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CAMILO VANNUCHI E LUCAS PAOLO VILALTA (ORGANIZADORES)

Copyright @ 2021 Ins tuto Vladimir Herzog

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Organização
Camilo Vannuchi e Lucas Paolo Vilalta

Projeto gráfico e diagramação


IGIL – Indústria Gráfica Itu

Capa
Camilo Vannuchi

Foto de capa
Marcelo Vigneron

Revisão
Salvine Maciel

Todos os direitos reservados ao:


Ins tuto Vladimir Herzog
R. Duar na, 283 – Sumaré
CEP 01256-030 – São Paulo - SP
Tel. (11) 2894-6650
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instagram.com/vladimirherzog
Fica registrado que os crimes contra a
liberdade serão sempre descobertos.

Inscrição no marco de memória


construído no Cemitério Dom Bosco
Instituto Vladimir Herzog Prefeitura de São Paulo

Clarice Herzog Bruno Covas


Presidente Prefeito

Ivo Herzog Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania


Presidente do Conselho
Claudia Carletto
Rogério Sottili Secretária
Diretor Executivo
Juliana Felicidade Armede
Isabel de Barros Rodrigues Secretária Adjunta
Assessora especial
Luiz Orsatti Filho
Memória, Verdade e Justiça Chefe de Gabinete
Lucas Paolo Vilalta
Veronica Tavares de Freitas Equipe de Educação em Direitos Humanos e
Débora Rocha Pontes Direito à Memória e à Verdade

Comunicação Coordenadores
Carolina Vilaverde Mansur Bassit
Lucas Barbosa Cassio Rodrigo de Oliveira Silva
Franklin Ferreira Renata Mie Garabedian
Carol Baggio
Assessoras
Educação em Direitos Humanos Tayná Rodrigues Salviano
Ana Rosa Abreu Sophia Felix Medeiros
Hamilton Harley Vera Velozo

Jornalismo e Liberdade de Expressão


Giuliano Galli

Administrativo
Sandra Faé
Maria Cristina Berger

Este projeto contou com o apoio de emenda parlamentar do mandato da vereadora Juliana Cardoso
Sumário

Uma história de violência que precisa ser conhecida · Rogério Sottili ............................................................................................................................ 09

Compromisso com os Direitos Humanos · Ana Claudia Carletto .................................................................................................................................. 12

Preservar a memória e buscar a verdade · Cássio Rodrigo de Oliveira Silva e Mansur Abunasser Bassit .................................................................... 14

1. A abertura .......................................................................................................................................................................................................................... 17

Caco Barcellos: “Fiquei chocado e me dei conta da dimensão que aquilo tinha” · Camilo Vannuchi ........................................................................ 30

2. A origem ............................................................................................................................................................................................................................. 39

Toninho, o homem que procurava · Camilo Vannuchi ..................................................................................................................................................... 49

3. O inquérito ........................................................................................................................................................................................................................ 53

CPI Perus/Desaparecidos Políticos · Relatório apresentado à Câmara Municipal de São Paulo em 1991 ................................................................ 64

4. Primeiras análises ............................................................................................................................................................................................................ 101

Vala clandestina: passado, presente, futuro · Jéssica Moreira ......................................................................................................................................... 111

5. A luta por verdade e justiça .......................................................................................................................................................................................... 119

Desaparecimento e Ocultação de Cadáveres: violações aos direitos humanos nos cemitérios de São Paulo ......................................................... 131

6. A retomada ...................................................................................................................................................................................................................... 163

Direito à identidade: cenas de uma história por fechar · Carla Borges e Clara Castellano ......................................................................................... 179

7. Os desaparecidos que reapareceram .......................................................................................................................................................................... 187

Memória, verdade e justiça para transformar a cultura de violência em nosso país · Rogério Sottili e Lucas Paolo Vilalta .................................. 198

8. Violência de Estado hoje ............................................................................................................................................................................................... 205

Brasil: um laboratório do desaparecimento · Fábio Luís Ferreira Nóbrega Franco....................................................................................................... 215


Uma história de violência que precisa ser conhecida
Rogério So li¹

A ocultação deliberada de mais de mil ossadas na vala de Perus é um desses episódios monstruosos da história
recente do Brasil, tais como o genocídio de milhares de pessoas na colônia psiquiátrica de Barbacena (MG), a práti-
ca criminosa de tocar fogo em aldeias indígenas, o massacre do Carandiru, ou o genocídio de mais de quinhentos
civis nos chamados crimes de maio de 2006.
Essas histórias reais, que nenhum autor de cção seria capaz de inventar com tamanha crueldade, precisam ser
lidas e contadas, hoje e sempre. Não apenas para que tais atrocidades nunca mais aconteçam, mas principalmente
para que deixem de se repetir, nos casos em que nem o tempo nem a Justiça foram capazes de derrotá-las.
Registrar fatos ainda obscuros de violência de Estado e outras violações de direitos, de ontem e de hoje, tem sido
uma espécie de o orientador da atuação do Instituto Vladimir Herzog (IVH). Nosso compromisso de nunca passar
pano para quem oprime, censura, persegue ou agride renova-se como um imperativo ético, para que nenhuma
tirania seja aceita, nenhuma truculência seja tolerada, nenhum mal seja banalizado.
É neste sentido que a história da vala clandestina de Perus, passados trinta anos desde a revelação de que mais de
mil ossadas foram deliberadamente ocultadas no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, ainda nos causa indignação
e revolta. Ali, uma trama sórdida envolveu a esfera federal, por meio do Dops e do DOI-Codi, a estadual, por meio
dos IMLs e da polícia que mata, e a municipal, responsável pela administração daquele cemitério.
O episódio nos causa indignação, porque sabemos que a vala serviu para decretar não apenas a morte, mas
também o desaparecimento de vítimas da polícia militar, dos grupos de extermínio, dos centros de tortura e até de
um surto de meningite que acometeu a cidade de São Paulo na primeira metade dos anos 1970. E nos causa revolta,
porque ainda convivemos com a tortura, com as execuções extrajudiciais e com o desaparecimento forçado, todos
crimes contra a humanidade condenados no sistema internacional.
Até hoje, a justiça brasileira foi incapaz de condenar aqueles que torturaram, mataram e sumiram com os cor-
pos de suas vítimas, seja nas usinas, nos sítios, na Baía de Guanabara ou na vala de Perus. A interpretação e a aplica-
ção que têm sido dadas à Lei de Anistia por setores do Judiciário, inclusive o STF, têm impedido passos importantes
do direito à memória e da justiça de transição, perpetuando, assim, um legado de condescendência com a impuni-
dade e de tolerância com o intolerável.
Onde estão os desaparecidos políticos? De quem são as ossadas de Perus? Quem ordenou que aquelas ossadas
fossem escondidas numa vala clandestina? Por que até hoje ninguém foi condenado e punido?
Este trabalho contribui para jogar luz sobre os crimes de tortura, execução política, desaparecimento forçado e
ocultação de cadáveres e nos alerta para o fato de que essa história ainda está viva. Cada ossada passível de identi -
cação é uma pedra no sapato dos torturadores, estupradores, assassinos e ocultadores.
¹Rogério So li é diretor-
execu vo do Ins tuto Como na canção ‘‘Pesadelo’’, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, esses remanescentes ósseos, que
Vladimir Herzog (IVH). tentaram ocultar, e que se levantaram do chão para seguir denunciando a violência de Estado, são resistentes que,

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mesmo depois de mortos, estão por aí, perturbando a paz e exigindo troco. O mérito é sobretudo das mães, irmãs,
companheiras e lhas que se per laram nas comissões de familiares – ontem, a dos mortos e desaparecidos políticos
dos anos 1960 e 1970; hoje, as Mães de Maio que denunciam o arbítrio dos anos 2000. São elas, e também os pais,
irmãos, companheiros e lhos, que jamais deixaram de cobrar explicações e seguem scalizando os trabalhos de
análise e identi cação das ossadas, cinquenta anos após o assassinato de seus familiares.
Com o espírito de impedir que os desaparecidos desaparecessem pela segunda vez, agora no âmbito da memó-
ria, trabalhei intensamente para que as análises das ossadas de Perus fossem retomadas quando estive à frente da
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo (SMDHC), nos primeiros três anos da gestão
Fernando Haddad. Era a primeira vez que o município tinha uma pasta de Direitos Humanos. Ali, instituímos uma
coordenação dedicada especi camente a construir políticas voltadas para o direito à memória e à verdade e ajuda-
mos a colocar a vala de Perus novamente no centro da pauta.
Uma oportuna con uência de gestões sensíveis aos temas de direitos humanos e justiça de transição, com
Dilma Rousseff na Presidência da República e Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo, possibilitou não apenas
a retomada das análises, mas também a formação do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense da Unifesp,
pioneiro nesse tipo de trabalho, como a leitora e o leitor conhecerão nas próximas páginas.
Enquanto construíamos uma agenda de memória e verdade para a cidade, o jornalista e escritor Camilo Vannu-
chi integrou a Comissão da Memória e Verdade (CMV) da Prefeitura de São Paulo, instituída para apurar, registrar e
denunciar as violações de direitos humanos praticadas pela própria Prefeitura Municipal durante a ditadura. E
também para recomendar ao poder Executivo ações e políticas públicas que ajudem a impedir a repetição daquelas
violações ou a prevalência de crimes semelhantes. Tal comissão foi coordenada pela ex-vereadora Teresa Lajolo, que
em 1990 fora a relatora da CPI da Câmara Municipal que investigou a vala de Perus e os desaparecimentos políticos.
Além de denunciar os meandros do aparato repressivo que resultou na construção da vala, o relatório nal
daquela Comissão da Memória e Verdade, elaborado sob a liderança de Camilo Vannuchi, sugeriu medidas a serem
adotadas pela Prefeitura, pelo Serviço Funerário, pelo Instituto Médico Legal e pela Secretaria de Segurança Públi-
ca. Entre os objetivos das recomendações estava o de garantir aos familiares dos desaparecidos políticos o direito de
reti car os assentos de óbitos e velar seus mortos, e também o de coibir a prática dos crimes de desaparecimento
forçado e ocultação de cadáveres, quali cados como de lesa-humanidade pela ONU e ainda veri cados no Brasil.
Naquela comissão, mas sobretudo no jornalismo, Camilo Vannuchi tem se revelado um autor prolí co, forte-
mente comprometido com os direitos humanos, e um militante incansável da luta por memória, verdade e justiça.
Ele e Lucas Paolo Vilalta, nosso coordenador de Memória, Verdade e Justiça, são os responsáveis por organizar este
livro paradidático, que esperamos que se torne uma referência nas escolas de São Paulo e de todo o país. Para nós do
Instituto Vladimir Herzog, é uma honra poder apresentar este livro, que se originou da reportagem de fôlego, ante-
riormente publicada em versão digital em nosso portal Memórias da Ditadura e em versão impressa no livro Vala de
Perus: uma biogra a (Alameda Editorial), escrita com maestria e urgência pelo Camilo sob a supervisão do Lucas,
numa época em que parte signi cativa da população brasileira, sobretudo a juventude preta e periférica, ainda é
vítima de uma política de Estado genocida.
Mais ainda, é uma satisfação apresentar esta edição paradidática, acrescida de documentos históricos, como a
reprodução na íntegra do relatório nal da CPI de 1990 e também dos dois capítulos do relatório da Comissão da
Verdade da Prefeitura de São Paulo, de 2016, que versaram sobre a vala clandestina. Somam-se a eles seis textos
novos, atualíssimos, incluindo uma entrevista com o jornalista Caco Barcellos e um per l do administrador do
cemitério de Perus, Antônio Pires Eustáquio, feitos pelo próprio Camilo. Completam este valioso material quatro
artigos que aprofundam o conhecimento sobre a descoberta da vala e seus efeitos no cotidiano do bairro, a história
recente que culminou na retomada das buscas pela identi cação dos indivíduos por trás das ossadas, o trabalho

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sobre direito à memória e à verdade no Brasil e um mapeamento dos dispositivos que, ontem e hoje, permitem o
desaparecimento forçado e a ocultação de cadáveres, mesmo na democracia. Nas próximas páginas, um capítulo
fundamental da história do Brasil é contado por Camilo Vannuchi com contribuições muito oportunas de autoras e
autores como Jéssica Moreira, Fábio Franco, Carla Borges, Clara Castellano e Lucas Paolo Vilalta.
Por m, destaca-se que este trabalho só foi possível porque o compromisso com os direitos humanos, particu-
larmente no âmbito da educação em direitos humanos e da defesa do direito à memória e à verdade, extrapolou os
limites temporais da nossa experiência pioneira e pôde ser assimilado por aqueles que nos sucederam na secretaria.
De modo que este material, publicado no primeiro semestre de 2021, é uma realização do Instituto Vladimir Herzog
em parceria com a Prefeitura de São Paulo, produzido com o apoio do mandato da vereadora Juliana Cardoso e da
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania durante a gestão de Ana Cláudia Carletto à frente da pasta.

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Compromisso com os Direitos Humanos
Ana Claudia Carle o²

A publicação do livro Vala de Perus: um crime não encerrado da ditadura militar materializa os esforços da
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) de apresentar aos cidadãos um capítulo dramá-
tico da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), cujas consequências na cidade de São Paulo ressoam nas vidas
de muitos familiares, repercutem em nossa memória coletiva e exigem, até o presente, a devida reparação. Portanto,
dedico este livro a todos e todas que lutaram e lutam por memória, verdade e justiça.
Em 4 de setembro de 1990, passados cinco anos desde o m do último governo militar, foram encontradas 1.049
ossadas no Cemitério Dom Bosco, em Perus. Há 30 anos, esta descoberta lançou luz sobre o uso de espaços públicos
da cidade para torturas, assassinatos e ocultamentos de corpos, entre outras ações criminosas cometidas sob a égide
da ditadura militar, inclusive em sítios clandestinos e em cemitérios municipais.
Garantir a memória e a verdade das vítimas do Cemitério Dom Bosco representa um compromisso crucial da
Prefeitura de São Paulo, e é precisamente neste contexto que este livro se insere. Mediante parceria entre a SMDHC e
o Instituto Vladimir Herzog, a obra tem o escopo de registrar os bastidores desse escandaloso episódio, por meio
das memórias de seus protagonistas, submetidos aos danos à integridade e à dignidade humana.
Cumpre recordar que, apenas em 2012, vinte e sete anos após o m da ditadura, foi instaurada a Comissão
Nacional da Verdade (CNV), que teve seu trabalho nalizado em 2014. A descoberta da vala de Perus é uma evidên-
cia consistente, documentada e investigada com a devida diligência, que comprova as graves violações de direitos
humanos que tiveram lugar durante a ditadura militar na cidade. Ações sistemáticas como as que ocorreram em
Perus buscaram eximir a responsabilidade da repressão, ao mesmo tempo que denegam o direito dos cidadãos à
memória para buscar justiça, reparação e punição dos responsáveis.
Desde sua criação, em 2013, a SMDHC envidou esforços no sentido de valorização dos direitos humanos e da
promoção da memória em nosso território. Nessa direção, em setembro de 2014, foi rmado um Acordo de Coope-
ração Técnica entre o Governo Federal, a SMDHC e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com vistas à
criação do Grupo de Trabalho do Caso Perus.
Ao longo dos últimos anos, equipes de peritos e peritas do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da
Unifesp (CAAF) foram instituídas com o desígnio de realizar a análise dos restos mortais exumados da vala clan-
destina, garantindo tratamento respeitoso e adequado às ossadas e adotando as medidas necessárias para sua pre-
servação, conservação e segurança.
Em dezembro de 2019, a última caixa foi aberta e, com ela, uma nova etapa se iniciou, voltada à reassociação de
ossos e à reunião de todas as informações coletadas ao longo desses anos de trabalho em uma plataforma de dados
²Ana Claudia Carle o é
com vistas à identi cação e à entrega dos remanescentes ósseos aos familiares, ou a pessoas legitimadas, para sepul-
Secretária Municipal de
tamento de forma digna. Direitos Humanos e
Ao cabo desses esforços, a SMDHC construirá um monumento às vítimas da vala de Perus, como uma ação de Cidadania de São Paulo.

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promoção e valorização dos direitos humanos das vítimas neste território. O comprometimento da Prefeitura de
São Paulo na construção desse memorial em
Perus reforça seu engajamento para desenvolver espaços de memória afetiva, de luta e resistência em nossa
cidade, em respeito às vítimas e ciente de sua responsabilidade de criar espaços de memória. Representa, ademais, o
compromisso do Executivo Municipal com uma das recomendações da Comissão Nacional da Verdade, também
elencada pela Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, qual seja, a adoção de medidas para
preservação da memória das vítimas das graves violações de direitos humanos mediante a criação de marcas de
memória em imóveis onde ocorreram tais condutas criminosas.
Em paralelo, a Prefeitura de São Paulo segue desenvolvendo e coordenando ações de defesa e proteção dos dire-
itos humanos na esfera municipal, por meio da promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na edu-
cação. É o caso do programa “Ruas de Memória”, que prevê a mudança progressiva das denominações de logradou-
ros e equipamentos públicos municipais em homenagem a pessoas, datas ou fatos associados a graves violações de
direitos humanos.
Em nosso Departamento de Memória e Verdade, o projeto “Territórios da Memória” simboliza outra parceria
bem-sucedida entre a SMDHC e o Instituto Vladimir Herzog. Esse projeto foi construído para disseminar, valorizar
e reconhecer as memórias de locais da cidade de São Paulo e das comunidades que compõem esse território por
meio do mapeamento de lugares, pessoas e narrativas formadoras dessas memórias e, assim, disseminá-las median-
te produtos, encontros e ações artístico-culturais. Similarmente, a cidade de São Paulo tem cooperado junto à
Rede Latino-Americana de Lugares de Memória para trocas de informações e experiências e junto à Comissão para
Esclarecimento da Verdade, Coexistência e Não Repetição, da Colômbia, consciente do passado similar de repres-
sões e violações no âmbito regional.
Assim, é por meio de potentes instrumentos de educação em direitos humanos, como este livro, que buscamos
assegurar que nossos cidadãos conheçam a história da vala de Perus, cuja descoberta, há 30 anos, amalgama-se e
modula-se à identidade de nosso município. Já dizia Milton Santos, geógrafo baiano que passou seus últimos anos
em São Paulo, que “a cidade está fadada a ser, ao mesmo tempo, o teatro de con itos crescentes e o lugar geográ co e
político de soluções”. Nessa direção, é premente que a Prefeitura de São Paulo publicize um dos episódios mais
escandalosos e representativos dos crimes contra a humanidade praticados pela ditadura civil-militar brasileira no
território da cidade, a m de promover a dignidade das vítimas e a garantia de memória, justiça e não repetição das
graves violações de direitos humanos cometidos pelo Estado em um passado recente na história deste país.

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Preservar a memória e buscar a verdade
Cássio Rodrigo de Oliveira Silva³
Mansur Abunasser Bassit⁴

Como falar sobre Direito à Memória e à Verdade em uma sociedade que não valoriza sua história e tampouco
preserva sua memória, como a brasileira?
Podemos dizer que o Direito à Memória e à Verdade é um dos pilares da justiça de transição e é o meio mais
seguro para a construção de identidade e memória coletivas. Para os juristas Flávia Piovesan e Hélio Bicudo, “o
direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história e da memória coletiva. Serve a um duplo
propósito: proteger o direito à memória das vítimas e con ar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a
repetição de tais práticas”.
Nossos ancestrais transmitiam nossa história, memória e cultura por meio da oralidade. Os mais velhos com-
partilhavam com os mais novos os saberes acumulados ao longo de toda uma vida. A sociedade atual esqueceu-se
da oralidade, da importância de ouvir as histórias contadas por nossos ancestrais, de aprender com elas, corrigindo
rumos, acertando caminhos.
Essa oralidade pode ser tomada como fonte para a compreensão do passado, ao lado de documentos escritos,
imagens e outros registros. Ela faz parte de todo um conjunto de documentos de caráter biográ co, ao lado de
memórias e autobiogra as, que permitem compreender como indivíduos experimentaram e interpretaram aconte-
cimentos, situações e modos de vida de um grupo ou da sociedade em geral.
Ao observarmos todo o trabalho desenvolvido junto à vala de Perus desde a retomada das análises daquelas
ossadas – garantida por um convênio rmado entre Governo Federal, Prefeitura de São Paulo e Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp) –, introduzimos o tema dos desaparecidos políticos na estrutura organizacional da
administração municipal com a Coordenação de Direito à Memória e à Verdade. Por meio de um Acordo de Coo-
peração Técnica entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), a Secretaria Muni-
cipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo (SMDHC) e a Unifesp, criamos e estabelecemos as atribuições
do Grupo de Trabalho Perus, instituído em 2014 para acompanhar a busca por identi cações dos restos mortais
exumados da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco vinte e quatro anos antes. ³Cássio Rodrigo de Oliveira
A importância dessa política se deve ao fato de que gerações inteiras desconhecem o que foi a ditadura militar Silva é diretor do
no Brasil. Hoje, apenas 15% da população brasileira tem mais de 60 anos de idade. A imensa maioria dos brasileiros Departamento de Educação
tinha menos de 10 anos ou não era nascida em 1970, quando o país vivia o período de maior repressão política da em Direitos Humanos da
Secretaria Municipal de
ditadura. Nesse sentido, lembranças pessoais são cada vez mais escassas ou remotas. Direitos Humanos e
Nos dias atuais, sofremos com o revisionismo histórico, que busca reinterpretar o passado com base na ambi- Cidadania (SMDHC).
guidade dos fatos e na imparcialidade com que esses fatos podem ter sido descritos. Inúmeras fake news entopem as
⁴Mansur Abunasser Bassit foi
redes sociais. Criam-se novas histórias, ou novas narrativas, transmitidas maciçamente como se fossem reais,
coordenador de Direito à
fazendo com que duvidemos de tudo o que aprendemos ao longo da história. Por isso a importância da preservação Memória e à Verdade da
da memória e da verdade. SMDHC (2020).

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Reproduzindo o Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), “a história que não é transmiti-
da de geração a geração torna-se esquecida e silenciada. O silêncio e o esquecimento das barbáries geram graves
lacunas na experiência coletiva de construção da identidade nacional. Resgatando a memória e a verdade, o país
adquire consciência superior sobre sua própria identidade, a democracia se fortalece”.
No caso da vala de Perus, nos deparamos também com o trauma das pessoas que tiveram um familiar morto
por agentes da repressão e não conseguiram obter respostas sobre o paradeiro dele.
O imperativo da reparação histórica e os pilares da justiça de transição inspiraram a Secretaria Municipal de
Direitos Humanos e Cidadania a instituir, em 2016, o Prêmio de Direito à Memória e à Verdade Alceri Maria Gomes
da Silva, reformulado pela Portaria nº 137 da SMDHC, de 2019. O objetivo do prêmio é homenagear pessoas físicas
ou jurídicas que, sediadas em São Paulo ou tendo a cidade como foco de seu trabalho, atuem na preservação da
memória e na busca pela verdade das violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar.
Também o livro Vala de Perus: uma biogra a, produzido por meio de Termo de Fomento assinado pelo Institu-
to Vladimir Herzog e pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, rma-se como uma importante
política pública dedicada a resgatar e registrar os bastidores de um dos episódios mais evidentes de violação de dire-
itos humanos ocorridos durante a ditadura militar: a criação, em 1976, e a revelação, em 4 de setembro de 1990, de
uma vala comum construída ilegalmente no Cemitério Dom Bosco, em Perus.
Assim, entendemos que, além da efetivação do direito à memória e à verdade, também cumprimos o desa o de
atualizar, de modernizar instituições públicas, tornando-as mais democráticas. Pois não nos interessa apenas inves-
tigar ou punir, mas principalmente construir uma sociedade orientada pelo real sentido de democracia.

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FOTO: MARCELO VIGNERON

Funcionários do Cemitério
Dom Bosco, em Perus, na
zona noroeste de São Paulo,
re ram os primeiros sacos
com ossos humanos de uma
vala clandes na revelada
em 4 de setembro de 1990.
Como eles foram parar ali?
Quem os mandou ocultar?
1
A abertura

Você me prende vivo, eu escapo morto.


De repente, olha eu de novo.
Perturbando a paz, exigindo troco.
Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, em “Pesadelo”

— Você tem certeza de que quer entrar aí? 1990. Ocupava um predinho de três andares na Praça
Caco notou algum sarcasmo na pergunta feita Marechal Deodoro, bem em frente à recém-
pelo diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo, inaugurada estação de metrô. Era um imóvel antigo,
Rubens Brasil Maluf, no nal de 1987. geminado, estreito e comprido, com elementos neo-
— É importante — disse o repórter. — Os dados clássicos na fachada e vista para os pilares do Minho-
que eu procuro estão aí dentro. cão. Uma escada conduzia à redação, no primeiro
— Você é quem sabe, mas antes vou te mostrar o andar. Caco costumava saltar os degraus de dois em
lugar — assentiu o diretor. — Algo me diz que você vai dois, atrasado para entregar a ta com a matéria a
se arrepender. tempo de ser exibida no telejornal da noite. Tudo
Quase três anos após aquela conversa, Caco Bar- muito rústico, apertado, com mesas de madeira vinca-
cellos ainda frequentava aquela sala, no segundo andar das pelo tempo, estantes abarrotadas e caixas de lme
do IML, no número 151 da Rua Teodoro Sampaio, empilhadas atrás da porta.
colado à Faculdade de Medicina da USP, em Pinheiros. Quem assistia ao Jornal Nacional ou ao Globo
Ia normalmente à noite, após o expediente na televi- Repórter não descon aria que as instalações da emis-
são, e passava algumas horas debruçado sobre laudos sora eram tão precárias. Ainda assim, comparada ao
periciais. “museu” do IML, o predinho da Marechal parecia um
Era um muquifo, embora a placa xada sobre a palácio.
porta de entrada indicasse dissesse “museu”. A sujeira, A sala era uma combinação de arquivo com espaço
a sensação de clausura e a permanente desorganização museológico, carente de limpeza e ventilação, onde
o faziam sentir saudade não apenas das reportagens na estavam guardados todos os registros do IML desde os
rua, seu habitat natural, mas também da redação. anos 1920. Nos cálculos do diretor, 60 mil documentos
A sede da TV Globo em São Paulo não era eram arquivados ali a cada ano.
nenhum exemplo de conforto ou modernidade em Arquivados não é exatamente a palavra. Deveria
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

haver dois milhões de chas, algumas em estantes, tese de que esses policiais agiam de forma deliberada
outras sobre as mesas e mais um bocado espalhado quando executavam delinquentes. Ou seja: atiravam
pelo chão. para matar. O que ele não sabia quando começou sua
Quando começou a frequentar o muquifo, no investigação, mas descobriria ao longo da pesquisa, é
comecinho de 1988, uma das primeiras providências que, em mais da metade das vezes, a vítima não tinha
tomadas pelo jornalista, com a ajuda de um estagiário, passagem pela polícia nem era suspeita de nenhum
foi colocar em ordem cronológica aquela montanha de roubo ou furto. Os matadores de bandidos, tratados
pastas e papéis. O resultado: duas paredes de 7 metros como heróis por certos radialistas e políticos, não
de comprimento por 3 metros de altura tomadas de passavam de matadores de inocentes. Sete anos dedi-
alto a baixo pela papelada. cados ao tema resultariam no livro Rota 66: a história
Para além do cheiro de mofo e da espessa camada da polícia que mata, lançado por Caco Barcellos em
de poeira que cobria aquele material, o que tornava 1992.
especialmente insalubre o dia a dia naquela sala era Naquela sala pestilenta, Caco encontrou alguns
uma horripilante coleção de pedaços humanos arma- dos principais insumos para sua pesquisa. Sobretudo,
zenados em grandes potes de vidro num armário sem ali estavam os primeiros registros da chegada dos cor-
portas. Mãos, pés, olhos, fetos e outros fragmentos pos, trazidos normalmente num rabecão do IML após
imersos em formol eram expostos numa espécie de requisição feita por algum delegado de polícia, e tam-
cristaleira macabra. bém os exames datiloscópicos, realizados pelos médi-
Tudo era macabro naquele pardieiro. Álbuns cos do instituto. Por meio deles, Caco conseguia aferir
imensos com fotogra as de cadáveres, ampliações o local de origem dos cadáveres, a cor da pele e a cir-
feitas para evidenciar os detalhes mais fúnebres, ins- cunstância da morte, pelo menos segundo a versão
trumentos usados em exames de necropsia no início o cial. Quando havia indicação de tiroteio ou resistên-
do século XX, máquinas de escrever emperradas, peda- cia à prisão, por exemplo, ou quando os laudos descre-
ços de macas e cadeiras quebradas completavam o viam dois ou mais ferimentos a bala, de agrados à
cenário, uma espécie de sótão abandonado de lme de queima-roupa (com indícios de pólvora ao redor da
terror. perfuração) ou contra a cabeça ou as costas da vítima
Caco Barcellos tinha 40 anos de idade e frequenta- (sinal de que ela já estava rendida), então o caso era
va aquele lugar desde o nal de 1987. Gaúcho radicado selecionado para ser melhor investigado.
em São Paulo em 1975, quando ingressou no Jornal da Em mais da metade das vezes, as vítimas da PM de
Tarde, Caco passara pelas redações das revistas IstoÉ e São Paulo eram pretas ou pardas e seus corpos tinham
Veja e também atuara na imprensa alternativa antes de sido resgatados em hospitais da periferia. O esquema
pendurar no pescoço um crachá da Globo, em 1985. envolvia a colaboração de diretores de hospitais, que
Especializado em jornalismo policial, Caco tinha uma aceitavam receber as vítimas já mortas e con rmavam
razão muito particular para fazer hora extra naquele a versão divulgada pela corporação: “o bandido não
lugar sinistro: nos intervalos entre as reportagens para resistiu aos ferimentos e veio a falecer ao dar entrada
a TV, investigava os homicídios praticados por policia- no pronto-socorro”. Essa tática era conhecida como
is militares, atividade que ocupava quase todo seu “esquentar” o corpo. O policial responsável por aquela
tempo livre havia mais de cinco anos. morte assumia a posição de alguém munido de boas
Seu objetivo era identi car todos os desconheci- intenções, disposto ao gesto humanitário de levar ime-
dos mortos pela Polícia Militar de São Paulo desde sua diatamente o suspeito para o hospital a m de socorrê-
fundação, em 1970. Numa etapa seguinte, pretendia lo. No boletim de ocorrência, o policial era sempre
listar os campeões da pena de morte, ou seja, os o ciais apresentado como vítima do suposto delinquente, que
com mais execuções nas costas. Caco partilhava da resistira à voz de prisão e atirara contra o agente. O

18
A abertura

morto era o culpado da própria morte. — É T de terrorista — o informante revelou.


Outro padrão percebido por Caco dizia respeito Terrorista era a forma com que a repressão se refe-
ao destino do cadáver. Os corpos das vítimas da PM ria aos integrantes de organizações armadas de oposi-
eram quase sempre enterrados às pressas, como indi- ção à ditadura militar. Caco não cou exatamente
gentes, mesmo que portassem documento na ocasião surpreso com aquela descoberta. Calejado após tantos
de sua morte. Quanto mais rapidamente o corpo anos analisando laudos e reportagens sobre letalidade
sumisse, e sem o conhecimento da respectiva família, policial e formas de repressão, o jornalista sabia que os
menores as chances de revolta ou de algum jornalista militantes executados nos anos 1970 também teriam
incauto resolver denunciar a brutalidade da ação. Para de passar pelo IML. Mas por que assinalar nos laudos
isso, era preciso lançar mão de expedientes pouco sua condição de terroristas? Para quem seria aquele
ortodoxos. Um deles era sumir com os documentos da recado?
vítima. Outra era alterar a identidade ao fazer o regis- Os laudos marcados com a letra T tinham outras
tro do sepultamento para di cultar a localização. peculiaridades. Uma delas era o fato de que as vítimas
Aparentemente, o esquema de morte e ocultação de assinaladas, embora jovens, eram quase todas brancas,
cadáveres das vítimas da PM contava também com a enquanto as vítimas habituais da Rota eram quase
conivência do serviço funerário. Ninguém em sã cons- todas pretas ou pardas. Outra peculiaridade era o
ciência ousaria negar um pedido da Rota. destino dos corpos: a maioria, senão todos, tinha sido
Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar era o nome levada para o mesmo cemitério de Perus aonde eram
completo da Rota, a tropa de elite da PM de São Paulo conduzidos os mortos da polícia. E, segundo os laudos,
nos anos 1970 e 1980. Exercia uma espécie de mono- teriam sido enterrados como indigentes, embora a
pólio da pena de morte no Estado. Em dez anos, entre maioria das chas indicasse nome e liação.
1981 e 1991, o número de homicídios com envolvi- Caco percebeu que estava diante de documentos
mento da PM no Estado saltaria de 300 por ano para que poderiam indicar o paradeiro de alguns dos mili-
mais de mil. Conhecer os nomes dessas vítimas, saber tantes políticos desaparecidos nos anos de chumbo,
as circunstâncias dessas mortes e ouvir as histórias um tema ao qual ele ainda não havia se dedicado. O
dessas famílias virou uma espécie de obsessão de Caco livro Brasil: Nunca Mais, publicado em 1985, trazia
na década de 1980. E o museu do IML poderia dar as uma lista de 125 opositores do regime militar que
respostas que ele buscava. tinham simplesmente sumido, apesar de testemunhas
Em meados de 1990, pesquisando aquela papela- a rmarem que tinham sido vistos em algum órgão da
da, Caco encontrou um detalhe intrigante. Em alguns repressão ou centro de tortura, como o DOI-Codi ou a
dos laudos amontoados na salinha do segundo andar, Casa da Morte de Petrópolis. O número estimado de
em particular nos processos datados de 1971 a 1973 e desaparecidos políticos, àquela altura, devia ser ainda
referentes a encaminhamentos feitos ao IML pelo maior.
Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, Caco levou o caso para a Globo. Ele di cilmente
havia uma letra rabiscada a mão com lápis vermelho. conseguiria aproveitar aquele material no livro que
Uma letra T. estava escrevendo sobre as mortes cometidas pela
Após dois anos fazendo plantão no muquifo, Caco Polícia Militar, uma vez que os “terroristas” não
gozava da con ança de alguns funcionários do IML. tinham sido vítimas da Rota nem da PM, mas poderia
Levou aqueles papéis para um deles. tratar daquela descoberta numa boa matéria para a TV.
— O que signi ca essa marca? — perguntou. — A Seria um furo de reportagem, uma revelação inédita.
mesma marca aparece em diversos laudos do início Sozinhos, aqueles laudos já justi cariam uma boa
dos anos 1970. De 1971 a 1974, para ser exato. Depois matéria. Mas Caco queria mais. Aplicou sobre aqueles
para. documentos a mesma lógica que adotara ao pesquisar

19
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

os laudos das vítimas da PM: Como identi car essas certo já sentiu essa pulsão. A descoberta de uma pista,
pessoas? Como foram mortas? Quais as circunstâncias o encontro com um novo informante, uma denúncia
dessas mortes? Em poucos dias, separou as chas de anônima, cada novidade fazia Caco mergulhar ainda
158 cadáveres encaminhados ao IML por policiais do mais fundo no trabalho, doze, treze, quinze horas por
Dops entre 1970 e 1974. Em todas elas, a mesma expli- dia. Inclusive nos ns de semana.
cação: mortos em tiroteio com órgãos de segurança. Era um domingo quando o jornalista entrou pela
Caco anotou o que havia de identi cação naquelas primeira vez no Cemitério Dom Bosco, no distrito de
guias, a data de entrada no IML e a data e o local de Perus. Os ns de semana são sempre movimentados
destino. nos cemitérios. Mesmo nas tardes de julho, quando
Maurício Maia, produtor de jornalismo do Fan- um vento frio costumava varrer o aclive suave da área
tástico, na TV Globo, assumiu a tarefa de cruzar aque- destinada às sepulturas de Perus, familiares levavam
les dados com as diferentes listas de desaparecidos ores, limpavam as placas de homenagem, arranca-
políticos elaboradas até então, tanto em publicações vam ervas daninhas. Em razão da pesquisa sobre as
como o Brasil: Nunca Mais quanto por grupos como a mortes da PM, Caco gostava de ir aos cemitérios aos
Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos domingos, justamente cogitando encontrar algum
Políticos. Embora os nomes constantes nas chas parente enlutado disposto a contar detalhes sobre a
fossem quase todos falsos, havia uma enorme coinci- morte do lho, do neto ou do irmão. Desta vez, seu
dência de informações em parte signi cativa da lista. propósito era investigar as incongruências no caso dos
Vinte e oito corpos levados para Perus tinham dado “terroristas”. Levou ao cemitério os primeiros locais de
entrada no IML exatamente nas datas prováveis de seu sepultamento daqueles corpos, antes da exumação, e
desaparecimento conforme as listas de mortos e desa- foi conferir o que existia em cada cova.
parecidos. Desses, treze haviam sido localizados e Como Caco previra, nenhuma sepultura coinci-
trasladados pelas famílias para outros cemitérios ao dia. Nas covas onde teriam sido enterrados os cadáve-
longo das décadas de 1970 e 1980. Faltavam quinze. res cujos laudos tinham sido assinalados com a letra T,
Caco e Maurício pegaram o carro e foram até o havia outros corpos, de outras pessoas, sepultadas
cemitério. Como o rosto de Caco aparecia toda hora na anos depois, conforme se podia ler nas placas de home-
TV, decidiram que Maurício iria sozinho até a admi- nagem. Um sepultador explicou a ele que era assim
nistração e, sem se apresentar como funcionário da mesmo, que os restos mortais eram exumados após
TV, pediria para consultar os livros dos primeiros anos três anos e reinumados no mesmo local, ou seja, enter-
da década de 1970. Abriu a lista de datas e nomes que rados novamente, num saco menor e num patamar um
havia preparado e pôs-se a pesquisar. Dali a uma hora, pouco mais fundo, de modo a abrir espaço para a che-
voltou ao carro. gada de outro caixão. E assim sucessivamente.
— Os livros estão todos aí — Maurício contou. — — Que ano foi enterrada a pessoa que o senhor
Catorze desses corpos não têm destino certo. As ossa- procura? — ele quis saber.
das foram exumadas e não se sabe para onde foram. Só — 1972.
se diz, laconicamente, “exumado na data tal”. — Xi, setenta e dois? É muito tempo. Já deve ter
Para Caco, cada nova informação funcionava uns cinco ou seis cadáveres que chegaram depois dela
como um estímulo. Tinha o efeito de uma xícara de na mesma cova.
café, capaz de afastar o sono por um par de horas, ou de — Mas e a placa com o nome?
uma barra de chocolate: doce recompensa pelo esforço — Quem chega para ser enterrado traz uma placa
empenhado. Mais do que isso, era como se cada nova nova e a que tinha antes é descartada.
fase da investigação injetasse uma dose extra de adre- O que Caco não conseguia entender era a ausência
nalina no jornalista. Quem é repórter investigativo por absoluta de informações sobre o local de reinumação

20
A abertura

das ossadas mais antigas. Nos livros dos cemitérios, o Toninho foi enfático:
caminho percorrido pelo cadáver é sempre registrado. — Isso não é nada perto do que eu tenho pra te
Trata-se de um protocolo, uma exigência administrati- falar. Eu tenho a matéria que vai te consagrar.
va: “no dia tal, os restos mortais de fulano de tal foram Caco Barcellos descon ou.
exumados da cova x e reinumados na cova y”. Em — E o que é?
Perus, essa norma não tinha sido observada. Pelo — Vem comigo.
menos não nos anos 1970. Faltavam as datas e os locais O administrador queria falar com o jornalista
de reinumação. num lugar mais reservado, longe da vista dos funcio-
— E por que não há referência ao local de destino nários e do corre-corre das crianças, uma tradição
dessas ossadas? — o jornalista perguntou ao funcioná- naquele cemitério, encravado num bairro periférico
rio. carente de áreas de lazer.
— Isso eu não sei dizer, não, senhor. — Olha, você não vai conseguir encontrar as ossa-
das que você está procurando — Toninho a rmou. —
*** Essas ossadas não estão mais nas covas originais.
Caco ouviu atento o relato do administrador.
“Puta merda, o que esse jornalista tá fazendo — Existe um buraco aqui no cemitério, um ossário
aqui?” clandestino onde foram jogados os restos mortais de
Da janela da administração, Toninho viu o repór- umas 1.500 pessoas, enterradas como indigentes, em
ter da Globo conversando com os sepultadores bem 1976. Garanto pra você que esses corpos que você
ali, na entrada da quadra 2, e logo o reconheceu. Arru- procura estão escondidos nesse buraco. São as pessoas
mou os os do bigode com as pontas dos dedos e foi em que sumiram dos livros de registros.
direção a ele. O jornalista saiu do cemitério impressionado.
Antônio Pires Eustáquio tinha 43 anos, três a mais Aquilo era grave. Muito grave. Prometeu voltar outro
que o repórter, e era o chefe do Cemitério Dom Bosco dia.
desde 1978. Cuidava do lugar como se fosse um casei- Naquela mesma noite, Caco telefonou para o edi-
ro. Naquele momento, em julho de 1990, estava empe- tor do Globo Repórter, Narciso Kalili. Resumidamen-
nhado na construção de um ossário geral, uma grande te, contou que as pesquisas no IML o haviam conduzi-
galeria feita de alvenaria para a qual, vencido o prazo do à descoberta dos laudos com a letra T de “terrorista”
legal de três anos e um mês para a exumação dos cor- e que essas mesmas pessoas haviam desaparecido
pos, seriam transferidas as ossadas dos indigentes e dentro do cemitério de Perus, na periferia de São Pau-
aquelas que não fossem retiradas pelas famílias. lo. Contou a revelação feita pelo administrador e com-
Assim que o administrador se aproximou, os partilhou com o editor a descon ança de que aquele
sepultadores se afastaram, intuindo que poderia caso poderia jogar alguma luz sobre a busca pelos
sobrar para eles. Vai que escapa alguma coisa que não desaparecidos da ditadura.
deveria ser dita. Toninho se apresentou e perguntou se — Vai atrás — Kalili respondeu. — Do que você
Caco havia farejado algo ali para o noticiário. precisa?
Caco contou um pouco da pesquisa que estava — Só preciso car mais uns dias nessa matéria,
fazendo sobre morte violenta em São Paulo e que havia conversar melhor com esse Toninho e checar as infor-
se deparado com muitos personagens que tinham sido mações que ele me passar.
enterrados em Perus. Comentou que alguns dos mor- Toninho, por sua vez, voltou para casa preocupa-
tos não estavam mais nas valas em que tinham sido do aquela noite. Ele não queria mais guardar aquele
enterrados, o que trazia alguma di culdade para segredo. Sabia que aquelas ossadas precisavam ser
conferir informações. reveladas e identi cadas. Sentia um dever cívico, um

21
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

clamor pela verdade, um impulso que o impelia a con- um pedacinho da vala. Acho que ele é melhor repórter
tar o que sabia e acabar com essa história de uma vez que você.
por todas. Era preciso agir, e um repórter conhecido
como Caco Barcellos poderia ajudar. Ao mesmo tem- ***
po, Toninho temia a repercussão que aquela denúncia
poderia suscitar. E se algum desafeto espalhasse que Naquela semana, Caco Barcellos começou a dese-
tinha sido ele o delator? E se houvesse alguma represá- nhar uma das muitas reportagens fascinantes e arris-
lia? cadas que zera ao longo da carreira. A disputa era
Por um momento, o administrador se arrependeu acirrada. Em 1980, Caco fora feito refém na Nicarágua,
de ter contado. A ditadura havia acabado, mas ainda confundido com um espião ao cobrir a guerra civil
não tinha esfriado. desencadeada pela revolução sandinista, que derruba-
Quando Caco retornou ao cemitério, na terça- ra a ditadura da família Somoza no ano anterior. Em
feira, Toninho não quis recebê-lo. Após alguma insis- 1989, fora detido pelo Exército de Libertação Nacional
tência do repórter, o atendeu e negou tudo. Dizia que da Colômbia enquanto investigava o sequestro de três
não tinha falado nada daquilo no domingo anterior. engenheiros da Braspetro, mantidos em cativeiro no
Pronto: Toninho estava sendo ameaçado ou tinha se país vizinho para denunciar um governo que, segundo
arrependido de dar com a língua nos dentes, o jornalis- a organização guerrilheira, atentava contra a sobera-
ta concluiu. E agora? nia nacional e permitia a exploração de suas riquezas a
Constrangido, Caco avisou ao editor que a pauta preço de banana por empresas estrangeiras, como a
havia caído, que o informante não tinha sustentado a estatal subordinada à Petrobras.
história. Voltou no domingo seguinte, disposto a reto- Agora, o jornalista via-se diante dos escombros de
mar os crimes da Rota e a tentar identi car alguma uma outra guerra, apenas controlada com a volta dos
vítima ali. civis ao poder em 1985 e a promulgação da Constitui-
— Preciso falar com você — Toninho o abordou. ção Federal em 1988, mas que deixara pelo caminho
— Tenho informações sigilosas para lhe passar. um extenso repertório de mortes, muitas delas sob
“Que cara maluco”, Caco pensou. “Acho que aos tortura, desaparecimentos forçados e ocultação de
domingos ele bebe, ca meio alto e se enche de cora- cadáveres.
gem. Ou então inventa essas histórias”. Caco sabia que aquela era uma oportunidade
Toninho repetiu com ele exatamente a mesma única de revelar informações preciosas que poderiam
sequência da semana anterior. Os dois se afastaram das levar à localização de dezenas de desaparecidos.
quadras para conversar, caminharam até próximo ao Impossível prever as reações que uma revelação como
muro do cemitério, e Toninho contou sobre o ossário aquela poderia provocar nas Forças Armadas e em
escondido, exatamente como zera da outra vez. setores conservadores da política. Caco temia, sobre-
— Toninho, você já mostrou esse lugar para mais tudo, pela carreira de Toninho. Quiçá pela vida do
alguém? administrador.
— Só pro Molina, um engenheiro do Rio que veio Para dar seguimento à investigação, Caco precisa-
até aqui procurar o irmão. ria entrevistar o tal Molina. Pegou uma lista telefônica
— E quando foi isso? do Rio de Janeiro e se preparou para ligar para todos os
— Faz muito tempo. Acho que em 1980 ou 1981. assinantes com aquele sobrenome. Logo na primeira
Foi logo depois da anistia. tentativa, localizou quem ele buscava. Na mesma sema-
— E o que você disse a ele? na, foi até o Rio para encontrá-lo. O carro da reporta-
— A mesma coisa que estou contando pra você. Só gem buscou o engenheiro em Botafogo, no prédio da
que ele foi mais curioso. Perguntou se eu poderia abrir empresa em que ele trabalhava, e o levou até o Morro

22
A abertura

do Pasmado, onde foi feita a gravação. Gilberto Molina original nessa data. Esse é um procedimento regula-
con rmou a história contada por Toninho. Ele não mentar, que acontece com os corpos dos desconheci-
apenas tinha ido a Perus como havia visto as ossadas dos e não reclamados após três anos e 30 dias do sepul-
escondidas sob o gramado nos fundos do prédio da tamento, sempre que o serviço funerário julga neces-
administração. sário abrir espaço nas quadras para novos enterros.
Ainda em 1979, Gilberto tivera acesso a documen- — Eu entendo. Mas o corpo foi recolocado em
tos o ciais que con rmavam a morte de seu irmão outro local, certo?
mais novo, o militante do Movimento de Libertação — Aí é que está. No livro só consta que os despojos
Popular (Molipo) Flávio Carvalho Molina, aos 23 do teu irmão foram exumados. Não há nenhuma
anos, em 1971. Um ofício assinado pelo então diretor informação sobre reinumação, o senhor percebe?
do Dops, Romeu Tuma, revelava que Flávio havia — Ele foi retirado da cova e não foi realocado em
falecido em 7 de novembro de 1971 e que seu corpo lugar nenhum, é isso?
fora sepultado no Cemitério Dom Bosco, em São Pau- — Vem comigo.
lo, com o nome falso de Álvaro Lopes Peralta, dois dias Toninho conduziu o engenheiro até a quadra 12 e
depois. Aquele papel comprovava a ocultação delibe- mostrou a ele a cova 14, local da sepultura original. Em
rada do cadáver, uma vez que a repressão conhecia não seguida, explicou que, normalmente, vencido o prazo
apenas seu codinome, mas também seu nome verda- regulamentar, os restos mortais são acondicionados
deiro. Mesmo assim, Flávio fora enterrado como indi- num saco menor e enterrados no fundo da mesma
gente, sem que nenhum familiar fosse comunicado. sepultura para que outro caixão pudesse ocupar o
Em 1981, Gilberto Molina aproveitou que estava espaço acima. Feito isso, acompanhou o engenheiro
em São Paulo por conta de um trabalho e tomou o trem até uma área onde havia um grande cruzeiro branco,
rumo a Perus levando consigo o ofício assinado por sobre um pedestal onde os éis acendiam velas, junto a
Tuma. Se os restos mortais de seu irmão de fato estives- um barranco atrás do prédio da administração, e con-
sem naquele cemitério, conforme citado no documen- tou a ele que, anos antes, entre 1975 e 1976, houvera
to do Dops, ele solicitaria imediatamente seu traslado uma exumação em massa nas quadras 1 e 2. Com uma
para o jazigo da família, no Rio de Janeiro. Apresen- característica peculiar: não havia registro do local de
tou-se ao administrador e declinou os dois nomes de reinumação de nenhuma ossada.
seu irmão, o verdadeiro e o falso. Uma anotação feita Quando soube disso, Toninho, que ainda não era
na página 33 do livro 3 do cemitério desfez qualquer funcionário do cemitério na época da exumação em
dúvida: Álvaro Lopes Peralta tinha sido enterrado na massa, contara um a um os nomes que tiveram seus
cova número 14 da quadra 2 no dia 9 de novembro de despojos exumados entre 1975 e 1976 e sobre os quais
1971. não constava nenhuma informação referente a reinu-
Emocionado, Gilberto perguntou ao administra- mação. Chegou ao número aproximado de 1.500 indi-
dor o procedimento para fazer o traslado dos restos gentes. Era como se todos eles tivessem sumido aos
mortais para o Rio. olhos do Estado. Eles estavam ali, mas não estavam.
— Senhor Gilberto — Toninho falava pausada- Haviam desaparecido pela segunda vez.
mente, com a gravidade que o assunto exigia —, infe- — Que absurdo — Molina não se conformava.
lizmente não vai ser tão fácil fazer esse traslado. Em seguida, o administrador contou ao engenhei-
O engenheiro quis saber a razão. ro que buscou saber a razão daqueles dados incomple-
— O senhor está vendo aqui no livro que o corpo tos e que, por muito tempo, fora demovido da busca.
do seu irmão foi exumado no dia 11 de maio de 1976? “Não mexe com isso”, dizia um funcionário mais anti-
— Sim. go. “Deixa pra lá”, dizia outro. Até que um deles, cansa-
— Pois é. Isso signi ca que ele foi retirado da cova do da insistência de Toninho em fazer perguntas sobre

23
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

aquele assunto, revelara o que sabia. “Essas ossadas voltar ao Rio de mãos vazias.
que você procura estão lá na área do cruzeiro”, ouviu de — Seu Antonio, me elucida mais uma dúvida, por
um sepultador. “Fui eu que abri o buraco com a retro- gentileza. Se as ossadas estiverem mesmo aí embaixo e
escavadeira, cumprindo ordens. Agora vê se não enche forem retiradas, elas estarão identi cadas? — quis
mais o saco. São indigentes, porra, quem se importa saber. — Ou seja: será possível encontrar um saco com
com eles?” o nome do meu irmão?
Gilberto Molina ouviu calado à exposição feita — Tudo indica que sim. Os sacos são etiquetados.
por Toninho. Pensava em seu pai e, sobretudo, em sua Pelo menos é esse o procedimento padrão em todas as
mãe, na esperança que eles tinham de enterrar o lho exumações.
desaparecido. Desde meados dos anos 1970, ele havia — E você me permitiria ver? Seria muito impor-
procurado advogados, juntado documentos, cobrado tante poder con rmar a existência desse ossário e
autoridades, feito reuniões com familiares de desapa- voltar para casa com algum sinal de esperança.
recidos. Agora estava ali, em São Paulo, tão perto do Toninho foi buscar uma retroescavadeira e pôs-se
irmão. Dali a poucos meses, a morte de Flávio comple- a escavar numa das pontas do local. Retirou uma cama-
taria dez anos. Não haveria ocasião melhor para fazer o da de terra, algo como 50 centímetros de profundida-
traslado e organizar uma cerimônia de despedida no de, e o primeiro saco de plástico azul apareceu. Desfez
Cemitério São João Batista. um laço e o primeiro punhado de ossos surgiu. Toni-
— Se eu requerer a exumação, vocês ainda assim nho agarrou um osso comprido, provavelmente um
não poderão abrir o buraco? fêmur.
— Não é tão simples — Toninho lamentou. — Será — Então, senhor Gilberto, seu irmão era grande?
necessária uma solicitação o cial, a abertura de um O engenheiro sentiu as pernas bambas, a visão
processo administrativo. Tecnicamente, esse buraco turva.
não existe. Seu pedido será negado porque o serviço Toninho tirou outro saco do buraco e exibiu um
funerário não tem como localizar o corpo. crânio. Em nenhum dos sacos era possível encontrar
— Como não tem, se o corpo está aqui, bem emba- etiquetas. Feitas de papel, por certo elas haviam se
ixo dos seus pés? — Molina parecia angustiado. — É desintegrado no contato prolongado com a terra úmi-
preciso denunciar, abrir logo esse buraco. Deve haver da.
outros desaparecidos aí. O engenheiro veio às lágrimas. Afastou-se daque-
— Durmo e acordo pensando nisso todos os dias, le lugar e tou o horizonte, na esperança de se recupe-
senhor Gilberto. Mas o momento não é favorável... rar. O coração atropelado, a respiração arfante. Aquele
Em 1981, o Brasil ainda era presidido por um calvário jamais teria m? A mãe adoecida, envelhecen-
general. O Dops estava em plena atividade. A Lei de do... Gilberto Molina chegara ao cemitério otimista e
Segurança Nacional vigia. Havia prisões políticas, encontrara ali um cenário de dor, mentira, descaso e
como as dos sindicalistas do ABC um ano antes, e injustiça.
práticas nebulosas norteavam os trabalhos na audito- Ele havia chegado tão perto e, mais uma vez, o
ria militar e no Supremo Tribunal Militar. Os julga- direito de enterrar seu irmão lhe escapava pelas mãos.
mentos eram viciados e inevitavelmente terminavam
na condenação do mais fraco. Sobretudo, o Estado de ***
São Paulo era governado por Paulo Maluf, um político
conservador, amigo da Rota e dos militares, que tinha De volta a São Paulo, Caco foi falar com o editor do
sido prefeito exatamente nos anos em que aquele cemi- Globo Repórter.
tério fora construído e inaugurado. — A história é verdadeira, Narciso. Con rmei
Gilberto Molina parecia exausto, resignado em com o irmão de um desaparecido.

24
A abertura

— Sensacional. E o que você sugere? Toninho havia ajudado Suzana a localizar os res-
— Um programa. Vamos revelar o paradeiro des- tos mortais do marido no livro de registros e, por
ses desaparecidos no Globo Repórter. Preciso de duas extensão, sua sepultura, em 1979. Em 1982, cuidara da
semanas. exumação e do traslado para Porto Alegre.
— Vai em frente. — Suzana é corajosa — a rmou. — Vai ajudar no
O repórter gaúcho de corpo mirrado, radicado em que você precisar.
São Paulo e morador da Rua Bento Freitas, no centro Em 1990, Suzana Keniger Lisbôa militava na
da cidade, se agigantou em seu 1,70 metro incompleto. Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos
A existência de um buraco repleto de ossos sem qual- Políticos, organização que havia surgido anos antes
quer registro o cial já era, em si, conteúdo su ciente para reivindicar verdade e justiça. Luís Eurico Tejera
para uma grave denúncia. Aquela não era apenas uma Lisbôa, seu marido, morrera em 1972. A versão o cial
vala comum, mas uma vala clandestina, na acepção dizia que ele tinha cometido suicídio numa pensão
exata da palavra. Uma vala extrao cial. Caco buscara onde se hospedara no Bairro da Liberdade, em São
se certi car disso. Sem levantar suspeitas, solicitara ao Paulo. Ela nunca acreditou na versão o cial, sustenta-
serviço funerário um mapa do cemitério e con rmou: da inclusive pela dona da pensão, mas jamais conse-
não havia nada naquele espaço além do cruzeiro. guira obter informações que a confrontassem.
Bom, o que ele já tinha conseguido reunir? Os Semanas antes, Suzana tinha sido procurada pelo
exames do IML com a letra T de “terrorista”, a certeza produtor Maurício Maia, que contara a ela sobre a
de que guerrilheiros tinham sido enterrados no Cemi- descoberta dos laudos com a letra T e pedira sua ajuda
tério Dom Bosco com nome falso ou sem nome para obter uma lista atualizada dos desaparecidos
nenhum, a informação inédita – e exclusiva – de que políticos com as datas prováveis de morte de cada um.
uma vala clandestina construída nos anos 1970 oculta- Agora, Caco queria entrevistá-la para que ela comen-
va parte desses desaparecidos. Tinha também o depoi- tasse a existência da vala clandestina e contasse a histó-
mento do Gilberto Molina, irmão do desaparecido ria da busca e da localização dos restos mortais de seu
Flávio Carvalho Molina. O que ele precisava, agora, era marido. Feita a entrevista, Caco perguntou se ela o
cruzar os documentos do IML com uma lista de mor- acompanharia numa visita à pensão onde Luís Eurico
tos e desaparecidos e com os livros do cemitério. Por teria se suicidado. Ele queria gravar um depoimento
meio das datas prováveis das mortes e dos codinomes dela ali e fazer imagens do quarto onde acontecera o
indicados nos laudos e nos livros, talvez fosse possível suposto suicídio.
estabelecer uma relação entre aqueles indigentes mar- Numa reviravolta surpreendente, um dos inquili-
cados com o T de “terrorista” e as histórias por trás nos da pensão a rmou diante das câmeras que a histó-
daquelas execuções. ria que corria na pensão era outra.
Caco precisaria conversar com familiares de mor- — Entraram pela janela e atiraram nele — contou.
tos e desaparecidos. Essas organizações, ele sabia, — Ele era contrabandista.
tinham desbravado muitos arquivos, inclusive nos Caco perguntou se ele sabia quantos eram os poli-
cemitérios, e reuniam um acervo inesgotável de infor- ciais.
mações preciosas. Toninho sugeriu que ele procurasse — Parece que foram dois. Chamaram, ele não
uma moça de nome Suzana. atendeu, aí foram e atiraram por ali. Aí puxaram ele e
— Suzana? estava cheio de sangue. Depois que mataram ele, volta-
— Ela e o marido foram guerrilheiros. Ele morreu ram e falaram que era assaltante. Quem explicou pra
em 1972. O corpo dele foi enterrado aqui, registrado mim foi uma senhora que morou aqui.
com o nome de Nelson Bueno. Sempre a mesma histó- — A dona da pensão?
ria. — A dona da pensão.

25
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

— Qual o nome dela? cio do governo, fora indicado pelo PCB, um dos parti-
— Marina. dos políticos coligados, e acabou exonerado em pou-
Caco virou-se para Suzana e perguntou se ela já cos meses, sob a acusação de conivência com práticas
tinha ouvido aquela versão. pouco republicanas no trato com a coisa pública. Mili-
— É a primeira vez. Falei diversas vezes com a tante da Ação Popular em Goiás nos anos de chumbo e
Dona Marina aqui, ela nunca foi chamada a depor, e fundador do diretório zonal do PT de Pinheiros, em
pelo jeito é a única pessoa que conta a verdade sobre São Paulo, nos anos 1980, Rui ouviu pedidos tão insis-
essa história. tentes para que assumisse o cargo, inclusive da prefei-
Suzana desatou a chorar. Um choro sofrido, de ta, que acabou aceitando a nomeação. Em uma sema-
revolta e dor, capturado pelas câmeras da reportagem na, estava arrependido.
após quase 20 anos de mentira. Sob a supervisão de Rui Alencar, o serviço funerá-
Agosto ainda não tinha terminado quando Caco rio era uma autarquia com 1.800 funcionários, 21
Barcellos deu o programa por encerrado. Além de cemitérios, doze agências e uma fábrica de caixões.
Suzana e Gilberto Molina, irmão do Flávio, Caco havia Havia de tudo naquele microcosmo ao qual ele jamais
entrevistado dona Iracema Rocha Merlino, mãe de prestara atenção: um percentual altíssimo de alcoolis-
Luiz Eduardo Merlino, Shuniti Torigoe, irmão de Hiro- mo, um movimento grevista prestes a eclodir na fábri-
aki Torigoe, e o casal Berl e Bilma Reicher, pais de Gel- ca, diversos cemitérios carentes de ossário geral,
son Reicher, entre outros familiares de mortos e desa- denúncias envolvendo má as de certidões e comércio
parecidos. Agora, estava tudo pronto. Faltava apenas o ilegal de sepulturas.
mais importante: um desfecho para a denúncia sobre a Aos poucos, Rui foi agendando visitas aos cemité-
vala. “Daqui a pouco o ossário geral ca pronto, os rios a m de conhecer os administradores e conferir as
sepultadores transferem as ossadas da vala clandestina instalações. Em agosto, ele ainda não havia visitado
para lá e ninguém ca sabendo de nada disso”, Caco nenhuma vez o Cemitério Dom Bosco, um dos mais
pensava. Pediu ajuda para Suzana. afastados do centro, mas também o mais novo, inaugu-
— A matéria está pronta, Suzana. Só falta abrir a rado a menos de 20 anos. Cedo ou tarde, ele precisaria
vala. mesmo dar um pulo lá.
Servidora da Assembleia Legislativa de São Paulo Foi Suzana quem tomou a iniciativa de telefonar
cedida para a Prefeitura e lotada no Anhembi até o mês para ele. Os dois já se conheciam. Prudente, ela prefe-
anterior, Suzana sugeriu levar o assunto a Lúcio Grego- riu não se alongar por telefone. Combinou de visitá-lo
ri, então Secretário Municipal de Serviços e Obras. No na sexta-feira e levou Caco Barcellos. Receptivo, Rui
dia seguinte, ela voltou com o encaminhamento do ouviu um resumo da audaciosa investigação conduzi-
secretário. Segundo Suzana, Gregori recomendou ao da pelo repórter nos últimos meses e também o corajo-
grupo agendar uma visitar ao cemitério junto com o so périplo dos familiares ao longo de mais de uma
diretor superintendente do serviço funerário, Rui década de buscas. Caco explicou que estava com um
Alencar. E garantiu a ela que autorizaria a abertura da Globo Repórter praticamente pronto para contar a
vala. história da procura pelos desaparecidos políticos, mas
Faltava pouco para Caco Barcellos concluir a últi- que seria fundamental gravar algumas imagens da
ma etapa naquela apuração e garantir as imagens de abertura da vala. Ele sabia que um ossário geral estava
abertura para o Globo Repórter. sendo construído ao lado da vala e que seria natural
Rui Alencar havia sido empossado em 15 de janei- remover as ossadas para lá. Faltava a autorização da
ro daquele ano. Chegara para apagar incêndio numa Prefeitura para a exumação.
das autarquias mais complicadas daquela administra- Rui se lembrou que, ainda em janeiro, o vereador
ção. Seu antecessor, empossado um ano antes, no iní- Adriano Diogo, ex-preso político, o alertara de que

26
A abertura

havia um problema no cemitério de Perus que exigiria um buraco e não para de sair saco aqui de dentro. Sacos
alguma atenção do diretor superintendente recém- com ossos. São dezenas. Talvez centenas.
empossado. Agora, as peças pareciam se encaixar. Erundina nem esperou o superintendente conclu-
Propôs fazerem juntos uma visita ao cemitério na ir a explicação para se levantar e encerrar a reunião.
terça-feira seguinte, dia 4 de setembro, às 10 horas, e Em dois minutos, embarcava no carro o cial a cami-
encerrou a reunião convencido de que a visita que nho do local. Na lembrança de Rui Alencar, a prefeita
acabara de agendar teria caráter técnico. Rui pediria ao transpôs em tempo recorde os 35 quilômetros que
administrador, Antonio Pires Eustáquio, para indicar separavam a sede da Prefeitura, no Parque do Ibirapu-
a localização da vala, como zera com Caco e Suzana. era, e a vala clandestina, em Perus. Em vinte minutos,
Talvez escavasse um pequeno trecho para con rmar. Erundina estava à beira da vala, conferindo de perto o
Então deliberariam sobre o que fazer. trabalho de remoção das ossadas e respondendo às
No dia 4 de setembro, às 10 horas, Rui estacionou perguntas dos jornalistas.
seu carro em frente ao prédio de administração do Dois anos antes, em setembro de 1988, Luiza Erun-
cemitério e deu de cara com o circo armado. Caco dina estava em terceiro lugar nas pesquisas de intenção
Barcellos, repórter notívago conhecido pelos colegas de voto para a prefeitura de São Paulo, atrás do ex-
pela di culdade em acordar cedo e ser pontual nas prefeito e ex-governador Paulo Maluf e do secretário
pautas, havia caído da cama. Chegara ao local por volta estadual de Obras, João Leiva, apoiado pelo então
das 8 horas. Junto com ele estava o cinegra sta Hugo Sá governador Orestes Quércia. Paraibana de Uiraúna,
Peixoto, que àquela altura já subia e descia o barranco, na divisa com o Rio Grande do Norte e o Ceará, Erun-
fazendo as primeiras tomadas em vídeo. dina tinha sido secretária de Educação e Cultura de
Fotógrafos e repórteres de texto de outros veículos Campina Grande e militara nas Ligas Camponesas na
começaram a chegar. Toda a imprensa tinha sido con- Paraíba antes de migrar para São Paulo, no início dos
vidada. A pauta? A abertura de uma vala clandestina anos 1970. Eleita vereadora em 1982 e deputada esta-
onde teriam sido ocultadas mais de mil ossadas na dual em 1986, surpreendera o diretório nacional do PT
metade dos anos 1970. ao vencer a eleição interna para a escolha do candidato
a prefeito, num momento em que os principais diri-
*** gentes petistas, como Lula e José Dirceu, apoiavam o
nome de Plínio de Arruda Sampaio. Após uma campa-
O telefone tocou no gabinete da prefeita. Toque de nha popular, investindo essencialmente no diálogo
telefone é sempre igual. Se não fosse, a telefonista seria com a periferia, Erundina vencera a eleição com 33%
capaz de jurar que, daquela vez, o aparelho soara mais dos votos válidos, superando Maluf (24%) e Leiva
alto e estridente do que de costume. O telefone tinha (14%), numa época em que não existia segundo turno.
motivos de sobra para gritar. Primeira mulher a governar São Paulo, e primeira
Rui Alencar não quis adiantar o assunto com nin- prefeita declaradamente de esquerda, Erundina cerca-
guém. Nem com Muna Zeyn, secretária particular da ra-se de lideranças populares e intelectuais renomados
prefeita, nem com Alípio Casali, o chefe de gabinete. para montar um secretariado de peso. Paulo Freire,
— Preciso falar com a prefeita com urgência! — Marilena Chaui, Paul Singer, Dalmo Dallari e Ermínia
anunciou. — Estou no cemitério de Perus e tem um Maricato assumiram pastas como Educação, Cultura,
caso sério acontecendo aqui neste exato momento. Planejamento, Negócios Jurídicos e Habitação. A
Luiza Erundina interrompeu a reunião para aten- oposição à ditadura militar e o compromisso com a
der ao telefone. reparação histórica vinha explicitada em nomeações
— Prefeita, estou aqui no Cemitério Dom Bosco e como a de Paulo Freire, preso e exilado em 1964, e de
acabam de descobrir uma vala clandestina. Cavaram Rosalina Santa Cruz, ex-guerrilheira e presa política,

27
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

irmã do desaparecido Fernando Santa Cruz, para a de plástico azul cheios de ossos e realocados numa sala
Secretaria de Bem-Estar Social. Além, é claro, do então de velório que os funcionários chamavam de capela.
vice-prefeito Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado Em tese, havia uma ossada em cada saco, o que fez com
com destacada atuação na defesa de perseguidos polí- que os meios de comunicação divulgassem a notícia de
ticos, presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia e que 1.049 ossadas haviam sido localizadas. Aqui e ali,
um dos responsáveis pela pesquisa que resultou no percebia-se a mistura de ossos, o que indicava a neces-
livro Brasil: Nunca Mais. sidade de um rigoroso trabalho arqueológico de lim-
Aberta a vala, Erundina assumiu para si a respon- peza e separação.
sabilidade pela preservação e pela investigação daque- Um sistema extrao cial de morte e ocultação,
le material surpreendente. Peitou a Polícia Civil e o adotado como política de Estado, começava a ganhar
IML, que reivindicavam a tutela das ossadas, e deter- visibilidade. Tudo carecia de explicação. As informa-
minou que caberia à Prefeitura conduzir esse processo, ções eram desencontradas.
rmando os convênios necessários e estabelecendo O momento era de tensão nos setores mais conser-
diálogo com os familiares de desaparecidos. “O gover- vadores das Forças Armadas. Ameaças de morte logo
no municipal não vai abrir mão desses encaminha- começaram a aparecer, direcionadas num primeiro
mentos”, declarou. “Temos que levá-los às últimas momento ao administrador do cemitério, que ousara
consequências, dure o tempo que durar, custe o que dar com a língua nos dentes e mexer naquele vespeiro.
custar. É isso que é importante e é isso que nos dá von- Para os familiares de mortos e desaparecidos, as amea-
tade e certeza dos resultados desse esforço, que não é só ças eram uma constante.
do governo municipal, mas também da sociedade, dos Enquanto as ossadas eram retiradas da vala, provi-
familiares e das entidades que lutam pelos direitos dências foram tomadas na Prefeitura, na Câmara Muni-
humanos em nossa cidade e em nosso país”. cipal, no gabinete do governador. Havia muita coisa a
Por volta do meio-dia, a imprensa internacional ser feita. O então secretário de segurança pública do
também começou a se dirigir a Perus. Repórteres da Estado de São Paulo, advogado Antonio Cláudio
BBC de Londres e da RAI italiana estavam entre os Mariz de Oliveira, prometeu vigilância permanente no
jornalistas que se acotovelavam em busca de declara- local até que todas as ossadas fossem retiradas e leva-
ções. Suzana telefonou para outros integrantes da das a um local seguro. Vereadores discutiam a forma-
Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos ção de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para
Políticos, como Amelinha Teles e Ivan Seixas, e pediu investigar a origem daquela vala e apurar as responsa-
para que fossem até lá. Era humanamente impossível bilidades. Nos bastidores, a prefeita mexia os pauzi-
supervisionar sozinha a retirada dos ossos e atender a nhos para formar uma comissão de acompanhamento
tantos pedidos de entrevistas e esclarecimentos. sob sua alçada e de nir a melhor maneira de analisar
As imagens capturadas pelas câmeras eram cho- aquela montanha de ossos a m de identi cá-las.
cantes. Além dos sacos azuis fechados, havia ossos Quem eram aquelas pessoas? Como e por que foram
dispersos, espalhados pela vala ou que acabavam ver- mortas?
tendo dos sacos ressequidos e quebradiços pelo tempo. Naquela noite, o Jornal Nacional exibiu uma maté-
Crânios eram retirados do buraco e sintetizavam o ria curta, de três minutos, com imagens da abertura da
sentido fúnebre daquela revelação. Mais do que fúne- vala de Perus, nome pelo qual o ossário clandestino se
bre, funesto. tornaria conhecido. A expectativa pela reportagem
A vala clandestina era um buraco estreito e pouco completa, a ser exibida na sexta-feira no Globo Repór-
profundo, com 30 metros de comprimento por 50 ter, só aumentava.
centímetros de largura e 2,70 metros de profundidade. Por coincidência ou ironia do destino, aquela
Ao longo daquela semana foram retirados 1.049 sacos sexta-feira seria o feriado pátrio de 7 de setembro,

28
A abertura

aniversário da Independência, data em que des les


militares e apresentações da esquadrilha da fumaça
costumavam elevar o ufanismo verde-amarelo a um
patamar sem precedentes. Exibir aquele programa em
um 7 de setembro seria não somente uma afronta, mas
um golaço contra os militares. Suzana Lisbôa prestara
atenção às palavras usadas pelo repórter ao gravar a
matéria e estava exultante. Caco se referia aos desapa-
recidos como guerrilheiros, e não como terroristas,
algo pouco comum no horário nobre. E colocava na
conta da repressão práticas criminosas como seques-
tro, tortura, desaparecimento forçado e ocultação de
cadáveres.
Quando a sexta-feira chegou, outro programa foi
ao ar. A reportagem de Caco Barcellos havia sido enga-
vetada.
Somente cinco anos depois, em 21 de julho de
1995, quando o Governo Federal discutia a elaboração
de uma lei que o cializaria a morte de 136 desapa-
recidos políticos, os brasileiros puderam assistir na
telinha da Globo a história completa da vala de Perus e
sua participação no acobertamento de graves viola-
ções de direitos humanos.

29
Caco Barcellos: “Fiquei chocado e me dei conta
da dimensão que aquilo nha”
Camilo Vannuchi⁵

Repórter investigativo disposto a denunciar as

FOTO: REPRODUÇÃO
mortes praticadas pela Polícia e desvendar as atrocida-
des de um governo ditatorial que matou e escondeu os
corpos de opositores, Caco Barcellos esteve no epicen-
tro da descoberta da vala clandestina de Perus. Foi ele
quem ouviu o testemunho do administrador do Cemi-
tério Dom Bosco e desencadeou o processo que levou à
de agração da vala, em 4 de setembro de 1990. No
mesmo dia, a revelação de que centenas de ossadas
tinham sido ocultadas pela ditadura militar repercutiu
em todo o Brasil e também nas agências internacionais
de notícia. Nesta entrevista, feita em julho de 2020, ele
conta de que maneira as pesquisas que realizou para O repórter Caco Barcellos, da TV Globo, foi quem obteve
em primeira mão a denúncia sobre a existência da vala.
escrever o livro Rota 66, de 1992, o levaram até a vala Ele inves gava o paradeiro de ví mas fatais da PM
clandestina. Lembra também os bastidores daquela
reportagem e faz um alerta sobre a necessidade de
investigar – e denunciar – a violência de Estado, as mor- criaram essa unidade, a Rota, como parte da Polícia
tes e os desaparecimentos que continuam acontecendo, Militar de São Paulo. A Rota foi criada como uma força
mais de trinta e cinco anos após o m da ditadura. auxiliar do Exército Nacional para colaborar com a
repressão, na época praticada por militares, mas em
Como essa história começou? O que o fez descon- trajes civis. Se esses agentes do sistema de informação
ar da existência de uma vala clandestina no Cemité- descobriam algo, ou descon avam de algo em alguma
rio de Perus? rua ou imóvel – um aparelho, como eles chamavam os
Em 1985, comecei a investigar os crimes praticados esconderijos de guerrilheiros – e decidiam invadir
pela Polícia Militar de São Paulo, principalmente os aquele local, eles sentiam a necessidade de bloquear o
crimes da Rota [Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, trânsito, para não haver testemunhas, né? Os america-
batalhão de elite da PM paulista]. Eu tinha a expectativa nos ensinaram aos coronéis brasileiros que esse sistema
de identi car todas as pessoas que a Polícia Militar de de prisão e possível execução requer uma limpeza da ⁵Camilo Vannuchi é jornalista
São Paulo matou em toda a sua história [a partir da área, para afastar as possibilidades de testemunhas e escritor, autor da pesquisa
estruturação da PM em 1970]. Por isso comecei minha que deu origem a este livro e
assistirem à cena. Então, para fechar um quarteirão,
à obra Vala de Perus, uma
investigação delimitando o universo da pesquisa em precisavam de gente armada, e a Rota fazia esse papel. biografia (Alameda Editorial,
abril de 1970, que foi quando os órgãos da repressão Então, as primeiras vítimas da Rota que eu consegui 2020).

30
identi car foram as pessoas mortas naquela época, ajudar nessas abordagens, dar um dinheiro para ele,
meados de 1970. E aí os primeiros que identi quei mensalmente, para ele fazer plantão no portão do IML.
eram, sem eu saber, os militantes que faziam oposição Geralmente, ele fazia à tarde e eu chegava à noite e o
ao regime naquele tempo. Eu só tive certeza de quem substituía. Criei até uma tabela para ajudar o Sidney a
eram tempos depois, quando a investigação já tinha uns fazer a coleta de informação, a tabelinha que ele preen-
quatro anos. chia, na medida em que chegava um corpo.

Mas como você chegou a esses militantes? Eram quase sempre pessoas sem documentos?
Eu tinha quatro fontes de pesquisa. A mais relevan- Sim. A polícia matava, e eu imagino que ela pusesse
te era a pesquisa de rua. Se tivesse que fazer esse livro fogo nos documentos quando descobria que não eram
hoje, eu estaria pesquisando o Bope do Rio de Janeiro. criminosos com registro na Justiça de São Paulo. Quan-
As unidades especiais da Polícia do Rio de Janeiro do consultavam o computador e viam que a pessoa não
matam cinco pessoas por dia. Cinco por dia! Naquele tinha registro [não tinham passagem pela polícia], acho
tempo, em São Paulo, a Rota e as outras unidades que que desapareciam com os documentos, não sei se quei-
também executavam matavam aproximadamente três a mando, jogando fora e tal. Era difícil identi car e, por
quatro pessoas por dia. Eu sabia disso de tanto trabalhar isso, car na porta do IML era muito importante. Quan-
na rua. Esses corpos eram levados ao Instituto Médico do chegava uma mulher e saía de lá chorando, eu corria
Legal, ali na subida da Rua Teodoro Sampaio. Sabendo para conversar com essa pessoa, com essa mulher. Ori-
disso, eu cava ali de plantão. Às vezes, quem cava de entei o Sidney a fazer o mesmo depois que ele decidiu
plantão era o Sidney, um adolescente que me ajudou. trabalhar comigo, e assim nós identi camos os primei-
Conheci o Sidney quando ele procurava os pais desapa- ros. Naquele tempo, anos 80, os governantes não
recidos. Estava fazendo uma reportagem sobre desapa- tinham nenhum tipo de cuidado para tornar aquele
recidos, conheci o Sidney e quei impressionado com a ambiente mais humanitário, era um descuido absoluto,
história dele. Tinha perdido o pai e a mãe. Ele mesmo o que por outro lado facilitava o meu trabalho. O rabe-
era um sobrevivente. Ele me contou as vezes em que cão chegava, tiravam os corpos de dentro do carro e eu
escapou correndo quando viu uma viatura da Rota podia chegar perto e car olhando. De tanto car ali,
chegando. Achei uma irmã dele, fotogra as do pai. muitos anos fazendo esse trabalho, eu já conhecia todos
Depois de conversar muito com ele para essa reporta- os motoristas do rabecão, conhecia os funcionários do
gem, contei o que fazia no Instituto Médico Legal. IML, e eles permitiam chegar bem perto quando era o
‘‘Estou aqui atrás de pessoas que são mortas pelas polí- carro do IML que chegava. Quando era o carro da Rota,
cias. É muito difícil encontrar testemunhas, então eu aí não, mas raramente chegava o carro diretamente da
venho até aqui, porque aqui eu posso encontrar os Rota. O carro da Rota leva o corpo para o hospital, e não
parentes, que chegam para identi car os corpos dos diretamente para o Instituto Médico Legal.
familiares’’. Quando consegui guardar uma parte do
meu salário, achei que podia contratar alguém para Uma maneira de transferir a responsabilidade
por aquela morte?
É. Esconder o cadáver e dar aquelas cores de ação
As primeiras ví mas da Rota que legítima: “Atiramos para conter; morreram chegando
eu consegui iden ficar foram as ao hospital”. Tudo seguindo a orientação americana de
pessoas mortas nos anos 1970. fazer isso contra a guerrilha. Quando acabou a guerri-
Eram, sem eu saber, os militantes que lha, começaram a fazer o mesmo com os criminosos
faziam oposição ao regime comuns. Então, em alguns casos eu tinha a facilidade de
chegar perto: se fosse cara de adolescente, de jovem, se

31
fosse negro, aumentava muito a possibilidade de ser não sei qual era, para conservação. E outras coisas.
alguém que eu iria identi car como vítima da Rota. Acho que caveiras, muito material que talvez tenha sido
Sobretudo quando saía de lá uma mulher, após identi - usado nos inquéritos, não sei se tinha alguma arma,
car um corpo, eu passava a ter certeza. Eu abordava, me mas, se tinha, era sucata de arma, não recordo exata-
oferecia para acompanhar, pegava o ônibus junto; se mente. Eu sei que aqueles fetos me impressionavam
estivesse de carro, eu ia com meu carro atrás, e começa- muito, e aqueles pedaços de corpos. E tinha um cheiro
va ali o processo de investigação para chegar à identi - muito ruim!
cação dos 4.200 [mortos pela PM] que nós conseguimos
[identi car em sete anos]. Além da portaria do IML, O que você buscava ali?
outra fonte de pesquisa minha foi dentro do IML. O Todo dia acontecia um caso, no mínimo. Em geral,
Rubens Brasil Maluf era o diretor do IML naquela épo- dois ou três. E sempre que acontecia um caso, o registro
ca. Não é parente do [Paulo] Maluf, o ex-governador, era feito na delegacia mais próxima do local do aconte-
mas tem o sobrenome igual. Depois de me ver trabalhar cimento. Então, Vila Maria, por exemplo, delegacia da
muito ali, cou curioso para saber o que eu fazia. Eu Vila Maria. Quando o delegado cava sabendo pelo
dizia para todo mundo que estava fazendo uma pesqui- boletim de ocorrência que houve um caso, digamos,
sa sobre morte por causa violenta. Falava uma meia dois adolescentes negros não identi cados resistiram à
verdade: não dizia que era sobre mortes praticadas pela prisão, revidaram, foram baleados, levados pela polícia
polícia, mas que estava fazendo uma pesquisa de mortes para o hospital da Vila Maria e morreram ao dar entra-
violentas por causa externa. Eu já trabalhava na televi- da no hospital, o delegado imediatamente batia um
são. De tanto me ver ali e esperar uma matéria na televi- telex para o Instituto Médico Legal fazendo o pedido:
são e a matéria nunca aparecia, eles foram relaxando e “Ó, mais dois corpos de adolescentes, Vila Maria, os
perderam a curiosidade de saber qual era meu objetivo. corpos se encontram no hospital tal”. No IML, alguém
Certo dia, convenci o diretor a permitir que eu entrasse no plantão pegava aquele telex, um papel estreito com
no IML, no andar de cima, onde havia um arquivão. O uns 10 ou 15 centímetros, e dava para o motorista do
que eu procurava era a área onde estavam arquivados os rabecão, o carro que transportava os cadáveres. E o
papéis relativos aos exames feitos nos cadáveres. Era um motorista, com base nesse documento, ia atrás do cor-
cenário macabro, cheio de fetos em grandes vidros de po. E, quase sempre, o destino era um hospital. Ele che-
laboratórios. gava com aquele telex e o hospital liberava a geladeira
para fazer a retirada dos dois corpos. O motorista do
Que sala era essa? Por que esse cenário macabro? rabecão prendia aquele papel no pulso do cadáver,
Eles chamavam de museu. Era uma sala, tudo amarrado precariamente, e trazia para o Instituto Médi-
muito empoeirado, desorganizado. Uma papelada co Legal. Esse papel amarrado no pulso era a primeira
relativa aos registros dos mortos, tinha até uma monta- referência que eu tinha. E cava arquivado. Quando o
nha de papel acumulado no chão, algo como um metro, corpo dava entrada no IML e ia para a geladeira, o peri-
talvez um metro e meio de papelada. Uns arquivos mais to vinha, pegava esse papel, dava uma olhada, grampea-
organizados, em uns cadernões pretos, aquela coisa de va em outro papel maior para fazer o exame de corpo de
arquivo antigo, em envelopes de cartolina preta. Cada delito, e aí complementava esse papel a partir dos dados
caso reunia mais ou menos cinco ou seis documentos. E do telex: ‘‘Trata-se de jovem, aparentemente 20 anos, da
esses documentos, para mim, eram o ouro que eu pro- cor parda, apresentando ferimentos de objetos contun-
curava. Por que era macabro? Porque no meio desses dentes, está vestido com uma camiseta marrom, jeans,
arquivos, desses grandes cadernos de capa preta, havia descalço’’. Às vezes, dizia ‘‘sem documentos em suas
alguns vidros de laboratório com fetos dentro. Fetos vestes’’. Na imensa maioria das vezes, “não-
humanos, pedaços de corpos, em um líquido que eu identi cado”.

