componentes orientados à prática: um dos quais é o treina-
mento de policiais na China em antitortura, ou formas de evitar a tortura, ou de combater
a tortura, e em geral conduzir o policiamento de acordo com as normas de direitos hu-
manos internacionais; e, em segundo lugar, um componente de caráter mais preventivo,
que consiste em estabelecer algo como um esquema de visitantes independentes, que seja
modelado, algo que foi muito bem-sucedido no Reino Unido, onde há um sistema no
qual pessoas comuns podem participar de um esquema de inspeção no qual elas podem
visitar qualquer centro ou qualquer local onde as pessoas estejam detidas, de forma não
anunciada, se necessário, e elas tenham acesso total a todos os lugares. A ideia por trás
dessa prática é que se qualquer centro ou local de detenção pode ser inspecionado a qual-
quer momento, isso anula a oportunidade da prática de tortura, uma vez que a tortura
também é um crime de oportunidade.

Wim, você considera a tortura um crime de oportunidade?


Pessoalmente penso que sim. Acho que é um componente principal, e considero que não
Psicologia,Violência e Direitos humanos

seja possível erradicar a tortura completamente, embora, é lógico, você possa fazer muitas,
muitas coisas para diminuir ao máximo possível as chances de que ela ocorra; sempre há
situações muito extremas, imensuráveis, nas quais até mesmo as pessoas boas ou pessoas
que sejam treinadas para não utilizar a tortura e não ceder a determinadas atitudes ou ao
ímpeto de talvez cometer a tortura possam estar sob tanta pressão que elas a considerariam
possível, ou até mesmo que elas possam cometê-la. Mas, é lógico, isso não significa que
ela seja somente um crime de oportunidade de forma que somente medidas preventivas
funcionem. Há necessidade de uma combinação de medidas preventivas e outras medidas.
300
Estava pensando sobre estas informações, e acho que, por exemplo, no Brasil, não é
exatamente o senso de oportunidade a parte principal no processo, mas algo como
uma autorização por parte do Estado.
Na realidade, sim. Concordo plenamente com você nesse aspecto. Quando digo que é um
crime de oportunidade, não é minha intenção dizer que não existam outros fatores que
possam realmente aumentar a prevalência da tortura. Não conheço tanto assim o Brasil,
mas com base no que sei, sei que é um problema sistemático no Brasil e, nesse sentido, há
alguns paralelos, ainda que muito diferentes, com a China também, eu acho, uma vez que
na China a tortura também é uma ocorrência sistêmica.
O problema é que ela está presente no sistema e é muito difícil mudar a forma de pen-
sar, e mudar a forma que o sistema funciona. A única coisa que é clara no projeto que esta-
mos fazendo na China, eu acho, é que as autoridades com as quais nós e nossos parceiros
chineses estamos trabalhando levam muito a sério a prevenção e a eliminação da tortura, e
isso ajuda. Quero dizer, há, pelo menos entre determinadas autoridades na China, um de-
sejo muito sério ou muito real de diminuir a tortura no alto escalão, e acho que você esteja
também se referindo a isso. É claro, é mais fácil para as pessoas que estão em uma posição
inferior em uma hierarquia cometer a tortura se sentirem que não serão punidas por isso
ou que são de fato ativamente encorajadas a cometê-la. E acho que neste projeto há um foco
muito forte em eliminar a tortura, embora talvez os chineses ainda estejam descobrindo
muitas coisas que ainda precisem mudar antes que possam efetivamente eliminá-la.
Para dar-lhe um exemplo, algumas vezes tenho a impressão de que na China há essa
ideia de que se você simplesmente encorajar as pessoas a se comportarem moralmente ou
a serem boas, isso já irá ajudar a eliminar a tortura, mas elas levam outros fatores um pou-
co menos em conta, como se a polícia dispusesse de recursos suficientes para conduzir
seu trabalho, uma vez que é muito fácil dizer que você não pode bater em seus suspeitos,
mas, nesse caso, eles também precisam dar aos policiais os meios, tanto financeiros como

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outros, para solucionar os crimes de uma forma diferente.

Você poderia me contar alguma coisa sobre o processo, as dinâmicas envolvidas nesse
treinamento com os policiais na China?
Bem, o treinamento…, conduzimos um treinamento, um projeto de treinamento piloto
na cidade de Dalian, no nordeste da China, em agosto do ano passado. Dalian é uma
grande cidade costeira no nordeste da China. Na realidade, é um famoso resort praia-
no que provavelmente foi deliberadamente escolhido por nossos parceiros chineses para 301
tornarem a participação no treinamento atraente, também, para os policiais sênior. A
forma determinada foi a seguinte: meio ano antes do treinamento, realizamos uma mesa-
-redonda na China na qual nosso parceiro chinês, a Universidade do Povo da China,
havia descoberto um parceiro local, que é a Universidade de Polícia Criminal da China
em Shenyang, que também é uma cidade do nordeste chinês.
Elas cooperaram na parte chinesa do treinamento e, por outro lado, nossos parceiros
europeus estavam trabalhando na parte europeia. Agora, devo dizer que isso não era
exatamente o que desejávamos no lado europeu, em geral, éramos mais a favor de uma
abordagem integrada, na qual o trabalho seria feito em conjunto com os chineses para
desenvolver um programa, do contrário, você corre o risco de que os participantes do
treinamento recebam a mensagem de que: OK, é isso que os europeus pensam, e é isso
que os chineses pensam. Isso não era de fato viável; acho que é porque, pelo menos agora,
os chineses ainda são muito cuidadosos em relação ao que eles desejam fazer e a impres-
são que desejam passar. Então, isso teria sido um pouco demais para eles. É uma pena,
uma vez que torna o treinamento menos eficaz, mas, por outro lado, é lógico, é melhor
do que nada.