32
FOTO: MARCELO VIGNERON

A revelação da existência da vala clandes na atraiu muitos jornalistas a Perus. À esquerda, o cineasta João Godoy gravava
as primeiras imagens para seu documentário Vala comum, de 1994

Depois, esse segundo documento recebia um terce- 1970 ou de outubro de 1981?


iro, que era o exame cadavérico, um exame mais apro- Você precisou colocar toda a papelada em
fundado, feito pelo médico legista, que aponta, no ordem?
papel, sobre um desenho de um corpo, os locais exatos Com ajuda do Daniel Annenberg. Na época, ele era
dos ferimentos. Esses dois papéis também eram funda- um estudante de administração pública. Depois de
mentais, porque eu tinha ali o desenho do corpo indi- trabalhar comigo, virou um homem público, criou o
cando, muitas vezes, ferimentos na nuca, ou nas costas, Poupatempo, trabalhou na gestão Mário Covas. Virou
ou sobre o coração, em zona vital, com marcas de tiros, vereador em 2016. En m, ele era um estudante de
orifícios de entrada e de saída de projéteis. Alguns orifí- administração, em dúvida se fazia jornalismo ou admi-
cios com uma circunferência perfeita em volta, quase nistração. Ele fazia uns “frilas” ali para me auxiliar quan-
sempre na região do coração. Isso signi cava que uma do eu estava viajando. O que a gente fez? A gente resol-
arma foi encostada ali no momento do disparo. Quando veu botar ordem naquela papelada. Então fomos desco-
você dispara a arma, o projétil sai com muita química e brindo as datas, 1970 uma montanha, 1971 outra, leva-
o cano ca muito quente, ele queima a roupa e queima a mos meses para organizar tudo aquilo. Quando tinham
pele. Por isso se diz tiro à queima-roupa. Quando o os três papeizinhos, a gente vibrava muito. Se tivesse
médico legista vê, ele sabe que se trata de um tiro à quei- um, já estava bom; dois era melhor; mas três era o ideal.
ma-roupa. Então, era um elemento importantíssimo Agora, muita coisa sumida. Um mês inteiro sem nada,
para uma futura prova de que era um jovem morto por uma semana inteira sem nada. Depois fomos fazer o
execução, e não em tiroteio. Se encontrasse um docu- cruzamento de informações. Fui atrás de um jornal do
mento a rmando isso, para mim era fundamental. Se Grupo Folha chamado Notícias Populares. Um jornal
não houvesse isso, de qualquer maneira esses três que, se você torcesse, saía sangue. As matérias frequen-
papéis eram muito importantes. Acontece que era tudo temente elogiavam as ações da Polícia. Então eu li todas
misturado ali. Como encontrar um laudo de abril de as notícias relativas a essas mortes em São Paulo a partir

33
Eu achava um absurdo, numa Como era sua rotina?
sociedade cuja Cons tuição não prevê a Eu fazia muitas reportagens de investigação para o
Jornal Nacional naquela época, às vezes cava dois
pena de morte, haver uma ins tuição
meses em uma matéria fora de São Paulo. Quando eu
disposta a pra car a pena de morte,
voltava, se eu pudesse, todo dia dava uma passadinha
diariamente. no IML. À noite, que é quando isso geralmente acontece
[a execução pela Rota], e às vezes amanhecia ali. Porque,
de 1970. Dizia assim: ‘‘na noite passada, dois elementos, se eu encontrasse alguém que fosse identi car um
dois facínoras, dois delinquentes atacaram as forças da familiar e concordasse em falar comigo, eu já ia direto.
Polícia Militar, que em uma ação de legítima defesa se Acho importante fazer na hora, você engata e vai. Ia
defenderam, dispararam e atingiram os meliantes, que para as favelas acompanhar aquela família. O velório,
foram transportados com vida para o hospital e, ao quando acontecia na mesma noite, no dia seguinte, era
chegar ao hospital, vieram a óbito’’. No nal ‘‘a ação, uma oportunidade de ouvir muita gente associada
muito elogiada pelo comando, foi do capitão Conte àquela história, aí a investigação avançava. Eu fazia isso,
Lopes, da turma tal’’. Caramba! Eu anotava: 20 de outu- às vezes ia trabalhar no dia seguinte morrendo de can-
bro de 1970, dois mortos, capitão Conte Lopes. Com a saço porque tinha virado a noite fazendo a pesquisa.
documentação organizada no Instituto Médico Legal, Mas eu achava que o meu propósito era identi car. Eu
corria atrás de outubro de 1970. Se encontrasse ali os achava um absurdo, em uma sociedade que não tem
documentos de dois jovens, mortos no mesmo bairro... uma Constituição que prevê a pena de morte, haver
uma instituição disposta a praticar a pena de morte
Já chegava perto da autoria, dos policiais respon- urbana, diariamente, contra bandidos. Eu achava que
sáveis. tinha que fazer essa denúncia! E na medida em que fui
Mesmo bairro, mesma delegacia de registro, avançando, sobretudo quando passei a identi car e
mesmo hospital, então eu já sabia que tinham grandes levar [os nomes] para os cartórios da Justiça, e descobri
chances de ser o Conte Lopes, porque o jornal escreveu que a maioria, quase sete em cada dez eram inocentes,
elogiando. Então eu tinha esse outro dado para montar eu quei muito assustado. Caramba, pensei que fosse
a pesquisa. E assim a gente foi avançando. A terceira fazer a denúncia do absurdo que é matar bandidos, já
fonte era a auditoria militar. Quando eu sabia que [o que não há pena de morte, mas não, era muito mais
autor] era o Conte Lopes, eu ia atrás do processo. Na grave, eles estavam matando pessoas inocentes! E des-
medida em que eu identi cava, quando tinha a sorte de quali cando moralmente essas pessoas. É um padrão
encontrar a mãe que foi identi car o corpo no IML, eu dos matadores, não só no Brasil. Primeiro, a culpa sem-
pegava os documentos, tinha a identi cação da vítima, pre é de quem morre. Segundo, [os matadores] desqua-
entrava com a documentação nas comarcas da Justiça li cam moralmente para justi car para uma imprensa
da Grande São Paulo perguntando se de fato eram assal- não muito rigorosa, dizendo que eram criminosos e por
tantes, latrocinas ou estupradores, como diziam os isso mereceram morrer, numa ação de legítima defesa,
coronéis da PM, e eles me respondiam ali, 62% das aquela retórica o cial de sempre. Os textos [das notíci-
vezes, que eram pessoas que não tinham nenhum regis- as] eram sempre os mesmos, só mudava a quantidade
tro. Eram inocentes ou, pelo menos, tinham sido mor- de mortos, a cor da pele e a idade presumida. O resto era
tos sem nunca terem sido presos. Então, eu tinha esse tudo igual. Os policiais eram agredidos, disparavam em
volume de informação. legítima defesa, como gesto humanitário levavam para
o hospital, e eles acabavam não resistindo e morriam.
Como você arrumava tempo para essa pesquisa? As testemunhas eram os policiais militares e o indiciado
Você ia para o IML depois do expediente na televisão? era o morto, isso se repetia sempre. Então, eu me dei

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conta de que a denúncia era mais grave. Matar bandido os números das sepulturas. Só que ali, na cova, tinha
já é grave, seja quem for, mas pessoas que sequer eram outro nome. Passados quase vinte anos, aqueles nomes
criminosas... não apareciam mais. Aí quei sabendo, conversando no
cemitério, que havia umas seis camadas de corpos [em
E como você chegou aos desaparecidos políticos, cada sepultura], então nem sempre tinha o nome de
aos guerrilheiros que a repressão chamava de terro- todos. O mais comum era colocar o nome do último e
ristas? retirar o do anterior. Bom, como a gente conseguiu
Depois de organizada a papelada, a gente foi avan- avançar? Em um m de semana lá, eu estava no meio da
çando nas análises e percebeu que o per l era pouco minha procura, fui procurado pelo diretor de adminis-
variado, mas tinha mais gente branca de 1970 a 1973. À tração do cemitério, o Toninho.
medida que a gente foi separando por ano, a gente cou
curioso para saber que criminoso é esse que tem um Antônio Pires Eustáquio era o administrador do
per l diferente dos demais. E nos chamou atenção que cemitério desde 1976. Ele quis saber o que você estava
alguns desses papéis tinham a inicial “T” escrita a lápis fazendo ali?
colorido, em vermelho. Reuni aquilo sem descon ar de Ele pareceu um pouco estranho, querendo conver-
nada, mas depois me chamou atenção que aqueles que sar comigo. Queria conversar em um lugar escondido.
tinham o ‘‘T’’ eram brancos. E acabaram os ‘‘T’’ em Disse para eu esperar lá embaixo e fomos conversar.
1973. Um dos funcionários do IML con rmou que era Nisso ele me contou que achava esquisito a minha pre-
inicial de “terrorista”. Eram os mortos e desaparecidos sença ali. Ele viu que a gente estava procurando coisas
da repressão. Como não tinham sido mortos pela Polí- antigas e resolveu me falar uma coisa que ele estava
cia Militar, não estavam no meu universo da pesquisa. sabendo. Aí ele me contou que, num tempo que eu não
Mas aí entra o Maurício Maia, um grande pesquisador me lembro mais quando foi, foi aberta uma cova coleti-
[então produtor do jornalismo da Globo]. Eu estava va, e ele falava em 1.500 cadáveres que tinham sido
conseguindo identi car os casos mais atuais, 1989, retirados das covas em que eu procurava.
1990, mas na medida em que os casos eram mais remo- Tinham sido levados para uma grande cova, uma
tos, eu tinha di culdade de identi car. Cheguei a cratera que abriram ali. Enterraram, cobriram.
pensar em fazer exumação, chegamos a pedir uma ou
outra, e aí um caminho que resolvi adotar foi fazer o E você?
caminho dos cadáveres depois de saírem do IML. Para Bom, eu quei impressionado, é claro, e falei com o
onde tinham ido os corpos não identi cados, que eram meu chefe de reportagem [no Globo Repórter], que era o
os que eu procurava, sobretudo os mais antigos? Eles Narciso Kalili. Expliquei para ele que estava fazendo
recebiam números no IML e eram levados para os cemi- uma pesquisa para o meu livro sobre as ações da Rota e
térios [para serem enterrados como indigentes]. Entre os contei sobre essa descoberta. O Narciso tinha alma de
destinos, apareceu Perus. Tinham outros cemitérios em repórter, sangue de repórter. “Vai atrás. O que você
São Paulo, mas, cruzando os dados, não me lembro de precisa?’’ ‘‘Só preciso falar melhor com esse diretor do
que maneira, [percebi que para] todos aqueles com a cemitério e checar o que ele está me dizendo’’. Fui para lá
letra ‘‘T’’, o destino era Perus. Aí, com a ajuda do Maurí- já na segunda ou terça-feira e o Toninho não quis me
cio, fomos a Perus. O Maurício achou os números nos receber. Pô, achei estranho. Me procurou querendo
registros. Cada corpo que entra tem um registro no passar uma informação relevante e depois não queria
caderno. De posse dos números que eu procurava, ele mais falar comigo? Fiquei ali conversando com ele um
encontrou. ‘‘Realmente, esse corpo saiu do IML e deu tempão e não teve conversa. ‘‘Não te falei coisa nenhu-
entrada dia tal no Cemitério de Perus’’. No m de sema- ma!’’. Achei superesquisito. Contei pro Narciso: “Acho
na, eu ia ao cemitério tentar localizar. Maurício me deu que o cara é meio doidão, não deu certo”. E aí retomei a

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minha pesquisa para buscar as vítimas da Rota. Em um conversar com ele em outro local, contei a história, ele
nal de semana qualquer, não sei se no seguinte ou cou muito emocionado e disse: “Olha, essa história ele
depois, o Toninho me procurou: “Tenho uma informa- [o Toninho] contou para mim, exatamente assim, fui lá,
ção importante para te passar”. E contou tudo de novo. pedi para abrir, ele abriu”. E repetiu o relato do Toninho.
Vi que ele estava meio alto, acho que tinha bebido um
pouco. Aí entendi. Quando o cara bebe, ele ca sincero Era a con rmação que você buscava?
ou mentiroso, uma das duas. Perguntei para ele se ele Eu quei evidentemente chocado e com a certeza
tinha falado a mesma coisa para alguém. E ele disse: de que era verdade. Caramba. Me dei conta da dimen-
‘‘Para ninguém, exceto para o Molina, um engenheiro, são que aquilo tinha e falei pro Narciso, que cou:
da família Molina” [ele se refere a Gilberto Molina, irmão ‘‘Cara, desapareça daqui e vai atrás disso!’’. Trabalhei
do desaparecido político Flávio Molina]. “O que você pra caramba, não me lembro quanto tempo. A mesma
falou para ele?’’ ‘‘A mesma coisa que eu falei pra você, só coisa que estava fazendo com a Rota, fui fazer com
que ele foi mais curioso, acho que ele é melhor repórter todos os laudos com a letra “T” que chegavam [ao IML]
que você” [Caco Barcellos reproduz o que Toninho teria e iam para Perus. E aí eu cheguei à conclusão de que, de
dito a Gilberto]. “Ele perguntou se eu poderia mostrar o todos os desaparecidos políticos, no mínimo nove esta-
lugar, eu fui e mostrei. Abri um pouco; eu tinha uma vam enterrados ali. Agora, para ter certeza absoluta,
picareta ali, uma pá, abri um pouco e não precisei ir tinha que abrir a vala. Eu não sei o que você pensa sobre
muito longe para encontrar o primeiro saco. Tirei o a ação de um repórter. Eu acho que é legítimo você
saco, ele desandou a chorar muito”. O Toninho tinha interferir em qualquer reportagem para não a divulgar
dado a certeza de que seria possível identi car pelo [ou seja, para evitar a notícia]. Por exemplo, um exem-
número, porque teria a numeração amarrada no saco. plo meio doido: você está chegando numa piscina de
E, quando tirou o primeiro saco, não tinha mais o papel, um condomínio e uma criança está se afogando, você
porque o tempo deve ter comido. Tirou o segundo, o nada faz para poder registrar a lmagem da criança se
terceiro, sem nada. Aí o Molina pediu para parar, ‘‘pelo afogando? Evidente que não, que você tem que correr,
amor de Deus’’, sofrendo muito com aquela descoberta, pegar a criança no colo e impedir a notícia daquela
e foi embora. Os dois nunca mais conversaram. Quando tragédia. Cidadão antes de repórter. Agora, interferir
ele falou Molina, eu saí atrás de familiares de guerrilhei- para que a notícia aconteça... Abrir uma cova não é
ros daquele período querendo saber se tinha algum missão minha, né? Eu sou repórter, vou car lá cavan-
Molina. Foi aí que eu conheci a Suzana [Suzana Lisbôa, do? Fiquei com esse dilema. Como eu já estava tendo
então à frente da Comissão de Familiares de Mortos e ajuda da Suzana Lisbôa, do Ivan Seixas, eles tomaram a
Desaparecidos Políticos]. E ela: ‘‘Lógico que tinha um iniciativa, sabendo que eu estava com esse dilema, de
Molina!’’. Aí eu fui atrás dessa família, busquei pela lista cobrar a abertura da cova para ter a certeza de que era
telefônica do Rio de Janeiro e consegui falar com um verdade. Aí foram até a Prefeitura, não lembro quem
Molina. Era justamente o Molina que eu procurava, que exatamente, se a Amelinha [Teles], Suzana [Lisbôa] ou
era o que tinha ido a Perus. [Fui até lá]. Na época, ele [Ivan] Seixas [familiares de mortos e desaparecidos
trabalhava no bairro de Botafogo. Ele desceu, pedi para envolvidos na revelação do episódio; quem fez o contato
com a Prefeitura foi Suzana]. Acompanhei de perto a
Cheguei à conclusão de que, de abertura, evidentemente. Eles perguntaram se deveri-
todos os desaparecidos polí cos, no am chamar a imprensa ou se era exclusivo meu. Essa era
mínimo nove estavam ali. uma informação que deveria ser de domínio público.
Acho que você tem que contar a melhor história possí-
Agora, para ter certeza absoluta, nha
vel, e não contar primeiro. Entre contar a melhor e con-
que abrir a vala.
tar primeiro, pre ro contar a melhor. E aí mobilizaram

36
toda a imprensa para acompanhar a abertura, o que
acho correto, porque a informação era grandiosa, de
relevância pública. E foi assim que se tornou pública
aquela história. Fiz a matéria para a edição do Jornal
Nacional daquela noite. E também um documentário
para o Globo Repórter, que demorou para sair. Eu queria
colocar no ar logo e não consegui. Esperei um tempão,
acho que cinco anos. A reportagem, atualizada, foi ao ar
em 1995.

Que m levou todo esse material que você cole-


tou na pesquisa para o Rota 66?
Eu tenho essa papelada até hoje. Quem guardou
para mim, por muito tempo, até o lançamento do livro
[em 1992], foi o Dom Paulo Evaristo Arns, lá na Comis-
são Justiça e Paz, na Avenida Higienópolis, num cofre
que eles tinham. Eu tinha medo de sofrer atentado. Eu
fazia cópias e fui guardando. Depois levei para um sítio
que eu tenho, está lá até hoje. Não tudo, mas o que é mais
importante. Acho que essa é uma pesquisa que podia
ser retomada, né? Deveria ter continuado. Haja cinismo
para ignorar cinco mortes por dia. Pô, mataram nos
Estados Unidos um camarada, veja o que aconteceu nos
Estados Unidos, a morte de um! [Caco Barcellos se refere
às manifestações que se seguiram ao assassinato de Geor-
ge Floyd Jr., homem negro estrangulado até a morte por
um policial branco durante uma abordagem por suposta-
mente usar uma nota falsi cada de vinte dólares em um
supermercado em Minneapolis, no dia 25 de maio de
2020]. A gente tem cinco só no Rio, três em São Paulo,
oito por dia! Ninguém faz nada, ou faz muito pouco.
Não dá para conviver com isso como se nada estivesse
acontecendo. Eu não consigo. Se a gente for, nós dois,
para Campo Grande ou para Itaboraí, no Rio de Janeiro,
tem dezenas de desaparecidos ali, pelas milícias. É outro
trabalho a ser feito, os desaparecidos de agora.

37
FOTO: CAMILO VANNUCHI
2
A origem

Quem cala sobre teu corpo


consente na tua morte
talhada a ferro e fogo
nas profundezas do corte
que a bala riscou no peito. (...)
Quem grita vive con go.
Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, em “Menino”

Iara desembarcou no Aeroporto Santos Dumont Vinha insegura, com a pulga atrás da orelha. Talvez
em 14 de maio de 1979. O lho de 5 anos agarrado à fosse mais prudente continuar na Itália. Ou se mudar
mão, a lha de 2 abraçada ao pescoço. Quatro horas de para a França, como planejava até o sogro trazer boas
atraso haviam deixado todos cansados. O voo, de notícias. Antes de arrumar as malas, Iara consultara sua
Roma, fora desviado para Viracopos, em Campinas, advogada, Eny Moreira, uma das mais destacadas
porque não havia teto para pousar no Rio de Janeiro. Foi defensoras de presos políticos, associada ao escritório
preciso transferir os passageiros para aviões menores e de Sobral Pinto e, desde 1978, presidente-fundadora do
esperar o tempo melhorar. Comitê Brasileiro pela Anistia. Eny con rmara que não
Iara Xavier Pereira voltava ao Brasil após seis anos havia mais nenhuma pendência judicial contra ela. Por
no exílio. Primeiro Chile, depois Cuba, e por m a Itália. via das dúvidas, a esperaria no aeroporto.
A longa temporada no exterior chegara ao nal quando A viagem longa e as quatro horas de atraso não
seu sogro telefonara no mês anterior para avisar que seu impediram dois agentes da imigração de barrarem a
processo havia transitado em julgado e ela estava livre. passageira quando ela já estava quase pisando do lado
Não precisaria sequer esperar a anistia. de fora.
A família de Iara era toda formada por militantes — A senhora é Iara Xavier Pereira?
políticos. A mãe, o pai, os dois irmãos e o marido inte- — Pois não.
gravam a Ação Libertadora Nacional, a ALN, organiza- — Venha comigo.
Placa fixada no portão do ção fundada em 1968 por Carlos Marighella. Quando Eny precisou intervir, acompanhada pelo deputado
Cemitério Dom Bosco, em
respeito a lei municipal seus irmãos Iuri e Alex foram torturados até a morte, estadual José Eudes, do MDB, para convencer o delega-
sancionada em 2016. Seu em 1972, Iara estava na clandestinidade e seus pais, no do de plantão a adiar o depoimento de sua cliente para o
conteúdo foi elaborado de exílio. Menos de um ano depois, em março de 1973, a dia seguinte. Iara se comprometeu a ir ao Dops. Quando
modo a conferir ao local nalmente chegou à área comum do terminal, ladeada
repressão mataria seu marido, Arnaldo. Iara estava
um marco de memória
em homenagem às grávida e precisou deixar o país. Agora, seis anos depois, pelo deputado e pela advogada, Iara foi abordada por
ví mas da ditadura ela poderia nalmente voltar. um repórter do Jornal do Brasil:
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

— Iara, Iara, você tem acompanhado as notícias? O tradição de acolher indigentes, como os cemitério da
que você espera encontrar na volta ao Brasil? Consolação e o Araçá. E nada.
— O que eu espero encontrar? Bem, eu espero — Eu ia, chorava, apelava, e os homens nem para
encontrar o local onde enterraram meus irmãos, Iuri e abrir o livro preto —, dizia, referindo-se ao livro de
Alex, que foram assassinados pela repressão e estão registros. — Eu não achava, não achava.
desaparecidos. Acabou encontrando por acaso. Em dezembro de
A advogada cou de cabelo em pé. 1973, Tia Irene perdeu o marido, um imigrante húnga-
— Pelo amor de Deus, Iara, como você fala isso? ro, uns vinte anos mais velho que ela. Antes de morrer,
Não fala nada de militância, por favor. Vamos com seu marido havia adquirido uma sepultura num cemi-
calma. tério que acabara de ser inaugurado, dois anos antes, na
Era preciso prudência. Arnaldo, o marido de Iara saída de São Paulo para Campinas. No dia do funeral,
morto pela repressão em 1973, era acusado de ter parti- Tia Irene se deu conta de que naquele cemitério ela
cipado do assassinato de Otavinho, braço direito do nunca havia estado. Muito menos perguntado sobre os
delegado Sérgio Paranhos Fleury na condução do Dops sobrinhos por lá. Sepultou o marido no dia 9 de dezem-
de São Paulo. Qualquer provocação poderia suscitar bro e retornou no dia seguinte para providenciar a ins-
tentativas de vingança. Não tinham matado a estilista talação de uma placa de memória com o nome dele.
Zuzu Angel, conhecida mundo afora, num acidente de Como precisou se reunir com o administrador para
carro no Rio? acertar a burocracia, aproveitou para perguntar a ele
Além de Eny e do deputado José Eudes, havia sobre os sobrinhos, da mesma forma que havia feito nos
alguns familiares à espera de Iara. Eles se dividem. Iara demais cemitérios. Dizia que eles eram estudantes, que
entra com as crianças no carro de uma cunhada. Arnal- tinham 22 e 23 anos, “uns meninos bons”. Talvez porque
dinho, aos 5 anos, estava tranquilo, mas cansado. Ani- fosse um cemitério novo, ainda sem os vícios dos dema-
nha, aos 2 anos, irritada com tantas mudanças: o fuso, a is, o administrador lhe pareceu mais solícito. Anotou os
noite inteira no voo, o novo idioma. Tia Irene entrou no nomes e as datas das mortes e voltou com dois livros de
carro em seguida. capa preta.
— Iara, você não vai ter que procurar ninguém — — O nome do Iuri estava no livro de 1972, na parte
tia Irene a rmou, de supetão, no trajeto até a Gávea. — dedicada à letra I — Irene contava para a sobrinha. — O
Eu encontrei os meninos. Não te mandei uma carta do Alex, não.
contando? Dos dois irmãos, Alex foi o primeiro a morrer, em
Iara cou sem palavras. Tia Irene era irmã de sua 20 de janeiro de 1972. Foi assassinado sob tortura, junto
mãe. Diferentemente de Zilda, no entanto, Irene não com Gelson Reicher, estudante de medicina e seu com-
exercia atividade política nem vivera na clandestinidade. panheiro na ALN. A versão o cial, divulgada nos
— Você encontrou? — arregalou os olhos. — Eu jornais dois dias depois, dava conta de que Alex e Gel-
nunca soube. Não chegou carta nenhuma. Como foi son morreram em confronto com a polícia. Haviam
isso? resistido à voz de prisão e disparado contra policiais.
— Olha, dava um lme — disse a tia. — O Iuri até Alex tinha 22 anos. Como não havia quem reclamasse o
que foi fácil. Mas o Alex... corpo – os pais no exílio e os irmãos na clandestinidade
Apenas mais tarde, quando chegaram em casa e as –, seu corpo foi enterrado no Cemitério Dom Bosco
crianças foram dormir, Tia Irene pôde contar seu péri- como “não reclamado”. Em 14 de junho, menos de cinco
plo. Entre 1972 e 1973, após a morte dos sobrinhos, ela meses depois, foi capturado seu irmão Iuri, de 23 anos,
havia visitado mais de um cemitério em São Paulo à em situação semelhante, acompanhado por dois cole-
procura dos “meninos”. Esteve no Vila Formosa, no gas de organização, Ana Maria e Marcos Nonato. Desta
Lajeado e também em cemitérios mais centrais, sem vez, a notícia da morte demorou a chegar. Não havia

40
A origem

sequer uma versão falsa circulando na imprensa, sinal sar por este nome também?
de que ele havia “caído” e estaria sofrendo tortura em Bingo! No livro de 1972, havia o registro de entrada
algum lugar de São Paulo. Iuri passou seis dias no DOI- do corpo de João Maria de Freitas. Desde então, Tia
Codi, na Rua Tutóia, até que, no dia 20, seu corpo deu Irene rezava e levava ores também para aquela sepul-
entrada no IML. tura.
Localizado o registro do sepultamento de Iuri, Tia De volta à Gávea, em 1979, aquela informação
Irene manda colocar uma lápide de mármore no local eclodiu como uma epifania aos ouvidos já cansados de
onde ele havia sido enterrado. Passou a frequentar aque- Iara, em sua primeira noite no Brasil.
le cemitério com relativa frequência. Ia sempre às duas — Filhos da puta, eles enterraram com os nomes
sepulturas, a do marido e a do sobrinho, nos aniversári- falsos!
os, no dia de Finados... Higienizava as placas, levava Até aquele momento, familiares de desaparecidos
ores. E volta e meia insistia com algum funcionário não tinham feito buscas pelos codinomes. A maioria
sobre o paradeiro do outro rapaz. sequer sabia a identidade utilizada por seus lhos e
— Era um menino, um estudante — ela repetia, e lhas na luta armada. Da mesma maneira que a tática da
voltava a chorar. — Tinha 22 anos. guerrilha orientava os militantes a jamais contar seus
Quase três anos se passaram até que, no nal de nomes de batismo nem sua origem aos companheiros
1976, o novo administrador do cemitério, recém- de organização, tampouco seus familiares cavam
chegado a Perus, ouviu a mesma ladainha e quis ajudar. sabendo seus codinomes ou as atividades que desempe-
— Minha senhora, será que não há uma confusão nhavam na clandestinidade. Iara ainda nem havia se
de data? Não foi um ano antes ou um ano depois? ambientado com o Rio de Janeiro e já queria ir a São
“Pessoas de idade são assim, podem se confundir”, Paulo. Precisava visitar o cemitério de Perus.
Toninho pensou. Mas Tia Irene tinha certeza da data. Já era quase meia-noite quando Iara telefonou para
— É claro que eu tenho certeza. Suzana Keniger Lisbôa. Suzana também tinha militado
— A senhora tem a certidão de óbito? na ALN e, desde que saíra da clandestinidade, no ano
— Não tenho. Mas saiu no jornal. Eu tenho o recorte. anterior, integrava a Comissão de Familiares de Mortos
— Então faz assim — Toninho sugeriu. — Traz esse e Desaparecidos Políticos, em formação. Seu marido,
jornal para a gente dar uma olhada. Luiz Eurico Tejera Lisbôa, havia desaparecido em 1972
Quando Tia Irene voltou, exibiu o recorte da maté- sem deixar laudo no IML nem notícia falsa de “confron-
ria publicada no Estadão como um trunfo. to” com a polícia. O cialmente, não havia nada que
— Olha aqui. A reportagem é do dia 22 de janeiro indicasse que Luiz Eurico poderia estar morto. Suzana
de 1972, não falei? havia se estabelecido novamente no Rio Grande do Sul e
A nota trazia a versão o cial divulgada pela Secre- tinha voltado a estudar quando foi convidada a fazer
taria de Segurança Pública, acusando Alex de ter resisti- parte do Comitê Brasileiro pela Anistia. Por meio de
do à prisão e disparado contra os agentes. Toninho leu a Eny, soube que Iara estava prestes a desembarcar no
nota e chamou a atenção de Irene para um detalhe: Brasil e deixou seu telefone: era para Iara ligar quando
— Dona Irene, aqui diz que na ocasião foram mor- chegasse. Iara esperou que Suzana falasse e, em seguida,
tos Gelson Reicher, que usava o nome falso de Emiliano expôs sua a ição:
Sessa, e Alex Xavier Pereira, que usava o nome falso de — A gente precisa se encontrar — Iara falou. —
João Maria de Freitas. Tenho uma novidade importante. Você pode vir para o
— Imagina, nome falso — Tia Irene respondeu. — Rio?
Isso é coisa da polícia. O nome dele era Alex, mesmo. Suzana não podia viajar naquele momento e propôs
Toninho se fez de desentendido e propôs: que esperassem até meados de junho, quando haveria o
— Bom, já que a senhora está aqui, vamos pesqui- 3º Encontro Nacional dos Movimentos de Anistia, no

41
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

Colégio Metodista Bennett, no Rio. O Cemitério Dom Bosco foi inaugurado no dia 2 de
Foram três dias de seminários e reuniões, de 15 a 17 março de 1971. Não houve ta cortada nem discurso
de junho. Trinta e nove entidades em favor de uma de inauguração. Somente o sepultamento de um pri-
anistia ampla, geral e irrestrita estavam ali representa- meiro grupo de corpos encaminhado pelo Instituto
das, debatendo estratégias de divulgação, populariza- Médico Legal.
ção da pauta e elaboração de propostas a m de con- Desde o primeiro dia, os cadáveres enviados ao
frontar o projeto o cial elaborado pelo Poder Executi- cemitério de Perus tinham em comum uma desconcer-
vo, previsto para ser entregue na Câmara dos Deputa- tante condição de abandono. Antes que as primeiras
dos dali a um mês. Mesmo assim, Iara não conseguia se famílias da região pudessem fazer uso de suas sepultu-
concentrar na programação. A jornada havia perdido a ras, o Dom Bosco foi escolhido como destino preferen-
graça. Ela só conseguia pensar na revelação feita por Tia cial de todos os mortos que chegassem ao IML sem
Irene. Se as suspeitas dela se comprovassem, estaria identi cação ou que não fossem reclamados por
con gurada uma forma peculiar e perversa de desapa- nenhum parente no prazo de 72 horas.
recimento: a opção deliberada por registrar o morto Classi cados como “desconhecidos” ou “não
com o nome de guerra, mesmo quando o nome verda- reclamados”, eram todos sepultados em uma cova
deiro era do conhecimento do IML, de modo a di cul- comum, sem lápide ou memorial. Igual destino tinham
tar sua localização pelos familiares. as vítimas da fome e da extrema pobreza recolhidos nas
Iara estava decidida a encontrar esses corpos, não madrugadas frias de São Paulo, nas ruas, nos albergues,
por motivo espiritual ou religioso, mas para lhes dar nas favelas, tratados na época como “indigentes”. Até
uma sepultura digna e, principalmente, exigir justiça. então, indigentes, desconhecidos e não-reclamados
Ela achava, mais por intuição do que por conhecimento tinham como destino preferencial o cemitério de Vila
cientí co, que os ossos de seus irmãos poderiam dar Formosa, na Zona Leste. A partir de março de 1971,
alguma pista sobre a forma como foram mortos. Pelo aquele cemitério novinho, amplo e deserto, assumiu a
menos para confrontar a versão o cial divulgada por responsabilidade de hospedar corpos encaminhados
seus algozes. Se o aparato repressivo montava teatri- pelo IML e pelo Serviço de Veri cação de Óbito da USP,
nhos para forjar um suicídio ou um atropelamento, e os responsável pelo encaminhamento das vítimas de mor-
documentos do IML tinham sido igualmente falseados, tes não violentas.
talvez os restos mortais preservassem a memória da Um cemitério no bairro era uma reivindicação
violência de Estado perpetrada contra suas vítimas. Os antiga dos moradores de Perus. Desde meados dos anos
ossos falariam! 1940, petições e protestos eram elaborados com relativa
Assim que Suzana desembarcou no Rio, Iara con- frequência pela gente do bairro, na esperança de conse-
tou a ela a descoberta de sua tia. Combinaram de ir para guir junto à Prefeitura a construção de um cemitério
São Paulo assim que aquele encontro terminasse. Ivan, onde a população local pudesse enterrar seus mortos.
que dois anos antes havia localizado em Perus os restos Tinham razão ao reivindicar. Os cemitérios municipais
mortais de seu pai, Joaquim Alencar de Seixas, iria – e, portanto, gratuitos – mais próximos cavam a mais
junto. Sérgio Xavier Ferreira, primo do desaparecido de 15 quilômetros, um na Freguesia do Ó e outro na
Carlos Alberto de Freitas, da VAR-Palmares, também. Lapa. Para o morador de Perus, era mais fácil ir ao cemi-
Assim, poderiam ajudar e se proteger uns aos outros. tério de Caieiras do que a qualquer um dos cemitérios
— Se você estiver certa, vou encontrar o Ico lá — paulistanos. Mas Caieiras era outro município, ou seja,
Suzana comentou com Iara, ansiosa. — Eu sei o nome suas sepulturas mantinham-se inacessíveis aos habitan-
que ele usava na clandestinidade. tes do bairro.
Distante 32 quilômetros da Praça da Sé, no meio do
*** caminho para Jundiaí, Perus cava de tal forma aparta-

42
A origem

do do noticiário e da vida cotidiana da cidade que, para lixão e sua conversão em usina termelétrica a partir de
muitos, tratava-se de outro município, como Caieiras, 2007.
Cajamar ou Franco da Rocha. Talvez por isso tenha O início da colonização de Perus remetia ao século
virado hábito entre os peruenses referir-se à capital XVIII, quando se formou próximo à con uência do
como se fosse outro município. “Eu trabalho em São Ribeirão Perus com o Rio Juquery um local de pouso
Paulo, mas moro aqui”, dizia a moça. “Amanhã, logo para os tropeiros que se aventuravam rumo ao interior.
cedo, vou pegar o trem pra São Paulo”, dizia o moço. Nos Diz a lenda que havia por ali uma senhora que criava
jornais, nas raras vezes em que surgia algo sobre o bair- perus e os preparava na panela, sob encomenda. Até que
ro, havia sempre um redator incauto para cometer desli- o nome pegou. “Vamos pousar ali nos perus”, diziam os
zes como “em Perus, a 30 quilômetros de São Paulo”, tropeiros antes de avançar rumo a Jundiaí ou Campinas.
reforçando o senso comum de que havia uma fronteira O Cemitério Dom Bosco foi uma obra de Paulo
entre a capital e o distrito. Maluf. Quarta opção na lista apresentada pelo governa-
Para quem olha o mapa da cidade e enxerga nele o dor Abreu Sodré para o então presidente Costa e Silva,
per l de uma cabeça de cachorro com o focinho apon- Maluf foi escolhido pelo general para assumir o cargo e
tando para o leste, Perus ca bem no topo de uma das tomou posse em 8 de abril de 1969, numa época em que
orelhas. A outra orelha é o Tremembé. os prefeitos eram biônicos, indicados pelos militares. À
A verdade é que tudo era longe demais para os frente da fábrica de pisos Eucatex, Maluf ocupava a
moradores de Perus em 1970. Apenas duas coisas pare- presidência da Caixa na ocasião. Ficou dois anos como
ciam demasiadamente próximas: uma fábrica de prefeito, até ser substituído pelo também engenheiro
cimento e um lixão. A poluição emanada das chaminés Figueiredo Ferraz, indicado pelo governador Laudo
da fábrica, o pó de cimento que cobria as casas, associa- Natel. Foi o su ciente para construir o cemitério de
das às péssimas condições de trabalho impostas pelo Perus e também o Minhocão – uma via elevada com
“mau patrão” J. J. Abdalla, que não fazia manutenção mais de três quilômetros de pista dupla que desempe-
dos equipamentos nem recolhia os impostos devidos, nhou papel fundamental na degradação do centro de
motivou os funcionários da Companhia de Cimento São Paulo.
Portland Perus a decretar uma greve que se estendeu Um primeiro estranhamento que surgiu durante a
por sete anos, de 1962 a 1969. Um recorde. construção do cemitério foi a péssima localização. Até o
Na ocasião, foi o jornal O Estado de S. Paulo que cemitério de Perus cava longe de Perus! Enquanto o
impingiu nele o apelido de “mau patrão”, uma deferên- centro do bairro orbitava a estação de trem, era preciso
cia às avessas para com o controvertido industrial que caminhar por mais de dois quilômetros pela Estrada do
adquirira a Portland em 1951, quando era Secretário do Pinheirinho para chegar ao cemitério, um percurso
Trabalho do governador Adhemar de Barros, ao qual se cumprido em chão de terra, não urbanizado, que torna-
xou o bordão “rouba, mas faz”. va especialmente difícil o acesso ao local. Moradores
O levante de trabalhadores cou conhecido como estranharam a desapropriação daquele terreno. Em
movimento dos queixadas, uma referência aos porcos- Caieiras e em Jundiaí, os cemitérios cavam em áreas
do-mato que, sob ameaça, unem-se ao menor sinal de centrais. Ali, não. A Prefeitura havia escolhido um local
perigo para reagirem em grupo. No nal, sua militância ermo e isolado, essencialmente rural, para transformar
resultou na intervenção do Governo Federal na fábrica no cemitério de Perus. Uma área com relevo acidenta-
de cimento, em 1975, e em seu fechamento de nitivo, do, com poucas casas e nenhum estabelecimento
em 1987, quando os antigos funcionários foram indeni- comercial em volta.
zados. O movimento dos queixadas também daria Concluída a terraplanagem e o projeto de incorpo-
régua e compasso para que um novo ativismo surgisse ração das glebas e quadras, em poucos meses caram
ali, conseguindo o encerramento das atividades no prontas as salas de velório e administração. Maluf fez

43
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

questão de acelerar os trabalhos nos últimos meses para opressão de que é vítima o povo brasileiro desde 31 de
inaugurar antes de partir. Havia algo de estratégico março de 1964”.
naquele gesto, principalmente para um político de sua Aquilo foi o estopim de um sentimento incontrolá-
envergadura, que não escondia o desejo de chegar ao vel de vingança por parte do órgão de repressão. Menos
governo do Estado e à Presidência da República sob o de 24 horas depois, Joaquim e Ivan foram localizados e
beneplácito e as bênçãos dos militares. levados para o DOI-Codi. Pouco depois, sequestraram
A novidade recebeu o nome de Cemitério Dom também a mulher de Joaquim, Fanny, e as duas lhas,
Bosco em homenagem a um padre italiano, canonizado Ieda e Iara. Na madrugada de 16 para 17 de abril,
em abril de 1934, que o Papa Pio XI nomearia “padroei- enquanto Joaquim era brutalizado na Rua Tutóia, uma
ro dos jovens”, “pai e mestre da juventude”. Uma ironia e equipe de agentes levou Ivan para um matagal com a
tanto. promessa de que ele seria fuzilado, uma forma de inti-
midação. No percurso de volta ao DOI-Codi, logo cedo,
*** os agentes pararam numa padaria para tomar café. Sem
sair da viatura, Ivan conseguiu ler, na capa de um gran-
Não era a primeira vez que Ivan Seixas visitava de jornal pendurado numa banca, a notícia da morte de
aquele cemitério. Sua história com Perus era antiga, seu pai. Segundo a nota, o terrorista Joaquim tinha sido
remetia ao início da década. abatido com sete tiros no dia anterior, após resistir à voz
Ivan tinha 16 anos de idade quando foi preso e de prisão e abrir fogo contra a polícia. Era mentira.
levado ao DOI-Codi, em 16 de abril de 1971, junto com Joaquim estava vivo, como Ivan pôde constatar minutos
o pai, Joaquim Alencar de Seixas. Pai e lho militavam depois, ao ingressar novamente do DOI-Codi.
no Movimento Revolucionário Tiradentes, o MRT. Na Joaquim morreria naquela noite. Como o exame
véspera de sua prisão, o MRT, numa ação conjunta com necroscópico já estava pronto antes mesmo de sua mor-
a ALN, tinha sido responsável pela morte do empresá- te, o corpo de Joaquim foi encaminhado diretamente
rio Albert Henning Boilesen, presidente da Ultragás e para o Cemitério Dom Bosco e enterrado no dia 19 de
nanciador contumaz do aparato repressivo. Entusiasta abril, de tal sorte que Joaquim se tornou o primeiro
da violência praticada contra os oponentes da ditadura, preso político enterrado em Perus, apenas 37 dias após a
Boilesen costumava assistir a sessões de tortura na inauguração. Seu sepultamento foi registrado no livro
Operação Bandeirantes, a Oban, e manteve a frequên- dos indigentes, uma vez que nenhum parente foi ao
cia quando aquele centro semiclandestino de repressão IML para reivindicá-lo: a mulher e os três lhos esta-
foi institucionalizado por meio do DOI-Codi, agora um vam presos e incomunicáveis.
órgão o cial, fundado no mesmo endereço em setem- Um ano e meio depois, no nal de 1972, a mãe e as
bro de 1970. irmãs de Ivan foram soltas e puderam nalmente procu-
Boilesen ia à Rua Tutóia, na Vila Mariana, como rar pelo corpo de Joaquim. Ivan permaneceria preso até
quem vai ao cinema. Chegou a doar um aparelho de 1976, passando por quatro presídios diferentes.
aplicação de choques a m de melhor equipar aquele Fanny, Iara e Ieda localizaram sem maiores di cul-
local, que seu comandante, o coronel Carlos Alberto dades o local em que Joaquim fora enterrado. Devido ao
Brilhante Ustra, apelidara de sucursal do inferno. “Hen- teatrinho montado pela repressão, não havia motivos
ning Boilesen foi justiçado”, dizia o manifesto assinado para ocultar aquele guerrilheiro. Aos olhos da socieda-
por MRT e ALN e deixado ao lado do corpo do empre- de, graças à ajuda da imprensa, havia morrido um peri-
sário na Alameda Casa Branca. “(Agora) não pode mais goso terrorista, que ousara resistir à voz de prisão abrin-
scalizar pessoalmente as torturas e assassinatos na do fogo contra a polícia, numa operação em que o morto
Oban, nem oferecer banquetes aos altos o ciais das era o culpado e os policiais eram as vítimas. Localizada a
forças armadas brasileira, que comandam o terror e a sepultura de Joaquim e o registro de sua entrada no livro

44
A origem

de não-reclamados, as três voltaram outras vezes ao Daqui a pouco vai vencer o prazo para a exumação e vão
cemitério. Levavam ores, arrumavam a sepultura. misturar todos esses ossos num buraco só. Ou tocar
Quase sempre, eram seguidas e ameaçadas por agentes à fogo em tudo. Vocês vão acabar perdendo o pai de
paisana no longo trajeto entre a estação e o cemitério, vocês.
pela Estrada do Pinheirinho. A mãe contava os detalhes No cemitério, Ivan conferiu a localização de outros
ao lho quando ia visitá-lo na cadeia. Às vezes, desaba- guerrilheiros e, com a ajuda de Toninho Eustáquio,
va, aos prantos. Em uma das ocasiões, um sujeito parou pesquisou os livros. Pediu para ver o livro de 1971 na
a seu lado enquanto ela visitava a sepultura. letra D.
— Veio visitar esse comunista de merda? — disse o Dênis Casemiro era amigo de seu pai e companhei-
estranho. — Essa sepultura aqui do lado nós reserva- ro de organização. Morrera um dia depois de Joaquim,
mos para o seu lhinho, viu? Nós vamos matar ele e caçado sem descanso e torturado com especial violên-
enterrar ao lado do papai. Dois terroristas lhos da cia por ter participado da execução de Boilesen. Dênis
puta. Casemiro também estava lá, registrado com o nome
Aos poucos, as visitas ao cemitério zeram com que verdadeiro. Ivan notou uma coisa que o deixou descon-
Fanny e as lhas criassem um vínculo com os sepulta- ado. O corpo de Dênis tinha sido registrado no livro
dores. Conversa vai, conversa vem, revelações começa- como se fosse de um sujeito de 40 anos. Na verdade,
ram a ser feitas. “Chegou mais um estudante”, contava Dênis tinha 25 anos quando foi morto. Não bastasse o
um. “Olha, dona, teve um aí que chegou todo destruí- erro, deliberado ou não, Ivan notou ainda que seus
do”, dizia outro. restos mortais haviam sido exumados da sepultura
No início de 1973, o enterro de Alexandre Vannuc- original. E, estranhamente, nada constava sobre o desti-
chi Leme não passou despercebido. “Esse estudante que no daquelas ossadas. Pela primeira vez, ouviu falar
apareceu no jornal foi enterrado aqui”, disseram. “Trou- sobre a possibilidade de haver ali uma vala clandestina.
xeram o corpo quase de noite. Deu pra ver que ele estava Nela, Dênis não estaria sozinho.
todo arrebentado. Aí jogaram cal em cima, provavel-
mente para dissolver”. ***
Alexandre cursava geologia e militava na ALN
quando foi assassinado sob tortura, em 17 de março de Toninho lembrou-se de Ivan, que anos antes havia
1973. Quando seus pais obtiveram o atestado de óbito, se interessado pelo sumiço daquele Dênis, irmão de
elaborado com informações falsas, Alexandre já tinha outro desaparecido. Também disse se recordar de Dona
sido sepultado, na quadra dos indigentes, uma vez que o Irene, a tia de Iara, e de como haviam encontrado a
corpo não havia sido reclamado nas 72 horas que suce- sepultura do jovem Alex, registrado com nome falso em
deram à morte. A própria notícia de sua morte, atribuí- 1972. O administrador conduziu o grupo até a gleba 1 e
da a um atropelamento que jamais existiu, fora divulga- se demorou em frente a cada uma das sepulturas, tanto a
da pelas autoridades e publicada nos jornais apenas de Iuri quanto a de Alex, ambos exumados e reinuma-
quatro dias após o sepultamento. Tudo conforme o dos no mesmo local conforme o livro. Explicou a Iara o
script. processo para transferir os ossos para o Rio, caso ela
Quando nalmente foi solto, Ivan quis ir o cemité- quisesse providenciar o traslado, e mostrou a ela as
rio de Perus com o pretexto de visitar o túmulo do pai. anotações referentes aos dois.
Ele sabia que Joaquim não estava mais lá. Ainda em Para Iara, recém-chegada ao Brasil após seis anos
1974, os próprios sepultadores tinham convencido suas de exílio, aquele era um momento de grande emoção,
irmãs a exumar o corpo do marido e transferi-lo para uma espécie de ajuste de contas com um passado inter-
outro cemitério, o que foi feito em 1975. rompido violentamente. Era também a primeira pista
— É melhor vocês levarem o Joaquim — diziam. — para uma revelação muito maior, que ajudaria a desven-

45
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

dar o paradeiro de muitos outros desaparecidos. sepulturas de desaparecidos como Antonio Carlos
Suzana, então, contou que a situação de seu marido Bicalho Lana, Sônia Moraes Angel Jones, Antônio Bene-
era semelhante à do Alex e pediu para veri car no livro. tazzo e Pedro Pomar, entre outros.
Ela nunca havia cogitado procurar Eurico em cemitéri- Iara voltou para o Rio. Ivan e Suzana, que moravam
os. Se não havia qualquer documento do IML ou de em Porto Alegre naquela época, permaneceram em São
outro órgão a declará-lo morto, como Eurico poderia Paulo por mais alguns dias, mergulhados na busca.
ter sido enterrado num cemitério municipal, com regis- Faziam anotações, cruzavam dados, procuravam
tro no livro e tudo? outros familiares para conciliar as datas e pedir mais
— Também foi em 1972 — contou. — Um pouco informações. Quando a Câmara dos Deputados anun-
depois do Alex, em setembro. ciou que o projeto da Anistia protocolado pelo governo
— E qual era o nome dele? seria submetido ao plenário em 22 de agosto, familiares
— Luiz Eurico Tejera Lisbôa. engajados na campanha por uma anistia ampla, geral e
— É, de fato não tem ninguém com esse nome aqui irrestrita decidiram aproveitar a ocasião para denunciar
— Toninho conferiu. — Ele usava algum outro nome? a descoberta daqueles corpos. Era como se buscassem
Suzana já esperava por aquela pergunta. escancarar o que era somente sussurrado. “Enquanto
— Nelson Bueno. vocês vêm com essa anistia pela metade e se dizem dis-
Na letra N, quase por encanto, surgiu o nome de postos a dar aos familiares esses atestados de morte
Nelson Bueno, enterrado em 2 de setembro de 1972 presumida, nós estamos aqui para mostrar que não tem
como não-reclamado. Suzana não podia acreditar. morte presumida nenhuma, que a morte é evidente e
Chorou, o corpo tremendo, os dedos entrelaçados aos está documentada, que o Estado perseguiu, torturou e
de Iara. matou nossos entes queridos”.
“Que canalhas”, Suzana pensava. Havia um modus Diante das câmeras da TV e das equipes de reporta-
operandi ali. Era uma estratégia, uma ocultação propo- gem dos jornais, Suzana revelou que Luiz Eurico e
sital. Enterravam com o nome falso para di cultar a Dênis Casemiro tinham sido encontrados num cemité-
localização, ela percebeu. Se pais, mães e irmãos rara- rio em São Paulo. Os desaparecidos não estavam vivos
mente sabiam os codinomes usados pelos militantes na passeando por aí, como Figueiredo e outros políticos da
clandestinidade, como poderiam encontrá-los? situação costumavam sugerir em diversas declarações.
A descoberta de Luiz Eurico era especialmente Eles estavam mortos e tinham sido enterrados com
alvissareira porque se tratava de um desaparecido, de dados adulterados para di cultar a localização. “Eu
alguém sobre quem não havia nenhum registro de óbi- encontrei meu desaparecido e ele está morto”, Suzana
to, nenhuma versão falsa de tiroteio com a polícia nem dizia. E contava detalhes sobre os dois casos. Luiz Euri-
nada. Nada que eles conhecessem. Foi o início um tra- co, enterrado como Nelson Bueno. Dênis Casemiro, um
balho sistemático de busca por desaparecidos naquele rapaz branco de 25 anos, enterrado como se fosse um
cemitério e em outros. Numa primeira fase, por meio homem negro de 50.
dos nomes reais. Em seguida, tentando resgatar os codi- Foi uma manifestação e tanto em Brasília, a maior
nomes e repetindo as buscas nos livros e nas sepulturas. manifestação de familiares de mortos e desaparecidos
Àquela altura, meados de 1979, algumas vítimas da políticos que o Brasil já tinha visto. Saíram ônibus freta-
repressão enterradas sem o conhecimento da família já dos de São Paulo, do Rio, de Belo Horizonte e de Goiás.
tinham sido localizadas no Cemitério Dom Bosco, com Teotônio Vilela, senador pelo MDB, foi quem articulou
base nos atestados de óbito e nos livros de entrada. Foi o a entrada daquela turma e ajudou a montar o circo no
caso de Alexandre Vannucchi Leme e de Joaquim Sei- salão verde da Câmara. Familiares, sobretudo mães,
xas. Agora, a atuação de Suzana, Ivan e outros familiares empunhavam retratos e faixas com os rostos dos lhos
seria decisiva para que se localizassem, em Perus, as desaparecidos. “Gente, mas eles eram tão jovens”,

46
A origem

comentou um deputado de Pernambuco ao olhar aque- ossadas tinham sido exumadas ao longo de 1975 e das
les retratos. quais não havia qualquer informação sobre reinuma-
O projeto de lei do Governo acabou aprovado, pela ção. Toninho entendeu que havia sido feita uma exuma-
minúscula diferença de cinco votos (206 x 201), e a ção em massa, um ano antes de sua nomeação como
anistia pôde ser promulgada dali a seis dias, em 28 de administrador do cemitério. Entendeu também que
agosto. Não era a anistia ampla, geral e irrestrita defen- eram exumações regulamentares, autorizadas pela lei
dida pelos familiares de mortos e desaparecidos e pela municipal que estabelecia o tempo mínimo a partir do
maioria dos ex-presos políticos, ora engajados em qual a municipalidade poderia exumar as ossadas que
denunciar as práticas de tortura, dar nome aos tortura- não fossem retiradas pelas famílias a m de abrir espaço
dores e caracterizá-los como criminosos. A lei da anis- para novos sepultamentos. O que ele não conseguia
tia, como acabou sendo interpretada, garantiu a impu- entender é por que os corpos não tinham sido reinuma-
nidade para esses assassinos e toda a cadeia de comando dos no mesmo local, como de praxe.
do sistema repressivo, ao mesmo tempo em que mante- O cemitério era novo, havia terra de sobra para
ve as penas impostas por “crimes de sangue” – somente fazer o afundamento da sepultura, ou seja, enterrar as
quando praticados pelos opositores da ditadura. Apesar ossadas em sacos menores, embaixo da terra, no mesmo
de todas essas limitações, a anistia representou a volta local de onde tinham sido exumadas, permitindo que o
dos exilados, a libertação dos presos e uma etapa funda- espaço fosse ocupado por um novo caixão. Ele já havia
mental no processo de redemocratização. feito testes, escavado sob outras sepulturas, e nada. O
A experiência de ir a Brasília e revelar publicamen- caminho mais simples, previsto no regulamento do
te a descoberta do paradeiro de Luiz Eurico e Dênis próprio serviço funerário, indicava a reinumação no
Casemiro, por sua vez, trouxe uma visibilidade inédita mesmo local e somente se houvesse necessidade de
para o tema dos desaparecidos políticos. Na semana espaço. Nada disso se veri cava no Cemitério Dom
seguinte, a localização da sepultura de Luiz Eurico, no Bosco, menos ainda em 1975, apenas quatro anos após a
cemitério de Perus, rendeu matéria de capa da revista inauguração.
IstoÉ. “Aqui está enterrado um desaparecido”, dizia a Toninho insistia, cobrava os colegas, voltava sem-
manchete. pre à mesma pergunta, batia na mesma tecla, como um
E os outros desaparecidos? Restava solucionar o disco riscado.
maior dos mistérios: qual o paradeiro daqueles que, — Onde estão as ossadas?
segundo os livros de registros, tinham sido exumados e Ninguém respondia.
não foram reinumados em lugar nenhum? Toninho estava convencido de que em algum lugar
daquele cemitério havia uma vala clandestina, um buraco
*** onde aquela quantidade monstruosa de ossos fora enter-
rada com ordens expressas para que nada fosse registrado.
Toninho estava obcecado. Para ele, era uma espécie “Como eu posso administrar um cemitério com uma
de oráculo de es nge, um “decifra-me ou te devoro”. A bomba dessas?”, ele pensava. “Qualquer hora descobrem e
todos os sepultadores que haviam entrado no cemitério a bomba vai estourar no meu colo; vão dizer que fui eu que
antes dele, Toninho repetia a mesma pergunta: sumi com esses ossos”.
— O que vocês zeram com os corpos que foram Para os sepultadores que conheciam o destino das
exumados das quadras 1 e 2? ossadas, o medo era o mesmo. “Se essa notícia estoura, vou
Ninguém respondia. perder o emprego e também a aposentadoria”, temiam.
Toninho perscrutava as páginas daqueles livros de Virava e mexia, Toninho retomava a ladainha de
capa preta e fazia contas. Eram muitas exumações. sempre. Às vezes na hora do almoço, às vezes à noite,
Chegou ao número aproximado de 1.500 pessoas cujas tomando cachaça.

47
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

— Ih, lá vem você com esse assunto de novo!


— Você não cansa, não? Puta cara chato!
— Deixa essa história pra lá!
Toninho deixava pra lá. Depois voltava. E punha-se
a jogar verde:
— Tá lá embaixo, perto do Pinheirinho? Tá do lado
de fora, no estacionamento? Tá no barrocão, junto com
aquele chimpanzé que morreu no circo e foi enterrado
aqui?
Com o tempo, Toninho resolveu escolher seu alvo.
Para enterrar tanta gente, ele pensou, só mesmo com a
retroescavadeira. O único operador de máquina ali era
o Pedro.
Uma noite, sozinho com o Pedro, já depois da ter-
ceira ou quarta dose, Toninho tocou mais uma vez no
assunto. O amigo perdeu a paciência.
— Você ca numa teimosia com esses terroristas —
Pedro perdeu a paciência. — Eles estão num buraco lá
na área do cruzeiro.
Agora, a obsessão de Toninho não era mais con r-
mar a existência do buraco, mas por encontrá-lo.
Morando no próprio cemitério, como um caseiro, Toni-
nho saía de casa à noite para prospectar a área do cruze-
iro. Ia para lá munido com uma sonda, um ferro com
mais de três metros de comprimento, e punha-se a espe-
tar o solo. Começou no centro da área. Espetou aqui,
espetou ali e nada. Outra noite, tentou na região mais
abaixo, próxima à rua que dividia a área do cruzeiro da
quadra 1. Nada. Pôs-se, então, a investigar junto ao
barranco. Uma noite, às vésperas da anistia, o ferro
entrou na terra e quase sumiu. Entrou inteiro, sem
esforço.
— É aqui!

48
Toninho, o homem que procurava
Camilo Vannuchi⁶

Toninho passa a maior parte do dia ali, atrás do

FOTO: ROBERTO PARIZOTTI


balcão. Serve refrigerante, balas e salgadinhos. A cerve-
ja é em casco, guardada às dúzias em engradados colori-
dos. Quando termina o expediente dos sepultadores, o
bar costuma car mais animado. Trabalhadores se
aboletam em mesinhas de madeira dobráveis e colocam
o papo em dia antes de cada um tomar seu rumo.
Em meados de 2020, o horário do bar era outro por
conta da pandemia do novo coronavírus. Por instrução
da Prefeitura, Toninho passou a abrir às 10h e a fechar às
16h. Um pouco mais, um pouco menos, dependendo da
freguesia: mirrada clientela em tempos de isolamento
social.
Faltavam poucos minutos para as quatro quando
ele me ofereceu um copo d'água e disse que já podíamos
dar uma volta. Esperei na calçada que ele abaixasse a
porta de ferro do bar. Era agosto, auge das mortes por
Covid-19 no Brasil, e lá fomos os dois, mascarados,
mantendo dois metros de distância um do outro, passe-
ar no cemitério. Toninho fazia questão. Para ele, contar
Não fosse a coragem do administrador que ousou denunciar a
existência daquele ossário quando a democracia apenas a história da vala clandestina não tem graça se ele não
enga nhava, talvez essa grave violação de direitos humanos puder palmilhar os caminhos, indicar com o dedo a
permanecesse nas sombras até hoje.
quadra 1 e a quadra 2, percorrer a área do cruzeiro, se
aproximar do barranco, conferir de perto o muro ver-
Antônio Pires Eustáquio mora bem em frente ao melho construído em homenagem aos mortos e desa-
Cemitério de Perus. No mesmo imóvel, de frente para a parecidos da ditadura.
rua, ele mantém um bar desde o nal dos anos 1980. A trajetória de Toninho se confunde com a história
⁶Camilo Vannuchi é jornalista “Lanchonete e Floricultura Pires”, diz o letreiro, xado da vala clandestina. Tanto um quanto a outra se estabe-
e escritor, autor da pesquisa na fachada há mais de duas décadas. Embaixo do nome leceram naquele solo em 1976. Em meados desse ano, o
que deu origem a este livro e
do estabelecimento, um número de telefone com ape- superintendente do Serviço Funerário, Jaime Augusto
à obra Vala de Perus, uma
biografia (Alameda Editorial, nas sete dígitos, apesar de a substituição por números Lopes, o chamou na central para propor a transferência.
2020). com oito dígitos ter sido adotado no bairro em 2005. Toninho era um funcionário veterano nas necrópoles

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de São Paulo. Já havia trabalhado no Cemitério da Con- Toninho descobriu nos livros do
solação, no Araçá e no São Paulo, ambos em Pinheiros, e cemitério que mais de mil corpos
também no Cemitério Campo Grande, em Santo Ama-
nham sido exumados entre 1975 e
ro, e no cemitério da Vila Mariana.
Os superiores já foram logo dizendo que o Cemité-
1976. Nenhuma palavra sobre seu
rio Dom Bosco era afastado de tudo. Exatamente por des no. Onde foram parar?
isso, Toninho parecia o administrador ideal. Ele não era
casado nem tinha lhos, o que o deixava livre para se Não fosse a teimosia de Toninho, talvez a vala de
mudar de bairro sem grandes obstáculos. Também Perus permanecesse em segredo até hoje. Teimosia
poderia se instalar na própria administração e morar ali combinada com ousadia. A ousadia de revelar, contar,
mesmo, no cemitério, matando dois coelhos com uma dizer. Primeiro, para os familiares de mortos e desapa-
cajadada só e agradando ambas as partes: ele se conver- recidos políticos que começaram a procurar os corpos
teria numa espécie de zelador com dedicação 24 horas de seus parentes, ainda nos anos 1970, antes da anistia.
ao batente, ao mesmo tempo que economizaria o Tempos sombrios. Era preciso estar atento e forte. Em
dinheiro do aluguel, um alívio e tanto no magro holeri- seguida, Toninho contou sobre a vala clandestina para
te. Por m, Toninho tinha nascido no Sul de Minas um jornalista, Caco Barcellos, repórter na TV Globo.
Gerais, na zona rural de Santa Rita, entre Pouso Alegre e Toninho tinha uma queda pelo jornalismo investi-
Poços de Caldas, e era lho de lavrador, de modo que gativo. Gostava de investigar, apurar, descobrir as coi-
aquela roça de Perus não lhe causaria espanto ou des- sas. Ele mesmo, sem nenhuma formação ou experiência
conforto. Toninho foi. na área, havia produzido jornais de bairro na mocidade,
“Me recomendaram muito os indigentes”, ele diz. antes de o serviço público lhe dragar todas as energias.
“Aqui era um cemitério que recebia muito indigente e os Um pouco por exagero, um pouco por expectativa,
indigentes não tinham ninguém para olhar por eles. a rmou ao jornalista que a informação que ele tinha
Então eu teria que olhar muito essa parte dos indigen- para lhe passar não era qualquer coisa. “Eu tenho a
tes. Acabei ganhando o apelido de 'pai dos indigentes'”. matéria que vai te consagrar”, a rmou a Caco Barcellos,
Toninho lembra que o mistério das ossadas em durante uma conversa discreta, um diálogo nas som-
pouco tempo virou uma obsessão. Não fazia sentido. bras, longe de qualquer outro sepultador ou funcioná-
Por que aquele monte de nome nos livros de entrada do rio. A vala clandestina foi nalmente revelada semanas
cemitério trazia a anotação de que tinham sido exuma- depois. E Toninho foi parar nos jornais e na TV.
dos, entre 1975 e 1976, mas nem uma vírgula sobre o Dias depois de dar com a língua nos dentes em horá-
local de reinumação, ou seja, do destino daqueles ossos? rio nobre, Toninho precisou sumir. Pegou a família e
Por que mais de mil ossadas tinham sido retiradas de escafedeu-se. Foi o período das ameaças. Bastava atender
suas sepulturas e não havia uma mísera informação ao telefone que já vinha grosseria do outro lado da linha.
sobre o local para onde tinham sido transferidas? Dedo-duro, alcagueta, inconsequente, mentiroso, comu-
O administrador não se sentiria à vontade naquele nista. Provavelmente, era gente da caserna, de pijama ou
cemitério enquanto não obtivesse uma resposta. E se não, temerosa de que outros esqueletos viessem a sair dos
sobrasse para ele? E se alguma autoridade viesse cobrar armários. Após catorze anos de relativa calmaria, a bem-
explicações sobre aquelas ossadas desaparecidas e ele sucedida política de sumiço e esquecimento orquestrada
não soubesse o que dizer? Ora, se o administrador era pelos prepostos da ditadura havia desaguado numa
ele, por certo ele acabaria tendo de responder legalmen- revelação bombástica sem precedentes. E agora? E se os
te por aquelas exumações. Pergunta pra um, pergunta nomes dos mandatários viessem a público? E se outras
pra outro, todos faziam cara de paisagem. “Melhor não valas clandestinas, outras áreas de desova, outros locais
mexer com isso”, diziam. Toninho insistia. Teimava. de tortura e execução fossem revelados?

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FOTO: CAMILO VANNUCHI
Toninho, ex-administrador do cemitério, em foto de 2020. Um monumento em homenagem às ví mas da violência de Estado foi
construído em 1992 pelo ar sta plás co Ricardo Ohtake no mesmo local onde a ditadura abriu a vala clandes na.

Na Comissão Parlamentar de Inquérito que se Comissão da Anistia. Nos anos 2010, as comissões da
formou em seguida, ainda em 1990, Toninho revelou os verdade bateram mais uma vez na porta de Toninho.
nomes dos quatro sepultadores que já trabalhavam no Queriam ouvir seu relato, suas memórias. A história da
Cemitério de Perus em 1976. E cantou a bola: o opera- vala de Perus virou relatório, virou livro, virou peça de
dor de retroescavadeira em 1976 era o Pedro, e foi ele teatro.
quem abriu aquela vala. A mando de quem? O jogo de Toninho estava por perto quando os muros do
empurra seria inevitável. Passados trinta anos, nem o cemitério foram gra tados com diversas imagens que
prefeito, nem o superintendente do Serviço Funerário, faziam referência à ditadura e à opressão: coturnos
ninguém foi responsabilizado até hoje por tamanha pisando um chão ensanguentado, um rapaz tapando a
violência. Nem no âmbito administrativo nem na esfera boca de outro com a mão, um pau de arara feito de jor-
criminal. Segundo a interpretação prevalente no Judi- nal... Toninho também estava por perto quando o Cemi-
ciário brasileiro, abençoada pelo Supremo Tribunal tério Dom Bosco ganhou uma placa com os nomes dos
Federal, foram todos anistiados. 31 mortos e desaparecidos políticos que haviam sido
Toninho foi exonerado do cargo de administrador enterrados em algum momento ali. Na mesma ocasião,
no primeiro semestre de 1993: um dos primeiros atos foram plantados 31 ipês atrás do prédio da administra-
do novo prefeito, Paulo Maluf. Aposentado, apenas ção, cada um em homenagem a um dos opositores polí-
atravessou a rua e cou por ali mesmo, no imóvel que ticos que tombaram e foram enterrados naquele local.
era a um só tempo residência e batente. Pouco a pouco, Hoje, o jardim perdeu o viço. Algumas árvores morre-
viu a história se desnudar e a recém-nascida democra- ram. A história permanece. Toninho também. Enquan-
cia ganhar tônus e sustança. Um primeiro lme sobre a to ele estiver por lá, a história da vala de Perus continua-
vala, em 1994, um primeiro Globo Repórter, em 1995, rá sendo contada. Ainda bem.
os primeiros relatos sobre a vala de Perus esmiuçados
nos processos que chegavam à Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos e, anos depois, à

51
Uma CPI foi instalada na
Câmara Municipal para
inves gar a origem das
ossadas e determinar as
responsabilidades por sua
ocultação. As primeiras
denúncias foram feitas
no relatório final
3
O inquérito

Se no teu distrito
Tem farta sessão
De afogamento, chicote,
garrote e punção
A lei tem caprichos
O que hoje é banal
Um dia vai dar no jornal.
Chico Buarque, em “Hino da repressão”

— Sala das ossadas, boa tarde! por fazer. Trabalhavam quase sempre na rua, no encalço
Ivan brincava ao telefone como uma forma de deso- de quem tivesse explicações para dar, movidos por uma
pilar, aliviar a tensão, desanuviar a si mesmo e às outras instigante sensação de que, nalmente, o paradeiro dos
integrantes da Comissão Especial de Investigação das desaparecidos estava prestes a ser revelada.
Ossadas de Perus. Suzana e Amelinha davam risada, A prefeita Luiza Erundina havia sido muito asserti-
surpreendidas pelo chiste aleatório em meio a um tra- va ao instalar a comissão de investigação logo no dia
balho naturalmente triste e sombrio. seguinte à abertura da vala. E também ao convidar Ivan,
Não havia osso algum na “sala das ossadas”. Todo o Suzana e Amelinha para integrá-la, todos familiares de
material encontrado na vala havia permanecido lá, no mortos e desaparecidos políticos. Originalmente, con-
cemitério, sob vigilância. No dia da abertura, não mais forme publicado no Diário O cial do Município no dia
do que 50 sacos tinham sido retirados da terra e transfe- 6 de setembro, o “grupo de acompanhamento dos tra-
ridos para uma sala do prédio da administração. As balhos periciais de identi cação das ossadas encontra-
demais ossadas seriam retiradas da vala durante o mês das no Cemitério Dom Bosco” foi formado pelos legis-
de outubro, separadas e acondicionadas com a supervi- tas Fortunato Badan Palhares e Nelson Massini, da
são de peritos e médicos legistas. Unicamp, que assumiriam a coordenação dos trabalhos
Uma mesa e um telefone era tudo o que havia na de catalogação e análise das ossadas, Dalton F. de Assis e
sala da comissão, instalada no térreo do Pavilhão Padre Vera Lúcia Figueiredo Osoegawa, do Serviço Funerário,
Manuel da Nóbrega, no Parque do Ibirapuera, onde Walter Piva Rodrigues, da Secretaria Municipal dos
funcionava a Prefeitura – e onde, anos depois, funciona- Negócios Jurídicos, e Fábio Ulhoa Coelho, da Secretaria
ria o Museu Afro Brasil. Para os três inquilinos, era mais do Governo Municipal. Os familiares entraram em
do que su ciente. Seu olhar estava voltado para o lado de seguida.
fora: as atividades na Comissão Parlamentar de Inquéri- — Não quero uma comissão de burocratas —
to que se desenrolava na Câmara Municipal, a busca declarou a prefeita. — Quero que vocês, familiares,
pelos arquivos da ditadura, a ampla investigação ainda assumam essa comissão para que o resultado não seja
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

somente um relatório impresso em papel timbrado. reação poderia vir de setores das Forças Armadas
Ivan e Suzana tinham vínculos bastante pessoais envolvidos com os crimes de tortura, desaparecimento
com o Cemitério Dom Bosco. Ali foram enterrados o forçado e ocultação de cadáveres? Como garantir que as
pai de Ivan e o marido de Suzana. Desde os anos 1970, ossadas fossem preservadas, protegendo-as de vanda-
os dois tinham ciência da existência de uma vala clan- lismo ou de alterações propositais?
destina naquele cemitério, destino de tantas ossadas No próprio dia 4 de setembro, poucas horas após a
exumadas sem indicação de local de reinumação, e por retirada dos primeiros sacos de dentro da vala, um
muito tempo haviam esperado uma oportunidade para delegado da 46ª Delegacia de Polícia, de Perus, determi-
de agrá-la. Amelinha, por sua vez, militara no PCdoB e nara a apreensão imediata das ossadas.
tinha uma história de resistência vinculada à guerrilha — Nada disso — a prefeita decidiu. — A Prefeitura
do Araguaia. Ali tombaram seu cunhado, André Gra- vai assumir este caso. Trata-se de um fato eminente-
bois, e o pai dele, Maurício, em 1973. Sua irmã, Crimeia, mente político, muito mais do que policial, e este cemi-
estava grávida quando foi capturada pelos militares. Foi tério é do município. A municipalidade é responsável
torturada com o bebê na barriga e deu à luz na prisão. Já por esses ossos.
Amelinha fora torturada no DOI-Codi sabendo que o Outras tentativas de intromissão não tardariam a
lho Edson, de 5 anos, e Janaína, 4, haviam sido seques- surgir, de modo que uma das primeiras tarefas da
trados por seus algozes e estavam por ali enquanto os comissão especial de investigação foi de nir, junto com
choques eram aplicados e a palmatória cantava. Ao nal a Prefeitura, alguns protocolos. Foram os familiares,
de uma das sessões de tortura, as crianças ingressaram por exemplo, que demoveram a prefeita da ideia de
na cela. encaminhar as ossadas para análise pelo Instituto Médi-
— Mamãe, por que a senhora está verde e o papai co Legal.
está azul? — perguntou uma das crianças. Eram os — O IML é parte do sistema de desaparecimento e
hematomas, as marcas inefáveis da truculência institu- ocultação — alertaram, em reunião com a prefeita na
cional. tarde de quinta-feira, 6 de setembro.
Agora, em 1990, Amelinha era diretora do grupo Eles tinham razão. Nos anos 1970, o IML fora res-
Tortura Nunca Mais em São Paulo. E a lha Janaína, ponsável pela falsi cação sistemática de exames necros-
historiadora e testemunha ocular do arbítrio, dali a cópicos, expediente utilizado para esconder a verdadeira
alguns meses ingressaria também na comissão. causa da morte de militantes políticos e também a res-
Luiza Erundina deu total autonomia para Ivan, ponsabilidade do Estado. Talvez o caso mais célebre
Suzana e Amelinha realizarem os trabalhos como jul- tenha sido o laudo assinado em 1975 pelos médicos
gassem apropriado. Pediu apenas que, surgindo algo legistas Harry Shibata e Arildo de Toledo Viana a rman-
especial ou que fosse sensível, que a avisassem para que do que o jornalista Vladimir Herzog, torturado até a
não fosse pega de surpresa. A prefeita também orientou morte no DOI-Codi, cometera suicídio. Segundo o
os membros da comissão a subir à sua sala, no andar de exame, ele teria se enforcado com uma tira de pano amar-
cima, e a interrompê-la sempre que fosse preciso. O rada a uma janela a 1,63 metro do chão, mais baixa do
caso das ossadas havia se tornado uma prioridade em que ele, e o corpo fora encontrado com as pernas dobra-
seu governo. das, numa cena evidentemente forjada para ocultar a
No mesmo dia em que foi instalada, os membros da morte por tortura. Também no IML, muitos corpos
comissão especial de investigação se mandaram para o devidamente identi cados foram despidos de suas vestes
cemitério. Algo muito importante estava sendo retirado e de seus documentos para serem enterrados como indi-
daquela sepultura coletiva, eles sabiam, e era preciso gentes. Entre 1971 e 1974, principalmente em Perus.
car atento. Havia uma guerra silenciosa a tourear, um Representantes de entidades como a Comissão
clima permanentemente con ituoso. Que tipo de Teotônio Vilela e o Centro Santo Dias de Direitos Huma-

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O inquérito

nos reforçaram a reivindicação dos familiares em chegaram de surpresa ao IML, acompanhados por uma
audiência com a prefeita. Uma das informações que advogada e por repórteres e cinegra stas de televisão, e
mais circularam na ocasião, deixando muitos de cabelo agraram uma reunião em que o diretor José Antônio
em pé, foi a de que o IML era dirigido por José Antônio de Mello estava reunido com outros diretores, um pro-
de Mello, o mesmo médico responsável por assinar o motor e um delegado, tramando uma estratégia para
laudo necroscópico do operário Manoel Fiel Filho, fechar o “museu” ou desviar parte do acervo de modo a
torturado até a morte no DOI-Codi no dia 16 de janeiro se livrar de qualquer material comprometedor. Foi um
de 1976. Erundina entendeu o risco e, mais uma vez, fez quiproquó. Suzana notou que o livro com registros e
eco às reivindicações dos familiares de mortos e desapa- fotogra as dos mortos de 1971 havia desaparecido.
recidos. Amelinha se lembrou de que o governador havia entre-
— Me senti pressionada por essas entidades e con- gado um cartão de visita para ela na semana anterior,
fesso que estou insegura com relação ao IML — Erundi- durante audiência com a prefeita. Foi até um orelhão e
na declarou ao jornal O Estado de S. Paulo no dia 6. — ligou. Apresentou-se como familiar de mortos e desapa-
Estou convencida de que o IML é mesmo um órgão recidos e insistiu que tinha urgência em falar com o
suspeito. governador. Orestes Quércia a atendeu prontamente.
Erundina precisou se reunir mais de uma vez com o — Governador — ela disse —, nós estamos aqui no
secretário de Segurança Pública do Estado, Antônio IML e o diretor não está deixando ninguém entrar,
Cláudio Mariz de Oliveira, a m de costurar com ele mandou lacrar o arquivo. E ele nem deveria ser diretor
uma alternativa que contemplasse a reivindicação dos do IML, porque foi ele quem assinou o laudo falso do
familiares: as ossadas iriam para o departamento de Manuel Fiel Filho.
medicina legal da Universidade Estadual de Campinas Por telefone, o governador pediu que Amelinha
(Unicamp). Uma instituição de pesquisa seria mais voltasse no dia seguinte. Prometeu que afastaria o dire-
adequada para esse trabalho do que um órgão ligado à tor do IML naquela tarde e que, a partir do dia seguinte,
polícia. o IML estaria com as portas abertas para os familiares de
A partir daquele momento, nenhuma decisão seria mortos e desaparecidos. E assim fez.
tomada pela prefeita sem ouvir os familiares. Foi assim Ao longo de um semestre, o trio calafrio daria muito
que Erundina determinou a remoção dos livros do o que falar. Principalmente, ajudaria a orientar e a acom-
cemitério para seu próprio gabinete, temendo que eles panhar, dia após dia, as atividades da Comissão Parla-
pudessem desaparecer. Foi assim, também, que a prefei- mentar de Inquérito instalada na Câmara Municipal.
ta mandou lacrar a sala do cemitério em que as ossadas
tinham sido guardadas e ordenou a catalogação de ***
todas as ossadas antes que fossem transferidas para
Campinas. A Câmara Municipal de São Paulo estava em ebuli-
Em poucas semanas, Ivan, Suzana e Amelinha ção na manhã daquela quarta-feira. Ainda era de
caram conhecidos nos corredores da Prefeitura como manhã quando o vereador Júlio César Caligiuri Filho
“trio calafrio”. Jornalistas os procuravam para saber a (PDT) protocolou um requerimento para que fosse
situação das ossadas e também para que falassem sobre instituída uma Comissão Parlamentar de Inquérito
as mortes e desaparecimentos que, até então, jamais para investigar a origem e as responsabilidades quanto
haviam tido espaço na imprensa tradicional. às ossadas encontradas na vala clandestina.
Em 13 de setembro, numa atividade que nada tinha Júlio conseguira reunir rapidamente as assinaturas
a ver com a Comissão da Prefeitura, mas com a Comis- necessárias, tamanha a comoção despertada pela des-
são de Familiares de Mortos e Desaparecidos, que os coberta da vala. O requerimento também demonstrava
três também integravam, Ivan, Suzana e Amelinha o interesse do vereador em ir além do Cemitério Dom

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Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

Bosco e investigar a possível existência de outras valas havia telefonado para o diretor de cemitérios do Serviço
clandestinas em outros cemitérios da cidade. Dizia o Funerário Municipal por volta das 23 horas na noite
texto: anterior para avisar que vinha recebendo ameaças de
“Considerando que ontem, 04 de setembro, foi morte e iria com a família para um lugar sigiloso. Tam-
aberta uma vala que continha dezenas de ossadas no bém a prefeita de São Paulo ouvira a mesma queixa do
Cemitério Dom Bosco, em Perus; considerando que administrador, por telefone. Erundina tomara a provi-
suspeitas sobre a existência de uma vala onde seriam dência de acionar o secretário estadual da Segurança
enterrados presos políticos desaparecidos existem Pública, Antônio Carlos Mariz de Oliveira, e obtivera a
desde 1977; considerando que dezenas de presos políti- garantia de proteção especial. Toninho voltaria ao tra-
cos desapareceram na década de setenta; considerando balho no dia seguinte, como se nada tivesse acontecido,
que o famigerado Esquadrão da Morte fuzilou e sumiu alegando apenas que a esposa passara mal e lhe pedira
com dezenas de pessoas; requeremos, nos termos regi- para que a levasse para a casa da irmã, na Zona Sul da
mentais, a constituição de Comissão Parlamentar de cidade, e a acompanhasse ao posto de saúde. Duas sema-
Inquérito, com 7 membros e 90 dias de prazo de funcio- nas depois, seria a vez de Júlio César Caligiuri, o presi-
namento, para apurar a origem e as responsabilidades dente da CPI, revelar que também estava sendo amea-
sobre as ossadas encontradas no Cemitério Dom Bosco, çado. Ele e sua família haviam recebido dois telefone-
em Perus, e investigar a situação dos demais cemitérios mas anônimos com ameaças de morte.
de São Paulo.” A CPI foi o cialmente instalada no dia 17 de setem-
O requerimento recebeu o carimbo e a assinatura bro, treze dias após a revelação da vala. Foi o início de
do presidente da Câmara, o vereador Eduardo Suplicy uma aventura sem precedentes. Pela primeira vez, seri-
(PT), que anunciou os sete membros da CPI durante am colhidos depoimentos de pessoas envolvidas no
sessão ordinária na terça-feira seguinte, 11 de setembro: sistema de morte e desaparecimento de militantes polí-
Júlio César Caligiuri Filho (presidente), Aldo Rebello ticos, como torturadores, agentes do Dops e do DOI-
(PCdoB, relator), Tereza Lajolo (PT), Ítalo Cardoso Codi, médicos legistas que haviam assinado laudos
(PT), Antônio Carlos Caruso (PMDB), Marcos Men- falsos, um ex-prefeito e um ex-governador.
donça (PSDB) e Oswaldo Giannetti (PDS). Foi batizada Respaldado no artigo 33 da Lei Orgânica do Muni-
de “Comissão Parlamentar de Inquérito: Desapareci- cípio, a CPI tinha poder de “tomar depoimento de auto-
dos”, embora nos bastidores e também nos jornais fosse ridade municipal”, “intimar testemunhas” e “inquiri-
mais frequentemente referida como “CPI de Perus” ou las”. Se alguém fosse convocado e não comparecesse
“CPI das ossadas”. Vencido o período de 90 dias prede- para prestar depoimento, poderia o presidente da CPI
terminado, a Comissão seria prorrogada por mais três solicitar a condução coercitiva do depoente.
meses. Na segunda etapa, Aldo Rebello foi substituído Antes de convocar autoridades envolvidas em
por Vital Nolasco, também do PCdoB, e a relatoria cou denúncias de tortura, falsidade ideológica e colabora-
a cargo de Tereza Lajolo. ção com a truculência da ditadura, os vereadores consi-
Os trabalhos da CPI começaram sob tensão. Antes deraram adequado ouvir o diretor do serviço funerário,
mesmo da primeira oitiva, pairava sobre a equipe um o administrador do cemitério e os sepultadores que
clima de ameaça permanente. trabalhavam no Cemitério Dom Bosco na primeira
O primeiro susto foi causado pelo sumiço repenti- metade dos anos 1970.
no de Toninho Eustáquio, o administrador do cemité- Uma pergunta parecia mais urgente do que todas as
rio, no dia 11 de setembro. Boatos de todo tipo circula- outras: quem mandou construir aquela vala?
ram quando Toninho não apareceu no trabalho naquela
manhã de terça-feira, uma semana após a descoberta ***
das ossadas. Soube-se, ao longo do dia, que Toninho

56
O inquérito

Faltavam vinte minutos para as 10h quando Toni- Toninho con rmou ainda que obteve a informação
nho chegou ao Palácio Anchieta, sede do Legislativo sobre a existência da vala e sua localização ainda em
Municipal, naquela manhã de quarta-feira, 19 de 1978 e que, dois ou três anos depois, determinara a
setembro. Subiu até o décimo andar e se dirigiu ao audi- abertura parcial da vala para que o engenheiro Gilberto
tório Oscar Pedroso Horta. O burburinho no corredor Molina pudesse observar a situação das ossadas, entre
fez aumentar sua ansiedade. Os últimos 15 dias tinham as quais deveria estar a de seu irmão desaparecido, Flá-
virado sua rotina de pernas pro ar. Ameaças, entrevis- vio Carvalho Molina. Finalmente, contou aos vereado-
tas, foto estampada no jornal, reunião com a prefeita, res que, agora em 1990, ainda havia terra virgem na
Toninho não estava acostumado com nada daquilo. E, gleba 3 do cemitério, uma área onde poderiam ser cons-
de nitivamente, preferia não ter que se acostumar. truídas novas quadras, com novas sepulturas, caso
Quando uma intimação expedida em seu nome foi houvesse necessidade. Com alguma hesitação, tentou
entregue na sede do Serviço Funerário, cinco dias antes, deixar claro que, embora não tivesse acesso a informa-
Toninho percebeu que a coisa cava cada vez mais séria. ções o ciais, não fazia sentido a tese de que a exumação
“V.Sa. encontra-se intimada para depor perante esta em massa daquelas 1.500 ossadas seria necessária para
Comissão Parlamentar de Inquérito”, dizia o ofício com que houvesse espaço para novas sepulturas.
o timbre da Câmara Municipal. Arrolado como teste- — Em 1977, o cemitério já estava totalmente ocu-
munha para a primeira sessão ordinária de oitiva de pado? — indagou o presidente da CPI.
testemunhas da CPI, Toninho se dirigiu ao número 100 — Não — respondeu o administrador. — O cemité-
do Viaduto Jacareí, no centro da cidade. Ali, soube que rio é subdividido em glebas de quadras. Ele tem as gle-
outras três testemunhas tinham sido convocadas para bas 1, 2 e 3.
depor na mesma data: Rubens da Costa, antigo funcio- Toninho explicou que, ao assumir o posto, em
nário do Serviço Funerário, Rui Alencar, atual superin- 1977, a gleba 3 acabara de ser inaugurada. Foi ele que a
tendente do Serviço Funerário, e Pedro José de Carva- dividiu em duas porções, uma destinada ao sepulta-
lho, assistente administrativo do cemitério de Itaquera e mento familiar, ou seja, com o conhecimento dos fami-
antigo sepultador no cemitério do Lajeado quando liares e as devidas homenagens, e outra destinada ao
houve incêndios criminosos no local. sepultamento de todos os corpos sem identi cação ou
Toninho foi o segundo a depor, depois de Rubens que não tivessem sido buscados por ninguém: os “indi-
da Costa. Contou que foi admitido no Cemitério Dom gentes”, os “desconhecidos” e os “não reclamados”.
Bosco em 1977 como assistente de administração e — Na gleba 3, existe ainda um canto virgem, dispo-
promovido a administrador no ano seguinte, ocasião nível para abertura de novas valas — a rmou.
em que se debruçou sobre os livros e procurou saber o Antes de terminar seu depoimento, Toninho infor-
destino das mais de 1.500 ossadas com indicação de mou aos vereadores que o administrador do cemitério na
exumação e sem local de reinumação. O número exato, época da construção da vala chamava-se Dilermando
conforme a comissão de investigação da Prefeitura Lavrador. E declinou os nomes de quatro sepultadores do
apuraria a partir da análise dos livros, era de 1.564 cor- Dom Bosco que já trabalhavam ali em 1976: João Apare-
pos exumados. A diferença entre essas 1.564 e as 1.049 cido André, Pedro Batista Gasperi, Bráulio Araújo
localizadas em 1990, conforme dedução dos peritos, Miranda e Nelson Pereira. Os quatro foram intimados
seria a presença de aproximadamente 500 crianças com para depor na quarta-feira seguinte. Antes disso, na sex-
menos de 12 anos de idade, cujas ossadas não resistiram ta-feira, os membros da CPI ouviriam o superintendente
ao tempo. Muito tempo depois, surgiria a hipótese, Rui Alencar, que não pôde ser ouvido na primeira sessão
jamais comprovada, de que uma segunda vala clandes- em razão do horário, e o ex-diretor do Departamento de
tina poderia ter sido construída no mesmo cemitério, Cemitérios do Município, Fábio Pereira Bueno.
em outro local, recebendo essas 500 e pouco ossadas.

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Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

*** detetive. — Com o auxílio de uma lupa, vemos que há


nesses sacos a inscrição SFMSP, sigla do Serviço Fune-
— Esse procedimento é totalmente irregular! rário Municipal. Isso signi ca que essas ossadas foram
A a rmação proferida por Fábio Pereira Bueno no acondicionadas nesses sacos por nós, após a integração
dia 21 fez os vereadores arregalarem os olhos. Júlio do Cemit pelo Serviço Funerário, o que se deu justa-
decidiu cobrar os detalhes: mente em 1976. Antes disso, não havia esses sacos,
— O senhor disse que a exumação em massa feita muito menos sacos gravados com a sigla SFMSP.
em 1976 é ilegal? Após uma hora de audiência, Fábio Pereira Bueno
— Não, a exumação não, o sepultamento na vala não apenas con rmara as irregularidades por trás do
comum. emprego de uma vala comum, de terra, para o sepulta-
— É ilegal? mento dos remanescentes ósseos de mais de mil pesso-
— No meu entendimento, é. as, como relatara um evento do próprio Legislativo
— Daria para depreender, dessa sua a rmação, que intimamente ligado àqueles fatos: uma oportuna altera-
houve a intenção de di cultar a identi cação desses ção na lei municipal possibilitara a exumação naquele
cadáveres, desses restos mortais? ano.
— Não sei, não sei — Fábio desconversou. — Não Quando os primeiros corpos foram enterrados em
tenho conhecimento disso. Se foi intencional ou não, Perus, em março de 1971, a legislação estabelecia um
isso deve ser perguntado para quem executou aquilo, e prazo mínimo de cinco anos de permanência em sepul-
por ordem de quem, e a troco de quê. tura individual. Somente após cinco anos, e caso
Fábio Pereira Bueno tinha dirigido o Departamen- nenhum familiar demonstrasse interesse em transferir
to de Cemitérios da Prefeitura (Cemit) entre abril de os restos mortais para uma sepultura particular, seria
1970 e abril de 1974. Deixara o cargo dois anos antes, facultado ao poder público realizar a exumação e a
portanto, da ocultação de cadáveres na vala clandestina. reinumação, para que o espaço pudesse ser ocupado
Naquela época, o Serviço Funerário era uma autarquia por um novo caixão. Já em 22 de setembro de 1971, seis
à parte e não cuidava dos cemitérios, somente dos fune- meses e vinte dias após a inauguração do Cemitério
rais. À frente do Serviço Funerário estava Jaime Augus- Dom Bosco, a Câmara aprovou a redução desse prazo
to Lopes, já falecido na ocasião da CPI. Desde que o para três anos. A lei 7.656/71 foi promulgada pelo prefe-
assunto havia invadido as páginas dos jornais e o noti- ito Figueiredo Ferraz em 7 de outubro daquele ano, de
ciário das rádios e das TVs, naquele dia 4 de setembro, modo que, em outubro de 1976, todos os corpos sepul-
Fábio havia feito algumas contas e chegara à conclusão tados em Perus entre o dia da inauguração e outubro de
de que o sepultamento daquelas mais de mil pessoas 1973 estavam aptos à exumação compulsória.
numa vala comum tinha ocorrido em 1976, logo após a Tudo parecia conspirar para aquela ocultação em
decisão de reorganizar a cadeia dos sepultamentos na massa: o Executivo, o Legislativo e, segundo Fábio,
cidade. também o governo estadual, por meio do Instituto
A a rmação do ex-diretor do Cemit permitia aos Médico Legal. Como?
membros da CPI concluir que aquelas mil e tantas ossa- — Naquela ocasião, quem trabalhava no Instituto
das tinham sido exumadas majoritariamente durante a Médico Legal era o Harry Shibata — lembrou. — O
gestão do prefeito Miguel Colasuonno, no cargo entre diretor era o Dr. Arnaldo, e o Harry Shibata, se não me
agosto de 1973 e agosto de 1975, e ocultadas ilegalmente falha a memória, era o subdiretor. Eu tive conhecimen-
na vala clandestina durante o mandato de Olavo Setú- to em entendimento com ele, porque nós zemos a
bal, prefeito entre agosto de 1975 e julho de 1979. transferência de encaminhamento dos corpos que eram
— Repare nas fotos que exibem os sacos com as sepultados na Vila Formosa e no Lajeado, em Guaiana-
ossadas sendo retiradas da vala — alertava o aspirante a ses, para o Cemitério de Perus. Diga-se de passagem, é

58
O inquérito

muito mais fácil ir ao Cemitério de Perus, saindo do ção em massa e a reinumação na vala clandestina.
Instituto Médico Legal, do que ir ao Cemitério de Vila — Esses corpos caram por quanto tempo no
Formosa ou do Lajeado, que é em Guaianazes, porque o velório? — Tereza Lajolo perguntou.
Cemitério de Perus está localizado no quilômetro 25 da — Aproximadamente um ano.
Via Anhanguera, de fácil acesso pela Avenida Sumaré e — Um ano?
depois a Marginal. E o Instituto Médico Legal nos soli- — É.
citou, e o próprio Serviço Funerário, que pudessem — E, durante esse tempo, houve uma discussão
encaminhar os corpos para lá. sobre o que fazer com os ossos, “para onde nós vamos
Fábio Pereira Bueno voltaria a depor na CPI em 18 levar esses corpos”?
de abril do ano seguinte, na última sessão da CPI, após — Se alguém cou discutindo isso, foram os admi-
um recesso parlamentar que se estendeu por todo o mês nistradores, os diretores.
de janeiro. Dessa vez, foi prestar maiores esclarecimen- — E o que vocês ouviam comentar sobre a questão
tos sobre um dos temas mais espinhosos suscitados ao do destino?
longo do inquérito: o projeto de instalar em Perus um — A gente ouvia poucos comentários a esse respeito.
forno crematório. Dilermando Lavrador, antigo administrador do
Cemitério Dom Bosco, assumiu para si a responsabili-
*** dade pela exumação nas sepulturas e também pela
reinumação na vala clandestina.
— Essa vala foi aberta pelas minhas mãos. — Fui eu que autorizei — contou em depoimento
O mistério da construção da vala começou a ser prestado à CPI no dia 1º de novembro. — Saiu um
solucionado no dia 26 de setembro com os depoimentos decreto da Prefeitura dizendo que aquele cemitério
dos quatro sepultadores citados por Toninho Eustáquio. passaria a vender terrenos, ou seja, que haveria conces-
O primeiro a depor naquela manhã, Pedro Batista Gas- sões. Como as quadras 1 e 2 eram a melhor área do cemi-
peri, apresentou-se como operador de máquinas e reve- tério, eu simplesmente achei por bem vender aquela
lou o que os vereadores já descon avam: se era ele o parte, perto da entrada. Mandei fazer as exumações. Já
funcionário responsável por conduzir a retroescavadeira, havia decorrido o prazo normal que a lei permitia. Iden-
então o buraco na área do cruzeiro tinha sido obra sua. ti quei os ossos com os nomes, dentro e fora dos saqui-
O vereador Aldo Rebelo, então relator da CPI, nhos, e coloquei os sacos no velório. Naquela época o
interpelou o operador de máquinas: velório não era usado. Os ossos caram lá por aproxi-
— Segundo consta, o processo normal, quando se madamente cinco meses. Como não veio família
promove uma exumação, é transferir os ossos para nenhuma retirar, deve ter vindo umas oito ou dez pro-
ossários construídos em alvenaria. Nesse caso, a vala curar pelos ossos e nós não tínhamos ossário naquele
que o senhor abriu, o senhor como operador de máqui- cemitério, mandei fazer uma vala e coloquei os ossos lá.
na, foi destinada a esse tipo ou foi...? Em todas as respostas, o mesmo tom de naturalida-
— Veja bem, essa vala foi aberta porque essas 1.500 de e inocência, como se ninguém tivesse cometido
a 1.600 ossadas já estavam havia mais de um ano na sala nenhuma irregularidade, como se esconder esqueletos
onde é o velório atualmente — Pedro respondeu. — num buraco de terra, sem qualquer registro o cial na
Todo mundo parava para olhar. Prefeitura nem indicação nos mapas o ciais do cemité-
— Por que não foi feita de alvenaria? rio, fosse algo prosaico, corriqueiro e legítimo. Havia,
— Isso eu não sei dizer. ali, a certeza da impunidade e certo voluntarismo, como
Em seguida, cada um à sua maneira, os outros se coubesse a um administrador ou a um diretor de
sepultadores con rmaram o relato. Nelson, por exem- autarquia encontrar um “jeitinho” para resolver um
plo, deu mais detalhes sobre o intervalo entre a exuma- problema considerado de menor importância. Nenhu-

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Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

ma preocupação com protocolo ou com a hipótese de fosse para levar a cabo o projeto de cremar desconheci-
algum familiar vir a procurar aquelas 1.500 pessoas. dos, seria preciso propor um projeto de lei para a Câma-
Esse descaso o cial com a memória e com a hipótese ra e trabalhar pela sua aprovação.
de reclamação futura daqueles restos mortais pelas famí- Por m, os vereadores localizaram nos arquivos da
lias, por mais remota que pudesse parecer para as autori- Prefeitura uma carta da empresa inglesa Downson &
dades, cou ainda mais evidente para os vereadores Mason, fornecedora dos fornos, declinando da execu-
quando a CPI passou a investigar o tema do crematório. ção daquele serviço. Segundo a empresa, causava estra-
Uma planta baixa da incorporação do Cemitério nhamento o projeto de um crematório sem sala de ceri-
Dom Bosco, elaborada em 1969 – um ano antes do mônia, ou seja, sem um local adequado para a realiza-
início das obras – previa a construção de um “cremató- ção de velório. Também estranhava o uso de portas
rio eventual”, conforme a expressão gravada no papel. basculantes, tipo vai-vem, no acesso aos fornos. A sala
No nal dos anos 1960, dotar a cidade de um cremató- de cremação, segundo os ingleses, deveria car sempre
rio público tornou-se uma das obsessões do Cemit, o em local discreto e longe da vista das pessoas, uma vez
Departamento de Cemitérios da Prefeitura. que os mais sensíveis ou incautos poderiam se chocar.
Fábio Pereira Bueno contou à CPI que participou Havia algo de muito errado e suspeito no projeto apre-
do processo de licitação e aquisição dos fornos entre sentado pela Prefeitura de São Paulo.
1967 e 1968. Ficara entre duas propostas, um sistema Antes mesmo de propor alterações no projeto ou
elétrico e outro a gás, e acabara optando pela proposta procurar outra empresa para solicitar outro orçamento,
apresentada pela empresa inglesa Downson & Mason. houve a con rmação pelo departamento jurídico de que
Seriam adquiridos quatro fornos a gás, aptos a cremar a prática da cremação não poderia ser aplicada sem o
um corpo no intervalo médio de uma hora. Em 24 consentimento ou solicitação da família. Havia tratados
horas, os quatro fornos dariam conta de incinerar 96 internacionais nesse sentido. Caía por terra, portanto, o
cadáveres, mais que o dobro da demanda nos anos 1960, plano de cremar indigentes, desconhecidos e não recla-
o que também demonstrava capacidade de planejamen- mados. Inaugurado na Vila Alpina em 1975, o cremató-
to: a cidade estava crescendo, a população aumentaria. rio municipal não poderia ser o destino das 1.500 ossa-
Fábio a rmou ainda que Paulo Maluf, prefeito de das já exumadas em Perus. Era preciso encontrar outra
São Paulo entre 1970 e 1971, quando da construção do forma de desaparecer com aqueles ossos.
cemitério em Perus, autorizou a construção do crema- A vala clandestina foi o plano B.
tório. E que a medida se fazia necessária em razão do
volume crescente de corpos de indigentes, desconheci- ***
dos e não reclamados enterrados em São Paulo. Alegou
que se enterravam quase 50 por dia. Os membros da Ao longo de seis meses, a CPI Perus / Desaparecidos
CPI questionaram o número apresentado por ele, uma ouviu 82 pessoas em 43 sessões. Entre os depoentes, os
vez que, entre 1989 e 1990, quando a população do médicos legistas Harry Shibata e Isaac Abramovich entre
município era maior do que em 1970, a média de sepul- outros funcionários do IML, o ex-governador Abreu
tamentos naquelas categorias foi de oito por dia. Sodré, policiais de diferentes corporações e patentes,
No início da década de 1970, o mesmo plano de como os delegados Maurício Henrique Guimarães Pere-
construir um crematório motivou uma viagem de Fábio ira, Álvaro Luiz Franco Pinto, Renato D'Andréa e
Pereira Bueno para a Argentina, a m de pesquisar os Armando Panichi Filho, agentes ligados ao Dops, como
fornos utilizados naqueles países e principalmente sua Samuel Pereira Borba e Gilberto Alves da Cunha, e ao
legislação. Outro funcionário do Cemit esteve na Ingla- DOI-Codi, como Dulcílio Wanderley Bochila e o agente
terra para pesquisar a legislação, uma vez que a lei pau- Davi dos Santos Araújo, acusado de praticar torturas,
listana não autorizava a cremação de indigentes. Se inclusive contra Ivan Seixas e Amelinha Teles, ambos na

60
O inquérito

plateia. De tanto ouvir o tal agente do DOI-Codi negar as do Estado de São Paulo no momento da construção da
acusações que lhe foram feitas, o vereador Ítalo Cardoso vala clandestina e responsável por comandar a contro-
perguntou se Amelinha e Ivan topariam um acareamen- versa invasão da PUC-SP de 1977, quando centenas de
to com ele. Foi o início de uma das cenas mais exaltadas estudantes foram expulsos de uma assembleia sob gol-
da CPI. pes de cassetetes e bombas de gás lacrimogênio, e presos
— Senhora Maria Amélia Teles, a senhora conhece em seguida, compareceu à Câmara para a oitiva.
este homem? Quem mais resistiu a depor foi o ex-prefeito Paulo
— Claro que conheço. Este é o Davi dos Santos Maluf, que governara a cidade pela primeira vez no
Araújo, que usava o codinome de Capitão Lisboa quan- período de construção e inauguração do cemitério,
do me torturou. entre 1970 e 1971. Quando a vala foi aberta, em 4 de
— Mentira! — o delegado respondeu, exaltando-se. setembro, Maluf estava imerso na campanha eleitoral
— Nunca torturei mulher feia. daquele ano, percorrendo meia dúzia de cidades por
— Então o senhor admite que torturava mulher dia. Uma pesquisa feita pelo Datafolha entre os dias 17 e
bonita? 19 de setembro colocou Maluf em primeiro lugar na
— Não vou responder isso. Não vou responder isso. disputa pelo governo do Estado, com 41% dos votos, o
Minutos depois, Ivan Seixas repetiu a mesma apre- dobro do percentual atribuído a Luiz Antônio Fleury, o
sentação de Amelinha. candidato da situação, com 20%. Às intimações envia-
— Conheço, sim. Este é o Capitão Lisboa do DOI- das a seu endereço, Maluf respondia sempre que não se
Codi. opunha a depor, mas que só o faria após a eleição. Der-
— Ele está mentindo. Eu nunca vi essa pessoa. rotado no segundo turno, Maluf nalmente concordou
— Claro que me conhece, David. Quando a gente em marcar a oitiva para o dia 4 de fevereiro. Com uma
chegou à Oban, vocês zeram uma sessão de espanca- condição: ele aceitaria falar em sua própria casa, e não
mento em mim e no meu pai. Mas eu dei um soco na tua na Câmara.
cara que lançou você longe, a dois metros de distância, Os membros se dividiram. Um deles, o vereador
você não se lembra disso? Oswaldo Gianotti, liado ao partido de Maluf, o PDS,
Exposto e atingido em seus brios, o Capitão Lisboa insistia para que a condição colocada pelo ex-prefeito
cou nervoso. fosse acatada. O local não muda nada, ele dizia. Tereza e
— É mentira! Eu não participei desse espancamen- Ítalo, por sua vez, consideravam aquilo inaceitável.
to — como acabara de acontecer com Amelinha, a frase Maluf não exercia nenhum cargo público na ocasião,
do policial permitia a leitura de que ele havia participa- não tinha fórum privilegiado, por que essa regalia?
do de outros espancamentos. — O pai dele eu conheci. Sugeriram apelar para a condução coercitiva. No m,
Era um sujeito forte, nortista, que andava com o Lamar- Júlio concordou em ouvi-lo em casa, na Rua Costa Rica,
ca. Mas ele eu nunca vi. 146. E foi. Os dois vereadores do PT membros da comis-
— Conversa, Davi — Ivan insistia. — Se você são acharam um desaforo e não compareceram. Ivan
conheceu meu pai, você me conheceu também. Nós Seixas, Amelinha Teles e Crimeia Schmidt, irmã de
chegamos juntos à Rua Tutóia. Você não está querendo Amelinha, foram à casa de Maluf representando os
admitir por ter levado um soco na cara de um rapaz de familiares. Os três se recusaram a dar a mão ao ex-
16 anos. prefeito, o que rendeu outro momento fora da curva na
A esta altura, o depoente já havia perdido as estri- história da CPI.
beiras e, inquirido pelos vereadores, perdera a capaci- — Não vou dar a mão para o senhor. O senhor foi
dade de argumentar. parte da ditadura.
— Não vou responder. Não vou responder. — Lamentável, lamentável — reagiu o político, com
Até Erasmo Dias, Secretário de Segurança Pública o sotaque que lhe é característico. — Eu z até oposição

61
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

à ditadura. Vocês são radicais. São Paulo, ao Ministério da Justiça e ao presidente da


Por m, ainda no curso da CPI, os vereadores da Assembleia Legislativa, sempre com solicitações para
Comissão lograram descobrir e visitar, sempre na com- que fossem tomadas as providências cabíveis ou para
panhia de familiares de mortos e desaparecidos, o Sítio que fossem aprofundadas as investigações.
31 de Março de 1964, uma chácara no distrito de Pare- Duas décadas mais tarde, a CPI de Perus foi fre-
lheiros, na Zona Sul de São Paulo, dedicado à tortura e à quentemente lembrada como precursora das Comis-
execução de opositores políticos nos anos de chumbo. A sões da Verdade instaladas no Brasil ao longo da década
revelação do local, frequentado por membros da de 2010. Em apenas seis meses, reuniu provas, testemu-
repressão como os coronéis Erasmo Dias e Carlos nhos e encaminhamentos importantes, não apenas para
Alberto Brilhante Ustra, ganhou destaque na imprensa desvendar as origens e os envolvidos na construção da
e ajudou a aumentar o clima de indignação. Ali foram vala clandestina, mas também para propor medidas
executados, entre outros, os militantes da ALN Antônio mitigadoras e formas de dar seguimento às investiga-
Benetazzo, Antônio Carlos Bicalho Lana e Sônia Mora- ções, responsabilizações e identi cações necessárias.
es Angel Jones, todos eles enterrados sem conhecimen-
to das famílias no cemitério de Perus. ***
Em 15 de maio de 1991, uma quarta-feira, foi feita a
apresentação pública dos resultados da CPI. O relatório Na última semana de 1992, o Cemitério Dom
nal foi encaminhado para a Prefeitura e para o governo Bosco ganhou um marco de memória em homenagem
do Estado. O processo, na íntegra, somava 6.142 pági- aos desaparecidos políticos ali ocultados. No exato local
nas, entre transcrições dos depoimentos, cartas, inti- onde a vala clandestina fora construída, surgiu uma
mações, cópias de reportagens, exames necroscópicos e nova vala, feita com alvenaria. Sobreposto a ela, um
outros documentos. Foi tudo arquivado na Câmara em muro vermelho, como uma tarja de “proibido”, “nunca
19 volumes. Em 4 de setembro de 1992, aniversário de mais”.
dois anos da revelação da vala, o relatório nal foi O memorial foi desenhado pelo arquiteto e artista
nalmente publicado: um caderno de 64 páginas com o grá co Ricardo Ohtake. Filho da pintora e gravurista
título Onde estão?. Tomie Ohtake, Ricardo tinha ligações afetivas com o
Integram o relatório nal da CPI uma lista com tema da memória. Antonio Benetazzo, um dos desapa-
quinze recomendações. À prefeita Luiza Erundina foi recidos políticos enterrados como indigente no cemité-
solicitada a apuração das responsabilidades pelos atos rio de Perus, tinha sido seu melhor amigo nos tempos
administrativos irregulares de funcionários municipais de estudante universitário, na Faculdade de Arquitetura
e a consolidação das leis que se referem aos sepultamen- e Urbanismo da USP. Ricardo também foi membro da
tos no município, sobretudo de indigentes. Ao governa- Associação Cultural José Marti, organizando atividades
dor Luiz Antônio Fleury Filho, que se reorganizasse o culturais com artistas cubanos no Brasil. Teve ano em
IML, retirando-o da esfera policial, e que seja dada que ele chegou a ir cinco vezes para Havana.
continuidade às investigações iniciadas no Sítio 31 de Mas foi quase por acaso que Ricardo Ohtake assu-
Março, entre outras. Ao presidente da República, Fer- miu a autoria do monumento. Ainda em 1991, no
nando Collor de Mello, a Comissão solicitou a abertura segundo semestre, a Prefeitura havia aberto um edital e
dos arquivos do Dops, do SNI e do DOI-Codi. Ao Con- selecionado um projeto para ser executado no local.
selho Regional de Medicina de São Paulo foi pedida a Quando estava quase tudo pronto para a construção,
instauração de sindicância para apurar a responsabili- em meados de 1992, os organizadores perceberam que
dade dos legistas pelas irregularidades ocorridas no havia um monumento idêntico àquele em outro país. O
IML. Outros ofícios foram enviados à Procuradoria concurso teve de ser cancelado.
Geral da República, ao Ministério Público Federal de Agora, faltando três meses para o m do mandato

62
O inquérito

da prefeita, já não havia tempo para um novo concurso.


— Só se a gente pedir pro Ricardo — alguém lem-
brou.
Um ano antes, a militante e ex-presa política Dulce
Maia havia sugerido o nome de Ricardo Ohtake para a
elaboração de um cartaz de divulgação de uma missa
que o arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns,
faria na Sé em homenagem aos desaparecidos da vala e
às primeiras identi cações. Foi formada uma comitiva
de familiares até o estúdio do designer. Suzana, Ivan,
Amelinha, Crimeia e Dulce o convenceram a fazer o
cartaz. Agora, voltariam a ele com um novo pedido.
— Dá pra fazer — Ricardo topou. — Vou pensar em
algo na mesma linha do cartaz.
Os familiares explicaram que faltava dinheiro, de
modo que seria preciso fazer algo muito simples e que
usasse materiais acessíveis. Cimento e tinta, Ricardo
pensou. Dois meses depois, os pedreiros da própria
Prefeitura erguerem o marco sob a orientação do arqui-
teto. Ivan Seixas aprovou o texto com a prefeita e ditou
para Ricardo pelo telefone:
“Aqui, os ditadores tentaram esconder os
desaparecidos políticos, as vítimas da
fome, da violência do Estado policial,
dos esquadrões da morte e, sobretudo, os
direitos dos cidadãos pobres da cidade
de São Paulo. Fica registrado que os
crimes contra a liberdade serão sempre
descobertos.”
A inscrição, em letras brancas sobre o muro verme-
lho, foi assinada por Luiza Erundina de Sousa e Comis-
são de Familiares de Presos Políticos Desaparecidos.
O monumento cou pronto entre o Natal e o Ano
Novo.

63
CPI Perus/Desaparecidos Polí cos
Relatório apresentado à Câmara Municipal de São Paulo em 1991

Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito 5.4 As mortes


da Câmara Municipal de São Paulo que investigou a 6. Os desaparecidos
origem e a responsabilidade pelas ossadas encontradas 6.1 Os desaparecidos
em uma vala no Cemitério Dom Bosco, em Perus, e a 6.2 A indiferença
utilização dos demais cemitérios de São Paulo para
ocultamento de corpos das vítimas da repressão no 7. A legislação
país. Relatório apresentado pela vereadora Tereza Lajo- 7.1 A legislação a partir de 1964
lo em 15 de maio de 1991. 7.2 Crimes políticos e sua apuração
7.3 Os arquivos do Dops
Sumário:
8. Conclusão
1. Introdução 8.1 O que foi apurado
8.2 Encaminhamentos
2. O serviço funerário
2.1 Cemitério para indigentes 1. Introdução
2.2 A Vala Clandestina Este relatório não vai falar apenas de regulamentos,
2.3 A nova orientação normas e leis administrativas que tenham sido quebra-
2.4 Crematório para indigentes dos com a criação de uma vala irregular em cemitério
2.5 Cemitério de Vila Formosa do Município. Ou apenas procurar responsáveis entre
2.6 As gestões no Serviço Funerário Municipal os que, na esfera do município, determinaram a sua
implantação.
3. O IML Se cássemos só nisso já haveria um alerta su cien-
te para a sociedade hoje. Veremos que as muitas dispari-
4. O aparato repressivo dades que encontraram amparo na forma de organiza-
4.1 O controle ção dos cemitérios continuam com o caminho aberto
4.2 Da Oban ao DOI-Codi para a reincidência.
4.3 Dops e DOI-Codi Primeiro porque vamos falar da indigência. E a
4.4 Colaboração em São Paulo indigência nos cemitérios é como a sobra da cidade. A
grande maioria da população sequer participa da cida-
5. A ação repressiva de legal. Suas habitações não são habitações reconheci-
5.1 As prisões das. Seus nomes escapam aos cadastros e ao atendimen-
5.2 A tortura to dos serviços públicos e privados mais bem capacita-
5.3 Os métodos dos. A condição de subemprego retira esses cidadãos

64
FOTO: ROBERTO PARIZOTTI
Ao saber da abertura da vala, a então prefeita Luiza Erundina voou para Perus. Suas primeiras inicia vas foram estabelecer convênio
com a Unicamp para tentar iden ficar as ossadas e criar uma comissão para acompanhar os trabalhos da CPI

até mesmo do acesso aos auxílios-miséria – vales que A lei violada, a cidadania é violada, os direitos
substituem pedaços do salário com esmolas para o humanos são violados, mas a sociedade não se dá conta
transporte, para o leite e no nal das contas para o porque as vítimas são pessoas que aparentemente já não
sepultamento. contavam para a sociedade, embora em vida estivessem
Uma sepultura de indigente nos cemitérios públi- participando e produzindo, porque entendemos que
cos participa da categoria dos auxílios sociais. É mais ou esta é a natureza do ser humano.
menos o que chamaríamos de vale-sepultamento. Mas, veremos também que através da indigência foi
O indigente é aquele cujo corpo chega ao cemitério, possível que o arbítrio se camu asse ainda mais. Não
mesmo que levado pela família, com nome, endereço, sem uma cruel ironia. Os presos políticos não desapare-
história e com direito a ser sepultado, mas com a dife- ceram simplesmente. Alguns deles, se não muitos, tive-
rença de ser levado por uma família sem recursos. A ram seus corpos remetidos de volta a um setor público
condição de indigente lhe será outorgada pela falta de pertencente à cidadania, o cemitério do município.
condições de pagar pela sepultura. Corpos nos foram pretensamente entregues, porque
Juntam-se a estes corpos que chegam do IML ou da bastou fabricar para cada um deles uma falsa indigência
Faculdade de Medicina e que não foram reclamados por por setores con antes na nossa forma de organização
ninguém, geralmente pela falta de identi cação. social, onde a indigência é o mesmo que exclusão.
Mas como todos os auxílios-miséria, que existem A existência de uma vala clandestina para os já
na lei sem nunca chegar aos miseráveis, até esse direito quase clandestinos restos mortais de indigentes não foi
de sepultamento digno acaba violado quando se trata apenas um fato irregular. Foi um acinte. Foi a demons-
do indigente. tração da con ança na impunidade. Foi a certeza de

65
FOTO: ACERVO DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO
A Comissão ouviu 82 pessoas entre 1991 e 1992. Na foto, o ex-preso polí co Ivan Seixas (à esq.) par cipa de audiência pública com
os membros Vital Nolasco, Ítalo Cardoso, Júlio César Caligiuri (presidente) e Tereza Lajolo (relatora)

que, por isto, a sociedade não cobraria, ainda que já instâncias do poder público. Dessa correia de transmis-
cobrasse pelos desaparecidos políticos. são participou o IML – Instituto Médico Legal do Esta-
Não sabemos o que foi mais bárbaro: transformar do de São Paulo, para onde vários corpos saídos do
oponentes do regime mortos em indigentes ou tripudi- Dops e DOI-Codi foram remetidos, seguindo de lá para
ar ainda mais da indigência para dar m aos corpos dos o cemitério de Perus.
oponentes do regime. Veremos que isto não se deu Não poderíamos fechar os olhos e procurar respon-
apenas através da vala clandestina. sáveis apenas entre sepultadores ou servidores relapsos.
A atribuição desta CPI foi de apurar irregularida- Nem procurar algumas pessoas para atribuir-lhes res-
des e de apurar responsabilidades. ponsabilidades isoladas, como se isolados fossem os
Sabíamos que em Perus foram enterrados pelo fatos que apuramos nos cemitérios.
menos 13 corpos de presos políticos, 7 deles com nomes Considerando que a existência da vala pudesse
falsos e 6 poderiam estar na vala clandestina. Sabíamos estar relacionada com ações do regime e com desapare-
ainda que além destes, 144 permanecem desaparecidos cimentos produzidos na ditadura: A cada fato relacio-
e a peregrinação dos seus familiares, amigos, compa- nado com o sepultamento de presos políticos precisaria
nheiros e da sociedade para localizá-los não cessou e ser apurado.
nem cessará enquanto as respostas não forem encontra- Cada pessoa que pudesse contribuir nessa investi-
das. gação precisaria ser chamada.
Seis meses de trabalho foi um tempo irrisório. O Cada aspecto do regime criou procedimentos rela-
terreno das responsabilidades, como vimos desde o cionados com a determinação em desaparecer com
início, se amplia muito. O setor de cemitérios do muni- corpos e identidades de pessoas, precisaria ser nova-
cípio pelo que concluímos, se colocou a serviço de uma mente analisado e decifrado. É claro que não logramos
orientação nascida do arbítrio e que perpassou as várias tudo isso, nestes seis meses. Mas quem sabe este esforço

66
contribua para que a sociedade assuma essa busca com Foram ouvidos nesta fase funcionários do cemitério
a garra necessária, reanalise seu passado recente, se Dom Bosco, ex-funcionários, o administrador do cemi-
aproprie de sua história e encontre resposta para os seus tério, ex-administradores, o superintendente e o policial
desaparecidos. militar motorista do carro que transportava os cadáveres
O que desejamos, ao nal deste relatório, é que a do Instituto Médico Legal, que era também declarante
cidadania produza instrumentos que desmontem a num grande número de atestados de óbito.
couraça da impunidade, se defenda aprendendo a reco- Ouvimos a seguir os ex-administradores do IML,
nhecer e eliminar aparatos estranhos aos seus direitos e funcionários e médicos legistas na época.
a sua vontade e cresça, assumindo como parte de si As declarações dos depoentes ligados ao IML,
mesma os segmentos hoje excluídos pelo estigma da informando a origem dos corpos, levou essa CPI a cha-
indigência. mar para depor funcionários e delegados do hoje extin-
É o que cada um de nós precisa urgentemente to Dops (Departamento de Origem Política e Social),
aprender e resolver. órgão ligado a Secretaria de Segurança Pública do
A constituição desta Comissão Parlamentar de Governo do Estado de São Paulo.
Inquérito foi aprovada em 05 de outubro de 1990 pela Esses depoimentos, por sua vez, zeram várias
Câmara Municipal de São Paulo com o objetivo de apu- referências aos membros do ainda atuante DOI-Codi
rar a origem e as responsabilidades sobre as ossadas (Departamento de Operações e Informações – Centro
encontradas no Cemitério Dom Bosco, em Perus, e de Operações de Defesa Interna), órgão ligado ao Exér-
investigar a situação dos demais cemitérios de São Paulo. cito, que congregava naquela época membros das polí-
Foram indicados para compor a CPI o vereador cias civis, federais e estaduais, das polícias militares e do
Júlio Cesar Caligiuri, como presidente, o vereador Aldo Exército. Esse órgão originou-se da clandestina Opera-
Rebello como relator nos primeiros três meses, a verea- ção Bandeirante (Oban).
dora Tereza Lajolo, relatora, o vereador Italo Cardoso, o Foram ouvidos escrivães de polícia, delegados, um
vereador Vital Nolasco (que substituiu o Vereador Aldo coronel do Exército, um ex-prefeito, dois ex-
Rebello) o vereador Marcos Mendonça, o vereador governadores.
Oswaldo Gianotti e o vereador Antônio Carlos Caruso. Ao todo foram ouvidas 82 pessoas, foram juntados
No dia 4 de setembro de 1990 foi localizada uma centenas de documentos, entre decretos, leis municipa-
vala com 1.049 ossadas no Cemitério Dom Bosco. Após is, convênios e duas tas de videocassete, uma do pro-
veri cação nos livros do cemitério, apurou-se não haver grama Globo Repórter da TV Globo, que não foi ao ar e
registro de existência dessa vala naquele local. outra da região do Araguaia.
Determinada a abertura da vala, constatou-se que Os militares Carlos Alberto Brilhante Ustra, Beno-
as ossadas se encontravam dentro de sacos plásticos, ni de Arruda Albernoz e Dalmo Luiz Cirillo foram
todos sem qualquer identi cação. convocados, mas não compareceram. A convocação
A Excelentíssima Prefeita do Município de São coercitiva por ordem judicial não foi possível em fun-
Paulo, Senhora Luiza Erundina de Sousa, determinou a ção do vencimento de prazo para os trabalhos da CPI.
apuração dos fatos e fez um convênio com o Governo Foram tomados depoimentos, também, de ex-
do Estado e a Universidade de Campinas para identi - presos políticos, familiares de desaparecidos e mem-
cação das ossadas. bros de Comitês de Direitos Humanos.
Através do exame dos livros e depoimentos de Foram realizadas 42 sessões ordinárias, uma extra-
funcionários do cemitério, veri cou-se que as ossadas ordinária, uma diligência ao Sítio 31 de Março de 1964,
seriam de pessoas enterradas como indigentes. em Parelheiros, três visitas à Secretaria Estadual de
Os corpos teriam sido exumados em 1975 e nessas Segurança Pública de São Paulo (SSP/SP), cinco à Prefe-
condições foram deixados no velório do cemitério por itura de São Paulo, uma ao DHPP (Departamento de
mais seis meses, sendo enterrados nesta vala em 1976. Homicídios e Proteção à Pessoa), duas ao Departamen-

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FOTO: DIÁRIO POPULAR/REPRODUÇÃO

FOTO: FOLHA DE SÃO PAULO/REPRODUÇÃO


FOTO: FOLHA DE SÃO PAULO/REPRODUÇÃO
Após a revelação da vala, o desaparecimento polí co passa a ser abordado pela primeira vez de forma clara e aberta pela grande
imprensa. A CPI ganha cobertura quase diária nos principais jornais, em especial no Diário Popular

to de Comunicação Social da SSP, duas à Polícia Fede- investigação desenvolvida por esta CPI, pela Comissão
ral, duas ao Instituto Médico Legal, duas ao Cemitério dos Familiares dos Presos Políticos e pelas entidades de
de Perus e duas à Unicamp. direitos humanos:
Para elaborar este relatório foram consultados, Solicitando o reforço policial no Cemitério Dom
também, os seguintes livros: Bosco durante a escavação da vala, resguardando-a de
Brasil: Nunca Mais. Arquidiocese de São Paulo, qualquer adulteração, até a completa remoção das ossa-
Editora Vozes, 25ª edição, 1985. Análise de mais de 700 das;
processos que tramitaram pela Justiça Militar entre Determinando a guarda dos livros do Cemitério
abril de 64 e março de 79, especialmente os que atingi- Dom Bosco em seu próprio gabinete;
ram a esfera do Superior Tribunal Militar. Determinando o lacre da sala em que foram deposi-
Rompendo o Silêncio: Oban e DOI-Codi, 29 de tadas as ossadas;
setembro de 1970 a 23 de janeiro de 1974. Carlos Alber- Constituindo equipe que inclui representantes da
to Brilhante Ustra, 3ª edição, Editerra Editorial. Secretaria dos Negócios Jurídicos e do Serviço Funerário
Tortura: A história da repressão política no Brasil. Municipal, para acompanhamento das investigações;
Antonio Carlos Fon, Global Editora, 2ª edição, 1979. Determinando a catalogação das ossadas e a
Dossiê dos mortos e desaparecidos. Documento do micro lmagem dos livros do Cemitério, antes do seu
Comitê Brasileiro pela Anistia, Secção do Rio Grande envio para exames na Unicamp;
do Sul. Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande Discutindo com as entidades de direito humanos e
do Sul, 1984. a Comissão dos Familiares o encaminhamento das
investigações;
Queremos agradecer: Determinando novas exumações e análise dos
À Prefeita Luiza Erundina, que desde a abertura da livros dos cemitérios de Campo Grande, Vila Formosa,
vala do Cemitério Dom Bosco atuou com determina- e também em Perus;
ção no sentido de garantir as condições favoráveis à Assinando convênio com o Governo do Estado e a
investigação sobre as ossadas encontradas, bem como a Unicamp para o estudo das ossadas;

68
Apoiando a CPI e a entidades na reivindicação de o administrador do Cemitério Dom Bosco, Antonio
devolução dos arquivos do Dops ao governo estadual; Pires Eustáquio, e aos sepultadores que mantiveram
Participando diretamente dos momentos mais plantões para a abertura da vala e retirada das ossadas e
importantes do trabalho desenvolvido por esta CPI, dedicaram-se aos trabalhos de escavações no Sítio 31 de
pelas entidades e pelos peritos da Unicamp; Março de 1964.
Ao Superintendente do Serviço Funerário Munici- À diretora da Divisão de Arquivo Municipal de
pal, Rui Barbosa de Alencar, que determinou a abertura Processos e o assistente da diretora Marco Antonio
da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco com Alves Ferreira, que vasculharam processos antigos que
acompanhamento da imprensa e garantiu o amplo sequer contavam dos cadastros atualizados, ajudando a
acesso da CPI à documentação existente. A abertura de solucionar ocorrências antigas nas gestões do Serviço
CEI no serviço Funerário cujas investigações em diver- Municipal.
sos cemitérios contribuíram com elementos importan- Equipe de assessores que atuou nos trabalhos da
tes ao trabalho desta CPI na CMSP. CPI, na sua sistematização e no processo de relatoria:
Ao ex-governador Orestes Quércia, que garantiu o Antonio Carlos Roque, Ricardo Soares Pinheiro e Miri-
acesso da Comissão de Familiares de desaparecidos aos am Luiz Alves (Gabinete do Vereador Julio Cesar Calli-
arquivos do IML e viabilizou o convênio para estudo giuri/presidência CPI), Beth Burigo e Maria Inês Bueno
das ossadas pela Unicamp. (Gabinete Vereador Italo Cardoso), Rita Freire (Gabi-
Ao ex-secretário de segurança pública, Antonio nete Vereadora Tereza Lajolo/relatoria), Marici Abreu
Claudio Mariz de Oliveira, que colaborou com a CPI Bona Fé (Gabinete Liderança do PT). E ainda, aos asses-
para obtenção de autorização para inspeção do Sítio 31 sores que atuaram como colaboradores Carlos Alberto
de Março de 1964, e colocou à disposição da CPI recur- Pereira de Oliveira (Gabinete Vereador Julio Cesar
sos materiais e humanos necessários a inspeção do Sítio Caligiuri), Maria Dolores Rosati e Eduardo Vasconce-
e dos materiais encontrados. Que interveio no IML los (Gabinete Vereador Italo Cardoso), Monica Cristina
garantindo o acesso aos seus arquivos. Zerbinato (Gabinete Liderança do PT), Vanderley da
Ao diretor do Departamento de Comunicação Cruz Garcia, Armando Osawa e Regina Barrios (Gabi-
Social da Polícia Civil, Dr. Ayrton Martini, e ao Delega- nete Vereadora Tereza Lajolo).
do Silvio Tinti, pela atuação junto a CPI, COE e Serviço Ao procurador designado pela Prefeitura para
Funerário, nas investigações do Sítio 31 de Março. acompanhamento dos trabalhos da CPI, Dr. Cesar
Ao COE - Comando de Operações Especiais da Cordaro.
PM, pelo apoio de segurança a todos aqueles que traba- À Comissão dos Familiares de Desaparecidos Polí-
lharam nas investigações do Sítio 31 de Março. ticos, representada por Ivan Seixas, Amélia Teles e Suza-
À Diretoria do IML, Sra. Maria Helena Pacheco, na Lisbôa.
pelo auxílio no trabalho de pesquisa dos Familiares de E a todas as entidades e pessoas que contribuíram
Desaparecidos nos arquivos do Instituto. neste processo e que são inúmeras.
Ao Governador Luiz Antonio Fleury Filho, que
assumiu o compromisso com a continuidade das inves- 2. O Serviço Funerário Municipal
tigações.
Aos pro ssionais de imprensa, agradecemos pelo 2.1 Cemitério para indigentes
acompanhamento constante que garantiu a divulgação O cemitério Dom Bosco foi o primeiro objeto das
cotidiana dos trabalhos da CPI, em especial ao Diário investigações da CPI, por abrigar a vala comum desco-
Popular, pela seriedade do acompanhamento, e à jorna- berta em setembro de 1990. Seu processo de construção
lista Elza Hatori. foi iniciado em 1968. Em 1970 ainda estava em terrapla-
Ao pessoal do Serviço Funerário Municipal, Vera nagem sendo concluído e inaugurado em 1971, na
Lucia Figueiredo Osegawa, Dalton Ferracioli de Assis, e gestão do prefeito Paulo Maluf.

69
É de 1969 uma planta prevendo a construção de A razão para a mudança encontra uma única expli-
crematório nesse cemitério o que contraria a destinação cação nos dois depoimentos do Sr. Fabio Pereira Bueno,
que teve a necrópole: a de colher os corpos de indigen- ex-diretor do CEMIT – Departamento de Cemitérios).
tes, entendendo-se por estes corpos não reclamados Houve entendimentos diretos com o IML, na pessoa do
vindos do IML – Instituto Médico Legal e da Faculdade médico legista Harry Shibata, então integrante da dire-
de Medicina. Não encontramos, em todos os depoi- toria, cumprindo solicitação do instituto de uso do
mentos e levantamentos documentais durante os traba- cemitério, para esse m. O motivo alegado seria maior
lhos desta CPI, justi cativas importantes para que o facilidade de acesso.
cemitério tivesse essa destinação. Ao contrário, segun- Como se vê em outro capítulo deste relatório, o Sr.
do depoimento do Sr. Paulo Maluf, a existência do cemi- Shibata era pessoa de con ança dos organismos de
tério era reivindicação dos moradores da região. repressão para o atendimento aos casos de presos políti-
De fato, no processo 22.303/62, formado por carta cos mortos no Dops e DOI-Codi e encaminhados para
de 24/07/1962, enviada ao prefeito anterior, a Sociedade autópsia.
Amigos de Perus reivindicava área para instalação de Sobre esses corpos havia a intencionalidade de
cemitério. O processo 4.719/63, formado por ofício da manter sigilo, como também se vê em outro capítulo,
Câmara Municipal, rea rmava a necessidade de cemi- por exemplo, em informações prestadas pelo auxiliar de
tério para atender a população local, já que o cemitério autópsia Jair Romeu. E veri camos que vários desses
de Caieiras que, por ser o mais próximo, recebia os corpos, mesmo identi cados, ou que poderiam ter sido
corpos das pessoas falecidas em Perus, estava lotado. se os organismos de repressão assim o quisessem, tive-
A mesma necessidade de atender a população da ram sepultamento em Perus como apontam vários
região se encontra apontada nos proc. 27.246/62 e laudos.
20.065/62, que recomenda escolha de área capaz de Mas em que o encaminhamento desses corpos a um
atender também aos moradores do Distrito de Pirituba cemitério sob responsabilidade do município, com as
e demais limítrofes. Sendo assim, torna-se estranha a características da necrópole Dom Bosco teria contribuí-
súbita alteração sem determinação formal, da destina- do ao ocultamento? Ao contrário do que ocorre em soci-
ção do cemitério, que passou a atender apenas os corpos edades mais desenvolvidas, em que a condição de indi-
do IML e da Faculdade de Medicina. Veri camos que, gente de uma pessoa faz redobrar a responsabilidade do
essa época, os corpos de indigentes eram encaminha- Estado para garantir seus direitos de cidadão, no Brasil
dos a Vila Formosa, onde não havia, como não há até essa condição remete a um reconhecimento automático
hoje, problemas de lotação. E o que se veri ca na foto de sua marginalidade. E este quadro foi ainda mais grave
aérea de 1973, com amplas áreas ainda sem ocupação – naqueles anos em que a sociedade e a cidadania brasileira
o que persiste, segundo o Serviço Funerário Municipal estiveram submetidas a um regime de exclusões.
– SFM. Em lugar de procedimentos redobrados que permi-
tissem o reconhecimento posterior de corpos não recla-
Des naram-se a Perus, a par r de 1971, mados ou não identi cados, sobre os cadáveres saídos
ví mas de mortes violentas, seja pela do IML, pessoas vitimadas por todas as nuances de um
regime violento e repressivo, e não apenas presos políti-
miséria, pela fome, pela criminalidade
cos, não há até hoje condições adequadas para a possível
social, seja pela sanha de esquadrões da
identi cação. Destinaram- se a Perus, a partir de 1971,
morte, da violência policial e da garan a vítimas de mortes violentas, seja pela miséria, pela
de impunidade para os braços fome, pela criminalidade social, seja pela sanha de
repressores de um regime esquadrões da morte, da violência policial e da garantia
fundamentado na força de impunidade para os braços repressores de um regi-
me fundamentado na força.

70
dores se recordem da sua abertura dos autos e Inquérito

FOTO: ACERVO DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO


policial.
O máximo a que se chega, ao investigar documen-
tação do Serviço Funerário Municipal, e a ocorrência de
exumações em massa, em 1975, nas quadras 1 e 2
daquele cemitério, ocupados por corpos de indigentes.
A legislação em caso de exumações recomenda que os
corpos sejam reinumados alguns palmos abaixo, na
mesma sepultura, além do necessário registro. Isto não
ocorreu (Ato 326/32, artigos 42, 43 e 46).
A alegação apontada para exumação era de que o
cemitério passaria a incorporar o regime de concessões
Tereza Lajolo, relatora da CPI, despacha com a prefeita Luiza de terrenos para sepultamentos, precisando para tanto
Erundina
liberar as quadras.
Assim, a condição arti cial de indigência imposta Consta dos autos, ofício do SFM que permite con-
às vítimas fatais dos organismos de repressão remetia, testar essa justi cativa já que o regime de concessão teve
em lugar de um alerta a sociedade, a exclusão da cidada- início em 1972, as demais quadras do cemitério esta-
nia e ao ocultamento de corpos com o auxílio de pode- vam ociosas submetidas a regime de concessão. A aber-
res instituídos, no caso a Prefeitura Municipal. tura da vala comum no ano seguinte, segundo depoi-
Veri camos ainda que a pequena possibilidade de mentos colhidos por esta CPI, foi feita para depósito
localização dos corpos sepultados em Perus e outros dos registros mortais exumados das duas quadras, o que
cemitérios como indigentes, que seria obediência às provocou o ocultamento daquelas ossadas até 1990,
limitadas determinações legais de registro, com o quando foi aberta por determinação da prefeita Luiza
tempo foi sendo pulverizada pela mera violação. Erundina.
O que não seria possível, mesmo para os aparelha- A própria vala se manteve em caráter de clandesti-
dos mecanismos da repressão era eliminar da memória nidade por vários motivos:
de sepultadores e funcionários, o clima que se instalou 1. Não existe registro de sua criação.
com o recebimento dos corpos saídos do Dops e do 2. Foi aberta em área destinada a construção de
DOI-Codi. Perguntas do tipo “tem algum especial aí” – uma capela.
referindo-se aos chamados terroristas, eram feitas pelos 3. Não foi demarcada posteriormente como local
sepultadores ao policial Miguel Fernandes Zaninello, de sepultamento.
quando chegava com o carro do IML. 4. Não foi incluída na planta do cemitério.
Todos os sepultadores se recordam da morte de 5. Foi construída de forma irregular, sem alvenaria
Grenaldo Jesus da Silva, morto no aeroporto de Congo- e outros requisitos.
nhas, quando tentava sequestrar um avião. Quando 6. Não existe registro de transferência dos corpos
souberam que havia sido morto pelo DOI-Codi, todos exumados para a vala.
caram em prontidão à espera do corpo. E disso se Ao mesmo tempo, tal situação não poderia ser
recordam até hoje (departamento de sepultadores). atribuída ao desconhecimento das autoridades compe-
tentes. Em lugar dos registros que, mesmo podendo
2.2 A Vala Clandestina alterar o caráter de clandestinidade não corrigiriam,
No ano de 1976, uma grande vala foi aberta no por si, as irregularidades da construção da vala, é nos
Cemitério Dom Bosco e nela foram depositadas cerca depoimentos de funcionários do cemitério que se
de 1.500 ossadas, sobre as quais não se fez qualquer encontram as provas de que:
registro a época dessa reinumação, embora os sepulta- 1. A vala foi aberta por ordem transmitida pelo

71
então administrador do cemitério, hoje falecido e pelos - a mudança de legislação reduzindo prazo para
scais do SFM sem procedimento formal. exumação;
2. A vala era do conhecimento das várias gestões do - a elaboração de plano de reorganização para o
SFM, a partir de 1976. Cemitério de Vila Formosa, com execução prevista em
3. Nenhuma providência foi tomada pelas gestões 1975.
que se sucederam, até 1990, para dar existência legal a
vala clandestina, identi car e regularizar a destinação 2.4 Crematório para indigentes
dos corpos nela reinumados, corrigir a omissão nos Desde a construção do cemitério Dom Bosco os
registros do Cemitério e do SFM ou identi car respon- demais acontecimento se deram da seguinte forma:
sáveis. Já veri camos que em 1969, a planta de Perus
A vala con gura-se assim irregular, clandestina e apontava a previsão de crematório. O processo 180.991,
ilegal. A busca de explicações para a existência da vala também de 1969, indica que um forno crematório já
levou a CPI a pesquisar e ouvir pessoas relacionadas estava encomendado a empresa inglesa Dowson &
com o SFM, antigo CEMIT – Departamento de Cemité- Mason, mas que seria agora instalado no Cemitério de
rios, durante todo período que a antecedeu, desde a Vila Nova Cachoeirinha. Além de registrar o pedido de
construção de Perus. tramitação urgente, este processo inclui uma carta da
empresa D&M estranhando que o projeto de prédio
para o forno, elaborado pela Prefeitura, era inadequado
2.3 Nova orientação ao acompanhamento de familiares, além de graves
Com o depoimento do Sr. Fabio Pereira Bueno, irregularidades. A carta diz textualmente, em alguns
diretor do CEMIT entre 1970 a 1974, surgiram os pri- trechos, o seguinte:
meiros indícios de que o departamento buscou nessa “Parece não haver o hall de cerimônias nesse projeto.
época se adequar a uma nova orientação com alterações E também muitas coisas que, francamente, não entende-
relacionadas com os episódios de 1975 e 76. mos, mesmo considerando estarmos associados e traba-
Paralelamente aos trabalhos da CPI, os esforços lhando há quinze anos em projetos de crematórios em
que vinham sendo feitos pela Prefeitura e pela Comis- todo o mundo”.
são de Familiares de Desaparecidos resultaram na des- E mais adiante: “Gostaríamos de saber qual o motivo
coberta de que também a quadra de indigentes do cemi- de ter duas enormes portas “vai e vem” nas posições
tério de Vila Formosa, no mesmo período, havia sofrido assinaladas A e B, porque na maioria dos crematórios a
graves alterações, provocando o ocultamento de pelo sala propriamente dita, onde as cremações são realizadas
menos um corpo de preso político, José Maria Ferreira é mantida algo discreta, mesmo que as pessoas e o públi-
Araújo. Ficaram mais fortes as evidências mencionadas co em geral peçam para serem conduzidas a tal sala. Seria
acima. muitíssimo desagradável que tais portas permanecessem
Reunia-se a isto a constatação de ocorrência de três abertas o dia todo e todo o dia a qualquer pessoa do
incêndios no setor administrativo no Cemitério de público que por ali estivessem vagando. Alguém poderia
Lajeado (que recebia indigentes antes do envio a Vila presenciar cenas altamente emocionais que perturbari-
Formosa). Um dos incêndios provocou a morte de um am os operadores”.
vigia. Os incêndios zeram desaparecer livros de regis- Este projeto, conforme indica o mesmo processo,
tros, mas os crimes nunca foram apurados. teria sido alterado para atender a orientação da empresa.
O Sr. Fabio Pereira Bueno foi novamente chamado A estas alterações, porém, segue-se o abandono do proje-
a depor. Na sua gestão ocorreram os seguintes fatos to e o arquivamento do processo, com a indicação de que
importantes: as obras, na verdade teriam ocorrido no Cemitério de
- a inauguração do Cemitério e os entendimentos Vila Alpina, e não mais no de Vila Nova Cachoeirinha.
com o IML para sepultamento de indigentes; Começam em 1972 os esforços da prefeitura para

72
adequar a legislação e permitir a construção de um Nessa mesma época, é alterada a
crematório exclusivamente para indigentes, em Vila
legislação municipal, diminuindo de 5
Alpina. Alegava-se um problema de economia do
CEMIT o excesso de corpos. para 3 anos o prazo de espera para
Um outro projeto de prédio, segundo o Sr. Fabio ocorrência de exumação. Exatamente
Pereira Bueno, foi elaborado, e ele, pessoalmente, ten- três anos depois, ocorreriam as
tou buscar subsídios para que a lei municipal fosse alte- exumações em massa nas quadras 1 e
rada. 2, e a informação que circulava entre os
Com este intuito foi acertada, vias prefeitura e
servidores era de que tais ossadas
embaixadas, a viagem do Sr. Fabio em 1972, a Argenti-
na, de onde trouxe a legislação que poderia inspirar
seriam cremadas
mudanças nos procedimentos do município. Ele passou
também pelo Rio Grande do Sul e pelo Uruguai, veri - ção do Cemitério de Vila Formosa, embora não exista
cando naquele país os procedimentos para cremação no processo correspondente. Todos os processos relativos
período em que a sociedade uruguaia se via as voltas a esse período, anexados a CPI, foram trazidos a luz a
com a violenta repressão aos Tupamaros, como ele partir de levantamentos dos acervos da Divisão de
mesmo cita em seu depoimento. Arquivo Municipal, com sérias di culdades. Veri ca-
A empreitada não logrou sucesso, já que houve um mos que os arquivos catalogados por nomes foram
parecer jurídico interno a Prefeitura, apontando impe- incinerados, sobrevivendo sem sequência e com gran-
dimentos legais ao procedimento. des lacunas, os processos catalogados apenas pela nume-
Nessa mesma época, é alterada a legislação munici- ração.
pal, diminuindo-se de cinco para três anos o prazo de Entendemos que, por necessitar de mapeamento
espera para ocorrência de exumação. atualizado de cada cemitério para suas atividades coti-
Exatamente três anos depois, ocorreriam as exu- dianas e por exigência legal, o SFM deveria dispor de
mações em massa nas quadras 1 e 2 do Cemitério Dom planta com a atual con guração de quadras do Cemité-
Bosco, e a informação que circulava entre os servidores rio de Vila Formosa. A planta em uso, porem, e de 1973,
na ocasião era de que aquelas ossadas seriam cremadas o que faz supor que as alterações realizadas em 1975 não
em Vila Alpina, cando a espera dessa providência foram o cialmente comunicadas ou registradas.
amontoadas no necrotério entre seis meses e um ano. As alterações são as que se seguem, conforme
Causa estranheza, em todos estes procedimentos, a levantamento do Serviço Funerário.
alegação da necessidade de cremação em função do A área do cemitério de Vila Formosa, em que está
grande número de corpos de indigentes sepultados. situada a quadra 11, destinada ao sepultamento de
Segundo o mesmo depoente, a média de sepulta- indigentes, “foi irresponsavelmente adulterada, che-
mento era de sessenta (60) corpos por dia, sendo que gando-se ao ponto da retirada do asfalto das ruas que
mesmo hoje, a média de mortes de indigentes, produzi- demarcavam as quadras, principalmente a quadra 11,
das entre a população muito maior, é de apenas oito por detonando a dilapidação de um próprio municipal”.
dia. Se incluirmos ai o número de sepultamentos gratui- Houve “total perda de referências, causada pela
tos (que a prefeitura debitava na mesma conta da “indi- demarcação”.
gência”), teremos uma média de vinte corpos sepulta- A comparação entre plantas e fotos antigas com a
dos por dia. atual con guração do cemitério mostra que as ruas na
área ganharam um novo traçado, transversal ao traçado
2.5 Cemitério de Vila Formosa original, ocupando o lugar de antigas sepulturas. Os
Ainda na gestão do Sr. Fabio Pereira Bueno, há espaços da quadra não comprometidos pelo novo arru-
registro de providencias para um plano de reurbaniza- amento foram cobertos com a implantação de dois

73
pequenos bosques. Na foto aérea de 1973, veri ca-se 2.6 As gestões e as ocorrências
que a única vegetação então existente era arbustiva, Quanto à responsabilidade por estas violações, que
desenhando perfeitamente o alinhamento das sepultu- no município devem ser atribuídas a cada prefeito e
ras. Outro levantamento, feito por biólogos de DEPAVE suas equipes de con ança direta no setor, desde a
(Departamento de Parques e Áreas Verdes), indica que construção de Perus até os episódios de 75 e 76, é
a idade das árvores não é inferior a quinze anos (tem 15 importante observar o seguinte:
a 25), o que remete ao ano de 1975, como data limite Entre 1969 e 1971, na gestão do Sr. Paulo Maluf,
para que os bosques tenham sido iniciados. registramos a urgência em providenciar instalação de
Observamos que as quadras próximas a quadra crematório paralela a construção de cemitério para
desaparecida foram renumeradas, tornando-se hoje indigentes, bem como a proximidade e o apoio do
quadra 11 a antiga quadra 10. Com a forma transversal governo municipal as ações contra os chamados terro-
do novo traçado e sem indicações de alterações na plan- ristas e subversivos, colocando a serviço deste apoio os
ta original, se produz ao observador a ilusão de que a cemitérios da cidade.
atual quadra 11 seja a mesma que existiu antes da reur- Prova disto foi o pagamento, com verbas do gabine-
banização, embora também nesta se perceba que houve te do prefeito, do enterro com honras da investigadora
um rebaixamento da terra, com a utilização de máqui- Estela Borges Morato, morta durante cerco a Marighella,
nas pesadas, deixando a orantes os vestígios de antigos o pagamento com verbas do gabinete, de sepultamento
sepultamentos. do soldado Mario Kozel Filho, morto, segundo processo
Resta lembrar que as alterações em Vila Formosa 67.901/69 durante atentado terrorista ao II Exército, a
foram identi cadas com a descoberta, a partir do autorização de cessão de terreno para sepultamento do
recente acesso aos arquivos do IML, de que o militante motorista de taxi José M. do Nascimento, morto, segun-
José Maria Ferreira Araújo, morto pelo DOI-Codi em do proc/munic. 43.043/70, durante tiroteio entre polici-
1970, é o mesmo cidadão enterrado com o nome falso ais e terroristas, a alteração pelo prefeito, de legislação
de Edson Cabral Sardinha, na sepultura 119, da quadra proibitiva de edi cação de mausoléus, para construção
11, em Vila Formosa e registrado no SFM. O registro, de mausoléu da Polícia Civil no cemitério de Campo
porem, não correspondia a atual con guração da Grande, como “estímulo” ao cumprimento do dever
quadra e, ainda hoje, no encerramento dos trabalhos heróico, a utilização dos aparatos repressivos do Dops
desta CPI, não foi possível a sua localização. Ainda que para interrogatório e tortura de servidores municipais
a legislação municipal determine que os cemitérios de acusados de subversão.
São Paulo não podem ser alterados ao bel prazer das Cabe lembrar também que o sr. Paulo Maluf, como
administrações e que existem procedimentos de nidos governador, foi responsável pela permissão de uso do
quando exumações são necessárias, as alterações em terreno da Rua Tutoia para o DOI-Codi, reconhecendo
Vila Formosa violam frontalmente esses princípios, não as atividades daquela instituição apenas alguns dias
apenas pela falta de histórico sobre a quadra 11, mas antes da decretação da Lei de Anistia.
pelo total desprezo aos corpos sepultados. Não se sabe Em seu depoimento o Sr. Paulo Maluf nega que
se ocorreram exumações para a abertura das novas tenha tentado viabilizar a existência de crematório, por
ruas. O mais provável, pelo que se vê na antiga quadra razões religiosas, assim como nega ter conhecimento de
10, é que as ruas tenham sido abertas com a simples sepultamentos de policiais às expensas do seu gabinete.
violação das sepulturas pela passagem do maquinário Os processos do Arquivo Municipal comprovam esses
pesado. acontecimentos na sua gestão (proc. 180.991/69 e
Quanto aos corpos enterrados na área ocupada proc.//munic. 67.901/69).
pelo bosque, estes foram simplesmente ignorados, e A gestão seguinte do prefeito Figueiredo Ferraz, dá
permanecem sepultados sob árvores como se não exis- prosseguimento a alterações no CEMIT iniciadas na
tissem para o município. gestão anterior, tocando-se o projeto para crematório,

74
viabilizando-se a viagem à Argentina e alterando-se a pressões sociais forçam o acuamento do regime e tor-
legislação quanto ao prazo para exumações e elaboran- nam-se escandalosos os episódios que envolveram a
do-se plano de reurbanização em Vila Formosa. morte do jornalista Vladimir Herzog e posteriormente
Com exceção do processo relativo aos planos de a do operário Manoel Fiel Filho. A vigilância social
Vila Formosa, que não foi encontrado, embora mencio- possivelmente tenha sido a razão para que uma violação
nado pelo Sr. Fabio Pereira Bueno, todas as providênci- ainda maior dos despojos dos corpos exumados fosse
as para a instituição de novos procedimentos quanto impedida. A transferência de mais de 1.000 ossadas do
aos indigentes procuraram-se pautar-se dentro de limi- cemitério de Perus ao cemitério de Vila Alpina certa-
tes legais, ainda que, alterando ou tentando alterar a mente teria provocado alarme, não apenas entre os
legislação em alguns momentos – a exemplo da proibi- funcionários do serviço funerário municipal, que não
ção de crematório para indigentes e adequação de lei de podem fechar os olhos ao cotidiano dos cemitérios, mas
exumações. em toda a sociedade que exigia respostas para os inú-
Mesmo o plano de Vila Formosa chega a ser menci- meros desaparecimentos produzidos pelo regime.
onado em processo sobre vistoria, conforme A vala clandestina por todas estas considerações
proc/munic 17.340/73, embora com indícios de que o teria sido solução mais discreta para que todos aqueles
CEMIT não queria a introdução da scalização com corpos amontoados no velório de Perus entre os quais o
relação ao cemitério. de vários presos políticos, desaparecessem.
Esses limites da legalidade, porém, deixam de ser
observadores a partir de 1974, já na gestão de Miguel 3 O IML
Colassuono. Segundo informação prestada pelo Sr. O IML – Instituto Médico Legal teve papel impor-
Fabio Pereira Bueno, teria havido determinação do tante na con guração de legalidade sobre mortes
novo prefeito para que os administradores de cemitéri- criminosas produzidas pelos órgãos de repressão. O
os fossem substituídos por pessoas de sua con ança, o instituto forjava sobre elas uma face legal, em cima de
que gerou a desautorização do então diretor do Depar- históricos policiais enganosos, emitidos laudos com
tamento e o seu pedido de demissão. nomes e/ou causas morte falsi cados e liberando, com
Nesse período ocorrem, em menos de um ano, as estes, os corpos que seguiriam como indigentes para o
exumações em massa em Perus, a des guração da cemitério público.
quadra de indigentes em Vila Formosa e a abertura da Hoje é possível a rmar que o IML e um grupo de
vala clandestina. É também o período da construção e pro ssionais se envolveram com o acobertamento dos
inauguração do crematório de Vila Alpina. fatos ocorridos nos órgãos de repressão política.
No Brasil, 1975 é o ano em que o governo se vê A documentação do IML é bastante simpli cada,
obrigado a promover o início da distinção política. As mas esclarecedora. É composta por uma solicitação de
exame necroscópico, onde a policia apresentava um
breve histórico da morte, um laudo cadavérico e fotos
No caso de presos polí cos, o correspondentes. Em caso de identidade duvidosa, é
tratamento era diferenciado. Uma letra exigido exame datiloscópico. Esta sequência de docu-
“T” em vermelho passava a constar da mentos é usada para qualquer corpo que dê entrada no
Instituto.
documentação a fim de iden ficar os
Mas no caso de presos políticos o tratamento era
terroristas. Jair Romeu, auxiliar de diferenciado. Uma letra “T” em vermelho passava a
necropsia, admi u ter sido o autor constar da documentação, Jair Romeu, auxiliar de
desses registros, por ordens do necropsia alçado a condição de chefe de necrotério,
Delegado Alcides Cintra Bueno, do Dops admitiu em depoimento a CPI ter sido o autor desses
registros, por ordens do Delegado Alcides Cintra

75
Bueno Filho do Dops. A letra “T” se destinava a identi -
car os terroristas – disse ele, salientando, porem, que O médico que fez a autópsia foi Isaac
não se fazia diferenciação de tratamento. Abramovitch, amigo da família de
Através de cópia de um termo de depoimento assi- Gelson Recher. Mesmo tendo visto o
nado pelo Sr. Jair Romeu em processo instaurado pela nome verdadeiro, Isaac emi u laudo e
CGI – Comissão Geral de Investigações, foi possível
atestado de óbito com o nome falso de
comprovar o contrário.
No dia 19 de fevereiro de 1973, o Sr. Jair Romeu,
Emiliano Sessa. Em seu depoimento,
oferecendo denuncia à CGI – SP contra o administra- alega não ter reconhecido o rosto do
dor do necrotério Josué Teixeira dos Santos, dizia que autopsiado. A foto mostrava que o
ele (Jair Romeu) recebia “orientação no sentido de pre- rosto não estava deformado
servar ou acompanhar pessoalmente os casos ligados a
cadáveres de subversivos, que esses cadáveres encami-
nhados pela polícia ou pela Oban eram mantidos na cargo dentro do IML, apesar do depoimento em contrá-
geladeira e sofriam autopsia mesmo durante a noite, rio de Josué T. dos Santos de que “o Doutor Shibata era o
que era exigida a norma de sigilo, que desse modo o médico chefe do serviço de patologia”.
depoente chegava a passar um arame no trinco da gela- Assim como o auxiliar de necropsia, Jair Romeu, o
deira para que não fosse facilitado o acesso aos cadáve- médico Isaac Abramovitch, ao depor na CPI, evidencia-
res. Que, no entanto, Josué (pessoa que ele acusava) va que havia um compromisso assumido de colaborar
fazia questão de quebrar esse sigilo e mostrava o cadá- com os órgãos de repressão política sem nenhuma res-
ver ou cadáveres às pessoas que ali se encontravam, trição e fez forte defesa do regime vigente, ao a rmar
inclusive as suas mundanas, que este fazia comentários que a violência havia sido provocada pelos opositores e
contra a Oban, dizendo que era mais um jovem morto”. que, portanto, a resposta era à altura.
Dizia ainda que o sr. “Josué não gostava de ver o Os depoimentos mostram que o envio, necropsia e
depoente. Jair Romeu, ter contatos diretos com os ele- liberação de corpos obedecia a um ritual próprio, envol-
mentos da polícia ligados ao Dr. Alcides Cintra Bueno e vendo geralmente as mesmas pessoas. O que ocorria
com os elementos da Oban. nas necropsias noturnas não tinha o testemunho de
Finalmente, depois de informar que o Sr. Josué o ninguém.
ameaçava de ter o mesmo destino quando esses “caretas O caso de Gelson Reicher, mantido com nome falso
caíram”, Jair Romeu se comprometia com a CGI-SP em pelos órgãos de repressão, embora o nome falso estives-
manter sigilo sobre as denúncias por ele mesmo ofereci- se escrito a mão na requisição de exame.
das. No IML a história continua com um detalhe maca-
O Sr, Jair Romeu é coincidentemente a pessoa que bro. O médico que fez a autopsia foi Isaac Abramovitch,
participava de grande número de autópsia de presos amigo da família de Gelson e que conhecia desde o seu
políticos realizados pelos médicos Isaac Abramovitch e nascimento. Mesmo tendo visto o nome verdadeiro
Harry Shibata. manuscrito, Isaac emitiu laudo e atestado de óbito com
O depoimento a CPI do Sr. Josué Texeira dos Santos o nome falso de Emiliano Sessa. Em seu depoimento,
esclareceu aspectos importantes na relação entre o IML ele alega não ter reconhecido o rosto do autopsiado. A
e órgãos de repressão, indicando a existência de alguma foto do cadáver mostrava que o rosto não estava defor-
orientação para a escala desses legistas. mado, sendo facilmente reconhecido por quem o
A lista em anexo ao relatório, encabeçadas pelo conhecesse. Isaac Abramovitch também não soube
recordista de laudos de mortes de presos políticos, Isaac explicar porque havia cometido o mesmo “engano”
Abramovitch. Logo a seguir vem Harry Shibata, que outras vezes.
a rma nunca ter sido responsável ou ter tido qualquer Havia também orientação para que as fotos que

76
documentam o exame feito não fossem muito esclare- polícia foi acusada de responsável por essa morte. Tal
cedoras. Segundo Josué Texeira dos Santos esta era uma procedimento mostra a preocupação em descaracteri-
exigência feita pelo maior comandante da Oban/DOI- zar a existência de métodos violentos e cruéis dentro de
Codi, devendo-se fotografar apenas a cabeça. Em mea- fora a polícia. Este caso, que pode ter sido fruto da sanha
dos de 1971 ele fotografou um “terrorista”, mostrando dos esquadrões da morte, recebeu o número 4059/69.
também o tórax e foi repreendido severamente pelo O professor Almeida Junior, no livro Lições de
major da Oban. Na época era comandante do DOI- Medicina Legal, a rma que desde que a tortura “deixe
Codi do II Exército o então Major Carlos Alberto Bri- marcas no corpo da vítima, é óbvio que a autópsia médi-
lhante Ustra, embora o depoente não recorde o nome co-legal poderá assinalar”. E acrescentar que “o elemen-
do major que o repreendeu. Também não foi possível to essencial na caracterização do homicídio e o anexo
con rmar se o preso teria sido o jornalista Luiz Eduar- de casualidade entre o êxito letal e a lesão que, por
do da Rocha Merlino, morto sob torturas naquele comissão ou omissão, o agente ocasionou. Não entrará
departamento militar no mês de julho de 1971. o perito, é certo, em divagações sobre o problema jurídi-
Em nenhum dos laudos veri cados pela CPI, a co da casualidade... Mas a sua descrição objetiva, singe-
versão policial que constava da solicitação de exame foi la e clara será, para o jurista de valor inestimável” (p.
contestada após a perícia médica. 209).
Quando os sinais de tortura eram muito evidentes, Essa descrição, para os médicos legistas, se reduzia
o legista, às vezes, descrevia as marcas deixadas, mas a muito pouco.
concluía sempre no nal que a morte se dera como O local de encontro do corpo de Dênis Casemiro
descrito pela polícia. O médico Sérgio Belmiro Aques- foi no próprio IML, como mostra a requisição de exa-
ta, ao assinar o laudo de José Maria Ferreira Araújo me, mas segundo a versão policial ele estava preso e
(com nome falso de Edson Cabral Sardinha) a rma que morreu ao tentar fugir. Segundo depoimento de presos
o corpo do militante tinha vários hematomas e conclui políticos da época, Denis teria sido morto sob tortura,
que a morte se deu por causa inde nida, referendando a pelo delegado Sergio Fleury. O laudo assinado pelo
versão policial de que José Maria havia morrido de mal legista Renato Capelano apenas descreve a trajetória de
súbito, ao dar entrada na delegacia distrital. O endereço projéteis, sem nada falar sobre como estava seu corpo.
da delegacia era Rua Tutóia, o mesmo do DOI-Codi. Os laudos de Denis Casemiro, assim como de seu
A preocupação em não contrariar a versão policial, irmão, Dimas Casemiro, a espera de identi cação entre
pode ser creditada a ligação orgânica com a polícia que ossadas da vala de Perus, a rmam que os dois tinham os
se viu forçado o IML a partir de 1965, mesmo ano da “dentes bem conservados”. Hoje, respondendo a um
entrada em operação do SNI. Todo aparato de perícia questionário feito pela Unicamp, párea ajudar na locali-
técnica (IML e Polícia Cientí ca) cou atrelado e zação, a família informou que ambos usavam dentadu-
subordinado ao sistema de repressão policial. Com o ras superiores.
endurecimento da repressão política, a pressão passou a Flavio Molina teria sido morto no dia 07 de novem-
ser diretamente do Dops e DOI-Codi. bro de 1971 e enterrado no dia 09. Presos políticos e a
Todos os laudos examinados apresentam no quesi- comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos
to 4 (se a morte foi produzida por meio de veneno, fogo, testemunharam que Flavio foi preso e morto sob tortu-
explosivo, as xia ou tortura ou por meio cruel) uma ra. Uma foto do corpo de Flavio encontrada no IML
negativa ou a a rmação de prejudicado. Um corpo mostra hematoma no ombro, que não é descrito. Num
encontrado em um terreno baldio, com esmagamento laudo de apenas 35 linhas o legista Renato Capelano
de crânio e visíveis sinais de torturas, inclusive marcas descreve apenas a trajetória dos projéteis, sem nada
de algemas nos pulsos, descrito pelo legista em detalhes, dizer como estava seu corpo.
recebe uma negativa no quesito 4. É importante lembrar Foi graças a um dos poucos negativos restantes no
que nem na época, nem em outra ocasião qualquer a acervo que o militante José Maria Ferreira de Araújo, foi

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reconhecido e identidade falsa identi cada. Sem o cemitério de Perus dia 06/11/71 às 10 horas. Deixando
negativo e foto ampliada não seria possível fazer esse de lado o fato de que o registro do IML indica entrada de
reconhecimento e identi cação. corpo antes da ocorrência da morte, o certo é que houve
A di culdade dos familiares de desaparecidos em menos de 18 horas entre a morte e o enterro do corpo.
obter acesso aos arquivos do IML, durante mais de vinte Os corpos saíam do IML em camburões conduzi-
anos representa bem o engajamento da instituição com dos por um policial militar, geralmente o PM Miguel
os órgãos de segurança do Estado. Fernandez Zaniello, que também era declarante dos
A falta de compromisso com a verdade dos pro ssi- óbitos.
onais engajados no acobertamento das mortes ocorri- O cuidado em manter sigilo sobre a saída dos cor-
das nas dependências dos órgãos repressivos ca clara pos pode ser comprovado a partir de documentos ane-
no depoimento do legista Harry Shibata, quando a rma xados aos autos sobre corpos que teriam outro destino,
que não tinha a obrigação de fazer o corte de crânio do fora de São Paulo. No dia 15 de junho de 1972, o delega-
examinado como havia declarado no laudo. Assume a do titular da delegacia Especializada de Ordem política,
falsidade ideológica sobre o que assinou, sem nenhum Alcides Cintra Bueno Filho, em ofício ao então diretor
constrangimento. A função do legista, conforme outro do IML, Arnaldo Siqueira registra: “Esta Delegacia
trecho do seu depoimento “a princípio”, é apenas de ver, Especializada de Ordem Política com a aquiescência
apenas descrevemos aquilo que estamos vendo. Fazia dos órgãos de segurança, autoriza a retirada do Necro-
parte do tratamento diferenciado o prazo de permanên- tério desse Instituto e o transporte do corpo de Marcos
cia dos corpos nas geladeiras. A simples assinatura de Nonato Fonseca... para o cemitério São João Batista, RJ,
um delegado do Dops ou da 36a delegacia nas requisi- onde será sepultado no jazigo da família. Outrossim,
ções de exame era su ciente para que os corpos fossem esclareço a Vossa Senhoria que o caixão deverá ser
liberados mais rapidamente, sem procedimento normal lacrado de acordo com as normas já estabelecidas”.
de manter o corpo por três dias à espera dos familiares. Em radiotelegrama, o Delegado Alcides Cintra
O ex-diretor do IML, Antonio José de Melo, infor- avisa o diretor do Dops do Rio de Janeiro que “os órgãos
mou que a norma era de manter o corpo por 72 horas, de segurança desta Capital autorizam a remoção do
Jair Romeu mostrou conhecer essa norma ao a rmar corpo de Marcos – solicito a V. Sa. Não permitir qual-
que “a lei determina, que os corpos, com exceção de quer manifestação pública de caráter político no trans-
calamidades, terão que permanecer 72 horas em câma- correr dos funerais. Outro radiotelegrama do Dr. Alci-
ra frigorí ca, antes de serem enterrados”. Durante a des foi passado ao Dops carioca referente a Ana Maria
década de 70, Jair Romeu enviava os corpos dos presos Navinovic, que havia sido morta juntamente com Mar-
políticos para os cemitérios com uma média de 24 horas cos e Iuri Xavier Pereira no bairro da Moóca-SP.
após a morte. Alguns casos que comprovam isso são os
de Luiz José da Cunha, Manoel Lisboa de Moura, Ema- 4. O aparato repressivo
nuel Bezerra dos Santos, Denis Casemiro e Gelson
Reicher. O corpo de José Maria Ferreira de Araújo pas- 4.1 O controle
sou menos de 22 horas no necrotério. O corpo de Joa- Em vários momentos nesta CPI, depoentes e docu-
quim Alencar de Seixas, morto o cialmente às 13 horas mentos aludiram a existência de poderosas comissões
do dia 16 de abril de 1971, passou pelo IML e foi levado de investigações. A CGI, a CEI, a CMI – sempre uma
para o cemitério de Perus às 9 horas do dia seguinte. comissão determinada pelo chefe do executivo, mas cm
Teria sido enterrado após 20 horas de sua morte. poderes de judiciário, atuando nas diferentes instânci-
O militante Francisco José de Oliveira, enterrado as: a CGI – Comissão Geral de Investigações, nacional,
sob nome de Dario Marcondes, teria sido morto no dia a CEI – Comissão Estadual de Investigações e a CMI –
05/11/71, às 16 horas e segundo o IML seu corpo deu Comissão Municipal de Investigações.
entrada no dia anterior (dia 04/11/71), saindo para o A CGI foi criada em abril de 1964, para encaminhar

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controlar todas as atividades de “informação e contra-
Montou-se uma rede de informações informação”, especialmente de interesse de segurança
para detectar qualquer a vidade nacional. O chefe da SNI era designado pelo presidente
considerada contrária ou inconveniente e tinha prerrogativa de ministro de Estado.
aos interesses do regime Com sua criação montou-se uma rede de informa-
ções para detectar qualquer atividade considerada
contrária ou inconveniente aos interesses do regime.
investigações sumárias estabelecidas no primeiro Ato Ela se estendia aos ministérios civis, através das Divi-
Institucional. Dela resultaram, em apenas dois meses, sões de Segurança e Informações (DSI) de cada minis-
378 cassações, 122 reformas compulsórias de o ciais das tério (decreto-lei 200/67), com diretores nomeados
Forças Armadas, 10 mil demissões de servidores públi- pelo Presidente, sendo sempre o ciais das Forças
cos, entre 5 mil investigações abertas que atingiram 40 Armadas ou civis diplomados na Escola Superior de
mil pessoas (Arquidiocese de São Paulo, 1990, p. 61). Guerra (decreto-lei 348/68).
Esta comissão era formada por três membros Essa rede permitia o controle estrito e cotidiano
designados pelo presidente da República e as sanções pelos militares de cada ação dos servidores públicos e
podiam ser estabelecidas por decreto presidencial. Ou colocou uma gigantesca máquina de Estado a serviço
do governador, no caso de servidores estaduais e muni- da ação repressiva.
cipais (decreto 53.897/64). A CPI registra ainda menções ao Grupo Perma-
Esta CPI registra menções sobre a CGI e à CEI, já nente de Mobilização Industrial (GPMI), um organis-
fundamentadas no Ato Institucional nº 5 atuando na mo que reunia militares e empresários. Seu objetivo
década de 70 – menções feitas pelo Sr. Josué Teixeira dos seria o de encaminhar a modernização do equipamento
Santos, Diretor do IML, que teria sido processado nes- bélico das Forças Armadas, adaptando-o as novas exi-
tas instancias, por trair segredos da revolução dentro gências colocadas pela Doutrina de Segurança Nacio-
daquele Instituto. nal. Mas as denúncias são de que os empresários do
Percebe-se que as irregularidades voltadas ao ocul- GPMI teriam contribuído com dinheiro ou equipa-
tamento de corpos eram acompanhadas de perto por mento para os órgãos de segurança, especialmente para
estas comissões. a Operação Bandeirantes (Oban), instaurada em 1969
A CPI registra também depoimento sobre uma (depoimento de Antonio Carlos Fon).
CMI, na gestão do prefeito Paulo Maluf, atuando contra
a chamada subversão em conjunto com o Dops e DOI- 4.2 Da Oban ao DOI-Codi
Codi, de forma ilegal e criminosa. E entre 1968 e 1969 que a atividade repressiva se
Mas essas comissões não era o único aparato de intensi ca como resposta às mobilizações de protesto
controle da máquina pública ou de ação anti- contra o regime e as organizações de esquerda, princi-
subversiva. A repressão começa com a própria instaura- palmente aos grupos de luta armada.
ção do regime. Segundo o professor Hely Lopes Meirelles, Secretá-
Datam de 1964 os primeiros assassinatos pratica- rio de Segurança Pública em São Paulo na época em
dos contra os opositores do regime (11 pessoas), e os entrevista ao jornalista Antonio Carlos Fon, no livro
dois primeiros desaparecimentos: José Alfredo e Pedro “Tortura”, as ordens para montagem de um organismo
Inácio de Araújo, membros das Ligas Camponesas de que reunisse elementos das Forças Armadas, da polícia
Sapé na Paraíba (Comitê Brasileiro pela Anistia/RJ, estadual – civil e militar – e da Polícia Federal, para o
1984, p. 116). trabalho especi co de combate à subversão, foram
Logo após a instituição da CGI, e criado o SNI – dadas ao nal de 1968 (MEIRELLES, apud. FON, 1979,
Serviço Nacional de Informações (13 de junho de p. 18).
1964), órgão da presidência com a incumbência de A ordem teria sido transmitida segundo mesma

79
fonte, pelo Ministro da Justiça, professor Luiz Antonio Dops entre 1968 e 1970, conforme seus depoimentos. É
da Gama e Silva, numa reunião dos Secretários de Segu- o caso do delegado Edsel Magnotti (1969), Gilberto
rança em Brasília, e pelo general das Polícias Militares. Alves da Cunha (1968), Samuel Pereira Araújo (1970),
A reunião, chamada “Seminário de Segurança Interna”, do escrivão Armando Panichi Filho (comissionado na
discutiu toda uma estratégia de combate aos opositores SSP em 1970), Josecyr Cuoco (1970) Dulcídio Vander-
do regime. lei Boschilia. Também o delegado Sergio Fleury teria
A Oban foi lançada o cialmente em junho de 1969, sido transferido nesse período para o Dops. A Oban foi
marcando o início de uma escalada repressiva que seria instalada na sede da Polícia do Exército e posteriormen-
responsável opor centenas de mortes, pelos meios mais te na 36ª Delegacia de Polícia, na Rua Tutóia, em São
bárbaros. Paulo. Muitos anos mais tarde, já em pleno período de
Teria participado do ato de lançamento da Oban, redemocratização do país, a ocupação de parte do espa-
em São Paulo o governador da época, Roberto Costa de ço utilizado pelo DOI-Codi seria o cializada através de
Abreu Sodré, o Secretário de Segurança Pública, Hely um decreto do então governador Paulo Salim Maluf,
Lopes Meirelles, o general José Canavarro Pereira, que autorizava o acesso a título precário de terreno
comandante do II Exército, e os comandantes do VI situado na mesma área (decreto 13.757/79).
Distrito Naval e da 4a Zona Aérea (FON, 1979, p. 15). A estrutura do DOI-Codi (Departamento de Ope-
Em depoimento a CPI o ex-governador Abre Sodré rações e Informações – Centro de Operações de Defesa
negou qualquer envolvimento com a Oban. Interna) foi o cializada como parte da estrutura do
Foram juntados aos autos a pesquisa realizada pelo Exército (Diretriz Presidencial de Segurança Interna,
“Projeto Brasil: Nunca Mais” com a informação que a de janeiro/70).
Oban se nutria de verbas fornecidas por multinacionais Em cada jurisdição territorial, os Codi detinham o
como o grupo Ultra, Ford, General Motors e outros. Por comando efetivo sobre todos os organismos de segu-
outro lado, pelo que apuramos a estrutura fundamental rança existentes na área, tanto das Forças Armadas
em que a Oban se apoiava era também viabilizada por como dos policiais estaduais e federais. Os DOI-Codi
recursos estaduais, tanto em termos de efetivos como contavam com dotações orçamentárias regulares, o que
das próprias instalações de sede da operação, como permitia uma ação repressiva muita mais aparelhada.
veremos a seguir. Estes órgãos estavam diretamente submetidos ao
A criação da Oban prepara as condições para mon- comando de cada arma. O major Brilhante Ustra que foi
tagem de uma estrutura que seria o cializada em junho intimado a depor e não compareceu diz em seu livro
de 1970 através do DOI-Codi. “Rompendo o Silêncio” (1987, págs. 125, 126, 135 e 142)
Nesse período, segundo Antonio Carlos Fon, um o seguinte:
grande contingente de policiais do estado com prática que os Codi tinham atribuição de garantir a coor-
de tortura, especialmente da Divisão de Crimes Contra denação e a execução do planejamento das medidas de
o Patrimônio, então chamada de Delegacia de Roubos “Defesa Interna”, nos diversos escalões do Comando, e
teria sido transferida para o Departamento de Ordem de viabilizar a ação conjugada da Marinha, Aeronáuti-
Política e Estadual da Polícia Civil, e do Dops para a ca, SNI, Polícia Federal, Polícia Civil e Polícia Militar. O
Oban. comando das ações cava a cargo dos DOI. que o DOI-
Essa transferência, feita sem qualquer o cialização, Codi de São Paulo, de maior efetivo, operava com 250
é con rmada pelo depoimento do delegado Mauricio homens, sendo 40 do Exército. Ou seja, era uma estru-
Henrique Guimarães Pereira, responsável pela deses- tura do Exército, sob a direção dos militares, mas evi-
truturação do Dops, efetuada em 1983, e pelo delegado dentemente montada à custa das polícias estaduais.
Davi Santos Araújo. que foram cedidas ao DOI metade das dependên-
É signi cativo que quase todos os policiais convo- cias do prédio da 36a delegacia, além da construção de
cados a depor na CPI tenham sido transferidos para o um prédio de dois andares na mesma área, com recur-

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sos recebidos do Governo do Estado. O combustível era che ada pelo delegado Alcides Cintra Bueno. Era desta
quase totalmente fornecido pela Secretaria de Seguran- área que partiam os corpos e as orientações para o IML.
ça Pública. A divisão de ordem social era che ada pelo delegado
que para as chamadas “buscas”, o DOI-Codi conta- Fleury e contava com várias delegacias (Josecyr Cuoco),
va com todo um aparto que incluía até o uso de disfarces além do pessoal do cartório, interrogatório, busca,
como uniformes da TELESP. diligência e análise.
A relação con ituosa entre o delegado Fleury e o
4.3 Dops e DOI-Codi DOI-Codi também é registrada nesta CPI porque esta-
O Dops de São Paulo e o DOI-Codi foram objetos ria relacionada à existência de sítios clandestinos para
de especial atenção desta CPI, por terem sido dois ins- prisões, interrogatórios, torturas e desaparecimentos,
trumentos de absurda autonomia na transgressão de conforme denúncias de vários ex-presos. Esses sítios
direitos e na produção de desaparecimentos e, ainda, teriam como objetivo manter os presos interrogados
porque se apurou que partiram de lá as orientações que pelo Dops fora do alcance do DOI-Codi e vice-versa.
alteraram procedimentos no IML. Embora as ações do Dops e DOI-Codi fossem com-
Dops e DOI-Codi agiam articuladamente, embora plementares, sendo o DOI-Codi responsável em geral
em muitos momentos as duas estruturas concorressem pelos procedimentos mais violentos de busca e interro-
em termos de ação repressiva. O delegado Josecyr gatório, há vários relatos que indicam ter havido dispu-
Cuoco traz elementos que de nem bem a integração tas entre os dois organismos, tanto pelo mérito das pri-
existente. Enquanto o DOI-Codi se incumbia das pri- sões como pela obtenção das informações relevantes.
sões e dos interrogatórios (obtidos sempre sob tortura), Em seu depoimento, Josecyr Cuoco relata a discor-
o Dops, atuando também em prisões e obtenção de dância, entre policiais, sobre o fato das ações que deve-
informações (também sob tortura), servia ainda para riam ser efetuadas pela polícia serem comandadas por
legalizar as irregularidades e formalizar o inquérito militares, o que teria ocasionado inclusive a saída do
policial. Dops dos policiais Rubens Tucunduva, Ivahir de Freitas
Era no Dops que os depoimentos obtidos no DOI- Garcia, Benedito Nunes Dias: “O tratamento não era
Codi eram o cializados e que, eventualmente, a prisão mais cordial de lado a lado”, lembra o delegado. Josecyr
era assumida com a comunicação das autoridades judi- Cuoco mencionou, também, o episódio que levou ao
ciais e a suspensão de incomunicabilidade do preso. afastamento do delegado Sergio Paranhos Fleury do
O Dops tinha divisões de ordem política, de ordem Dops, em 1970. Em fevereiro de 1970, foi preso pelo
social, de informações, de explosivos, e uma divisão Dops Chizuo Osawa, militante da VPR que se supunha
fazendária. A divisão de informações era comandada pudesse indicar a localização de um centro de treina-
pelo delegado Romeu Tuma e era responsável pelas mento de guerrilha no Vale do Ribeira. O DOI-Codi
informações sobre ocorrências como assaltos a banco exigiu que o preso lhe fosse entregue, invadindo o Dops.
ou justiçamentos. A divisão de ordem política era res- Fleury, no entanto, teria agredido Osawa brutalmente,
ponsável pelas áreas parlamentar e estudantil e era quebrando suas costelas com os pés para que não tivesse
condição de ser interrogado no DOI-Codi (Jornal Em
Tempo, p. 5, 1978).
O Dops de São Paulo e o DOI-Codi O delegado Fleury foi, então, trazido para o 41º
foram objetos de especial atenção Distrito Policial, na Vila Rica, Zona Leste de São Paulo.
desta CPI, por terem sido dois Mesmo aparentemente descartado, houve um acordo
instrumentos de absurda autonomia na com o II Exército pelo qual Fleury continuaria a atuar
transgressão de direitos e na produção no combate à subversão (depoimento de Josecyr Cuo-
de desaparecimentos. co). Essa versão é con rmada pelo depoimento do ex-
preso político Reinaldo Morano, que relata ter sido

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preso no centro da cidade, na Ladeira da Memória, em
16/08/70, e levado até a 41ª delegacia, e então torturado De acordo com levantamento do
por Fleury, antes de ser transferido para o DOI-Codi. Comitê Brasileiro da Anis a, não há
Ou seja, o 41º distrito teria se tornado mais um aparelho registro em 1974 de mortes
de repressão política. reconhecidas pelo regime, mas há
A disputa, assim, não se desfez com o afastamento vários registros de desaparecimentos
de Fleury do Dops. Em 21 de agosto de 1970, foi preso
Eduardo Leite, no Rio de Janeiro (CBA, 1984, p. 33),
pela própria equipe do delegado Fleury (Josecyr Cuo-
co). Depois de torturado no Cenimar (Centro de Infor- cada em 1974, no sentido de uma ação mais clandesti-
mações da Marinha), foi transferido para o 41º Distrito na por parte da repressão.
Policial de São Paulo – delegacia de Fleury. Depois Nesse período teria surgido em São Paulo o chama-
voltou ao Rio de Janeiro e foi transferido para o Dops. A do Braço Clandestino da Repressão (depoimento de
permanência de Eduardo Leite na 41ª delegacia é con- Antonio Carlos Fon). O aparato montado no DOI-Codi
rmada pelos depoimentos de Reinaldo Morano e e outros órgãos clandestinos passaram a ser utilizados
Rodolfo Konder. Segundo telex transmitido pelo Cen- também por grupos paramilitares. O depoente Afonso
tro de Informações do Exército, no Rio de Janeiro, ao IV Celso Nogueira Monteiro relata que, quando preso em
Exército, em Recife, a prisão de Eduardo Leite foi man- um sítio, lhe disseram estar nas mãos do Braço Clandes-
tida em sigilo até o dia 23 de outubro. O próprio docu- tino da Repressão.
mento menciona que a versão dada à imprensa foi de De acordo com o levantamento do CBA, não há
que não houve fuga de Eduardo Leite nesse dia. Segun- registro em 1974 de mortes reconhecidas pelo regime,
do o documento do Comitê Brasileiro pela Anistia, mas há vários registros de desaparecimentos. Só em São
Eduardo Leite foi retirado de sua cela no dia 27 de outu- Paulo há os casos, pelo menos, de Ana Rosa Kucinski
bro de 1970, o que é con rmado por Reinaldo Morano. Silva e Wilson Silva (depoimento de Bernardo Kucins-
Por ocasião do sequestro do embaixador suíço realiza- ki), David Capistrano da Silva (depoimento de Maria
do a 7 de dezembro, Eduardo foi incluído numa lista de Augusta de Oliveira), José Roman (depoimento de
nomes a serem libertados. No dia 8 de dezembro foi Mercedes Roman Ariguri), Ieda Santos Delgado, Issami
divulgada a sua morte. Segundo um policial conhecido Nakamura Okama, João Massena Melo, Luiz Inácio
por Carlinhos Metralha (Dossiê do CBA), nesse inter- Maranhão Filho e Walter de Souza Ribeiro.
valo, Eduardo Leite teria permanecido em um sítio de A ação clandestina desses grupos se prolongaria até
propriedade de Fleury e, como prêmio pela sua prisão, o os anos 80, com conhecidos casos de ataques aos jornais
delegado teria sido novamente transferido ao Dops. da imprensa alternativa, o atentado à OAB que causou a
Os sítios também foram utilizados para atividades morte da secretária Lyda Monteiro, o sequestro do
militares, como veri cou-se no Sítio 31 de Março de jurista Dalmo de Abreu Dallari por ocasião da visita do
1964, em Parelheiros, de propriedade de Joaquim Papa e o caso do Riocentro, envolvendo militares.
Fagundes (que não chegou a ser ouvido porque morreu
no transcorrer da CPI), que era cedido para treinamen- 4.4 A colaboração em São Paulo
tos antiguerrilha, conforme provas recolhidas nas últi- A ação repressiva desencadeada em todo o período
mas escavações feitas pela equipe do Delegado Tinti, do analisado era comandada pelos militares, mas contou
Departamento de Comunicação Social, junto com a com a conivência e a colaboração de autoridades civis.
CPI e com funcionários do Serviço Funerário Munici- Em nível estadual, contou com a participação do
pal. Nessas escavações foram encontrados objetos per- governador Abreu Sodré, que participou do ato de lan-
tencentes ao Estado Maior das Forças Armadas. çamento da Oban em 1969, do Secretário de Segurança
É importante observar que a ação repressiva é modi- Hely Lopes Meirelles, que cedeu à Oban os policiais civis

82
e militares de São Paulo, e de seu substituto, o Secretário Paulo Maluf, onde se declarariam dirigentes do PCB, o
de Segurança Pública, Olavo Viana Moog, o governador que não eram, onde denunciariam 162 nomes como
Laudo Natel, que deu continuidade à colaboração com o seus seguidores na associação.
DOI-Codi, nos termos já descritos, que participou da Esse processo foi encaminhado quando Armando
homenagem póstuma pomposa feita ao cabo Sylas Sampaio Fonseca, chefe de gabinete do Prefeito Paulo
Bispo Feche, em 21 de janeiro de 1972 (USTRA, 1987, p. Maluf acusa os diretores da Associação de serem “ele-
168). Essa conivência e colaboração ativa também se mentos notoriamente subversivos” e sugere que o caso
veri cará no IML, nas Comissões de Investigações e na seja levado à CMI para que possa ser apreciado “não só
distribuição de honrarias pelo regime. no campo da subversão, como também da corrupção”.
A medalha da Ordem do Grande Paci cador foi Em despacho feito no dia 22 de janeiro de 1970, o prefei-
outorgada tanto aos médicos legistas Harry Shibata e to Paulo Maluf determinou o encaminhamento da
Isaac Abramovitch, ao proprietário do Sítio 31 de denúncia à CMI. No processo 26067/70, consta que o
Março de 1964, Joaquim Fagundes, e ao Sr. Paulo Maluf. depoimento foi tomado nas dependências do Dops.
Em nível municipal, a colaboração se espelha no O Sr. Bernardo Ribeiro de Moraes, relator da CMI,
uso do Serviço Funerário e também nas honrarias aos con rmou à CPI competência atribuída à CMI de
mortos da polícia. Ficou registrado nesta CPI o caso da apurar subversão, e a atuação desta em cerca de dez
morte da agente Stela Borges Morato, de 21 anos, em 4 processos administrativos. A denúncia podia ser for-
de novembro de 1969, durante o cerco a Carlos Marig- mulada por qualquer cidadão e era encaminhada atra-
hella. Stela foi sepultada com honras e despesas pagas vés do Secretário de Negócios Internos e Jurídicos. O
pelo gabinete do então prefeito Paulo Maluf. Seu caso depoente era ouvido sem assistência de advogados e o
foi apresentado como morte em tiroteio e foi divulgado processo era encaminhado de volta ao Secretário, para
pela imprensa como “heroicamente tombada em cum- abertura ou não de processo. De acordo com o próprio
primento do dever no combate à subversão”. Nesta CPI, decreto 8181/69, se o depoente não comparecesse, o
o então delegado Edsel Magnotti trouxe informações presidente da CMI podia requerer que fosse conduzido
sobre o pretenso tiroteio, no qual não houve tiros por pela polícia, sem qualquer exigência de ordem judicial.
parte de Carlos Marighella. Depreende-se que Stela Segundo o depoente Bernardo de Moraes, Duílio
Morato foi morta pela própria polícia. Domingos Martino foi preso pelo Dops e sua prisão
Paulo Maluf também criou a CMI – Comissão comunicada à CMI através do Del. Alcides Cintra Bue-
Municipal de Investigações, em 20 de maio de 1969 no. A CMI então foi ao Dops para “concluir um proces-
(decreto 8181/69), com a nalidade de apurar acusa- so administrativo”, segundo palavras do depoente.
ções de “corrupção ou subversão” e que atuou em En m, a CMI, um instrumento criado com base no
mútuo entendimento com os órgãos de repressão. Ato Institucional n° 5, não só constituía uma legitima
O engenheiro Duílio Domingos Martino, que foi auto-atribuição (por parte do executivo) de competên-
presidente da Associação dos Servidores Municipais, cias próprias do Judiciário, como de fato tinha uma
disse à CPI que foi preso pelo Dops no dia 19 de março função auxiliar à do Dops e do DOI-Codi, no sentido de
de 1970, e que foi interrogado pela CMI, em março de construir acusações e intimidar os acusados com o
1970, dentro do Dops, após sessões de tortura, e que objetivo da obtenção de depoimentos forjados. Forma-
outro membro da Associação, Francisco Delmiro da por membros escolhidos diretamente pelo prefeito,
Rodrigues Molina, foi ouvido mesmo enfartado, duran- as conclusões eram baseadas nas próprias acusações.
te duas horas, com um médico ao lado. Foi pedido a Como o próprio depoente reconhece, a comissão não
Duílio, Rubens Duprat e Antonio Custódio que assinas- tinha qualquer condição de apurar subversão.
sem cinco documentos onde renunciariam aos cargos O ex-delegado geral do governo do Estado de São
da Associação, onde declarariam que usavam serviços Paulo, Álvaro Luz Franco Pinto, informou ter sido mem-
da entidade ilicitamente, onde enalteceriam o prefeito bro do CGI e sobre esse período ele relevou à CPI que

83
desenvolvendo-se em diversos locais, extrapolando,
A atuação do DOI-Codi não se inclusive, os limites do estado de São Paulo. Onde hou-
subordinava a qualquer mandamento vesse algum militante ou ativista político de oposição ao
legal ou limites jurisdicionais. Onde regime, ou simplesmente algum suspeito, para lá se
houvesse algum militante ou a vista de dirigiam os agentes, para aprisioná-lo e submetê-lo a
oposição ao regime, ou algum suspeito, interrogatório e tortura física. As prisões eram decor-
rentes de ordens do Comando do DOI-Codi e dispen-
para lá se dirigiam os agentes, para
savam maiores formalidades legais (Davi dos Santos
aprisioná-lo e submetê-lo a Araújo).
interrogatório e tortura Con gurando sequestros, na medida em que
inexistia ordem judicial ou legal, essas prisões, em sua
“sempre me prestigiaram nessa Comissão do AI-5, quase totalidade, não eram comunicadas à autoridade
como uma pessoa de bom senso, de equilíbrio, para judicial.
examinar os processos e evitar que se cometessem Pela Lei de Segurança Nacional, os presos poderi-
injustiças... Todo mundo sabia que o direito de defesa am car incomunicáveis por dez dias (Art. 59 do decre-
era ali muito restrito... Os documentos que eram infor- to-lei 898/69), mas permaneciam sem poder encontrar-
mativos nós enviávamos para o Ministério da Justiça na se com seus familiares ou defensores por meses e, em
época. Deve ter sido tudo incinerado porque foi uma vários casos, as prisões eram constantemente negadas.
fase em que realmente se procurou virar a página”. Felícia Mardini, mãe de Isis Dias de Oliveira, desa-
parecida, depôs a CPI, contando que, em fevereiro de
5. A ação repressiva 1972, seu marido recebeu o telefonema de uma moça
dizendo que Isis fora presa no Rio de Janeiro pelo I Exér-
5.1 As prisões cito. A advogada Eni Raymundo Moreira, contratada
Os elementos presentes nos autos demonstram pela família, impetrou um habeas corpus em favor de
que, dentro de todo o aparato repressivo estruturado Isis, mas sua prisão foi negada. Ao todo foram cinco
pelo Regime Militar a partir de 1964 e, notadamente, a habeas corpus. A partir do terceiro a resposta era: Isis de
partir de 1969, as prisões representam uma etapa espe- Oliveira encontrava-se foragida.
cial, cujos métodos estavam fora de qualquer princípio Dois meses depois uma pessoa lotada no serviço de
moral, ético ou jurídico. O delegado Davi dos Santos telex do Exército contou que Isis encontrava-se inco-
Araújo, ex-integrante da Oban e do DOI-Codi – onde municável na Ilha das Flores. Mesmo assim, sua prisão
era conhecido pelo codinome de “Capitão Lisboa” – continuou sendo negada. Todos os depoimentos das
deixou claro em seu depoimento que o aparato repressi- pessoas que sobreviveram a essas prisões deixam claro
vo, emergiu de uma situação extra-legal, para uma que os processos de tortura se iniciavam imediatamente
situação o cial, a partir da transformação da Oban em após as detenções. Ver capítulo sobre tortura.
DOI-Codi, trazendo nessa tentativa de institucionali- Essa violência não se restringia somente aos ativis-
zação todos os esquemas e artifícios necessários a atua- tas ou militantes. O delegado Davi Araújo, o “Capitão
ção de um órgão clandestino. Lisboa”, con rma em seu depoimento que a ação
A começar pela utilização de nomes de guerra, repressiva, as prisões, se desencadeavam sobre qual-
pelos seus agentes, passando pelas detenções sem quer suspeito, ao exempli car os métodos de busca, que
ordem legal e incluindo uma atuação que desconhecia envolviam qualquer pessoa que estivesse no local tido
limites, o aparato repressivo tinha que contar com agen- como suspeito. Esse exemplo utilizado pelo delegado
tes clandestinos em razão de seus métodos ilegais. foi tristemente con rmado em diversos depoimentos.
A atuação do DOI-Codi não se subordinava a qual- A. Ivan Seixas – declarou que sua mãe e suas irmãs
quer mandamento legal ou limites jurisdicionais, foram presas no DOI-Codi, na noite do mesmo dia em

84
que ele e seu pai foram detidos; autos é a face mais brutal das ações desencadeadas pelo
B. Antonio Carlos Fon – preso pelos agentes que regime.
buscavam seu irmão, Aton Fon Filho, relatou que na É considerada pela Constituição Federal crime
mesma operação, foi presa toda sua família, com exce- ina ançável e insuscetível de graça ou anistia (Art. 5º,
ção de sua irmã de 2 anos de idade, deixada sozinha em inciso XLIII).
casa; É condenada pela Constituição Universal dos Direi-
C.Maria Amélia de Almeida Teles – informou que, tos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, na
por ocasião de sua prisão, seus dois lhos menores de 5 Assembleia Geral da ONU. É condenada pelas “Regras
e 4 anos foram detidos também pelos agentes do DOI- Mínimas Comuns para o Tratamento de Presos”, aprova-
Codi. das em 30/08/55 pelo Primeiro Congresso das Nações
O mesmo delegado Davi Araújo a rma que, fre- Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento de
quentemente, não havia qualquer roteiro para os inter- Réus. É condenada pela Convenção contra a Tortura e
rogatórios. outros Tratamentos ou Castigos Cruéis, Desumanos ou
As populações rurais do Vale do Ribeira e da região Degradantes, aprovada pela Assembleia Geral da ONU
do Araguaia, segundo declarações de EDMAURO em 10/12/84.
G O P F E R T, A R I S T O N L U C E N A , D O W E R Sempre foi acobertada, com vários cuidados (do
CAVALCANTI e ELZA MONERAT, também foram isolamento aos laudos necroscópicos) enquanto prática
vítimas de prisões ilegais, torturas físicas e bombardeios dos órgãos de repressão. E é sistematicamente negada
aéreos, inclusive com bombas napalm. pelos policiais e militares acusados de praticá-la.
O método de aprisionamento de perseguidos polí- Mesmo aqueles que, em depoimento a CPI, declara-
ticos incluía, ainda, a manutenção em cárcere privado, ram ter conhecimento de que a tortura era praticada
conforme se observa nas declarações de AFONSO contra os presos políticos, negaram qualquer envolvi-
CELSO NOGUEIRA MONTEIRO e MAURICIO mento direto com essa prática.
SEGALL, mantidos presos em propriedade rural, pró- O escrivão Samuel Pereira Borba alega desconheci-
xima de São Paulo. mento da prática de tortura, e justi ca “eu não ia a carce-
O Dossiê Brasil Nunca Mais registra diversos epi- ragem”.
sódios de roubo e extorsão em que estiveram envolvi- O depoimento de Edsel Magnotti, quando pergunta-
dos os agentes dos órgãos de segurança (Ed. Vozes, 24. do sobre o estado físico de Idibal Piveta durante seu depo-
Edição, p. 81 e 82). imento, diz o seguinte: “Ele esteve preso (...) até um fato
Em seu depoimento, Ivan Seixas declara que sua muito aborrecido. Eu z o inquérito muito constrangido”.
casa foi invadida e além do material considerado subver- O depoente Josecyr Cuoco, a respeito da tortura diz
sivo foram subtraídos dinheiro, relógios, camas, fogão, que “não haverá regime forte que não use a tortura”. Mas
geladeira e foi sacado todo o dinheiro que havia em uma nega que tenha presenciado práticas de tortura.
conta bancária fruto da venda de um imóvel da família, O depoente Erasmo Dias a rma: “Não tenho nada a
no Rio Grande do Sul. ver com o que outros zeram”, e insiste em que condena o
Nos registros da pesquisa BNMM, constam 7.367 uso da violência física.
nomes de pessoas atingidas pela ação repressiva. Desse O depoente Davi dos Santos Araújo a rma: “A minha
total, somente 295 casos foram comunicados no prazo equipe não participava de tortura”, reconhecendo a sua
legal, 816, fora do prazo e 6.256 não foram comunicados. existência.
O depoente Dulcídio W. Boschilia coloca: “Nós
5.2 A tortura sabíamos que existiam excessos, todo mundo sabia (...).
A prática de tortura, denunciada em vários depoi- eu nunca torturei ninguém, feliz ou infelizmente (...).
mentos a CPI por ex-presos políticos que sobreviveram Existiam excessos. A mando de quem? Não foi a meu
à repressão e em outros documentos constantes nos mando”.