Você possui alguma avaliação desse processo?


Sim, tivemos diversas avaliações. Você tem em mente alguma perspectiva específica?

Por exemplo, no Brasil, há um movimento social que faz a ligação com uma universi-
dade que esteja trabalhando com esta situação: treinando os policiais em direitos hu-
manos. Alguns desses pesquisadores brasileiros tem observado que esse treinamento
é particularmente eficiente quando é possível reunir os policiais e as vítimas em po-
tencial desses policiais em situações comuns.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Ok, sim, tivemos uma avaliação posteriormente na qual os participantes preenchiam for-
mulários. Penso que nosso resultado seja provavelmente um pouco misto. Há uma série
de elementos que penso que poderia discutir com você. O primeiro é que tivemos um
pouco de problema com o programa, em minha opinião. Tivemos que dividir entre as
partes chinesa e europeia, no total, foram apenas dois dias e meio de treinamento. Eu
estava envolvido com o treinamento e Graham Dossett, que é um membro do Centro de
Direitos Humanos. Ele próprio é um ex-policial e, após ter se aposentado do serviço ati-
vo na polícia, obteve sua graduação aqui em Essex, em direitos humanos, e, desde então,
302 vem conduzindo treinamentos no mundo todo, para as Nações Unidas, e outros campos
e em ações antitortura, e no policiamento de acordo com as normas internacionais de
direitos humanos.
Na realidade, ele me disse que conduziu treinamento no Brasil. Ele me contou al-
gumas de suas experiências. Ele disse que de todo o treinamento que ele havia conduzi-
do, somente um país foi para ele uma experiência não muito positiva, porque ele teve a
impressão de que realmente não trabalhou ou de que não atingiu realmente as pessoas
que treinava. E, para dar um outro exemplo, ele conduziu um treinamento em um país,
não sei qual, mas ele sabia, graças ao intérprete de lá, que, enquanto dizia todos os tipos
de coisas sobre como se fazer o trabalho da polícia de acordo com os direitos humanos,
as pessoas locais estavam apenas dizendo: “Não precisam ouvir o que ele diz. Isso é algo
que estamos fazendo, você sabe, mas você pode continuar como de costume daqui para
frente”. Não tivemos essa impressão na China.
Um elemento muito positivo do treinamento foi que, principalmente no segundo
grupo,as pessoas encarregadas de impor a lei que vieram ao treinamento eram pessoas
mais velhas, e, na China, a senioridade conta ainda mais, talvez, do que em qualquer ou-
tro país, e eles estavam abertos ao que estavam ouvindo. Você conseguia ver isso durante
o treinamento. Era óbvio que eles estavam prestando atenção, e era também algo que
ficou visível nas avaliações. Quero dizer, pode não ter sido tanto quanto desejávamos,
mas, definitivamente, atingimos algumas pessoas, e todos nós sentimos que isso aconte-
ce. É lógico, sabemos que pela natureza desses tipos de treinamento é preciso continuar
a conduzi-los, e era nossa intenção que nosso treinamento fosse o primeiro projeto e que
servisse como uma base para um treinamento adicional e esperamos que algumas dessas
pessoas mais velhas que atingimos também sejam o que chamamos de “agentes de mu-
dança”, de forma que eles pensem: “Bem, ouvi uma coisa que gostei, irei disseminá-la para
meus subordinados e tentarei fazer o trabalho dessa forma”.
É claro, agora ainda é cedo demais para dizer se tivemos esse efeito. Uma coisa que

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estamos fazendo é que estamos levando em consideração a experiência do treinamento
e atualmente estamos escrevendo um manual de treinamento com os chineses que possa
servir como uma base para a realização do treinamento na China, e então esperamos que
os parceiros chineses, após nosso projeto ser concluído, continuem e acompanhem, e
talvez que existam projetos de acompanhamento. Havia um outro problema que identifi-
camos: uma vez que era uma abordagem muito diferente do lado chinês e do nosso lado,
tivemos a impressão de que os chineses, em seu treinamento, ainda estavam muito focados
em aceitar que eles não podem utilizar a violência, ou a tortura ou outros tratamentos hostis
303
para obter confissões, e que ainda eles estavam muito focados em outras formas de se obter
uma confissão. E que era, eu acho, um exemplo da desvantagem de não seguir uma abor-
dagem integrada, então não conseguimos convencer as pessoas da Universidade de Polícia
Criminal Chinesa de que o foco talvez não devesse ser na obtenção de uma confissão, e sim
na construção de seus casos criminais de uma forma totalmente diferente.
Na investigação, por exemplo.
Sim, na investigação.