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O depoente Renato D´Andrea: “Fiz questão abso- pelo Exército, na Base Militar de Xambioá, durante a
luta de não participar, de não tomar conhecimento do Guerrilha do Araguaia;
que ocorria lá dentro, nunca pus os pés numa sala de L. Reinaldo Morano Filho – preso em São Paulo,
interrogatório”. conduzido ao 41º Distrito Policial, onde foi torturado,
No entanto centenas de ex-presos políticos são ocasião em que reconheceu, entre os detidos, seu com-
testemunhas da prática de tortura de que foram vítimas panheiro Eduardo Leite, o Bacuri.
– eles próprios ou companheiros de prisão e que foi a Os corpos de Eduardo Leite e Aurora Maria Nasci-
causa de centenas de mortes ocorridas nas prisões do mento Furtado foram entregues às suas famílias carre-
regime. gados de marcas de tortura (CBA, p. 54, p. 34).
Vejamos, os depoimentos seguintes:
A. Ivan Akselrud Seixas - preso aos 16 anos, junta- 5.3 Os métodos
mente com seu pai, Joaquim Alencar de Seixas. Ambos A tortura era parte substancial dos métodos inter-
foram barbaramente torturados já ao adentrarem o rogatórios, sendo praticada para obtenção de informa-
pátio do DOI-Codi, por mais de 30 policiais. Joaquim ções, humilhação, intimidação, aterrorização, punição
de Alencar Seixas veio a falecer em razão dessas torturas ou assassinato dos prisioneiros. Foi, no entanto, “igno-
no dia seguinte a sua prisão, conforme informações de rada” pela Justiça Militar, que aceitava como prova
sua esposa, que se encontrava numa sala, abaixo de depoimentos assinados durante as sessões de tortura,
onde se efetuaram as torturas; como se vê no caso da Ariston Lucena. Segundo o jor-
B. Afonso Celso Nogueira Monteiro – preso e con- nalista, Antonio Carlos Fon (1979, p. 48), promotores e
duzido para uma propriedade rural, nas imediações da membros de Conselhos de Sentença de Auditorias
cidade de São Paulo, onde foi violentamente torturado Militares assistiram ou participaram das sessões de
em um subterrâneo; tortura. E, pelo menos uma vez, dependências da Justi-
C. Rodolfo Konder – preso e torturado no DOI- ça Militar foram utilizadas pelos agentes do DOI-Codi
Codi, na época do assassinato, também sob tortura de para torturar prisioneiros. Nos processos da Justiça
Vladimir Herzog; Militar são inúmeros depoimentos de tortura nos cár-
D. Mauricio Segall – preso e torturado em uma ceres ou em prisões clandestinas.
propriedade rural nas imediações de São Paulo; Afonso Celso Nogueira Monteiro esteve em um
E. Maria Amelia de Almeida Teles – presa e tortura- sítio desconhecido onde sofreu espancamentos até
da no DOI-Codi, juntamente com Carlos Nicolau Dani- desmaiar, foi levado ao pau-de-arara, e sofreu choques
eli, cuja morte, sob tortura, presenciou; elétricos e o que descreve como uma espécie de afoga-
F. Crimeia Schimidt Almeida – presa e torturada mento: era mergulhado em um córrego onde havia
juntamente com Amélia Teles; muita pedra no fundo e, de vez em quando abriam
G. Elza Monerat – presa e torturada em São Paulo e algum reservatório, aumentando a vazão da água, e
posteriormente, conduzida ao Rio de Janeiro, onde foi fazendo-o rolar com os ferimentos sobre as pedras. Ele
submetida a novas torturas; conta que com o tempo passaram a dar-lhe alguma
H. Edmauro Gopfert – preso no Vale do Ribeira,
torturado já durante seu transporte para o DOI-Codi,
onde foi submetido a novas torturas; Centenas de ex-presos polí cos são
I. José Araújo Nóbrega – preso e torturado no Vale testemunhas da prá ca de tortura de
do Ribeira; que foram ví mas – eles próprios ou
J. Ariston Oliveira Lucena – preso em São Paulo, companheiros de prisão – e que foi a
torturado no Dops e na Oban, conduzido ao Vale do causa de centenas de mortes ocorridas
Ribeira, onde foi submetido a novas torturas;
nas prisões do regime
K. Dower Morais Cavalcanti – preso e torturado

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alimentação, inicialmente recusada por ser uma mistu- Rocha Merlino: “Ouvimos todas as torturas, vimos ele
ra de água e sal. sendo arrastado e vimos os torturadores fazendo chaco-
Era prática ainda a tortura de vários presos ao ta da reclamação que ele fazia, das dores que estava
mesmo tempo, de modo que a tortura de um fosse vista sofrendo (...) Na madrugada ele foi morto e foi arrasta-
ou ouvida pelo outro. O trecho a seguir é do depoimen- do para a cela forte” (Ivan Seixas).
to de Maria Amélia de Almeida Teles: “Recebi um soco A morte de Merlino teve duas versões o ciais, uma
no rosto e cai no chão e logo em seguida me agarraram e de suicídio e outra de acidente de carro (CBA, 1984, p.
me levaram para uma sala de tortura, sendo torturados 47). Crianças não eram poupadas do testemunho de
eu, Cesar e o Danieli, porque a gente ouvia os gritos dos tortura. Maria Amélia de Almeida Teles conta que seus
dois, assim como também eles ouviam os meus”. lhos foram levados a vê-la e ao seu marido após segui-
Ou o depoimento de Ivan Seixas: “No mesmo das sessões de tortura que deixaram com o corpo todo
momento da prisão, nos começamos a ser espancados roxo. Seu marido estava próximo a um coma diabético.
(...) por cerca de trinta pessoas (...) que estavam no “Levaram meus lhos e eles me viram – conta Maria
pátio, aguardando a nossa chegada. O espancamento foi Almeida – O tempo todo de tortura eu era despida, mas
de uma violência tão grande que a algema que ligava eles me colocaram a roupa, inclusive uma roupa toda
meu pulso ao de meu pai se quebrou e cada um foi parar suja e urinada. Lembro-me de meu lho menor, o
do outro lado (...). Imediatamente fomos levados para a Edson, que pensava que ali era um hospital e pergunta-
sala de tortura (...) eu numa sala e meu pai numa outra. va por que eu estava azul e o pai verde”. Criméia sua
Eu fui torturado num pau-de-arara e meu pai foi tortu- irmã, foi torturada quando estava no sétimo mês de
rado numa cadeira-de-dragão. Durante o dia todo, 16 gravidez: “Por recomendação de alguém que se dizia
de abril, fomos torturados” (Ivan Seixas). médico, eu não deveria ser pendurada no pau-de-arara,
No primeiro caso, veio a morrer Carlos Nicolau nem levar choque na vagina, nos olhos, no ânus, porque
Danieli, sendo que sua morte foi divulgada pelos órgãos poderia causar problemas visto que eu estava grávida”.
de segurança como tendo ocorrido durante “tentativa Os abusos sexuais eram parte integrante da ação
de fuga”. Sua morte foi testemunhada por Crimeia dos torturadores:
Schmidt de Almeida, conforme seu depoimento: “Me O caso de Sonia Angel Jones é um exemplo dos
levaram a vê-lo (Danieli) numa sala de tortura que extremos das violências sexuais praticadas. Seu pai
cava no andar térreo. Ele estava agonizante (...). Ele depôs a CPI, contando que Sonia foi torturada durante
tinha o corpo coberto de equimoses (...) e saia uma 48 horas, sendo estuprada com um cassetete da Polícia
espumasanguinolenta pela boca e pelo nariz”. do Exército, o que lhe provocou hemorragia interna.
No caso de Joaquim Seixas, pai de Ivan Seixas, a Novas torturas lhe foram aplicadas e seus seios foram
morte divulgada foi por tiroteio: arrancados. “As informações sobre torturas, o estupro, o
“A morte de meu pai foi ouvida e acompanhada arrancamento dos seios e os tiros de misericórdia nos
pela minha mãe – ela foi presa no dia 16, junto com foram prestados pessoalmente pelo Coronel Lopes da
minhas irmãs, pois quando eu falei onde morava, eles as Costa (...) e pelo advogado Dr. José Luiz Sobral” – conta
prenderam, minha mãe e minhas duas irmãs, Ieda e Iara João Luiz de Moraes.
– e elas ouviram, principalmente minha mãe porque Como intimidação e escarnio diante do sofrimento
estava presa na sala embaixo da sala de torturas (...) da família, o cassetete usado para o estupro foi depois
ouviu toda a movimentação e a gritaria dos policiais presenteado ao pai de Sonia por um militar.
perguntando: “Por que você fez isso? Ele deveria car Nem sempre a tortura deixava marcas físicas, embo-
mais tempo vivo” (...) ouviu o corpo sendo conduzido ra esses casos sejam inúmeros entre os que sobrevive-
para baixo e o viu pela janela. ram como testemunhou Duílio D. Martino, que teve os
Ivan Seixas também testemunhou a tortura de dentes serrados durante os interrogatórios.
Edgar Aquino Duarte, desaparecido, e Luiz Eduardo A tortura deixava também profundas marcas psi-

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eram ameaçados de morte, a exemplo das rajadas de
Os abusos sexuais eram parte
metralhadoras e tiros de revólver que passaram a
integrante da ação dos torturadores. pequena distancia do corpo e ouvidos dos depoentes. O
Nem sempre a tortura deixava marcas Cel. Erasmo Dias, autor dos disparos, ouvido pela CPI,
sicas. A tortura deixava também con rma essa prática e cinicamente se justi ca: isso não
profundas marcas psicológicas era tortura e sim sua forma de intimidação.
Ariston Lucena inclusive foi obrigado a deitar-se
numa cova aberta, onde havia sido sepultado o corpo
cológicas, como testemunhou Afonso Celso. do tenente Alberto Mendes Junior, enquanto o coronel
Há o caso da tortura feita sem violência física: Cri- metralhava a cova, contornando o seu corpo. Mais uma
meia depôs a CPI, lembrando que “Em Brasília (...) o vez o coronel diz que não se tratava de tortura, mas uma
que era mais utilizado era a tortura psicológica e nessa forma de fazer sua vítima sentir o cheiro da morte.
tortura eles tinham o que se chamava uma sessão de O depoente Ariston Lucena conta a história de seu
cinema, onde eram projetados slides dos mortos nas interrogatório:
guerrilhas (...) sacos semelhantes a esses que a gente viu “Depois da permanência minha na Operação Ban-
em Perus e (de onde) eram retirados apenas cabeças, os deirante eu voltei para o Dops para fazer o chamado
corpos eram decapitados” (Crimeia). cartório. Quer dizer, é um depoimento cartorial a m de
Mais macabro era o hábito dos órgãos de repressão ser inquerido posteriormente pela Auditoria Militar.”
de comunicarem o falecimento de determinada pessoa, Levado de helicóptero para o Vale do Ribeira, ele
embora ela ainda estivesse viva. Mais uma vez o depoi- conta que: “o tempo todo o coronel Erasmo Dias me
mento e João Luiz de Morais, ex-tenente coronel do ameaçou, dizendo que me jogaria do helicóptero se eu
Exército, pai de Sonia Maria de Morais Angel Jones, é não desse mais informações que levassem a prisão de
exemplo dessa forma de atuação. Em 1° de janeiro de mais companheiros”. Conta, ainda, que o coronel Eras-
1973 foi publicado pelo jornal “O Globo” a notícia da mo Dias o levou à prefeitura de Sete Barras, depois de
morte de Sonia. Seu pai veio a São Paulo, no DOI-Codi, várias ameaças, a rmando que iria matá-lo se não
pedir a liberação de seu corpo para que tivesse um zesse novo depoimento:
sepultamento cristão. Com sua movimentação para a “Ele se sentou lá com datilógrafo, me interrogando,
liberação do corpo, João Moraes foi preso por quatro e eu prestei esse depoimento para ele... esse depoimento
dias segundo o seu depoimento, só veio a entender sua foi que constou nos autos do processo da Auditoria
prisão tempos depois. Militar e foi em cima disso que eu fui condenado.”
Sonia naqueles dias estava viva e sendo torturada. Em muitos casos os torturadores se resguardam de
A prisão de seu pai foi para evitar interferência do pro- punição ou uma temida represália, usando codinome e
cesso de tortura e morte e para amedrontá-lo, bem capuzes ou disfarces, como a rma o depoente Davi
como a sua família. Araújo. Não foi objeto de trabalho desta CPI a apuração
Também a morte de Joaquim Seixas foi anunciada de lista de nomes de torturadores atuantes nos órgãos
pela imprensa, um dia antes de sua verdadeira morte. O de repressão, mas alguns nomes foram diretamente
depoimento do delegado Davi dos Santos Araújo e mais apontados em depoimentos de ex-presos como prati-
um desmentido da versão o cial, na medida em que cantes ou responsáveis pela prática de tortura: Davi dos
con rmou ter visto Joaquim Seixas na prisão, após a Santos Araújo (Ivan Seixas), Josecyr Cuoco (Reinaldo
data de sua suposta morte. Morano), Erasmo Dias (Edmauro Gopfert, Ariston
A ameaça ou a sugestão da morte também eram Lucena, José Araújo de Nóbrega), Sergio Paranhos
formas de tortura utilizadas para facilitar a obtenção de Fleury (Reinaldo Morano, João Luiz de Moraes), Carlos
informações. Edmauro Gopfert, Ariston Lucena e José Alberto Brilhante Ustra (Maria Amélia Teles,), Cel.
Araújo Nóbrega, testemunharam que os prisioneiros Humberto de Souza Melo (Criméia Schmidt), Delega-

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do Carlos Matos (Edmauro Gopfert), Delegado Nilton morte, tinham pleno conhecimento da identidade dos
Fernandes (Duílio D. Martino). corpos que seriam mantidos com nomes falsos.
Em muitos casos são conhecidos apenas o codino- Hiroaki Torigoe, dirigente do Movimento de
me ou o nome incompleto: Capitão, Bernardo, Manga- Libertação Popular (Molipo), foi baleado e preso pelo
beira, Campos, Capitão Ubirajara, Mario, Japinha, Dr. DOI-Codi de São Paulo em 05/01/72. Resistiu por três
Caio, Jacó (Maria Amélia Teles), Ciro, Candonga, Celso horas às torturas, morrendo nesse mesmo dia. Na
(Duílio Martino). requisição de exame do IML, Hiroaki está com o nome
de Massahiro Nakamura. Seu corpo teria sido levado ao
5.4 As mortes IML por viaturas do DOI-Codi e no histórico consta:
Da documentação colhida (laudos necroscópicos), “intenso tiroteio com os órgãos de segurança”. A certi-
pode-se concluir que as mortes, sob tortura, eram o ci- dão de óbito, datada do dia 07 de janeiro sustenta as
alizadas sob as seguintes modalidades: informações.
a. “morte em tiroteio com órgãos de segurança” – No entanto, no mesmo dia 07, o documento Auto
cujo exemplo é a de Joaquim Alencar Seixas, morto sob de Exibição e Apreensão do Dops, assinado pelo dele-
torturas, segundo o que foi presenciado por sua gado Edsel Magnotti deixa claro o conhecimento da
mulher; verdadeira identidade de Torigoe. Diz o documento:
b. “morte em tentativa de fuga” – que é o caso de “compareceu Amador Navarro Parra, investigador de
Carlos Nicolau Danieli, morto sob tortura, segundo o polícia (...) e exibiu a autoridade o material apreendido
depoimento de Maria Amélia de Almeida Teles e Cri- à Rua Antonio Carlos da Fonseca, 264, aparelho de
meia Schmidt de Almeida; Hiroaki Torigoe (...)”.
c. “atropelamento” – causa o cial da morte de Estes também são os casos de Gelson Reicher e
Alexandre Vannucchi Leme, relatada no “Dossiê dos Alex de Paula Xavier Pereira, militantes da Ação Liber-
Mortos e Desaparecidos” da Assembleia Legislativa do tadora Nacional (ALN), fuzilados pelo DOI-Codi-SP
Estado do Rio Grande do Sul, p. 65, que morreu sob no dia 20/01/72, quando resistiram à voz de prisão.
tortura no DOI-Codi, em São Paulo; Nos documentos do II Exército/DOI-Codi assina-
d. “suicídio” – causa o cial da morte de Vladimir dos pelo delegado Renato D'Andrea, datados do dia
Herzog e Manoel Fiel Filho, registradas, também, no 20/01/72, portanto, o mesmo dia de suas mortes, consta
“Dossiê dos Mortos e Desaparecidos” (p. 75 e 76), mor- a seguinte informação: “compareceu perante a mim, o
tos sob tortura no DOI-Codi. Capitão Pedro Ivo Moezia de Lima, do E. B. à disposição
O jornalista Antonio Carlos Fon (1979, p. 45) relata do DOI-Codi, apresentando o material apreendido em
também a criação de grupos especialmente treinados poder de Gelson Reicher (nome falso “Marcos”) e Alex
para matar no interior dos DOI-Codi. Em São Paulo, o de Paula Xavier Pereira (nomes falsos “Amado”, “Anão-
grupo era chamado de GTA, e comandado por um zinho”, “Miguel”), no dia 20 de janeiro de 1972. O escri-
tenente da Polícia Militar. O trabalho da GTA consistia, vão foi Dulcídio Wanderley Boschilia, deste DOI, para
basicamente, em matar simulando suicídios, atropela- exercer as funções de escrivão. No auto de Exibição e
mentos, acidentes de automóvel ou ainda desaparecen- Apreensão do II Exército, datado de 20/01, o mesmo
do com o corpo da vítima. A existência desse grupo é delegado a rma que a “cédula de identidade em nome
con rmada pelo depoente Josecyr Cuoco ao dizer, no de João Maria de Freitas” traz o “nome falso de Alex de
entanto, que o GTA era formado por heróis. Paula Xavier Pereira”. Em outro Auto de Exibição e
Analisando documentos constantes dos processos Apreensão, datado de 20/01 a mesma referência tratan-
das Auditorias Militares, pesquisados pelo BNM (Bra- do-se de Gelson Reicher. Em 04/08/72, o delegado do
sil Nunca Mais), extraídos do arquivo do Instituto Dops Edsel Magnotti registra amostragem do “material
Edgard Leuenroth, da Unicamp, a CPI pôde comprovar subversivo” apreendido em poder de Gelson Reicher e
que os órgãos de segurança, além de alterar a causa da Alex de Paula Xavier Pereira, bem como as cédulas de

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identidade falsas utilizadas por eles. Mas os dois foram aparelhos clandestinos eram sítios na zona rural de São
mantidos com os nomes falsos de Emiliano Sessa e João Paulo, um dos quais teria sido o de Parelheiros, de pro-
Maria de Freitas, nomes que constam dos laudos assina- priedade de Joaquim Fagundes, investigado pela CPI.
dos pelo legista Isaac Abramovitch e que apresentam os De certo há que esses militantes nunca mais foram
dois como elementos terroristas. vistos com vida por seus familiares ou companheiros.
Um caso que chamou atenção da CPI foi o de Edgar
6. Os Desaparecimentos de Aquino Duarte, fuzileiro naval perseguido desde
1964 por sua atuação no movimento de militares por
6.1 Os desaparecidos reformas, antes da mudança do regime. Durante cerca
Por de nição, o desaparecimento político é todo de três anos, Edgar conviveu com os presos do Dops-SP
caso de prisão não assumida pelos órgãos de segurança e/ou DOI-Codi sem ter acusação formal. Em ns de
do Estado. Há vários casos de presos torturados até a 1973, Edgar foi retirado do Dops-SP, não sendo possível
morte que desapareceram, apesar do testemunho de determinar se para ser morto ou simplesmente liberta-
várias pessoas, que a rmam ter presenciado o assassi- do. O certo é que, até hoje, não fez contatos com sua
nato. Um exemplo disso é Virgílio Gomes da Silva, família ou amigos.
torturado até a morte nas dependências do DOI-Codi Vários outros casos foram mencionados em
do II Exército durante todo o dia 29 de setembro de denúncias à CPI e constam do Dossiê dos Mortos e
1969, tendo seu crânio esmagado pelos pontapés dos Desaparecidos do CBA (Comitê Brasileiro de Anistia),
policiais e militares (depoimento de Antonio Carlos produzido pela Assembleia Legislativa do Rio Grande
Fon). O corpo do operário desapareceu a partir daquela do Sul. Entre eles, foram mencionados os casos de Ana
data, sem deixar vestígios. Não houve apresentação do Rosa Kucinski e seu marido Wilson Silva, militantes da
corpo para perícia no IML, nota o cial ou qualquer Ação Libertadora Nacional (ALN), que desapareceram
outra forma de legalização da morte de Virgílio. A res- em abril de 1974.
ponsabilidade pelo assassinato não foi assumida pelos Vários habeas corpus impetrados pela família tive-
órgãos de repressão. ram a resposta de que eles não estavam presos. Por meio
Geralmente há apenas indícios da prisão do mili- do Departamento de Estado Americano, a família
tante, sem, contudo, ser possível determinar o destino soube que eles estariam em alguma prisão brasileira,
dado ao preso. Neste caso, estão vários membros do sem identi car qual.
Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, que Aylton Adalberto Mortati, dirigente do Movimento
na época da repressão política era clandestino. As indi- de Libertação Popular (Molipo) e o cial da reserva do
cações dadas por presos da época levam a crer que todos Exército Brasileiro, desapareceu em novembro de 1971.
foram levados para os “aparelhos clandestinos da Apesar de negadas, sua prisão, tortura e morte foram
repressão”, também chamados de “Braço Clandestino denunciadas por ex-presos, em 1975, em documento
da Repressão”, para serem torturados e mortos. Esses enviado ao presidente do Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB).
Davi Capistrano da Costa, dirigente do Partido
Desaparecimento polí co é todo caso de
Comunista Brasileiro, foi sequestrado juntamente com
prisão não assumida pelo Orgãos de José Roman, também do PCB. Sua bagagem foi vista
segurança do Estado. Há vários casos de por presos no Dops, o que con rma sua prisão pelos
presos torturados até a morte que órgãos de repressão.
desapareceram, apesar do testemunho Stuart Edgar Angel Jones, militante do Movimen-
de várias pessoas, que afirmam ter to Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), desapareceu
presenciado o assassinato em maio de 1971. O ex-preso Alex Polari testemunhou
sua prisão pelos agentes do Centro de Informações da

90
Aeronáutica (Cisa), sua tortura e morte, tendo visto a permaneceu desaparecido de novembro de 1971 até
cena em que Stuart era arrastado pelo pátio do quartel 1979. Preso pelo DOI-Codi no dia 06/11/71, foi morto
amarrado a um Jipe, com a boca no cano de descarga. em decorrência de torturas no dia seguinte, mas sua
O ocultamento das mortes sob tortura se deu em prisão não foi assumida de imediato. Na requisição de
muitas situações pelo sepultamento com nomes falsos, exame do IML está apenas o nome de Álvaro Lopes
mantendo-se, assim, a condição do “desaparecimen- Peralta, apontando morte em “tiroteio com órgãos de
to”. segurança”.
Luiz Eurico Tejera Lisbôa, militante da ALN, per- Assim como no caso de Torigoe, documentos do
maneceu desaparecido de setembro de 1972 até 1979, II Exército assinados pelo delegado de polícia Renato
quando surgiram indícios do destino do seu corpo. A D'Andreia deixam claro o conhecimento da verdadei-
Comissão de Familiares de Desaparecidos conseguiu ra identidade de Flávio Molina. Diz um dos documen-
descobrir que Luiz Eurico havia sido enterrado no tos que o Capitão Pedro Ivo Moezia de Lima apresen-
cemitério de Perus, como indigente, e com o nome de tou o material apreendido em poder de Flávio Carva-
Nelson Bueno. lho Molina. Em seguida, são apontados os nomes
Sobre o caso, descobriu-se depois que fora monta- falsos: “Álvaro Lopes Peralta”, “Joaquim Gustavo Ville-
da uma farsa de suicídio, legalizada por um inquérito da Lerva”, “Armando”, “André”. Os documentos são
no 5º Distrito Policial de São Paulo sob o nº 582/72, em assinados pelo referido delegado e pelo escrivão Dul-
nome de Nelson Bueno. Essa farsa seria desmascarada, cídio Wanderley Boschilia. Deve-se ressaltar que o
comprovando o seu assassinato. As provas, porém, não verdadeiro nome aparece em letras maiúsculas e os
foram consideradas su cientes para que um novo nomes falsos entre parêntesis. No dia 17/07/72, o dele-
inquérito, em nome de Luiz Eurico gerasse processo gado do Dops Edsel Magnotti registrou a amostragem
contra a União. O inquérito foi arquivado, rati cando- do material encontrado em poder de Flávio e seu
se a conclusão de suicídio. Na ta do vídeo do progra- nome também está em maiúsculas. O mesmo delega-
ma Globo Repórter que foi juntada aos autos, um mora- do apresentou o laudo necroscópico de Molina e res-
dor da pensão onde Luiz Eurico morreu a rma que salta que ele usava o nome falso de “Álvaro Lopes
houve assassinato por parte dos policiais, que criaram Peralta”. O corpo de Flávio é um dos que se encontrava
a versão de suicídio. na vala de Perus, ainda à espera de identi cação.
Dênis Casemiro, militante da Vanguarda Popular Permanecem desaparecidos 144 ex-presos políti-
Revolucionária (VPR), permaneceu desaparecido de cos conhecidos. Integram esta lista 59 corpos de guer-
abril de 1971 até junho de 1979, quando seu corpo foi rilheiros do Araguaia.
descoberto, enterrado em Perus como indigente, e a A depoente Sônia Haas informou à CPI ter conse-
idade apontada de 40 anos. Dênis tinha 28 anos quando guido localizar em Xambioá, no Araguaia, a área do
morreu, informação que consta de seu atestado de óbito sepultamento de alguns desses mortos, entre eles seu
e que teria permitido a sua localização pela família. irmão João Carlos Haas Sobrinho. Recentes investiga-
José Maria Ferreira Araújo, também militante da ções ainda não permitiram o resgate do seu corpo ou
VPR, foi enterrado em 1970, com o nome falso de de seus companheiros. No entanto, foram exumados
Edson Cabral Sardinha, na quadra de indigentes do dois corpos, sendo que um deles, ainda não identi ca-
cemitério de Vila Formosa. O seu sepultamento foi do, estava envolto por um paraquedas da Reserva da
descoberto apenas agora, no transcorrer dos trabalhos Aeronáutica. Conforme apurado pelos peritos da
da CPI, com acesso aos arquivos do IML. Mas a qua- Unicamp, sua morte foi produzida por disparos de um
dra, como consta no capítulo do Serviço Funerário Fuzil FAL, de uso exclusivo das Forças Armadas, além
Municipal, foi des gurada, desaparecendo quase que das evidências de tortura.
totalmente. Além do depoimento de Criméia Schmidt de
Flávio Carvalho Molina, militante do Molipo, Almeida, que denunciou a prática dos militares de

91
exibir cabeças decapitadas de guerrilheiros, outra dão que nunca deu bola para a família...”
evidência de que os corpos eram trucidados está no “Porque se alguém tem responsabilidade sobre isso,
depoimento escrito da ex-guerrilheira Regilena Car- foram eles que começaram. Agora, se a ideologia os
valho Leão de Aquino. Ela acusa o General Bandeira, motivou a ponto da irracionalidade, a tudo aquilo que
um dos responsáveis pelo combate a guerrilha, de ter se viu naquela década triste, eu não sei se hoje será o dia
a rmado que em 20 de setembro de 1972, Miguel de relembrar isso tudo.”
Pereira dos Santos, morto em combate, teve sua mão “E, para encerrar, desejo felicidades que encon-
direita decepada. Motivo: levar a mão, e não o corpo trem... De Deus, não do Diabo, porque, pela esquerda
todo para que fossem identi cadas as impressões não é de Deus, não. É de Belzebu”.
digitais. O trecho a seguir é do delegado Josecyr Cuoco:
De acordo com depoimentos gravados em vídeo “Eu acho que, se foram mortos, se foram tortura-
por Sonia Haas no Araguaia e anexados aos autos, os dos, se quebraram ossos, evidentemente hoje, amanhã,
guerrilheiros foram capturados vivos, alguns feridos e daqui a mil anos, serão comprovados através da ciência.
transportados de helicóptero pelas Forças Armadas. O Eu acho que é isso... procurando esconder essas pesso-
que sofreram ou como morreram até hoje não foi reve- as... eu não tinha acesso a isso... não fazia parte da corte
lado. real... Vou dizer mais: se eu tivesse acesso a esse tipo de
informação talvez eu nem me desse... mas não estava na
6.2 A indiferença situação a itiva que me encontro hoje. Eu teria sido
Em 28 de outubro de 1985, em contestação a uma paparicado por alguém”.
ação ordinária movida contra a União por parentes de O ex-delegado Edsel Magnotti, do Dops, hoje apo-
guerrilheiros desaparecidos, o memorial do Procura- sentado e professor na Academia de Polícia, que assina
dor da República, Haroldo Ferraz da Nóbrega, diz vários documentos referentes às organizações ALN e
textualmente: Molipo, diz não “saber se existem desaparecidos” e
“Mérito: Patente a falta de consistência desta ação. a rma que “muitas vezes o elemento era morto em
Claro que todos os mortos merecem respeito, ainda tiroteio ou preso e tinha nome falso. Quando ele era
que se trate de mortos que morreram quando procura- preso, ele acabava revelando o próprio nome. Mas quan-
vam matar. De outra parte, respeito aos mortos não se do era morto, como poderíamos saber”.
faz apenas na presença de uma sepultura” – diz o pro- Sobre a di culdade de se identi car os mortos
curador. políticos, o ex-delegado a rma: “O que motivava isso,
“Morreram quando procuravam matar” foi a eu não sei. Mas eu sempre procurei me cingir aos docu-
explicação mais frequentemente colocada por mem- mentos, veri car se havia impressões digitais, para
bros dos órgãos de segurança nos seus depoimentos à identi car o indivíduo, porque o que interessa é saber
CPI, ao lado da indiferença e do cinismo diante das quem era o indivíduo...”.
buscas, que prosseguem até hoje. O ex-sargento PM Dulcídio Wanderley Boschilia,
O Coronel da Reserva do Exército, ex-secretário em seu depoimento, a rma que “se excessos acontece-
de Segurança Pública do Estado de São Paulo, ex- ram, foram de ambos os lados, em proporção maior é
deputado federal e atual deputado estadual Antonio lógico, no âmbito da repressão. Porque o horror era
Erasmo Dias refere-se aos desaparecidos e familiares muito maior com referência aos próprios terroristas”.
desta forma: Em seguida, ele diz: “se eu pudesse contribuir para um
“Porque se quiserem que arrolemos quem morreu trabalho honesto para descobrir pai, lho ou mulher de
em 1970 assassinado pelos Leo, pelos Araújo, gente elementos que foram, como se pode dizer, executados
sem nome, que nunca teve família na vida, a família de um modo geral... Eu me sentiria como pai, lho ou
deles era a guerrilha, era o aparelho, eu até estranho, até como marido, no desprazer, no desassossego de não ter
louvo famílias que há 20 anos estão atrás de um cida- um ente querido, mesmo pelas suas falcatruas, eu gosta-

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ria de saber onde pudesse estar”. meses seguintes. Permitiu ao Poder Executivo legislar
O delegado Renato D'Andrea, hoje diretor do independentemente de aprovação do Poder Legislativo,
Departamento de Narcóticos (Denarc), então lotado no através de decretos-leis. Aboliu, ainda, todos os parti-
DOI-Codi e responsável pelo Destacamento de Buscas dos políticos, dando condições legais para a criação de
e Apreensão, já citado anteriormente como autor de apenas dois novos partidos. A partir daí, o governo
várias assinaturas de documentos referentes a mortos cou representado pela Aliança Renovadora Nacional
políticos enterrados com nomes falsos, a rmou nesta (Arena) e a oposição, pelo Movimento Democrático
CPI nada saber a respeito de desaparecidos. Brasileiro (MDB).
Em 24 de janeiro de 1967, uma nova Constituição
7. A legislação foi aprovada, trazendo como mudanças básicas, em
comparação com a de 1946, eleição indireta do presi-
7.1 Legislação a partir de 1964 dente, o aumento do controle pelo Governo Federal dos
Para que se possa entender como tantas barbarida- gastos públicos, e amplos poderes ao Governo Federal
des foram possíveis num país de anseios democráticos para apurar infrações penais contra a segurança nacio-
como o nosso, a relatoria desta Comissão fez um estudo nal.
da legislação e das mudanças legislativas ocorridas de Finalmente, às vésperas de deixar o poder, o presi-
1964 até a criação da vala de Perus, em 1976. dente Castelo Branco assinou decretos-leis normati-
Este processo iniciou-se em março de 1964, quan- zando a censura à imprensa e implantando a Doutrina
do instalou-se um novo regime no país. Segundo mani- de Segurança Nacional, provinda das ideias de nidas
festo de 30/03/1964, expedido pelo Chefe do Estado pela Escola Superior de Guerra.
Maior do Exército, Castelo Branco, o regime tinha dois Em 15 de março de 1967, o marechal Costa e Silva,
objetivos: o primeiro, “frustrar o plano comunista de candidato único, tornou-se o novo presidente do Brasil.
conquista do poder e defender as instituições militares” Em dezembro de 1968, foi editado o Ato Institucio-
e, o segundo, “restabelecer a ordem de modo que se nal nº 5 e, em seguida, o Ato Suplementar nº 38, sendo
pudessem executar reformas legais”. que este último punha o Congresso inde nidamente
Por meio do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de em recesso.
1964, os Comandantes do Exército, da Marinha e da O texto que acompanhou o Ato Institucional nº 5
Aeronáutica se autodenominaram “comandantes de iniciava-se com uma citação do preâmbulo do Ato
uma revolução vitoriosa”, a rmando no preâmbulo que Institucional nº 1: “Considerando que a Revolução
a revolução não procurava legitimar-se através do Con- brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decor-
gresso, “mas que este recebia daquele ato sua legitima- re dos atos com os quais se institucionalizou, funda-
ção, como resultado do exercício do Poder Constituin- mentos e propósitos que visam a dar ao país um regime
te”. que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e
Em 11 de abril, o Congresso elegeu o General Cas- político, assegurasse a autêntica ordem democrática,
telo Branco presidente do Brasil. Por meio de sucessivos baseada na liberdade, no respeito da dignidade da pes-
Atos Institucionais, o presidente Castelo Branco insti- soa humana, no combate à subversão e às ideologias
tuiu a eleição indireta para presidente, vice-presidente e contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a
todos os governadores. O presidente seria eleito pelo corrupção...” e justi cava, posteriormente, o Ato em
Congresso Nacional e os governadores, pelas Assem- razão de que: “atos nitidamente subversivos oriundos
bleias Legislativas. dos mais distintos setores políticos e culturais compro-
O chefe de governo conferiu a si mesmo o poder de vam que os instrumentos jurídicos que a Revolução
cassar os mandatos de todas as autoridades eleitas, vitoriosa outorgou à Nação para a sua defesa, desenvol-
inclusive parlamentares, podendo suspender por dez vimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de
anos os direitos políticos de qualquer cidadão nos seis meios para combatê-la e destruí-la”.

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O texto propriamente dito do Ato Institucional nº 5 governo passou a examinar, à luz da segurança nacio-
deu plenos poderes ao Governo Federal e, pela primeira nal, toda e qualquer atividade. A imprensa, escrita e
vez, um Ato não tinha prazo para expirar. A intervenção falada, assim como toda criação artística e intelectual,
nos Estados e Municípios poderia ser decretada ao permaneceu sob censura.
arrepio da Constituição de 1967. Ainda sem as limita- O Ato Institucional nº 3, de fevereiro de 1966, e
ções da Constituição, os direitos políticos de qualquer todos os outros Atos que se seguiram, bem como a Cons-
cidadão poderiam ser cassados por dez anos, bem como tituição de 1969, continham a seguinte disposição:
os mandatos eletivos municipais, estaduais e federais. “Ficam excluídos de apreciação judicial os atos
Foram suspensas as garantias constitucionais de praticados com fundamentos no presente Ato Instituci-
vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade de seus onal e nos Atos Complementares dele”.
titulares, podendo, ainda, o presidente demitir, remo-
ver, aposentar ou pôr em disponibilidade funcionários 7.2 Crimes políticos e sua apuração
públicos e empregados em empresas públicas e transfe- Um novo sistema jurídico foi idealizado a partir de
rir para a reserva ou reformar militares, embora a esses 1964 para possibilitar a repressão política.
fossem garantidos os vencimentos e contagem de Numa primeira fase, ainda podia-se recorrer à
tempo de serviço. O Estado de Sítio poderia ser decreta- Justiça Comum, em geral diretamente ao Supremo
do pelo prazo que desejasse o presidente. Tribunal Federal, através da garantia constitucional do
Finalmente, cava suspensa a garantia do habeas habeas corpus.
corpus em casos de crimes políticos contra a segurança Em outubro de 1965, a edição do Ato Institucional
nacional, a ordem econômica e social e a economia nº 2 transferiu à Justiça Militar a competência de julgar
popular. os crimes contra a segurança nacional, estabelecidos na
Foram fechadas assembleias estaduais, entre essas, Lei nº 1.802 de 5 de janeiro de 1953. A partir daí, civis
a de São Paulo. passaram a ser julgados pela Justiça Militar.
Três ministros do Supremo Tribunal Federal foram Em 1967, o decreto-lei nº 314 de 13 de março de -
aposentados compulsoriamente, além de ser reduzido o niu os crimes contra a segurança nacional e a ordem
número de seus membros. política e social. Esta foi a primeira norma legal a usar
Logo em seguida, o Ato Constitucional nº 8 sus- conceitos da Doutrina de Segurança Nacional, como
pendeu a realização de eleições a nível municipal. “antagonismo interno”, “guerra psicológica adversa” e
Através de dois novos Atos (AI-13 e AI-14) foi “guerra revolucionária”. O texto de niu 38 tipos de
criado o banimento do país e restabeleceu-se a pena de crime contra a segurança nacional. Eram considerados
morte, que não existia no Brasil, em tempos de paz, crimes e atentados à segurança da nação: a greve, a
desde 1891. associação sindical e a divulgação de notícias contendo
Após o processo de escolha que se deu dentro das opiniões diversas da o cial.
três Armas, o general Emílio Garrastazu Médici tor- Dois anos depois, o decreto-lei nº 510 de 20 de
nou-se o novo presidente do país. Para tanto, foi reaber- março de 1969 foi promulgado, aumentando penas e
to o Congresso com o m especí co de elegê-lo em 25 modi cando o procedimento das ações penais.
de outubro de 1969. A Lei de Segurança Nacional foi novamente modi-
Nova Constituição foi entregue ao povo brasileiro cada pelo decreto-lei nº 898 de setembro de 1969, após
por meio da Emenda nº 1 de 17 de outubro de 1969. a edição do Ato Institucional nº 5.
As alterações promovidas na Constituição de 1967 No aspecto penal, a grande modi cação introduzi-
aumentavam o Poder do Executivo, fortalecia a Lei de da pelo AI- 5 foi a suspensão da garantia do habeas
Segurança Nacional, reduziam o número de cadeiras na corpus nos crimes políticos e a pena de morte em tem-
Câmara dos Deputados e criava a “ delidade partidária”. pos de paz.
A legislação dava plenos poderes ao Executivo e o A Lei de Imprensa e a Lei de Greve foram promul-

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ou. Este prazo poderia ser prorrogado uma vez. Fora
Os suspeitos de crimes contra a deste prazo deveria ser solicitada a prisão preventiva do
segurança nacional eram indiciados por indiciado, conforme Artigo 149 do Código de Processo
meio de inquérito policial militar. Cabia Penal Militar.
aos policiais do DOI-Codi “interrogar” Os prazos para término do inquérito, quando se
os presos polí cos trata de réu preso, determinado pelo Código Penal
Militar, é de 20 dias (Art. 20). Este prazo não era cum-
prido praticamente em nenhum caso. Este procedimen-
gadas com o caráter de leis complementares à Lei de to dá ensejo ao pedido de relaxamento de prisão enca-
Segurança Nacional. Em outubro de 1969, três decre- minhado ao juiz auditor. Os pedidos não eram sequer
tos-lei instituíram o novo Código Penal Militar, o Códi- apreciados pelos magistrados da Justiça Militar.
go de Processo Penal Militar e a lei de Organização Os depoimentos prestados nesta CPI demonstram
Judiciária Militar. Esses códigos, daí em diante, regula- que essas disposições legais, apesar de mais rígidas que
riam o julgamento dos civis denunciados com base na as prescritas aos crimes comuns, também não eram
Lei de Segurança Nacional. respeitadas pelos encarregados destas apurações.
Os suspeitos de crimes contra a segurança nacional Com todos esses vícios jurídicos, o inquérito poli-
eram indiciados por meio de inquérito policial militar. cial militar era, posteriormente, enviado à Justiça Mili-
O objetivo de um inquérito policial é apurar um crime e tar, que se encarregava por meio do Ministério Público
seu autor. Nessa fase processual, não existe o que se de apresentar a denúncia que daria início à ação penal.
chama em direito de “contraditório”, ou seja, o suspeito Na Justiça Militar, o réu era julgado, em primeira
não pode contestar as acusações, mesmo que esteja instância, por um Conselho de Justiça formado por
acompanhado de um advogado. Normalmente, o indi- quatro o ciais e um juiz auditor. Os o ciais dos Conse-
ciado é interrogado perante as autoridades encarrega- lhos Permanentes de Justiça eram escolhidos por sorte-
das do inquérito, como também as testemunhas são io para exercer suas funções de julgadores pelo prazo de
ouvidas. três meses. Na pesquisa Brasil: Nunca Mais (BNM), que
Não era esse o procedimento nos órgãos incumbi- examinou mais de 700 processos da Justiça Militar,
dos da repressão aos crimes previstos na Lei de Segu- constatou-se que alguns o ciais eram sorteados com
rança Nacional. Cabia aos policiais do DOI-Codi “in- uma frequência tão grande que sugere ter havido mani-
terrogar” os presos políticos. Após obterem as informa- pulação nos sorteios (BNM, p. 177). Por outro lado,
ções que desejavam, esses depoimentos eram enviados para manter sob controle do Governo Federal as deci-
aos funcionários do Dops, onde eram formalizados e sões dos membros do Conselho e dos promotores que
legalizados por meio do inquérito policial. Os depoi- atuavam junto à Justiça Militar, o Artigo 73 da Lei de
mentos de Davi dos Santos Araújo e Edsel Magnotti Segurança Nacional (decreto-lei 898) determinava a
con rmam esse procedimento. subida dos autos ao Supremo Tribunal Militar, caso o
Os presos poderiam, pela Lei de Segurança Nacio- auditor rejeitasse a denúncia ou a sentença fosse pela
nal, car incomunicáveis por dez dias (Art. 59 do absolvição.
decreto-lei 898/69), mas permaneciam sem poder avis- Esses fatos demonstram que a Justiça Militar, embo-
tar-se com seus familiares ou defensores por meses, às ra órgão do Poder Judiciário, não tinha a independência
vezes. própria dos três Poderes.
Pela mesma lei, Artigo 59, o indiciado poderia ser A pesquisa BNM constatou ainda que quase todos
preso pelo encarregado do inquérito por até trinta dias, os réus denunciaram as torturas sofridas por eles diante
mas a prisão deveria ser comunicada à autoridade judi- dos Conselhos de Justiça e de um membro do Ministé-
ciária competente mediante solicitação fundamentada rio Público, quando do interrogatório do réu nas audi-
do encarregado do inquérito à autoridade que o nome- torias. Essas denúncias nunca foram apuradas, nem

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iniciados ou processados seus autores. Guimarães Pereira, o órgão foi extinto porque em 15 de
março seria empossado o novo governador, Franco
7.3 Os arquivos do Dops Montoro, que possivelmente tomaria essa atitude.
O Departamento de Ordem Política e Social foi regu- Para permitir a transferência de todo o conteúdo
lamentado pelo decreto nº 11.782 de 20 de dezembro de dos arquivos do Dops, no dia 8 de março de 1983, pela
1940. Resolução 22/83, o Secretário da Segurança Pública
Na época era denominado “Superintendência de determinou que os procedimentos policiais referentes à
Segurança Política e Social” e era subordinado à Reparti- Lei de Segurança Nacional fossem remetidos ao Depar-
ção Central de Política. Pelo Artigo 3 desse decreto, com- tamento de Polícia Federal. O Superintendente da Polí-
petia à Superintendência: cia Federal em São Paulo era o delegado Romeu Tuma.
a) a direção dos serviços policiais ligados a preven- Em 12 de março de 1983 foi publicado no DOE um
ção e a repressão dos delitos de ordem policial e social. “Termo de utilização gratuita de bens móveis”, segundo
b) preparação dos inquéritos relacionados com a o qual o governo do Estado de São Paulo autorizava o
ordem econômica; uso, a título gratuito, de todos os móveis, ou seja, dos
(...) arquivos de aço onde estavam arquivados os documen-
e) instaurar inquéritos relativos a fatos de sua com- tos do Dops.
petência pelos órgãos respectivos. Segundo o depoente Maurício Guimarães Pereira,
Na constituição de 1967, a competência para “apu- “não cou nenhum documento pertencente ao arquivo
ração de infrações penais contra a segurança nacional, a do Dops”.
ordem política e social, ou em detrimento de bens, Foram, portanto, entregues ao Governo Federal:
serviços, interesses da União, assim como de outras a) os documentos produzidos pelo Dops enquanto
infrações cuja prática tinha repercussão interestadual e a apuração das infrações contra a ordem política e social
exija repressão uniforme” (Art. 8, inciso VII, letra c) era competência dos Estados; b) os documentos produ-
passa a ser exclusiva da Polícia Federal. zidos pelo Dops enquanto esse órgão atuou em razão de
O parágrafo 1º do Artigo 8 estabelece que “a União sua competência residual, ou seja, até 19 de março de
poderá celebrar convênios com os Estados para a exe- 1981.
cução, por funcionários estaduais, de suas leis, serviços O comparecimento do delegado Romeu Tuma,
ou decisões”. Os estudos realizados pela relatoria indi- atual superintendente da Polícia Federal, a esta CPI,
caram que um único convênio foi realizado entre a voluntariamente, pondo à disposição os arquivos do
União e o Governo do Estado de São Paulo com esse extinto Dops, deu-se em fevereiro de 1991, signi cati-
objetivo. Este convênio foi rmado em 19 de março de vamente após a promulgação da lei nº 8.159, de 8 de
1981. Sua cláusula 3 estabelece que o Estado se compro- janeiro de 1991, que dispõe sobre arquivos públicos e
mete a “fornecer à Superintendência Regional do privados.
Departamento de Polícia Federal no Estado de São Esta lei, em seu Artigo 23, estabelece que: um
Paulo, fotogra as dos indiciados, se necessário, e cópias decreto do Governo Federal xará as categorias de
individuais datiloscópicas e de relatórios nais relativos sigilo dos documentos produzidos pelos órgãos públi-
a esses procedimentos”. cos; o acesso a documentos sigilosos referentes à segu-
A CPI enviou ofício ao Ministério da Justiça para rança da sociedade e do Estado será restrito por um
que este informasse se algum outro convênio havia sido prazo de 30 anos, a contar da data de sua publicação;
rmado nestes termos. Não houve resposta. esse prazo poderá ser prorrogado mais uma vez.
O Dops foi extinto pelo decreto publicado no Diá- Sessenta anos poderão ser necessários até que se
rio O cial do Estado em 5 de março de 1983, assinado garanta acesso público a documentos que poderiam
pelo governador em exercício, José Maria Marin. permitir a localização dos restos mortais de desapareci-
Segundo depoimento do ex-delegado Maurício dos políticos. E ainda por sessenta anos, pessoas acusa-

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das de assassinato e prática de tortura poderão estar a 10. Que a prática de tortura era uma constante
salvo do conhecimento de seus atos pela sociedade. durante o regime militar, conforme os depoimentos;
que algumas mortes foram dela consequência direta e
8. Conclusão outras ocorreram premeditadamente: os próprios dele-
gados ouvidos a rmaram conhecer a existência da
8.1 O que foi apurado tortura, embora neguem insistentemente que a tenham
De todas as provas, documentos e depoimentos praticado.
colhidos e analisados, concluiu-se: 11. Que vários membros do que se pode chamar de
1. Que a vala encontrada no Cemitério Dom Bosco “aparato de repressão”, entre eles funcionários públicos
é clandestina, irregular e ilegal, e nela foram enterrados estaduais, integrantes das polícias civis e militares e
corpos de indigentes e corpos de presos políticos mor- membros das Forças Armadas, participaram ou aco-
tos pelos órgãos incumbidos da repressão aos oponen- bertaram a prática de tortura e as mortes de presos polí-
tes do regime instaurado em 1964. ticos, segundo denúncias feitas por ex-presos.
2. Que as exumações que deram origem à vala ocor- 12. Que a utilização de capuzes, nomes falsos e
reram em frontal desrespeito às normas e leis do Muni- codinomes, e o desconhecimento da identidade dos
cípio e não houve registro do destino dado aos corpos. agentes pelas próprias equipes policiais, con guravam
3. Que todos os corpos encontrados na vala não procedimentos de clandestinidade dentro dos organis-
tinham identi cação. mos o ciais do Exército na época.
4. Que há uma desorganização histórica no Serviço 13. Que sítios clandestinos também foram usados
Funerário Municipal no tratamento dispensado às pela repressão e se relacionam com o desaparecimento
pessoas pobres falecidas nesta cidade, genericamente de pessoas, conforme depoimentos de ex-presos. O
chamadas de indigentes. Sítio 31 de Março de 1964 foi utilizado extrao cialmen-
5. Que essa manipulação serviu ao ocultamento de te pelo Exército, tendo agora surgido as primeiras pro-
corpos de vítimas da violência policial e, na década de vas em escavações apenas iniciadas.
1970, de presos políticos. 14. Que se formou um esquema para acobertamen-
6. Que houve uma adequação do SFM para auxiliar to das mortes nos órgãos de repressão que incluía funci-
no ocultamento de corpos. Os cemitérios que recebiam onários do IML e do Serviço Funerário Municipal.
indigentes sofreram modi cações entre1975 e 1976, 15. Que ordens expressas para o tratamento dife-
exatamente nas quadras onde haviam sido enterrados renciado de corpos de presos políticos partiram dos
corpos de presos políticos. órgãos de repressão para o IML.
7. Que no Cemitério de Vila Formosa uma quadra 16. Que o Governo Federal, por meio da CGI, e o
foi des gurada para esse m. As ruas tiveram seu governo estadual, por meio da sub-CGI ou CEI, tinham
traçado alterado e, sobre as sepulturas, foi plantado um conhecimento do uso do IML para ocultamento dos
bosque. As alterações correspondentes não foram feitas corpos dos oponentes do regime.
na planta do cemitério, até hoje. 17. Que dentro do IML um grupo de legistas a na-
8. Que houve intenção de cremar os corpos de dos com o regime era destacado para as necrópsias de
indigentes, entre os quais estavam os de presos políti- presos políticos, na maioria das vezes os médicos Harry
cos; que anteriormente à vala, houve a tentativa de cons- Shibata e Isaac Abramovitch, sempre acompanhados
truir um crematório exclusivo para indigentes. pelo auxiliar Jair Romeu, designado pelos órgãos de
9. Que a existência da vala e demais irregularidades repressão.
denunciadas devem ser objeto de rigorosa apuração 18. Que, no caso de presos políticos, as necrópsias
pela Prefeitura Municipal, com os consequentes pro- se realizavam também à noite, fora do horário regula-
cessos na Justiça, uma vez que houve crime, tanto admi- mentar.
nistrativo quanto civil. 19. Que laudos foram produzidos no IML para

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acobertar mortes e di cultar a identi cação de pessoas,
sendo que os laudos, ainda, con rmavam sempre a O que choca, além das atrocidades
versão policial das mortes, constantes das requisições come das contra os presos, é o
vindas do Dops ou da 36ª Delegacia. esquema que foi montado para ocultar
20. Que, embora com abundantes testemunhas de os cadáveres, com o auxílio de médicos
que muitos corpos periciados no IML tinham marcas e funcionários do IML e do Serviço
ou mutilações provocadas por torturas, os laudos di -
Funerário Municipal
cilmente descreviam as lesões.
21. Que os organismos de repressão enviavam ao
IML corpos de militantes com nomes falsos, embora atos institucionais, atos complementares, decretos-leis
tivessem conhecimento de suas verdadeiras identida- e até decretos secretos.
des; que, em alguns casos, o IML também sabia os Os atos institucionais constantemente editados
nomes verdadeiros. sobrepuseram-se à própria Constituição do país, reti-
22. Que vários corpos saídos do IML foram sepul- rando dos cidadãos garantias básicas do regime demo-
tados com nomes falsos. crático, tais como a garantia do habeas corpus, vitalicie-
23. Que não era respeitado o prazo mínimo de 72 dade e inamovibilidade de juízes e membros do Poder
horas de espera para se fazer o sepultamento de corpos Judiciário, determinando o julgamento de civis por
de pessoas desconhecidas ou não reclamadas, como tribunais militares, cassação de mandatos de membros
manda o regulamento interno do IML. Houve casos em do Poder Legislativo. Isto permitiu ao Governo Federal
que os corpos foram enterrados com menos de 20 horas administrar, julgar e fazer suas próprias leis.
após a morte. O que choca, além das atrocidades cometidas con-
24. Que houve destruição intencional de documen- tra presos, é o esquema que foi montado para ocultar os
tos arquivados no IML, di cultando a pesquisa das cadáveres, com o auxílio de médicos e funcionários do
irregularidades cometidas no passado. IML e do Serviço Funerário do Município.
25. Que os registros di cultam também a localiza- É evidente que essas violações de direitos humanos
ção de corpos nos cemitérios do Município. foram possíveis graças à conivência de governadores e
26. Que as irregularidades praticadas dentro do prefeitos eleitos indiretamente pela interferência dos
IML devem ser ainda objetos de apuração e punição, militares.
sendo tomadas as providências cabíveis.
27. Que o IML deve ser objeto de uma profunda 8.2 Encaminhamentos
reestruturação, saindo da esfera policial. Assim:
28. Que a ocorrência de prisões irregulares, seques- Considerando que funcionários estaduais e muni-
tros, cativeiros clandestinos, interrogatórios com uso cipais foram coniventes com a prática de tortura e homi-
de tortura e acusações sem direito de defesa, insistente- cídio e que dos autos constam indícios de toda espécie
mente denunciadas nesta CPI, exigem apuração pela de crime, tais como: condescendência criminosa (Arti-
Justiça. go 320 do Código Penal), omissão de socorro (Art.
29. Que a possibilidade de localização dos 144 135), falsidade ideológica (Art. 299), falsa perícia (Art.
desaparecidos poderá ser garantida desde que a apura- 342) e prevaricação (Art. 319);
ção de cada caso seja assumida pelo poder público no Considerando que delegados, ex-delegados e o ci-
país e apoiada pela sociedade. ais militares foram acusados de torturar ou permitir que
Concluiu-se também que os atos criminosos sob seu comando, esses crimes fossem cometidos, e que
denunciados neste relatório foram possíveis em razão há indícios de que médicos legistas omitiram a verdade
da elaboração de um sistema legal, em que gradualmen- em documentos públicos;
te se modi cou a Constituição vigente, com a edição de Considerando que a impunidade favorece fatos

98
como o retorno dos esquadrões da morte, os lincha- do de São Paulo, deputado Carlos Apolinário, solicitan-
mentos, a matança de crianças, os assassinatos de sindi- do o prosseguimento das investigações em nível estadu-
calistas rurais, os chamados crimes do colarinho branco al.
e a corrupção dos órgãos governamentais; 5. Ao Ministério Público Federal em São Paulo,
Considerando que, ainda hoje, corpos de pessoas para que tome conhecimento dos fatos e tome as provi-
vítimas de mortes violentas cam muitas vezes de 7 a 9 dências eventualmente cabíveis.
horas expostos na rua até que sejam enviados ao IML e 6. Ao Presidente da República, Fernando Collor de
que esse órgão não tem estrutura su ciente para realizar Mello, encaminhando cópia desta CPI e solicitando:
dignamente seus serviços nem atender conveniente- a) que sejam apuradas as responsabilidades pelos
mente os familiares de vítimas de morte violenta; atos irregulares de agentes subordinados ao Governo
Considerando que as normas vigentes sobre o Federal;
Serviço Funerário Municipal datam de 1932, havendo b) que regulamente a lei 8.159/91, possibilitando a
um sem-número de leis, decretos e atos posteriores que abertura dos arquivos do SNI, Dops e DOI-Codis, para
tornam difícil entender o seu funcionamento; apuração pela sociedade dos fatos aqui denunciados.
Ficou decidido por esta CPI o envio dos seguintes 7. Ao Ministério da Justiça, solicitando que os fatos
ofícios: aqui relatados sejam apurados pelo Conselho de Defesa
1. À prefeita Luiza Erundina de Souza, encami- dos Direitos da Pessoa Humana.
nhando cópia do processo desta CPI e solicitando: 8. Ao Conselho Regional de Medicina, solicitando
a) que se apurem as responsabilidades pelos atos a instauração de sindicância para apurar responsabili-
administrativos irregulares praticados por funcionári- dades dos legistas pelas irregularidades ocorridas no
os municipais ou titulares de cargos em comissões; IML.
b) a consolidação das leis que se referem ao sepulta- Serão encaminhadas cópias do processo também
mento, em especial ao sepultamento de indigentes e ao para o presidente desta Casa, para o presidente da Câma-
funcionamento do Serviço Funerário Municipal; ra Federal e para o presidente do Senado Federal.
2. Ao governador do Estado de São Paulo, Luiz
Antonio Fleury Filho, encaminhando cópia do proces- Assinam este Relatório:
so desta CPI e solicitando:
a) que se apurem as responsabilidades pelas irregu- Ver. Júlio Cesar Caligiuri Filho – PDT – Presidente.
laridades praticadas por funcionários dos órgãos públi- Ver. Tereza Cristina de S. Lajolo – PT – Relatora.
cos estaduais; Vereador Ítalo Cardoso – PT
b) que se reorganize o Instituto Médico Legal, reti- Vereador Vital Nolasco – PCdoB
rando-o da esfera policial;
c) que seja revogado o decreto nº 13.757/79, que
deu permissão de uso de terreno estadual ao DOI-Codi;
d) que se exija do Governo Federal a devolução dos
documentos que faziam parte dos arquivos do Dops;
e) que sejam afastados do serviço público os pro s-
sionais envolvidos com as irregularidades apuradas;
f) que determine a continuidade das investigações
iniciadas no Sítio 31 de Março de 1964.
3. À Procuradoria Geral da Justiça do Estado de São
Paulo, para que tome conhecimento dos fatos e tome as
providências eventualmente cabíveis.
4. Ao Presidente da Assembleia Legislativa do Esta-

99
FOTO: CARLOS BASSAN

Flagrante feito por um


fotógrafo de Campinas
revela “banho de sol” das
ossadas de Perus num
jardim em frente ao
Departamento de Medicina
Legal da Unicamp, em 1991
4
Primeiras análises

Amanhã ou depois, meu irmão


A gente retorna à beira do cais
E conta os amigos
Pra ver qual que brilha
E qual se apagou.
Gonzaguinha, em “Amanhã ou depois”

O fotógrafo do Diário do Povo agarrou a bolsa com sáveis pelas câmeras de gás no campo de concentração
a câmera, as lentes e os rolos de lme e saiu correndo. de Auschwitz, nos anos 1940. Mengele era acusado de
Era preciso liquidar a pauta e, sem demora, trazer os conduzir experimentos em humanos na Alemanha
negativos de volta ao jornal. Em quinze anos de pro s- nazista, quase sempre com grande violência e perversi-
são, Carlos Bassan havia aprendido a não atrasar as dade. A instalação do Tribunal de Nuremberg para
entregas. Fotojornalismo tem dessas coisas. Imagem julgar os crimes de guerra cometidos por Hitler e seus
boa é imagem publicada, não adianta lapidar demais e asseclas, já no nal de 1945, levou Mengele a se escon-
perder a hora do fechamento. der numa fazenda na Baviera, no interior da Alemanha,
Naquela tarde de abril de 1991, sua missão nada e a fugir para a América Latina na virada da década de
tinha de extraordinária. Apenas ir até o Departamento 1950. Chegou à Argentina no governo Perón, viveu no
de Medicina Legal da Unicamp (DML) e fazer uma foto Paraguai sob a ditadura Stroessner, pelo menos entre
do chefe. Tirar um retrato, como se dizia, de um médico 1958 e 1960, e se xou no Brasil nos anos 1960. Aqui, os
legista de nome sonoro, meio antiquado, como que militares teriam ajudado a acobertá-lo.
recolhido de um romance policial: Fortunato Badan Em entrevista ao jornalista Marcelo Godoy publi-
Palhares. Não era de fato um nome so sticado? Parecia cada apenas em 2013, no jornal O Estado de S. Paulo, o
sob medida para batizar algum investigador ou delega- delegado José Paulo Bonchristiano, um dos chefes do
do de polícia num conto de Rubem Fonseca. Inspetor Dops após o golpe de 1964, a rmaria que a polícia
Palhares, quem sabe. Ou Detetive Fortunato. política sabia da presença de Mengele no Brasil e só não
Badan Palhares cara famoso cinco anos antes, o prendeu porque “nunca pediram”, referindo-se à
quando coubera a ele analisar uma ossada exumada do polícia alemã. Morto em Bertioga, no litoral paulista,
cemitério de Embu, na Grande São Paulo. Não era uma em 1979, o criminoso de guerra foi sepultado em Embu
ossada qualquer. Tratava-se do médico nazista Josef como Wolfgang Gerhard, nome que constava em seus
Mengele, lendário criminoso de guerra apelidado de documentos brasileiros. Apenas em 1985, quando uma
“Anjo da Morte” que tinha sido um dos médicos respon- senhora de Sorocaba (SP) contou que teria abrigado
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

Mengele durante alguns anos, na década anterior, e conta. Aos 31 anos, ele sabia exatamente do que se trata-
revelou o nome usado por ele, a Polícia Federal resolveu va. Era como se aquelas ossadas guardassem em si as
investigar. marcas de um passado recente, autoritário e cruel, uma
Além de identi car as ossadas, o médico Palhares época obscura da história do país. Fez algumas fotos e
coordenara um trabalho ainda inédito no país: a voltou para o jornal.
reconstituição facial de Mengele. Em fevereiro de 1986,
os jornais estamparam fotogra as do provável rosto do ***
Anjo da Morte, elaborado por um artista plástico a
partir das características físicas apontadas pela perícia As ossadas de Perus tinham sido transferidas para a
conduzida no DML a pedido do então delegado supe- Unicamp em 1º de dezembro de 1990. Após a abertura
rintendente da Polícia Federal, Romeu Tuma. Mais da vala clandestina, em 4 de setembro, seguira-se um
recentemente, Badan Palhares havia atuado na investi- longo período de tratativas que culminara naquele
gação do assassinato de Chico Mendes, ambientalista e convênio. A decisão solucionava o principal obstáculo
líder seringueiro do Acre, e no crime da Rua Cuba, colocado: familiares de mortos e desaparecidos políti-
como cou conhecido o assassinato jamais solucionado cos jamais aceitariam que as ossadas fossem periciadas
do casal Jorge Tou c Bouchabki e Maria Cecília Del- no Instituto Médico Legal de São Paulo, órgão que havia
manto Bouchabki numa mansão no Jardim América. sido cúmplice da política de desaparecimento e oculta-
Agora, o nome Badan Palhares estava novamente ção de cadáveres, por meio dos laudos falsos que produ-
nos jornais. Desde setembro de 1990, quando um con- ziram e assinaram.
vênio entre Prefeitura de São Paulo, Governo do Estado A ida para a Unicamp foi recebida com entusiasmo
e Unicamp garantira a transferência para Campinas das pelas famílias. Primeiro, porque se tratava de uma insti-
mais de mil ossadas retiradas da vala de Perus, na capi- tuição de ensino, e não de um departamento da polícia
tal. cientí ca, o que em si já era motivo para alívio. Em
Bassan, o fotógrafo, entrou no carro do jornal, segundo lugar, porque o médico Badan Palhares gozava
cruzou a Rodovia Dom Pedro I, passou por duas ou três de grande prestígio na comunidade cientí ca e nos
rotatórias na entrada do campus e chegou em cerca de meios de comunicação.
20 minutos ao prédio da faculdade de medicina que Os trabalhos de retirada das ossadas, coordenados
abrigava o DML. Minutos depois, saiu do prédio desa- pelo médico legista Nelson Massini, se estenderam por
pontado. O chefe do departamento não estava lá. Não mais de um mês. Apenas no dia 27 de outubro de 1990
era daquela vez que ele conseguiria tirar o retrato do foi feito o resgate do último saco. A catalogação dessas
médico legista mais famoso do Brasil. ossadas, no entanto, se estenderia até o último dia de
No caminho de volta ao carro do jornal, Bassan novembro, ainda no cemitério.
notou uma cena fora do comum. Havia algo muito Essa etapa do trabalho, che ada pelo professor-
esquisito no gramado em frente ao DML. Aquela paisa- assistente do DML José Eduardo Bueno Zappa, envol-
gem não era somente esquisita, mas assustadora, surre- veu 25 técnicos da Unicamp. A cada saco retirado da
al. Ao ar livre, a poucos metros do meio- o, descansa- vala era preciso fazer a limpeza do material, separar os
vam no chão, separados em esteiras e bacias, dezenas de ossos por tipo, acondicioná-los em sacos menores,
pedaços de ossos. Um crânio, um fêmur, uma tíbia. fotografar o crânio e a face, e classi car cada ossada
Uma mandíbula inteira, outra pela metade. segundo características possíveis de serem determina-
Bassan nunca tinha visto algo parecido. Parecia ter das ao primeiro olhar, como sexo, idade presumida,
entrado num plano-sequência de Indiana Jones e a presença de dentes e ocorrência de fraturas ou perfura-
Última Cruzada. Os ossos estavam ali tomando banho ções a bala. Em seguida, a ossada era novamente inseri-
de sol, num canteiro do campus, numa tarde prosaica de da num saco e transportada até Campinas.
quarta-feira. E sem ninguém por perto para tomar — Por enquanto, queremos apenas classi car o

102
Primeiras análises

material da forma como foi encontrado, sem que haja corpos das duas adolescentes assassinadas com o DNA
mistura de peças — Eduardo Zappa explicou à reporta- de uma amostra de sangue tirada de um suspeito. Quan-
gem do Diário Popular. — Há sacos em que existem até do as ossadas de Perus chegaram à Unicamp, o emprego
três crânios e outros sem nenhum, mas essa é uma ques- do DNA como método de identi cação ainda era algo
tão para ser esclarecida durante a fase seguinte, de iden- restrito à Inglaterra e a outros raros centros de genética
ti cação, que deve demorar pelo menos um ano. forense no mundo desenvolvido. E importar a tecnolo-
Três caminhões foram necessários para transportar gia estava fora de cogitação.
as ossadas do cemitério à Unicamp. No dia do traslado, Os técnicos de Campinas trabalhavam de outra
houve choro, protesto e comoção em Perus. Aos gritos maneira. Por meio de programas de computador elabo-
de “tortura nunca mais” e “punição aos assassinos”, rados especialmente para este m, os peritos fotografa-
manifestantes atearam fogo a um boneco trajando uni- vam o crânio dos esqueletos reunidos em laboratório e
forme verde-oliva, com quatro estrelas nos ombros, sobrepunham às imagens retratos feitos com as pessoas
quepe e coturno, em clara referência aos generais do ainda vivas. Media-se tudo: a distância entre os olhos, o
Exército que usurparam o poder no Brasil por 21 anos. tamanho da testa, a posição dos ouvidos em relação ao
A prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, e o presi- queixo. Seis pontos de coincidência total entre crânio e
dente do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da fotogra a eram considerados su cientes para con r-
Silva, presenciaram os protestos. De lá, as ossadas foram mar a identi cação. Especialistas da Faculdade de
acompanhadas por uma carreata durante todo o trajeto Odontologia de Piracicaba, ligada à Unicamp, foram
até a Unicamp. convocados para atuar junto aos médicos do DML. Se a
Já em Campinas, teve início o trabalho de análise pessoa tivesse feito algum molde dentário em vida,
propriamente dito. Cada ossada era chada e ganhava sobrepunham-se imagens desse molde a imagens da
uma descrição. Mulheres foram separadas dos homens, arcada dentária do esqueleto, também de modo a veri -
houve uma tabulação por idade presumida e segundo car se elas “encaixavam”.
outros elementos levantados pela análise. Finalmente, Somavam-se à sobreposição de imagens outras
era preciso comparar aquelas características com as dos pistas igualmente importantes: uma fratura antiga
desaparecidos reclamados pelos familiares. Tamanhos e poderia deixar marcas ainda visíveis nos ossos, assim
idades funcionavam como critérios de eliminação. como uma má formação congênita. Se fulano usava
“Este fêmur é de um homem de 1,90 metro, então não dentadura, beltrano tinha uma prótese de ouro no lugar
pode pertencer a esse desaparecido, que tinha no máxi- do segundo molar ou cicrano havia quebrado o nariz
mo 1,75 metro”. Ou ainda: “Este aqui é de um homem de mergulhando na piscina do clube aos 12 anos de idade,
50 anos, velho demais para ser o estudante universitário todas essas eram informações preciosas para se criar
que vocês procuram”. um per l apto a ser comparado com a memória daque-
Agora, Badan Palhares coordenaria os trabalhos de las ossadas.
sobreposição de imagens, a etapa principal do processo Como as 1.049 ossadas retiradas da vala poderiam
de identi cação. Em 1990, extrair material genético de pertencer, em tese, a qualquer uma das 1.500 pessoas
ossos com a nalidade de comparar com o DNA de que, segundo os livros do Cemitério Dom Bosco, foram
parentes de primeiro grau das pessoas às quais os des- exumadas entre 1975 e 1976 sem nenhum registro do
pojos supostamente pertenciam ainda não era uma local de reinumação, só havia uma forma de dar início
possibilidade no Brasil. A genética forense fora inaugu- ao processo de identi cação: comparar as característi-
rada na Inglaterra dois anos antes. Em 1988, a polícia cas das ossadas às características pessoais dos desapare-
cientí ca da cidade de Leicester conseguira nalmente cidos cujas famílias procurassem a equipe do DML para
solucionar dois crimes semelhantes de estupro seguido requisitar a análise. A Comissão de Familiares de Mor-
de morte ocorridos em 1983 e em 1986. Como? Compa- tos e Desaparecidos Políticos teve a precedência nesse
rando o DNA encontrado no sêmen recolhido nos processo. Rapidamente, seus membros reuniram infor-

103
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

mações sobre os militantes que, segundo os livros de As pesquisas realizadas nos arquivos do IML e nos
registro, tinham dado entrada no cemitério na primeira livros de entrada do Cemitério Dom Bosco, possibilita-
metade dos anos 1970, e acionaram pais, mães, irmãos e ram a descoberta do paradeiro de diversos militantes
irmãs em busca de fotogra as e dados antropométricos tidos como desaparecidos. Uma vez que os restos mor-
de cada um. Quanto mediam? Quantos anos tinham tais de alguns deles não tinham sido exumados de suas
quando desapareceram? Que ossos haviam fraturado sepulturas originais, foi solicitada sua exumação e enca-
na infância ou adolescência? Haviam extraído algum minhamento à UNICAMP, também para comprovar
dente? sua identidade. Casos como estes se repetiram entre
Enquanto isso, os membros da Comissão de Inves- 1990 e 1991. Con rmado o provável local de enterro,
tigação da Prefeitura de São Paulo consultavam, pela com base nos documentos o ciais, sobretudo do IML,
primeira vez, os arquivos do IML. As informações obti- eram feitas exumações e tudo seguia para a UNICAMP.
das nos laudos eram muito valiosas. Apesar da omissão
em relação às torturas e às responsabilidades pelos ***
assassinatos daqueles jovens, quase sempre os laudos
listavam perfurações provocadas por armas de fogo e — Bateu! Dr. Badan, a ossada 47 bateu!
um ou outro hematoma. Para os peritos, essas indica- O legista olhou para o assistente e permaneceu em
ções faziam enorme diferença. Se o laudo do IML ates- silêncio. Se fosse mesmo verdade, aquela seria uma
tava que determinado cadáver tivera o parietal esquer- notícia maravilhosa, a primeira ossada identi cada
do perfurado por um projétil, seria possível descartar os entre as 1.049 trazidas de Perus.
crânios que estivessem com o parietal intacto. Por — É melhor o senhor vir conferir.
extensão, investigar todos os crânios com o parietal O chefe do departamento repassou item por item o
esquerdo perfurado ou esmigalhado parecia ser um dossiê da ossada 47.
bom ponto de partida. — É, bateu! — o médico con rmou. — Seis pontos
Além dos exames necroscópicos, o arquivo do de concordância na sobreposição de imagens. A mesma
IML, o mesmo muquifo em que o repórter Caco Barcel- altura presumida.
los descobrira os laudos com a letra T de “terrorista” — O mesmo sangue tipo O do irmão e do sobrinho
enquanto investigava os crimes da Rota, guardava os também. Fizemos a tipagem em material retirado da
horripilantes livros de fotogra as. Conforme a legisla- medula óssea de uma das vértebras. Só não deu pra
ção vigente, como rati cado por servidores do IML veri car o Rh.
durante a CPI, todos os mortos sem identi cação, — Perfeito. E essa informação sobre o maxilar,
indigentes ou não, tinham de ser fotografados pelos confere?
legistas. Registrados por meio de um número, ganha- — Sim. Ele era edentado. Completamente edenta-
vam pastas e eram catalogados na burocracia interna do na arcada superior.
para uma improvável identi cação futura. Uma foto de Edentado é quem não tem dentes. Trabalhador
frente, outra de per l, eventualmente alguma outra rural de Votuporanga (SP), militante da Vanguarda
imagem de outra parte do corpo, sobretudo que pudes- Popular Revolucionária (VPR), preso no sul do Pará
se contribuir com sua identi cação – uma tatuagem, pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury e torturado até a
um sinal de nascença – e pronto: estava montado o morte no Dops de São Paulo em 18 de abril de 1971,
dossiê do desaparecido. Essas imagens não somente Dênis Casemiro não tinha nenhum dente na parte de
poderiam ajudar os peritos da Unicamp a con rmar cima.
características antropométricas ou o ponto exato em O anúncio foi feito no centro de convenções da
que determinada bala atingiu o corpo da vítima como, Unicamp no dia 8 de julho, uma segunda-feira, dez
algumas vezes, poderiam con gurar as únicas fotogra- meses após a abertura da vala. Erundina e o secretário
as disponíveis para a identi cação. estadual de Segurança Pública, Pedro Franco de Cam-

104
Primeiras análises

pos, empossado no mês anterior junto com o novo Já no dia da descoberta das ossadas em Perus, Dom
governador Antônio Fleury Filho, estavam presentes. Paulo estivera no local e recomendara aos membros da
Na ocasião, foi anunciada também a identi cação de Comissão Justiça e Paz que acompanhassem os traba-
Sônia Maria de Moraes Angel Jones e Antonio Carlos lhos e oferecessem o apoio necessário. Em 2 de novem-
Bicalho Lana, militantes da ALN assassinados em 1973 bro, transferira a tradicional missa de Finados para o
e enterrados em sepulturas individuais na quadra 7 do Cemitério Dom Bosco e, ao lado do bispo de Brasilân-
Cemitério Dom Bosco. Por não estarem nas quadras 1 e dia, Dom Angélico Sândalo Bernardino, postou-se no
2, as ossadas de Sônia e Bicalho Lana não foram transfe- topo do barranco vizinho à vala, de onde as ossadas
ridas para a vala clandestina. Os pais de Sônia chegaram ainda não tinham sido retiradas por completo. Morado-
a exumar os despojos da lha e os sepultaram no Rio de res do bairro e familiares de mortos e desaparecidos
Janeiro em 1981, mas depois descobriram que aqueles puseram-se ao redor daquele improvável sítio arqueo-
ossos eram de um homem. Agora, com os trabalhos de lógico e rezaram ali, debaixo do sol. “Não matarás!”,
análise em andamento na Unicamp, solicitaram a exu- dizia uma faixa.
mação de outras ossadas nas sepulturas em que seus Os ossos de Dênis Casemiro foram nalmente
corpos teriam sido enterrados como indigentes. Em sepultados em Votuporanga no dia 13 de agosto de
menos de um mês, os peritos da Unicamp con rmaram 1991, uma terça-feira. Na véspera, Ivan Seixas acompa-
as identidades de Sônia e Bicalho Lana. nhou o traslado das ossadas para o interior, represen-
Uma missa de corpo presente foi celebrada na Cate- tando a Comissão de Familiares de Mortos e Desapare-
dral de São Paulo em homenagem aos três desapareci- cidos. O caixão foi velado na Câmara Municipal duran-
dos nalmente encontrados, um na vala e dois em te a madrugada e, de manhã, transferido para a Matriz,
sepulturas individuais. Em 11 de agosto de 1991, um onde foi celebrada missa de corpo presente. No altar, ao
domingo, os restos mortais de Dênis Casemiro, Sônia lado do caixão, novamente coberto com a bandeira do
de Moraes Angel Jones e Antonio Carlos Bicalho Lana Brasil, um exemplar do livro Brasil: Nunca Mais, publi-
foram nalmente velados, duas décadas após a morte cado seis anos antes, no qual o nome de Dênis fora
do primeiro e 18 anos após a morte do casal. Era Dia dos incluído entre as vítimas fatais da ditadura mesmo sem
Pais, e coube a João Luiz de Moraes, pai de Sônia – assas- que o corpo tivesse sido localizado. Aos 65 anos, seu
sinada aos 27 anos após ter sido estuprada com um irmão mais velho, Isaías, lembrou que outro irmão,
cassetete e ter os seios decepados pelos torturadores –, Dimas, também fora morto pela repressão e continuava
fazer um emocionante discurso sobre a violência dos desaparecido. Para ele, o assassinato dos dois demons-
anos de chumbo e o longo tempo de espera para sepul- trava o “arrocho” da ditadura militar, que, segundo ele
tar sua lha. “Essas pessoas foram chamadas de subver- “queria se perpetuar no poder e, para isso, não se impor-
sivas por quem feriu a lei e a ordem constitucional”, tava em matar e acabar com uma família inteira”.
disse o pai, tenente-coronel do Exército Brasileiro,
agora na Reserva. “Por isso foram perseguidas, seques- ***
tradas e nalmente mortas. A sanha assassina dos
militares que compuseram o sistema repressivo não Quase um ano se passou até que uma segunda ossa-
encontra paralelo em nossa história”. da retirada da vala fosse identi cada pela equipe de
Dom Paulo Evaristo Arns, o cardeal de São Paulo, Badan Palhares. Em 25 de junho de 1992, uma quinta-
presidiu a cerimônia. As três urnas foram expostas no feira, o centro de convenções da Unicamp recebeu nova-
altar da Sé, cobertas com bandeiras do Brasil. “Tristeza mente a prefeita de São Paulo e autoridades como o sub-
por descobrir um Brasil tão covarde”, comentou o arce- secretário de Segurança Pública do Estado, Daniel
bispo na homilia. Não foi a primeira nem seria a última Roberto Fink, e o secretário municipal de Assuntos
manifestação do cardeal contra a ditadura. Nem seu Jurídicos da capital, Dalmo Dallari. Ali, acompanhado
primeiro envolvimento com o tema da vala clandestina. pelo reitor da Unicamp, Carlos Vogt, o médico legista

105
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

Fortunato Badan Palhares anunciou a identi cação dos pessoa está morta. Eu comecei a viver isso só agora.
restos mortais de Frederico Eduardo Mayr, também Foi um alívio. Finalmente, Gertrud, chamada de
acompanhado das identi cações de outras duas ossa- Tula pelos familiares e amigos, poderia velar o corpo do
das, não relacionadas à vala clandestina: Emanuel lho. Chorou por uma semana como se a perda fosse
Bezerra dos Santos, militante do Partido Comunista recente. Repetindo a experiência do ano anterior, o
Revolucionário, morto aos 26 anos e enterrado como cardeal de São Paulo celebrou uma missa na Sé, as três
indigente no cemitério Campo Grande, na zona sul de urnas cobertas com bandeiras do Brasil. Os ossos de
São Paulo, em 1973; e Helber José Gomes Goulart, mili- Frederico foram nalmente enterrados no jazigo da
tante da ALN, morto aos 29 anos e enterrado como família, no Rio de Janeiro, para onde haviam se mudado
indigente em Perus, também em 1973. quando Frederico era criança. Tula sentia-se grata por
Estudante de arquitetura e militante do Movimento ter o lho identi cado depois de tanta espera. Grata a
de Libertação Nacional (Molipo), o catarinense Frede- quem descobriu a vala, grata a quem teve a coragem de
rico Mayr tinha 23 anos e estava na clandestinidade revelá-la, e grata, sobretudo, aos peritos que haviam
desde os 20 quando foi baleado na Avenida Paulista e identi cado os ossos.
torturado até a morte no DOI-Codi, em fevereiro de Depois de Frederico, nenhum outro desaparecido
1972. No livro do cemitério, o corpo deu entrada com o da vala seria identi cado pela equipe de Badan Palhares.
nome falso de Eugênio Magalhães Sardinha, o que só se
descobriu anos depois, quando o atestado de óbito ***
emitido neste nome foi anexado ao processo de Mayr na
2ª Auditoria Militar. Após a abertura da vala clandesti- O relatório que chegou às mãos do deputado esta-
na e a divulgação de que as ossadas atribuídas a Eugênio dual Renato Simões em meados dos anos 1990 era cho-
Magalhães Sardinha estavam entre as mais de mil exu- cante. Sacos de ossos amontoados, uns sobre os outros,
madas entre 1975 e 1976, a mãe de Mayr, Gertrud, via- espalhados pelo chão. Alguns com cadeiras por cima.
jou até São Paulo para entregar fotogra as e preencher o Ossadas úmidas, cobertas de fungo. Um cenário desola-
formulário elaborado pela equipe de medicina legal: dor, com sujeira e abandono, onde deveria haver ordem
altura, peso, idade, cor da pele, alguma de ciência e asseio cientí co.
física, alguma fratura ou extração dentária. As funcionárias responsáveis pela limpeza do
Pouco mais de um ano depois, em junho de 1992, Departamento de Medicina Legal não se conformavam
Gertrud pôde ver na tela de um computador da Uni- com tamanho descaso. No início reticentes, fugindo da
camp a sobreposição do retrato que havia levado ao sala das ossadas como quem vê fantasma, fazendo o
registro fotográ co de um crânio. Foi como se ela sinal da cruz e resmungando qualquer coisa sobre vir-
pudesse ver o lho novamente vivo na tela. Ele estava gens e santas, as moças acabaram se solidarizando com
ali, diante dela, sorridente, com o mesmo bigode, os aquele ossário insólito e absolutamente informal. Per-
mesmos olhos claros, o mesmo cabelo loiro. As medidas ceberam que a sala inundava em dias de chuva e, quan-
coincidiam, todas elas. Só agora, vinte anos depois, do isso ameaçava acontecer, corriam para retirar os
Gertrud viveria o luto normal de uma mãe que perde o sacos do chão e os colocar de forma improvisada sobre
lho. Antes, segundo ela, era um sentimento íntimo e os móveis. Principalmente, rezavam. Ou oravam, con-
dolorido, mas que não se externava. forme a fé de cada uma. Rezavam porque sabiam que
— Não que eu estivesse reprimindo, mas não con- aqueles mortos não estavam em paz.
seguia sair — a rmou, em depoimento para o docu- — Esses ossos estão querendo voltar pra debaixo da
mentário Vala comum, de João Godoy, lançado em terra — dizia uma.
1994. — Agora, é o normal. É o que acontece a qualquer — Isso é jeito de cuidar dos mortos? Que desrespei-
pessoa, a qualquer mãe ou irmão quando perde alguém to! — indignava-se outra.
da família. Ver a pessoa, enterrar a pessoa, saber que a Àquela altura – e isso estava claro para as faxineiras

106
Primeiras análises

– os peritos já não periciavam mais nada. E as autorida- Badan Palhares de gastar o dinheiro do convênio na
des, sempre dispostas a aparecer no jornal e a dar entre- construção de um novo edifício para o departamento:
vista para a TV com promessas de concluir a análise dos um prédio com 1.200 metros quadrados, auditório para
ossos antes do m do mandato, haviam simplesmente 120 pessoas, laboratório de DNA e o primeiro laborató-
sumido. Desde 1993, nada de novo acontecia por ali. rio de fonética forense do Brasil, como o próprio médi-
— Sei não — comentava uma das funcionárias. — co legista descreveria, orgulhoso, no livro de memórias
Se não tem ninguém pra olhar por essas almas, é bom a Por que converso com mortos, publicado em 2007.
gente tomar conta delas. Enquanto isso, as análises das ossadas eram negli-
O ano de 1993 fora terrível para as pesquisas no genciadas. Não havia audiências com as famílias, nem
Departamento de Medicina Legal. Em março daquele boletins informativos, nem compartilhamento de
ano, Luiza Erundina transmitira o cargo de prefeita informações, nem o anúncio de novas identi cações.
para seu sucessor, Paulo Maluf. O novo prefeito repre- Aparentemente, as análises haviam sido interrompidas.
sentava tudo aquilo que os familiares de mortos e desa- E tudo o que Palhares fazia, quando procurado, era
parecidos mais temiam: um político apoiado pelos exibir o mesmo relatório mostrado seis meses antes –
generais, que fora prefeito e governador biônico, oposi- um ano antes, um ano e meio antes – e reclamar da falta
tor de Tancredo Neves no colégio eleitoral, apologista de recursos.
da Rota e de seus métodos e, principalmente, o mesmo Segundo o legista, não havia elementos comproba-
prefeito que, na primeira passagem pela Prefeitura, fora tórios su cientes para identi car mais ninguém. Ele
o responsável pela construção do Cemitério Dom Bos- não estava totalmente errado em relação a isso. Para
co. Um dos primeiros atos de Maluf ao reassumir a emitir um laudo categórico, faltava uma comprovação
Prefeitura, em março de 1993, fora exonerar Toninho genética, tecnologia de que a Unicamp não dispunha.
Eustáquio, o administrador que havia revelado a exis- Sua equipe havia separado as ossadas de Perus em qua-
tência da vala clandestina. tro diferentes grupos conforme a presença de elementos
Simultaneamente, a Secretaria Estadual de Segu- comprobatórios. A ausência de dentes na arcada superi-
rança Pública entrara também num período confuso, or da boca de Dênis Casemiro, por exemplo, era uma
caracterizado por suspeição e denúncias, desde que característica muito especial que, associada a outros
uma operação da Polícia Militar resultara na morte de pontos de convergência, tornaria praticamente impos-
mais de uma centena de presidiários, chacinados por sível que aquele crânio fosse de outra pessoa. Por isso
agentes da PM na Casa de Detenção de São Paulo, no sua ossada foi colocada no primeiro grupo e rapida-
bairro do Carandiru, em outubro do ano anterior. Três mente identi cada. A maioria das outras ossadas, no
dias após a chacina, o governador exonerou o secretário entanto, ofereciam um número menor de similarida-
Pedro Franco de Campos, o mesmo que estivera no des. Em muitos casos, o que se tinha eram ossos frag-
evento de divulgação das primeiras identi cações, em mentados, que tornavam ainda mais complexa a identi-
1991, e o substituiu por um professor de Direito e pro- cação por sobreposição de imagens.
curador do Estado que permaneceria à frente da pasta Já em 1991, Badan Palhares havia separado as ossa-
até o nal do ano seguinte: Michel Temer. das com maior possibilidade de serem alguns dos desa-
Com Maluf na Prefeitura e Fleury no governo, parecidos reclamados por familiares, como Flávio Moli-
obviamente desgastado pelo episódio do massacre, na e Dimas Casemiro. Suas chas estavam catalogadas.
faltava vontade política para que as coisas andassem. A tecnologia de que dispunha, no entanto, não bastava
Novos recursos não chegavam ao Departamento de para se ter um veredicto. A partir de 1993, o legista
Medicina Legal, e a verba já empenhada – bem menos repetia isso a quem o procurasse, ao mesmo tempo em
do que havia sido prometido por Erundina e Quércia que reclamava diuturnamente da falta de dinheiro,
anos antes – havia secado. tanto para adquirir equipamentos mais modernos
Familiares de mortos e desaparecidos acusavam quanto para remunerar as horas extras de sua equipe.