Investigação científica.
Sim, exatamente. Utilizando evidências forenses. Por outro lado, quero dizer, há desen-
volvimentos na China nesse sentido, mas esse é um aspecto no qual a reforma jurídica na
China também é necessária. Na atual lei processual criminal chinesa a obtenção de uma
confissão ainda é muito importante, e isso é algo em que os advogados na China estão
trabalhando. Esse tipo de mudança ocorre lentamente, uma vez que eruditos jurídicos
estejam convencidos, é claro, eles também precisam convencer a tomada de decisões po-
líticas e a legislatura. As coisas estão acontecendo, mas é um processo. Em termos gerais,
nesse sentido também, a China está avançando muito rápido em muitas reforma jurí-
dicas, então é estranho. De um lado, há muitas coisas que você pode criticar, ou muitos
aspectos nos quais a China possa falhar, porém, por outro lado, se você vir o progresso
que a China conquistou nas últimas décadas, é muito notável. Então, é um pouco de uma
questão de considerar o copo meio vazio ou meio cheio.

Wim, não sei se você possui alguns relatos sobre a aprovação da população chinesa
com relação a esse assunto. A aprovação à tortura, à violência policial e outras formas
de violência. Você possui relatos sobre isso?
Psicologia,Violência e Direitos humanos

Não. Na realidade, isso é um problema muito grande na China, e está relacionado à na-
tureza do estado chinês, tendo em vista que não é um estado muito transparente, é muito
opaco, já que todos os tipos de estatísticas e números são, algumas vezes, manipulados
ou são confidenciais. Quando abordamos a tortura, provavelmente a melhor forma de se
chegar lá é por meio da pena de morte, porque, além do número de execuções na China,
sempre há um segredo, e a Anistia Internacional todos os anos possui uma estimativa em
seu relatório, mas é uma estimativa, e é muito difícil obter os números, porque, mesmo
quando são conservados, os chineses não desejam muito compartilhá-los com estrangeiros
304 ou forasteiros. Por exemplo, quando a questão de confissões obtidas através de tortura veio
à tona pela primeira vez, havia, por exemplo, um promotor público de alto nível que fez a
declaração na imprensa chinesa.
Isso foi um problema, principalmente nos casos que envolviam a pena de morte.
Eles dizem: “sim, porque no ano passado havia cem condenações injustas à morte ou
algo assim”, um número nessa faixa, cem condenações injustas por causa de confissões
que foram obtidas através de tortura. Agora, se esse fosse o número real na China, em
uma população de 1,5 bilhões ou algo assim, seria um número muito bom, de fato. Quero
dizer, é claro que cem casos ainda é demais, mas com uma população tão grande, você
não pensaria que eles ainda têm um problema, é muito sob controle, o problema é que os
números tendem a ser utilizados metaforicamente.
Menciona-se esse número e as pessoas entendem que é bastante, entretanto, não é
um número real, não é algo que seja útil cientificamente. Então, nesse sentido, também
muito difícil medir a opinião pública na China porque há também alguns poucos dogmas
sobre isso. Por exemplo, com relação à pena de morte, uma coisa que os oficiais chineses
continuam repetindo é que eles não podem abolir a pena de morte ainda, porque ela é
objeto de grande apoio popular. E essa declaração não pode ser realmente questionada,
todavia, não há uma forma de dizer se realmente é verdadeira ou não. Mas devo dizer que
eu, pessoalmente, gostaria de saber mais, conhecer mais cientistas sociais chineses para
descobrir se realmente é assim tão ruim. Neste projeto estamos trabalhando mais com
advogados, e realmente não tive a oportunidade de entrar nesse assunto. Também tenho a
impressão de que os cientistas sociais chineses são muito mais sofisticados em medir esse
tipo de coisas do que os advogados chineses, e que ainda não há uma passagem interdis-
ciplinar para se descobrir isso.

Você acha que a Europa tem algo a aprender com os países da Ásia em termos de di-

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reitos humanos? Há algo interessante nos movimentos sociais lá ou…
Eu diria que sim, isso provavelmente exigiria de mim um pouco mais de tempo, na re-
alidade, para pensar sobre algo em particular. Não tenho certeza se posso fornecer uma
resposta útil neste momento. Talvez você não possa aprender tanto em termos de normas
com relação aos direitos humanos, a abordagem moderna consiste em, de fato, cumprir
melhor as normas e também em termos de prioridades e proteger os direitos humanos.

No Brasil, por exemplo, temos alguns movimentos sociais que estão nos ensinando a
305
estabelecer abordagem com a população. Por exemplo, um dos movimentos sociais
que pesquisei em meu livro é como as pessoas ou a população − lutam para realizar o
luto de seus mortos.
Sim.
E quando o governo percebe como necessário o trabalho de construção de uma cul-
tura de respeito aos direitos humanos, penso que as populações locais podem nos
dar muitas informações fundamentais a esse respeito. Muitas vezes, os pesquisado-
res podem auxiliar a população a construir um discurso sobre eles próprios, acima e
além de todo o discurso acadêmico. Tratar-se-ia da justificação de alguma coisa que
é absolutamente singular, única, o que é também uma ação política.

Sim. Penso que de fato pode haver outros países asiáticos nos quais algo semelhante tam-
bém possa existir, mas na China penso que isso é um pouco mais difícil. Na China, é
claro, o Estado tenta manter o controle de todos os tipos de movimentos, e como resul-
tado… Não tenho certeza se eu os qualificaria como movimentos sociais, mas também
há muita mudança ocorrendo no campo. De fato, esse é um dos principais desafios atuais
para o governo central na China, que são os protestos pelas pessoas também no campo,
porque elas não concordam com as coisas que estão acontecendo. E, de fato, há um de-
senvolvimento muito interessante também em termos do que está acontecendo com o
fortalecimento do império da lei.
Na China, o império da lei como tal não existiu por um período após a tomada de
poder pelos comunistas. Durante as primeiras décadas, a lei foi quase completamente
abolida como sendo uma espécie de ferramenta da burguesia para repressão das massas,
então, todos os tipos de métodos alternativos de solução de disputas entraram em vigor e
Psicologia,Violência e Direitos humanos

somente no final da década de 1970 a China, de fato, reintroduziu a lei e o império da lei,
porque o governo percebeu que se ele deseja se abrir também economicamente, isso era
necessário. Contudo, o resultado é que houve uma grande quantidade de criação de leis
na China nas últimas décadas, mas o cumprimento da lei não é assim tão bom. E tam-
bém há muita falta de familiaridade com a lei. Por exemplo, muitas pessoas nem mesmo
sabem quais tipos de recursos possuem, porque é difícil para a sociedade acompanhar
todas as mudanças nas leis, , por outro lado, as leis também não refletem realmente o que
está acontecendo na sociedade, por causa da abordagem que foi adotada para introduzir
306 todos os tipos de lei. Todas as variedades de delegações de advogados chineses foram
enviadas a todas as partes do mundo, principalmente para os Estados Unidos ou Euro-
pa, para aprenderem sobre as leis lá, e algumas vezes eles encontraram boas ideias, e as
implementaram na China. Como resultado, a lei não reflete realmente a sociedade em si.
O que você vê agora, e de fato conheço umas pessoas que podem ser capazes de
contar-lhe muito mais sobre isso, é que os chineses no campo estão encontrando formas
diferentes, algumas vezes, de proteger seus interesses. Há muito espaço agora para o pro-
testo local na China. O governo central não se importa se as pessoas estão se revoltando
um pouco mais com os governos locais, porque eles também tentam combater a corrup-
ção dessa forma, quero dizer, há algumas coisas acontecendo, mas há muita inquietação
social também na China, e esse é um dos principais desafios, de fato, do governo chinês,
porque é difícil ver, com toda a mudança explosiva e o crescimento pelo qual passou a
China nas últimas décadas, como eles irão manter todas as pessoas felizes, porque as di-
ferenças entre os ricos e os pobres também aumentaram.
Voltando ao seu ponto de partida original, há muita coisa acontecendo, não tenho
certeza se há movimentos como aqueles que você descreveu, os quais também podem
servir como um exemplo para os outros países aprenderem. Acho que os desenvolvimen-
tos na China irão ensinar muito a todas as pessoas sobre como gerenciar a mudança na
sociedade, e que a China provavelmente nos ensinará muito sobre coisas que, se feitas,
podem ser boas e coisas que não são assim tão boas para se fazer. Se você deseja saber
mais sobre isso, penso que provavelmente conheço algumas pessoas que podem ser capa-
zes de contar-lhe mais sobre isso.

Ok Wim, obrigado. Por último, você pode me contar algo sobre a função da lei nos
julgamentos internacionais para julgamento de genocídio e de crimes contra a huma-
nidade?
Alguma coisa em particular ou apenas em geral?

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Na China e na Iugoslávia.
Acho que minha principal experiência nesse sentido esteja mais relacionada ao conflito
na antiga Iugoslávia. Bem, há algumas pessoas fora da China, por exemplo, que desejam
responsabilizar a liderança chinesa por crimes que estão sendo cometidos no Tibet, esse
é ainda um tema corrente, então acho que ainda levará muito tempo antes de existir
qualquer tipo de processo judicial lá, se alguma vez existir. Sei que há, por exemplo, advo-
gados espanhóis tentando processar a antiga liderança chinesa nos tribunais espanhóis. 307
Acho que uma questão que ainda não respondi para mim mesmo, e pela qual ainda estou
muito interessado, é se os julgamentos realmente são uma forma boa de abordar as atro-
cidades que aconteceram no passado, de chegar a um acordo nesse sentido. Penso que
essa seja uma pergunta que todos estejam se fazendo, e minha experiência pessoal no
caso de genocídio é um pouco mista.
Algumas vezes acho que, para fazer as pazes com o passado, a lei não é sempre uma
ferramenta muito boa, porque a lei possui seus próprios tipos de deficiências, as quais al-
gumas vezes não são realmente visíveis para as pessoas comuns. Por exemplo, no caso da
Bósnia versus Sérvia, o processo durou muito tempo. Primeiro, a Bósnia apresentou uma
reclamação no Tribunal de Justiça Internacional contra o que era então denominada a
República Federativa da Iugoslávia, em 1993, e, em 1996, os tribunais determinaram que
ela tinha jurisdição, então havia todos os tipos de atraso devido a motivos processuais e
a outros motivos, e em virtude disso as audiências orais no caso somente ocorreram em
2006, e as sentenças somente saíram em 2007. E, nessa época, principalmente as pessoas
na Bósnia e na Herzegovina, que sentiam que haviam sido vítimas de um genocídio,
tinham expectativas muito altas, então o tribunal determinou que quase nenhum dos
eventos que haviam acontecido na Bósnia e na Herzegovina constituía um genocídio, ex-
ceto o massacre em Srebrenica, em 1995. E o motivo dessa sentença é que a jurisdição do
tribunal era muito limitada. Ele somente poderia responder à pergunta de se um evento
era genocídio ou não, porém não tinha jurisdição para determinar nada mais, porque
todos os outros eventos provavelmente teriam sido qualificados como crimes contra a
humanidade, perseguição, e estupro em massa, tortura em massa, quero dizer, na parte
factual, tudo isso foi confirmado pelo tribunal, que tudo ocorreu, entretanto o que se
sobressaiu no final era que o que aconteceu não foi genocídio, e que o tribunal não tinha
na realidade jurisdição para determinar nada mais.
Psicologia,Violência e Direitos humanos