107
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

Em outras palavras: não fazia sentido ngir que conti- Brasília, onde teria se encontrado com Romeu Tuma, o
nuaria trabalhando nas ossadas. Os trabalhos di cil- todo-poderoso da Polícia Federal, e mudara sua versão:
mente avançariam sem um equipamento que permitis- aquela ossada não poderia ser da guerrilheira, declarou
se extrair DNA dos ossos, por exemplo. a um jornal. De acordo com o tecido de que era feita a
Naquele momento, o Brasil já detinha tecnologia calcinha, deveria se tratar de uma prostituta, vítima de
para extrair DNA de amostras de sangue e de mucosa, crime passional no norte do Tocantins.
mas não de ossos. Sem perspectiva de sucesso nas con- Cinco anos depois, em abril de 1996, o jornal O
dições de que dispunha, o chefe dos trabalhos partira Globo publicou duas fotos de Maria Lúcia Petit morta, o
intuitivamente para o tudo ou nada: ou obtinha recur- rosto escondido num saco plástico e o corpo deitado
sos para introduzir a Unicamp na era da genética foren- sobre um paraquedas do Exército. O tecido do paraque-
se, ou o convênio poderia ser encerrado com apenas das parecia ser o mesmo encontrado junto à ossada
duas ossadas identi cadas num universo de 1.049. Uma exumada em Xambioá. Familiares foram cobrar expli-
alternativa seria enviar amostras para Londres, o que cações de Badan Palhares, que voltou a cogitar a possi-
também exigiria recursos elevados, e para isso havia a bilidade de ser Maria Lúcia.
necessidade de mais dinheiro. O problema é que ele não — O problema é que não podemos cravar — ele disse.
combinou com os russos: nem com os familiares, nem — Faltam elementos comprobatórios.
com a reitoria. E, por descaso ou de forma deliberada, — Mas de que mais o senhor precisa?
acabou incorrendo em ações que tumultuaram ainda — Um molde dos dentes, uma radiogra a da boca,
mais a relação com familiares de desaparecidos e mili- um dentista que tenha tratado dela quando viva, por
tantes dos direitos humanos. exemplo.
Num dos episódios, conforme se descobriu em Irmã de Maria Lúcia, Laura espumava de ódio. Por
reunião entre representantes da Unicamp e familiares diversas vezes, ainda em 1991, ela havia insistido para
de mortos e desaparecidos realizada em outubro de que Badan Palhares recebesse o dentista. O legista havia
1995, Badan Palhares encaminhara fragmentos de desprezado sua sugestão, como se não tivesse serventia
ossos para a Universidade Federal de Minas Gerais, alguma, martelando a teoria de que a ossada era de uma
numa época em que pesquisadores desta universidade prostituta. Agora, confrontado pela fotogra a no
tentavam realizar extração de DNA de ossos humanos. jornal, Palhares mudara o discurso. Laura conseguiu
Mas o zera sem autorização de ninguém. Nem comu- levar até a Unicamp dois dentistas que haviam atendido
nicara as famílias. Ou seja, o médico não hesitara em a irmã e feito uma coroa num dente dela em 1967.
colher amostras daquelas ossadas, já tantas vezes mal- Palhares não teve mais como negar.
tratadas pelo tempo e pelas condições em que tinham — Agora podemos atestar que se trata de Maria
sido ocultadas, e as enviara para outro Estado na surdi- Lúcia Petit — o médico a rmou.
na. Mais grave: alguns ossos teriam sido despachados
para a Alemanha sem qualquer comunicação prévia, ***
conforme admitira o próprio legista.
Em outro episódio, Palhares foi acusado de agir de Essas histórias corriam de boca em boca em grupos
má fé ao mudar uma declaração por razões políticas. como o Tortura Nunca Mais, até que a imagem de
Ainda em 1991, após participar da exumação de uma Badan Palhares ruiu de forma irreversível. O mesmo
ossada em Xambioá, na região do Araguaia, que pode- médico que despertara sentimentos de gratidão nos
ria pertencer à guerrilheira Maria Lúcia Petit, morta familiares de Frederico Eduardo Mayr e Dênis Casemi-
pela repressão em 1972, Palhares a rmara, no local, que ro agora era tratado como impostor, mercenário, ou, na
as características batiam e que sua identidade seria melhor das hipóteses, negligente.
con rmada tão logo o material chegasse à Unicamp. Na Nesse contexto, as fotogra as feitas na sala em que
viagem de volta, no entanto, Palhares fez escala em as ossadas eram armazenadas caíram como uma bomba

108
Primeiras análises

nas reuniões da Comissão de Familiares de Mortos e governo Fleury provocara em sua etapa nal. No âmbi-
Desaparecidos Políticos. to federal, seu colega de partido, Fernando Henrique
— Inaceitável! — diziam. — Esse crápula vai desa- Cardoso, havia promulgado em dezembro do ano ante-
parecer com as ossadas. Elas vão se misturar, apodrecer, rior a lei 9.140, que reconhecia como mortas pessoas
esfarelar, e nunca mais um dos nossos será identi cado. desaparecidas em razão de participação, ou acusação de
A angústia era especialmente maior entre os famili- participação, em atividades políticas no período de
ares dos desaparecidos cujas ossadas tinham maior 1961 a 1979. A mesma lei, fortemente in uenciada
chance de estarem na vala – uma vez que seus corpos pelos trabalhos realizados pelos familiares após a aber-
tinham sido enterrados nas quadras 1 e 2 e exumados tura da vala, também criara a Comissão Especial sobre
entre 1975 e 1976 sem indicação de local de reinumação Mortos e Desaparecidos Políticos, responsável por
– como Dimas Casemiro, Flávio Molina, Grenaldo analisar novos casos. Finalmente, contava pontos em
Jesus da Silva e Francisco José de Oliveira. Estendia-se favor de Belisário seu engajamento junto à Comissão
também a todos que tinham esperança de localizar seus Justiça e Paz de São Paulo, aliada na busca por identi -
mortos, inclusive as famílias de Marlene Rachid cações dos mortos e desaparecidos.
Papembrok e Olímpio de Carvalho, dois desaparecidos Em 30 de outubro de 1996, tanto o reitor quanto o
que não tinham nenhuma atividade política, mas que procurador geral da Unicamp viajaram até São Paulo
sumiram em São Paulo no início dos anos 1970. Tanto para buscar uma solução no gabinete de Belisário. Na
os lhos de Olímpio quanto uma irmã de Marlene reunião, cou decidido que as ossadas continuariam na
requisitaram à equipe da Unicamp que incluíssem seus Unicamp, mas Badan Palhares seria necessariamente
familiares na busca e enviaram a documentação neces- afastado da coordenação. A reitoria se comprometia a
sária. Uns mais, outros menos, todos depositavam suas responder por escrito a todas as perguntas encaminha-
esperanças na perícia conduzida por Palhares e eram das pelos familiares e a aceitar a presença de um perito
igualmente vítimas do evidente descaso e da aparente internacional como observador dos trabalhos. A Secre-
procrastinação. taria de Segurança Pública, por sua vez, enviaria legistas
Renato Simões presidia a recém-criada Comissão de sua estrutura para acompanharem o processo.
de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Naquele mesmo dia, Badan Palhares foi substituído
Paulo (Alesp) quando as fotos chegaram até ele, ainda pelo médico legista José Eduardo Bueno Zappa, que já
em 1996. Entregues por Maria Cristina Von Zuben, atuava como seu braço direito no DML e anos mais
professora de ética médica na Faculdade de Medicina tarde se tornaria seu sócio numa clínica particular de
da Unicamp e ex-presa política, aquelas imagens acaba- patologia. A despeito da cumplicidade entre os dois, a
ram de agrando um processo irreversível de reivindi- relação do substituto com os familiares parecia preser-
cações junto à universidade. Pressionado, Badan Palha- vada. As perguntas enviadas à reitoria só foram respon-
res decidiu que os trabalhos de análise e identi cação didas em março, mais de três meses depois. O perito
estavam concluídos, uma vez que não havia por onde enviado pela Secretaria Estadual de Segurança Pública,
avançar, e sugeriu que as ossadas fossem devolvidas à Carlos Delmonte, concluiu que a equipe de Badan
Prefeitura de São Paulo. Palhares não havia cometido nenhuma imprudência,
— O prefeito é o Maluf — reagiram os familiares. — descaso ou falta de zelo na condução dos trabalhos. E
Imagina o que pode acontecer se essas ossadas passa- nenhum perito internacional foi à Unicamp nos meses
rem à responsabilidade do Maluf. seguintes.
Estabelecido o impasse, o Secretário Estadual de No dia 14 de abril de 1997, Zappa enviou um relató-
Justiça, Belisário dos Santos Júnior, tratou de convocar rio ao reitor da Unicamp acompanhado de um ofício em
uma reunião na própria Secretaria de Justiça. O Estado que resumia os trabalhos desenvolvidos em relação às
de São Paulo era agora governado por Mário Covas, ossadas do Cemitério Dom Bosco e reiterava a falta de
sobre quem já não havia a mesma resistência que o perspectiva em relação a novas identi cações. Foi a

109
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

primeira vez que um relatório foi entregue aos familia-


res. “Das 1.047 ossadas restantes, duas estão em proces-
so de identi cação por exame de DNA na Universidade
Federal de Minas Gerais”, escreveu o novo chefe do
departamento, referindo-se a mais uma tentativa de
identi cação que não daria em nada. “Isto posto, mag-
ní co reitor, damos por concluída a etapa dos trabalhos
referentes a 1.045 das 1.049 ossadas da vala comum do
Cemitério de Perus, presentemente sob a guarda do
DML da Unicamp, todas devidamente catalogadas e
numeradas, as quais, sob a ótica pericial da metodologia
utilizada, estão a partir de hoje à disposição da justiça”.
Em fevereiro do ano seguinte, esgotadas as possibi-
lidades de avançar com as análises em Campinas, inici-
aram-se as tratativas para que as 1.047 ossadas restantes
fossem transferidas para o Instituto Oscar Freire, vincu-
lado à Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo, o
que só seria consumado em 2001.
O Departamento de Medicina Legal da Unicamp
foi extinto em 1999, sem que nenhum outro desapareci-
do fosse identi cado. Badan Palhares, ainda se envolve-
ria em outros casos de grande visibilidade e repercus-
são, entre eles a produção, em 1996, de um controverti-
do laudo em que a rmava que Paulo Cesar Farias,
tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor, fora
assassinado pela namorada Suzana Marcolino. Ela teria
praticado suicídio em seguida. A versão, na época, foi
amplamente contestada por outros peritos, que enten-
diam o crime como duplo homicídio. Queima de arqui-
vo, diziam. PC Farias, pivô dos escândalos de corrupção
culminaram com o impeachment de Collor em 1992,
sabia demais. Palhares manteve-se no cargo de profes-
sor titular de medicina legal até 2003, quando se apo-
sentou.
Antes que a primeira década do século XXI che-
gasse ao m, as ossadas de um terceiro desaparecido
político exumadas da vala clandestina seriam identi -
cadas. E Badan Palhares viraria réu numa Ação Civil
Pública proposta pelo Ministério Público Federal,
acusado de “descaso, negligência, desinteresse e des-
respeito perante o inalienável direito das famílias de
enterrar seus entes queridos”.

110
Vala clandes na: passado, presente, futuro
Jéssica Moreira⁸
FOTO: MEIRE RAMOS

água ou salgadinho no portão do cemitério. Ou se


tornavam frentistas de ocasião no estacionamento
improvisado no quintal de tio João André, que mora-
va literalmente em frente à necrópole.
Era caminhando que meu pai, minha mãe e eu
chegávamos ao Dom Bosco para assistir à missa prin-
cipal, realizada pela manhã junto ao muro vermelho
que homenageia os mortos pela ditadura militar.
Depois, parávamos na casa do tio. E, ao m, o feriado
se enchia de festa e encontros.
Talvez, esse fosse um dos poucos momentos do
ano em que a população do bairro ouvia tão direta-
mente sobre a ditadura civil-militar. Talvez, tenha
sido ali mesmo que ouvi pela primeira vez sobre o
período. Sem entender muito bem – ou quase nada –
⁸Jéssica Moreira é escritora os símbolos que aquilo trazia.
e jornalista, moradora de Em outras ocasiões, ia com meu pai visitar fami-
Perus, repórter da Agência liares e parava para tomar um suco ou comer um doce
Mural de Jornalismo das
Periferias e coautora do blog no bar do Toninho, o Antônio Pires Eustáquio, que
Morte Sem Tabu. É coautora sempre foi próximo a nós. Beirando os 9 anos, eu não
também do livro Queixadas: poderia imaginar que tanto o Toninho quanto o tio
por trás dos 7 anos de greve João, um ex-administrador e um sepultador do cemi-
(2013) e uma das autoras do Cena do espetáculo “Comum”, do Grupo Pandora de Teatro.
livro Heroínas desta História Uma das qualidades da peça é narrar a construção da vala tério, eram ambos parte da história daquele muro
(Ins tuto Vladimir Clandes na a par r da perspec va dos sepultadores vermelho, daquele monumento em homenagem aos
Herzog/Autên ca, 2020). mortos e desaparecidos da ditadura. Mais do que isso:
Integra a equipe fundadora os dois integravam um capítulo importante da memó-
Em Dia de Finados, as ruas de Perus, na região
do cole vo Nós, Mulheres da
Periferia. Noroeste de São Paulo, enchiam-se de gente. Fuscas, ria do bairro e de todo o Brasil.
brasílias, ônibus e kombis formavam uma la quilo- Aos 17, o espetáculo A revolta dos perus,⁹ ence-
⁹Ver métrica nas adjacências do Cemitério Dom Bosco. nado no CEU pelo Grupo Pandora de Teatro, formado
h p://grupopandora.blogsp
O bairro de ares interioranos vivia um verdadei- por atrizes e atores da região, trouxe de volta as lem-
ot.com/2008/07/revolta-
dos-perus.html. Acesso em: ro dia de ‘‘centro’’ nessas datas. Eu, menina, esperava branças da infância, das visitas ao cemitério, do suco
2 dez. 2020. ansiosa. Alguns familiares trabalhavam vendendo no bar do Toninho. No palco, o elenco emendava his-

111
FOTO: MEIRE RAMOS
A peça “Comum” também homenageia os cinco desaparecidos polí cos já iden ficados entre as ossadas da vala: Denis Casemiro
(iden ficado em 1991), Frederico Mayr (1992), Flávio Molina (2005), Dimas Casemiro (2018) e Aluísio Palhano (2018)

tórias do bairro e transformava em arte as memórias anos 1970, a administração municipal, em tratativas
de coisas que eu só tinha ouvido falar. com o Instituto Médico Legal (IML), tentou importar
Na mesma época, descobri o documentário o equipamento de uma empresa inglesa, mas ela,
Perus: o bairro que construiu o Brasil, de Fausto Fass. ⁰ sabendo da repressão que assolava o país, se esquivou
Assisti ao lado de Tio João, que viu a si próprio e a seus do contrato, uma vez que o projeto não previa sequer
companheiros sepultadores na tela e me contou, resu- um espaço para receber familiares e velar os corpos,
midamente, que havia feito parte de um dos últimos conforme apontado pela Comissão Parlamentar de
capítulos da ditadura, mesmo sem querer. Inquérito criada em 1990. Havia algo de muito errado
Pouco tempo depois, me tornei jornalista comu- naquele lugar.
nitária de Perus por meio do Blog Mural, hoje Agência E a população de Perus? Segundo a professora ¹⁰Disponível em:
Mural de Jornalismo das Periferias. Numa das minhas h ps://www.youtube.com/
aposentada Regina Bortoto, moradores reunidos na
watch?v=1CXd1nUsEGw.
primeiras reportagens, entrevistei tanto o Toninho Sociedade Amigos do Bairro clamavam há tempos Acesso em: 2 dez. 2020.
quanto meu tio para entender o que realmente havia por um cemitério. “No projeto proposto pela popula- ¹¹Funcionários revelam como
acontecido e por que existia um monumento no cemi- ção, o cemitério seria construído no terreno onde hoje encontraram vala de Perus
tério. que recebia mortos pela
é o Viaduto Bandeirantes”, diz ela, que ouviu o teste-
ditadura. Disponível em:
munho de seu pai, membro da associação de morado- h ps://mural.blogfolha.uol.c
O nascimento do Cemitério Dom Bosco res. “Embaixo dele havia uma área e eles reivindica- om.br/2014/04/01/funciona
Criado em 1971 na gestão do então prefeito vam aquele lugar para poder enterrar seus mortos”. O rios-revelam-como-
encontraram-vala-de-perus-
Paulo Maluf, o Cemitério Dom Bosco nasceu para prefeito e sua equipe, no entanto, tinham outros pla-
que-recebia-mortos-pela-
sediar um crematório. O projeto original da necrópo- nos, segundo Regina. “Na época, ninguém questio- ditadura/.
le previa a exata localização do forno. No início dos nou por que optaram por um lugar afastado, longe do Acesso em: 2 dez. 2020.

112
‘‘
centro de Perus”, ela conta. “Acharam estranho, mas Na época, ninguém ques onou
não questionaram. Estavam satisfeitos porque, nal-
por que optaram por um lugar afastado,
mente, teriam um cemitério mais perto de casa”.
Mesmo separadas por mais de duas décadas,
longe do centro de Perus”, conta a
minhas memórias encontram as de Regina quando o professora aposentada Regina Bortoto.
assunto é o cemitério. Na Vila Caiúba, onde ela viveu a “Acharam estranho, mas não
infância na década de 1970, não havia nada além de ques onaram. Estavam sa sfeitos
uma padaria e um açougue, por isso o cemitério se porque, finalmente, teriam um

’’
tornou uma novidade e sinônimo de movimentação cemitério perto de casa
de pessoas. “O cemitério era o que demandava um
movimento diferente, sobretudo quando havia corte-
jo. O Dia de Finados era ainda mais interessante. Era tadores evitavam falar sobre o assunto. Certa vez, um
quando havia mais circulação no bairro. As pessoas deles revelou a Toninho que a vala ilegal tinha sido
iam caminhando até o cemitério, por não ter ônibus cavada próxima ao antigo cruzeiro do cemitério. O
ou outra condução até lá. Quem não tinha carro subia administrador usou uma sonda, um ferro pontiagudo
toda a rua a pé, e aquilo nos trazia vida. Para nós, as com mais de três metros de comprimento, para encon-
crianças, era sinônimo de que havia movimento”, trar a localização exata daquele buraco. E agora?
lembra. Por mais de uma década, Toninho solicitou aos
diretores do Serviço Funerário e os gestores que se
A vala clandestina sucediam à frente da Secretaria de Serviços e Obras
Embora os planos do crematório não tenham que tomassem alguma providência em relação àquela
sido concretizados, o Dom Bosco seguiu seu destino descoberta. Familiares de desaparecidos visitavam o
de servir à ditadura militar, ocultando mais de mil cemitério com frequência em busca das ossadas de
ossadas humanas numa vala clandestina, construída seus entes queridos e ele não podia dizer nada. Até
em 1976, cinco anos após a inauguração da necrópole. 1990, quando Toninho teve a ousadia de quebrar o
Além de corpos de militantes vítimas da repressão, o silêncio e contar o que sabia para o jornalista Caco
espaço comportou mortos pelo esquadrão da morte, Barcellos. A vala clandestina pôde nalmente ser
indigentes e também aqueles que morreram em revelada publicamente em 4 de setembro daquele ano.
decorrência da epidemia de meningite que assolou Hoje aos 75 anos, Toninho administra uma ori-
São Paulo em meados dos anos 1970, o que inclui cultura e um bar. Nem todo mundo que entra no esta-
principalmente a população negra e periférica da belecimento sabe de seu histórico comprometido com
cidade. a justiça e a verdade, mas para quem pergunta ele faz
Meu tio, que trabalhou no cemitério desde sua questão de contar. “O momento de maior medo foi
inauguração, não só assistiu à construção da vala quando ameaçaram meus lhos, mas fora isso eu
¹²VITORINO, Amanda. Da como também sepultou ali – a mando de seus superio- nunca tive medo. Minha convicção era cuidar dessa
ditadura à pandemia de res – centenas de ossadas que ele não sabia exatamente memória”, conta o ex-funcionário, que ainda hoje
covid-19: a necropolí ca de onde vinham. mora em frente ao cemitério.
brasileira. Nós, mulheres da
Pouco depois, o Dom Bosco mudou de gestão. Segundo a professora Regina, algumas pessoas
periferia, 4 set. 2020
Disponível em: Foi quando Antônio Eustáquio chegou ao local como ligadas ao Centro de Defesa de Direitos Humanos
h p://nosmulheresdaperifer administrador e, com seu faro de jornalista investiga- Carlos Alberto Pazini e a alas da Igreja Católica já
ia.com.br/nossas-vozes/da- tivo, estranhou a quantidade de corpos que, segundo haviam ouvido boatos, em meados dos anos 1980, de
ditadura-a-pandemia-de-
registros, haviam sido exumados de suas sepulturas que ali havia uma movimentação diferente. Em 1990,
covid-19-a-necropoli ca-
brasileira/ em meados dos anos 1970, sem que houvesse nenhu- tiveram a con rmação. A história ganhou destaque na
Acesso em: 13 mar. 2021. ma indicação do destino daquelas ossadas. Os sepul- imprensa. Era a primeira vez que a notícia chegava

113
FOTO: KAREN SIQUEIRA
Uma das a vidades desenvolvidas pela Comunidade Cultural Quilombaque, que atua em Perus há 15 anos, é a trilha de memória
Ditadura Nunca Mais, feita com grupos de estudantes. O Cemitério Dom Bosco está entre os pontos de parada

o cialmente aos ouvidos, olhos e mentes dos morado- sobre o assunto no Grupo Amigos de Perus, com mais
res de Perus. de 90 mil integrantes numa rede social, apenas vinte
Quando a vala clandestina foi aberta, Rogério comentaram a postagem. A maioria indicou o nome
Trentin tinha 14 anos e morava a 3 km do cemitério. da professora de História Jaine Lima, 55 anos. Hoje
“Ainda jovem, conheci as histórias da vala clandesti- aposentada, ela realizou em 2013 um curso de pós-
na”, diz. “Vi a imprensa chegando. Vi pais e mães que graduação lato sensu na Unicamp, de especialização
foram ao local pensando em seus lhos desaparecidos em História, e produziu o trabalho Tortura e morte na
pela ditadura civil-militar”. Professor de História na vala comum do bairro de Perus. “Como cresci em
região, Rogério, aos 44, faz questão de trazer as diver- Perus, me interessei pela história do bairro, especial-
sas histórias que a população ainda desconhece. “Pe- mente pela história da vala clandestina”, conta.
dagogos e historiadores lutam para cada vez mais Quando a vala foi revelada, Jaine tinha 25 anos e
interagir com o lócus da história e mostrar, assim, ainda cursava o magistério. “Eu tinha um tio que era
outras realidades aos alunos. Perus possui muitas policial militar e dizia que o comunismo era uma coisa
histórias e tê-las em livros e artigos onde os alunos ruim. Como eu era muito curiosa, fui pesquisar o
consigam acessar ajuda a manter a história viva”. Para assunto. Quando passei a dar aulas para o 3º ano do
o educador, abordar esses fatos nas aulas faz com que o Ensino Médio e o programa incluía tratar da ditadura
aluno “amplie seu conhecimento, quebre paradigmas militar, sempre dava ênfase à história da vala de Perus,
e tenha um olhar participativo no bairro, mesmo a com trabalhos de campo e visitas ao Memorial da
ditadura sendo ainda um período sombrio de nossa Resistência”, conta.
história”. Sobre o período que precede a abertura da vala,
Ao buscar outras pessoas que topassem falar Jaine lembra-se não apenas do tio que alertava sobre

114
os riscos do comunismo, mas também dos fuscas da Diferentemente de outros jovens de sua idade, a
Polícia que faziam a ronda no bairro – e que eram atriz e arte-educadora Caroline Alves, 21 anos, cres-
chamados de “baratinhas”. “Meu pai tinha medo de ir ceu ouvindo as memórias do bairro. Não na aula de
ao sindicato, porque de vez em quando a polícia apa- História das escolas públicas em que estudou, mas por
recia lá”, ela conta. “Lembro também das aulas de meio dos coletivos culturais locais, principalmente
Moral e Cívica e das aulas de Organização Social e por meio dos espetáculos teatrais do Grupo Pandora,
Política Brasileira (OSPB) na escola. E de cantar o que ela integra desde 2016. Um dos eixos do trabalho
Hino Nacional todas as quartas-feiras”. Para ela, o do grupo, formado majoritariamente por moradores
Cemitério Dom Bosco é o cenário de uma história de Perus, é pesquisar as relações entre teatro, memória
verídica de um período de censuras, prisões e mortes e território. “Estamos em contato constante com a
de pessoas que questionavam a ditadura e a opressão. população. As questões sociais, políticas e econômi-
“Por isso, é nossa obrigação contar e recontar os fatos, cas que permeiam esse espaço também nos atraves-
para que, no futuro, isso não volte a acontecer.” sam”, diz Caroline.
No processo de construção do espetáculo
Silêncios que atravessam os tempos Comum, o grupo pôde realizar uma pesquisa aprofun-
O silêncio e o medo de comentar o assunto, no dada acerca da ditadura civil-militar, assim como
entanto, permanecem nas gerações mais velhas. Mui- entender o contexto latino-americano do período,
tos ainda evitam falar sobre a vala com medo de repre- com aulas abertas à população que contaram com
sálias. O grupo de psicólogos do projeto Margens guras históricas da luta por verdade e justiça, como
Clínicas, implementado no bairro de 2016 a 2017, Amelinha Teles e o próprio Toninho. Nas montagens,
pôde constatar isso de perto, ao ter di culdade de boa parte do público foi formada por alunos de esco-
encontrar gente que topasse falar sobre o período em las públicas da região que, muitas vezes, não sabiam
rodas públicas. “A violência de Estado produz esse sobre a conexão de Perus com a ditadura. “Fui perce-
silêncio”, nota o psicólogo Vitor Barão, 36 anos, inte- bendo a importância de compartilhar com a juventu-
grante do projeto. “É raro alguém se levantar para de essa memória do território, pouco abordada nas
contar o que sabia ou dar seu depoimento. Esse silen- escolas e no Brasil em geral”, lembra Caroline. “Essa
ciamento é fruto da mesma violência”. memória permanece soterrada, por isso é tão impor-
Toninho se entristece. Na época, lembra de ter tante trazê-la a público e contar para os mais jovens
sido julgado por muitos companheiros e de ter cado que existiu uma ditadura no Brasil. A gente não pode
conhecido como alguém que foi exonerado do serviço esquecer disso, para que as mortes e outras atrocida-
público por ter “mexido com os terroristas”, forma des não se repitam”.
preconceituosa que parte da população denominava Além do Pandora, a Comunidade Cultural Qui-
os militantes políticos.

Arte e cultura como fontes de memória


O Cemitério Dom Bosco é o cenário de
Por outro lado, movimentos formados pela uma história verídica de um período de
juventude do bairro têm buscado tornar o assunto censuras, prisões e mortes de pessoas
cada vez mais público. É o caso do Grupo Pandora de que ques onavam a ditadura e a
Teatro, que existe desde 2004 e sempre trouxe as nar- opressão. “Por isso, é nossa obrigação
rativas de Perus às suas peças. Em 2018, o grupo lan-
¹³Ver site do Grupo Pandora,
contar e recontar os fatos, para que, no
çou o espetáculo Comum, que conta a história da
disponível em:
vala clandestina por três diferentes perspectivas: a dos
futuro, isso não volte a acontecer”, diz
h p://grupopandora. a professora de História Jaine Lima
blogspot.com/2018/. sepultadores, a dos militantes políticos e também a de
Acesso em: 13 mar. 2021. quem até hoje busca por familiares desaparecidos.

115
FOTO: CAMILO VANNUCHI
Grafi elaborado pelo ar sta urbano Caio Bless faz referência à censura ins tucionalizada pela ditadura militar. Em dezembro de 2015,
como parte do Fes val Municipal dos Direitos Humanos, todo o muro do Cemitério Dom Bosco, em Perus, foi grafitado com cenas
inspiradas na repressão dos chamados “anos de chumbo”

lombaque, que atua na região há 15 anos sob uma Camila a rma ainda que percorrer o cemitério e
perspectiva preta e antirracista, também tem contri- conhecer a verdade sobre a vala, bem como as formas
buído para que a história da vala clandestina ecoe de violência praticadas pelo Estado nos anos de dita-
entre os moradores de Perus, principalmente entre os dura, é uma forma de evitar que a história seja esque-
mais jovens. Uma das atividades desenvolvidas pela cida. “Tantas pessoas morreram em nome da demo-
Quilombaque é a trilha de memória Ditadura Nunca cracia e em defesa de uma sociedade que fosse mais
Mais, feita com grupos de estudantes. O Cemitério justa e igualitária”, aponta ela. “Vivemos um momento
Dom Bosco está entre os pontos de parada. “É impor- em que é preciso car relembrando o que é democra-
tante destacar o genocídio que houve naquela época e cia. Nesse sentido, a trilha reforça quais lutas precisa-
que se repete nos dias atuais”, diz Cleiton Ferreira, 36 mos travar para que, de fato, sejamos livres, e para que
anos, um dos fundadores da organização. Para ele, é ninguém mais corra o risco de morrer por se expres-
essencial falar sobre o extermínio de jovens negros, sar, por algo que é um direito.”
pobres e periféricos, cujas ossadas também foram
ocultadas na vala. “Esses corpos não identi cados são Memórias em construção
de vítimas do sistema tanto quanto os desaparecidos A última das 1.049 caixas com ossos retirados da
políticos’’, observa Camila Cardoso, integrante da vala clandestina foi aberta pela equipe do Centro de
Quilombaque e uma das organizadoras da Agência Arqueologia e Antropologia Forense da Unifesp
Queixadas, que tem disseminado as trilhas para gru- (CAAF) em dezembro de 2019. Até a publicação deste
pos de fora do bairro. livro, o trabalho de análise das ossadas ainda não

116
havia sido concluído.
O passo seguinte, depois que for concluída a
etapa de reassociação das misturas ósseas e as últimas
análises genéticas, será a instalação de um novo marco
de memória em homenagem às vítimas da violência
de Estado ocultadas na vala clandestina. Em dezem-
bro de 2020, um grupo de trabalho havia sido formado
com a missão de discutir a criação desse memorial.
Tive a oportunidade de integrar esse GT com a profes-
sora Regina Bortoto e representantes do Quilomba-
que e do Grupo Pandora de Teatro. Também partici-
pam desse grupo de trabalho conselheiros do Con-
dephaat e do Iphan, familiares de mortos e desapareci-
dos políticos e representantes da Secretaria Municipal
de Direitos Humanos e Cidadania e da Secretaria
Municipal de Cultura, entre outros atores.
Nossa esperança é que os esforços em torno
desse memorial estejam também voltados para as
margens, tanto a geográ ca, mostrando a importân-
cia dessa história para o bairro, quanto aquela ligada à
dor de quem espera, há décadas, homenagear seus
entes queridos.

117
FOTO: DOUGLAS MANSUR
5
A luta por verdade e jus ça

Onde houver silêncio, eu ficarei cantando


Pra não deixar morrer o gesto humano.
Sidney Miller, em “O Navegante”

Era uma espécie de tortura. Não a tortura em sua no nal de 1979, resultou na reti cação do assento de
forma física, explícita, escancarada, como a que o irmão óbito. A partir dela, o nome que apareceria no registro
sofrera no DOI-Codi e que lhe tirara a vida um dia antes lavrado sob o número 50.741, na folha 191v (verso), no
de completar 24 anos, em 1971. Mas uma tortura silenci- livro 73, não seria mais o de Álvaro Lopes Peralta, iden-
osa, duradoura, igualmente perversa e ainda pungente. tidade falsa utilizada por seu irmão na guerrilha, mas o
Gilberto Molina não encontrava outra palavra para nome verdadeiro de Flávio Carvalho Molina. Por meio
se referir ao seu calvário e ao de seus irmãos, sobretudo da segunda ação, em 1991, a família exigiu ressarcimen-
de sua mãe, Maria Helena. O pai, Álvaro, morrera em to de danos junto à Justiça Civil. A terceira, em 1995,
1985. Anos antes, em 1979, recebera de Gilberto a notí- buscava o reconhecimento da responsabilidade do
cia de que um documento do Dops, recém-encontrado, Estado com base na lei 9.140/95, que possibilitou o cia-
con rmava a morte do Flávio, sob tortura. “Por que, se lizar a morte de cidadãos com atividade política que
ele já estava preso?”, foi a reação do velho, instantes tenham desaparecido entre 1961 e 1979.
antes de mergulhar num silêncio que se arrastou pelo Aquela mesma lei havia determinado a criação de
resto da tarde. Em 1981, soubera que o corpo havia sido uma Comissão Especial responsável, entre outras atri-
enterrado no Cemitério Dom Bosco, com nome falso, e buições, por “envidar esforços para a localização dos
que seus restos mortais tinham sido escondidos numa corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência
vala clandestina com mais de mil outras ossadas. A de indícios quanto ao local em que possam estar deposi-
família não poderia transferi-los para o Rio de Janeiro e tados”. Ora, a referida comissão tinha sido crida em
Manifestação em frente ao
DOI-Codi nos anos 2010. dar-lhe um enterro digno. Pelo menos por enquanto. 1995 e, até agora, nenhum avanço real havia sido feito
Exibir retratos de ví mas Agora, já se passava mais de uma década desde que nas ossadas de Perus. Gilberto acompanhara mais ou
da repressão tornou-se um a vala clandestina fora nalmente revelada e nada de menos de perto toda a discussão com a Unicamp, aque-
importante gesto simbólico
de resistência e de luta por localizarem os ossos de Flávio. Gilberto já tinha feito de la contenda ridícula em que a própria universidade,
memória, verdade e jus ça tudo. Processara três vezes o Estado. A primeira ação, corporativista, havia feito de tudo para fugir de qual-
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

quer responsabilidade pela negligência de seus pesqui- Quatro ossadas de Perus foram enviadas para o
sadores e pelo fracasso fragoroso dos trabalhos que Instituto Oscar Freire em 7 de dezembro de 2000. Junto
deveriam ter sido realizados no agora extinto Departa- com elas, outras seis ossadas, exumadas das sepulturas
mento de Medicina Legal. individuais onde teriam sido enterrados dois desapare-
Não era aceitável tamanha demora. Não era razoá- cidos políticos: Hiroaki Torigoe e José Luiz da Cunha.
vel tanto descaso. Todas as demais permaneceram na Unicamp até maio
Desde que as ossadas foram transferidas para São do ano seguinte, quando nalmente foram levadas para
Paulo, no nal de 2000, Gilberto e sua mãe tinham sido o cemitério do Araçá, em São Paulo. Duzentas gavetas
convocados mais uma vez para “ajudar na coleta de do columbário daquele cemitério foram cedidas pela
dados”. Era um acinte, um desaforo. A mãe, já idosa, Prefeitura para a guarda das ossadas, que aguardariam
passara toda uma década colhendo amostras de sangue ali o término das análises das dez anteriores.
a cada três anos. Ossos que poderiam ser de Flávio havi- Uma das ossadas do primeiro grupo, a de número
am sido encaminhados não apenas para a Universidade 240, tinha fortes indícios de pertencer a Flávio Molina
Federal de Minas Gerais, mas também para uma uni- segundo os legistas Eduardo Zappa, da Unicamp, e
versidade na Inglaterra e para um laboratório na Daniel Muñoz, da USP. A sobreposição de imagens
Colômbia. Nenhum avanço em nenhum desses locais. havia con rmado a similaridade, mas não fora su cien-
Na UFMG, soube-se depois, o material cara retido por te para a identi cação. Seria preciso analisar o DNA.
cinco anos sem qualquer atuação efetiva. Cobrada pelo Não tinha outro jeito.
Ministério Público, a universidade devolvera o material No Instituto Oscar Freire, repetiu-se a mesma
com frascos quebrados e nenhuma boa notícia. Os demora e a mesma negligência do período da Unicamp.
exames resultaram inconclusos. Aos olhos dos familiares e das entidades de Direitos
Quando se veri cou que as ossadas não poderiam Humanos, todas as instituições pareciam usar aquele
mais permanecer na Unicamp, a Secretaria de Seguran- caso para obter benefícios ou contrapartidas. Em vez de
ça Pública do Estado assumiu a tutela do material. Uma estabelecer convênios internacionais para a análise de
vez que encaminhar as ossadas ao IML não era uma DNA, por exemplo, a sensação era de que os responsá-
opção compatível com as expectativas dos familiares, veis esticavam a corda na expectativa de serem contem-
chegou-se a uma solução mediada com relativo esforço plados com o equipamento necessário para introduzir a
pelas partes. As análises cariam sob a responsabilidade genética forense em sua própria instituição. Em outras
do legista Daniel Muñoz, no Instituto Oscar Freire, o palavras: em vez de correr para dar uma resposta às
braço da Faculdade de Medicina da USP dedicado à famílias, tanto Muñoz, nos anos 2000, quanto Badan
medicina legal. Munõz tinha dupla vinculação institu- Palhares e Zappa, nos anos 1990, pareciam pressionar
cional: professor livre-docente de medicina legal na para que algum governo, municipal, estadual ou fede-
Faculdade de Medicina da USP, ele também atuava ral, tomasse a iniciativa de equipar os respectivos
como legista no IML. De acordo com o novo convênio, departamentos com tecnologia de ponta, fosse em Cam-
rmado entre a Secretaria de Segurança Pública e a USP, pinas ou em São Paulo.
Muñoz passaria a atuar na análise das ossadas com Gilberto Molina esperou mais três anos. Numa
vistas à identi cação do maior número possível de noite, em julho de 2004, dias depois de participar de
ossadas. Os trabalhos seriam conduzidos no Instituto mais uma reunião com Muñoz e representantes do
Oscar Freire com a participação, sob demanda, de pro- Ministério Público e da Secretaria de Segurança Pública
ssionais do Instituto e também do IML, sem jamais de São Paulo, respirou fundo, sentou-se diante do com-
con gurar o IML como guardião ou repositório do putador e escreveu um ofício para a procuradora Eugê-
material. nia Gonzaga, então à frente da Procuradoria Regional

120
A luta por verdade e jus ça

dos Diretos do Cidadão em São Paulo. Na carta, relatou não para a análise das ossadas de Perus, que ensejara sua
resumidamente o périplo dos ossos e o fracasso nas aquisição.
análises até aquele momento, inclusive nos três anos Agora, em meados de 2004, os membros do Minis-
que haviam se passado desde a transferência para o tério Público haviam chegado ao limite. Não era admis-
Instituto Oscar Freire. Por m, solicitou ajuda para que sível tamanho desprezo pelos familiares. Eugênia acio-
se buscasse fazer na Argentina a análise do DNA da nou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
ossada número 240, suspeita de ser de seu irmão. Se o Políticos, vinculada à Secretaria Especial de Direitos
país vizinho havia se tornado uma referência em antro- Humanos, e obteve do então ministro Nilmário Miran-
pologia e arqueologia forense, por que não estabelecer da a ordem para que o exame fosse realizado na Univer-
um convênio? sidade de Buenos Aires, às custas da União, conforme
Não era a primeira vez que Gilberto recorria ao solicitado por Gilberto. Os trâmites tomaram todo o
Ministério Público. Ainda em 1999, quando se consta- segundo semestre. Mais uma vez, a ossada número 240
tou o estado deplorável em que as ossadas eram manti- precisou ser serrada. Dois fragmentos do fêmur esquer-
das em Campinas, sem qualquer expectativa de identi - do e um dente incisivo central superior foram enviados
cação num futuro próximo, Gilberto representara junto à Argentina acompanhados de amostras de sangue de
à procuradoria regional da República do Rio de Janeiro Maria Helena e dos irmãos de Flávio Molina. O resulta-
pedindo providências do Ministério Público. O caso foi do chegou em janeiro de 2005: “inconclusivo”. Os peri-
remetido a São Paulo, em razão da delimitação geográ- tos argentinos sugeriram fazer uma nova tentativa, com
ca do Cemitério Dom Bosco, e caiu no colo de Marlon fragmentos de algum outro osso. Outros dois pedaços
Weichert, então à frente da Procuradoria Regional dos foram extraídos, agora do fêmur direito. Outro kit,
Direitos do Cidadão. Em poucos meses, o procurador outra análise, a mesma resposta: “inconclusivo”.
estudou o assunto, visitou a sala das ossadas na Uni- Eugênia nem esperou o envio do segundo kit para
camp e assumiu para si a missão de buscar uma solução. Buenos Aires. Decidiu acionar mais uma vez a Comis-
Entre 1999 e 2000, atuou junto ao secretário estadual de são Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos
Justiça, Belisário dos Santos Jr., e ao secretário adjunto para que fosse providenciado, em paralelo, o exame de
de Segurança Pública, Mário Papaterra Limonji, para DNA num laboratório particular de São Paulo. Desde
viabilizar a retirada das ossadas de Campinas e sua 2003, o Genomic Engenharia Molecular realizava análi-
transferência para o Instituto Oscar Freire. se de DNA mitocondrial, indicado para materiais muito
Paralelamente, Marlon esforçava-se para que a antigos ou em estágio avançado de putrefação. O custo
análise de DNA pudesse ser feita no Brasil. Tanto insis- girava em torno de R$ 5 mil, cerca de vinte salários
tiu junto à Secretaria de Segurança Pública que, em mínimos em 2004. O pedido foi igualmente aceito pelo
2001, a pasta equipou a Superintendência da Polícia ministro no meio do ano, e um novo ofício foi enviado
Cientí ca de São Paulo com um aparelho especí co ao legista Daniel Muñoz, solicitando a extração dos
para extração de DNA. Era uma máquina com tecnolo- fragmentos ósseos para o laboratório.
gia de ponta, capaz de extrair DNA mitocondrial, uma Antes disso, às vésperas do Carnaval, Muñoz telefo-
vez que os especialistas relatavam a impossibilidade de nou para Gilberto Molina. Eles precisavam conversar.
extrair DNA nuclear daquelas ossadas, tamanha a dete- Muñoz queria produzir uma prova conclusiva e pediu
rioração do material. Dois anos depois, descobriu-se para que Gilberto fosse até São Paulo. Imaginando que
que a Polícia Cientí ca não havia calibrado a máquina se tratava de alguma providência extraordinária para
para extrair DNA mitocondrial, conforme a orientação. que fosse feito o segundo envio de material para Bueno
A máquina estava sendo usada para extrair DNA nucle- Aires, o irmão de Flávio prometeu encontrá-lo no Insti-
ar e auxiliar nas perícias dos crimes do dia a dia, mas tuto Oscar Freire na tarde da Quarta-feira de Cinzas.

121
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

Embarcou de manhã, chegou a São Paulo na hora do assassinado nas dependências do DOI-Codi, um órgão
almoço e tomou o táxi direto para a Rua Teodoro Sam- do Estado, e até hoje esse mesmo Estado não se dignara
paio, 115. Amelinha Teles, membro da Comissão de a dar uma resposta, a entregar-lhes o corpo, a cumprir
Familiares, sugeriu que ele fosse acompanhado pelo com o que deveria ser um imperativo moral e uma obri-
advogado da comissão. gação. Até quando, por Deus, até quando?
Muñoz os conduziu até uma sala onde havia um No dia 10 de agosto, Gilberto precisou voltar ao
esqueleto montado em cima de uma bancada de cimen- Instituto Oscar Freire e reencontrar Muñoz. A análise
to. Sentaram-se em volta daquela ossada. Gilberto não no Genomic havia sido aprovada e nova coleta de mate-
conseguia entender o objetivo daquilo. rial precisaria ser feita, na sua presença e de um técnico
Talvez a presença do advogado tenha constrangido do laboratório. Outra vez um pedaço do fêmur foi reti-
o legista, que engatou uma conversa que parecia sem rado. Outra vez uma amostra de sangue de Gilberto foi
sentido. Muñoz discorreu sobre a atividade da perícia, colhida. Passadas três semanas, o resultado da análise
explicou como se dava a análise por sobreposição de de DNA foi entregue à procuradoria regional da Repú-
imagens e com base nos dados antropométricos, como blica. Após quinze anos de desrespeito e omissão, o
altura presumida e idade, coisas que Gilberto já estava resultado foi positivo. A ossada 240 era mesmo de Flá-
cansado de saber. Contou como era feita a extração de vio Carvalho Molina, o terceiro desaparecido político
DNA, que necessariamente exigia que fossem retirados identi cado nas ossadas encontradas na vala de Perus.
pedaços de ossos. O tempo todo, o esqueleto ali, sobre a No dia 11 de outubro, uma terça-feira, a urna con-
bancada. tendo os remanescentes ósseos de Flávio foi nalmente
A certa altura, Muñoz fez um silêncio que parecia sepultada no jazigo da família, no Cemitério São João
anteceder uma in exão dramática. Batista, no Rio de Janeiro. Um duo de autas tocava ao
— Você acha parecido? — perguntou. — Acha que fundo. Maria Helena não pôde ver nada. Ela havia per-
pode ser seu irmão? dido a visão. Gilberto sussurrou ao pé do ouvido da mãe
Gilberto sentiu-se indignado. Não sabia se partia cada detalhe da emocionante cerimônia.
pra cima do legista, se ia embora. Talvez fosse o caso de
responder com escárnio. “Nunca vi tão magro”, pensou ***
em dizer. Mas não cabia. Aquilo tudo era grotesco dema-
is, perverso demais. Uma tortura sem m. Três anos após a identi cação de Flávio Molina, os
— Não dá pra saber — desconversou. promotores Eugênia Gonzaga e Marlon Weichert, do
Gilberto saiu mudo do Instituto Oscar Freire. Ensi- Ministério Público de São Paulo, inauguraram uma
mesmado, tomou o táxi e foi direto ao aeroporto. Já em série de representações nas esferas civil e criminal
casa, no Rio, a esposa quis saber como tinha sido. Gil- denunciando pessoas e instituições pela prática de
berto se esquivou. crimes contra a humanidade, como sequestro forçado
— Tô muito cansado, depois eu conto. (prisões ilegais praticadas pela repressão), homicídio
O relógio marcava oito horas. Foi para o quarto, com meio cruel (tortura) e falsidade ideológica (na
fechou a janela, esticou-se na cama e desabou numa falsi cação de atestados de óbito). Uma dessas repre-
crise de choro que o fez lembrar da primeira visita ao sentações, rmada em 25 de setembro de 2008, referia-
Cemitério Dom Bosco, em 1981, quando o administra- se justamente ao assassinato de Flávio Molina.
dor lhe mostrara a vala e algumas ossadas. Para os procuradores, a Justiça deveria responsabi-
Gilberto não aguentava mais. Dali a seis meses, a lizar penalmente o coronel Carlos Alberto Brilhante
abertura da vala clandestina completaria quinze anos. Ustra, responsável por torturar e matar Flávio no DOI-
Fazia trinta e três anos que seu irmão havia morrido, Codi, e também o policial militar Miguel Fernandes

122
A luta por verdade e jus ça

Zaninello, funcionário do DOI-Codi e declarante da período. Como uma espécie de ouvidoria com mandato
morte de Flávio no laudo falso do IML. Zaninello, con- especí co, elas operam de modo a apurar as responsabi-
forme apurou a CPI de Perus, em 1990, era o condutor lidades do próprio Estado, suas instituições e autorida-
habitual do veículo que transportava os corpos do IML des, e auxiliar na transição de um regime autoritário ou
para serem enterrados como indigentes no Cemitério de con ito armado, por exemplo, para um regime
Dom Bosco, e que os sepultadores conheciam simples- democrático. Seu objetivo, em geral, é romper com
mente como “Miguel”. práticas que precisam ser abolidas a m de inaugurar
A iniciativa do MP buscou ainda responsabilizar os uma nova etapa histórica, em conformidade com os
médicos legistas Arnaldo Siqueira, Renato Cappellano valores democrático e o Estado de Direito.
e José Henrique da Fonseca. Os três haviam assinado o Quase sempre, as Comissões da Verdade estabele-
laudo falso que atribuía a morte de Flávio a um tiroteio, cem princípios orientadores para políticas de reparação
omitindo os sinais de tortura facilmente veri cáveis no e elaboram recomendações para que os poderes e as
corpo da vítima, conforme demonstravam as fotos instituições revisem métodos e construam processos
arquivadas no próprio IML. “Esclarecemos que esta alinhados com a prática da democracia. A Argentina
representação integra um conjunto de medidas que instalou sua Comissão da Verdade em dezembro de
vêm sendo adotadas em decorrência da perpetração de 1983 e a concluiu em 1984, logo no início do governo
crimes contra a humanidade pelas autoridades públicas Raúl Alfonsín, primeiro presidente civil após a ditadu-
que tomaram parte nas atividades de repressão à dissi- ra. O Chile fez o mesmo em 1990, também no primeiro
dência política durante o regime militar no Brasil”, dizia governo democrático após o regime de exceção. No
um trecho da ação. Brasil de 2005, quando Flávio foi identi cado, haviam
Logo que assumiu a Procuradoria da República dos se passado duas décadas desde a volta dos civis ao
Direitos do Cidadão, no início da década, Eugênia con- governo sem que nada parecido fosse implementado.
cluíra que era preciso entrar com ação judicial para — A gente vai ter que pegar mais pesado com essa
enfrentar o descalabro em que se encontrava o tema da gente — Eugênia comentou com Marlon. — Eles estão
justiça de transição no Brasil. A própria Comissão Espe- te enrolando, enrolando os familiares, o país inteiro.
cial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), A identi cação de Flávio foi a gota d'água. Eugênia
criada em 1995, não tinha atuação efetiva nem orça- e Marlon entenderam que não bastava envidar esforços
mento próprio. Enquanto países como Argentina e na busca pelos restos mortais dos desaparecidos, em
Chile levavam a cabo condenações judiciais e o com- Perus ou no Araguaia. Claro que isso também era
promisso de esclarecer as violações de direitos pratica- importante. Mas, em paralelo, era preciso que os crimes
das em seus períodos ditatoriais, no Brasil nada era de desaparecimento forçado, ocultação de cadáveres e
feito. Era como se pairasse um pacto de silêncio mal- falsi cação de atestados de óbito tivessem alguma
ajambrado, uma mordaça, um “cale-se” alicerçado na resposta condenatória por parte do Poder Judiciário. Se
teoria equivocada de que a redemocratização havia até agora isso não havia se tornado uma prática corri-
paci cado o tema e que vivíamos uma conciliação que queira, o Ministério Público teria de assumir esse papel
não poderia ser arranhada por inciativas “revanchistas”, por meio de ações civis públicas e outras representações
para usar um termo muito comum nos anos 1980 e que permitissem responsabilizar atores e judicializar o
1990. debate.
Nem uma Comissão da Verdade o Brasil havia se A estratégia proposta por Eugênia e Marlon tinha
proposto a fazer. Comissões da Verdade são instrumen- como ponto de partida a ideia de inverter a lógica histo-
tos criados pelo Estado para investigar e registrar viola- ricamente martelada pela repressão. Nos processos que
ções de direitos humanos ocorridas em determinado tramitavam na Justiça Militar ao longo dos 21 anos de

123
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

regime de exceção, os presos políticos, os militantes e a nando que violações de direitos praticadas no Chile
maioria dos mortos e desaparecidos com prontuário no durante a ditadura militar deveriam ser consideradas
Dops sempre foram os réus. Eram eles os “terroristas”, crimes contra a humanidade e, por extensão, não pode-
os subversivos, os que praticavam ilegalidades, os que riam prescrever nem ser anistiados. Essa decisão serviu
deveriam ser condenados por crime comum ou pela Lei de farol para a dupla Eugênia e Marlon.
de Segurança Nacional. Agora, nos anos 2000, seriam Já em 2007, os dois organizaram um seminário em
feitas as primeiras ações em que o Estado e seus repre- São Paulo, com a presença de especialistas em justiça de
sentantes seriam citadas como aqueles que praticaram transição do Brasil e de outros países sul-americanos.
infrações e ilegalidades. Os militantes políticos, os Saíram do evento decididos a fazer com que o Ministé-
desaparecidos e também seus familiares seriam as víti- rio Público assumisse como metas “a provocação do
mas desse Estado que perseguia, sequestrava, torturava, sistema de Justiça brasileiro para reverter o quadro de
matava e ocultava. impunidade e esquecimento”, “o aparelhamento do país
Sobretudo, era preciso martelar essa tecla, repetir para a devida apuração de violação de direitos huma-
isso muitas vezes. Dessa mudança de perspectiva nos, inclusive com a instituição de um serviço autôno-
dependia a chamada justiça de transição. Comparativa- mo de antropologia e arqueologia forense, tarefa que
mente, os crimes praticados pela Rota e pela Polícia não pode ser atribuída ao aparato policial” e “a provoca-
Militar de maneira geral careciam da mesma inversão ção do Poder Executivo para que cesse a interposição de
de perspectiva. Desde os anos 1970, muitos políticos, recursos e qualquer tipo de resistência às decisões judi-
jornais e programas de rádio ajudavam a disseminar a ciais das Cortes internas e internacionais que vêm
compreensão equivocada de que o policial que mata é determinando a abertura de arquivos sigilosos”, confor-
sempre a vítima, enquanto o “elemento” executado, me resumido na Carta de São Paulo, espécie de resolu-
muitas vezes com tiros nas costas, é necessariamente o ção do seminário. Os procuradores também se compro-
culpado. Havia uma narrativa pronta para ser repetida. metiam a cobrar do Poder Público a instituição de uma
Os mortos pela polícia eram sempre bandidos perigo- Comissão da Verdade.
sos, armados, que haviam resistido à voz de prisão e Duas ações civis públicas relacionadas à vala de
trocado tiros com os agentes, que só fuzilaram o “ele- Perus foram propostas pelo MP em novembro de 2009.
mento” – às vezes com mais de cinco tiros à queima- Uma delas buscou responsabilizar autoridades e insti-
roupa – em legítima defesa. De forma equivalente, falta- tuições que haviam contribuído para ocultar cadáveres
va à recente democracia a percepção de que o Estado de militantes políticos mortos pela repressão. Foram
fora perverso, criminoso, violador de direitos, omisso citados na ação a União, o Estado de São Paulo e o Muni-
ou negligente em diversos momentos e em relação a cípio de São Paulo – partícipes no sistema de persegui-
diversos assuntos ou episódios. A ocultação de corpos ção, sequestro, morte sob tortura, falsi cação de laudos
numa vala clandestina era um deles. A demora em pro- e desaparecimento forçado – bem como os ex-prefeitos
ceder com a análise das ossadas era outro. Com algum Paulo Maluf e Miguel Colasuonno, responsáveis res-
atraso, chegara a hora de o Ministério Público assumir pectivamente pela construção do cemitério de Perus
essa empreitada de modo a fustigar as instituições do nos períodos de construção e pela construção da vala
poder Judiciário, buscar maior mobilização social e clandestina, o médico legista Harry Shibata, que assi-
ampliar a visibilidade sobre esse tema. nou laudos forjados e com nomes falsos no IML,
A experiência chilena contribuiu muito nesse sen- Romeu Tuma, então chefe do Dops, e Fábio Pereira
tido. Em 2006, a Corte Interamericana de Direitos Bueno, ex-diretor do Serviço Funerário.
Humanos, vinculada à Organização dos Estados Ame- A segunda ação tomava como objeto não a vala em
ricanos (OEA), havia proferido uma sentença determi- si e os crimes relacionados à sua construção e ocultação,

124
A luta por verdade e jus ça

mas a demora no processo de análise das ossadas a par- violações de direitos por ele praticadas.
tir de 1992. Desta vez, foram citados dez réus, entre Em dezembro de 2009, outro passo fundamental
servidores públicos e instituições, que agiram de modo foi dado com a aprovação da terceira edição do Progra-
a atravancar o processo de identi cação, seja por desca- ma Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), conten-
so, negligência, desvio de função ou por não cumprir do pela primeira vez um eixo orientador dedicado à
convênios e termos de cooperação rmados nos anos memória e à verdade. “O Brasil ainda processa com
1990: a União, o Estado de São Paulo, a Unicamp, a di culdades o resgate da memória e da verdade sobre o
UFMG e a USP, bem como os médicos legistas Fortuna- que ocorreu com as vítimas atingidas pela repressão
to Badan Palhares e Daniel Muñoz, responsáveis pelas política durante o regime de 1964”, dizia o texto, intro-
ossadas quando sob tutela da Unicamp e da USP, Vera duzindo um breve histórico das principais ações
Ferreira Prado, responsável por analisar os fragmentos empreendidas pelas comissões de familiares, pelo
enviados à UFMG, e Celso Perioli e Norma Bonaccorso, Ministério Público e também pela União no âmbito da
à frente da Polícia Cientí ca no período em que a justiça de transição. “A impossibilidade de acesso a
máquina para extração e análise de DNA foi recebida e todas as informações o ciais impede que familiares de
jamais calibrada para ser utilizada na identi cação das mortos e desaparecidos possam conhecer os fatos rela-
ossadas de Perus. cionados aos crimes praticados e não permite à socieda-
Em conjunto, as iniciativas do Ministério Público de elaborar seus próprios conceitos sobre aquele perío-
Federal acabaram impulsionando diferentes medidas do”. Uma das ações propostas na diretriz número 24 do
relacionadas à Justiça de transição e à garantia do direi- PNDH-3, conforme redação atualizada em maio do ano
to à memória e à verdade. Da mesma forma que a aber- seguinte, orientava o Poder Executivo a “promover,
tura da vala de Perus, em 1990, in uenciara a abertura com base no acesso às informações, os meios e recursos
dos arquivos do IML, em 1991, e do Dops, em 1992, necessários para a localização e identi cação de corpos
bem como a descoberta de outras valas clandestinas e restos mortais de desaparecidos políticos”. Esse com-
onde foram enterrados militantes políticos – como as promisso seria reforçado, ainda em 2010, pela Corte
descobertas no cemitério de Ricardo Albuquerque, no Interamericana de Direitos Humanos.
Rio de Janeiro, e no cemitério de Santo Amaro, em Reci-
fe –, as ações propostas pelo MP reforçaram a percepção ***
de que intensi car as buscas por desaparecidos deve ser
uma obrigação do poder público, não somente retórica, No dia 20 de maio de 2010, Marlon Weichert depôs
mas por meio de políticas e projetos, como já assinalava perante os membros da Corte Interamericana de Direi-
a Lei 9.140 por ocasião da criação da Comissão Especial tos Humanos, em São José, na Costa Rica.
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Sua participação estava prevista para a tarde, na
Construção necessariamente coletiva, essa postura sessão dedicada aos peritos. Um dos representantes do
coincidia com a adotada no governo federal no mesmo Estado brasileiro, no entanto, impugnou sua participa-
período. Em 2007, o livro-relatório “Direito à Memória ção. Alegou que Marlon, em 2001, havia viajado ao
e à Verdade”, publicado pela Secretaria Especial dos Araguaia na condição de procurador, participado da
Direitos Humanos e pela Comissão Especial sobre coleta de 50 depoimentos de moradores e investigado
Mortos e Desaparecidos Políticos, compilava os traba- possíveis locais de sepultamento clandestino de mili-
lhos realizados pela comissão ao longo de uma década, tantes mortos pelo Exército nos primeiros anos da déca-
registrando as histórias de vida, e também de morte, das da de 1970, de modo que sua participação não seria
vítimas fatais da ditadura no Brasil, sempre explicitan- isenta ou imparcial. Ele tinha lado.
do o papel do Estado, em suas diferentes esferas, nas Resignado, Marlon considerou car ali apenas

125
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

como espectador e retornar ao Brasil sem maiores do Grupo Tortura Nunca mais do Rio de Janeiro e do
infortúnios. O presidente da Corte, no entanto, tratou Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL).
de encaixá-lo entre os oradores da manhã. À tarde, falariam os peritos. Um deles, representan-
— Você vai falar como testemunha — determinou, do os peticionários, era o advogado Belisário dos Santos
com habilidade. — E, como testemunha, vai responder Jr., o mesmo ex-secretário estadual de Justiça que, em
às questões da perícia. meados da década de 1990, havia atuado para que as
Antes de Marlon, falaram Crimeia de Almeida e ossadas de Perus fossem retiradas da Unicamp e pudes-
Laura Petit. Sobrevivente da Guerrilha do Araguaia, de sem ser novamente analisadas. Do outro lado do balcão,
onde partira semanas antes do início da operação mili- representando o Estado brasileiro com o objetivo de
tar na região, Crimeia perdera o companheiro, André evitar que a União fosse condenada a procurar sepultu-
Grabois, e o sogro, o dirigente do PCdoB Maurício ras e a dar explicações sobre seu paradeiro, discursaria
Grabois, ambos assassinados pela repressão. Grávida, gente como José Gregori, combativo ativista dos Direi-
foi presa e torturada e deu à luz na prisão. Por meses, tos Humanos que havia presidido a Comissão Justiça e
sofreu a ameaça de que lhe roubariam o lho e o entre- Paz nos anos 1970 e fora ministro da Justiça de Fernan-
gariam para uma família de patriotas anti-comunistas. do Henrique Cardoso nos anos 1990, e o magistrado
Laura, por sua vez, era ainda adolescente quando os três Sepúlveda Pertence, ex-presidente do Supremo Tribu-
irmãos mais velhos – Lúcio, 27, Jaime, 25, e Maria Lúcia, nal Federal.
19 – partiram para o Araguaia, no começo de 1971. — São todas pessoas das quais a gente gosta —
Nunca mais os viu. Os restos mortais de Maria Lúcia Belisário comentou com Marlon, a caminho de um
foram localizados em 1991 e identi cados em 1996. restaurante, na hora do almoço. — Mas nós estamos do
Ambas contaram suas experiências, descreveram lado certo.
as torturas praticadas contra os militantes e contaram Em novembro de 2010, a Corte condenou por una-
sobre a violência perpetrada contra os lavradores da nimidade o Estado brasileiro no caso “Gomes Lund e
região para que não alimentassem ou abrigassem os outros”, assim batizado em referência a um dos setenta
“comunistas”. Falaram sobre a busca das ossadas de seus militantes desaparecidos no Araguaia. “O Estado é
familiares, missão que as unia e que seguia bloqueada. responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto,
Somente as Forças Armadas, diziam, poderiam respon- pela violação dos direitos ao reconhecimento da perso-
der a suas perguntas: o que havia acontecido com os nalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liber-
desaparecidos do Araguaia? Onde os ossos tinham sido dade pessoal”, dizia a sentença.
enterrados? A sentença deliberava ainda que o Estado brasileiro
Eram as mesmas perguntas que Crimeia, Laura, havia descumprido a obrigação de adequar seu direito
Amelinha, Suzana, Iara e outros familiares repetiam interno à Convenção Americana de Direitos Humanos,
desde 1979, sobre os desaparecidos do Araguaia e todos à qual aderiu em 1992. A total ausência de condenações
os outros desaparecidos, de qualquer outra organização de torturadores e a omissão da Justiça brasileira quanto
ou sem militância de nida. As mesmas perguntas que aos crimes continuados de desaparecimento forçado e
haviam motivado uma ação judicial, movida em 1982, ocultação de cadáveres, aliadas à aplicação dada pelo
para exigir da União esclarecimentos sobre as circuns- Poder Judiciário à Lei de Anistia, mostravam-se ana-
tâncias das mortes de seus parentes e a localização de crônicas e incompatíveis com a convenção internacio-
seus remanescentes ósseos. As mesmas perguntas que, nal. Neste sentido, a sentença reiterava a responsabili-
em 1995, diante do silêncio e da omissão do Estado, dade do Estado “pela violação dos direitos às garantias
haviam motivado os familiares a recorrer à Comissão judiciais e à proteção judicial” e “pela falta de investiga-
Interamericana dos Direitos Humanos, por iniciativa ção dos fatos do presente caso, bem como pela falta de

126
A luta por verdade e jus ça

julgamento e sanção dos responsáveis”. destina em Perus e de alterações deliberadas nas qua-
Finalmente, a sentença da Corte dispunha, por dras do cemitério de Vila Formosa, também em São
unanimidade, onze recomendações ao Brasil, com Paulo e também em meados dos anos 1970, favorece a
destaque para as duas primeiras: “O Estado deve condu- tese de que teria havido uma ação coordenada com o
zir e cazmente, perante a jurisdição ordinária, a inves- objetivo de promover a ocultação dos corpos. O relató-
tigação penal dos fatos do presente caso a m de esclare- rio também compila alguns números de referência que
cê-los, determinar as correspondentes responsabilida- ajudam a esboçar um mapa do desaparecimento força-
des penais e aplicar efetivamente as sanções e conse- do no Brasil. “A partir de 1971, o Cemitério Dom Bosco,
quências que a lei preveja” e “o Estado deve realizar em Perus, foi o destino do corpo de, no mínimo, 29
todos os esforços para determinar o paradeiro das víti- militantes políticos, nove com identidade falsa”.
mas desaparecidas e, se for o caso, identi car e entregar “No Rio de Janeiro”, acrescenta o Capítulo 12, “os
os restos mortais a seus familiares”. corpos de pelo menos 14 militantes políticos estariam
Suas deliberações não se resumiam, portanto, ao enterrados no Cemitério Ricardo de Albuquerque”. Ali,
caso especí co dos desaparecidos do Araguaia. A Corte as ossadas teriam sido dispostas numa vala clandestina
Interamericana de Direitos Humanos da OEA vinha somente em 1980, mas sem a separação em sacos, o que
reforçar o que já estava previsto pela Lei 9.040 no senti- causou uma mistura completa de ossos e, o mais grave,
do de que envidar todos os esforços para localizar os em contato direto e permanente com a terra. “Em 1991,
desaparecidos, identi car e entregar os restos mortais o grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro se orga-
aos familiares não poderia ser pensada somente como nizou para tentar conduzir o trabalho de identi cação
uma bandeira política ou um compromisso moral: das 2.100 ossadas encontradas na vala e chegou a catalo-
tratava-se de um imperativo legal, uma ordem, agora gar algumas delas, que foram separadas em 17 sacos
fortalecida por uma condenação internacional. plásticos para serem submetidas à análise técnica. Por
falta de recursos, o trabalho foi interrompido em 1993”.
*** Já em Recife, “os cemitérios de Santo Amaro e da Várzea
foram destino para corpos de militantes, como é o caso
Todas as comissões de memória e verdade criadas dos seis membros da VPR mortos em 8 ou 9 de janeiro
em São Paulo entre 2011 e 2016, a exemplo da Comissão de 1973, na chacina da Chácara São Bento”.
Nacional da Verdade (CNV), trataram do tema vala de A Comissão Nacional da Verdade foi estabelecida
Perus. Esse aspecto de urgência e sinergia é relevante por lei em 2011, no primeiro ano de mandato da ex-
porque reforça o entendimento de que as ossadas não presa política Dilma Rousseff, com base em projeto do
podem ser esquecidas ou negligenciadas. Ao contrário, Executivo protocolado no ano anterior, o último do
os relatórios das comissões da verdade, por sua caracte- segundo mandato do ex-presidente Lula. Resultou de
rística e seu papel institucional nas democracias, pode- uma construção delicada, após ampla negociação den-
riam contribuir sobremaneira para mobilizar as institu- tro e fora do governo e uma signi cativa disputa entre o
ições responsáveis no sentido de elaborar políticas ministro Nelson Jobim, da Defesa, que era contra a
públicas especí cas voltadas para o tema do desapareci- comissão, e o ministro Paulo Vannuchi, de Direitos
mento forçado e para a conclusão dos trabalhos de Humanos, um de seus mais dedicados defensores.
análise e identi cação das ossadas, já uma reivindicação Eram sete os membros da CNV quando de sua instala-
de quase três décadas. ção, em maio de 2012: Claudio Fonteles, Gilson Dipp,
No Capítulo 12, intitulado “Desaparecimentos José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria
forçados”, o relatório da CNV (2012-2014) destacou Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso.
que a coincidência das datas de abertura da vala clan- Os dois primeiros se desligaram antes do término dos

127
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

trabalhos. Pedro Dallari entrou no último ano e assu- em 1990, com a abertura de uma vala clandestina em
miu a função de relator. um cemitério criado e administrado pela Prefeitura de
Entregue o cialmente à sociedade no dia 10 de São Paulo”, diz o relatório, “os membros decidiram que
dezembro de 2014, o relatório da CNV acrescenta ainda os trabalhos da Comissão Municipal da Verdade Vladi-
que “o sepultamento de militantes como indigentes, em mir Herzog deveriam partir da recuperação das conclu-
cemitérios localizados na periferia de grandes centros sões da CPI das Ossadas de Perus”. Participaram daque-
urbanos, era também feito com a colaboração do servi- la comissão, na 1ª etapa, os vereadores Aguinaldo Timó-
ço funerário” e que “pela concentração da ação repressi- teo, Eliseu Gabriel, Gilberto Natalini, Ítalo Cardoso,
va em São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, foi nes- Jamil Murad, José Rolim e Juliana Cardoso. Amelinha
ses Estados onde essa prática ocorreu com mais fre- Teles, Ivan Seixas, Tereza Lajolo e Eugênia Gonzaga
quência”. foram alguns dos depoentes.
A recomendação número 27 da CNV é dedicada a Na segunda etapa da comissão, de março de 2013 a
esse tema. “Prosseguimento das atividades voltadas à dezembro de 2014, com Gilberto Natalini na presidên-
localização, identi cação e entrega aos familiares ou cia e Mario Covas Neto na relatoria, foi dedicado um
pessoas legitimadas, para sepultamento digno, dos capítulo a relembrar a descoberta da vala clandestina a
restos mortais dos desaparecidos políticos”, orienta o m de aprofundar um tópico pertinente: como evitar
caput. “Devem ser realizadas diligências aptas a propi- que pessoas em posse de seus documentos sejam ainda
ciar a localização e identi cação dos restos mortais das hoje enterradas como não-reclamadas, sem cerimônia e
pessoas que foram executadas por motivos políticos, sem que as famílias sejam comunicadas? Integraram a
que permanecem em locais desconhecidos ou incertos”, segunda fase da Comissão Vladimir Herzog, além de
detalha a justi cativa do item. “É necessário, ainda, que Natalini e Covas Neto, os vereadores Juliana Cardoso
se con ra tratamento respeitoso e adequado às ossadas (vice-presidente), Ricardo Young, Rubens Calvo, Laer-
já localizadas e recolhidas, que se encontram sob a guar- cio Benko, José Police Neto e Toninho Vespoli. Em
da do Estado ou de instituições por ele delegadas, ado- audiência conjunta, feita em parceria com deputados da
tando-se as medidas necessárias para garantir sua pre- Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, da
servação, conservação e segurança. O trabalho de iden- Assembleia Legislativa, os vereadores ouviram dois
ti cação dessas ossadas deve ser intensi cado. (...) Após antigos superintendentes do Serviço Funerário, Carlos
a identi cação, cada ossada deverá ser entregue aos Eduardo Giosa e Rui Barbosa Alencar, além de especia-
familiares da vítima, em cerimônia pública o cial e listas em desaparecimento e indigência, de ontem e de
solene, para que possa haver o sepultamento de forma hoje, como Amelinha Teles, Tereza Lajolo, Padre Júlio
digna”. Lancellotti e a promotora de Justiça Luciana Vendrami-
A Câmara Municipal de São Paulo instituiu a ni, coordenadora do Programa de Localização e Identi-
Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog e a cação de Desaparecidos.
executou em duas etapas: a primeira, durante sete Presidida pelo deputado estadual Adriano Diogo, a
meses, de maio a dezembro de 2012, e a segunda, entre Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva (2011-
2013 e 2014. Na primeira fase, presidida por Ítalo Car- 2015) realizou 150 audiências públicas ao longo de três
doso e com relatoria de Eliseu Gabriel, a Comissão anos de atividade. Foi instituída em 2011, a primeira do
tomou a descoberta da vala de Perus como ponto de país, largando na frente da própria CNV. Em seu relató-
partida, promovendo as primeiras audiências com rio nal, houve também um capítulo dedicado aos
antigos membros da CPI que se instalara na mesma “Métodos e técnicas de ocultação de corpos na cidade
Casa entre 1990 e 1991. “Cientes de que os crimes prati- de São Paulo”. Ali, buscou-se descrever a cadeia de
cados pelo Estado militar começaram a ser revelados comando que regia o desaparecimento forçado e a ocul-

128
A luta por verdade e jus ça

tação de cadáveres. resumo: faltara precisão na seleção feita pela equipe de


Sobretudo, a equipe da Comissão Rubens Paiva, Badan Palhares. Das quatro ossadas que sobraram,
composta ainda pelos deputados Marcos Zerbini, nenhuma era de Torigoe. Além de acender um sinal
André Soares, Ed omas e Ulysses Tassinari, e assesso- amarelo para os trabalhos feitos em Campinas nos anos
rada por familiares e pesquisadores como Amelinha 1990, o relatório preparado por Patrícia era explícito em
Teles, Ivan Seixas, Tatiana Merlino, Vivian Mendes e denunciar as péssimas condições de guarda das ossa-
Renan Quinalha, entre outros, dedicou-se a reforçar a das, inclusive no columbário do Araçá. Estavam todas
necessidade de se retomar as análises das ossadas de sujas e com fungos, necessitando não somente de guar-
Perus, estagnadas no columbário do Araçá havia mais da em condições adequadas, mas também de limpeza e
de dez anos. Em especial, dois estudos realizados triagem. Era como se os trabalhos precisassem ser come-
durante o período de vigência da Comissão Rubens çados do zero.
Paiva, e que seriam apresentados em audiências públi- Outro estudo revelado pela Comissão Rubens
cas e incorporados ao relatório nal, jogaram luz sobre Paiva foi uma prospecção geofísica realizada entre
a necessidade de retomar a investigação sobre a vala setembro e outubro de 2014 na área adjacente ao local
clandestina e a identi cação das ossadas. da vala clandestina, no Cemitério Dom Bosco. Condu-
O primeiro desses estudos, em 2012, consistiu em zida por pesquisadores do Laboratório de Arqueologia
análises feitas pela Equipe Argentina de Antropologia Regional do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP,
Forense (EAAF) em 21 das 1.049 caixas então abrigadas o trabalho combinou fotos aéreas feitas com o auxílio de
no Araçá. A investigação tinha o objetivo especí co de um drone a medições realizadas no subsolo, a 35 centí-
localizar os remanescentes ósseos de Hiroaki Torigoe, metros de profundidade, com o uso de um radar de
desaparecido político enterrado em sepultura individu- penetração de solo, também chamado de GPR (ground
al no Cemitério Dom Bosco cuja ossada jamais foi penetrating radar). Veri cou-se, dessa maneira, a
encontrada, apesar das recorrentes exumações na área existência de três outros pontos que indicavam solo
em que, supostamente, seu corpo fora sepultado. A mexido ou escavado nos arredores do marco de memó-
hipótese de que tenha sido transferido para a vala clan- ria em homenagem aos mortos e desaparecidos feito
destina em 1976 faz com que o nome de Torigoe apareça por Ricardo Ohtake. Um deles é o ossário, construído
em todas as listas de pessoas ali procuradas, desde 1990. entre 1990 e 1991 e devidamente mapeado nas plantas
Respondendo a uma demanda da Associação Brasileira o ciais do cemitério. As outras duas zonas têm origem e
de Anistiados Políticos, na época presidida por Alexan- con guração desconhecidas e podem, eventualmente,
drina Cristensen de Souza (falecida no nal de 2013), signi car a existência de outras valas clandestinas,
que a contratou, a equipe argentina se debruçou sobre conforme explicitado num dos capítulos do primeiro
as ossadas que tinham sido separadas na Unicamp volume do relatório nal da Comissão Rubens Paiva.
como compatíveis com os dados antropométricos e o Como é hábito nos relatórios das comissões da
laudo necroscópico de Torigoe. verdade, a estadual listou suas recomendações, algumas
Em audiência na Assembleia Legislativa em abril delas referentes a Perus. “Criar todas as condições
de 2013, a antropóloga forense e coordenadora da necessárias e adequadas para prosseguir, com a urgência
EAAF, Patrícia Bernardi, resumiu a situação daquela que o tempo requer, os trabalhos de investigação das
seleção: dos 22 esqueletos, uma vez que em uma das ossadas de Perus, priorizando os casos dos desapareci-
caixas havia ossos de dois indivíduos, quatro foram dos políticos por terem mais informações antropomé-
descartados por serem do sexo feminino e outras cator- tricas e materiais genéticos disponíveis no momento”,
ze foram descartadas por serem de homens com mais de recomendou, como forma de reparação e justiça de
35 anos. Torigoe tinha 27 anos quando desapareceu. Em transição. Com o objetivo de evitar que a história se

129
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

repita, o documento sugeriu “criar políticas públicas que O que poucos imaginavam, em dezembro de 2016,
auxiliem em formas de organização e documentação é que a Presidência da República seria muito em breve
dos cemitérios públicos (mapas/plantas dos cemitérios, ocupada por um controvertido capitão do Exército,
livros de registros dos sepultamentos e demais docu- apologista da ditadura e admirador do Ustra, que, em
mentação)” e “criar mecanismos de enfrentamento, de 2005, xara na porta de seu gabinete um cartaz com a
prevenção e de erradicação da tortura, de assassinatos e seguinte frase: “Desaparecidos do Araguaia: quem
desaparecimentos forçados por agentes públicos”. procura osso é cachorro”.
Finalmente, a Comissão da Memória e Verdade da
Prefeitura de São Paulo (2014-2016) dedicou dezessete
das trinta e seis recomendações incluídas em seu relatório
ao enfrentamento das violações que lhe pareceram centra-
is: a ocultação de cadáveres e o desaparecimento forçado.
A recomendação número 1 destinava-se especi -
camente à retomada das análises. “Concluir a identi ca-
ção das ossadas de Perus mediante a continuidade do
acordo de cooperação rmado entre Secretaria Munici-
pal de Direitos Humanos e Cidadania, Unifesp e Gover-
no Federal para a criação do Centro de Antropologia e
Arqueologia Forense (CAAF)”. “É fundamental que a
análise das ossadas seja concluída”, justi cou o docu-
mento. “Trata-se de obrigação amparada em decisão da
Justiça brasileira transitada em julgado em 2007, bem
como em sentença proferida em 2010 pela Corte Intera-
mericana de Direitos Humanos e em tratados internaci-
onais dos quais o Brasil é signatário”.
Já a recomendação número 2 evidenciou a preocu-
pação dos membros diante da hipótese de haver outras
ossadas ainda ocultadas naquele local, conforme apon-
tado no estudo do MAE-USP já mencionado. “Realizar
novas escavações no Cemitério Dom Bosco, em Perus,
para checar a possibilidade de haver mais ossadas de
desaparecidos”, propôs o documento, responsabilizan-
do a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cida-
dania e a Secretaria de Serviços por esta nova tarefa.
No dia da apresentação pública do relatório nal,
assinado por Tereza Lajolo (coordenadora), Audálio
Dantas, Fermino Fechio, Adriano Diogo e Camilo Van-
nuchi, o então prefeito Fernando Haddad, numa inicia-
tiva inédita, leu um pedido de desculpas pelas violações
de direitos humanos cometidas pela Prefeitura de São
Paulo durante os 21 anos de ditadura militar. O texto foi
publicado no Diário O cial no dia seguinte.