E, como resultado, muitas vítimas de todas as atrocidades que haviam ocorrido se sen-
tiram muito traumatizadas, mais uma vez. Penso que deve ter sido uma experiência muito
difícil para elas, porque posteriormente houve muitas declarações das pessoas de que elas se
sentiam como se tudo estivesse acontecendo de novo para elas. A ideia real por trás do caso
era, é claro, obter o efeito oposto, ter uma decisão do tribunal que dissesse “bem, foi genocí-
dio”, e dar às pessoas esse tipo de reconhecimento oficial, que normalmente é muito impor-
tante, esse senso de justiça, de que a justiça foi feita. Então, penso que as pessoas que desejam
dar início a esses tipos de casos precisam ter bastante claro que, devido às limitações do direito
internacional, algumas vezes não se pode atingir o que você está determinado a fazer, e mes-
308
mo que possa ser uma causa muito nobre, ela pode ter todos os tipos de consequências não
pretendidas. No entanto, penso que, se esses tipos de obstáculos formais não existissem, pro-
vavelmente seria uma boa forma de se fazer as pazes com o passado, uma vez que você teria
um tipo de tribunal objetivo e imparcial que seria capaz de julgar os fatos e, talvez, apresentar
uma história com a qual, talvez, ambas as partes pudessem conviver, mais ou menos.
Também é necessário andar de mãos dadas com um comportamento responsável
por parte dos líderes das diferentes comunidades, de forma que eles não simplesmente
cheguem e culpem imediatamente, por exemplo, o tribunal, porque este apresentou uma
sentença com a qual eles não estão satisfeitos. No geral, de fato, e você provavelmente
deve estar bem ciente disso –há uma grande discussão acontecendo, também entre os ad-
vogados internacionais agora, a respeito do direito criminal internacional: se a forma que
está operando proporciona algum bem. Principalmente com relação ao Tribunal Crimi-
nal Internacional nesse momento, que começou em Haia. Ele assumiu alguns casos com
relação a Uganda e ao Congo, mas é um pouco estranho que as pessoas estejam sendo
processadas em um tribunal em Haia por coisas que aconteceram há milhares e milha-
res de quilômetros de distância dali. E algumas pessoas sentem que isso não é bom, que
você precisa trazer essas instituições de justiça mais próximas do local em que os eventos
efetivamente aconteceram. Então, em geral, penso que pode ser um método útil de se
fazer justiça, porque, obviamente, os perpetradores das atrocidades em massa precisam
ser punidos. Provavelmente é melhor fazer isso primeiro em seu próprio país, se houver
espaço para isso, e somente fazê-lo em nível internacional se os obstáculos formais forem
eliminados de forma que se possa ter uma visão total e completa do que aconteceu.

Quais os direcionamentos de sua pesquisa atual?


Na realidade, meu principal interesse acadêmico é em direito internacional, embora eu
pense que já o adquiri de certa forma. Meu interesse original era em história, porém senti

CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA SP


que a história se restringia a olhar demais para o passado, e só queria estar envolvido
em mais coisas que estão acontecendo no presente. De fato a partir de setembro estarei
trabalhando em meu PhD, que será sobre o impacto da ascensão da China como uma
grande potência sobre o direito internacional e, em particular, sobre os direitos humanos,
e desejo adotar uma abordagem que vá além do direito apenas, que seja um pouco mais
de caráter interdisciplinar.

Muito obrigado por esta entrevista.


309
De nada. Espero que tenha sido útil e estou honrado pelo seu interesse pelo que estou
fazendo.
autores
Angela Burnett
é médica na ONG Freedom for torture e GP na Greenhouse Practice, em Londres, trabalhando com pessoas sem teto, refugiados e outras
populações vulneráveis. Ela escreve sobre a saúde de refugiados e sobreviventes de tortura, incluindo na British Medical Journal Series, e  de-
senvolve recursos para os trabalhadores de saúde. Ela também administra programas de treinamento, foi mentora de médicos de refugiados e
ajudou no desenvolvimento de serviços de saúde em todo o  Reino Unido para os refugiados e sobreviventes de tortura.
Trabalhou na Zâmbia com pessoas afetadas pelo HIV e pesquisou a colaboração entre curandeiros tradicionais e profissionais de saúde formal.
Também foi avaliadora de programas de educação para os médicos na Macedônia e trabalhou, com Oxfam, na Etiópia, com pessoas afetadas pela
seca e pela fome.

BETTY BERNARDO FUKS


é psicanalista e doutora em comunicação e cultura. Atualmente é Professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade
Veiga de Almeida (Rio de Janeiro).  É membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.  É também Editora
da Revista Trivium e autora dos seguintes livros: Freud e a judeidade, a vocação do exílio (Editora Zahar, 2000),  Freud & a cultura (Editora
Zahar, 2003) e  Freud and the Inbvention of Jewishness (Agincourt Press,2008) 

BELISÁRIO DOS SANTOS JR.


é advogado desde 1970, foi Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo (1995-2000). É atualmente membro da Co-
missão Especial de Mortos e Desaparecidos do Estado Brasileiro e da Comissão Internacional de Juristas, e integrou a missão da International
Bar Association, que visitou a Venezuela para exame da situação de independência do poder judiciário.