130
Desaparecimento e Ocultação de Cadáveres:
violações aos direitos humanos nos cemitérios de São Paulo
Uma inves gação da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo¹⁴

1. O papel da Prefeitura no desaparecimento das vítimas do Estado


da repressão 6.2 As denúncias de destruição criminosa dos
1.1 A administração dos cemitérios em São Paulo livros de registro de inumações no Cemitério
2. Investigações anteriores realizadas nos cemitérios do Lajeado
municipais 7. Indigentes
2.1 As denúncias da CPI da Vala de Perus (1990) 7.1 A indigência no sistema funerário
2.2 As denúncias feitas pelo Ministério Público 7.2 O uso da indigência pela repressão
Federal (2009) 7.3 Prolongamentos do regime ditatorial
2.3 As denúncias da Comissão Nacional da Verda- 7.3.1 O desaparecimento na atuação da polícia
de (2014) 7.3.2 O desaparecimento forçado ou redesapa-
3. Formas de violações de direitos humanos no enterro recimento
das vítimas da repressão 7.4 A lei nº 7107/1967 e os limites legais para a
3.1 Caixão lacrado, coação, monitoramento e cremação dos restos mortais de indigentes
ameaças por agentes policiais
3.2 Desaparecimento 1. O papel da Prefeitura no desaparecimento das
4. Relação nominal das vítimas da repressão sepultadas vítimas da repressão
em São Paulo
5. Histórico de violações aos direitos humanos e irregu- A cidade de São Paulo sediou um dos centros mais
¹⁴Texto publicado
laridades administrativas veri cadas nos cemitérios operantes e cruéis da repressão política no país, respon-
originalmente em dezembro
de 2016 na forma dos municipais concernentes à prática de ocultação de cadá- sável pelo sequestro, tortura, execução e desapareci-
capítulos 7 e 8 do relatório veres mento de grande parte das 434 vítimas relacionadas no
final da Comissão da 5.1 O cemitério de Vila Formosa relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV). A
Memória e Verdade da
Prefeitura do Município de
5.2 O cemitério Dom Bosco, em Perus operação de combate aos opositores do regime militar
São Paulo. Par ciparam de 5.2.1 A vala clandestina de Perus era articulada pelo Destacamento de Operações de
sua elaboração os membros 5.2.2 O inconcluso processo de identi cação Informações – Centro de Operações de Defesa Interna
Tereza Lajolo (presidente),
das ossadas de Perus (DOI-Codi), que se instalou nas dependências da Oban
Camilo Vannuchi, Audálio
Dantas, Fermino Fechio e 5.2.3 O Grupo de Trabalho Perus e foi comandado por Carlos Alberto Brilhante Ustra
Adriano Diogo, e também os 5.3 O Cemitério Campo Grande entre 1970 e 1974, e o Departamento de Ordem Política
assessores Amelinha Teles, 5.4 O projeto do crematório municipal e Social (Dops/SP), che ado pelo delegado Sérgio
Fernanda Nascimento,
6. Precariedade e inexistência dos registros legais Fleury. Conforme apontou a CNV, a repressão contava
Pádua Fernandes, Vivian
Mendes, Milena Fonseca 6.1 A situação da documentação o cial nos cemi- com a colaboração das esferas estaduais e municipais
Fontes e Vitor Nery. térios, nos arquivos municipais e no arquivo para assassinar militantes políticos, falsi car informa-

131
ções sobre suas mortes e desaparecer com os corpos: O sepultamento de ví mas da
Há evidências de atuação planejada do regime repressão polí ca na condição de
voltada a negar informações sobre os desapa-
indigentes ou com iden dade falsa foi
recidos políticos e fazer desaparecer seus
um dos métodos de ocultação de
corpos. Cooperavam diferentes organismos
públicos: forças da repressão, funcionários do
cadáveres empregados pelos órgãos de
IML, médicos legistas, as administrações de repressão sediados na capital
cemitérios e um Poder Judiciário muitas vezes
conivente. ⁵ Já estavam em vigor, neste período, as Convenções
de Genebra (1949) que o Brasil rmara e o Congresso
O sepultamento de vítimas da repressão política na Nacional rati cara em 1957 ⁷. Essas normas do direito
condição de indigentes ou com identidade falsa foi um internacional, voltadas para a proteção de vítimas de
dos métodos de ocultação de cadáveres empregados con itos armados entre países distintos ou con ito
pelos órgãos de repressão sediados na capital. Esta interno – caso do golpe de 1964 no Brasil –, obrigam as
Comissão tomou conhecimento de inúmeras denúnci- nações signatárias a respeitar, conservar, identi car e
as sobre a conivência da administração municipal de facilitar o acesso de familiares às sepulturas de vítimas
São Paulo com irregularidades constatadas nos cemité- fatais dos con itos, além de guardar o devido respeito
rios por ela administrados. Como já assinalou a CNV, aos restos mortais e indicar em detalhes o lugar em que
entre os métodos e técnicas utilizados para o desapare- se propõe dar-lhes nova sepultura, em caso de necessi-
cimento de cadáveres, providenciava-se: dade de exumação.
O descumprimento de normais legais e as conse-
O sepultamento deliberado de militantes em quentes violações aos direitos humanos se veri caram
valas clandestinas, como indigentes, por vezes nos cemitérios de Vila Formosa, Dom Bosco, em Perus,
com identi cação, ou ainda com indicação e Campo Grande. Segundo a documentação o cial, ao
errada de localização. Por vezes, há informa- menos 47 corpos foram sepultados como indigentes
ções ou indicações sobre a sepultura, mas a nesses locais entre 1969 e 1976, sob responsabilidade de
localização é di cultada, seja porque os Prefeitura de São Paulo. Destes, 30 foram identi cados.
corpos foram levados para valas comuns, seja A descoberta e abertura da vala clandestina em Perus,
porque foram feitas modi cações nas plantas em setembro de 1990, possibilitou a localização de três
dos cemitérios. ⁶ militantes, além de outros quatro enterrados em outros
locais do cemitério. ¹⁵CNV, vol. I, p. 502, § 8.
Havia um padrão legal de procedimentos que a No entender desta CMV-SP, há elementos de prova ¹⁶CNV, vol. 1, p. 502.
Prefeitura de São Paulo deveria conhecer e obedecer irrefutável da cooperação da administração municipal, Decreto nº 42.121, de 21 de
agosto de 1957, que
que, no entanto, não foi seguido nesses casos, como se responsável legal pelos serviços funerários do municí- promulga as convenções
pode comprovar pela documentação o cial recolhida. pio de São Paulo, com os órgãos da repressão, funcioná- concluídas em Genebra em
Os procedimentos adotados pelos órgãos municipais rios do IML, médicos legistas, o ciais do DOI-Codi/SP 12 de agosto de 1949,
para o sepultamento dos cadáveres de militantes políti- e policiais civis e militares com o propósito de sonegar des nadas a proteger
ví mas de defesa.
cos, sua posterior exumação em massa e reinumação informações sobre os opositores políticos e desaparecer ¹⁷Decreto nº 42.121, de 21
em valas clandestinas, sem os respectivos registros que com os corpos enterrados nos cemitérios paulistanos. de agosto de 1957, que
permitiriam sua identi cação e localização posterior, Ao participar dessa estrutura, a Prefeitura Municipal promulga as convenções
concluídas em Genebra em
além das modi cações nas plantas dos cemitérios, ajudou a encobrir os crimes e os criminosos que os
12 de agosto de 1949,
restringiram criminosamente o direito de acesso à cometeram. A quantidade de casos veri cados permite des nadas a proteger
informação pelos familiares e amigos das vítimas. a rmar que essa prática não foi um acidente passageiro ví mas de defesa.

132
do terror, mas uma cumplicidade que se estendeu por que foram cedidos à esta Comissão pelo Serviço Fune-
vários anos, durante várias administrações. rário do Município, permitem estabelecer o padrão de
procedimentos e cuidados que a administração deveria
1.1 A administração dos cemitérios de São Paulo seguir quando dos sepultamentos ocorridos durante o
período ditatorial, mesmo se tratando de cadáveres de
Desde os primeiros tempos da colônia, a cidade pessoas quali cadas como indigentes ou desconheci-
seguiu o costume português de sepultar os mortos no dos.
interior das igrejas e capelas. Como essa prática passou
a ser considerada prejudicial à salubridade pública, os 2 Investigações anteriores realizadas nos cemité-
cemitérios começaram a ser edi cados a uma distância rios municipais
prudente da cidade, transferindo-se progressivamente
ao município a responsabilidade pelos serviços de inu- 2.1 As denúncias da CPI da Vala de Perus (1990)
mação, bem como a scalização da escrituração e do
registro de sepultamentos, e a nomeação de funcionári- No dia 4 de setembro de 1990, foi aberta a vala clan-
os, administradores e sepultadores ⁸. Em 21 de março destina do Cemitério Dom Bosco, em Perus. Lá esta-
de 1932, o ato nº 326 determinou: vam enterradas mais de mil ossadas sem identi cação,
entre vítimas da repressão política e do Esquadrão da
Os cemitérios no munícipio de São Paulo Morte, indigentes e crianças atingidas pela fome, pela
terão caráter secular e serão administrados epidemia de meningite e por outras doenças na década
pela autoridade municipal, cando livre a de 1970. Um mês depois, em 5 de outubro de 1990, a
todos os cultos religiosos a prática dos respec- Câmara Municipal de São Paulo aprovou a instalação
tivos ritos, em relação aos seus crentes, desde de Comissão Parlamentar de Inquérito Perus - Desapa-
que não ofendam a moral pública e as leis. ⁹ recidos Políticos (CPI de Perus) para investigar “a ori-
A concessão de sepultura a prazo xo enten- gem e as responsabilidades quanto às ossadas encontra-
de-se por cinco anos para os adultos e 3 anos das no Cemitério Dom Bosco, em Perus, e investigar a
para os menores de 12 anos, ndos os quais situação dos demais cemitérios de São Paulo”. Foi a
deverão ser removidos os restos mortais do primeira comissão legislativa a investigar os crimes da
cadáver nela sepultado. ⁰ ditadura. Em sete meses, a CPI realizou 42 sessões ordi-
nárias e uma extraordinária e ouviu 82 depoimentos,
Na administração do prefeito Figueiredo Ferraz, além de analisar os livros do cemitério. O relatório foi
em 1971, esse prazo foi reduzido para três anos , possi- apresentado no Plenário 1º de Maio da Câmara Muni-
bilitando as exumações massivas que culminaram na cipal em 15 de maio de 1991. De todas as provas, docu-
vala clandestina de Perus, como se verá a seguir. mentos e depoimentos, a comissão concluiu:
¹⁸Cf. Guia do Arquivo Histórico
A Lei Orgânica dos Municípios, de 1965, con r-
Municipal, 100 anos, fls. 38/39.
¹⁹Ato nº 326/1932, capítulo 1, mou como atribuição do município dispor sobre o Que há uma desorganização histórica no
art. 1º. serviço funerário e cemitérios, encarregando-se da Serviço Funerário Municipal, no tratamento
²⁰Ato nº 326/1932, capítulo 3, administração daqueles que fossem públicos e scali- dispensado às pessoas pobres falecidas nesta
§1º
²¹Lei nº 7656, de outubro de
zando os pertencentes a associações religiosas . Até cidade, genericamente chamadas de indigen-
1971. 1976, os cemitérios eram subordinados à Prefeitura de tes.
²²Lei nº 9.205/1965, art. 2º, São Paulo, quando foram então transferidos para a Que essa manipulação serviu ao ocultamento
XVI. responsabilidade do Serviço Funerário Municipal. de corpos de vítimas da violência policial e, na
²³item 4, capítulo 9, das
conclusões. Tais legislações, bem como do “Manual de Procedi- década de 70, de presos políticos. ⁴
²⁴item 5, idem. mentos Administrativos e Operacionais em Cemitérios”, Que houve uma adequação do Serviço Fune-

133
rário Municipal para auxiliar o ocultamento que nos últimos dois modi cações e manobras realiza-
de corpos. Os cemitérios que recebiam indi- das no período da ditadura impedem até hoje a identi -
gentes sofreram modi cações nos anos de 75 e cação de militantes políticos lá enterrados. Estão entre
76, exatamente nas quadras com corpos de os réus a Prefeitura Municipal de São Paulo, os ex-
presos políticos. ⁵ prefeitos Paulo Maluf e Miguel Colasuonno e Fábio
Que a existência da Vala e demais irregulari- Pereira Bueno, responsável pelo Serviço Funerário do
dades denunciadas devem ser objeto de rigo- Município entre 1970 e 1974. Outra ação do MPF/SP
rosa apuração pela Prefeitura Municipal, com denuncia os responsáveis pela demora na identi cação
os consequentes processos na Justiça, tanto das ossadas exumadas da vala de Perus, negligência
administrativo como civil. ⁶ também alvo do Inquérito Civil Público nº 06/99.
Que se formou um esquema para acoberta-
mento das mortes nos órgãos de repressão, Segundo o documento, a estratégia para
que incluía funcionários do IML e do Serviço transformar militantes políticos em desapare-
Funerário. ⁷ cidos signi cava:
Que vários corpos saídos do IML foram sepul- Ter a certidão de óbito lavrada, na maioria das
tados com nomes falsos. ⁸ vezes, com o nome utilizado na militância
Que os registros di cultam também a localiza- política, ou seja, falso, apesar do nome verda-
ção de corpos nos cemitérios do Município. ⁹ deiro ser conhecido das autoridades. O nome
falso, porém, era normalmente desconhecido
da família, o que impedia ou di cultava a
Conclui o relatório: localização ⁰; Passar pelo Instituto Médico
Legal onde a versão fantasiosa (suicídio, atro-
[…] o que choca, além das atrocidades come- pelamento etc.) sobre a morte era con rmada
tidas contra os presos, é o esquema que foi (apesar das marcas evidentes de tortura, jama-
montado para ocultar os cadáveres, com o is descritas nos laudos); e Ser enterrado como
auxílio de médicos e funcionários do IML e do indigente, sem qualquer comunicado a famili-
Serviço Funerário Municipal. É evidente que ares ou conhecidos (apesar desses dados
tudo isso foi possível graças à conivência de serem conhecidos pelos aparatos de investiga-
governadores e prefeitos eleitos indiretamente ção).
pela interferência dos militares.
Na argumentação do MPF/SP, ca evidente e
2.2. As denúncias feitas pelo Ministério Público comprovada a participação da Prefeitura de São Paulo
Federal (2009) na estratégia usada pela repressão:

Em setembro de 2009, o Ministério Público Federal Autoridades civis contribuíram – direta e


de São Paulo (MPF/SP) propôs ação civil pública para indiretamente – para o desaparecimento de
“responsabilizar as pessoas jurídicas de direito público e dissidentes políticos durante a ditadura mili- ²⁵item 6, idem.
²⁶item 9, capítulo 9, das
autoridades que contribuíram para a ocultação de cadá- tar. [...] Como cou exaustivamente demons- conclusões.
veres, impedindo o seu funeral e enterro por familiares trado, esta ação trata diretamente da colabora- ²⁷item 14, idem.
e amigos, e promover a memória e a verdade no interes- ção do Município de São Paulo com a repres- ²⁸item 22, idem.
²⁹item 25, idem.
se de toda a sociedade brasileira.” Segundo os docu- são à dissidência política durante a ditadura
³⁰Ação civil pública do
mentos, os cemitérios de Campo Grande, Vila Formosa militar. As medidas de nitivas para a oculta- MPF/SP, de 26 de novembro
e Dom Bosco (Perus) foram destinos dos corpos, sendo ção de cadáveres em São Paulo tiveram êxito de 2009.

134
com a participação do Executivo municipal. 3 Formas de violações aos direitos humanos no
É, pois, indisfarçável a responsabilidade obje- enterramento das vítimas da repressão
tiva do Município de São Paulo pelos danos
decorrentes dos fatos expostos e que ocorre- 3.1 Caixão lacrado, coação, monitoramento e
ram em cemitérios municipais. ameaças por agentes policiais

2.3. As denúncias da CNV (2014) Para esconder as verdadeiras circunstâncias


do assassinato de presos políticos torturados nos órgãos
A Comissão Nacional da Verdade foi instituída em de segurança, os agentes encenavam tiroteios, tentati-
16 de maio de 2012 para apurar graves violações de vas de fuga, atropelamentos ou suicídios, atestados por
direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. O relató- falsos laudos produzidos por médicos do IML. Quando
rio nal, entregue em dezembro de 2014, revela a ação o corpo era entregue à família, a ordem era que o caixão
organizada do Estado no período da ditadura militar. A fosse lacrado, com a condição de não ser aberto e que o
investigação examina quatro modalidades de violações: sepultamento fosse feito rapidamente. Assim, as marcas
prisão (ou detenção) ilegal ou arbitrária; tortura; execu- de tortura não eram reveladas nem a falsa causa da
ção sumária, arbitrária ou extrajudicial e outras mortes morte questionada. Também era recorrente a presença
imputadas ao Estado; e desaparecimento forçado, con- ostensiva de agentes da repressão durante o velório e no
siderando a ocultação de cadáveres, conforme o caso, interior do cemitério, acompanhando a inumação e
ou como elemento do crime complexo de desapareci- intimidando os familiares e amigos da vítima. Tal coa-
mento forçado ou como crime autônomo, de natureza ção foi denunciada, por exemplo, nos sepultamentos de
permanente . Alexander José Ibsen Voerões (Cemitério da Paz),
É justamente sobre o desaparecimento forçado, Neide Alves dos Santos (Vila Formosa) e de Manoel Fiel
apontado como “parte da estratégia da ditadura para Filho (Cemitério da Quarta Parada).
ocultar crimes de Estado”, que existem denúncias de Documentos do Dops/SP encontrados por
participação de autoridades e agentes do município. esta Comissão revelam o monitoramento dos sepulta-
Diz o relatório da CNV: mentos de militantes políticos.

O sepultamento de militantes como indigen- Dando cumprimento a determinação do


tes, em cemitérios localizados na periferia dos Senhor Delegado Titular de Ordem Política no
grandes centros urbanos, era feito também sentido de acompanhar o féretro do terrorista
com a colaboração do serviço funerário. Pela Alexandre José Ibsem Veronese [sic] que se
concentração da ação repressiva em São Pau- encontrava no Instituto Médico Legal, para o
lo, Rio de Janeiro e Pernambuco, foi nesses Cemitério da Paz, no Bairro do Ferreira, Vila
estados onde essa prática ocorreu com mais Sônia, temos a informar o seguinte:
frequência. Nos deslocamos ao Instituto Médico Legal por
Apesar de di culdade de encontrar os restos volta das 7,30 horas, e, no velório o cial deste
mortais de desaparecidos, o Estado é respon- referido instituto encontravam-se velando o
sável por continuar as buscas e identi car as corpo do referido terrorista, mais de 50 pessoas.
vítimas, com exames que permitam estabele- O cotejo fúnebre, saiu do velório às 8,10 horas,
cer, na medida do possível, data, circunstânci- compondo-se de 12 veículos e umas 40 pesso-
³¹CNV, vol. I, cap. 7, p. 280, § 5.
as, causas da morte e eventuais indícios de as mais ou menos.
³²CNV, vol. I, cap. 12, p. 501, § 4.
³³CNV, vol. I, cap. 12, § 23, p. 507. tortura. ⁴ Chegamos ao cemitério às 8,50 horas quando se
³⁴CNV, vol. I, cap. 12, § 2, p. 500. deu o sepultamento, o mesmo foi feito na Qua-

135
dra 68, sepultura 28 conforme cartão anexo bre, numa tentativa de subverter a ordem.
fornecido pela administração do mesmo. A autoridade municipal, responsável legalmente
Não sendo constatado por nós qualquer irre- pela ‘‘supervisão, orientação, controle e scalização dos
gularidade digna de nota. sepultamentos’’ ⁷, jamais protestou ou tomou qualquer
Não houve o comparecimento de repórteres e providência para coibir tais abusos dentro dos cemitéri-
nem mesmo o caixão foi aberto durante o os municipais.
período de nossa permanência no velório e no
sepultamento. ⁵ 3.2 Desaparecimento

Assim como os sepultamentos, as exumações que Apesar dos registros o ciais apontarem que foram
ocorreram nos cemitérios de Perus e Vila Formosa na enterrados nos cemitérios municipais de São Paulo,
década de 1970 também foram monitoradas pela dezenas de corpos, até hoje não foram encontrados ou
repressão. Neste momento, os órgãos de segurança identi cados. Sepultamentos com nomes falsos, as
tinham conhecimento que alguns desaparecidos enter- exumações massivas sem o conhecimento das famílias,
rados clandestinamente haviam sido identi cados e a falta dos registros legais e obrigatórios dos locais das
acompanhavam as buscas dos familiares. reinumações, as modi cações signi cativas do plano de
Documentos do Sistema Nacional de Informações arruamento e da numeração de quadras e sepulturas, a
(SNI) encontrados por esta Comissão mostram que extinção de quadras utilizadas, bem como a construção
policiais eram escalados para acompanhar o translado de valas e ossários clandestinos são, sem dúvida, os
dos restos mortais dos desaparecidos políticos. Em motivos responsáveis pela impossibilidade de localiza-
1980, o corpo do dirigente do Partido Comunista do ção dos restos mortais de 17 presos políticos mortos
Brasil (PCdoB) Carlos Nicolau Danielli, enterrado durante a ditadura e comprovadamente sepultados nos
como indigente em Perus, foi transferido para sua cida- cemitérios municipais. Tais violações evidenciam a
de natal em cerimônia monitorada pela repressão. participação da Prefeitura Municipal na estrutura mon-
tada para ocultar cadáveres de opositores do regime e,
A trasladação dos restos mortais de Carlos desta forma, encobrir os crimes.
Nicolau Danielle, membro do Comitê Central A CNV con gura o desaparecimento forçado
do PC do B, morto em 1972, do Cemitério de como toda a privação de liberdade perpetrada por agen-
Perus (SP) para o Cemitério de Marui, em tes do Estado, seguida pela recusa em admitir a privação
Niterói/RJ, transcorreu sem incidentes. ⁶ de liberdade ou informar sobre o destino ou paradeiro
da pessoa, impedindo o exercício das garantias proces-
O documento descreve o ato, lista os cerca de 200 suais pertinentes. ⁸
presentes e destaca a presença do “ex-subversivo” Luiz
Amauri Pinheiro Souza. Em anexo está um pan eto As exumações que ocorreram nos
‘‘fartamente distribuído na área’’. O relatório, assinado cemitérios de Perus e Vila Formosa na
pelo tenente coronel José Luiz Araújo Soares, chefe da década de 1970 foram monitoradas
SS 116, conclui: ³⁵Documento da Delegacia
pela repressão. Documentos do SNI Especializada de Ordem
encontrados por esta Comissão Polí ca, 01/03/1972,
Assim, veri ca-se que o PC do B, além de inves gações nº 069.
tentar ampliar a divulgação sobre o traslado
mostram que policiais eram escalados ³⁶SNI, informação nº
dos restos mortais de um ex-militante, procu- para acompanhar o translado dos 061/161/ARJ/81
³⁷Lei nº 7.108/68.
rou realizar o chamamento para a prática de restos mortais dos desaparecidos ³⁸CNV, vol. I, cap. 7, p. 291, §
atos de vandalismo durante a cerimônia fúne- polí cos 39.

136
São, portanto, considerados desaparecidos os com identidades falsas, entre muitos, Joelson Crispim,
casos em que, embora existam documentos com o nome de Roberto Paulo Wilda, e José Maria Fer-
o ciais atestando a morte da vítima – como reira de Araújo, como Edson Cabral Sardinha. No Dom
certidão de óbito, laudo cadavérico, declara- Bosco, em Perus, também foram enterrados com
ções formais de autoridades estatais ou fotos nomes falsos Francisco José de Oliveira, como Dário
do Instituto Médico-Legal (IML) –, seus restos Marcondes, e Flávio Carvalho Molina, como Álvaro
mortais não foram encontrados ou plenamen- Lopes Peralta, para citar alguns exemplos.
te identi cados. ⁹ Em alguns casos, as requisições de exames necros-
cópicos lavradas com nomes falsos traziam a identidade
A cadeia do desaparecimento forçado em São Paulo verdadeira escrita à mão no documento. É o caso de
começava no IML, como relatou a Comissão da Verda- Gelson Reicher, sepultado como Emiliano Sessa, Hiro-
de do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”: aki Torigoe, registrado como Massahiro Nakamura, e
Alex de Paula Xavier Pereira, identi cado por seu nome
Para fazer cumprir as diretrizes procedentes usado na clandestinidade, João Maria de Freitas. Era
dos órgãos de repressão quanto ao encami- comum também identi car os militantes como “terro-
nhamento destes corpos, o IML contava com ristas” nos documentos do IML, conforme apontou a
pro ssionais alinhados ao regime militar. A CPI de Perus:
metodologia adotada para o ocultamento dos
corpos incluía, em muitos casos: a manuten- No caso de presos políticos, o tratamento era
ção do nome falso nos atestados de óbito, diferenciado. Uma letra “T” em vermelho
mesmo se a identidade verdadeira do morto passava a constar da documentação. Jair
fosse conhecida; corroboração das versões Romeu, auxiliar de necropsia alçado à condi-
policiais de morte pela perícia médica, ainda ção de chefe de necrotério, admitiu em depoi-
que fossem notados sinais de tortura no cadá- mento à CPI ter sido o autor desses registros,
ver; o traslado dos corpos ao cemitério em por ordens do Del. Alcides Cintra Bueno, do
média 1 dia após óbito, em claro desrespeito à Dops. A letra “T” se destinava a identi car os
legislação que desde a época já assegurava a terroristas.⁴
permanência de 72 horas dos corpos no
necrotério à espera de alguém que venha O crime de desaparecimento forçado de pessoas,
reclamá-los.⁴⁰ até então esporádico, tornou-se prática reiterada e siste-
³⁹CNV, vol. I, cap. 7, p. 294, § mática no Brasil após o golpe de 1964. Esta Comissão
47. À Prefeitura cabia a responsabilidade sobre os não conseguiu nenhum indício de que a Prefeitura de
⁴⁰Relatório da Comissão da cemitérios públicos, como o de Vila Formosa e Perus, São Paulo teria participado de sequestros, torturas e
Verdade do Estado de São
Paulo Rubens Paiva, tomo I,
onde foram sepultados como indigentes 45 vítimas da execução de opositores detidos, mas reuniu farta docu-
parte I, § 8. ditadura, por vezes com nomes falsos ou como desco- mentação comprobatória de que dezenas desses cadá-
Apresentação do relatório da nhecidos, de acordo com os documentos o ciais. veres tiveram como destino nal os cemitérios da
Comissão Parlamentar de Apesar de conhecerem os dados pessoais de suas víti- capital, sob a responsabilidade conivente da autoridade
Inquérito “Desaparecidos”
da Câmara Municipal de São mas, os órgãos de repressão falsi cavam requisições de municipal.
Paulo, p. 20. exame e declarações de óbito e lavravam certidões de Segundo os documentos levantados pela CMV, em
⁴¹Apresentação do relatório óbito com nomes falsos e datas incorretas, além de 1968 foram enterrados em São Paulo três militantes
da Comissão Parlamentar de
versão fantasiosa da ocorrência da morte, para impossi- políticos, todos em cerimônias realizadas pela família.
Inquérito “Desaparecidos”
da Câmara Municipal de São bilitar a localização e identi cação posteriores. No ano seguinte, dos dez sepultados nos cemitérios
Paulo, p. 20. No cemitério de Vila Formosa foram sepultados municipais, quatro foram declarados indigentes. Em

137
1970, dos onze opositores do regime enterrados em São políticos sepultados em São Paulo, elaborada por esta
Paulo, nove foram sepultados clandestinamente em Comissão com base na documentação resgatada, não é
Vila Formosa. O padrão seguiu o mesmo em 1971, com nem pode ser considerada de nitiva. A seguinte relação
onze militantes sepultados como indigentes entre os nominal aparece em ordem cronológica conforme a
quinze registrados nos livros dos cemitérios. Em 1972, data de sepultamento das vítimas da repressão política
o ano com maior número de enterros de opositores nos cemitérios da cidade de São Paulo entre 1964 e
políticos registrados no município (20), treze foram 1988, segmentadas conforme a administração munici-
declarados indigentes. Outras oito vítimas foram enter- pal.
radas com nome falso ou como desconhecidos no ano
seguinte, entre os doze sepultamentos registrados em I. Administração Faria Lima (de 08/04/1965 a
1973. 07/04/1969)
Entre novembro de 1973 e agosto de 1975, não
houve registros de sepultamentos nos cemitérios pau- José Guimarães (03/10/1968)
listanos. Isso não signi ca que a repressão parou de Estudante secundarista, 20 anos de idade, assassi-
sequestrar e assassinar militantes políticos, mas sim que nado na Rua Maria Antônia por membros do CCC e
a estratégia foi modi cada depois das denúncias das agentes policiais do Dops, foi sepultado no Cemitério
torturas e execuções e da descoberta de opositores do do Araçá, pela família, sob intensa vigilância dos órgãos
regime sepultados como indigentes nos cemitérios de da repressão.
Vila Formosa e Perus.
Não se sabe o destino dos corpos de inúmeras víti- Catarina Helena Abi Eçab (08/11/1968)
mas que passaram pelos órgãos de repressão de São Estudante de Filoso a da Universidade de São
Paulo nesse período, entre elas Ana Rosa Kucinski Silva Paulo (USP), foi assassinada no Rio de Janeiro depois de
e Issami Nakamura Okano. Nos anos posteriores, houve ser torturada em um sítio em São João do Meriti (RJ).
mais dois registros de sepultamentos como indigentes Aos 21 anos de idade, foi sepultada pela família no Cemi-
nos cemitérios municipais. Em 1976, Pedro Ventura tério do Araçá.
Felipe de Araújo Pomar e Ângelo Arroyo foram enter-
rados pela repressão em Perus e identi cados e transla- João Antônio dos Santos Abi Eçab (08/11/1968)
dados pela família. Aluno da Filoso a da USP, foi assassinado junto
As denúncias sobre a repressão no Brasil já corriam com sua mulher, Catarina Helena, aos 25 anos, nas
o mundo e, em meados da década de 1970, circulavam mesmas circunstâncias, conforme depoimento de agen-
as notícias sobre mortos e desaparecidos. Mas isso não te policial que trabalhou no DOI-Codi/RJ. Foi sepulta-
foi su ciente para a Prefeitura adotar maiores cuidados. do no Araçá.
Durante anos seguidos, o município contribuiu para a
ocultação dos cadáveres, sepultando vítimas da repres- Marco Antônio Braz de Carvalho (28/01/1969)
são sem os cuidados previstos em lei. Vale ressaltar que, Carioca de Angra dos Reis (RJ), foi assassinado a
segundo o Direito Internacional, frustrar o enterro de tiros pelas costas, aos 29 anos de idade, por policiais do
uma pessoa ofende os sentimentos mais íntimos do ser Dops/SP no bairro de Santa Cecília. Era dirigente da
humano e rouba dos familiares e amigos o direito de Aliança Libertadora Nacional (ALN). Foi sepultado
proporcionar ao morto sepultura e enterro dignos. pela família no Cemitério de Vila Formosa.
Hamilton Fernando da Cunha (11/02/1969)
4 Relação nominal das vítimas da repressão Era militante da Vanguarda Popular Revolucionária
sepultadas em São Paulo (VPR). Natural de Santa Catarina, atuava em atividades
É importante observar que a lista dos opositores culturais na cidade de São Paulo. Foi assassinado em seu

138
local de trabalho por agentes do Dops e sepultado pela Carlos Marighella (04/11/1969)
família no cemitério de Vila Formosa. Baiano de Salvador, dirigente da ALN, foi assassi-
II. Administração Paulo Maluf (de 08/04/1969 a nado em uma emboscada no bairro Jardins, em São
07/04/1971) Paulo, e sepultado como indigente no Cemitério de Vila
Formosa. Em dezembro de 1979, 10 anos depois, seus
Carlos Roberto Zanirato (29/07/1969) restos mortais foram identi cados e transladados para
Integrante da VPR, foi soldado do exército sob o sua cidade natal.
comando de Carlos Lamarca, com quem desertou em
24 de janeiro de 1969. Depois de sequestrado por agen- Friederich Adolf Rohmann (04/11/1969)
tes da repressão e preso no Dops/SP, foi torturado até a Protético morto pelos agentes da repressão na
morte e enterrado como indigente no Cemitério de Vila emboscada que vitimou Carlos Marighella. Foi enterra-
Formosa como “desconhecido 2777”. do pela família no Cemitério do Araçá.

Fernando Borges de Paula Ferreira (29/07/1969) Chael Charles Schreier (22/11/1969)


Estudante de Ciências Sociais da USP, liado à Estudante de Medicina da Santa Casa de Misericór-
Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR- dia de São Paulo e militante da VAR-Palmares, foi preso
Palmares), foi morto a tiros. Com o corpo apresentando no Rio de Janeiro e não resistiu às torturas. O corpo foi
marcas de tortura, foi sepultado pela família no Cemité- entregue à família em caixão lacrado e transladado para
rio da Paz. São Paulo, onde foi sepultado no Cemitério Israelita,
sem permissão para os ritos religiosos e sob vigilância
José Wilson Lessa Sabbag (03/09/1969) das forças da repressão.
Estudante de Direito da PUC, militante da ALN, foi
morto aos 25 anos de idade por agentes da repressão. Antônio Raymundo de Lucena (20/02/1970)
Vítima de execução sumária, teve várias perfurações Operário, foi morto no sítio em que morava, em
identi cadas pelo corpo, todas de cima para baixo. Foi Atibaia (SP), com vários tiros pelo corpo todo e caracte-
sepultado no Cemitério do Araçá. rísticas de execução sumária. Foi enterrado em Vila
Formosa como indigente no terreno 253, antiga quadra
Sérgio Roberto Corrêa (04/09/1969) 57. Devido às modi cações que des guraram a quadra,
Militante da ALN, aluno da Filoso a, Ciências e seus restos mortais ainda não foram localizados.
Letras na USP, teria morrido em 4 de setembro, junto
com Ishiro Nagami, na explosão do carro em que esta- José Idésio Brianezi (13/04/1970)
vam. Enterrado como indigente no Cemitério de Vila Atuou no movimento estudantil no Paraná, liou-
Formosa, seus restos mortais nunca foram identi ca- se à ALN e foi assassinado na pensão onde morava, no
dos. bairro do Campo Belo, em São Paulo, aos 24 anos.
Enterrado no Cemitério de Vila Formosa, a identi ca-
Virgílio Gomes da Silva (29/09/1969) ção dos restos mortais transladados para Apucarana foi
Operário da área química, militou no Partido questionada e colocada em dúvida por seus pais.
Comunista do Brasil (PCB) e depois na ALN, ao lado de
Marighella. Foi sequestrado e morto sob torturas. A Roberto Macarini (17/4/1970 ou 28/4/1970)
documentação o cial indica que foi sepultado no Bancário e militante da VPR, foi preso e torturado
Cemitério de Vila Formosa, mas até hoje seu corpo não no DOI-Codi/SP. Debilitado, levou os agentes da
foi identi cado e permanece desaparecido. repressão a um suposto encontro com companheiros.
A versão o cial diz que ele se atirou do Viaduto do Chá.

139
A requisição do laudo de necropsia está assinalada com Joaquim Câmara Ferreira (23/10/1970)
um T de “terrorista”. Foi sepultado pela família no Cemi- Aluno da Politécnica e do curso de Filoso a da
tério de Vila Formosa. USP, dirigente da ALN, foi assassinado sob tortura no
sítio clandestino 31 de Março, nos arredores de São
Joelson Crispim (22/04/1970) Paulo, pela equipe do delegado Fleury. Foi enterrado
Militante da VPR, foi assassinado a tiros aos 22 pela família no Cemitério da Consolação.
anos por agentes do DOI-Codi/SP e enterrado sob o
nome falso de Roberto Paulo Wilda no Cemitério de Edson Neves Quaresma (05/12/1970)
Vila Formosa. Seus restos mortais ainda não foram Marinheiro, militante da VPR, foi assassinado em
identi cados. uma praça da cidade por agentes do DOI-Codi/SP e
enterrado no Cemitério de Vila Formosa como indi-
Norberto Nehring (24/04/1970) gente, não sendo localizados e identi cados seus restos
Militante da ALN e professor universitário, mor- mortais até o presente.
reu sob torturas nas mãos da equipe do delegado Fle-
ury, embora a versão o cial, mentirosa, fale em suicí- Yoshitane Fujimori (05/12/1970)
dio. Foi sepultado com nome falso de Ernest Snell Bur- Militante da VPR, atuou ao lado de Lamarca no
mann no Cemitério de Vila Formosa. Três meses depo- Vale do Ribeira. Foi executado a tiros junto com Edson
is, a família foi avisada, a exumação con rmou sua Neves Quaresma e enterrado sob nome falso no Cemi-
identi cação e o corpo foi transladado para o jazigo da tério de Vila Formosa. Seus restos mortais não foram
família. localizados e identi cados até os dias de hoje.

Alceri Maria Gomes da Silva (17/05/1970) Raimundo Eduardo da Silva (05/01/1971)


Operária e militante da VPR, foi assassinada a tiros Operário metalúrgico, sua morte sob tortura
por agentes da Oban que invadiram e metralharam a ganhou repercussão na imprensa devido às denúncias
casa onde ela residia, no Tatuapé, São Paulo. Enterrada feitas pelo padre Giulio Vicini e pela assistente social
como indigente em Vila Formosa, seus restos mortais Yara Spadini, que também foram presos e torturados.
não foram localizados em razão das modi cações nas Seu corpo foi enterrado como indigente no Cemitério
quadras do cemitério. do Lajeado, em Guaianazes, e recuperado pela família
três anos depois, sendo transladado para o Cemitério de
Antônio dos Três Reis de Oliveira (17/05/1970) Mauá (SP).
Militante da ALN, foi assassinado a tiros por agen-
tes do DOI-Codi/SP, junto com Alceri Maria Gomes da Devanir José de Carvalho (07/04/1971)
Silva. Foi enterrado como indigente em Vila Formosa e Operário metalúrgico da região do ABC, militou
seus restos mortais não foram identi cados até hoje. no MRT. Ferido em tiroteio, teria sido morto dois dias
depois, sob torturas, pela equipe do delegado Fleury e
José Maria Ferreira de Araújo (23/09/1970) enterrado como indigente no Cemitério de Vila Formo-
Marinheiro, militante da VPR, foi sequestrado em sa. Seus restos mortais nunca foram identi cados.
São Paulo em ação de agentes do DOI-Codi/SP. Foi
assassinado durante as torturas e sepultado em Vila III. Administração Figueiredo Ferraz (de
Formosa sob o nome falso de Edson Cabral Sardinha, 08/04/1971 a 21/08/1973)
na sepultura número 119, quadra 11, mas jamais locali-
zado e identi cado em razão das modi cações realiza- Joaquim Alencar Seixas (17/04/1971)
das naquele cemitério. Militante do MRT, morreu sob tortura nas depen-

140
dências do DOI-Codi/SP, então comandado pelo major indigente no Cemitério de Perus. Quatro anos depois,
Carlos Brilhante Ustra e foi o primeiro militante políti- em 1975, a família conseguiu resgatar seus restos morta-
co enterrado como indigente no recém-inaugurado is e transladá-los para Macaé (RJ).
Cemitério Dom Bosco, em Perus. Foi exumado em
1977, seus restos mortais foram identi cados e transla- Eduardo Antônio da Fonseca (23/09/1971)
dados pela família. Estudante, militante da ALN, assassinado depois de
cair em uma emboscada na Rua João Moura, por agen-
Dimas Antônio Casemiro (19/04/1971) tes do DOI-Codi/SP, com 24 anos de idade. Foi sepulta-
Militante da VAR-Palmares, foi também dirigente do pela família no Cemitério São Pedro.
do MRT, tendo sido morto aos 25 anos de idade depois
de dias preso e apresentando sinais de tortura. Segundo Manoel José Mendes Nunes de Abreu (23/09/1971)
laudo do IML, seu corpo foi enterrado no dia Estudante da Politécnica da USP, era português de
20/04/1971, no Cemitério de Perus, mas jamais localiza- nascimento e foi assassinado pelos órgãos de repressão
do e identi cado. É provável que esteja entre as ossadas aos 22 anos de idade depois de cair em uma emboscada
encontradas na vala clandestina. na Rua João Moura. Foi sepultado pela família no Cemi-
tério de Vila Formosa.
Dênis Casemiro (18/05/1971)
Militante da VPR, irmão de Dimas Casemiro, foi José Roberto Arantes de Almeida (04/11/1971)
sequestrado pela repressão e submetido a torturas por Militante do Movimento de Libertação Popular
quase um mês, morrendo aos 28 anos de idade, em meio (Molipo), estudante, foi preso aos 28 anos na Rua Cer-
a versões, datas e registros falsos, forjados pela repres- vantes e assassinado pelos militares. Sua morte foi noti-
são. Enterrado no Cemitério de Perus, seus restos mor- ciada pelos jornais somente no dia 09/11 e a família foi
tais foram resgatados da vala clandestina em setembro comunicada de sua morte após o corpo ter sido enterra-
de 1990 e identi cados no ano seguinte. Foram transla- do como indigente no Cemitério Dom Bosco, em Perus,
dados em agosto de 1991 para Votuporanga (SP) pela sob a falsa identi cação de José Carlos Pires de Andrade.
família. Foi exumado e transladado pela família para Araraqua-
ra (SP) em 16/11/1971.
Iara Iavelberg (20/08/1971)
Professora-assistente do Instituto de Psicologia da Francisco José de Oliveira (05/11/1971)
USP, foi militante da Política Operária (Polop), VAR- Estudante de Ciências Sociais na USP, militante do
Palmares e VPR, tendo ingressado no MR-8 em abril de Molipo, foi morto sob torturas depois de ferido em uma
1971. Companheira de Carlos Lamarca, morreu aos 27 emboscada e enterrado no Cemitério de Perus, sob o
anos em um cerco policial em Salvador (BA). Seu corpo nome falso de Dário Marcondes. Seus restos mortais
foi transladado para Cemitério Israelita de São Paulo e foram jogados na Vala de Perus e nunca identi cados.
sepultado na ala dos suicidas, conforme a causa de sua
morte declarada pelos militares. Em 2003, depois de Flávio Carvalho Molina (07/11/1971)
mais de uma década de batalhas judiciais, seu corpo foi Estudante, militante do Molipo, foi sequestrado em
exumado e as análise periciais con rmaram que ela foi 06/11/1971 e assassinado um dia depois, sob tortura,
assassinada. pelos agentes do DOI-Codi/SP. Foi sepultado sob o
nome falso de Álvaro Lopes Peralta no dia 09/11/1971 e
Antônio Sérgio de Mattos (23/09/1971) levado para a vala clandestina em 1976. Seus restos
Estudante, 23 anos, foi assassinado em uma embos- mortais foram identi cados em setembro de 2005,
cada na Rua João Moura, na capital, e enterrado como entregues à família e transladados para o Rio de Janeiro.

141
José Milton Barbosa (05/12/1971) enterrado em Perus com o nome falso de Emiliano Sessa.
Ex-sargento do Exército, cassado em 1964, morreu Tempos depois, localizados pela família, seus restos mor-
sob torturas depois de ferido em emboscada no bairro do tais foram transladados para o Cemitério Israelita do
Sumaré, em São Paulo. Foi sepultado como indigente sob Butantã.
nome falso de Hélio José da Silva, no Cemitério de Perus,
e até hoje seus restos mortais não foram localizados. Gastone Lúcia de Carvalho Beltrão (22/01/1971)
Estudante, foi assassinada aos 22 anos de idade por
Carlos Eduardo Pires Fleury (10/12/1971) agentes da repressão, sob torturas, apesar da versão o cial
Militante do Molipo, estudante de Direito na PUC e de tiroteio. Foi enterrada em Perus como indigente. Ape-
de Filoso a na USP, foi assassinado no Rio de Janeiro pela nas em 1975 foi permitido à família o acesso a seus restos
repressão aos 26 anos, em circunstâncias pouco esclareci- mortais, transladados para o jazigo da família em Maceió
das. As fotogra as da perícia mostram marcas de algemas (AL).
nos pulsos, o que indica que foi preso antes de ser morto.
A família o sepultou no Cemitério da Consolação. Hélcio Pereira Fortes (28/01/1972)
Estudante, militante da ALN, foi morto aos 24 anos
Luiz Hirata (20/12/1971) de idade, sob torturas, apesar da versão o cial de tiroteio.
Estudante de Agronomia da Escola Superior de Foi enterrado em Perus, à revelia da família, que só anos
Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), de Piracicaba, depois, em 1975, conseguiu transladá-lo para Ouro Preto
era militante da Ação Popular (AP). Foi assassinado (MG).
depois de quase um mês de torturas pela equipe do dele-
gado Fleury. Enterrado como indigente no Cemitério de Frederico Eduardo Mayr (24/02/1972)
Perus, seus restos mortais não foram identi cados. Estudante universitário, militante do Molipo, foi
assassinado sob tortura, conforme depoimentos de
Hiroaki Torigoe (05/01/1972) outros presos. Foi enterrado em Perus como indigente
Militante do Molipo, estudante de Medicina da sob nome falso de Eugênio Magalhães Sardinha, tendo
Faculdade da Santa Casa de São Paulo, foi assassinado aos depois sido removido para a vala clandestina e só identi -
28 anos de idade, sob torturas, depois de ferido em ação cado em 1992, quando a família transladou seus restos
da repressão. Foi enterrado como indigente no Cemitério mortais para o Rio de Janeiro.
de Perus sob o nome falso de Massahiro Nakamura.
Mesmo depois de sucessivas exumações, seus restos Alexander José Ibsen Voerões (27/02/1972)
mortais nunca foram identi cados. Chileno, estudante, foi assassinado aos 19 anos por
agentes da repressão e sepultado pela família em
Alex de Paula Xavier Pereira (20/01/1972) 01/03/1972 no Cemitério da Paz, em Vila Sônia, em cai-
Estudante, foi morto aos 22 anos sob tortura por xão lacrado, conforme determinação policial, com a
agentes do DOI-Codi/SP, apesar da versão o cial de presença de muitos agentes do Dops/SP.
tiroteio. Foi enterrado sob nome falso de João Maria de
Freitas, no Cemitério de Perus, localizado pelos familia- Napoleão Felipe Biscaldi (27/02/1972)
res em 1979 e transladado para o Rio de Janeiro. Funcionário público aposentado, estava atravessan-
do a rua quando foi atingido por agentes da repressão que
Gelson Reicher (20/01/1972) perseguiam Alexander José Ibsen Voeroes e Lauriberto
Aluno do curso de Medicina da USP, militante da José Reyes, militantes do Molipo mortos naquele mesmo
ALN, morreu na mesma ação que vitimou Alex Xavier, dia. Foi enterrado por seus familiares no Cemitério do
sob torturas, apesar da encenação o cial de tiroteio. Foi Araçá.

142
Antônio Carlos Nogueira Cabral (12/04/1972) Zoé Lucas de Brito (28/06/1972)
Estudante de Medicina da USP, militante da ALN, Professor e corretor no mercado nanceiro, seu
com 23 anos, foi sequestrado em 11/04/1972 e sua morte corpo foi encontrado sobre os trilhos, próximo à
só foi noticiada nos jornais do Rio de Janeiro em estação ferroviária do Tamanduateí, segundo a ver-
18/04/1972. Seu corpo foi reconhecido pela irmã no são policial. No necrotério, parentes viram marcas de
IML/RJ e entregue à família no dia 19/04/1972, em cai- tortura no corpo e o velório teve presença de agentes
xão lacrado, com ordens de não abri-lo. O sepultamen- da repressão. Foi sepultado no Cemitério Vila Nova
to, em São Paulo, foi acompanhado por muitos policiais. Cachoeirinha pelos familiares.

Rui Osvaldo Aguiar Pfützenreuter (14/04/1972) José Júlio de Araújo (18/08/1972)


Jornalista, formado pela Universidade Federal do Bancário, militante da ALN, foi sequestrado e
Rio Grande do Sul, sequestrado em São Paulo em executado por agentes do DOI-Codi/SP depois de
14/04/1972, foi assassinado sob torturas no DOI- muita tortura, conforme testemunho de ex-presos.
Codi/SP, no dia seguinte, aos 29 anos. Era militante do Foi enterrado como indigente em Perus e, em agosto
Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT) e de 1975, localizado pelo irmão, exumado e translada-
foi sepultado como indigente no Cemitério de Perus. do para Belo Horizonte (MG).
Depois de muito esforço, a família conseguiu identi car
os restos mortais e transladá-los para Santa Catarina. Luiz Eurico Tejera Lisbôa (02 ou 03/09/1972)
Universitário, militante da ALN, foi sequestrado
Paulo Guerra Tavares (29/05/1972) em setembro de 1972, aos 24 anos de idade, executado
Militar, militante da VPR, foi executado a tiros por por agentes da repressão e enterrado em Perus como
quatro agentes na Avenida Sumaré, em São Paulo, em indigente com o nome falso de Nelson Bueno. Locali-
uma emboscada. Foi sepultado pela família no Cemité- zados e identi cados pela família, seus restos mortais
rio São Pedro no dia 03/06/1972. foram transladados em 1982 para Porto Alegre (RS).

Grenaldo de Jesus Silva (30/05/1972) Antônio Benetazzo (30/10/1972)


Ex-marinheiro, foi executado no interior de um Jornalista e professor, natural de Verona, Itália,
avião, no Aeroporto de Congonhas, por agentes da cursou Filoso a e Arquitetura na USP e militou na
repressão, que divulgaram a versão de que teria se suici- ALN e Molipo. Foi sequestrado e executado por agen-
dado. Foi enterrado como indigente em Perus no dia tes da repressão depois de muitas torturas, aos 31
01/06/1972 e seus restos mortais ainda não foram iden- anos. Foi enterrado como indigente no Cemitério de
ti cados. Perus, em 31/10/1972, dois dias antes da divulgação
de sua morte. Posteriormente, os restos mortais
Iuri Xavier Pereira (14/06/1972) foram localizados e transladados pelos familiares.
Estudante, militante da ALN, foi ferido em uma
emboscada no bairro da Mooca, no restaurante Varella, José Carlos Cavalcanti Reis (30/10/1972)
e levado às dependências do DOI-Codi/SP, onde mor- Estudante da Faculdade de Engenharia do Mac-
reu provavelmente sob torturas. Foi enterrado no Cemi- kenzie, 27 anos de idade, foi ferido a bala em operação
tério de Perus como indigente e somente em 1980 seus do DOI-Codi/SP e levado ao Deops, onde morreu sob
restos mortais foram localizados e transladados para o torturas, segundo testemunhos de ex-presos. O corpo
Rio de Janeiro pela família. foi visto por familiares no IML/SP, que constataram
sinais de tortura. Foi sepultado no Cemitério Gethsê-
mani, em caixão lacrado, proibido de ser aberto, em

143
cerimônia com presença de policiais. Ronaldo Mouth Queiroz (06/04/1973)
Estudante de Geologia da USP, militante da ALN,
Aurora Maria Nascimento Furtado (10/11/1972) foi executado aos 26 anos de idade, na Avenida Angéli-
Estudante de Psicologia da USP, militante da ALN, ca, por agentes do DOI-Codi/SP e enterrado pela famí-
foi assassinada no Rio de Janeiro depois de presa e tor- lia no Cemitério da Saudade, na zona leste da cidade.
turada por agentes da repressão. Seu corpo deu entrada
no IML/RJ com identidade desconhecida, mas foi pos- Gerardo Magela Fernandes Torres da Costa
teriormente reconhecida pela família, que a translada- (28/05/1973)
ram para o Cemitério São Paulo, em caixão lacrado, em Estudante da Medicina de Sorocaba, morreu aos 23
12/11/1972. anos depois de preso e torturado no DOI-Codi/SP,
apesar da versão o cial falsa de suicídio. O laudo
Carlos Nicolau Danielli (30/12/1972) necroscópico estava marcado com um “T”, de terroris-
Operário, jornalista, foi sequestrado e morto, sob ta, e informa que o corpo foi enterrado no Cemitério de
torturas, no DOI-Codi/SP, por agentes do Estado. Foi Perus com o nome de Geraldo. Mais tarde, em
enterrado no Cemitério de Perus como indigente. Oito 27/10/1977, foi exumado e reinumado no mesmo cemi-
anos depois, em 11/04/1980, seus restos mortais foram tério.
transladados para Niterói (RJ).
Luiz José da Cunha (13/07/1973)
Pauline Philipe Reichstul (08/01/1973) Membro do Comando Nacional da ALN, foi assas-
Psicóloga, militante da VPR, foi assassinada com sinado aos 30 anos nas dependências dos DOI-Codi/SP,
outros cinco companheiros, depois de sequestrada e em decorrência de torturas, e enterrado como indigente
torturada em ação no Recife (PE) comandada pelo no Cemitério de Perus. Sua ossada, sem o crânio, foi
delegado Fleury. Foi enterrada como indigente no Cemi- exumada em 1991, mas só identi cada em 01/09/2006 e
tério da Várzea, em Recife, e dias depois, em transladada para o Recife (PE) no dia seguinte.
12/01/1973, exumada e transladada para São Paulo,
onde seu corpo foi sepultado pela família no Cemitério Helber José Gomes Goulart (16/07/1973)
Israelita. Militante da ALN, foi assassinado aos 29 anos, em
decorrência de torturas, nas dependências do DOI-
Francisco Emanuel Penteado (15/03/1973) Codi/SP, onde foi visto por outros presos políticos. Foi
Estudante, militante da ALN, foi assassinado aos 20 enterrado no Cemitério Dom Bosco, em Perus, como
anos por agentes do Estado no DOI-Codi/SP, depois de indigente. Em 1992, seus restos mortais foram exuma-
ter sido ferido em logradouro público da capital. Seu dos, identi cados e transladados para a cidade de
corpo foi liberado para a família em caixão lacrado e Mariana (MG).
sepultado no Cemitério Gethsêmani, em 16/03/1973.
IV. Administração Miguel Colasuonno (de
Alexandre Vannucchi Leme (17/03/1973) 28/08/1973 a 16/08/1975)
Estudante de Geologia da USP, militante da ALN,
foi sequestrado por equipe do DOI-Codi/SP, e, assassi- Emmanuel Bezerra dos Santos (04/09/1973)
nado um dia depois, sob torturas. Foi enterrado como Estudante e militante do Partido Comunista Revo-
indigente sem caixão, em cova coberta com cal virgem, lucionário (PCR), morreu aos 26 anos de idade em
para acelerar a decomposição do corpo. Apesar dos decorrência das torturas que sofreu no DOI-Codi/SP.
esforços da família, os restos mortais de Alexandre só Foi enterrado como indigente no Cemitério de Campo
foram transladados em 24/03/1983, dez anos depois. Grande, na zona sul da cidade. Em 1992, seus restos

144
mortais foram exumados e transladados para o Rio V. Administração Olavo Setúbal (de 17/08/1975 a
Grande do Norte, sendo sepultados no dia seguinte em 11/07/1979)
sua cidade natal, São Bento do Norte.
José Ferreira de Almeida (08/08/1975)
Manoel Lisboa de Moura (04/09/1973) Tenente da reserva da Polícia Militar, foi preso em 7
Estudante e militante do PCR, foi assassinado de julho, aos 64 anos de idade. Na “Operação Radar”,
com 29 anos de idade nas mesmas circunstâncias e ofensiva do Exército para dizimar a direção do PCB,
junto com seu amigo e companheiro de luta Emmanu- foram descobertas as atividades comunistas na polícia e
el Bezerra dos Santos. Tal como este, foi enterrado 63 policiais foram presos. Depois de um mês de tortura,
como indigente no Cemitério de Campo Grande, na sua morte foi forjada como suicídio e ele foi enterrado
zona sul da cidade, posteriormente exumado e trans- no cemitério de Congonhas. No velório, seu caixão foi
ladado para Maceió (AL), em maio de 2003. aberto pelo advogado e familiares, que puderam cons-
tatar as torturas sofridas.
Antônio Carlos Bicalho Lana (30/11/1973)
Militante da ALN, foi sequestrado junto com Vladimir Herzog (25/10/1975)
Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Torres, em São Jornalista, não resistiu às torturas no DOI-Codi/SP
Vicente, e levado para o sítio clandestino 31 de Março, depois de apresentar-se para prestar depoimento. A
onde os dois foram executados por agentes do Estado falsa versão de suicídio apresentada pelo regime militar
depois de muita tortura. Seu corpo foi enterrado no foi desmentida pela foto em que aparece nas dependên-
Cemitério de Perus, identi cado em 1991 pela Uni- cias do DOI-Codi paulista pendurado pelo pescoço
camp e transladado para Ouro Preto (MG). com um cinto nas grades de uma janela e com os joelhos
dobrados, sem o vão livre que possibilitaria a queda e o
Miguel Sabat Nuet (30/11/1973) enforcamento. Ele foi sepultado no Cemitério Israelita,
Natural de Barcelona, na Espanha, foi preso por no Butantã, e uma missa celebrada no dia seguinte em
agentes do Dops/SP em 9 de outubro de 1973 e morto sua homenagem levou milhares de pessoas à Praça da
um mês e meio depois em decorrência de torturas, Sé.
segundo depoimentos de ex-presos políticos. Seu
assassinato foi anunciado como suicídio e ele foi Neide Alves dos Santos (07/01/1976)
enterrado como indigente no Cemitério Dom Bosco, Funcionária de um supermercado e militante do
em Perus. Com a descoberta da vala clandestina, em PCB, foi assassinada aos 31 anos em decorrência de
1990, a ossada de Miguel foi encontrada, mas seus ação perpetrada por agentes do Estado. A requisição de
restos mortais foram identi cados somente em 2008. exames do IML/SP contém a letra “T”, de terrorista. Seu
corpo foi entregue à família em caixão lacrado e o sepul-
Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Torres tamento no Cemitério de Vila Formosa foi monitorado
(30/11/1973) por agentes da repressão.
Militante da ALN, a professora foi presa ao lado
do companheiro Antônio Carlos Bicalho Lana. Ape- Manoel Fiel Filho (17/01/1976)
sar da falsa versão de tiroteio, ela foi barbaramente Operário metalúrgico, militante do PCB, foi assas-
torturada antes de ser assassinada e enterrada como sinado por agentes do DOI-Codi/SP em decorrência de
indigente e com nome falso no Cemitério de Perus. A torturas. Os órgãos de segurança emitiram uma nota
família passou uma década tentando encontrar seus o cial a rmando que ele havia se enforcado em sua
restos mortais, nalmente identi cados em 1991 e cela, apesar das marcas de tortura no corpo e depoi-
transladados para o Rio de Janeiro. mentos de outros presos políticos desmentirem a ver-

145
146
⁴²O Ministério Público
Federal produziu em 10 de
setembro de 2010, relatório
sobre os trabalhos de
localização e iden ficação de
despojos de desaparecidos
polí cos nos cemitérios de
Perus e Vila Formosa,
assinados pelos
procuradores Marlon
Alberto Weichert e Eugênia
Augusta Gonzaga Fávero, do
dia 10 de setembro de 2010
apud “Habeas Corpus: que
se apresente o corpo”, p.
128.
⁴³Ação civil pública do
MPF/SP, de 26 de novembro
de 2009.
⁴⁴O trabalho foi feito por
representantes do MPF-SP e
da Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos,
ligada à Secretaria de
Direitos Humanos da
Presidência da República, do
Ins tuto de Criminalís ca do
Departamento da Polícia
Federal e do Ins tuto
Médico Legal do Estado de
São Paulo.
⁴⁵Lei nº 7.707/72.

147
Naquela ocasião quem trabalhava no Serviço Encontro Nacional dos Movimentos de Anistia, no Rio
Médico Legal era o Harry Shibata, o diretor era de Janeiro, o que levou à localização de outros registros
o Dr. Arnaldo [Siqueira] e o Harry Shibata. de sepultamentos com identidade falsa. O acesso aos
Naquela ocasião, se não me falha a memória, livros do cemitério possibilitou, anos depois, a desco-
era o sub diretor. Eu tive conhecimento em berta da existência de uma vala clandestina para onde
entendimento com ele, porque nós zemos a foram transferidos os restos mortais de alguns dos mili-
transferência do encaminhamento dos corpos tantes sepultados como indigentes nos primeiros anos
que eram sepultados no Vila Formosa e no da década de 1970.
Lajeado em Guaianazes, para o Cemitério de
Perus, porque diga-se de passagem é mais fácil 5.2.1 A vala clandestina de Perus
ir ao Cemitério de Perus, saindo do IML do
que ir ao Cemitério de Vila Formosa e Lajeado, Ainda em 1971, no início da administração Figuei-
em Guaianazes, porque o Cemitério de Perus redo Ferraz, promulgou-se a lei nº 7656, de 07/10/71,
está localizado ao Km 25 da Via Anhanguera, que reduziu o prazo de exumação em cemitérios muni-
de fácil acesso pela Avenida Sumaré e depois cipais de 5 para 3 anos. A justi cativa era a necessidade
pela Marginal. O IML nos solicitou, e o próprio de liberar espaço para novos sepultamentos, ainda que
Serviço Funerário, que encaminhássemos os as notícias veiculadas na imprensa apontassem que tal
corpos para lá. Para nós não havia objeção dé cit não existia na cidade depois da inauguração dos
nenhuma porque a nalidade do cemitério é cemitérios de Perus, Vila Nova Cachoeirinha e São
de receber os corpos, quaisquer que forem Pedro.47 A mudança na legislação permitiu que, entre
eles.⁴⁶ 1975 e 1976, ocorressem grandes exumações de indi-
gentes sepultados em Perus nos anos de 1971 e 1972.
O acordo entre o IML e a Prefeitura de São Paulo As ossadas de cerca de 1.500 vítimas enterradas nas
para o sepultamento de indigentes no Cemitério Dom quadras 1 e 2, exclusivas para indigentes, foram exuma-
Bosco foi apontado pela CPI de Perus como um meca- das, colocadas em sacos plásticos sem identi cação e
nismo para ocultar os cadáveres de militantes políticos. abandonadas na sala do velório do cemitério, onde
O primeiro sepultamento no cemitério foi realiza- caram durante meses até serem depositadas em uma
do em 2 de março de 1971. Em 17 de abril do mesmo vala clandestina, em 1976. Esta Comissão não localizou
ano, o operário Joaquim Alencar de Seixas, assassinado nenhum documento ou registro, no Diário O cial do
sob torturas no DOI-Codi de São Paulo, foi o primeiro Município, deste procedimento. Nos livros do cemitério
preso político enterrado como indigente com registros só há a indicação da data da exumação, sem precisar o
falsos. A certidão de óbito, lavrada no 20º Subdistrito local para onde foram destinados e a data da reinuma-
Jardim América, teve como declarante o delegado Alci- ção. A responsabilidade legal pelo controle e scaliza-
des Cintra Bueno Filho. Depois dele, outros 30 tiveram ção das exumações era do Departamento de Cemitéri-
o mesmo destino até 1976, sempre sepultados como os, da Secretaria de Serviços Municipais⁴⁸. O Grupo de
indigentes e sem a presença da família. Trabalho Perus (GTP), hoje responsável pela identi ca- ⁴⁶Comissão Parlamentar de
Em 1973, depois de visitar vários cemitérios da ção das ossadas, concluiu: Inquérito “Desaparecidos”
da Câmara Municipal de São
cidade, a família dos irmãos Iuri e Alex de Paula Xavier Em 1976, teria sido aberta uma vala, a vala Paulo (fls. 201/246 e
Pereira, militantes da ALN, encontrou nos livros do comum, alinhada ao terceiro escalonamento 4150/4268).
Cemitério de Perus o registro do sepultamento de João da terraplanagem da construção do cemitério, ⁴⁷SP tem espaço para seus
mortos - Folha de S. Paulo,
Maria de Freitas, nome falso usado por Alex na clandes- com direção SW-SE, com a maioria das exu-
03 nov. 1971, Primeiro
tinidade. Em 1979, este relato foi feito a outros familia- mações advindas das Quadras 1 e 2 da Gleba 1, Caderno, p.7.
res de mortos e desaparecidos políticos durante o III mas não só, como pode ser averiguado nos ⁴⁸Lei nº 7.108/68, art. 10.

148
livros de sepultamento do Cemitério. A vala As ossadas de cerca de 1.500 ví mas
não possui documentação e corresponderia às foram exumadas, colocadas em sacos
exumações sem destino constantes do cemité- plás cos sem iden ficação e
rio de Perus.⁴⁹ abandonadas na sala do velório do
cemitério, onde ficaram durante meses
Depoimentos de dirigentes do Serviço Funerário
até serem depositadas numa vala
Municipal indicam o conhecimento das exumações
clandes na, em 1976. Esta Comissão não
ocorridas em Perus e a abertura da vala clandestina. O
diretor administrativo do SFM, Jayme Augusto Lopes,
localizou nenhum documento ou
teria autorizado⁵⁰, em 1975, a cremação dos restos mor- registro deste procedimento no Diário
tais exumados e estocados no velório do Cemitério Oficial do Município
Dom Bosco. A ideia era construir um crematório em
Perus para cremar indigentes, mas o projeto não foi entanto, não foi possível seguir com as buscas nesse
para frente, como se verá a seguir. As di culdades de momento. A abertura da vala aconteceu 11 anos depois,
transportar as ossadas para o crematório de Vila Alpina, quando o repórter Caco Barcellos, da TV Globo, inves-
inaugurado em 1974, levaram à abertura da vala. tigava mortes em decorrência da violência policial nos
Segundo o depoimento para a CPI de Perus de Carlos documentos do IML e do cemitério. Com as informa-
Eduardo Giosa, scal de Cemitérios do SFM, o diretor ções dos familiares de desaparecidos políticos, que
consentiu a abertura de um ‘‘ossário subterrâneo”. Na ainda buscavam os corpos de militantes desaparecidos
mesma Comissão Parlamentar de Inquérito, em 1990, o pela repressão, o jornalista descobriu a vala clandestina
diretor Fábio Pereira Bueno declarou: de Perus. Barcellos conta que a informação foi con r-
mada pelo administrador do cemitério, Antônio Pires
Para a Prefeitura não existe o indigente, não Eustáquio:
⁴⁹Comissão da Verdade do
Estado de São Paulo Rubens existe o terrorista, porque todos são iguais. É
Paiva Relatório, tomo I, parte um corpo que vai ser sepultado, portanto a Eu cruzei com o administrador do cemitério
I, A Formação do Grupo de exumação é igual para todos. Evidentemente que me convidou para me afastar e ir ao fundo
Antropologia Forense para
que aqueles que foram identi cados antes da do prédio da administração. Fomos até às
Iden ficação das Ossadas da
Vala de Perus, p. 42. decorrência do prazo de cinco anos, alguns, covas porque ele queria me contar uma histó-
⁵⁰Depoimento anexado à não digo todos, indigentes ou terroristas ou ria que pretendia contar já há bastante tempo.
Ação Civil Pública nº que esteja lá, solicitaram à Justiça, ou às autori- Ele contou-me que havia sido testemunha da
2009.61.00.025168-2 do
Ministério Público Federal. dades policiais, a exumação e transferência abertura de uma grande vala nos anos 70,
⁵¹Depoimento de Fábio desses corpos para outros cemitérios, aqui da onde teria sido colocada uma grande quanti-
Pereira Bueno, diretor do cidade, ou fora, do Interior, ou fora até do País, dade de ossadas. Ele calculava alguma coisa
Serviço Funerário Municipal
porque tinha gente de todo o canto do País por volta de 1.500 ossadas. Isto teria sido feito
entre 1970 e 1974, à
Comissão Parlamentar de fazendo a baderna que zeram na época, por parte de homens da repressão política
Inquérito “Desaparecidos” contrariando a legislação vigente da época.⁵ daqueles anos e ele guardava aquele segredo
da Câmara Municipal de São há muito tempo.⁵
Paulo (fls. 201/246 e
Em 1979, Gilberto Molina conseguiu autorização
4150/4268).
⁵²Caco Barcellos. In: Teles, judicial para abrir a vala clandestina ao comprovar por Administrador da necrópole entre 1976 e 1992,
Janaína de Almeida. Mortos meio do livro de óbito que seu irmão, Flávio Carvalho Antônio Pires Eustáquio contou à Comissão da Verda-
e desaparecidos polí cos: Molina, havia sido sepultado em 07/11/1971 com o de do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” como desco-
reparação ou impunidade.
São Paulo: Humanitas / nome falso de Álvaro Lopes Peralta e exumado em briu a vala:
FFLCH-USP, 2001 p.208. 1975, sendo posteriormente levado para a vala. No

149
Nos livros de óbito, eu olhando, pesquisando, em 2005, além de cinco vítimas da repressão sepultadas
eu via: “exumado em tanto de tanto e reinu- em outros locais do cemitério. Os restos mortais de
mado no mesmo local”, que é o procedimento Dimas Casemiro, Grenaldo de Jesus da Silva e Francisco
padrão pela legislação do Serviço Funerário. José de Oliveira, cujos registros apontam para a vala
Para os indigentes também o procedimento clandestina não foram encontrados até hoje, mais de
era esse. Só que lá tinha uma diferença, o que duas décadas depois. Também seguem desaparecidos
realmente me preocupou e me levou a pesqui- José Milton Barbosa, Luiz Hirata e Hiroaki Torigoe.
sar até encontrar. No registro dos livros dos Ainda que os livros do cemitério apontem que eles
indigentes constava: “exumado em tanto de foram reinumados no mesmo local de inumação, existe
tanto”, só. Mais nada. Cadê os ossos? Pra onde a possibilidade de terem sido levados para a vala.
que foram? Aí eu comecei a perguntar. Nin- Documentos con denciais localizados por esta
guém, eu notei perfeitamente, que ninguém Comissão nos arquivos do SNI mostram que a abertura
queria falar daquilo lá, porque segundo eles da vala foi monitorada pelo serviço de inteligência, em
tinham pavor, né, de comentar isso aí, porque 1990 transformado em Departamento de Inteligência
diziam que eram terroristas.⁵ da Secretaria de Assuntos Estratégicos (DI/SAE) da
Presidência da República.
Segundo a CPI de Perus, a vala se manteve em
caráter de clandestinidade sob vários aspectos: não A descoberta das ossadas humanas enterradas
existe registro legal da sua criação; foi aberta em área clandestinamente no Cemitério Dom Bosco,
destinada à construção de uma capela; não foi demarca- em Perus, São Paulo/SP tem despertado a
da posteriormente como local de sepultamento; não foi atenção das organizações de esquerda, nota-
incluída na planta do cemitério; foi construída de forma damente o Partido Comunista do Brasil (PC
irregular, sem alvenaria e outros requisitos; e não existe do B). Membros do grupo Tortura Nunca
registro da transferência dos corpos exumados para a Mais, movimentos pela anistia e familiares
vala.⁵⁴ dos ‘‘desaparecidos’’ têm procurado órgãos da
Neste momento, em 1990, os restos mortais de imprensa, buscando mobilizar a opinião
16 opositores políticos mortos pela repressão já haviam pública no sentido de que os restos mortais
sido identi cados em Perus. A abertura da vala clandes- sejam identi cados.
tina colocou como necessidade imediata a realização de A con rmação da existência de ossadas de
escavações e pesquisas de antropologia forense na elementos comprometidos com movimentos
expectativa de localizar os seis militantes que ali se contestatórios, ocorridos durante o regime
encontravam, conforme a documentação o cial e os militar, poderá levar as organizações de
relatos de integrantes da Comissão de Familiares de esquerda à generalização, a rmando que a ⁵³Depoimento feito por
Antônio Pires Eustáquio em
Mortos e Desaparecidos Políticos. Eram eles: os irmãos maioria dos desaparecidos políticos estão em
audiência pública realizada
Dênis e Dimas Casemiro, Francisco José de Oliveira, Perus. Tal fato poderá trazer grande repercus- pela Comissão da Verdade
Grenaldo de Jesus da Silva, Frederico Eduardo Mayr e são internacional, principalmente levando-se do Estado de São Paulo
Flávio de Carvalho Molina. Os restos mortais foram em conta que já existem entidades europeias “Rubens Paiva” no dia
24/02/2014.
retirados da vala e levados para o Departamento de acompanhando os trabalhos. ⁵⁴Apresentação do relatório
Medicina Legal da Unicamp⁵⁵, através de um convênio Apesar de os familiares dos ‘‘desaparecidos’’ da Comissão Parlamentar de
com o município. não poderem mais cobrar da Justiça a morte Inquérito “Desaparecidos”
da Câmara Municipal de São
As perícias realizadas nos anos seguintes identi ca- de seus parentes, em razão da Lei de Anistia,
Paulo, p. 13.
ram os corpos de Dênis Casemiro, em 1991, Francisco pode-se prever mesmo assim uma forte pres- ⁵⁵BR_RJANRIO_H4_0_AGA_D
Eduardo Mayr, em 1992, e Flávio de Carvalho Molina, são destes junto ao Ministério da Justiça, atra- I077450_94.

150
desaparecidos políticos.⁵⁷
Graças aos movimentos de familiares e
de direitos humanos, a vala clandes na 5.2.2 O inconcluso processo de identi cação das
do cemitério Dom Bosco, em Perus, foi ossadas de Perus
a única aberta pelo poder público que
garan u a con nuidade do trabalho de Os primeiros esforços para a identi cação das cerca
inves gação dos restos mortais de 1.500 ossadas encontradas na vala clandestina de
Perus foram resultado de um convênio estabelecido
encontrados
entre a Prefeitura de São Paulo, à época comandada por
Luiza Erundina, e a Universidade Estadual de Campi-
vés do Conselho de Defesa da Pessoa.⁵⁶ nas (Unicamp). Foram levadas para análise 1.051 ossa-
das, já que os peritos constataram que as outras perten-
A repercussão da abertura da vala clandestina de ciam a crianças com menos de 10 anos e estavam dani -
Perus foi monitorada pelo serviço de inteligência tam- cadas de tal forma que não seria possível identi cá-las.
bém em outros estados. Com o temor que a descoberta Desde o princípio, familiares e ativistas de direitos
desencadeasse outras buscas, a atividade dos familiares humanos rejeitaram a participação do Instituto Médico
de desaparecidos políticos em Goiás foi alvo de relató- Legal de São Paulo nas investigações dos restos mortais.
rio con dencial encontrado pela CMV: O diretor do IML, o legista José Antônio de Melo, havia
sido denunciado por ter assinado o laudo necroscópico
1. A partir da divulgação da existência de cerca falso atestando o suicídio de Manoel Fiel Filho, morto
de 1.500 ossadas enterradas em uma vala sob tortura no DOI-Codi/SP em 1976. Assim, as ossa-
clandestina no Cemitério Dom Bosco, em das foram transferidas para o Departamento de Medici-
Perus, zona oeste da capital paulista, teve na Legal da Unicamp, em Campinas, à época coordena-
início a mobilização de familiares tidos como do pelo médico Badan Palhares. A CPI instalada na
desaparecidos políticos desde o nal da Câmara Municipal de São Paulo logo após a abertura da
década de sessenta e meados dos anos setenta. vala, em 1990, possibilitou o acesso aos documentos do
3. Como parte da mobilização pela identi ca- IML, que auxiliaram na localização de militantes políti-
ção e descoberta dos desaparecidos, pessoas cos sepultados em Perus. Em um primeiro momento,
ligadas à área de defesa dos direitos humanos dois desaparecidos foram identi cados na vala clandes-
no Estado de Goiás concederam uma entre- tina pela Unicamp: Frederico Eduardo Mayr, em 1991, e
vista coletiva em 13/9/90 na Assembleia Legis- Dênis Casemiro, em 1992.
lativa de Goiás (AL/GO), ocasião em que foi Ao m do mandato da prefeita Luiza Erundina, a
feito um histórico sobre os desaparecidos Unicamp abandonou o trabalho de identi cação das
políticos do Estado de Goiás, ao mesmo ossadas, deixando-as largadas no departamento. Tal
tempo em que foi feito um contato preliminar descaso foi alvo de denúncia do Ministério Público
⁵⁶ACE 74748/1990. Resenha com os familiares desaparecidos, entre eles Federal⁵⁸. Entre o material negligenciado estavam os
analí ca de 29/9/1990, Pedro Wilson Guimarães, presidente do Cen- restos mortais de Flávio Carvalho Molina. Sua identi -
documento confidencial.
⁵⁷ACE 0133367/90. tro de Defesa dos Direitos Humanos do Insti- cação só foi retomada em 2003, quando o governo
Documento confidencial tuto Brasil Central e representante regional do federal arcou com as despesas do exame de DNA da
com o tulo ‘‘Mobilização de centro oeste do Movimento Nacional de Defe- provável ossada de Molina, mas o resultado foi negati-
Familiares de Desaparecidos
sa dos Direitos humanos. Na ocasião foram vo. Dois anos depois, o material foi encaminhado para
Polí cos em Goiás’’.
⁵⁸Inquérito Público Civil nº cobradas providências do Governo Federal no o Laboratório Genomic junto com amostras de DNA
06/99. sentido de esclarecer o paradeiro de todos os da família. A identi cação foi con rmada e o corpo

151
transladado para o Rio de Janeiro, onde foi nalmente altura compatível com o militante e outras 12 ossadas
sepultado pelos familiares. pertenciam a homens com mais de 35 anos e, portanto,
Diante das denúncias de abandono e negligência, não seriam de Hiroaki, que morreu aos 27 anos. Outras
os mais de mil restos mortais retirados da vala foram duas ossadas não possuíam arcada dentária, restando
levados da Unicamp e a responsabilidade pelas análi- apenas uma, que foi enviada para análise de DNA, com
ses passou ao IML e à Universidade de São Paulo resultados negativos.
(USP). Já sob a coordenação do professor Daniel
Muñoz, durante os anos 2000, foi realizado um traba- [...] as antropólogas a rmaram que a metodo-
lho de catalogação de dados e analisadas as 686 chas logia empregada pelas equipes da Unicamp e
que haviam sido produzidas pela Unicamp, indicando da USP para identi cação das ossadas estava
que o trabalho do IML e da USP se baseou no que fora equivocada e ultrapassada. Ainda que na
realizado pelo convênio anterior. A nova tentativa não época (1990) o exame de DNA não estivesse
obteve sucesso no processo de identi cação. disponível, havia protocolos internacionais
Uma vez que a abertura da vala concentrou esfor- que permitiam o avanço da identi cação
ços para identi car restos mortais dos sepultados em através dos dados antropométricos. As des-
Perus, dois militantes políticos enterrados em outros crições constantes nas chas estavam focadas
locais do cemitério foram localizados. Luiz José da nas medidas do crânio em detrimento de
Cunha foi identi cado em 2006, depois de muitas outros ossos que poderiam oferecer informa-
tentativas e o descaso do Departamento de Medicina ções relevantes para a identi cação, tornan-
Legal da Unicamp. Em 2008, o Ministério Público do-se pouco conclusivas.⁵⁹
Federal providenciou a exumação dos restos mortais
do espanhol Miguel Sabat Nuet, que teve a identidade As antropólogas concluíram que o trabalho teria
con rmada pelo Laboratório Genomic. que ser retomado do princípio, realizando a triagem
As ossadas encontradas na vala foram realocadas dos ossos de forma adequada e com metodologia atua-
em 2001 para o Columbário do Cemitério do Araçá, lizada. A abertura das caixas também evidenciou a
onde permaneceram até 2014. Em abril de 2013, a situação precária do acondicionamento das ossadas,
Equipo Argentino de Antropología Forense (EAAF), que estavam sujas, úmidas e com fungos, comprome-
por solicitação da Comissão de Familiares de Mortos e tendo a preservação dos resquícios genéticos para
Desaparecidos Políticos e nanciamento da Associa- possíveis exames de DNA. As conclusões reforçaram a
ção Brasileira de Anistiados Políticos (ABAP), foi necessidade de um processo de identi cação pautado
contratada para reavaliar e retomar o trabalho de pes- em um trabalho cientí co de acordo com as práticas
quisa. O ponto de partida foi a identi cação do mili- internacionais de identi cação humana.
tante político Hiroaki Torigoe. As antropólogas da O diagnóstico da EAAF estimulou a articulação de
EAAF estudaram as 21 caixas separadas por Daniel familiares, comitês da memória, Ministério Público
Muñoz durante o convênio IML/USP como as prová- Federal, Secretarias de Direitos Humanos, Comissão
veis onde estariam as ossadas de Torigoe. O resultado Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos da Presi-
das investigações foi apresentado no dia 19 de abril de dência da República (CEMDP) e Comissão da Verdade
2013 em audiência pública realizada pela Comissão da do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” para continuar
Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. A o trabalho de identi cação. Mais uma vez, a participa- ⁵⁹Relatório da Comissão do
equipe de antropólogas descobriu que nas 21 caixas ção do IML foi rechaçada pelos familiares e ativistas de Estado de São Paulo “Rubens
Paiva”, Tomo I, capítulo
havia ossos de 22 pessoas, pois uma delas comportava direitos humanos, que articularam a transferência das
Métodos e Técnicas de
restos mortais de dois corpos. Quatro ossadas foram ossadas para a Universidade Federal de São Paulo (Uni- Ocultação de Corpos na
excluídas por serem do sexo feminino, três não tinham fesp). Cidade de São Paulo.

152
No dia 4 de setembro de 2014, foi criado o Grupo de na cidade, além de solicitações de famílias que requisi-
Trabalho Perus, através de um acordo de cooperação taram a busca na vala.
rmado entre a Unifesp, a Comissão Especial de Mortos Com as informações sobre o processo de identi ca-
e Desaparecidos Políticos da Presidência da República ção iniciado nos anos 1990 foram sistematizados e
(CEMDP) e a Secretaria Municipal de Cidadania e traçados per s dos possíveis inumados na vala clandes-
Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo, para tina. Em paralelo, realizou-se um extensivo estudo do
retomar o processo de identi cação das ossadas encon- caminho da morte, que compreende desde a chegada do
tradas em 1990. corpo no Instituto Médico Legal, a produção do laudo
Graças aos movimentos de familiares e de direitos necroscópico e a declaração de óbito até a entrada no
humanos, a vala clandestina de Dom Bosco, em Perus, Cemitério Dom Bosco, em Perus. Foram pesquisados
foi a única aberta pelo poder público que garantiu a todos os registros da época para mapear a política de
continuidade do trabalho de investigação dos restos desaparecimento, analisando as pessoas que foram
mortais encontrados, diferente do que aconteceu nos enterradas como “desconhecidos” durante esse período
cemitérios Ricardo Albuquerque, no Rio de Janeiro, e e os livros de fotogra as de vítimas.
Santo Amaro, em Recife. Durante a pesquisa da documentação, produzida
pelo IML, delegacias, cemitérios e serviços funerários e
5.2.3 O Grupo de Trabalho Perus que são responsáveis pela sua guarda, veri caram que
muitas sumiram, outras foram destruídas, muitas vezes
Baseando-se na perspectiva latino-americana de mal preenchidas e até falsi cadas.
antropologia forense, que aplica nos processos de busca
e identi cação dos corpos teorias e métodos da antro- Como os documentos são produzidos dentro
pologia social e biológica e da arqueologia, o Grupo de dessas instituições, geramos aí uma série de
Trabalho Perus (GTP) dividiu o trabalho com as ossa- vazios, e uma série de silêncios impossíveis,
das da vala de Perus em quatro etapas realizadas simul- alguns deles insolúveis, impossíveis de serem
taneamente: a investigação preliminar e os dados ante preenchidos e resolvidos. Então para a família,
mortem; a investigação arqueológica; a análise antropo- para os grupos da sociedade, muitos desses
lógica; e a genética forense. desconhecidos que encontramos nessa docu-
O grupo de niu o universo das buscas pautado em mentação, nessas valas, correspondem a desa-
pesquisas realizadas anteriormente por familiares e parecidos.⁶⁰
autoridades como o Ministério Público. Junto à Equipo
Argentino de Antropología Forense (EAAF), o GTP Revelou-se, mais uma vez, a sistemática organiza-
produziu uma lista que considerou diferentes graus de ção do regime militar para a ocultação de cadáveres em
probabilidade de pessoas que podem ter sido inumadas São Paulo. Segundo o levantamento do GTP, os médicos
na vala clandestina. Os de mais alta possibilidade são os legistas Isaac Abramovitc e Harry Shibata foram res-
desaparecidos políticos que possuem seus nomes, ou ponsáveis por mais de 85% dos laudos de desaparecidos
nomes falsos, nos livros do Cemitério de Perus com o políticos sepultados em Perus. No entanto, entre os
registro da exumação e sem o destino do corpo: Grenal- quase 3 mil laudos necroscópicos pesquisados no
do de Jesus Silva, Francisco José de Oliveira e Dimas mesmo período, entre 1971 e 1975, a dupla assinou
⁶⁰Rafael Abreu, arqueólogo Antônio Casemiro. Em seguida, vêm aqueles que cons- apenas 0,45% do total. Nos dois anos seguintes, os livros
do GTP. Audiência CMV: tam nos livros, mas o registro apresenta indicação da do cemitério registraram 1.943 exumações sem desti-
“Cemitérios municipais e as
reinumação no mesmo local, seguidos por uma lista de nação do corpo.
violações aos direitos
humanos”, realizada em pessoas que desapareceram em São Paulo ou que se tem Em razão da recorrente falta de cuidado e as inú-
02/04/2016. notícias de que passaram por algum órgão de repressão meras intervenções realizadas nas últimas duas déca-

153
das, 27% das 1.047 caixas analisadas pelo GTP conti- ção dos operários em greve. A polícia não queria liberar
nham ossos de mais de um indivíduo. Até o nal de o corpo, mas, depois da interferência de outros sindica-
outubro de 2016, 551 haviam sido analisadas e limpas. listas e de parlamentares, Santo Dias foi levado à igreja
Durante o período de trabalho, interrompido por conta da Consolação, onde foi velado antes de seguir para o
do processo de contratação provisória a qual estão sub- Cemitério de Campo Grande. A repressão esteve pre-
metidos os antropólogos e arqueólogos, também foram sente durante toda a solenidade e o enterro foi acompa-
coletadas amostras de DNA de 65 familiares relaciona- nhado por um grande número de pessoas, indignadas
dos a 29 desaparecidos políticos. O laboratório interna- com a repressão policial. Uma missa em sua homena-
cional escolhido como responsável pelo processamento gem na Catedral da Sé reuniu cerca de 30 mil pessoas.⁶
e análise genética das amostras foi a Comissão Interna-
cional de Pessoas Desaparecidas (ICMP). A CEMDP, a 5.4 O projeto do crematório municipal
Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justi-
ça e Cidadania e o Programa das Nações Unidas para o No início da década de 1960, doze cemitérios pau-
Desenvolvimento (PNUD) estão elaborando uma listanos chegaram a sua capacidade máxima. Com o
Carta Acordo, que será o modelo de contrato a ser cele- crescente aumento da população, em 1962 apenas Vila
brado entre essas instituições para a realização dos Formosa, Tremembé e Lajeado realizavam sepultamen-
exames genéticos. tos de indigentes. A Câmara Municipal debateu solu-
ções para o problema: a construção de novos cemitéri-
5.3 O Cemitério de Campo Grande os, a revisão dos títulos de concessões, exumações de
sepulturas com prazos vencidos, a construção de novos
Assim como Perus e Vila Formosa, o Cemitério de ossários e a cremação, considerada menos popular por
Campo Grande, na zona sul da cidade, foi destino de questões religiosas. O governo Prestes Maia (1961-
corpos de opositores políticos executados pelas forças 1965) recuperou sepulturas com prazo vencido, inves-
da repressão e lá sepultados clandestinamente, sem o tiu nos ossários e pediu à Caixa Econômica Federal 800
conhecimento de seus familiares. É o caso de dois estu- milhões de cruzeiros para a aquisição de três terrenos
dantes, Emmanuel Bezerra dos Santos e Manoel Lisboa onde seriam construídos novos cemitérios.
de Moura, militantes do Partido Comunista Revolucio- Duas leis foram aprovadas no contexto da crise
nário, mortos em decorrência das torturas que sofre- funerária. Em 1967, foi sancionada a lei nº 7.017, que
ram no DOI-Codi/SP e enterrados como indigentes, previa a cremação de indigentes e corpos não identi ca-
em 04/09/1973, durante a administração de Miguel dos, ainda que não existisse um crematório na cidade –
Colasuonno. o primeiro foi inaugurado em 1974, em Vila Alpina. A
Após a descoberta da vala clandestina de Perus, a lei nº 7.656, de 1971, reduziu de cinco para três anos a
Comissão Especial de Investigação da Prefeitura de São permanência dos corpos nas sepulturas antes da exu-
Paulo, criada na ocasião, conseguiu localizar as sepultu- mação. No mesmo período, foram inaugurados três
ras e os restos mortais foram identi cados por peritos novos cemitérios: Vila Nova Cachoeirinha, em 1968,
da Unicamp. Emmanuel Bezerra dos Santos foi exuma- Dom Bosco, em Perus, em 1971, e São Pedro, conhecido
do e sepultado pelo pai e amigos em sua terra natal, São como Vila Alpina, no mesmo ano. Em 1971, o diretor
Bento do Norte (RN), em 12 de julho de 1992. Manuel do Departamento de Cemitérios da Prefeitura, Fábio
Lisboa de Moura foi transladado anos depois para Mace- Pereira Bueno, acenou que o problema da superlotação
ió (AL), em maio de 2003. estava resolvido:
No Campo Grande também foi sepultado o corpo
⁶¹Comissão da Verdade do
do operário Santos Dias da Silva, baleado por agentes do São necessários 180 mil m para enterrar as Estado de São Paulo “Rubens
Estado em 1979, nas ruas da cidade, durante manifesta- cinco mil pessoas que morrem mensalmente Paiva”.