CATERINA KOLTAI
Psicologia,Violência e Direitos humanos

psicanalista, graduação em sociologie pela Université Paris Descartes (1971), especialização em dess on planificacion de l’education pela
Université Paris 1 (Panthéon–Sorbonne) (1975), mestrado em planejamento dos recursos humanos pela Université Paris 1 (Panthéon–
Sorbonne) (1977) , doutorado em psicologia (psicologia clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997). Atualmente é
professora do quadro de carreira - cat. atd da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem experiência na área de sociologia, com
ênfase em fundamentos da sociologia, atuando principalmente nos seguintes temas: estrangeiro, psicanálise, política.

EDSON LUIZ ANDRÉ DE SOUSA


psicanalista, professor do programa de pós-graduação em Psicologia Social e PPG Artes Visuais da UFRGS. Analista membro da Associa-
ção Psicanalítica de Porto Alegre, pesquisador do CNPq. Pós-doutorado pela Universidade de Paris VII e pela École des Hautes Études en
Sciencies Sociales – Paris. Doutorado em psicanálise e psicopatologia pela Universidade de Paris VII. Coordena junto com Maria Cristina
Poli o LAPPAP (Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Poltiica – UFRGS. Membro do GT Psicanalise: Política e Cultura. Professor
visitante na Deakin University (Melbourne) e Instituto de Estudos Criticos (México). Autor de, entre outros dos livros, Uma invenção da
310 Utopia (Lumme Editora, SP, 2007) Freud: Ciência, Arte e Política em coautoria com Paulo Endo (LPM, Porto Alegre, 2009).

Eduardo C. B. BITTAR
é professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor (1999) e livre-docente (2003) pelo Departamento de
filosofia e teoria geral do direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É professor doutor do PPG - Mestrado em direitos
humanos do UniFIEO. Pesquisador de Produtividade N-2 do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). Parecerista de inúmeras revistas
especializadas, foi presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos (2009- 2010).
FLÁVIA SCHILLING
doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo (1997), desde 2001 é professora doutora da Faculdade de Educação da Universi-
dade de São Paulo. Trabalhou no Núcleo de Estudos da Violência da USP, foi coordenadora do Centro de Referência e Apoio à Vítima
e consultora da Comissão da Mulher do Parlamento Latino-americano. Orienta mestrado e doutorado nas áreas de sociologia da educação
(FEUSP) e direitos humanos (FDUSP). Integra a Cátedra UNESCO de Educação para a Paz, Direitos Humanos, tolerância e democracia.
É pesquisadora do CNPq (PqAD).

 JAIME GINZBURG
é graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1988. Realizou mestrado em literatura brasileira, Universidade
de São Paulo, 1993 e doutorado em letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997. Realizou pós-doutorado em estudos literários
na Universidade Federal de Minas Gerais, 2010. Atualmente é professor livre-docente da Universidade de São Paulo (USP). Foi Coorde-
nador do Programa de Pós-Graduação de Literatura Brasileira entre 2004 e 2008. É bolsista de produtividade pelo Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) desde 2000. Realizou missões acadêmicas como professor visitante nas seguintes
universidades: Universidade Federal de Minas Gerais em 2001 (UFMG); Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP)
entre 2004-2005; University of Minnesota. Visiting Scholar em 2009 com Bolsa Fulbright Foundation – Capes.

Paulo ABRÃO
é especialista em direitos humanos e processos de democratização pela Universidade do Chile. Mestre em direito pela UNISINOS e doutor
em direito pela PUC-Rio. É professor do curso de mestrado e doutorado em direitos humanos, interculturalidade e desenvolvimento da
universidade pablo Olavide-Universidade de Andalucía (Sevilla/Espanha). É professor licenciado da Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente exerce as funções de Secretário Nacional de Justiça e Presidente da Comissão de
Anistia do Ministério da Justiça do Brasil.

Janaína TELES
historiadora formada pela Universidade de São Paulo, especialista em arquivologia (projeto USP/Fapesp e Arquivo do Estado/SP, 1998-

CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA SP


2000). Secretária-geral do Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado (IEVE) e pesquisadora do LEI-FFLCH/USP; ex-pesquisadora
do NEV/USP. Possui mestrado (2005) e doutorado (2011) em história social pela mesma universidade, respectivamente como bolsista do
CNPQ e da Fundação Ford do Brasil. Desenvolve pesquisas em história política e cultural, com ênfase em história do Brasil república.
Autora e organizadora de livros sobre a ditadura citados em diversas obras da literatura especializada nacional e internacional.

JEANNE MARIE GAGNEBIN


estudou filosofia, literatura alemã e grego antigo na Universidade de Genebra. Concluiu o doutorado em filosofia na Universidade de
Heidelberg (Alemanha) em 1977. Vive e leciona no Brasil desde 1978. Realizou vários estágios pós-doutorais em Konstanz, Berlin e Paris.
Atualmente é professora titular de filosofia na PUC/SP e livre-docente em teoria literária na Unicamp. Suas principais publicações são: Zur
Geschichtsphilosophie Walter Benjamins, Erlangen, 1978; Walter Benjamin. Os Cacos da História, São Paulo, 1982; Histoire et narration chez
Walter Benjamin, Paris, 1994 (trad. br. História e Narração em Walter Benjamin, São Paulo, 1994;  trad. alemã Geschichte und Erzählung
bei Walter Benjamin, Würzburg, 2001); Sete Aulas sobre Memória, Linguagem e História, Rio de Janeiro, 1997; Lembrar. Escrever. Esquecer, 311
São Paulo, 2006.