154
em São Paulo. Agora, que o corpo permanece cessem abertas o dia todo e todo o dia a qual-
enterrado só por três anos, são necessários 550 quer pessoa do público que por ali estivesse
mil m no total, o que equivale a 20 alqueires. vagando. Alguém poderia presenciar cenas
Os 23 cemitérios da Prefeitura oferecem atual- altamente emocionais que perturbariam os
mente à população 50 alqueires e outros 40 operadores.⁶⁵
serão conseguidos com as obras de ampliação
que estamos executando. Assim, as necessida- Um novo estudo sobre crematórios foi autorizado
des atuais são de 20 alqueires e vamos oferecer pelo prefeito Paulo Maluf e a empresa contratada foi a
quase 100, su cientes para atender toda a Engeral S/A⁶⁶. Em 1972, diretores do Departamento de
população até o ano 2000. A situação dos Cemitérios viajaram para estudar o funcionamento dos
cemitérios é acima de boa.⁶ crematórios e as possíveis mudanças na legislação bra-
sileira para criar um crematório exclusivo para indigen-
Ainda que a construção de um crematório na cida- tes⁶⁷. No momento em que o país vivia o auge das mor-
⁶²SP tem espaço para seus de de São Paulo fosse estudada há algumas décadas, a tes e desaparecimentos políticos da ditadura militar, o
mortos. Folha de S. Paulo, 03 ideia ganhou força durante a ditadura militar, quando o diretor Fábio Pereira Bueno visitou a Argentina e o
nov. 1971. Primeiro
Caderno, p.7. projeto do Cemitério de Perus incluiu em sua planta um Uruguai, países envolvidos na Operação Condor –
⁶³Entre 1968 e abril de 1970, espaço para cremar corpos de indigentes. Nesse aliança Sul-Americana para coordenar a repressão aos
Fábio Pereira Bueno esteve momento, Fábio Pereira Bueno⁶ era assistente do Dire- regimes militares – para estudar a legislação sobre cre-
aposentado da Prefeitura.
tor do Departamento de Serviços Municipais, Cristiano mação. Em 1974, Jayme Augusto Lopes viajou à Europa
Na eleição de 1967 da
diretoria do Sindicato dos C. Ribeiro de Luz Júnior, e integrou a equipe que organi- para estudar o funcionamento dos crematórios e as
Engenheiros de São Paulo, zou a concorrência para adquirir o primeiro forno cre- possíveis adaptações que poderiam ser feitas no Crema-
foi candidato a suplente da matório⁶⁴ da capital. O projeto só não saiu do papel tório de São Paulo.
diretoria na chapa 2,
encabeçada pelo candidato
porque a empresa britânica Downson & Mason, contra- O Crematório Municipal foi inaugurado em 12 de
da situação Cyro Peixoto tada para a confecção dos fornos, descon ou das inten- agosto de 1974 no Cemitério São Pedro, em Vila Alpina.
Santos, derrotada pela chapa ções da encomenda. Em carta enviada à Prefeitura, a Segundo a CPI de Perus, a realização do projeto em Vila
1, encabeçada por Hélio empresa se recusou a conduzir a instalação dos fornos e Alpina, e não em Perus, foi o motivo que impediu que os
Or z.
⁶⁴Comissão Parlamentar de sugeriu a ida de um técnico à Inglaterra: corpos de militantes políticos sepultados como indi-
Inquérito “Desaparecidos” gentes no Cemitério Dom Bosco fossem cremados
da Câmara Municipal de São Parece não haver o hall de cerimônias nesse entre 1975 e 1976, quando foram exumados e posterior-
Paulo (fls. 201/246 e
projeto. E também muitas coisas que, franca- mente escondidos na vala clandestina.
4150/4268).
⁶⁵Apresentação do relatório mente, não entendemos, mesmo consideran-
da Comissão Parlamentar de do estarmos associados e trabalhando há 15 O receio de uma vigilância social possivel-
Inquérito “Desaparecidos” anos em projetos de crematórios em todo o mente tenha sido a razão para que uma viola-
da Câmara Municipal de São
Paulo, p. 15.
mundo. ção ainda maior dos despojos (cremação) dos
⁶⁶O Gerente de Marke ng da Gostaríamos de saber qual o motivos de ter corpos exumados fosse impedida. A transfe-
Engeral Engenharias e Obras duas enormes portas vai e vem, nas posições rência de tamanha carga de ossadas do cemi-
S/A foi estudante da Escola assinaladas A e B (entradas da sala crematória) tério de Perus ao cemitério de Vila Alpina
Superior de Guerra Arquivo
Nacional porque na maioria dos crematórios a sala certamente teria provocado alarde, não ape-
ESP_ACE_5415_80_028. propriamente dita, onde as cremações são nas entre os funcionários do Serviço Funerá-
⁶⁷Apresentação do relatório realizadas, é mantida algo discreta, mesmo rio Municipal, que não podem fechar os olhos
da Comissão Parlamentar de
que as pessoas e o público em geral peçam ao cotidiano dos cemitérios, mas em toda a
Inquérito “Desaparecidos”
da Câmara Municipal de São para serem conduzidos à tal sala. Seria muitís- sociedade que exigia respostas para os inúme-
Paulo, p. 15. simo desagradável que tais portas permane- ros desaparecimentos produzidos pelo regi-

155
me. [...] A vala clandestina, por todas estas
Ainda que a cremação não tenha sido
considerações, teria sido a solução mais dis-
empregada para a ocultação de
creta para que todos aqueles corpos amontoa-
dos no velório de Perus, entre os quais de
cadáveres durante a ditadura militar, a
vários presos políticos, desaparecessem.⁶⁸ legislação criada na época não foi
revogada, possibilitando até hoje a
Em 1988, Antônio Sampaio, presidente da Câmara cremação de restos mortais de
e prefeito em exercício, batizou o crematório municipal indigentes alocados nos ossários dos
com o nome de Jayme Augusto Lopes pela “marcante cemitérios municipais
atuação, como servidor municipal e, em especial, à
frente do SFMSP, à qual prestou relevantes serviços”. A
supressão da homenagem é uma das recomendações recidos políticos, dentre os relacionados pelos familia-
desta Comissão. res e pela Comissão Nacional da Verdade, foram efeti-
Ainda que a cremação não tenha sido empregada vamente sepultados nos cemitérios da cidade, sob a
para a ocultação de cadáveres durante a ditadura mili- responsabilidade da PMSP. A busca começou pelos
tar, a legislação criada na época não foi revogada, possi- arquivos do IML – livro de declaração de óbito, livro de
bilitando até hoje a cremação de restos mortais de indi- requisição de exame pericial, livro de corpo delito (lau-
gentes alocados nos ossários dos cemitérios municipais, do necroscópico), livro de fotogra as de cadáveres
como se verá no próximo capítulo. desconhecidos e livro de fotogra as de vítimas. Duran-
te todo o ano, os trabalhos prosseguiram junto ao
6 Precariedade e inexistência dos registros legais Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp), no
acervo do Departamento Estadual de Ordem Política e
6.1 A situação da documentação o cial nos Social (Deops).
cemitérios, nos arquivos municipais, no arquivo do Foram realizadas visitas aos arquivos dos Cemitéri-
Estado os de São Pedro, em maio de 2015, Vila Formosa, em
abril do mesmo ano, Cachoeirinha, Campo Grande,
Para a elucidação da verdade sobre a participação Lajeado e Perus, em outubro de 2015 e Campo Grande,
da Prefeitura Municipal de São Paulo durante a ditadura no mês seguinte. O que se observou foram livros em
militar nas violações de direitos humanos que teriam péssimo estado de conservação, com encadernação
ocorrido nos cemitérios da cidade, a CMV tinha cons- solta e folhas despedaçadas, muitas vezes impossibili-
ciência das di culdades objetivas que teria pela frente, tando a consulta. Em Vila Nova Cachoeirinha, sacos de
dado o tempo decorrido – de 40 a 50 anos depois dos ossadas dividiam a sala com os livros de registros.
fatos denunciados – e o contexto político em que essas Assim, passo a passo, foi sendo montado o dossiê
violações se realizaram. Em investigação desse tipo, o de cada vítima e a comprovação, dentro do possível, do
pesquisador tem que se valer, necessariamente, de docu- tratamento dispensado pelas autoridade àquele corpo,
mentos da época, que possam fornecer dados, informa- desde o óbito, depois pela requisição do exame pericial,
ções e esclarecer as circunstâncias em que tais fatos pela elaboração do laudo necroscópico, pela declaração
ocorreram, seus autores e os motivos que os impulsiona- de óbito, pelas certidões de óbito expedidas pelos cartó-
ram. rios de registro, até o registro do sepultamento no livro
A partir de abril de 2015, a CMV destacou uma de registro do cemitério para o qual o cadáver foi desti- ⁶⁸Apresentação do relatório
equipe de pesquisadores com o objetivo de recolher da Comissão Parlamentar de
nado.
Inquérito “Desaparecidos”
documentos e informações o ciais, de fé pública, que As di culdades encontradas são aquelas comuns às da Câmara Municipal de São
pudessem comprovar quantos e quais mortos e desapa- comissões de memória e verdade que investigam viola- Paulo, p. 19.

156
ções ocorridas em período ditatoriais: os violadores dições de suprir suas necessidades, considerando como
apagam indícios, eliminam documentos, falsi cam população de baixa renda.
laudos, escamoteiam evidências e informações e atribu-
em nomes falsos às vítimas. No artigo 223, dispõe:

6.2 As denúncias de destruição criminosa dos Será garantido à população de baixa renda, na
livros de registro de inumações no Cemitério do forma da lei, a gratuidade do sepultamento e
Lajeado dos meios e procedimentos a ele necessários.

Na década de 1970, três incêndios atingiram o No sistema funerário, a condição de indigente


Cemitério do Lajeado, na zona leste de São Paulo, e também se aplica em duas situações: os desconhecidos e
queimaram livros de registros de sepultamentos. Um não reclamados. Desconhecidos são aqueles que não
vigia morreu. O cemitério sepultava indigentes até o foram identi cados no momento da autópsia pelo
ano de 1971, quando foi inaugurado o Cemitério Dom Instituto Médico Legal (IML); não reclamados são
Bosco, em Perus. O Serviço Funerário Municipal não indivíduos encaminhados pelo IML ou pelo Serviço de
investigou os motivos dos incêndios, conforme declara- Veri cação de Óbitos da Capital (SVOC) cuja identida-
ção na Comissão Parlamentar de Inquérito “Desapare- de é conhecida, mas não tiveram o corpo reclamado por
cidos” da Câmara Municipal de São Paulo. Não há seus familiares depois da morte. Ambos são encami-
nenhum desaparecido político comprovadamente nhados para o sepultamento gratuito nos cemitérios
sepultado no Lajeado, mas as três ocorrências em um municipais.
curto período de tempo levantam suspeitas quanto à O Instituto Médico Legal (IML) está subordinado à
possibilidade de o local ter sido usado para a ocultação Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e é respon-
de cadáveres durante a ditadura militar. sável pela necropsia em casos de suspeita de morte vio-
lenta ou vítimas não identi cadas. Já o Serviço de Veri -
7 Indigentes cação de Óbitos da Capital (SVOC), ligado ao Departa-
mento de Patologia da Faculdade de Medicina da Uni-
7.1 A indigência no sistema funerário versidade de São Paulo⁶⁹, é responsável pelas autópsias
de mortes naturais de cidadãos necessariamente identi-
O termo ‘‘indigente’’ é historicamente usado pelo cados. O IML aguarda 15 dias antes de liberar os cadá-
sistema funerário para de nir os cidadãos desprovidos veres para o sepultamento, prazo regulamentado através
de condições para custear seu enterro. Assim, o Estado de uma portaria. Já no SVOC, o período mínimo de
assume a responsabilidade de enterrá-los nas quadras permanência de um corpo antes de seguir para o cemité-
gerais dos cemitérios municipais dedicadas àqueles que rio é de 48 horas⁷⁰, mas em 30 dias ele pode ser destinado
não podem ter os custos de sepultamento arcados pela para estudos nas escolas de Medicina, de acordo com a
família. No latim, o termo signi ca “a quem falta algo”. lei federal 8.501⁷ , que regula a utilização de cadáveres
A condição de indigente foi quali cada pela primeira não reclamados para pesquisas cientí cas. A promotora
⁶⁹Decreto Estadual nº vez na Lei Orgânica do Município (LOM), promulgada do Ministério Público Estadual de São Paulo, Eliane
10.139, de 18/04/1939,
reorganizado pela Lei em 04 de abril de 1990, após o m da ditadura militar e Vendramini, questiona tal autorização:
Estadual nº 10.095 de da Constituição de 1988, ainda que o termo tenha sido
03/05/1968. utilizado habitualmente nas leis anteriores sobre os O fato de o SVOC autopsiar apenas corpos de
⁷⁰Lei Estadual nº 10.095, de
cemitérios municipais em São Paulo. A LOM de ne o morte natural tem uma razão de ser: corpos
03/05/1968.
⁷¹Lei Federal nº 8.501, de indigente como: sem nenhuma lesão podem ser utilizados para
30/11/1992. Quem ou aquele que vive em indigência, sem con- pesquisa, bônus que motiva a mencionada

157
Faculdade de Medicina a suportar o ônus de cidadãos desconhecidos ou não reclamados, eles desa-
parte das autópsias da Capital Paulista⁷ pareciam no sistema funerário. O fato de 17 vítimas não
terem sido encontradas até hoje mostra a fragilidade da
É importante pontuar que registrar um boletim de condição de indigência. Seja por desleixo dos órgãos
desaparecimento não signi ca reclamar um corpo. públicos ou para ocultar um crime, a prática utilizada
Nem o IML nem o SVOC possuem a obrigação legal de pela repressão para ocultar os cadáveres dos resistentes
consultar os registros da Polícia Civil ou procurar os à ditadura é a mesma através da qual hoje cidadãos
familiares da vítima. Isso signi ca que alguém que está perdem sua identidade dentro das instituições do Esta-
sendo procurado, com boletim de ocorrência lavrado do, que deveriam zelar pelo corpo e pelo direito das
pela polícia, pode ser enterrado como um corpo não famílias ao sepultamento de seus parentes.
reclamado.
Uma vez encaminhados aos cemitérios como indi- 7.3 Prolongamentos do regime ditatorial
gentes, os corpos permanecem nas sepulturas por um
período de três anos (dois para crianças de até seis 7.3.1 O desaparecimento na atuação da polícia
anos)⁷ e então são exumados e reinumados em uma
profundidade maior ou transferidos para os ossários A abertura da vala de Perus foi possível graças à
gerais, em vista de liberar espaço para novos sepulta- denúncia do jornalista da TV Globo Caco Barcellos, em
mentos. Lá repousam as ossadas daqueles cuja família 1990. Quando encontrou os registros que levaram à
não quis dar outro destino ao corpo ou sequer foi infor- revelação das mais de mil ossadas sepultadas clandesti-
mada sobre a morte, assim como os restos mortais das namente, Barcellos pesquisava os crimes praticados
vítimas consideradas desconhecidas pelo IML. pela Polícia Militar do Estado de São Paulo nos vinte
anos anteriores. A unidade, criada como força auxiliar
7.2 O uso da indigência pela repressão do Exército, foi constituída na ditadura militar e já se
descon ava que era uma das mais letais do mundo.
Durante a ditadura militar, o sepultamento como Segundo o jornalista, na década de 1990, cresciam as
indigente de militantes assassinados e com a identidade denúncias da repressão aos militantes políticos durante
conhecida pelos agentes era uma prática comum para a ditadura, mas pouco se falava sobre a violência prati-
impedir sua localização pela família e acobertar os cada pelo Estado aos cidadãos comuns no mesmo
crimes cometidos pela repressão. Em 1990, após a des- período. Publicada em 1992 no livro Rota 66, a investi-
coberta da vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, a gação de Caco Barcellos durou sete anos e mapeou o
CPI de Perus concluiu: trabalho da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar ⁷²Ar go da Promotora Eliana
(ROTA), tropa do Comando Geral da Polícia Militar do Vendramini: O Ministério
A condição arti cial de indigência atribuída às Estado de São Paulo, que nas duas décadas pesquisadas Público em busca de
desaparecidas: a função
vítimas fatais da repressão política foi a mane- foi responsável por mais de 4 mil mortes. Em audiência
social dos ossários
ira utilizada pelo IML, com a cumplicidade da pública da Comissão Municipal da Verdade no dia 2 de perpétuos em cemitérios
Prefeitura de São Paulo, para o ocultamento junho de 2016, Barcellos a rmou que o discurso usado públicos. (Nesta seção,
de cadáveres de desaparecidos políticos. contra os militantes políticos na ditadura era e ainda é o man vemos as notas de
rodapé conforme incluídas
mesmo empregado para justi car a violenta ação da no relatório de 2016,
Assim, como se viu no capítulo anterior, entre 1969 polícia contra a população pobre e negra: disponível em:
a 1976 os cemitérios de Vila Formosa, Dom Bosco, em h ps://www.prefeitura.sp.g
ov.br/cidade/secretarias/upl
Perus, e Campo Grande receberam 47 corpos dos opo- [...] as vítimas do regime militar, como eram
oad/direitos_humanos/Relat
sitores políticos assassinados pela ditadura sob a quali- narradas as suas histórias, como a imprensa orioCMV_DVD(1).pdf).
cação de indigentes. Uma vez transformados em narrava? Narrava a partir do relato o cial dos ⁷³Lei nº 7.656, de 1971.

158
envolvidos, do comando militar que divulgava. jovem que havia saído de casa, provavelmente
Geralmente era: na abordagem dos meliantes com documentos, em alguns casos foi visto
(antes eram dos comunistas, dos guerrilheiros sendo detido e apareceu cadáver sem nenhum
ou dos terroristas) as nobres forças (não cha- documento em algum hospital da cidade de
mavam de repressão, mas de forças de seguran- São Paulo⁷⁴.
ça) foram agredidas pelos terroristas que dispa-
raram contra as forças de segurança, que foram Para o jornalista, a população mais pobre continua
obrigadas a reagir. Na reação, os terroristas sendo morta e desaparecida pelo Estado longe da vigi-
foram feridos, socorridos num gesto humanitá- lância da sociedade, que não se atenta aos crimes que
rio (vítima baleada você socorre), foram leva- acontecem na periferia:
dos para o hospital, onde não resistiram aos
ferimentos e morreram. Esse é um clássico. Se Ah, se praticou três assaltos, vai para a geladei-
você pegar abril de 1970, quando foi criada a ra do hospital. Não será preso. Provavelmente,
ROTA, e abril de 1980, 10 anos depois, o relato é se não tiver nada, poderá ser solto, poderá ser
o mesmo. Só que como não são mais guerrilhe- liberado. Talvez, tenha sido a única diferença
iros, viraram meliantes, marginais, tra cantes. em relação ao passado. Depende do humor de
Talvez, no futuro, seja o quê? Religiosos, mem- ocasião. Depende da necessidade de ocasião.
bros da Câmara dos Vereadores que vão reagir, Se houver um morto, um policial militar
sei lá. Eles vão determinar quem vão matar. morto naquela semana, muitos dos presos
Tem sido assim até agora, já mudou da guerri- serão executados e virarão indigentes. Eles
lha para assaltante, depois para tra cante, queimam a documentação, destroem a docu-
principalmente no Rio de Janeiro. São grupos mentação para impedir possíveis investiga-
considerados os inimigos públicos número um. ções sérias, que não existem, na real, no Brasil,
O relato é o mesmo para cada grupo desses. salvo honrosas exceções⁷⁵.

A transformação das vítimas em indigentes para 7.3.2 O desaparecimento forçado ou redesapare-


apagar os vestígios dos crimes foi observada como uma cimento
prática comum nas mortes registradas pela Polícia Militar:
Começávamos ali rapidamente a identi car Em 2013, a promotoria do Ministério Público Esta-
que quase nunca se tratava de um bandido dual de São Paulo criou o Programa de Localização de
desconhecido. Era sim um indivíduo, um Desaparecidos (PLID). Uma investigação nos registros
do IML e SVOC apurou que, apesar de dispor de dados
que os identi cavam, os corpos de cerca de 3 mil necrop-
Uma inves gação nos registros do
siados pelos órgãos estaduais foram sepultados como
Serviço de Verificação de Óbitos e do desconhecidos entre 1999 e 2013. A pesquisa também
IML apurou que, apesar de dispor de revelou que pessoas o cialmente reclamadas como
dados que os iden ficavam, os corpos desaparecidas em boletins de ocorrência registrados
de cerca de 3 mil necropsiados pelos pela Polícia Civil são enterradas como indigentes sem
órgãos estaduais foram sepultados que seus familiares sejam informados. A promotoria
⁷⁴Caco Barcellos em batizou essa situação de redesaparecimento. Em audiên-
audiência realizada pela
como desconhecidos entre 1999 e 2013.
cia pública da Comissão Municipal da Verdade em 2 de
Comissão Municipal da A promotoria ba zou essa situação de
Verdade em 02/06/2016. maio de 2016, a promotora Eliane Vendramini, respon-
⁷⁵idem.
“redesaparecimento” sável pelo programa, explicou:

159
[...] É um neologismo. A pessoa desapareceu, reclamado. Mais de um mês depois, o PLID comunicou
apareceu em forma de corpo, e o Estado desa- sua localização.
pareceu com elas. Isso acontece, a princípio, Segundo o Ministério Público, “o fato de mandar
com as pessoas registradas como desapareci- inumar em terreno público, como se indigente fosse,
das na Polícia Civil. Essa falta de diálogo não é corpos de pessoas cuja família está o cialmente à
só intersecretarial, ela existe dentro da mesma procura é ilegal e inconstitucional”. A promotora Eliane
Secretaria de Segurança Pública, porque são Vendramini aponta o problema como mais um prolon-
três órgãos dentro da mesma secretaria de gamento dos tempos da ditadura militar, privando as
Segurança Pública Estadual que não dialogam. famílias do direito inalienável de enterrar seus mortos:

O IML, que possui 72 unidades no Estado de São Percebemos o que herdamos como maldade
Paulo, não tem um sistema de digital e uni cado, o que na época da ditadura. Nós temos, hoje, uma
obrigaria a família que está buscando um parente desa- omissão que chamamos de desaparecimento
parecido a peregrinar pelo Estado em busca do corpo. forçado por omissão. Ele é forçado na medida
Segundo a promotora, “a inconstitucional omissão está em que o Estado tem mais poder que o cida-
documentada e ocorre nos serviços públicos de autópsia dão de brecar esse tipo de atuação. Então, ele
da capital, IML e SVO, bem como na Polícia Civil, ferin- não é eventualmente mais forçado pela vio-
do os direitos fundamentais da personalidade que foi lência. Temos dados estatísticos que compro-
cada cadáver, os direitos da sua família, bem como o vam que uma das formas de desparecimento é
direito de informação de ambos”.⁷⁶ a violência policial, mas ele é também forçado
A falta de cruzamento de dados produz histórias pela maneira como se procede à inumação,
como a de um senhor de 72 anos com esclerose que desa- mandando o corpo ao Serviço Funerário sem
pareceu após sair de casa em janeiro de 2000. A família o mínimo ético organizacional e deixando as
registrou um boletim de ocorrência de desaparecimen- famílias à busca por mais de 15 anos.
to⁷⁷ no 64º Distrito Policial. Em março do mesmo ano,
depois de passar mal na rua, ele foi levado a um hospital
e morreu. Sua identidade era conhecida, mas o SVOC, 7.4 A lei nº 7.017/1967 e os limites legais para a
para onde foi levado para a necropsia, não procurou a cremação dos restos mortais de indigentes
família. Depois de 72 horas, ele foi enviado para sepulta-
mento como um corpo não reclamado. O boletim de ⁷⁶O Ministério Público em
Desde 19 de abril de 1967, está em vigor a lei que
busca de desaparecidos: a
ocorrência de óbito⁷⁸ foi registrado no 32º Distrito Poli- regula a prática da cremação na cidade de São Paulo. O função social dos ossários
cial. A família só foi informada da morte quinze anos projeto foi apresentado à Câmara Municipal por Antô- perpétuos em cemitérios
depois, em 2015, quando comunicada pelo PLID, que nio Sampaio, mas não foi à votação porque a legislação públicos. Ar go da
Promotora Eliana
cruzou os dois registros. da época permitia ao regime militar aprovar apenas os Vendramini. No prelo.
Mais recentemente, em 2015, um jovem teve um textos do Poder Executivo. O prefeito Faria Lima envi- ⁷⁷Bole m de Ocorrência de
infarto em via pública. A família imediatamente regis- ou aos vereadores um novo projeto de lei acrescentando Desaparecimento
trou o boletim de ocorrência de desaparecimento⁷⁹ na dois parágrafos que autorizavam a cremação de indi- nº272/2000 do 64º Distrito
Policial.
delegacia especializada. Seu corpo foi periciado pelo gentes. O artigo 2º da lei nº 7.017, aprovada pela Câmara ⁷⁸Bole m de Ocorrência de
IML, que em quatro dias obteve sua identi cação com- Municipal, diz: Óbito nº 1.420/2000 do 32º
pleta junto ao Instituto de Identi cação após a análise Parágrafo segundo: Em caso de morte violen- Distrito Policial.
das digitais. O boletim de ocorrência de óbito⁸⁰ foi regis- ⁷⁹Bole m de Ocorrência de
ta, a cremação, atendidas as condições estatuí-
Óbito nº 347/2015.
trado no 26º Distrito Policial, mas a família não foi pro- das neste artigo, só poderá ser levada a efeito ⁸⁰Bole m de Ocorrência de
curada e o jovem foi sepultado como indigente não mediante prévio e expresso consentimento da Óbito nº 4.997/2015.

160
autoridade policial competente.
Parágrafo terceiro: A Prefeitura poderá deter-
minar, observadas as cautelas indicadas nos
parágrafos anteriores, tal seja o caso, a crema-
ção de cadáveres de indigentes e daqueles não
identi cados.

Mesmo com o m da ditadura, a lei nunca foi


revogada. A cremação de corpos desconhecidos ou não
reclamados não pode ser realizada pois vai de encontro
aos fundamentos da Constituição Federal de 1988, que
diz que pertence à família o corpo do ente falecido. No
entanto, isso não impede que tais restos mortais, quan-
do alocados nos ossários gerais ao m do tempo nas
sepulturas previsto em lei, sejam incinerados para libe-
rar espaço nos cemitérios municipais. Considerando a
omissão do Estado na hora de identi car seus mortos e
oferecer-lhes o direito ao sepultamento pela família,
como foi revelado neste capítulo, é necessário impedir
que a memória das vítimas ou os crimes cometidos pela
polícia possam ser apagados em de nitivo. A revisão da
lei nº 7.017/1967 é uma das recomendações desta
Comissão para que seja suprimido qualquer subterfú-
gio que permita que as violações aos direitos humanos
ocorridas durante a ditadura voltem a acontecer.

161
FOTO: DANILO RAMOS - REDE BRASIL ATUAL
6
A retomada

E quando passarem a limpo


E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim
Ivan Lins e Vitor Mar ns, em “Aos nossos filhos”

— Os comunistas estão chegando. caráter solene da cerimônia, marcada para as 9 horas


— Eu vi. Que absurdo. da manhã. Logo atrás das cadeiras, os dois ossários
O burburinho foi se alastrando como rastilho de verticais somavam mais de duas centenas de nichos
pólvora no mausoléu da Polícia Militar. Uma afronta. reservados aos “heróis da PM”, como são chamados
Na mesma hora da cerimônia em homenagem aos por seus pares os policiais mortos em serviço. Descen-
policiais mortos no cumprimento do dever. Só podia do as escadas, três andares igualmente destinados às
ser provocação. sepulturas de policiais militares completam o impo-
O encontro no Cemitério do Araçá no Dia de Fina- nente mausoléu.
dos era uma tradição de décadas. Naquele sábado, 2 de — Queria saber o que esses comunistas estão
novembro de 2013, não haveria de ser diferente. Cade- fazendo num cemitério; não são todos ateus? — provo-
iras de plástico dispostas em leiras nas duas laterais cou um parlamentar que zera carreira na polícia.
da praça cívica acomodavam autoridades da corpora- — E você viu que tem até terrorista aí no meio? —
ção, devidamente paramentadas com suas insígnias e comentou outro.
medalhas. E também representantes do Poder Legisla- — Os terroristas de sempre.
tivo e da Secretaria de Segurança Pública do Estado. A poucos metros dali, junto ao ossário geral, os
Perito do Centro de Empossado em 1º de janeiro, o prefeito de São “comunistas” davam início à sua própria celebração:
Antropologia e Arqueologia Paulo, Fernando Haddad, fez-se representar pelo supe- um ato ecumênico pelo dever e pelo direito de sepultar
Forense da Unifesp faz a rintendente do Serviço Funerário, Sérgio Trani, que os mortos, conforme impresso no cartaz de divulga-
triagem de material re rado
da vala. Os trabalhos de ouviu o bochicho como se não estivesse ali. Que comu- ção. Ativistas de direitos humanos, ex-presos políti-
análise e iden ficação das nistas seriam esses? Onde eles estariam? cos, jornalistas, artistas e parlamentares de esquerda
ossadas foi retomado em Cerimônia bonita, com apresentação do coral da reuniam-se para homenagear os mortos e desapareci-
2014 graças a um convênio dos da ditadura militar.
PM, ores e orações. O inspirador conjunto escultóri-
firmado entre Unifesp,
Prefeitura de São Paulo e co com dezesseis estátuas em bronze esculpidas por O encontro, promovido anualmente no Dia de
Governo Federal Vilmo Rosada e distribuídas pela praça intensi cava o Finados, cada edição num cemitério diferente, era
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

uma iniciativa conjunta de uma série de organizações, publicada na imprensa havia noticiado que a inaugu-
entre as quais a Comissão de Familiares de Mortos e ração seria no próprio dia 2, o que motivou os artistas a
Desaparecidos Políticos e o Comitê Paulista pela improvisarem duas sessões extraordinárias naquela
Memória, Verdade e Justiça, com apoio da Secretaria tarde, logo após o ato ecumênico. Uma espécie de pré-
Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, do Con- estreia.
selho Latino Americano de Igrejas e do Conselho Naci- Por volta das 10 horas, Adriano Diogo conversava
onal de Igrejas Cristãs, além de todas as Comissões da com Celso Sim quando familiares de mortos e desapa-
Verdade em atividade naquele momento em São Pau- recidos começaram a chegar. Celso explicava que o
lo: a Nacional, a da Assembleia Legislativa (Alesp) e a ossário não comportaria o ato ecumênico porque
da Câmara Municipal. No ano anterior, zeram no havia um limite de vinte pessoas por vez no espaço.
cemitério de Vila Formosa. Agora, fariam no Araçá, Mas o labirinto de paredes coloridas construído na
onde as ossadas de Perus tinham sido mais uma vez área externa poderia ser utilizado. O gerador de ener-
abandonadas. gia, os spots de luz, o equipamento de som, todo o resto
Também no Araçá, quase um século antes, duas estava à disposição dos organizadores do ato inter-
centenas de covas clandestinas teriam sido abertas, nas religioso.
noites de 15 e 16 de julho de 1917, para enterrar, às Aos 73 anos, Anivaldo Padilha, líder da igreja
pressas e sem avisar as famílias, trabalhadores em greve metodista preso na Oban em 1970 e exilado de 1971 a
assassinados pela repressão. São Paulo fervia na prime- 1984, foi um dos primeiros a chegar. Maria Rita Kehl,
ira greve geral da história do Brasil. A morte do jovem psicanalista e membro da Comissão Nacional da Ver-
operário José Martinez, pela cavalaria, no início do dade, rondava a instalação, curiosa para saber como
mês, de agrara a ampliação do movimento grevista e tinha cado. Dom Odilo Scherer, arcebispo de São
sua radicalização, como narrou em 2017, ano do cente- Paulo desde 2007, também compareceu, assim como
nário, o jornalista José Luiz Del Roio no livro A Greve religiosos do candomblé, da umbanda e de outras
de 1917. Policiais também foram mortos pelos mani- igrejas cristãs. Passava das 10h30 quando o Coral Lut-
festantes, que organizaram emboscadas, e estão home- her King, comandado pelo maestro Martinho Lutero,
nageados nas esculturas do mausoléu. Não faltavam começou a se apresentar. Atores leram trechos da peça
motivos para fazer no Araçá o encontro daquele ano. Antígona, de Sófocles.
Um dos “terroristas de sempre” que chegou ao Por volta das 11h30, o ato em memória dos mortos
Araçá para participar do ato foi o deputado estadual e desaparecidos políticos ainda não havia terminado
Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade quando os policiais militares, o chefe da corporação e
Rubens Paiva, na Alesp. Com seu apoio, por meio de alguns parlamentares da “bancada da bala” começa-
uma emenda parlamentar, os artistas Celso Sim e ram a deixar o mausoléu. Antes de partir, alguns deles
Anna Ferrari haviam acabado de montar uma instala- resolveram descer até o ossário geral para ver de perto
ção ali mesmo no ossário geral, cujos nichos abriga- a balbúrdia dos “comunistas”. Somente agora, notavam
vam centenas de sacos com esqueletos sob a custódia a instalação de Celso e Anna. Aparentemente, os artis-
do IML e, desde 2001, as agora 1.046 ossadas de Perus – tas haviam invadido o ossário geral e colocado caixas
uma vez que três das 1.049 encontradas na vala já havi- de som, projetores, spots de luz. Notaram, também,
am sido identi cadas, em 1991, 1992 e 2005. A inaugu- que a instalação fazia apologia da ocupação artística de
ração da obra estava agendada para o dia seguinte, 3 de cemitérios e crematórios. Uma profanação! Quem
novembro, um domingo, como uma das atrações da tinha autorizado? Desta vez o novo prefeito tinha ido
10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo. longe demais.
Celso e Anna haviam corrido durante a semana O pior não era isso, notaram. Junto à entrada do
para deixar tudo pronto antes do feriado. Uma nota ossário, os artistas haviam xado um totem de mármo-

164
A retomada

re em homenagem aos “terroristas” mortos durante a pal de Direitos Humanos e Cidadania havia xado
“revolução” de 1964. Como se não bastasse, haviam lambe-lambes no muro do cemitério, de frente para a
xado também um painel com um texto no qual outro Avenida Doutor Arnaldo, com fotogra as dos protes-
“comunista”, Ivan Seixas, discorria sobre a vala de tos ocorridos na cidade meses antes, nas chamadas
Perus, sua origem e suas implicações na perpetuação jornadas de junho. A censura foi imediata. Um ou dois
da violência de Estado. dias depois, as imagens amanheceram rasgadas e
No início da tarde, a aglomeração em torno do pichadas. “Viva PM!”, dizia uma das pichações.
ossário geral havia se dispersado. Milhares de famílias O vandalismo não se restringiu ao vilipêndio das
de diversos bairros de São Paulo e também do interior ossadas. Estátuas foram derrubadas. Dentro do ossá-
garantiram o movimento intenso e a profusão de ores rio geral, ora convertido em instalação artística, dois
sobre lápides e jazigos até o fechamento dos portões, às dos cinco monolitos de mármore utilizados como tela
19h. de projeção na obra de Celso Sim e Anna Ferrari
Naquela madrugada, a instalação de Celso Sim e tinham sido derrubados e despedaçados, cada um
Anna Ferrari foi depredada. pesando mais de meia tonelada.
— Vem pra cá imediatamente — Wilton Assis, o Ao saber do atentado, os membros da Comissão
administrador, avisou Celso por telefone por volta das Nacional da Verdade telefonaram para Celso e disse-
7h30. — Aconteceu um crime aqui no Araçá. Destruí- ram a ele que gostariam de ir a São Paulo para a inaugu-
ram tua obra. Tem um monte de ossos espalhados pelo ração. Por isso, pediam que ele adiasse a vernissage por
cemitério. uma semana.
Quando Celso chegou, meia hora depois, os funci- — Em três dias eu resolvo e já quero inaugurar —
onários corriam para guardar os ossos rapidamente e, Celso respondeu.
assim, evitar que os frequentadores os vissem, princi- Ele e Anna optaram por expor o ato de violência
palmente as crianças. Era domingo, o dia mais movi- em vez de disfarçá-lo. Ajustaram os equipamentos
mentado da semana, e logo após Finados. Em pouco para que os vídeos fossem projetados nos fragmentos
tempo, o cemitério caria lotado. de mármore espalhados pelo chão. Representantes da
A pressa em resolver a situação comprometeu a CNV conseguiram se organizar e chegaram a tempo de
qualidade da perícia. A equipe da Polícia Civil chegou prestigiar a abertura o cial, entre eles o ex-ministro da
apenas depois de Celso, quando os sepultadores já Justiça José Carlos Dias. A instalação, intitulada Pene-
tinham devolvido os ossos nos sacos e nos nichos – trável Genet, havia se transformado em gesto de resis-
sabe-se lá se nos sacos e nos nichos corretos. As ossa- tência, um segundo ato em memória dos mortos e
das de Perus, veri cou-se depois, não tinham sido desaparecidos políticos promovido na mesma semana
afetadas pela ação. Os vândalos haviam arrombado as e no mesmo local. A repercussão era muito maior do
tampas dos nichos mais próximos à entrada do ossário que a prevista antes da depredação. No dia 4, uma ima-
e não chegaram a mexer nas mais de sessenta gavetas gem do casal de criadores diante de um monolito des-
ocupadas pelo material proveniente da vala, armaze- pedaçado estampava a primeira página da Folha de
nadas mais ao fundo. Essas, pelo menos, continuavam S.Paulo.
em seus devidos lugares. O inquérito policial aberto para apurar aquela
Para Celso Sim e para o administrador do cemité- ocorrência foi concluído pouco tempo depois sem que
rio, não havia dúvidas de que o vandalismo tivera moti- nenhum suspeito fosse citado – e sem que nenhuma
vação política. Aquele atentado, feito em repúdio à das pessoas presentes à cerimônia no mausoléu da PM
obra e ao ato ecumênico da véspera, não era a primeira fosse interrogada. Para os “comunistas”, havia restado
manifestação de viés conservador registrado no Araçá uma certeza: aquele local não era adequado para guar-
naquele semestre. Um mês antes, a Secretaria Munici- dar as ossadas de Perus.

165
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

*** material. Havia in ltrações, problemas de temperatu-


ra e de umidade, sinais de fungos e nenhum cuidado
Meses antes do episódio no Araçá, em abril daque- com a preservação arqueológica. Não apenas os traba-
le ano, o recém-empossado prefeito Fernando Haddad lhos estavam estagnados, uma constante na história
havia se reunido com os principais coletivos dedicados das ossadas, como havia o perigo de comprometer sua
ao tema da memória e da verdade, entre eles a Comis- integridade física e a viabilidade das identi cações. As
são de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. intempéries poderiam destruir as moléculas necessá-
A intenção do prefeito, ainda no primeiro semestre de rias para a análise genética.
mandato, era fazer uma consulta sobre as principais Agora, havia uma diferença importante em rela-
reivindicações nessa área. Ele havia acabado de criar a ção a 1990, quando a prefeita Luiza Erundina assumira
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidada- para si a responsabilidade por rmar convênios e
nia, inédita em São Paulo, e vinha de nindo com o monitorar os trabalhos com as ossadas. Desde 1995,
secretário Rogério Sottili as principais atribuições e quando foi criada a Comissão Especial sobre Mortos e
objetivos da pasta. Desaparecidos Políticos (CEMDP) – primeiramente
Memória e verdade ainda não constituíam uma vinculada ao Ministério da Justiça e, a partir dos anos
coordenação especí ca dentro da Secretaria, como 2000, à Secretaria Especial de Direitos Humanos – a
aconteceria em seguida, sob a condução da até então responsabilidade por investigar mortos e desapareci-
chefe de gabinete de Sottili, Carla Borges, que já havia dos, incluindo os trabalhos com as ossadas suspeitas
trabalhado com ele em Brasília no período em que de pertencer a perseguidos políticos, era da comissão.
Sottili foi secretário-executivo da Secretaria Geral da Em razão disso, não seria possível retomar os traba-
Presidência. Convidado em dezembro para inaugurar lhos sem o protagonismo do Governo Federal.
uma secretaria municipal de direitos humanos, Sottili Também não seria possível proceder às análises
mudou-se para São Paulo cheio de ideias para a pasta. sem recorrer a alguma estrutura policial, fosse o IML
Herdara da campanha eleitoral o compromisso de ou a Polícia Cientí ca. Essas instituições exerciam
criar uma Comissão da Verdade da Prefeitura, mas uma espécie de oligopólio da medicina legal no país.
ainda não tinha clareza sobre outros programas e polí- Nenhuma análise em ossos humanos seria reconheci-
ticas públicas que deveriam ser elaboradas no âmbito da pelo Estado sem a assinatura de algum perito de
do direito à memória e à verdade. A reunião de abril uma dessas instituições, o que fazia com que os famili-
tinha essa função. ares torcessem o nariz.
Naquela reunião, foram propostas medidas diver- As tratativas começaram ali mesmo. Uma peque-
sas, como a criação de centros de memória e a alteração na reforma no ossário seria iniciada imediatamente,
dos nomes de ruas que, ainda, homenageavam tortura- com recursos do Serviço Funerário, para conter as
dores e outros violadores de direitos, como Sérgio in ltrações. Sottili, em nome da Prefeitura, aproveita-
Paranhos Fleury, notório torturador e chefe do Dops, ria uma viagem a Brasília para conversar sobre as ossa-
eternizado nas placas de sinalização de uma rua na das com Maria do Rosário, gaúcha de Veranópolis
Vila Leopoldina. Entretanto, cara evidente que havia como ele e titular da Secretaria de Direitos Humanos
uma demanda maior que todas as outras: retomar as da Presidência da República.
análises das ossadas de Perus e encontrar um destino Era preciso aproveitar o que parecia uma impor-
para elas. tante conjunção astral: pela primeira vez após muitos
Lideranças dos coletivos por memória, verdade e anos, Governo Federal e Governo Municipal eram
justiça trouxeram a denúncia da Equipe Argentina de administrados por políticos do mesmo partido e sensí-
Antropologia Forense de que o ossário geral do Araçá veis à luta por memória, verdade e justiça. O Brasil tinha
não era um local adequado para armazenar aquele uma ex-presa política na Presidência da República. Os

166
A retomada

astros estavam alinhados, e esse alinhamento não dura- diatamente aos trabalhos, primeiro como consultores
ria para sempre. e, em seguida, como membros do comitê cientí co.
A sensação de urgência aumentaria após o atenta- Coordenadora de Direito à Memória e à Verdade
do no Dia de Finados. na Prefeitura, Carla Borges cou surpresa ao chegar à
*** reunião com alguma antecedência e descobrir que a
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência tinha
— É preciso tirar esses ossos daqui. convidado a superintendente da Polícia Técnico-
Rogério Sottili estava especialmente agitado após Cientí ca de São Paulo, Norma Bonaccorso.
o vandalismo no cemitério. Os telefonemas se sucedi- Norma era a gestora à frente do IML. E também
am num ritmo impressionante. De um lado, familiares uma das pessoas citadas na ação civil pública movida
de mortos e desaparecidos, repletos de razão, exigiam em 2008 pela Procuradoria Regional dos Direitos do
alguma providência. Cidadão. Na ocasião, fora processada por não ter feito
— Vocês vão deixar os ossos serem roubados ou o uso adequado do equipamento adquirido pela Secre-
destruídos? taria de Segurança Pública para realizar a análise de
Vocês, no caso, eram os servidores da Prefeitura. DNA das ossadas de Perus, uma omissão que contri-
Na condição de secretário municipal, Sottili personi - buiu para prolongar ainda mais a espera dos familia-
cava as expectativas em relação às ossadas. Não apenas res.
ele, toda a equipe de direito à memória e verdade, já Carla anteviu a reação dos familiares e ligou para o
constituída como coordenação, e também os respon- chefe, que estava a caminho:
sáveis pelo Serviço Funerário e pela Secretaria de Ser- — Rogério, vai ter uma pessoa do IML na reunião
viços, à qual os cemitérios eram vinculados. A pressão — avisou. — Os familiares vão cair matando em cima
para que a solução fosse rápida superava a pressão para da gente.
que fosse a melhor possível. Havia urgência. E muita. Carla e Rogério tinham a sensação permanente de
— Precisa resolver isso logo — Sottili conversou caminhar na corda bamba. E sem sombrinha. Um
com Maria do Rosário a m de colocá-la a par dos gesto, um comentário mal colocado, uma proposta que
acontecimentos recentes, ciente de que a CEMDP fosse mal recebida por aqueles que se dedicavam havia
deveria liderar a busca de uma saída. três décadas à busca pelos desaparecidos poderia fazer
O atentado ao ossário ainda repercutia na impren- com que todo o empenho na retomada das análises
sa quando a ministra tomou a iniciativa de convocar desmoronasse.
para janeiro de 2014 dois dias de reuniões sobre as Desta vez, a superintendente se mostrou especial-
ossadas. Os encontros seriam feitos no escritório da mente solícita. A rmou que o IML da Rua Teodoro
Presidência da República em São Paulo. Sampaio estava à disposição para receber as ossadas e
O gabinete regional da Presidência ocupava todo se encarregar dos trabalhos de perícia.
o terceiro andar do edifício do Banco do Brasil, na — Estamos num outro momento. Vamos reescre-
esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta. ver essa história — prometeu.
Foram convidados os membros da Comissão Nacional A proposta recebeu o apoio de Eugênia Gonzaga.
da Verdade e da Comissão Estadual da Verdade, além Na concepção da procuradora da República, a mesma
de familiares de mortos e desaparecidos e a equipe da que conseguira judicializar a questão por meio das
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidada- ações civis públicas movidas cinco anos antes, não
nia. A Presidência também providenciou passagens haveria como fugir do IML. Era melhor mandar as
para os coordenadores da Equipe Argentina de Antro- ossadas para lá do que esperar que elas fossem destruí-
pologia Forense (EAAF) e da Equipe Peruana de das por fungos e in ltrações.
Antropologia Forense (EPAF), que se somariam ime- Sottili concordava. Não tinha escapatória. Primei-

167
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

ro, por implicações legais, uma vez que somente o IML solução conjunta parecia cada vez mais distante. Todos
poderia ser legalmente responsável pelas análises e ali pareciam ter razão. Todos os argumentos eram
pelas eventuais identi cações que viessem a acontecer. razoáveis. Nada servia, nem o IML nem as universida-
Segundo, em razão da ausência de alternativa. Quem des.
mais estaria apto a desenvolver esse trabalho no Brasil? — E a Unifesp? — Ivan lembrou que a Universida-
Adriano Diogo, por sua vez, arregalou os olhos. de Federal de São Paulo havia criado sua própria
Que proposta era aquela? O que Amelinha ou Ivan Comissão da Verdade em meados do ano anterior,
achavam disso? O que Crimeia diria? pouco antes do atentado ao Araçá. Havia, ali, uma
— Já vi esse lme — Amelinha reagiu. — De novo nova gestão na reitoria e também uma equipe dedica-
essa história de mandar pro IML. da. Edson Teles, lho de Amelinha, era professor no
Não havia solução fácil. Quinze anos depois, os campus de Guarulhos.
familiares viam-se novamente envolvidos nas mesmas Rogério comentou que já havia feito uma primeira
discussões travadas em 1998 e mediadas pelo então consulta à reitora, Soraya Smaili, quando a recebera
secretário estadual de Justiça, Belisário dos Santos Jr., e em seu gabinete, juntamente com a professora Ana
pelo jovem procurador da República dos Direitos do Nemi, integrante da Comissão da Verdade da Unifesp,
Cidadão, Marlon Weichert, que parecia cair de para- em dezembro. A reitora fora convidada para conversar
quedas num tema que desconhecia por completo. sobre outros temas, relacionados à coordenação de
Agora, como naquela época, o IML parecia monopoli- políticas para idosos, com a coordenadora Guiomar
zar as análises periciais em ossos humanos. Tanto Lopes e o secretário. Sottili aproveitara para introduzir
Nelson Massini e Badan Palhares, da Unicamp, quanto o tema das ossadas. Soraya cara entusiasmada com a
Daniel Muñoz, da USP, só puderam coordenar os tra- possibilidade de contribuir com os trabalhos, mas se
balhos com as ossadas nos anos 1990 e 2000 porque mostrara reticente diante da hipótese de assumir a
conciliavam a atividade universitária com o cargo de guarda do material ou a responsabilidade pela perícia.
perito do IML. — Acabamos de assumir a reitoria — Soraya decli-
— A sugestão de levar as ossadas para o IML não nou. — A Unifesp vem de um processo difícil, após
tem o apoio dos familiares — Adriano comentou. Era oito meses de greve, e temos um monte de coisa para
melhor não perder tempo nessa proposta. ajustar para colocar a casa em ordem.
Aventou-se como alternativa a hipótese de abrigar Ainda segundo Soraya, professores vinculados à
as ossadas numa universidade, um local de ciência, e Comissão da Verdade da Unifesp haviam viajado a
montar um convênio para que um perito do IML Buenos Aires, conhecido as avós da Praça de Maio,
pudesse executar ali os trabalhos, um formato pareci- grupo de mães de desaparecidos políticos mortos
do com o que fora adotado no Departamento de Medi- durante a ditadura argentina, e visitado a Equipe
cina Legal da Unicamp e no Instituto Oscar Freire, da Argentina de Antropologia Forense, a EAAF, especia-
USP. Deixar as ossadas sob a tutela do IML não parecia lizada na análise de ossadas do período da repressão.
viável. Desde então, havia uma ideia pouco concreta de criar
— Assim é bem melhor — Amelinha concordou. algo parecido na Unifesp. No entanto, não havia na
— Mas que universidade? Unifesp um espaço adequado para aquela investigação
— Vocês estão loucos de mandar de novo para a nem docentes especialistas no assunto. Em resumo:
universidade? — agora era Crimeia quem falava. — seria impossível.
Não basta a forma como fomos tratados na Unicamp e Mesmo assim, Sottili concluiu seu relato na reu-
na USP? nião de janeiro comentando que nada impedia que
Pronto. Estaca zero. Um olhava pela janela, outro alguém procurasse novamente a reitora.
tamborilava no tampo da mesa. A construção de uma — Alguém aqui tem relação pessoal com a Soraya?

168
A retomada

Ninguém tinha. Soraya, na reitoria da Unifesp, e Eleonora telefonou


Embora pouco se tenha avançado naquela reu- para ela na hora exata em que a reunião começaria. Já
nião, os encaminhamentos foram de nidos. Carla estavam na sala, à espera de Soraya, o próprio Sottili,
Borges faria uma visita técnica ao IML acompanhada um representante da Cruz Vermelha e familiares de
de um dos peritos estrangeiros e de familiares a m de desaparecido. Soraya pediu licença para atender à
conferir a estrutura e a necessidade de reformas. Foi ministra.
um desastre. O entra e sai de policiais e de cadáveres, a — Soraya, você vai receber uma proposta agora,
proximidade das mesas de necropsia, o movimento que é de abrigar as ossadas de Perus e se responsabili-
permanente de presidiários que chegavam para fazer zar pela análise desse material.
exame de corpo de delito, famílias desesperadas à A reitora quase caiu da cadeira.
procura do pai que sumiu, do lho que não voltou para — Mas...
casa, o choro de quem deixava a câmara fria após reco- — O que está acontecendo é o seguinte. As ossadas
nhecer um parente, tudo ali con rmava a sensação de estão há mais de uma década no Araçá, num local sem
que seria impossível realizar naquele ambiente um condições de abrigar esse material, e agora estão que-
trabalho delicado e meticuloso como a análise daque- rendo levar para o IML, o que não é aceitável.
las ossadas. — Mas a Unifesp não pode... A gente não tem espa-
Faltava um espaço com entrada independente, ço, não tem recursos, não sabe nem por onde começar.
calmo, que comportasse as equipes de antropologia e — Fica tranquila que a gente vai ajudar. Vou con-
arqueologia forense. Faltava segurança para a guarda versar com o ministro da Educação. Nós vamos conse-
daquele material e também um sistema de climatiza- guir os recursos, as coisas vão acontecer.
ção apto a conservar em condições adequadas as 1.046 A reitora resistia. Temia repetir a experiência da
caixas que viriam do Araçá. A hipótese, já remota, de Unicamp, ou seja, pegar o trabalho e depois não ter
transferir as ossadas para o IML foi de nitivamente condições de dar continuidade a ele. Principalmente,
descartada. não tinha con ança. Seu medo era que o Governo
Amelinha, por sua vez, foi escalada para insistir prometesse recursos, colocasse no orçamento, mas
com a reitora. Ela tinha um plano. depois não empenhasse o valor prometido. E a Uni-
— Vou ligar para a Léo. fesp, ela sabia, não estava numa situação confortável
Professora de sociologia e pró-reitora de Extensão para absorver contingenciamentos não previstos.
da Unifesp até tomar posse como ministra da Secreta- De fato, aquele seria um ano muito difícil para as
ria de Políticas para as Mulheres, em 2012, Eleonora universidades federais como um todo. Os repasses do
Menicucci, a Léo, tinha militado em duas organiza- Governo para o ensino superior cairiam de R$ 8,7
ções armadas, a Política Operária (Polop) e o Partido bilhões em 2013 para R$ 7,8 bilhões em 2014, uma
Operário Comunista (POC), e passara uma tempora- redução de 10%. A Unifesp fecharia o ano com dívidas,
da com Dilma Rousseff na Torre das Donzelas, a ala o que nunca tinha acontecido, desde sua fundação, em
feminina do Presídio Tiradentes, um dos principais 1994.
locais de detenção de presos políticos no início dos Soraya ainda tentava processar aquele pedido da
anos 1970. ministra quando o telefone tocou novamente, antes
Sottili tomou a iniciativa de também contatar que ela tivesse voltado para a reunião.
Eleonora naquela semana, em nome da Prefeitura, — Soraya, aqui é a Amelinha. Só você vai poder
para que houvesse uma abordagem institucional. resolver isso. Não podemos aceitar que esse trabalho
Tanto para Amelinha quanto para Sottili, Eleonora vá para o IML. Tem que ir para a Unifesp, não tem
prometeu que falaria com a reitora. outro lugar. A gente con a em você.
Um grupo de familiares pediu uma reunião com Não teve jeito. Soraya entendeu que não podia

169
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

dizer não. Sentiu que era um daqueles momentos da ram encontrar. Uma condição era que casse nos
História em que não se tem opção. arredores do campus paulistano da Unifesp, entre a
De volta à reunião, a reitora ouviu cada palavra. Vila Mariana e a Vila Clementino, perto do Hospital
Sottili reiterou a proposta de se rmar um termo de São Paulo. Ao longo de um mês, Clara cumpriu expe-
cooperação e garantir recursos que viriam da Secreta- diente na rua, visitando casas, mentalizando reformas,
ria de Direitos Humanos, via Comissão Especial sobre negociando valores. Chegou a visitar um castelinho na
Mortos e Desaparecidos Políticos, da Prefeitura de São Vila Mariana, mas a opção foi descartada.
Paulo, via Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Em junho, Carla e Clara conseguiram nalmente
Cidadania, e também do Ministério da Educação, por encontrar uma casa na Rua Joaquim Távora, a três
meio de rubricas especí cas que ampliariam o repasse quarteirões da Rua Vergueiro, que cabia no orçamento
para a universidade. e se encaixava nas especi cações técnicas detalhadas
— Vou precisar de muito apoio — Soraya resumiu, pela equipe peruana. Principalmente: o proprietário
aceitando o desa o. do imóvel concordava com as reformas que precisari-
Nas semanas seguintes, uma nova rodada de con- am ser feitas. E, como a casa tinha dois pavimentos, um
versas foi feita em Brasília. Primeiro com Eleonora no nível da rua e um descendo um lance de escadas,
Menicucci e Henrique Paim, ministro da Educação seria possível adiantar as adaptações no andar debaixo
empossado em janeiro, que garantiu os repasses e o para já iniciar os trabalhos enquanto o andar de cima
apoio institucional à Unifesp. Em seguida, com Ideli fosse reformado.
Salvatti, que em março substituíra Maria do Rosário na As primeiras 433 caixas com ossos foram transfe-
Secretaria de Direitos Humanos. Sottili foi pessoal- ridas do Araçá para o número 168 da Rua Joaquim
mente falar com Ideli no dia seguinte à posse. Távora no nal de agosto. As demais precisariam
— Ideli, você tem nove meses até o m do mandato aguardar o término da reforma para que houvesse um
— Sottili comentou. — Você quer entrar para a Histó- cômodo adequado para abrigá-las.
ria? Destrava Perus. Se a gente botar de pé um centro No dia 4 de setembro de 2014, quando a revelação
de antropologia forense na Unifesp e conseguir identi- da vala clandestina completou 24 anos, foi nalmente
car algumas ossadas, você vai ter desempenhado um assinado um acordo de cooperação técnica entre a
papel importantíssimo em algo que tem uma relevân- Unifesp, a Secretaria de Direitos Humanos da Presi-
cia histórica enorme. dência da República e a Secretaria Municipal de Direi-
Foi como um “abre-te, Sésamo”. A ministra se tos Humanos e Cidadania. A universidade caria
envolveria tão completamente com o tema que, passa- encarregada do espaço físico, a Prefeitura seria res-
dos seis meses, os trabalhos já estavam em andamento. ponsável pelos insumos e o Governo Federal pelos
Nos primeiros dias de abril de 2014, em meio à pro ssionais.
“descomemoração” dos 50 anos do Golpe Civil-Militar Nasciam assim o Centro de Antropologia e
de 1964, foi nalmente rmado um protocolo de Arqueologia Forense (CAAF) e o Grupo de Trabalho
intenções entre a Secretaria de Direitos Humanos, a Perus (GTP), ao qual caberia a missão de proceder à
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos análise das ossadas exumadas em 1990 no Cemitério
Políticos e a Unifesp. Dom Bosco.
Coube à equipe da Prefeitura encontrar um local
que pudesse ser alugado pela Unifesp para servir de ***
abrigo às ossadas e também para acolher os trabalhos
de análise. Carla Borges e Clara Castellano, coordena- Numa das paredes do CAAF, 41 desaparecidos
dora-adjunta de Direito à Memória e à Verdade, con- pareciam observar os trabalhos de limpeza e análise
sultaram todos os classi cados de imóveis que pude- das ossadas.

170
A retomada

Eram 41 cartazes, com os rostos e os nomes de 41 vinham aqueles que também foram sepultados no
pessoas suspeitas de estarem entre as ossadas analisa- cemitério e que, segundo os livros, tinham sido reinu-
das. Eles haviam sido xados ali pela equipe de ante- mados no mesmo local, embora escavações feitas nas
mortem, pesquisadores responsáveis por reunir infor- sepulturas individuais a eles atribuídas tenham falha-
mações sobre os desaparecidos suspeitos de terem sido do nas tentativas de localização. Hirohaki Torigoe
enterrados no cemitério de Perus e transferidos para a (enterrado com o nome de Massahiro Nakamura),
vala clandestina nos anos 1970. Quanto mais detalha- José Milton Barbosa (enterrado com o nome de Helio
das as informações, mais viável sua identi cação. José da Silva) e Luiz Hirata compunham esse segundo
A investigação combinava histórias de vida e grupo.
dados físicos. Interessava saber informações antropo- Havia, em seguida, um rol com sete pessoas que,
métricas, como altura, e o histórico de fraturas ósseas segundo relatos e testemunhos, desapareceram em São
do desaparecido. E também se ele zera parte do Paulo nos primeiros anos da década de 1970 e que
movimento estudantil ou de alguma organização arma- tinham sido vistas em centros de tortura ou presídios
da, se havia testemunhas de sua prisão ou tortura, se da cidade pouco antes de desaparecer: Abílio Clemen-
saíra alguma nota no jornal dizendo que ele havia te Filho, Aluísio Palhano, Aylton Mortati, Devanir José
morrido em tiroteio com a polícia ou sido atropelado de Carvalho, Edgar Aquino Duarte, Luiz Almeida
por um caminhão ao tentar fugir ao cerco policial. Araújo e Paulo Stuart Wright. Uma outra seção, maior
Os laudos produzidos no IML eram igualmente do que as outras e com menos chance de localização,
valiosos. Perfurações a bala no fêmur ou no esterno ou reunia dezenove desaparecidos que não foram vistos
indicações de afundamento de ossos na bacia ou no em nenhuma prisão nem estavam chados no IML,
crânio, tudo isso ajudaria na hora de comparar com os mas que teriam sumido em São Paulo ou teriam passa-
esqueletos em análise, um trabalho que parecia reco- do pela cidade naquele período.⁸
meçar da estaca zero, uma vez que a triagem e as chas Por m, nove nomes foram incluídos na lista de
feitas pela Unicamp careciam de rigor cientí co e procurados por solicitação de familiares. Seis deles
organização, tornando-as pouco úteis, conforme os eram de desaparecidos políticos relacionados na lei
novos peritos perceberam. 9.140/1995 – Itair José Veloso, Jayme Amorim de
Ao longo de todo o primeiro ano, pro ssionais Miranda, Joel Vasconcelos Santos, Jorge Leal Gonçal-
como os arqueólogos Márcia Hattori e Rafael Souza ves Pereira, omaz Antonio da Silva Meirelles Neto e
trabalharam nesse levantamento. O primeiro passo foi Vitor Luís Papandreu – e três não tinham qualquer
consultar os coletivos de familiares, os relatórios das histórico de militância política ou maiores detalhes
⁸¹São eles Ana Rosa Kucinski,
Davi Capistrano. Eduardo Comissões da Verdade, os dossiês de mortos e desapa- sobre seu desaparecimento: José Padilha Aguiar, Mar-
Collier Filho, Elson Costa, recidos publicados na década anterior e também as lene Rachid Papembrok e Olímpio de Carvalho. Uma
Fernando Santa Cruz, Heleny chas e os arquivos da Unicamp para chegar à lista de dessas pessoas, José Padilha, foi incluída na lista
Guariba, Hiram de Lima
41 pessoas procuradas. Entre essas, havia as mais pro- somente em 2014, quando o CAAF foi formado. Sua
Pereira, Hones no
Guimarães, Ieda Santos váveis e as menos prováveis. lha Vilma procurou a Secretaria de Direitos Huma-
Delgado, Isis Dias de Oliveira, O topo do ranking era formado pelos desapareci- nos quando soube que qualquer pessoa desaparecida
João Massena Melo, José dos políticos cujos nomes constavam dos livros do em São Paulo entre 1971 e 1974 poderia ter sido ocul-
Montenegro de Lima, José
Roman, Luís Ignácio Cemitério Dom Bosco como tendo sido exumados de tada na vala de Perus, e que os trabalhos de identi ca-
Maranhão Filho, Orlando da suas sepulturas entre 1975 e 1976 sem nenhuma refe- ção não eram restritos aos militantes políticos.
Silva Rosa Bonfim Júnior, rência aos locais de reinumação. Dimas Casemiro, — Meu pai sumiu em 1971 — contou. — A polícia
Paulo César Botelho Massa,
Grenaldo Jesus da Silva e Francisco José de Oliveira, disse para a minha mãe que ele deve ter fugido com
Paulo de Tarso, Celes no
Silva, Walter de Souza registrado no livro de entrada com o nome falso de outra mulher e cou por isso mesmo.
Ribeiro Silva. Dario Marcondes, integravam esse grupo. Em seguida Padilha foi incorporado ao rol de desaparecidos

171
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

procurados e sua lha foi entrevistada pela equipe de cunhado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, chefe
ante-mortem do CAAF. A busca por seu paradeiro do Dops, devido à obediência canina desses colabora-
incluiu tratativas com a Secretaria de Segurança Públi- dores, sobretudo daqueles que mudavam de lado e,
ca do Paraná, onde seu documento de identidade tinha como in ltrados, passavam a delatar antigos compa-
sido emitido, e consultas ao IML e ao Arquivo Público nheiros.
do Estado de São Paulo. Buscando as chas de mortos Foi o psiquiatra Amilcar Lobo, médico que auxili-
desconhecidos e não reclamados compatíveis com a ava nas sessões de tortura na Casa da Morte, o primeiro
data do desaparecimento e comparando os dados a relatar o fuzilamento de Papandreu e a revelar sua
físicos anotados no IML com as imagens e informa- participação na captura de guerrilheiros. “Era um
ções oferecidas pelos familiares, a equipe do CAAF rapaz jovem, de estatura alta, magro, de cabelos claros”,
conseguiu con rmar: o pai de Vilma tinha sido atrope- narrou em suas memórias, publicadas em 1989. “Ou-
lado por um trem e enterrado como indigente em ço-o, observo-o e conversamos longamente. Constato
Perus em 1971. Como não foi possível con rmar se seu que ele realmente apresenta ideias delirantes. (...) O
corpo teria ido para a vala clandestina, sua cha segue major, no entanto, o chama por um nome que soa aos
na lista de procurados com possibilidade de associa- meus ouvidos como 'Papaleo' e este rapaz o atende
ção genética. prontamente. (...) Sampaio (o major) me diz que den-
Embora ainda não tenha sido possível entregar a tro de pouco tempo este rapaz deveria ir a Goiás
Vilma os remanescentes ósseos de seu pai, o GTP con- conhecer outros subversivos de uma outra organiza-
seguiu desempenhar, neste episódio, um primeiro ção comunista. Digo-lhe que, provavelmente, nesse
gesto signi cativo de reparação história e cidadania curto espaço de tempo, o preso não teria condições de
oferecendo uma resposta o cial que, por quase cin- viajar”. O major Sampaio o teria alvejado com um tiro
quenta anos, o Estado não conseguira – ou não tentara na cabeça em seguida.
– dar à família de Padilha. Não, ele não tinha fugido Após contar que muitos companheiros teriam
com outra mulher. sido delatados e mortos por causa dele, Suzana conse-
Após a consolidação da lista com os 41 desapareci- guiu que o retrato de Papandreu fosse retirado da pare-
dos, surgiu a ideia de xar cartazes com os rostos e os de.
nomes de todos eles na parede. Uma forma de lembrar, Em 2017, um último nome foi incluído na lista de
diariamente, o motivo pelo qual estavam ali. Uma desaparecidos procurados pelo CAAF nas ossadas de
maneira de rea rmar, a cada segunda-feira, a razão Perus. Somavam, agora, 42 pessoas, das quais 41 segui-
pela qual trabalhavam naquelas análises. am expostas na parede. João Maria Ximenes militava
Logo a galeria dos desaparecidos gerou um prime- no Partido Comunista Brasileiro e cursava economia
iro impasse, um primeiro episódio de tensão. Em visita na PUC de São Paulo quando desapareceu, em 1974.
ao CAAF, Suzana Lisbôa notou que um dos retratos era Seu caso foi investigado pela Comissão da Verdade da
do cabo do Exército Vitor Luiz Papandreu, fuzilado na PUC e levado ao CAAF pela ex-presa política Rosalina
Casa da Morte, em Petrópolis, em 1971. Espantou-se: Santa Cruz, professora daquela universidade e mem-
— Esse cara era um cachorro. O que seu retrato bro da Comissão.
está fazendo aqui?
Cachorro era uma gíria usada pelos integrantes do ***
aparato repressivo para se referir ao informante que
não era funcionário do sistema de informação, mas Não havia um dia em que Aline não olhava para
que passava a colaborar em troca de informação, mas aqueles rostos antes de vestir as luvas e dar início ao
que passava a colaborar em troca de benefícios pessoa- trabalho. Era uma espécie de deferência, um olhar
is ou para que cessassem as torturas. O termo teria sido respeitoso, um pedido de licença.

172
A retomada

No início de 2015, Aline Feitoza era uma das doze CAAF pôde reunir todas as 1.046 caixas e dar sequên-
pessoas que trabalhavam diariamente no CAAF. Sua cia aos procedimentos de limpeza e análise das ossadas
função, juntamente com outras antropólogas, arqueó- que haviam passado uma temporada no MPF. A última
logas e estagiários do curso de História, era abrir as caixa seria aberta em dezembro de 2019.
caixas trazidas do Araçá, higienizar os ossos e depurá- Na investigação post-mortem, o mais importante
los para que outra pro ssional, em seguida, cuidasse era anotar com precisão e rigor cada detalhe dos
de analisá-los: quais ossos havia na caixa e quais esta- esqueletos, uma caixa de cada vez. As anotações iriam
vam faltando, qual o sexo e a idade presumida daquele corroborar a planilha das compatibilidades. Qual
indivíduo, se havia mais de um indivíduo ali, se algum ossada poderia ser de Dimas Casemiro, um homem
osso havia sido ferido por fratura ou arma de fogo, se branco, de 25 anos e 1,80 metro? Qual poderia ser de
havia alguma especi cidade na dentição. Ainda Luiz Hirata ou de Heleny Guariba? Numa etapa poste-
naquele semestre, Aline passaria a se ocupar dessa rior, amostras das ossadas compatíveis seriam encami-
outra etapa. Enquanto Márcia Hattori e outros pro s- nhadas para análise genética juntamente com amos-
sionais cuidavam do ante-mortem, Aline integrava o tras de sangue de possíveis familiares.
grupo de post-mortem. Já em 2014, cara estabelecido que todas as caixas
Os trabalhos de limpeza e análises das ossadas se seriam abertas e todas as ossadas seriam periciadas,
estenderam por muito mais tempo do que o previsto. sem exceção. Essa orientação viria a provocar a prime-
As primeiras reportagens publicadas na imprensa ira cisão no comitê cientí co do Grupo de Trabalho
informavam que triagem e catalogação estariam Perus. Sob coordenação do médico legista Samuel
encerradas um ano após o início dos trabalhos. Em Ferreira, vinculado à Secretaria Nacional de Seguran-
meados de 2015, no entanto, os ossos das primeiras ça Pública e à Polícia Cientí ca de Brasília, o comitê
433 caixas ainda estavam em estudo. Ao mesmo tem- cientí co lograra juntar peritos da Equipe Argentina
po, a reforma na sede do CAAF ainda não havia termi- de Antropologia Forense, sob a coordenação de Luis
nado, o que impedia o transporte de todas as ossadas Fondebrider, e peritos da Equipe Peruana de Antropo-
para lá. logia Forense, coordenada por José Pablo Baraybar.
A permanência do material no ossário geral do Com ampla experiência internacional, esses pro ssio-
cemitério do Araçá provocava calafrios nos familiares nais assumiram a tarefa de implementar os protocolos
e nas entidades de direitos humanos. O atentado à a serem seguidos na Unifesp e formar os pro ssionais
instalação de Celso Sim e Anna Ferrari caminhava brasileiros que tocariam o barco durante o tempo
para completar dois anos quando o Ministério Público necessário para a conclusão dos trabalhos, estimado
Federal, por intermédio da procuradora Eugênia Gon- inicialmente em três anos e mais tarde redimensiona-
zaga, agora à frente da Comissão Especial sobre Mor- do para terminar em 2022.
tos e Desaparecidos Políticos da Presidência da Repú- Os argentinos eram velhos conhecidos dos famili-
blica, conseguiu emplacar uma solução provisória. ares de mortos e desaparecidos no Brasil. Fondebrider,
No dia 15 de agosto, devidamente escoltadas por pioneiro da antropologia forense na América do Sul,
agentes da Guarda Civil Metropolitana, as caixas que estivera na abertura da vala de Perus em 1990 e por
ainda estavam no Araçá foram transferidas para uma mais de uma ocasião pôde acompanhar etapas distin-
sala-cofre no prédio da Procuradoria Regional da tas das tentativas de identi cação ocorridas nos anos
República da 3ª Região, na Avenida Brigadeiro Luís que se seguiram à abertura. Mais recentemente, a equi-
Antônio. Agora sob a custódia do Ministério Público pe argentina tivera a oportunidade de analisar as ossa-
Federal, as caixas cariam num ambiente com tempe- das retiradas do Araçá com suspeita de pertencerem
ratura adequada e com segurança 24 horas. Somente ao desaparecido Hiroaki Torigoe e elaborara um rela-
em meados de 2016, concluída a ampliação da sede, o tório demolidor, reduzindo a pó as chas produzidas

173
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

na Unicamp nos anos 1990. Já os peruanos haviam se mente discutido por aqueles de nós que participaram
destacado no cenário mundial por trabalhos de identi- do projeto, baseia-se em nosso desacordo com a forma
cação realizados para o Tribunal Penal Internacional como foi decidido conduzir a investigação”, dizia a
nas regiões das guerras da Bósnia, Croácia e Kosovo, carta assinada pela perita Patricia Bernardi. “Sempre
também nos anos 1990. entendemos que o projeto original era tentar determi-
Ainda em 2014, argentinos e peruanos começa- nar se entre os remanescentes de Perus havia alguns
ram a discordar quanto à metodologia a ser adotada no dos que desapareceram por motivos políticos durante
âmbito do GTP. Grosso modo, os argentinos entendi- a última ditadura militar no Brasil. Essa ideia original
am que era preciso priorizar as ossadas compatíveis transformou-se em uma análise muito mais ampla, o
com os desaparecidos políticos, procurados pelos que implica tentar analisar todos os esqueletos, consi-
familiares desde os anos 1970. Neste sentido, sugeriam derando que todos os restos mortais correspondem a
deixar temporariamente de lado as ossadas que não pessoas não identi cadas, independentemente das
fossem compatíveis com os militantes políticos busca- motivações de seu desaparecimento”.
dos. Segundo esta abordagem, os peritos não deveriam Superado o desfalque, os trabalhos se mantiveram
perder tempo com esqueletos de crianças ou de pesso- da forma como fora acordado: um processo lento e
as com idade presumida de mais de 50 anos, por exem- exaustivo que, em setembro de 2017, resultou num
plo, uma vez que não havia crianças nem pessoas com primeiro lote de 100 amostras ósseas encaminhadas
mais de 50 entre os desaparecidos listados. para análise genética juntamente com 77 amostras de
Já os peruanos faziam coro com as recomendações sangue colhidas de familiares de 33 desaparecidos. Um
feitas pelo Estado brasileiro e pela Prefeitura de São segundo lote seria encaminhado em setembro do ano
Paulo no sentido de investigar e classi car todas as seguinte. Até 2019, três outros lotes totalizariam 750
ossadas. O que embasava essa abordagem era o enten- amostras com fragmentos ósseos enviadas para se
dimento de que a violência de Estado vitimara todas veri car a compatibilidade genética com as amostras
essas pessoas e que, neste sentido, todo desapareci- de sangue.
mento era político, fosse ele provocado por uma políti- Coordenador do comitê cientí co do CAAF,
ca de genocídio que estimulava a truculência policial Samuel diz ter viajado mais de 40 mil quilômetros para
ou a atuação de grupos paramilitares, fosse por meio colher amostras de sangue de irmãos e irmãs, lhos e
da perseguição a opositores da ditadura. lhas, uma ou outra mãe de desaparecido, não somen-
O objetivo deste grupo, ao qual os peruanos aderi- te em São Paulo e no interior do Estado, mas também
ram, era construir um banco de dados sobre as ossadas no Rio de Janeiro e em Estados como Minas Gerais,
que permitisse a qualquer pessoa procurar seu familiar Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte e Rio
desaparecido, desde que o desaparecimento tenha Grande do Sul. Os donos das 1.046 ossadas poderiam
ocorrido em São Paulo entre 1971, ano da inauguração estar em todos esses lugares.
do cemitério, e 1976, ano da exumação em massa e da Médico legista e geneticista forense vinculado à
reinumação das mais de mil ossadas na vala clandesti- Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e à
na. Casos como o de Vilma, que poderiam recorrer ao polícia cientí ca em Brasília, Samuel quis ir pessoal-
CAAF para localizar seu pai José Padilha, só seriam mente a cada encontro com familiares para coletar
possíveis se houvesse essa amplitude no universo das material. Em cada local, uma oportunidade de conhe-
análises. cer mais detalhes sobre a história de vida dos desapare-
Em dezembro de 2014, apenas três meses após a cidos procurados e restabelecer um vínculo de con -
inauguração o cial do CAAF, os membros da EAAF se ança que, para muitos familiares, havia se esgarçado ao
retiraram com um e-mail de despedida enviado aos longo das quase três décadas de negligência e omissão.
membros do GTP. “O motivo de tal decisão, ampla- Na ausência de um laboratório no Brasil apto a

174
A retomada

realizar um número tão grande de análises sem com- etapas ante-mortem e post-mortem e veri car se, além
prometer as demandas do dia a dia, razão pela qual do DNA, também as características dos ossos eram de
seria inviável aproveitar a estrutura do IML ou de fato compatíveis. Sexo, idade presumida, altura, tudo
outro endereço relacionado aos órgãos de segurança batia. Os dentes perfeitos, preservados. Cotejaram,
pública, foi rmado um convênio com a Comissão então as informações referentes ao exame necroscópi-
Internacional para Pessoas Desaparecidas, ICMP na co. Quatro perfurações causadas por arma de fogo, um
sigla em inglês, um centro de análises genéticas sem dos projéteis alojado na coxa direita. Haveria alguma
ns lucrativos estabelecido pela ONU em Sarajevo, na marca no fêmur compatível com um ferimento a bala?
Bósnia, com o objetivo original de analisar remanes- Sim, havia.
centes do con ito na ex-Iugoslávia. Dimas era irmão de Denis Casemiro, o primeiro
Em 14 de setembro de 2017, um marco nas ativida- desaparecido identi cado nas ossadas exumadas da
des do GTP, Samuel desembarcou pessoalmente em vala clandestina de Perus. Amostras extraídas de seu
Sarajevo para levar as 100 amostras ao ICMP. O prime- esqueleto tinham sido encaminhadas ao laboratório
iro lote foi entregue ao diretor de Ciência e Tecnologia no Leste Europeu ainda em setembro de 2017, no pri-
do Instituto, omas Parsons. A convite da CEMDP, meiro lote enviado pela Comissão Especial sobre Mor-
Helder Nasser o acompanhou na viagem. Nasser é tos e Desaparecidos Políticos.
sobrinho de Edgar Aquino Duarte, desaparecido em Na mesma semana do anúncio, Samuel viajou a
1973, um dos suspeitos de estarem na vala. Votuporanga, no interior de São Paulo, para levar a
documentação referente à identi cação pelo ICMP e
*** também pelo CAAF. A entrega da urna com os rema-
nescentes ósseos foi agendada para o segundo semes-
— Sr. Fabiano Casemiro? tre. Em 30 de agosto, Dia Internacional das Vítimas de
— Sim. Quem está falando? Desaparecimento Forçado, os restos mortais de Dimas
— Meu nome é Eugênia Gonzaga. Sou procurado- Casemiro foram sepultados no cemitério de Votupo-
ra da República e presidente da Comissão Especial ranga.
sobre Mortos e Desaparecidos. Estou ao lado do Samu- Fabiano tinha apenas 4 anos quando o pai foi mor-
el Ferreira, que é o coordenador cientí co da Comis- to, aos 25 anos, em 1971. Em 2015, Fabiano fora pesso-
são. Estamos ligando para você em nome do Grupo de almente à Vila Mariana para responder a algumas
Trabalho Perus. questões e deixar uma amostra de sangue com os peri-
— Pois não. tos. Desde então, não chegara a nutrir expectativas
— Fabiano, este telefonema é para con rmar a reais de que a ossada do pai seria encontrada. “Hoje,
identi cação dos remanescentes ósseos do teu pai, após 47 anos, os restos mortais de meu pai retornam a
Dimas Antônio Casemiro. Foi con rmada a compati- Votuporanga”, declarou por ocasião do sepultamento.
bilidade genética entre o material que recolhemos com “Termina aqui uma parte da história da nossa família.
o senhor e seus tios e uma das ossadas enviadas para o Longe de ser um momento triste, mas sim o fechamen-
laboratório do ICMP, em Sarajevo. to de um longo ciclo”.
O telefonema foi feito em 19 de fevereiro de 2018, Em 3 de dezembro, outra notícia alvissareira: uma
uma segunda-feira. Na sexta-feira anterior, dia 16, a segunda ossada de Perus fora identi cada em Sarajevo.
equipe do CAAF fora surpreendida com o resultado Desta vez, o material pertencia a Aluísio Palhano,
positivo encaminhado pelo laboratório da Bósnia. bancário e sindicalista, militante da Vanguarda Popu-
Seguindo o protocolo, a equipe reabriu a caixa das lar Revolucionária delatado pelo agente in ltrado
ossadas para comparar o material ali armazenado com Cabo Anselmo e torturado até a morte no DOI-Codi,
todo o prontuário de Dimas Casemiro elaborado nas aos 48 anos, em 1972.

175
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

Palhano não estava na lista dos mais prováveis, o ***


que fazia aumentar a surpresa pela revelação. Seu
nome, verdadeiro ou falso, jamais tinha sido localizado Em 4 de setembro de 2020, quando a revelação da
nos livros do Cemitério Dom Bosco. Seus restos morta- vala de Perus completou 30 anos, nenhuma caixa com
is eram procurados porque havia fortes indícios de que remanescentes ósseos aguardava para ser analisada.
ele teria sido morto em São Paulo num centro de tortu- Todas elas haviam passado pelas etapas de limpeza,
ra, o que aumentava exponencialmente a chance de ser lavagem, secagem e perícia. Um último lote com 150
enterrado em Perus e, anos depois, integrado a vala ossadas aguardava para que fossem extraídos frag-
clandestina. mentos e encaminhados ao ICMP.
No CAAF, repetiu-se mais ou menos a mesma Agora, o laboratório de genética forense já não
sequência da identi cação de Dimas. Assim que che- cava em Sarajevo, na Bósnia, mas em Haia, na Holan-
gou a informação do match genético, jargão empregado da. De lá, também era esperado um último relatório
para con rmar a compatibilidade entre a amostra óssea com uma espécie de reanálise de aproximadamente
do esqueleto e a amostra de sangue do familiar, o mate- 20% dos casos analisados anteriormente, aqueles que
rial reunido na caixa atribuída a Palhano foi disposto se mostraram inconclusos porque não fora possível
sobre a bancada no número 168 da Rua Joaquim Távo- extrair material genético su ciente.
ra. Hora de fazer a contraprova. Na Vila Mariana, o próximo passo seria iniciar as
Uma característica importante relatada por famili- análises das caixas com misturas ósseas. Para esta
ares era certa anomalia no braço esquerdo. Ninguém etapa, seria necessário estabelecer um novo protocolo
sabia direito se era uma fratura mal regenerada ou se e uma nova fase de formação, uma vez que os peritos
uma doença degenerativa no cotovelo. O que sabiam é brasileiros não detinham a técnica necessária. Cerca
que ele tinha di culdade para dobrar o braço e que, em de 26% das caixas, segundo estimativa de Samuel Fer-
razão disso, costumava escondê-lo nas fotogra as. reira, continham as tais misturas, ou seja, ossos de
Decidiram se demorar mais um pouco entre o úmero e mais de um indivíduo, o que iria exigir ao menos mais
o rádio e não deu outra: uma deformação óssea era um ano inteiro de perícia.
visível exatamente na região do cotovelo. Todo o resto O atraso no cronograma era patente e tinha sido
também conferia. potencializado em razão da suspensão das atividades
Márcia, lha de Palhano, foi quem recebeu o presenciais, tanto na Holanda quanto no Brasil, decor-
telefonema de Eugênia e Samuel. Ao longo de três déca- rente da pandemia do novo coronavírus. De fato, o
das, desde 1975, quem tivera maior engajamento na universo parecia conspirar contra os trabalhos de
busca por respostas sobre a morte e a ocultação do análise e identi cação desde meados do ano anterior.
cadáver de Palhano tinha sido sua cunhada, Branca Da mesma forma como o m da gestão Erundina, em
Eloysa, militante do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio São Paulo, e sua substituição por Maluf, em 1993, con-
de Janeiro. Branca morrera em abril, dez meses antes da tribuíra para o abandono gradual dos trabalhos de
identi cação. identi cação das ossadas, a ascensão de Bolsonaro ao
Os restos mortais de Palhano não foram sepultados Governo Federal impingira alguns obstáculos aos
logo após a identi cação. Como seu esqueleto estava trabalhos que vinham sendo desenvolvidos pelo GTP
armazenado numa caixa sem crânio, a família optou junto à Unifesp.
por aguardar a conclusão dos trabalhos de perícia nas Um primeiro abalo importante aconteceu em 11
ossadas de Perus na expectativa de que o crânio fosse de abril de 2019, quando um decreto assinado pelo
localizado na etapa de reassociação das misturas ósseas. presidente da República extinguiu o GTP. Em seguida,
Era sabido que, da mesma forma que algumas caixas no dia 1o de agosto, a procuradora Eugênia Gonzaga foi
não tinham crânio, outras guardavam cinco ou seis. exonerada da presidência daCEMDP e substituída por

176
A retomada

um advogado que, nas redes sociais, havia celebrado o transportar todas as ossadas para Brasília, mesmo que
aniversário da “revolução de 1964”. Numa de suas utilizando-se uma aeronave da Aeronáutica.
primeiras declarações públicas após assumir o cargo, Se os trabalhos haviam sobrevivido a 2018 e a
Marco Vinícius Pereira de Carvalho prometeu rever as 2019, isso se dera em razão de dois elementos principa-
prioridades da comissão de modo a buscar “celeridade is: a existência de uma condenação judicial que obriga
e economicidade”, conforme expressão usada por ele. a União a envidar os esforços necessários para identi -
A busca por desaparecidos políticos, em Perus ou car as ossadas e o esforço incansável dos familiares de
no Araguaia, cou, naturalmente, sob a mira da nova mortos e desaparecidos e dos ativistas por memória,
gestão. O trabalho referente à guerrilha do Araguaia, verdade e justiça, que, ao longo de 50 anos de luta para
segundo Marco Vinícius, a despeito de estar em fase de conhecer o paradeiro dos desaparecidos, não deixa-
cumprimento de sentença da Corte Interamericana de ram a peteca cair.
Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros, Trinta anos após a revelação da vala de Perus, a
“trata-se de algo impossível ou de extrema di culdade busca pela identi cação dos restos mortais de mais de
dadas as várias expedições infrutíferas e o dispêndio mil pessoas desaparecidas e ocultadas pela ditadura
de milhares de reais para o referido trabalho, que não militar caminhava para uma esperada conclusão,
tem alcançado muito sucesso”. Sobre as ossadas do prevista para acontecer em 2022. Entre os legados
Cemitério Dom Bosco, Marco Vinícius declarou que o deixados por essa busca está, hoje, a transferência de
“dispêndio previsto com envio de ossadas para análise conhecimento cientí co e a implantação de um centro
de DNA até o laboratório em Haia, na Holanda, consu- de antropologia e arqueologia forense numa institui-
mirá dos cofres públicos mais de US$ 520 mil”. Um ção de ensino superior – público, gratuito e de qualida-
despropósito, segundo ele, uma vez que, “de acordo de – que deverá permanecer mesmo após a conclusão
com informações prestadas pela coordenação geral, das análises dessas ossadas.
até hoje só foram identi cadas duas pessoas do cemité- Num futuro nada distante, essa estrutura e esse
rio de Perus”. conhecimento poderão ser aproveitados para novos
Em novembro, por orientação do presidente da trabalhos de antropologia forense, a começar pela
comissão, foi feita uma proposta para descontinuar os necessária análise das ossadas exumadas na região do
trabalhos na Unifesp e transferir as ossadas para o Araguaia e que, a despeito da condenação do Brasil
Instituto de DNA da Polícia Civil do Distrito Federal, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos,
onde seriam periciadas pelas equipes da polícia cientí- ainda não foram submetidas ao devido processo de
ca. Da mesma maneira, sugeriu-se não mais encami- perícia e identi cação. Também poderão ser utilizados
nhar material para análise genética em Haia sob o para o estudo de casos de desaparecimento forçado e
argumento de que era possível fazer o mesmo serviço outras modalidades de violência de Estado na atuali-
no Brasil. A proposta foi rechaçada pela procuradora dade, como já foi feito, em 2016, num projeto da Uni-
da República Lisiane Braecher, responsável por acom- fesp que investigou a truculência da polícia militar nos
panhar e garantir o cumprimento da sentença, pelo crimes de maio de 2006 a partir de análise de docu-
juiz Eurico Zecchin Maiolino, pelos familiares de mentos de perícia de 60 jovens mortos na Baixada
mortos e desaparecidos e pela Prefeitura de São Paulo. Santista.
Observou-se, ainda, que a alternativa proposta não Ainda em setembro de 2020, um acordo rmado
reduziria custos, uma vez que não considerava os gas- entre Ministério Público Federal, Ministério Público
tos xos com infraestrutura e imóvel, servidores da Estadual de São Paulo e Ministério Público do Traba-
Unifesp disponibilizados para o trabalho no CAAF lho com a multinacional automobilística Volkswagen
sem representar gastos adicionais ao Erário ou os cus- em decorrência de ação civil pública perpetrada con-
tos em combustível e hora de trabalho necessários para tra a montadora por sua colaboração sistemática com

177
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

práticas de perseguição e tortura, dentro e fora da


fábrica, durante os anos 1970, garantiu uma doação de
R$ 2,5 milhões da multinacional para as atividades de
análise e identi cação nas ossadas de Perus. Em tese, o
valor é su ciente para a nalização dos trabalhos.
Finalmente, um relatório produzido no âmbito do
CAAF em abril de 2020 e juntado ao processo de ação
conciliatória, portanto público, listou como uma de
suas ações prioritárias para o período imediatamente
posterior à fase de isolamento social dar seguimento
ao protocolo de identi cação aplicando-o sobre uma
das caixas. Segundo o documento, existia um “relató-
rio do ICMP con rmando o match genético”, e caberia
aos peritos “seguir aplicação do protocolo de identi -
cação, o que inclui: abertura da caixa, comparação com
o arquivo ante-mortem e fazer a revisão do caso”.
No nal de 2020, portanto, tudo indicava haver
mais um desaparecido em vias de ser identi cado. A
compatibilidade genética fora indicada pelo laborató-
rio em Haia. Os passos seguintes seriam tirar nova-
mente o esqueleto da caixa e veri car sua compatibili-
dade com as informações colhidas na investigação
ante-mortem e post-mortem. Ou seja, essa caixa talvez
viesse a revelar a identidade de uma pessoa que, como
tantas outras, foi vítima dos crimes de desaparecimen-
to forçado e ocultação de cadáveres praticados por um
Estado que ainda mata, e muito, no Brasil.