Jorge Broide
é psicanalista, membro da Associação Psicanalitica de Porto Alegre (APPOA) e doutor em psicologia social pela PUC-SP. É também pro-
fessor do curso de psicologia da PUC-SP.
José Guillermo Milán-Ramos
é licenciado em linguística pela Universidad de La Republica (Montevidéu, Uruguai, 1995), mestre em linguística pela Universidade Es-
tadual de Campinas (2001) e Doutor em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Foi professor da Universidad de la
República (Uruguai) entre 1993 e 2005 e professor do Mestrado em Letras da Universidade do Vale do Rio Verde (Unincor) (2006-2010).
Atualmente é pós-doutorando no IEL/Unicamp. Tem experiência na área de linguística, atuando principalmente nos seguintes temas: te-
oría lingüística, linguagem e psicanálise e análise do discurso. Atualmente é membro do centro de pesquisa OUTRARTE (IEL-Unicamp),
da Rede Interuniversitária de Pesquisa Escritas da Experiência (Brasil/ França), do grupo de trabalho da ANPEPP “Psicanálise: política e
cultura” e do grupo de pesquisa “Clínica psicoanalítica y lazo social” da Facultad de Psicologia da Universidad de la República (Uruguai).

Kate Thompson
é psicóloga. Atuou em trabalhos humanitários na África com a ONG  Médicos sem Fronteiras (1993-1995) na Libéria e Costa do Mar-
fim e nos campos de refugiados em torno de Ngara, na Tanzânia. Foi delegado do Comitê Internacional da Cruz Vermelha em Ruan-
da (1997). Desde 1997 tem trabalhado com o apoio psicológico aos Refugiados junto à North East london Foundation sediada no bairro
londrino de Waltham Forest, ali colabora com  outros psicólogos especializados no trabalho com os refugiados que procuram asilo. O
projeto de apoio ao refugiado oferece um serviço que combina clínica, desenvolvimento da comunidade, trabalho, sensibilização e for-
mação. Outras atividades incluem consultoria no exterior para o British Council em Khartoum, onde trabalha com mulheres sudanesas
ativistas em torno de estratégias para o enfrentamento de problemas comunitários. Isso reflete seus interesses e trabalho no significado
social das experiências de opressão, guerra, política e exílio, e seu foco na comunidade como uma ferramenta para a reconstrução.

Manoel Tosta Berlinck


é sociólogo e psicanalista. É Ph.D. pela Cornell University, Ithaca, N.Y., USA. Foi professor da Escola de Administração de Empresas de
São Paulo (EAESP) da Fundação Getúlio Vargas (1969 -1972) e professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, Campinas,
SP/Br.) (1972-1992). É sócio fundador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) (1969- ). Foi Diretor do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UNICAMP (1972-1976). Atualmente é professor do Departamento de Psicologia do Desenvol-
vimento da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP/Br) e Professor do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP/Br.), onde dirige, desde 1995, o Laboratório de Psicopatologia Fundamental. Preside a Associação Uni-
Psicologia,Violência e Direitos humanos

versitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF) (2002-2012). Foi o editor responsável pelas revistas Pulsional Revista de
Psicanálise (1987-2009). Atualmente é editor responsável da Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental e membro da World
Association of Medical Editors – WAME (Associação Mundial de Editores Médicos) e do Council of Science Editors – CSE. Foi diretor da
Livraria Pulsional – Centro de Psicanálise (1987-2009) e da Editora Escuta (1987-2009). É autor de Psicopatologia Fundamental (2000) e de
Erotomania com German E. Berrios (2009), entre outros livros e numerosos artigos.

Maria Auxiliadora Arantes


é psicóloga e psicanalista do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; doutora em Ciências Sociais e Mestre em psicologia
clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi membro da Comissão de Direitos Humanos do CRP São Paulo – Gestão 2004-2007.
Coordenadora da Comissão de Direitos Humanos do CRP São Paulo – Gestão 2007-2010.
Exerceu durante o ano de 2010 o cargo de coordenadora do programa de combate à tortura do governo federal ligado à Secretaria Especial de
Direitos Humanos da Presidência da República.
312 Membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, a partir de 2011.
Autora de Pacto Re-velado-psicanálise e clandestinidade política (Escuta, 1995) e Estresse (Casa do Psicólogo, 2003)

Maria Cristina Vicentin
é professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Brasil, onde
coordena o Núcleo de Pesquisas Lógicas Institucionais e Coletivas.
Miriam Debieux Rosa
psicanalista, é professora doutora do Programa de Psicologia Clínica da USP, onde coordena o Laboratório Psicanálise e Sociedade e o
Projeto Migração e Cultura; é professora Titular do Programa de Pós-Graduação da Psicologia Social da PUC-SP, onde coordena o Núcleo
Psicanálise e Política. Lidera o Grupo de pesquisa Sujeito, Sociedade e Política em Psicanálise (CNPq -USP) e é membro do Laboratório
de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Polítca (LAPPAP – UFRGS) e do grupo de trabalho Psicanálise: Política e Cultura, da ANPEPP. As suas
pesquisas nestas áreas estão publicadas em vários trabalhos e capítulos de livro. O livro Histórias que não se contam: psicanálise com crian-
ças e adolescentes, foi reeditado pela Editora Casa do Psicólogo, em 2010. Coordena atualmente, com a Profa. Dra Maria Cristina Vicentin, a
pesquisa Responsabilidade e responsabilização: diálogos entre psicologia, psicanálise e Sistema de Justiça Juvenil (CNPq).

PAULO ENDO
é psicanalista e professor doutor do Instituto de Psicologia da USP. Realizou pós-doutoramento no Centro Brasileiro de análise e planeja-
mento (CEBRAP) em convênio com o Centro de aperfeiçoamento do ensino superior (CAPES).É membro pesquisador do Laboratório de
Psicanálise, Arte e Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), do Núcleo de apoio à pesquisa DIVERSITAS-Núcleo
de Estudos das diversidades, intolerâncias e conflitos(USP) e do Grupo de Trabalho da ANPEPP Psicanálise, Política e Cultura. É expert
junto ao Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e membro do grupo interdisciplinar independente de combate à tortura e à
violência institucional da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal (SDH). É também membro da Comissão Psicologia e Violên-
cia do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo e membro convidado da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia-6ª. Região. Em 2006 foi agraciado
com o Prêmio Jabuti pela livro A Violência no Coração da Cidade: Um Estudo Psicanalítico. Publicou também os livros Freud: ciência,
arte e política, juntamente com Edson Sousa, e Novas Contribuições Metapsicológicas à clínica Psicanalítica (Org.) e Psicologia, Violência
e Direitos Humanos (Org.).

SANDRA ELENA SPOSITO


psicóloga; mestre em Educação pela UNESP-Bauru; Doutoranda em psicologia na UNESP-Assis; professora universitária; conselheira
do CRP SP nas gestões 2003-2007 e 2007-2010; coordenadora da Comissão de Direitos Humanos do CRP SP entre 2009-2010.

Sir Nigel Rodley 
obteve seu bacharelado em direito pela Universidade de Leeds, em 1963, seu mestrado (LLM) pela Universidade de Columbia em 1965 e

CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA SP


mestrado (LLM) pela New York University em 1970. É PhD pela Universidade de Essex. Iniciou como um professor assistente de direito
na Universidade Dalhousie, no Canadá. Em 1990 iniciou como professor de direito da Universidade de Essex e tornou-se Reader in law em
1994. Foi decano de direito entre 1992-1995. De 1993 a 2001 atuou como relator especial sobre tortura da Comissão da ONU sobre Direi-
tos Humanos. Desde 2001 ele é membro do Comitê de Direitos Humanos da ONU, estabelecido no âmbito do Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos. Em 1998, foi condecorado na Queen’s New Year’s Honours por serviços prestados aos Direitos humanos e ao di-
reito internacional e em 2000 ele recebeu um LLD(Doctor in Laws) honorário da Dalhousie University. Recebeu da Sociedade Americana
em 2005 a International Law Medal Butcher Gole T. por seu trabalho distinguido em direitos humanos. Em 2008, foi nomeado Membro
Honorário da Faculdade de Medicina Forense e Jurídico do Royal College of Physicians.

Teresa Cristina Endo


é psicóloga, mestre em psicologia social (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e doutoranda em psicologia clínica (PUC-SP). É pes-
313
quisadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental (PUC-SP), assistente técnica da área de Saúde Mental, Álcool e Drogas da Secretaria
Municipal da Saúde do município de São Paulo, professora do Departamento de Métodos e Técnicas da Faculdade de Ciências Humanas e
da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, conselheira do CRP SP e membro da Comissão de Direitos Humanos do CRP SP.
 
Wim Muller
é pesquisador e doutorando no Instituto Universitário Europeu em Florença, Itália. Depois de estudar história e direito na Universidade de
Leiden, na Holanda, ele trabalhou para a seção holandesa da Comissão Internacional de Juristas, conferiu palestras em direito internacional
público nas universidades de Leiden e Amsterdã, e serviu como consultor para a Bósnia-Herzegovina nos casos anteriores ao Tribunal Inter-
nacional de Justiça. Foi pesquisador sênior do Centro de Direitos Humanos da Universidade de Essex, em um projeto que visava o combate
à tortura na República Popular da China antes de ir para Florença, onde ele trabalha atualmente numa tese de doutorado sobre o impacto do
crescimento da China no direito público internacional, em especial na legislação relativa à proteção dos indivíduos. Foi membro do conse-
lho editorial da Revista de Direito Internacional Leiden e editor-chefe do Jornal Europeu de Estudos Jurídicos. Seus principais interesses de
pesquisa estão em direito internacional geral, direitos humanos, direito internacional humanitário e direito penal internacional, bem como a
relação entre direito internacional e comunidade internacional.
ZILDA MÁRCIA GRÍCOLI IOKOI
é mestre e doutora em história social pela Universidade de São Paulo. É professora titular do Departamento de História da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, na área de história do brasil independente, atuando principalmente na
linha de pesquisa história das relações e dos movimentos sociais, nos temas da educação, lutas camponesas, políticas públicas, imigração
contemporânea, humanidades, direitos e outras legitimidades. Foi diretora executiva do LEI (Laboratório de Estudos sobre a Intolerân-
cia, da Universidade de São Paulo), vice-diretora do Conselho Administrativo da Associação Museu da Tolerância e Secretária Geral da
Associação Nacional de História – Seção São Paulo. Atualmente é Coordenadora do Núcleo de pesquisa DIVERSITAS, da Universidade
de São Paulo.
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CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA SP
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