178
Direito à iden dade: cenas de uma história por fechar
Carla Borges⁸²
Clara Castellano⁸³

Eram meados de 1987 quando ele se embrenhou

FOTO: DOUGLAS MANSUR


nos arquivos do Instituto Médico Legal (IML) farejando
pistas que lhe permitiriam denunciar a política de
extermínio praticada, desde 1970, pela Polícia Militar
de São Paulo. O jornalista Caco Barcellos fez porque fez
até se tornar ele próprio invisível, misturando-se aos
servidores do IML enquanto vasculhava laudos necros-
cópicos que indicavam padrões na abordagem e nos
disparos contra jovens das periferias: tiros de cima para
baixo, à queima-roupa, contra a nuca ou as costas, as
vítimas já rendidas, com as mãos atadas. Mais de mil caixas com ossos re rados da vala de Perus aguarda-
Foi para cumprir o papel de força auxiliar do Exér- vam a transferência do ossário geral do Cemitério do Araçá, em
Pinheiros, para a Unifesp, em 2016
cito Brasileiro que um decreto-lei federal de dezembro
determinou a uni cação e a militarização das polícias
estaduais a partir de 1970. Naquele mesmo ano – gover- Não por acaso, foi farejando a letra “T”, de “terroris-
no Médici, auge da repressão –, foi criada a Polícia Mili- ta”, rabiscada em papéis da perícia, que Caco encontrou
tar de São Paulo, resultado da fusão da Força Pública a vala comum criada no Cemitério de Perus para ocul-
com a Guarda Civil, e criado o batalhão de elite da polí- tar identidades. Não só corpos, mas identidades. Cada
cia paulista: as Rondas Ostensivas Tobias Aguiar. uma das 1.049 ossadas atiradas ao esquecimento num
Os agentes da Rota, como a tropa cou conhecida, buraco escavado na terra carregava histórias de vida,
tinham uma característica especial: eles atiravam para ancestralidades e sonhos que foram deliberadamente
matar. Uma das unidades, a de número 66, cou especi- apagados. Uns por lutarem contra o autoritarismo,
⁸²Carla Borges foi
coordenadora de Direito à
almente famosa no nal dos anos 1970 após perseguir e outros por motivações higienistas, um terceiro grupo
Memória e à Verdade da chacinar, por equívoco, três jovens da elite paulistana. O para camu ar estatísticas de uma epidemia, e sabe-se lá
Secretaria Municipal de episódio suscitou as primeiras críticas à abordagem mais por quê.
Direitos Humanos e truculenta da PM de São Paulo e inspirou o título do O direito à identidade é um direito que não se esgo-
Cidadania da Prefeitura de
São Paulo (SMDHC) entre livro publicado por Caco Barcellos em 1992, Rota 66: a ta com o m da vida. É uma espécie de direito post
2013 e 2016. história da polícia que mata. Até então, a Rota era sinô- mortem, que ainda não existe em nosso ordenamento
⁸³Clara Castellano foi nimo de rigor e controle, enaltecida pelos ditadores, jurídico, mas que embala e toni ca a luta das famílias de
coordenadora-adjunta de
sobretudo nos anos 1970, a década dos desaparecimen- quem desapareceu. Um direito permanentemente vio-
Direito à Memória e à
Verdade da SMDHC de 2013 tos políticos e dos desaparecimentos massivos da popu- lado enquanto não se faz presente o corpo para que seja
a 2016. lação periférica. Pela mesma mão armada do Estado. velado e sepultado entre os seus. Um direito tão antigo

179
quanto Antígona. Um luto não encerrado, arrastado e pergunta até hoje sem resposta de nitiva: onde estão os
latejante. nossos desaparecidos?
Ali, naquela vala, a trajetória dos que se opuseram à Se, por um lado, não era difícil entender por que
ditadura se cruza com a de jovens pobres, provavelmen- não foi possível encontrar a vala clandestina antes da
te negros, que o Estado preferiu chamar de bandidos e reabertura política, no nal dos anos 1980, por outro,
exterminar. Seja por ousarem lutar pela democracia, ninguém sabia explicar os 23 anos de suposta democra-
seja pelo racismo institucional que desde sempre marca cia sem que a análise das ossadas fosse concluída, apesar
nossa história, foram todos parar naquele lugar – ou da incessante demanda dos familiares e das reiteradas
melhor, um não lugar – que os ditadores pretendiam tentativas do Ministério Público Federal, que culmina-
apagar dos livros e que seus seguidores até hoje insistem ram em duas ações civis no nal dos anos 1990.
em sufocar. O caso parecia um enigma indecifrável: quem
Independentemente do motivo (ou do argumento falhasse em resolvê-lo caria para sempre marcado. O
utilizado), não são sempre políticos os desaparecimen- que fazia das tentativas de identi cação quase um tabu
tos provocados por um Estado que decide matar e entre gestões de direita e de esquerda que se intercala-
esconder aqueles que incomodam? Para o desconforto ram no governo municipal? Falta de vontade política?
dos repressores e a ruína dos que negam, omitem, aco- De recursos? Descontinuidade entre mandatos? Per-
bertam, “os crimes contra a liberdade serão sempre manência das forças ocultas que ainda tentam fazer
descobertos”, conforme as palavras gravadas no memo- valer as velhas versões o ciais?
rial construído no local da vala. Para desatar os nós, é preciso compreender os
arranjos institucionais. Em 1995, com a criação da
Desatando os nós Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polí-
2013. O recém-empossado prefeito Fernando Had- ticos (CEMDP), a responsabilidade pela localização e
dad, o secretário municipal de Direitos Humanos e identi cação de pessoas desaparecidas durante a dita-
Cidadania (SMDHC), Rogério Sottili, a ministra-chefe dura militar passou à esfera federal. Isso quer dizer que
da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), Maria do não bastaria a Prefeitura rmar um acordo com uma
Rosário, e o presidente da Comissão Especial sobre universidade, como fez Luíza Erundina com a Unicamp
Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), Marco em 1990, para que a retomada fosse possível. Agora, era
Antônio Rodrigues Barbosa, recebem ex-presos e fami- necessário implicar o governo federal.
liares de mortos e desaparecidos políticos, acompanha- Por outro lado, a CEMDP não tinha condições de
dos de outros militantes pelo direito à memória, à ver- conduzir as investigações sem um aliado local com
dade e à justiça. capacidade de acompanhar os avanços de perto. E que
Em audiência, os resistentes denunciam a colabo- estivesse disposto a lidar com o passivo histórico de ter
ração do poder executivo municipal com o aparato criado uma vala comum em seu quintal e que ainda
repressivo nesta cidade, que concentra quase um quarto guardava as ossadas literalmente no armário – no caso,
das pessoas mortas pela ditadura militar em todo o o ossário-geral do Cemitério do Araçá. Ou seja, era
Brasil. Esperam ações efetivas. Atrasadas. Formam uma necessária uma parceria bem amarrada entre governos
voz única a cobrar a retomada das tentativas de identi - federal e municipal, viabilizada em 2013.
cação dos remanescentes ósseos encontrados mais de Outra razão que permitiu a retomada das análises
vinte anos antes no Cemitério Dom Bosco. Incansáveis. das ossadas por parte da gestão Haddad foi a conjuntura
Pedem também medidas emergenciais para garan- política, mais favorável ao tema desde a aprovação do
tir a preservação das ossadas, que desde 2001 permane- Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, em
ciam abandonadas no Cemitério do Araçá, à espera de 2009, que transformou o direito à memória, à verdade e
que uma nova equipe fosse designada para responder à à justiça em prioridade do Estado. O PNDH-3 pavi-

180
FOTO: CARLA BORGES
Em 2015, não havia na Unifesp, tampouco em São Paulo, profissionais capacitados para assumir a tarefa de analisar as ossadas de modo a
inves gar não apenas os restos mortais, mas também a vida pregressa das pessoas que poderiam estar ali. Antropólogos forenses da
Argen na e do Peru vieram formar, in loco, os primeiros peritos.

mentou a instalação da Comissão Nacional da Verdade das mais altas autoridades – o que é, em si, raríssimo –
dois anos depois, com a missão de apurar os crimes faltam maturidade institucional e expertise administra-
cometidos pela ditadura – passo indispensável para tiva para fazer face às especi cidades que acompanham
qualquer país que pretenda avançar rumo a uma demo- qualquer violação de direitos.
cracia plena. Dali em diante, mais de cem comissões Mais que isso, era preciso sair do discurso e colocar
semelhantes se multiplicaram pelo país, colocando o em prática a ideia da participação social como instru-
tema na ordem do dia e gerando um clima propício ao mento de gestão: envolver a sociedade civil, que não é
surgimento de novas peças desse quebra-cabeça do qual nem deve ser necessariamente consensual; negociar, e
o caso Perus é emblemático. Era tempo de avançar a muito; exigir responsabilização de entidades de dife-
passos largos, ainda que lentos. rentes naturezas – poder público, sociedade civil, aca-
A lentidão decorrente das inúmeras di culdades demia – e esferas – municipal, estadual, federal; com-
burocráticas também ajuda a explicar a hesitação das prar diversas brigas, internas e externas; arranjar recur-
gestões anteriores em retomar o tema, ou, em outras sos e, o mais difícil, executá-los. Em miúdos, era neces-
palavras, em “mexer nesse vespeiro”, como alguns dizi- sário muito suor e saliva para destravar a roda e mantê-
am. A sensação permanente era a de que a máquina la girando até o nal. Fato é que, infelizmente, não são
pública brasileira, seja em qualquer esfera, não estava e muitos os verdadeiramente dispostos a correr esse risco
não está preparada para responder com a urgência político. É preciso coragem e uma boa dose de teimosia
necessária aos desa os impostos pelos direitos huma- para não desistir, assim como nunca desistiram os fami-
nos. Ainda quando há vontade política e compromisso liares e ex-presos políticos em busca dos desaparecidos.

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Olhando de frente para trás, quando tudo ca mais
Em 2018, uma celebração: quase três
nítido, é possível a rmar que a criação do Grupo de
Trabalho do Caso Perus (GTP) por parte de diferentes anos e meio após a criação do GTP, a
entes do Estado se deveu basicamente ao fator humano. primeira iden ficação de um
Além do lado pro ssional, foi preciso muita militância e desaparecido polí co: Dimas Antônio
paixão. O caso Perus exigiu o envolvimento pessoal de Casemiro
todos, não apenas das famílias, cuja dedicação já era
uma constante. As instituições, no fundo, são pessoas cionantes legais do país de modo que as possíveis iden-
com histórias, visões, crenças e ideais, e essa variável é ti cações fossem consideradas válidas? Foi assim que a
decisiva em casos como este. É preciso brilho nos olhos Unifesp chegou para compor a estrutura tripartite desse
para fazer o que parece impossível. Nós sabíamos que complexo arranjo institucional chamado GTP.
era um tema que nos antecedia e que iria nos suceder. O resultado das longas reuniões foi a construção de
Mas era preciso tentar. Recomeçar – e com urgência. As protocolos de identi cação especí cos para o caso por
famílias e o Brasil têm pressa. Desa o aceito. parte da equipe peruana em diálogo com a equipe
argentina de antropologia forense e a criação de um
Um arranjo institucional inédito comitê cientí co multidisciplinar formado por antro-
O primeiro passo foi interromper o processo de pólogos, arqueólogos, bioantropólogos, geneticistas e
in ltração que tinha tomado o ossário geral do Cemité- historiadores, bem como médicos e odontólogos foren-
rio do Araçá, onde as ossadas estavam abrigadas havia ses vinculados aos IMLs de diversos Estados brasileiros.
treze anos e para onde nunca deveriam ter sido levadas. Em sua maioria, eram mãos femininas que teciam as
Depois, costurar as parcerias institucionais, o que preci- bases de um novo capítulo nas investigações forenses no
sou se repetir com frequência em razão das três mudan- país.
ças de ministros da SDH e duas de secretários da Estavam lançados os pilares do Centro de Antropo-
SMDHC entre 2013 e 2016. Sensibilizados, todos logia e Arqueologia Forense da Unifesp, o CAAF, pione-
encamparam a luta e deram continuidade aos traba- iro no Brasil, que vem desenvolvendo um trabalho
lhos. fundamental e que hoje já se apresenta como alternativa
De início, duas eram as questões principais: encon- institucional viável para investigar mortes decorrentes
trar um local seguro para realizar as análises e montar de graves violações de direitos humanos cometidas por
uma equipe devidamente capacitada. Embora aparen- agentes do Estado. Tais como os crimes praticados pela
temente simples, a tarefa exigia rever o modelo brasilei- ditadura contra presos políticos. Tais como, até hoje, os
ro de identi cação de pessoas, cuja responsabilidade crimes da polícia contra a população periférica.
legal é exclusiva dos Institutos Médicos Legais (IML), a
mesma instituição que, durante a ditadura, emitiu lau- Primeiros resultados concretos
dos falsos e colaborou para que parte dessas pessoas Em 2018, uma celebração. Quase três anos e meio
fossem parar naquela vala. Não era difícil prever que as após a criação do GTP, a primeira identi cação de um
famílias não aceitariam que as ossadas fossem para lá, desaparecido político: Dimas Antônio Casemiro, cujo
por mais que a superintendente da Polícia Cientí ca se irmão havia sido identi cado nos anos 1990 entre os
mostrasse disposta a reescrever a história. Era preciso restos mortais da vala. No m do mesmo ano, uma
buscar alternativas. descoberta surpreendente: as ossadas de Aluísio Palha-
Como garantir que as análises seriam conduzidas no, que não constava entre os procurados mais prováve-
de forma con ável e segura para as famílias, utilizando- is, foram identi cadas. Finalmente pôde ser dada às
se de metodologias reconhecidas pelos organismos famílias a resposta há tanto esperada. Ao lado das três
internacionais competentes? E como respeitar as condi- anteriores, essas identi cações são mais uma prova

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FOTO: DOUGLAS MANSUR
Peritos do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense da Unifesp, o CAAF, abrem a úl ma caixa com ossadas re radas da vala de
Perus, em dezembro de 2019. No centro da imagem, a antropóloga Aline Feitosa coordena a primeira triagem do material com o obje vo
de conseguir montar um esqueleto completo.

cabal da ação perversa da ditadura militar contra seus com a verdade. Formou uma equipe que vem acumu-
oponentes. Outras identi cações mostram-se possíve- lando experiência em metodologias atestadas interna-
is: um sopro de esperança em tempos marcados por cionalmente por grupos especializados em identi ca-
fake news, revisionismo histórico, avanço do autorita- ção de vítimas da violência de Estado. E deu início à
rismo e por retrocessos galopantes nos direitos con- criação de um laboratório que se aprimora e se amplia,
quistados. gerando acúmulos e saberes e fazendo dessa universi-
Pouco a pouco, as pás de terra atiradas sobre a vala dade pública um lócus privilegiado de formação, re e-
começam a se dissipar. Antes mesmo dessas identi ca- xão e pesquisa em antropologia forense especializada
ções, que con rmam a metodologia cientí ca adotada, em graves violações de direitos humanos.
o GTP já tinha alcançado resultados consideráveis. Para além disso, um dos maiores legados que deixa-
Retirou as ossadas daquele ossário geral e garantiu-lhes rá essa nova tentativa de identi cação das ossadas é
condicionamento adequado. Recompôs o mosaico de ajudar a responder outra pergunta: quem são as mais de
trajetórias dos militantes – e também de três desapare- mil pessoas que o Estado tentou ocultar? Ainda que não
cidos sem qualquer vínculo aparente com atividades de seja possível identi cá-los individualmente, podemos
resistência ao regime –, mantendo viva sua memória e ao menos obter um retrato de quem eram as pessoas
expandindo o próprio conceito de desaparecimento consideradas “descartáveis” pela ditadura militar. Por
político. Renovou e completou o banco de amostras isso a opção de analisar todas as ossadas, sem deixar de
genéticas dos familiares dos procurados. Devolveu lado nenhuma. Foi uma decisão tomada não sem muita
dignidade a cada indivíduo guardado naquelas caixas, tensão no início dos trabalhos, quando da de nição dos
por meio de um tratamento cuidadoso e comprometido protocolos. Familiares de desaparecidos políticos se

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FOTO: ARIANA DE PAULA
Detalhe de um dos livros de entrada do Cemitério de Perus, onde eram anotadas as datas e os nomes das pessoas sepultadas. Em 1971, o
número de desconhecidos era enorme. O Dom Bosco ficou rapidamente conhecido como cemitério para indigentes

preocupavam – e com razão –, com a falta de tempo e a tes ósseos jogados numa vala clandestina em um cemi-
escassez de recursos. Para elas, ao olhar para todos, tério municipal eram os corpos de brasileiros que
corríamos o risco de não encontrar nenhum. tinham sido vítimas de crimes contra a humanidade,
A relação com as famílias sempre foi delicada. Ao crimes imprescritíveis como são o desaparecimento
mesmo tempo em que nutriam esperanças de que nal- forçado e a ocultação de cadáveres, e isso não é algo
mente seria possível concluir seu luto, temiam mais secundário. Eram, em sua maioria, pessoas que sofre-
uma vez serem frustradas, enganadas, negligenciadas, ram toda sorte de violação de direitos em vida, cujas
como ocorreu em tentativas anteriores. Uma descon - famílias sequer tiveram condições de procurar e reivin-
ança crônica e legítima perante o Estado, instituição dicar seus corpos, e que, depois da morte, permanecem
que, agora, representávamos. Quais fossem nossas com seu direito à identidade negado.
intenções, falávamos em nome da mesma instituciona- O Estado, ali representado pelas três partes do
lidade que estraçalhou com a vida delas. Era preciso ser GTP, não poderia lhes desviar a face mais uma vez. Se
transparente e não repetir os mesmos erros. Tornar o se levou mais de quarenta anos para retomar as buscas
CAAF acessível, acolhedor, manter os familiares infor- pelos militantes políticos, quantos mais seriam neces-
mados e contar com seu acompanhamento permanen- sários para analisar aqueles que estavam a ponto de
te, de modo que pudessem se sentir parte, con ar no ser novamente excluídos? Ainda que não fosse possí-
trabalho e, principalmente, nos resultados. vel nomeá-los, era premente resgatar as informações
Por outro lado, tínhamos claro que os remanescen- que seus ossos pudessem nos contar: idade, gênero,

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marcas colecionadas em vida e, quando possível, a É preciso estar atento e forte
causa da morte. Quem sabe um dia, com o per la- Nem a reabertura política após o m de um regime
mento genético disponibilizado pela fase atual do ditatorial nem a convocação de eleições diretas garan-
GTP, não se possa fazer um chamamento público a tem por si só a consolidação de um sistema democráti-
todos que perderam alguém no início dos anos 1970? co. Medidas de memória, verdade, justiça, reparação e
Outro fator foi decisivo para construir consenso revisão das instituições em relação a todos os crimes
quanto à análise integral das ossadas. Muitas delas praticados são tão urgentes quanto fundamentais.
estavam misturadas: 26% das caixas continham frag- Enquanto não revirmos nosso passado recente, com-
mentos ósseos de mais de um indivíduo. Ou seja, ao preendendo como as estruturas autoritárias voltam a
descartar um conjunto aparentemente incompatível ter lugar, permaneceremos reféns de novos golpes, que
com o rol de procurados, corria-se o risco de descar- insistem em ameaçar os direitos duramente conquista-
tar um fragmento de alguém que se estava buscando. dos. Qualquer semelhança não é coincidência, mas
Conforme avançavam as análises, o per l das fruto de um sistema programado para se reinstalar a
mais de mil pessoas ali escondidas foi se revelando. qualquer descuido. Só mesmo conhecendo a fundo
Quando este livro foi editado, o trabalho ainda não nosso passado poderemos aprender a nos desvencilhar
havia sido concluído, e seguia ameaçado diariamente desses tentáculos.
por uma série de percalços administrativos e políti- A vala clandestina, com seus múltiplos signi cados
cos, o que nos impede de formular um retrato de niti- e simbolismos, ainda tem muito a nos ensinar. Assim
vo. Mas os dados já obtidos con rmavam o que suspe- como no início dos anos 1990 foi a primeira grande
itávamos: predominância de jovens do sexo masculi- prova de que a ditadura militar brasileira de fato perse-
no, com baixo acesso a serviços de saúde, parte deles guiu, matou e desapareceu com os presos políticos,
com sinais de morte por arma de fogo. como as famílias nunca deixaram de denunciar, ela
Precisamente, do total de caixas analisadas até também pode vir a ser uma evidência da violência con-
2020, 75% continham ossadas de homens, dos quais tra a juventude pobre e periférica, que não se inicia, mas
32% com no máximo 35 anos. Se tomarmos também se intensi ca durante aquele período – e que, desde
as mulheres e aqueles dos quais não foi possível aferir então, cresce de forma exponencial.
o sexo, sobe para 51% o percentual de jovens. A maio- Talvez por isso os inimigos da verdade sempre
ria dos crânios apresenta corte transversal, ou seja, procurem colocar obstáculos. Mal sabem eles que os
pertence a corpos que foram periciados pelo IML. alicerces da verdade são de ferro e suas raízes são pro-
Isso signi ca que morreram na rua, tiveram morte fundas. De fato, ca cada vez mais difícil para os obscu-
suspeita e/ou foram vítimas de morte violenta, ainda rantistas sustentar as falácias que tentam a todo custo
que não se possa saber se resultantes de homicídios, nos impor. A luta por justiça é maior e pulsa vida. E nós
execuções, crimes passionais ou da violência de Esta- não vamos parar.
do. No total, 28 indivíduos apresentam claramente
lesões compatíveis com disparos de arma de fogo.
Alguns verticais, outros pelas costas. Um jovem de
cerca de 16 anos chocou a todos, com um tiro na nuca,
de cima para baixo, caracterizando execução. O
mesmo tipo de lesão que Caco Barcellos encontrou
com frequência nos sete anos de pesquisa para o livro
Rota 66. Os os do novelo aos poucos começam a
afrouxar.

185
FOTO: DESAPARECIDOS

Em trinta anos, apenas cinco


desaparecidos foram
iden ficados entre as mais
de mil ossadas re radas da
vala clandes na de Perus. De
cima para baixo, Dênis
Casemiro, (iden ficado em
1991), Frederico Mayr
(1992), Flávio Molina (2005),
Dimas Casemiro (2018) e
Aluísio Palhano (2018).
7
Os desaparecidos que reapareceram

Quem é essa mulher


Que canta sempre esse lamento
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar.
Chico Buarque e Mil nho, em “Angélica”

A abertura da vala clandes na do Cemitério Dom desaparecido fosse revelado no úl mo trimestre do


Bosco completou trinta anos em 4 de setembro de ano, assim que as a vidades presenciais no laboratório
2020. Fosse outra a conjuntura, por certo haveria uma fossem retomadas. Talvez ficasse para 2021. Seguindo
missa ou ato ecumênico junto ao memorial em home- os protocolos de segurança, as universidades públicas
nagem aos mortos e desaparecidos da ditadura militar. seguiam fechadas ou com a vidades exclusivamente
A pandemia do novo coronavírus, que àquela altura remotas no final de setembro.
havia contagiado 4 milhões e matado 125 mil pessoas Reuniões do Grupo de Trabalho Perus con nua-
no Brasil, impossibilitou a realização de qualquer cele- ram a acontecer, também remotamente, com a pre-
bração no local. As aglomerações estavam proibidas sença dos gestores, de familiares e de en dades de
desde março, assim como as aulas presenciais, os defesa dos direitos humanos. Naquele 4 de setembro,
shows e as peças de teatro. alguns familiares somavam três décadas de resistên-
Pelo mesmo mo vo, não houve nenhuma apre- cia. Outros, com o tempo, foram subs tuídos por um
sentação especial da peça Comum, montada desde filho, uma sobrinha, de modo que a família con nuava
2016 pelo grupo Pandora, formado ali mesmo, em ali, engajada e esperançosa. Naomi, sobrinha de Hiroa-
Perus, e nenhuma edição da trilha Ditadura Nunca ki Torigoe; Hanya, filha de Hiran Pereira; Togo, filho de
Mais, passeio pelo cemitério organizado pela agência Thomaz Meirelles; Elisa Prestes Massena, neta de João
Queixadas, sediada na comunidade cultural Quilom- Massena Melo; todos à espera de uma resposta nova
baque. para a velha pergunta: onde estão os desaparecidos?
Passados trinta anos desde a revelação da vala, Um total de quarenta indivíduos compunha a lista
somente cinco desaparecidos foram iden ficados. dos buscados em setembro de 2020:
Análises das outras 1.044 ossadas con nuavam a ser Abílio Clemente Filho
feitas, agora no Centro de Antropologia e Arqueologia Ana Rosa Kucinski Silva
Forense da Universidade Federal de São Paulo. A Aylton Adalberto Morta
expecta va era de que o nome de pelo menos mais um Davi Capistrano da Costa
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

Edgar Aquino Duarte assim, sen am que era preciso con nuar cobrando:
Eduardo Collier Filho uma explicação oficial para seu desaparecimento, a
Elson Costa iden ficação de seus restos mortais, o direito de
Fernando de Santa Cruz Oliveira sepultá-los. Só então seria possível admi r que a busca
Francisco José de Oliveira havia chegado ao fim.
Grenaldo Jesus da Silva Até 4 de setembro de 2020, essa busca havia sido
Heleny Ferreira Telles Guariba concluída, com êxito, para os familiares de apenas
Hiram de Lima Pereira cinco pessoas dentre as mais de mil que veram seus
Hiroaki Torigoe restos mortais ocultados na vala: Dênis Casemiro,
Hones no Monteiro Guimarães iden ficado em 1991; Frederico Eduardo Mayr,
Ieda Santos Delgado iden ficado em 1992; Flávio Carvalho Molina, iden fi-
Isis Dias de Oliveira cado em 2005; Dimas Antônio Casemiro, iden ficado
Issami Nakamura Okano em 2018; e Aluísio Palhano Pedreira Ferreira, também
Itair José Veloso iden ficado em 2018.
Jayme Amorim de Miranda
João Maria Ximenes Dênis Casemiro (1942-1971), iden ficado em
João Massena Melo 1991
Joel Vasconcelos Santos Rapaz simples de Votuporanga, no interior de São
Jorge Leal Gonçalves Pereira Paulo, Dênis Casemiro trabalhava como lavrador e
José Milton Barbosa como pedreiro, intercalando os períodos de plan o e
José Montenegro de Lima colheita com as a vidades de reforma e construção
José Padilha Aguilar civil. Começara a frequentar o Sindicato dos Lavrado-
José Roman res de Votuporanga em 1963 e fora assíduo nas reu-
Luís Ignácio Maranhão Filho niões e plenárias até que o Sindicato foi fechado e a
Luiz Almeida Araújo diretoria cassada após o golpe civil-militar de 1964.
Luiz Hirata Dênis era filho do lavrador e militante comunista
Marlene Rachid Papembrok Antônio Casemiro Sobrinho, que chegou a se candida-
Olimpio de Carvalho tar a uma vaga na Câmara Municipal pelo PCB, e de
Orlando da Silva Rosa Bonfim Junior Maria dos Anjos Casemiro. Um de seus irmãos, Dimas,
Paulo César Botelho Massa quatro anos mais novo, atuava no movimento estu-
Paulo de Tarso Celes no Silva dan l em Votuporanga.
Paulo Stuart Wright Aos 24 anos, em 1967, Dênis mudou-se para a
Thomaz Antonio da Silva Meirelles Neto capital do Estado em busca de um trabalho com
Vitor Luís Papandreu melhor remuneração. Foi morar com uma irmã em
Walter de Souza Ribeiro Arthur Alvim, na Zona Leste da cidade, onde con nuou
Wilson Silva trabalhando como pedreiro. Em poucos meses, ainda
Uns com mais dedicação, outros com menos, em 1967, foi admi do como operador de máquinas na
irmãos, filhos e netos desses quarenta desaparecidos fábrica da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, e
man nham viva a busca por seus familiares. Para se fixou na cidade. No final daquele ano, conheceu o
alguns, esses os, pais e avós, desaparecidos há quase torneiro mecânico Devanir José de Carvalho e foi apre-
50 anos, não eram mais do que nomes numa lista ou sentado por ele à Ala Vermelha, uma dissidência do
retratos na parede: pessoas que jamais puderam PCdoB que havia optado pela luta armada.
conhecer pessoalmente ou olhar nos olhos. Ainda As primeiras ações seriam realizadas no começo

188
Os desaparecidos que reapareceram

de 1968 e Dênis estaria nelas. Numa das ocasiões, transformasse a ví ma em culpada pela própria morte,
par cipara de um assalto a uma agência do Bradesco como é de praxe ainda hoje nos assassinatos come -
localizada na Rua Turiassu, em Perdizes, com a função dos pela Polícia Militar. Além disso, era preciso sumir
de, com o auxílio de uma arma, fechar o trânsito no com o corpo. E, se possível, contabilizar mais alguns
quarteirão do banco. Em outra ocasião, repe u a pontos na guerra ideológica, desonrando a imagem do
mesma função num assalto a uma agência da Light, militante. Como? Atribuindo a ele a pecha de delator.
também em São Paulo, conforme depoimento presta- Um relatório foi produzido em 19 de maio daquele
do ao Dops. ano, redigido e assinado por Fleury. Segundo o delega-
Dênis apresentou seu irmão Dimas a Devanir e os do, o preso tentara fugir enquanto era transportado do
três militaram juntos na Ala Vermelha por alguns Rio de Janeiro para São Paulo. Perto da entrada para
meses, até tomarem caminhos dis ntos. Ainda em Taubaté (SP), Dênis teria revelado aos agentes que a
1969, Devanir envolveu-se na organização do Movi- VPR man nha um centro de treinamento em Ubatuba,
mento Revolucionário Tiradentes (MRT) junto com no litoral, e estaria disposto a indicar o caminho. A
Dimas, enquanto Dênis, agora membro da Vanguarda Veraneio teria seguido pela Rodovia Tamoios, rumo a
Popular Revolucionária (VPR), mudou-se para a região Ubatuba. “Ao iniciarem a descida da serra, o preso
do Bico do Papagaio, na divisa entre Pará, Tocan ns e alegou que necessitava com urgência realizar necessi-
Maranhão, e passou a trabalhar num sí o nos arredo- dades fisiológicas”, escreveu Fleury no relatório.
res de Imperatriz (MA), com a missão de organizar um “Dada a insistência do preso, dei ordem para a viatura
foco guerrilheiro. estacionar e o mesmo descer à estrada”.
Acredita-se que Dênis, já na clandes nidade, O relato não é preciso em relação ao local nem ao
tenha sido capturado e preso naquela região em abril horário.
de 1971 pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Condu- “Eis que então, em movimento brusco e completa-
zido ao Dops de São Paulo, foi subme do a interroga- mente inesperado, (Dênis) conseguiu apoderar-se da
tórios e torturas por cerca de um mês. arma do policial que se encontrava próximo. O outro
O também preso polí co Waldemar Andreus policial, diante do ocorrido, fez um disparo contra o
contou em depoimento ter reconhecido Dênis na car- preso, que, deixando a arma cair, mergulhou em um
ceragem do Dops. Também natural de Votuporanga, matagal”, prossegue Fleury. Até aqui, a farsa produzida
Waldemar foi surpreendido quando um dos carcerei- pelos agentes do Dops listava três ações altamente
ros re rou o capuz que cobria o rosto de Dênis. improváveis: a revelação de que haveria um esconderi-
— Êi, eu não te conheço? jo da VPR em Ubatuba, a habilidade para sacar um
Dênis demorou alguns instantes antes de responder. revólver de um policial com as calças arriadas, e a
— Não te conheço – disse, sorrindo. imprudência de deixar a arma cair durante a re rada.
Na ocasião, o lavrador, pedreiro e operário pensou O relato con nuava: “Imediatamente perdemos
ter escapado da morte. Chegou a sen r alívio. A re ra- de vista o preso e iniciamos intensiva busca no local,
da do capuz funcionava como uma espécie de oficiali- onde foram feitos vários disparos. Porém a busca reve-
zação da prisão. Agora, outros presos eram testemu- lou-se infru fera e então nos dirigimos à cidade de
nhas de que ele estava ali, naquela cela, sob a tutela do Ubatuba, que era a localidade mais próxima do local da
Estado. Certamente, as sessões de torturas acabariam ocorrência. (...) Pela manhã, por volta de dez horas,
e sua vida seria poupada. este Departamento foi cien ficado pela Autoridade de
O equívoco não poderia ter sido maior. Dênis foi Ubatuba, de que o fugi vo havia sido internado na
fuzilado em 18 de maio de 1971. Santa Casa Local.” Na sequência, ainda de acordo com
Para os agentes do Dops, havia chegado a hora de o insólito relato do delegado Fleury, a equipe chefiada
criar uma outra versão para aquela execução, que por ele teria seguido em direção à Santa Casa e, no

189
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

caminho, cruzado acidentalmente com outra viatura, va morto. E as autoridades sabiam disso, uma vez que
conduzida pelo delegado de polícia de Ubatuba, que seu nome estava no livro de registros do cemitério. A
trazia o fugi vo com o obje vo de entregá-lo aos anotação fazia referência ao laudo do IML e citava o
agentes do Dops para que fosse levado a outro hospi- nome do médico responsável: Renato Cappelano. Se
tal, em São Paulo, onde poderia ser melhor atendido. havia registro no cemitério, administrado pela Prefei-
Reacomodado na Veraneio do Dops, Dênis teria tura, e também no IML, vinculado ao governo do Esta-
sido transportado ao Hospital das Clínicas de São Pau- do, como até agora nenhuma autoridade o declarara
lo. Infelizmente, veio a falecer a caminho do hospital. morto?
Recolhido ao IML, seu corpo foi periciado pelos Ao lado do registro feito em seu nome no livro do
legistas Renato Cappelano e Paulo Augusto de Queiroz cemitério, em 19 de maio de 1971, havia ainda uma
Rocha, cúmplices na farsa. Em vez de acusar a morte anotação mais recente, feita com caneta azul: “exuma-
como decorrente das torturas sofridas nas dependên- do em 17/11/75”. Nenhuma indicação do local de
cias do Dops, os médicos subscreveram a versão de reinumação. Seu des no nha sido a vala clandes na.
Fleury e indicaram somente as trajetórias das balas Os restos mortais de Dênis Casemiro foram os
que o a ngiram. Nenhuma referência às perfurações primeiros a serem iden ficados após a revelação da
que sofrera no pulmão e no gado, nem às marcas vala, em setembro de 1990. Badan Palhares, chefe do
visíveis de tortura em seu rosto. Também nenhuma Departamento de Medicina Legal da Unicamp, anunci-
análise sobre os ros que o a ngiram nas palmas das ou sua localização no dia 8 de julho de 1991. Era de
mãos, evento que, em geral, indica rendição ou elimi- Dênis a ossada número 47, uma das 1.049 analisadas
nação sumária, com a ví ma cercada e desarmada. A pela equipe de Palhares.
causa da morte: hemorragia interna traumá ca. Em 11 de agosto de 1991, uma urna com seus
O corpo de Dênis foi encaminhado para o Cemité- remanescentes ósseos foi velada na Sé, juntamente
rio Dom Bosco, em Perus, onde foi enterrado no dia 19 com as urnas dos também desaparecidos polí cos,
de maio, na sepultura 82 da rua 14, conforme anota- agora iden ficados, Sônia de Moraes Angel Jones e
ção feita no livro de registros da necrópole. “De cor Antonio Carlos Bicalho Lana, em cerimônia presidida
branca, sexo masculino, com 40 anos presumíveis e pelo cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns.
todos os demais dados ignorados”, dizia a nota. Aqui, No dia seguinte, a urna viajou de avião para São
outras duas farsas chamam atenção. Os dados pessoa- José do Rio Preto e, de lá, seguiu até Votuporanga,
is de Dênis constavam nos relatórios do Dops e no aonde chegou à noite. Velados na Câmara Municipal
laudo do IML. Enterrá-lo como se esses dados fossem durante a madrugada, seus ossos foram transferidos
ignorados foi, também, uma forma deliberada de difi- para a igreja Matriz, onde foi celebrada missa de corpo
cultar sua localização. A mesma intenção é observada presente pela manhã. No altar, ao lado do caixão
na opção por atribuir a ele 40 anos de idade. Dênis coberto com a bandeira do Brasil, foi colocado um
nha 28 anos quando foi morto e as equipes do Dops e exemplar do livro Brasil: Nunca Mais, de 1985, primei-
do IML nham essa informação. Nenhuma comunica- ra publicação a elencar nomes de torturadores, méto-
ção oficial da morte foi feita pelas autoridades. dos de tortura e uma primeira lista de mortos e desa-
A farsa começou a ser desmontada em 1979. Em parecidos polí cos. Dênis era um desses nomes.
22 de agosto, dia da votação do projeto de lei da anis-
a, Suzana Lisbôa, Iara Xavier e outros familiares de Frederico Eduardo Mayr (1948-1972), iden fica-
desaparecidos polí cos foram a Brasília e denuncia- do em 1992
ram no Congresso Nacional que o corpo de Dênis Case- Frederico gostava de praia. Não era raro sair da aula
miro estava enterrado no Cemitério Dom Bosco, em no Colégio Mallet Soares, então na Rua Xavier da Silveira,
Perus. Ele não era desaparecido coisa nenhuma. Esta- perto do Corte do Cantagalo, e correr para dar um mer-

190
Os desaparecidos que reapareceram

gulho ou encontrar os amigos na orla de Copacabana. Assembleia Geral dos Bispos do Brasil. No total, a carta
Cursando o ginasial e, em seguida, o cien fico, Frederico descrevia as execuções, sob tortura, de vinte e oito
pra cava pesca submarina e era escoteiro. Dos 7 aos 16, presos polí cos, como Virgílio Gomes da Silva, Chael
foi membro da Tropa Baden Powell de esco smo, com a Charles Schreier, Joaquim Alencar de Seixas e Eduardo
qual fazia expedições ao Morro Dois Irmãos e à Floresta Leite, conhecido como Bacuri. Frederico era um deles.
da Tijuca. Em casa, desenhava e pintava. “Foi levado para o DOI/SP, à Rua Tutóia, 721, onde
Nascido em Timbó, cidade vizinha de Blumenau, foi intensamente torturado durante todo o dia e toda a
no interior de Santa Catarina, Frederico vivia no Rio noite, subme do a choques elétricos, 'cadeira do
desde criança, junto com os pais, Carlos Henrique dragão', 'pau-de-arara' e violentos espancamentos,
Mayr e Gertrud Mayr. O gosto pelas artes plás cas apesar de ferido no abdome”, descrevia o documento,
contribuiu para que Frederico escolhesse a arquitetura referindo-se ao ferimento provocado pelo ro que o
como profissão quando chegou a hora de prestar a ngiu no momento da captura. “Durante o período
ves bular. em que estava sendo torturado, foi visto várias vezes.
Frederico nha 18 anos quando foi admi do na Numa delas, aplicaram-lhe um banho frio no Xadrez 1
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universida- do DOI para que se reanimasse. Foi visto, ainda, senta-
de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Estava no primeiro do num banco existente na entrada do prédio onde se
semestre do curso quando o estudante secundarista localizam as câmaras de tortura, todo ensanguentado
Edson Luís de Lima Souto foi alvejado e morto por um e cheio de hematomas, chegando a conversar rapida-
policial militar durante um protesto pacífico no restau- mente com um preso polí co.”
rante Calabouço, tradicional ponto de encontro de A carta endereçada aos bispos listava as pessoas
estudantes no centro do Rio, onde o bandejão era que teriam sido responsáveis por sua morte: o escrivão
subsidiado e man do pela União Metropolitana dos Gaeta, o policial federal Aderbal Monteiro, um capitão
Estudantes. do Exército conhecido por Á la, um policial conhecido
O episódio serviu de fagulha para radicalizar o por Zé Boni nho ou Oberdã, um inves gador loiro de
movimento estudan l naquele tumultuado ano de quem não foi possível obter a iden dade. “Todos
1968. Não demorou para Frederico se aproximar do assis dos diretamente pelo major do Exército Carlos
movimento. No ano seguinte, foi incorporado à Ação Alberto Brilhante Ustra”, acrescentava o documento,
Libertadora Nacional. Uma das primeiras ações arma- “que chegou a propor a Frederico a concessão de sua
das de que par cipou, ainda em 1969, rendeu a ele vida em troca de informações”.
uma ação na jus ça militar. À revelia, ou seja, sem que Frederico Mayr foi morto no DOI-Codi de São Pau-
ele fosse ouvido ou cons tuísse advogado de defesa, lo, sob tortura, na manhã seguinte à prisão. Sua morte,
Frederico foi condenado a três anos em regime fecha- aos 23 anos, foi consumada com três disparos desferi-
do. Foragido, par u para Cuba, onde fez treinamento dos contra o peito. Na ocasião, foi deliberada a estraté-
de guerrilha e viveu por quase dois anos, voltando ao gia de desaparecimento: a par r daquele momento,
Brasil somente no final de 1971, agora em outra orga- Frederico passaria a se chamar Eugênio Magalhães
nização, uma dissidência da ALN in tulada Movimento Sardinha. Foi esse o nome u lizado na ficha de requisi-
de Libertação Popular (Molipo). ção do exame necroscópico encaminhada pelo Dops
Frederico foi baleado em São Paulo, na Avenida ao IML. Curiosamente, no topo da folha fora acrescido
Paulista, no dia 23 de fevereiro de 1972, e levado para o verdadeiro nome, em caixa alta: Frederico Eduardo
o DOI-Codi. Seu mar rio foi descrito no documento Mayr.
“Aos bispos do Brasil”, elaborado em fevereiro de 1973 O laudo, assinado pelos médicos legistas Isaac
pelo Comitê de Solidariedade aos Presos Polí cos do Abramovitc e Walter Sayeg, descreve sucintamente
Brasil e encaminhado à CNBB por ocasião da XIII três perfurações por projé l na região do tórax, duas

191
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

delas com trajetória descendente, ou seja, os disparos Unicamp, em junho de 1992. Repe ndo o que fizera no
foram feitos de cima para baixo. Eugênio, ou melhor, ano anterior por ocasião da iden ficação de Dênis
Frederico teve os dois pulmões perfurados pelas balas. Casemiro, o cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo
Nenhuma palavra é dita sobre as torturas que desfigu- Arns, celebrou uma missa na Sé em memória de três
raram o rosto da ví ma, como revelam as fotografias desaparecidos recém-iden ficados por Palhares:
produzidas durante o exame e arquivadas no IML. A Frederico Eduardo Mayr, Emanuel Bezerra dos Santos
cer dão de óbito foi emi da em nome de Eugênio e Helber José Gomes Goulart. Seus restos mortais
Magalhães Sardinha no próprio dia 24 de fevereiro. Foi puderam ser finalmente trasladados para o Rio de
também com o nome falso de Eugênio Magalhães Janeiro e sepultados no jazigo da família em 13 de
Sardinha que o corpo de Frederico foi enterrado no julho de 1992.
Cemitério Dom Bosco, em Perus.
Todo o tempo, as autoridades conheciam o nome Flávio Carvalho Molina (1947-1971), iden ficado
verdadeiro de Frederico. Ao dar entrada no DOI-Codi, em 2005
agentes do Dops trataram de elaborar a ficha individu- Flávio Carvalho Molina nha 21 anos quando
al do preso, com o nome verdadeiro e os tradicionais rabiscou os seguintes versos: “Posso não estar presen-
retratos de frente e de perfil, acrescidos de uma pla- te / Mas por mais que me ausente / Sempre estarei
quinha com o número 1.112. A mesma ficha informava aqui”. De fato, sua ausência foi muito presente ao
corretamente que ele fora preso na véspera, na Aveni- longo de trinta e quatro anos de busca e indignação.
da Paulista. Quando escreveu o poema Minha presença, Flávio
Foram divulgadas três versões diferentes e contra- estudava Química na Ilha do Fundão, o campus da
ditórias para sua morte. Em uma delas, Frederico mor- Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) localiza-
rera no dia 23 de fevereiro, a caminho do hospital, do perto do Aeroporto do Galeão, na Zona Norte do
depois de ter sido ferido num roteio na Avenida Rio, à beira da Baía de Guanabara.
Paulista. Em outra, no dia 24, fugindo de um “ponto”, Flávio era o terceiro numa família de cinco irmãos,
como eram conhecidos os encontros marcados com filho de Álvaro Andrade Lopes Molina e Maria Helena
outros militantes da mesma organização, no Jardim da Carvalho Molina. Carioca, cursara o Ensino Fundamen-
Glória, bairro vizinho à Vila Mariana. tal no tradicional Colégio São Bento e o Ensino Médio
Finalmente, foi divulgada a versão de que ele teria na mesma escola do também desaparecido Frederico
sido morto num improvável roteio com a polícia Mayr: o Colégio Mallet Soares, em Copacabana.
enquanto ocupava um Fusca ao lado de outros guerri- Entrou na faculdade em 1968, o ano das grandes rebe-
lheiros. Segundo essa versão, os guerrilheiros teriam liões de estudantes, e foi logo preso pela primeira vez,
começado a a rar contra a viatura sem terem sido por par cipar de uma manifestação estudan l.
provocados. Os policiais revidaram e Frederico foi Fichado, foi liberado no dia seguinte.
a ngido. Ponto. Nenhuma informação sobre os outros Em 1969, membro da Ação Libertadora Nacional
ocupantes do carro, se teriam sido presos, aba dos ou (ALN), trancou a matrícula na faculdade e entrou para
se estavam foragidos. Nenhuma explicação de como a clandes nidade. Procurado, Flávio conseguiu cruzar
alguém dentro de um carro pode ser alvejado três a fronteira com o Uruguai e par u para Cuba, onde
vezes no peito, e em trajetória descendente. ficou exilado por quase dois anos, de novembro de
Ao detalhar a versão oficial no livro A ditadura 1969 a meados de 1971. Voltou ao Brasil como militan-
escancarada, Elio Gaspari chama o caso de “paté co”, te do Molipo, dissidência da ALN.
“tamanha a onipotência na manipulação da realidade”. Flávio foi preso entre os dias 4 e 6 de novembro de
Os restos mortais de Frederico Mayr foram iden - 1971, conforme os relatos nem sempre coincidentes
ficados pela equipe chefiada por Badan Palhares, na das testemunhas. Morreu no dia 7, no DOI-Codi. O

192
Os desaparecidos que reapareceram

exame necroscópico foi realizado pelo IML no mesmo suspeita de que as autoridades sempre souberam que
dia 7 de novembro de 1971, pelos médicos-legistas Álvaro Lopes Peralta e Flávio Carvalho Molina eram a
Renato Capellano e José Henrique da Fonseca. Em vez mesma pessoa. Se sabiam, por que não divulgaram a
de constar o nome verdadeiro, a cer dão de óbito foi morte no dia seguinte nos jornais, como era praxe, e
emi da em nome de Álvaro Lopes Peralta, codinome usando o nome verdadeiro? Por que não avisaram sua
adotado por Flávio na clandes nidade. Álvaro Lopes, família? E por que escolheram enterrar com o nome de
como o pai, e Peralta, forma pela qual seu padrinho guerra? Para dificultar sua localização, era evidente.
costumava lhe chamar. Normalmente, somente as pessoas que militavam
“O laudo atesta dois ferimentos pérfuro-contusos, na mesma organização polí ca conheciam os codino-
causados por projéteis de arma de fogo na região do mes dos militantes. E essas pessoas, também na clan-
tórax, e conclui que a morte foi ocasionada por 'anemia des nidade, estariam impossibilitadas por mo vos
aguda consecu va a hemorragia interna traumá ca'”, óbvios de denunciar um desaparecimento na delega-
diz o relatório final da Comissão Nacional da Verdade. cia ou reclamar um corpo no IML. Por outro lado, ape-
“Sua cer dão de óbito informa que a morte teria ocorri- nas em situações excepcionais os familiares conheci-
do nas esquinas das ruas Padre Marche e Xavier de am os codinomes, uma medida de segurança adotada
Almeida, no bairro do Ipiranga, em São Paulo”. nas organizações para não colocar ninguém em risco.
A morte de Flávio Molina permaneceu em sigilo Enterrar Flávio com o nome falso era uma forma de
até o dia 29 de agosto de 1972, quando o jornal O evitar que ele fosse encontrado pela família. Outra
Globo a no ciou como consequência de confronto tá ca era fazer com que o corpo desaparecesse: a
com policiais, sem mais detalhes. Começou ali o péri- exumação seguida de reinumação numa vala que não
plo dos familiares em busca de informações sobre o constava em nenhum mapa ou documento oficial.
paradeiro do rapaz. Em 1981, em visita ao Cemitério Dom Bosco, Gil-
Somente em 1978 surgiu uma evidência defini va: berto Molina, seu irmão quatro anos mais velho, ficou
um o cio, assinado por Romeu Tuma, em que o dele- sabendo da existência da vala clandes na. Toninho
gado do Dops reme a ao juiz auditor Carlos Augusto Eustáquio, o administrador, afirmou que a ossada de
Cardoso de Moraes Rego o atestado de óbito de Álvaro Flávio deveria estar ali, misturada com centenas de
Lopes Peralta anexado às fichas de Flávio no Dops. O outras ossadas. Somente em 1990, quando a vala foi
episódio fez lembrar aquele axioma segundo o qual revelada, sua família pôde sonhar com a iden ficação:
toda men ra tem perna curta. Ocorre que Álvaro um sonho longo, sujeito a percalços diversos.
Lopes Peralta estava sendo julgado, à revelia e com Foi preciso esperar mais quinze anos até que os
esse nome, na auditoria da Marinha, no Rio, por pra - restos mortais de Flávio Carvalho Molina fossem iden-
car a vidades subversivas. O juiz auditor, então, proto- ficados, por meio de estudo de compa bilidade
colou um o cio pedindo ao Dops tudo o que dissesse gené ca, em um laboratório par cular de São Paulo, o
respeito ao réu. “Em atendimento aos termos do o cio Genomic. Até então, nham sido malsucedidas todas
1243/78 datado de 12 de julho úl mo, dessa digna as tenta vas, primeiramente na Unicamp e em segui-
auditoria”, respondeu Romeu Tuma, então chefe do da na USP. Também resultaram inconclusivos os testes
Dops, “encaminhamos a Vossa Excelência informações feitos com material gené co da família em outros
prestadas pela Divisão de Ordem Social desse departa- laboratórios, inclusive fora do país.
mento, bem como cer dão de óbito expedida em Em 10 de outubro de 2005, uma urna com os rema-
nome de Álvaro Lopes Peralta, nome falso de Flávio nescentes ósseos de Flávio Molina foi entregue a Gil-
Carvalho Molina”. Estava decifrada a iden dade falsa. berto na sede da Procuradoria da República em São
E também a opção deliberada por ocultá-lo. Paulo, então na Rua Peixoto Gomide com a Avenida
O documento escrito por Tuma confirmou a Paulista. No dia seguinte, a urna foi enterrada no Cemi-

193
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

tério São João Ba sta, no Rio, em cerimônia com a MRT se associou à VPR para uma ação ousada que fora
família. A mãe de Flávio, Maria Helena Molina, havia decidida às pressas: sequestrar o cônsul do Japão,
perdido a visão. Coube ao filho Gilberto narrar em seus Nobuo Okushi, e exigir a libertação de Shizuo Ozawa, o
ouvidos cada etapa da despedida. “Mario Japa”, um militante da VPR que estava sendo
muito torturado para que delatasse a localização do
Dimas Antônio Casemiro (1946-1971), iden fica- centro de treinamento comandado por Carlos Lamarca
do em 2018 no Vale do Ribeira. Como resgate, foi exigida a liberta-
Quatro anos mais novo que Dênis Casemiro, ção do Mario Japa e de outros quatro presos polí cos.
Dimas teve seus remanescentes ósseos iden ficados “Henrique”, do MRT, par cipou do sequestro ao
em 2018, vinte e sete anos após a iden ficação dos lado de Eduardo Collen Leite, o “Bacuri”, da VPR, entre
restos mortais de seu irmão. outros militantes. A ação foi bem-sucedida e os cinco
Nascido em Votuporanga (SP), filho de Antônio companheiros foram libertados, inclusive o “Mario
Casemiro Sobrinho e Maria dos Anjos Casemiro, Dimas Japa”, que mo vara o sequestro.
completou 18 anos três semanas antes do golpe de Nos meses seguintes, no entanto, seria cobrada a
1964. Atuou no movimento estudan l em sua cidade e fatura: os sequestradores se tornaram os principais
se aproximou do socialismo por influência do pai, que alvos dos agentes do Dops, a ponto de oito deles terem
militava no PCB. Em Votuporanga, trabalhou como sido presos e cinco executados, entre eles “Bacuri” e
corretor de seguros e como pógrafo. “Henrique”.
Em 1969, Dimas se mudou para a capital junto com “Henrique” foi preso no dia 5 de abril de 1971 e
a esposa, Maria Helena Zanini, e o filho de 2 anos, torturado até a morte, no dia 7. A réplica dos guerrilhe-
Fabiano. Em São Paulo, não demorou a ser recrutado iros veio dez dias depois em forma de radicalização. Em
para a Ala Vermelha, organização em que já militava 15 de abril, com o apoio de militantes da ALN, dirigen-
seu irmão. tes do MRT executaram Henning Albert Boilesen, pre-
Ainda em 1969, a Ala Vermelha começou a se sidente da Ultragaz e diretor da Fiesp, notório financia-
desmantelar. Muitos de seus membros migraram para dor da Operação Bandeirantes (Oban), precursora do
outras organizações ou criaram dissidências. Dênis foi DOI-Codi, e entusiasta das sessões de tortura que
para a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e se costumava acompanhar pessoalmente no número 921
mandou para a região Norte do país, incumbido de da Rua Tutóia. Aquele seria o começo da queda de
formar um foco guerrilheiro. Dimas e o amigo Devanir Dimas.
Carvalho, metalúrgico do ABC que nha sido apresen- A repressão deflagrou uma operação de guerra
tado a ele por Dênis, estavam entre os trabalhadores com a missão de assassinar o maior número possível
que organizaram o Movimento Revolucionário Tira- de militantes do MRT e da ALN como retaliação pela
dentes (MRT). morte de seu grande financiador. Nos dias 16 e 17 de
No MRT, Devanir virou “Henrique” e Dimas virou abril, foram presos e assassinados Joaquim Alencar de
“Rei”. A razão é prosaica. Ao manusear os panfletos da Seixas e Dimas Casemiro, ambos acusados de matar
organização com a destreza de quem nha sido pó- Boilesen. Suas famílias foram igualmente presas. As
grafo e man vera uma gráfica antes de entrar na esposas e os filhos foram levados para o DOI-Codi:
clandes nidade, Dimas deixou “Henrique” boquiaber- Pedrina, mulher de Devanir, Maria Helena, mulher de
to. “Esse cara é o rei do papel”, comentara o amigo. Dimas, e Fanny, mulher de Joaquim, bem como as duas
Pronto, virou apelido. filhas de Joaquim, os dois filhos de Devanir e o filho
Do núcleo paulistano do MRT faziam parte, entre único de Dimas. As crianças foram liberadas em segui-
outros, o mecânico Joaquim Alencar de Seixas e seu da e puderam se hospedar na casa de parentes. Ieda e
filho Ivan, então com 15 anos. Já em março de 1970, o Iara Seixas, já maiores de idade, con nuaram presas,

194
Os desaparecidos que reapareceram

assim como Ivan. que eles moravam em São Paulo fora invadida e saque-
Na manhã seguinte, dia 17, as duas foram obriga- ada pelos agentes nos dias que se seguiram à execução
das a entrar numa Veraneio e foram levadas para o do militante do MRT. Até que Maria Helena fosse solta,
bairro da Saúde. Os agentes exigiam que elas indicas- a diversão dos policiais era ir ao DOI-Codi usando rou-
sem o endereço de Dimas. Elas se recusavam a revelar. pas e o relógio de Dimas para que a jovem viúva repa-
Afirmavam que nham entrado de olhos vendados na rasse e sen sse mais um pouco da crueldade dos
casa do “Rei” e que tudo o que sabiam é que deveria algozes de seu marido. Seu crime? Ser casada com um
ser perto do Bosque da Saúde, local em que haviam “terrorista”.
trocado de carro e coberto os olhos para a úl ma etapa Maria Helena morreu de câncer no final dos anos
do percurso. Mais tarde, Ieda entenderia que era tudo 1980, antes que a vala de Perus fosse revelada. Não
parte de uma grande armação. Gilberto Faria Lima, um pôde testemunhar a iden ficação da ossada de seu
agente duplo de codinome Zorro, infiltrado no MRT, já cunhado, Dênis, em 1991, nem a de seu marido,
havia revelado o endereço aos torturadores. Dimas, em 2018. Naquele ano, a iden ficação dos
Ieda contou em depoimento à Comissão Estadual restos mortais de Dimas Casemiro foi comunicada a
da Verdade Rubens Paiva, em 2013, que permaneceu seu filho Fabiano, em 19 de fevereiro. Foi preciso
no carro, de da, enquanto os agentes cercaram a casa. esperar alguns meses até a liberação do material e a
Dimas saiu pela porta correndo e a rava com um emissão de uma nova cer dão de óbito.
revólver contra seus algozes enquanto corria. Os agen- No dia 30 de agosto de 2018, a urna com os rema-
tes revidaram com ros de fuzil. Acertaram o alvo nescentes ósseos de Dimas Antonio Casemiro pôde ser
pelas costas. Uma, duas, três, quatro vezes. Na fuga, sepultada no cemitério de Votuporanga.
Dimas tropeçou e caiu de cara num monte de cascalho,
o rosto agora arrebentado por conta do impacto, as Aluísio Palhano Pedreira Ferreira (1922-1971),
costas ensopadas de sangue. iden ficado em 2018
Segundo o documento para requisição de exame Aluísio Palhano já não era jovem quando foi preso
de necropsia, Dimas morreu durante uma troca de e assassinado pelo sistema repressivo. Nascido em
ros com agentes da repressão no dia 17 de abril, na 1922, filho de João Alves Pedreira Ferreira e Henise
via pública, no bairro da Água Funda, exatamente Palhano Pedreira Ferreira, esse militante da Vanguarda
conforme o testemunho de Ieda. Sua morte foi divul- Popular Revolucionária nha 48 anos quando desapa-
gada nos jornais no dia 18 e, no dia 19, foi produzido o receu, em 20 de maio de 1971.
laudo do exame necroscópico, assinado pelo médico- Aluísio também não era de família pobre nem
legista João Pageno o. O documento registrou quatro nha origem humilde, como eram os casos de Dênis e
ferimentos causados por arma de fogo, no pescoço, Dimas Casemiro. Filho de um fazendeiro de Pirajuí, no
braço, mão e coxa. Segundo o mesmo laudo, o corpo interior de São Paulo, cursou o primário no colégio
de Dimas teria sido sepultado no cemitério de Perus às Mackenzie, um dos mais tradicionais de São Paulo, e o
10 horas do dia 20. ginásio no colégio Salesiano de Niterói (RJ), para onde
O enterro de Dimas foi anotado no livro de regis- se mudou aos 10 anos, após a morte do pai.
tros do Cemitério Dom Bosco. Seu corpo foi inumado Tinha 21 anos quando foi aprovado num concurso
na sepultura número 35 da rua 12 no dia 20 de abril de para trabalhar no Banco do Brasil, em 1943. No mesmo
1971. Uma outra anotação foi feita na mesma página, ano, matriculou-se no curso de direito da Universidade
ao lado direito: “Exumado em 2/9/1975”. Nenhuma Federal Fluminense, onde se bacharelou em 1948.
informação sobre o des no dos restos mortais. Junto com a carreira de bancário e de advogado, Aluí-
Pouco tempo após a morte de Dimas, sua mulher e sio fez carreira também como sindicalista. Nos anos
seu filho voltaram a morar em Votuporanga. A casa em 1950, foi por dois mandatos presidente do Sindicato

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Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

dos Bancários do Rio de Janeiro. Em seguida, ocupou dos naqueles dias, ouvi de um deles, conhecido pelo
também a presidência da Confederação Nacional dos codinome de JC (Dirceu Gravina), a seguinte afirma-
Trabalhadores nas Empresas de Crédito (Contec) e, um ção: 'Acabamos de matar o seu amigo; agora é a sua
ano depois, tornou-se presidente do Comando Geral vez'”.
dos Trabalhadores (CGT), uma recém-fundada organi- Morto no DOI-Codi, Aluísio foi dado como desapa-
zação intersindical de abrangência nacional. recido. Era casado com Leda Pimenta Pedreira Ferrei-
O Ato Ins tucional número 1, de 1964, cassou seu ra, com quem teve dois filhos.
mandato e seus direitos polí cos. Aluísio também foi Não foi encontrado qualquer registro de entrada
exonerado do Banco do Brasil. Asilou-se no México no Cemitério Dom Bosco em nome de Aluísio Palhano.
entre julho e dezembro e transferiu-se para Cuba no O ex-sindicalista tornou-se um dos procurados de
ano seguinte. Ali, trabalhou com colheita de cana e, Perus em razão da data e do local da sua morte, uma
principalmente, foi locutor na Rádio Havana. vez que pra camente todos os outros militantes
Em 1970, voltou ao Brasil como clandes no e foi polí cos mortos no DOI-Codi em 1971 veram como
atuar na Vanguarda Popular Revolucionária. Um de des no aquela necrópole.
seus principais contatos na organização era justamen- Em 2005, uma sobrinha-neta de Aluísio, Clarisse
te o agente policial infiltrado José Anselmo dos Santos, Mantuano, lançou um curta-metragem sobre o o-
o Cabo Anselmo, que muito provavelmente o entregou avô. Em “Um companheiro”, a trajetória de Aluísio e
aos órgãos de segurança. um breve perfil biográfico dele são narrados por sua
Na carceragem do DOI-Codi, Aluísio contou ao cunhada, Branca Eloysa. Segundo ela, a família custou
também preso polí co Al no Rodrigues Dantas Júnior, a se convencer que aquilo havia acontecido. Até 1976,
ex-presidente da UNE, que fora sequestrado na rua, quando saíram as primeiras listas de mortos e desapa-
em São Paulo, no dia 9 de maio de 1971, e levado no dia recidos, Branca acreditava que ele estava clandes no
seguinte para o Centro de Informações da Marinha ou exilado e que iria voltar a qualquer momento.
(Cenimar), no Rio. No dia 16 de maio, foi trazido de No dia 3 de dezembro de 2018, a ossada de Aluísio
volta ao DOI-Codi de São Paulo, onde foi torturado. Palhano foi iden ficada no laboratório da Comissão
Nesse intervalo, teria passado também pelo centro de Internacional para Pessoas Desaparecidas (ICMP), em
tortura conhecido como Casa da Morte, em Petrópolis Sarajevo, na Bósnia. O DNA re rado de um fragmento
(RJ), provavelmente no dia 13, conforme testemunho de seu esqueleto era compa vel com o DNA de sua
da ex-presa polí ca Inês E énne Romeu. filha Márcia.
Aluísio teria sido torturado até a morte na noite de Quando a abertura da vala de Perus completou
20 de maio conforme relato enviado por Al no em trinta anos, em setembro de 2020, os restos mortais de
carta ao general Rodrigo Octávio Jordão Ramos, então Aluísio Palhano ainda não nham sido sepultados pela
ministro do Supremo Tribunal Militar, em agosto de família. Optou-se por esperar a conclusão dos traba-
1978. “Na noite do dia 20 para o dia 21 daquele mês de lhos de perícia no CAAF-Unifesp na esperança de loca-
maio, por volta das 23 horas, ouvi quando o re raram lizar o crânio de Aluísio, não encontrado junto com os
da cela con gua à minha e o conduziram para a sala de demais ossos.
torturas”, escreveu. “A sessão de tortura se prolongou
até alta madrugada do dia 21, provavelmente, 2 ou 4
horas da manhã, momento em que se fez silêncio”. História em construção
“Alguns minutos depois, fui conduzido a essa Este capítulo buscou consolidar informações
mesma sala de torturas, que estava suja de sangue, sobre a vida, a morte e a luta por memória e jus ça
mais que de costume”, con nua a carta de Al no. empreendida pelos familiares dos cinco desaparecidos
“Perante vários torturadores, par cularmente excita- iden ficados até setembro de 2020 dentre as mais de

196
Os desaparecidos que reapareceram

mil ossadas exumadas da vala clandes na de Perus.


Essas informações foram ob das por meio de
entrevistas feitas pelo autor com amigos e familiares,
pesquisa realizada em jornais de época e, principal-
mente, a par r da leitura de livros, ar gos, dossiês e
relatórios elaborados ao longo desses trinta anos.
Neste sen do, são dignos de nota o Dossiê mortos
e desaparecidos polí cos no Brasil 1964-1985, organi-
zado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desapa-
recidos Polí cos e publicado em 1995; o livro Direito à
memória e à verdade, lançado em 2007 pela Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polí cos e pela
Secretaria Especial de Direitos Humanos; o relatório
final da Comissão Nacional da Verdade, em especial o
volume III, in tulado Mortos e desaparecidos polí cos;
o Memorial mortos e desaparecidos publicado no
portal Memórias da Ditadura; transcrições de depoi-
mentos e audiências públicas realizadas pela Comissão
Estadual da Verdade Rubens Paiva; bem como verbe-
tes elaborados pelo Centro de Pesquisa e Documenta-
ção de História Contemporânea do Brasil da Fundação
Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

197
Memória, verdade e jus ça para transformar a cultura de
violência em nosso país⁸⁴
Rogério Sottili85
Lucas Paolo Vilalta86

A história do Brasil é marcada por uma cultura cartesianismo – que funda a consciência como coloni-
estrutural de violência. O projeto colonial brasileiro zação da representação – é correlato indissociável da
tem sido um projeto de morte e esquecimento há mais divisão dos territórios como porções de terras inter-
de quinhentos anos. Morte e esquecimento físicos e cambiáveis. O pensamento é separado do corpo. O
simbólicos, como nos lembram Simas e Ru no⁸⁷. espaço como porção de terra é separado da potência dos
Físicos em razão do genocídio indígena, nunca inter- territórios, do axé enraizado no chão. Os direitos são
rompido em nossas terras, e também como resultado de separados das diferenças e dos lugares de enunciação.
mais de três séculos de escravidão, seguidos por cento e Ainda segundo Muniz Sodré, o projeto coloniza-
trinta anos de uma República maculada pelo racismo dor é o de uma racionalidade que “atribui medidas”,
estrutural e pelo extermínio sistemático de negros, determina o padrão do pensamento, da propriedade e
pobres, periféricos e favelados. Por outro lado, morte e dos direitos. Por oposição, esse mesmo projeto estabele-
esquecimento também simbólicos, perpetrados ao ce aquilo que é desmesurado, irracional, impróprio e
longo de cinco séculos de apagamento e desvalorização estrangeiro. Estabeleceram-se medidas e padrões como
de saberes, ciências, culturas, territórios e modos de forma de impor a lógica das equivalências e das trocas.
vida de sujeitos não brancos. Os outros – os “negros”, os “índios” –, que não compre-
⁸⁴Uma versão anterior deste
Como o projeto colonizador engendrou essa cultu- endiam as equivalências entre as coisas, as terras, os ar go foi publicada no livro
ra de violência? E como transformá-la? seres e as existências, ofuscavam as boas luzes do “hu- ‘‘40 anos da Anis a no
O sociólogo Muniz Sodré, no livro O terreiro e a mano universal”. Brasil: lições de tempos de
cidade, indica um caminho de como o projeto universa- O que houve, de acordo com Sodré, foi uma orde- lutas e resistências”,
organizado por Giuseppe
lista e uniformizador da colonização branca ocidental nação espacial centrada na Europa: “O 'humano univer- Tosi, Lúcia de Fá ma Guerra
forjou um sujeito dotado de consciência, dono de terras sal', criado por um conceito de cultura que espelhava as Ferreira e Maria de Nazaré
e de direitos fundados na violenta exclusão da alterida- realidades do universo burguês europeu, gerava neces- Tavares Zenaide, em
homenagem a Linda Bimbi.
de e na subjugação da diferença. “Junto com a tomada sariamente um 'inumano universal', outra face de uma
⁸⁵Rogério So li é mestre em
das 'terras livres'”, escreveu Sodré, “opera-se também a mesma moeda, capaz de abrigar todas as qualidades História e diretor-execu vo
tomada das consciências, a m de levá-las ideologica- atinentes ao 'não homem': selvagens, bárbaros, negros”. do Ins tuto Vladimir Herzog.
mente à celebração da racionalidade instrumental Negros e indígenas seriam, sob esta ótica, seres “fora da ⁸⁶Lucas Paolo Vilalta é
doutorando em Filosofia e
moderna”⁸⁸. A invasão das terras ditas “livres”, aquelas humanidade”. Essa abordagem, a um só tempo discri- coordena a área de
que ainda não haviam sido conquistadas por nenhuma minatória e escravagista, foi aprofundada pelo advento Memória, Verdade e Jus ça
civilização europeia, é contemporânea à invasão das do humanismo e de um conceito de cultura, consagrado do Ins tuto Vladimir Herzog.
mentalidades. A tomada de consciência é simultânea à no século XVIII, que se pronti cava, ainda nas palavras ⁸⁷Ver. SIMAS; RUFINO, 2018
e 2019.
tomada de terras e à tomada do lugar de sujeito enunci- de Muniz Sodré, a “reprimir toda e qualquer manifesta- ⁸⁸SODRÉ, 2002, p. 31.
ador de direitos. Nesse sentido, o “penso, logo existo” do ção dita 'primitiva' ou 'primária”.⁸⁹ ⁸⁹Ibid., p. 29-30.

198
FOTO: JOEL TORREALBA JULIÃO
Visita guiada ao CAAF com jovens par cipantes do projeto Territórios da Memória, em 2019

Somos herdeiros dessa visão de mundo de tal modo Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
que nem a abolição da escravatura, a República ou a promulgada na França em 1789, “ela também deu início
Democracia foram capazes de desentranhar o projeto ao nacionalismo e a todas as suas consequências: geno-
colonizador e sua cultura de violências da nossa vida cídios, con itos étnicos e civis, puri cação étnica,
social. Tampouco nós, defensores dos direitos huma- minorias, refugiados e apátridas. A cidadania introdu-
nos, podemos nos eximir ou isentar das contradições e ziu um novo tipo de privilégio que era protegido por
paradoxos que estão nas bases e nos fundamentos dos alguns ao excluir outros”.⁹
direitos humanos. É sempre bom lembrarmos que o conceito mesmo
O jurista e lósofo grego Costas Douzinas, no livro de humanidade nasce da exclusão e da imposição do
O m dos direitos humanos, analisa os paradoxos que “inumano” a tantos povos e nações – assim foi com o
acompanham os direitos humanos, em sua gênese e nas genocídio indígena e com a escravidão. Em síntese, se
sociedades atuais, apontando caminhos de reinvenção. queremos promover a defesa dos direitos humanos e da
Segundo Douzinas, “para os que não têm representa- tríade memória, verdade e justiça, é importante nos afas-
ção, sobra muito pouco”. “Os sem-Estado, os refugia- tarmos da universalidade abstrata – representada pelo
dos, as minorias de vários tipos não têm quaisquer homem branco – que o projeto colonizador impôs às
direitos humanos”, a rma o lósofo.⁹⁰ consciências, aos territórios e aos direitos. Boaventura de
Entre a universalidade da consciência, das terras e Sousa Santos, no livro Se Deus fosse um ativista dos direi-
dos direitos eurocêntricos que se representam como tos humanos, a rma que a fragilidade dos direitos huma-
universais e aqueles que não têm lugar nessa universali- nos “decorre do fato de as concepções e práticas domi-
dade, há uma ssura histórica, da qual brotaram os nantes dos direitos humanos serem, elas próprias, produ-
⁹⁰DOUZINAS, 2009, p. 119.
⁹¹Ibid, p. 116. direitos humanos. “Se a Declaração inaugurou a toras de injustiça cognitiva”, sobretudo quando resultam
⁹²SANTOS, 2013, p. 99. modernidade”, escreveu Douzinas, referindo-se à na construção de “pretensões universais abstratas”.⁹

199
201
A aplicação que tem sido dada pelo sistema de de inocência. Seja em relação ao viés incriminatório e
justiça brasileiro à Lei de Anistia é absolutamente racista que tem caracterizado os inquéritos policiais ou
incompatível com os tratados internacionais dos quais no enfrentamento à impunidade que marca o extermí-
o Brasil é signatário, voluntariamente, e que foram nio da juventude negra que a polícia tem perpetrado,
watch?v=daxC0efMGME.
internalizados em nossa Constituição. Também tem em ambos os casos, a transformação da perícia tem um
¹⁰³Uma nova denúncia do
sido tomada como impeditiva em relação às obrigações papel fundamental a desempenhar. ⁰⁴ MPF foi apresentada no dia
do Estado brasileiro diante das condenações sofridas na Considerando isso, lançamos em agosto de 2020 o 17 de março de 2020, tendo
Corte Interamericana de Direitos Humanos, como as relatório Políticas públicas de perícia criminal na garan- como base a condenação do
Estado brasileiro na Corte
ocorridas no caso Gomes Lund (2010) e no caso Herzog tia dos direitos humanos, de autoria de Flavia Medeiros Interamericana de Direitos
(2018). Finalmente, é absolutamente incondizente com (UFSC) ⁰⁵. Nosso intuito foi oferecer uma análise e um Humanos ocorrida em 2018,
nossa Constituição, que estabelece como princípio panorama do cenário e dos principais problemas que para responsabilização de 6
pessoas envolvidas no
geral a prevalência dos direitos humanos e que dispõe precisam ser enfrentados na luta por autonomia e por
assassinato do jornalista
sobre a imprescritibilidade de ações contrárias ao Esta- aperfeiçoamento da perícia criminal para que ela possa Vladimir Herzog em 1975
do de Direito e à ordem constitucional, entre elas os atuar com a independência e a isenção necessárias à (h ps://vladimirherzog.org/
crimes de lesa humanidade. Além disso, nosso ordena- atividade técnico-cientí ca. No relatório, destacamos nota-oficial-ins tuto-
vladimir-herzog-exige-
mento jurídico tipi ca em legislação infraconstitucio- que: jus ca-no-caso-herzog/). No
nal os crimes de genocídio e tortura. Por todos esses · A independência, a autonomia e a imparciali- dia 4 de maio, o juiz federal
aspectos, temos atuado no sentido de garantir que a Lei dade da perícia técnico-cientí ca são funda- Alessandro Diaferia, da 1ª
de Anistia deixe de ser aplicada contra os princípios mentais para minimizar as práticas que repro- Vara Criminal de São Paulo,
rejeitou a denúncia com
democráticos, contra os direitos humanos, contra a duzem violências estruturais e históricas no base na compreensão de
justiça e, portanto, contra nossa Constituição. Brasil. que “não há amparo legal ao
Em relação à reforma do sistema de perícias e espe- · Protocolos técnico-cientí cos devem garan- prosseguimento da presente
persecução penal, sendo
ci camente no que tange à perícia criminal, entende- tir a produção de provas e a manutenção da forçoso reconhecer a
mos que, apesar de ela ser fundamental para o combate cadeia de custódia de evidências. ex nção da punibilidade em
à impunidade e à baixa resolução de crimes, à violência · Políticas públicas para a perícia criminal decorrência da concessão de
de Estado e às práticas de investigação e inquérito que autônoma estão vinculadas a políticas em anis a”
(h ps://www.conjur.com.br/
reproduzem algumas das opressões e violências estru- defesa dos direitos humanos e devem permitir 2020-mai-04/juiz-rejeita-
turais que descrevemos, ainda assim ela talvez seja uma condições adequadas de atuação dos peritos e denuncia-seis-acusados-
das áreas do debate sobre segurança pública e sobre participação da sociedade. ⁰⁶ herzog).
¹⁰⁴Sobre esse aspecto, veja
reforma das instituições que menos têm recebido aten-
também o vídeo didá co
ção dos militantes e pesquisadores de direitos humanos. Nossa atuação nessa pauta, então, está orientada que produzimos sobre o
Devemos nos perguntar sobre os modos em que a para garantirmos a efetivação da recomendação da tema, disponível em:
atuação da perícia tem sido reprodutora de práticas e CNV no sentido de que ela possibilite que a perícia atue h ps://www.youtube.com/
watch?v=AgrZeboZUgQ.
discursos que regulam e normalizam a cultura de vio- de acordo com seu caráter técnico-cientí co e, portan- ¹⁰⁵Disponível em:
lência e práticas violadoras de direitos. to, com autonomia e imparcialidade; que ela seja pen- h p://memoriasdaditadura.
A atividade pericial pode operar como legitimado- sada e construída como política pública, prevendo org.br/reforma-do-sistema-
de-pericias/. Para a live de
ra no acobertamento de crimes praticados por agentes planos de aperfeiçoamento, pro ssionalização e for-
lançamento:
públicos, mas pode também atuar na garantia e prote- mação para os servidores, mas também com protoco- h ps://vladimirherzog.org/p
ção dos direitos humanos. Ela pode se basear em estig- los e regras claras a serem respeitadas; e, nalmente, or-uma-pericia-criminal-no-
mas e ações discriminatórias que reproduzem a lógica que ela atue não apenas em sintonia com os direitos brasil-que-atue-em-defesa-
da-vida-e-da-jus ca/.
racista, de que indivíduos negros e moradores de fave- humanos, mas que seja um elemento central para a ¹⁰⁶Os destaques da autora
las e periferias são culpados até que se prove o contrá- transformação da cultura de impunidade e violência são apresentados na capa da
rio, ou pode atuar para proteger o direito à presunção em nosso país. publicação digital que pode

202
Educação em memória, verdade e justiça lugares e pessoas que foram esquecidas, mor-
tas, desaparecidas, ignoradas e desvalorizadas
As outras recomendações da CNV con uem na pela cultura de violência do Estado e pelas
mesma direção de promover a justiça e a reforma das narrativas tradicionais.
instituições: desmilitarização das polícias militares Essa é a compreensão que nos orienta no projeto
estaduais, combate à tortura, eliminação da gura do Territórios da Memória, ⁰⁷ em que atuamos para a valo-
auto de resistência, introdução das audiências de custó- rização e a disseminação de memórias de territórios
dia, entre outras. Nas atividades do núcleo Monitora periféricos e de sujeitos e lugares marginalizados nas
CNV, pretendemos desenvolver um trabalho de advo- narrativas de nossa história o cial – e o distrito de Perus
cacy que dê conta das principais recomendações. é parte desse trabalho. Também para que coletivos,
Entendemos que, para enfrentar a cultura de vio- movimentos e organizações que ainda não se reconhe-
lência, precisamos transformar as instituições, mas cem ou identi cam com a pauta de Memória, Verdade e
também impactar a mentalidade e os valores das pesso- Justiça possam considerá-la como transversal às suas
as. Como diz Ana Rosa Abreu – diretora da nossa área lutas no enfrentamento da cultura de violência e do
de Educação em Direitos Humanos – precisamos de projeto de morte e esquecimento que marcam a história
uma educação em valores que envolva corações, mentes do Brasil.
e vísceras. É nesse sentido que trabalhamos, também, Memória como reconstituição existencial – como
para construir uma Educação em Memória, Verdade e disseram Simas e Ru no – é o que buscamos por meio
Justiça: para incidir nas consciências, territorializar da arte, da cultura e da educação. ⁰⁸ Memória, Verdade
memórias, ressigni car os direitos humanos por meio e Justiça para transformar a cultura de violência de
ser acessada em: da disputa de narrativas e valores. Esse caminho com- nosso país; para que, diante do projeto colonial de
h p://memoriasdaditadura. plementar responde aos desa os que apresentamos no morte e esquecimento, nenhuma pessoa seja tratada
org.br/wp- começo deste texto e também à seguinte di culdade: o como “matável”, “desaparecível” ou passível de esqueci-
content/uploads/2020/07/F
ES_Analise_Impunidade_.pdf. que fazer quando o caminho das instituições democrá- mento; para que territórios deixem de ser considerados
¹⁰⁷Para conhecer o projeto, ticas na busca por direitos, por justiça e por reforma das perigosos, miseráveis e violentos; para que os saberes
visite a plataforma: instituições se encontra obstruído? dos oprimidos, marginalizados e desvalorizados pelo
h p://territoriosdamemoria.
Encontramos na territorialização das memórias e projeto colonial brasileiro sejam as sementes que culti-
org.br
¹⁰⁸É isso que buscamos na valorização de outras narrativas, lugares e pessoas varemos na luta pela democracia, pelos direitos huma-
também em projetos como a uma alternativa. Pessoas, lugares e narrativas produzem nos e pela liberdade de expressão.
publicação em ambiente encontros e deslocamentos para novos territórios da
digital do Acervo Vladimir
Herzog e nos livros Ca veiro memória. São alternativas para as políticas de morte, Referências bibliográ cas
sem Fim, de Eduardo Reina, esquecimento e desencanto que o projeto colonizador DOUZINAS, C. O m dos direitos humanos. São
que conta a história de instaura em nossa cultura. Temos como princípio, Leopoldo: Unisinos, 2009.
bebês, crianças e
então, que: SANTOS, B. Se Deus fosse um ativista dos direitos
adolescente sequestrados
pela ditadura militar; o livro · Pessoas transformam as narrativas o ciais; humanos. São Paulo: Cortez, 2013.
Heroínas desta História, incutem o valor da história e da cultura de seus SIMAS, L; RUFINO, L. Fogo no mato: a ciência
organizado por Carla Borges lugares; cultivam a ancestralidade e o sentido encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
e Ta ana Merlino, que conta
a luta de mulheres em busca
coletivo de pertencimento de outras pessoas. __________________. Flecha no tempo. Rio de
de jus ça por familiares · Lugares territorializam, enraízam e incorpo- Janeiro: Mórula, 2019.
mortos pela ditadura; e no ram outras narrativas em memórias coletivas SODRÉ, M. O terreiro e a cidade: a forma social
livro Vala de Perus, uma negro-brasileira. Rio de Janeiro: Imago Ed.; Salvador,
de pessoas que se reconhecem em uma história,
biografia, de Camilo
Vannuchi; entre outros identidade e/ou ancestralidade comum. BA: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2002.
projetos e ações. · Outras narrativas renovam e trazem valor aos

203
FOTO: FERNANDO FRAZÃO_AGÊNCIA BRASIL
8
Violência de Estado hoje

Cuidado!
O bole m de ocorrência com seu nome em algum livro
Em qualquer distrito, em qualquer arquivo
Caso encerrado, nada mais que isso
Um negro a menos contarão com sa sfação
Mano Brown e Edi Rock, em “Negro limitado”

A história da vala de Perus começou a ser contada denados pelo tribunal de exceção não tinham nenhum
no dia em que o jornalista Caco Barcellos a descobriu. histórico de atividade criminal nem cometiam qual-
Quando o buraco clandestino com mais de mil ossadas quer delito no momento da abordagem. Eram pessoas
humanas foi de agrado, em 4 de setembro de 1990, o comuns, sem passagem pela polícia, quase sempre
repórter pôde registrar o momento em que as primeiras jovens, pobres e pretas, assassinadas muitas vezes com
pás revolveram a terra e os primeiros sacos foram reti- mais de três tiros nas costas ou na nuca.
rados. Ele sabia que estava diante de algo grande e que As pessoas mortas pela Polícia Militar tinham algo
aquele havia sido, por alguns anos, lugar de desova de em comum com os militantes políticos executados ou
cadáveres de mortos e desaparecidos políticos, por isso desaparecidos na carceragem do Dops, nas chácaras
trabalhou ao longo de um mês num Globo Repórter clandestinas ou nas câmaras de tortura do DOI-Codi a
sobre o assunto. O que o havia guiado até aquele cemité- partir de 1968: eram todas vítimas da violência de Esta-
rio, no entanto, não foram os crimes praticados contra do. Suas ossadas, cedo ou tarde, se encontrariam no
os opositores da ditadura, mas os crimes cometidos Cemitério Dom Bosco, para o qual os dois grupos con-
pelas Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, “a polícia que vergiam.
mata”, segundo o subtítulo que ele deu para o livro Rota Analisadas em perspectiva, as estatísticas falam por
Tortura, desaparecimento 66, lançado em 1992. si. “Os números da década de 70 mostram que a violên-
forçado e ocultação de Enquanto investigava a tropa de elite da Polícia cia policial foi muito maior em relação aos criminosos e
cadáveres são crimes que Militar de São Paulo para escrever seu livro, Caco Bar- cidadãos comuns”, escreveu Caco Barcellos no livro
ainda acontecem, mais
de três décadas após o cellos concluíra duas coisas. A primeira, que havia todo Rota 66. “Os latrocínios pularam de 62 (em 1970) para
fim da ditadura. Em 2013, um sistema que, na prática, autorizava policiais milita- 276 (em 1980). Os homicídios, de 666 (em 70) para
o pedreiro Amarildo Dias res a atuar a um só tempo como promotores, juízes e 1.424 (em 80). Já os assassinatos por policiais passaram
de Souza sumiu após ter
algozes, decretando a pena de morte dos bandidos que de 28 (em 70) para 280 (em 80)”. Enquanto os primeiros
sido de do e levado até
uma base da PM no bairro cruzassem seu caminho. A segunda, que, em mais da crimes quadruplicaram e os segundos dobraram em
da Rocinha, onde morava metade das ocorrências, os supostos delinquentes con- uma década, a letalidade da PM paulista cresceu dez
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

vezes. “A diferença se acentua ainda mais ao longo da fora concebida para emular as patentes do Exército,
década de 80”, diz o livro. “No mesmo período de 81 a com soldados, sargentos, tenentes, capitães e coronéis.
91, os assassinatos envolvendo PMs cresceram de tre- Sua atuação re ete a mesma doutrina de segurança
zentos para mais de mil, aumento superior a 300 por fomentada pelos generais que comandavam o país – e
cento”. nomeavam os governadores – nos anos 1960.
Passados trinta anos desde a abertura da vala de As bases da doutrina de segurança nacional institu-
Perus, o jornalista entende a execução de militantes ída no Brasil naquele período remontam ao tipo de
políticos e os crimes praticados pela PM como faces do nacionalismo professado na Escola Superior de Guerra
mesmo fenômeno: a violência de Estado. “Em 2020, em desde os anos 1940. Ali, recorria-se ao patriotismo para
plena pandemia, a Polícia Militar de São Paulo matou justi car a ordem de defender o Brasil das ameaças
mais de 500 pessoas apenas no primeiro semestre”, diz. externas, personi cadas desde 1960 no comunismo, na
“Em seis meses, mais do que a ditadura matou em 21 União Soviética. A partir de 1968, essa doutrina, bas-
anos”. Caco Barcellos faz referência aos 434 mortos e tante in uenciada pelos Estados Unidos, principal
desaparecidos políticos listados no relatório nal da antagonista da “ameaça vermelha”, passa a ser fustigada
Comissão Nacional da Verdade. Este número, é bom por outra doutrina, de origem francesa, que radicaliza
lembrar, considera somente as vítimas fatais que exerci- não somente a caça aos comunistas, mas principalmen-
am alguma atividade política de oposição à ditadura. te a repressão a toda espécie de contestação ou ação
Hoje, sabe-se que, para além dos militantes, a ditadura insurgente que despontasse na população. Agora, a
pode ser responsabilizada pelo extermínio de mais de principal ameaça não era mais a externa, mas o “inimi-
8.350 indígenas – em apenas dez etnias pesquisadas – e go interno”, ou seja, os “subversivos”.
1.196 camponeses, conforme relatórios elaborados pela Para combatê-los, a estratégia incluía métodos
mesma CNV. Para além dessas execuções, que podem como o interrogatório sob tortura e o desaparecimento
ter alcançado um número muito maior do que o ora forçado, emprestados dos franceses, que já na Segunda
conhecido, a ditadura militar foi responsável por um Guerra haviam combinado o serviço de inteligência, a
pacote muito maior de violências: 20 mil pessoas foram polícia e grupos paramilitares para colocar em prática
torturadas, mais de 4.800 representantes do povo foram uma política de desaparecimento forçado que cou
destituídos dos cargos para os quais tinham sido eleitos conhecido como “noite e neblina”: os prisioneiros deve-
pelo voto direto, e cerca de 200 mil pessoas foram perse- riam sumir na noite e na neblina, sem deixar rastros, ou
guidas. seja, sem qualquer registro de seu paradeiro. Essa políti-
Também remontam ao período de exceção os fun- ca foi amplamente utilizada pelos militares franceses
damentos teóricos que serviram de alicerce para a atua- para tentar reprimir a ação dos insurgentes que lutavam
ção das Polícias Militares, reorganizadas em 1969 a pela independência da Argélia nos anos 1950 e, na déca-
partir da fusão das Forças Públicas com as antigas Guar- da seguinte, foi transmitida aos militares norte-
das Civis. Instituídas por um decreto-lei rmado americanos, então empenhados na Guerra do Vietnã,
naquele ano pelo presidente Costa e Silva e geridas por Paul Aussaresses, agente do serviço secreto francês
pelos governos estaduais, as PMs foram concebidas nomeado instrutor nas bases militares de Fort Benning,
para serem “forças auxiliares do Exército”, segundo o na Geórgia, e de Fort Bragg, na Carolina do Norte. Em
texto legal que as criou. A Rota, fundada em 1970, sur- meados dos anos 1960, militares brasileiros tiveram
giu como unidade de elite da PM paulista para fazer aulas com Aussaresses nos Estados Unidos. De lá trou-
policiamento ostensivo no Centro e, principalmente, xeram as técnicas de tortura e de combate a guerrilhas
nas periferias de São Paulo, com a mesma disposição que seriam aplicadas no Brasil, sobretudo durante o
para o combate esperada de um soldado do Exército governo Médici (1969-1974). Em 1973, Aussaresses foi
numa zona con agrada. A própria hierarquia da PM nomeado adido militar da França no Brasil, onde viveu

206
Violência de Estado hoje

por dois anos. comum, grassa o entendimento de que policiais agem


Ambos os métodos, tanto a tortura quanto o desa- segundo regras próprias, inclusive à margem da lei.
parecimento forçado, sobreviveram ao m da ditadura, A polícia que mais mata é também a que mais mor-
assim como os grupos de extermínio. Hoje, a Rota é re. Em todo o Brasil, 343 policiais civis e militares foram
apenas uma das muitas unidades da Polícia Militar que vítimas de morte violenta em 2018 segundo levanta-
transformaram o terror em práticas cotidianas. “Como mento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O
essas unidades se reproduziram no país inteiro”, diz número é 10% menor do que no ano anterior, o que
Caco Barcellos, “no Rio de Janeiro, a 400 quilômetros da pode indicar uma bem-vinda tendência de queda, mas
base paulistana, criaram-se outras unidades matadoras. segue bastante alto. Três em cada quatro policiais mor-
No ano passado (2019), só a unidade do Rio de Janeiro tos tombaram no horário de folga (ou enquanto faziam
matou quase duas mil pessoas”. bico como segurança). Um em cada três foi vítima de
Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), latrocínio, o roubo seguido de morte. Os 87 policiais
1.810 pessoas foram mortas em supostos confrontos mortos em serviço ao longo daquele ano implicam uma
com a Polícia Militar do Rio de Janeiro em 2019. São média de um óbito a cada quatro dias, o que reforça a
cinco vítimas fatais por dia, número 18% maior do que percepção de que há algo de errado num sistema que
o registrado no ano anterior. Um recorde histórico. No produz guerra quando deveria gerar segurança. Outros
mesmo ano de 2019, o número de homicídios no Estado 104 policiais cometeram suicídio em 2018.
foi de 3.995. Por opção metodológica, e alguma perver-
são simbólica, esse índice exclui as mortes praticadas ***
pela polícia, como se o assassinato cometido por agen-
tes fardados fossem outra coisa. Ou seja, a cada três “Onde está o Amarildo?”, protestaram artistas,
vítimas de morte violenta no Rio de Janeiro, uma teve políticos, ativistas e entidades de defesa dos direitos
seu destino selado por um ou mais policiais, quase sem- humanos quando o pedreiro Amarildo Dias de Souza
pre com o beneplácito do Estado. desapareceu depois de ter sido detido por policiais
A certeza da impunidade tem sido um dos ingredi- militares e conduzido até uma base policial na comuni-
entes principais dessa estatística macabra. Em São Pau- dade da Rocinha, onde morava, em julho de 2013. A
lo, em 2019, enquanto 845 pessoas foram mortas por repercussão obrigou o Ministério Público e a Polícia
policiais militares, apenas 35 agentes foram presos. O Civil a abrir inquérito, o que provavelmente não aconte-
número de policiais condenados está em queda livre e é ceria sem que as denúncias ganhassem visibilidade. Em
o menor desde 2011, segundo a Secretaria de Segurança dezembro daquele ano, os peritos concluíram que o
Pública de São Paulo, apesar do aumento do número de pedreiro tinha sido torturado até a morte. Seus algozes
civis mortos pela PM no mesmo período. A m de foram servidores públicos que deveriam zelar pela
comparação, foram presos 114 policiais em 2012, 105 segurança da população, inclusive a dele. O corpo
em 2015 e 35 em 2019 no Estado. nunca apareceu.
O alto índice de mortes praticadas pela polícia, O Estado que mata também faz pessoas sumirem.
aliado à proliferação de chacinas e à percepção crescen- Para quem mata, o desaparecimento forçado surge
te de que grande parte das vítimas seja inocente – e não como um dispositivo capaz de afastar a hipótese,
tenha sido alvejada por resistir à prisão ou por trocar mesmo que remota, de punição: se não há corpo, não há
tiros com os policiais, como alegam a versão o cial e os crime.
autos de resistência –, acabam por comprometer a ima- Entende-se por desaparecimento forçado “a prisão,
gem da corporação. Segundo pesquisa feita pelo Data- a detenção, o sequestro ou qualquer outra forma de
folha e divulgada em abril de 2019, 51% dos brasileiros privação de liberdade que seja perpetrada por agentes
têm mais medo do que con ança na PM. No senso do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo

207
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a omisso. Omisso, inclusive, por não ter criado, até hoje,
subsequente recusa em admitir a privação de liberdade no âmbito do Poder Executivo, um sistema integrado
ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa capaz de cruzar com e ciência informações das delega-
desaparecida, privando-a assim da proteção da lei”. cias de polícia e dos Institutos Médicos Legais de cada
Esta de nição está na Convenção internacional Estado, bem como formar um banco de dados que inte-
para a proteção de todas as pessoas contra o desapareci- gre, em rede, as Secretarias de Segurança Pública dos
mento forçado, aprovada em 2006 pela Organização das diferentes Estados, iniciativa que poderia mitigar o
Nações Unidas. O mesmo documento determina que “a problema contribuindo sobremaneira para a localiza-
prática generalizada ou sistemática de desaparecimento ção de desaparecidos.
forçado constitui crime contra a humanidade” e que “O Brasil está sendo cobrado pelo cumprimento do
cada Estado tomará as medidas necessárias para res- tratado da ONU, que rati cou há dez anos, e o Governo
ponsabilizar penalmente “toda pessoa que cometa, Federal não tem muito a dizer; ele nem conseguiu
ordene, solicite ou induza a prática de um desapareci- implementar um banco de dados”, diz a promotora de
mento forçado, tente praticá-lo, seja cúmplice ou partí- justiça Eliana Vendramini, coordenadora do PLID de
cipe do ato”. Determina também que “nenhuma pessoa São Paulo.
será detida em segredo” e que, em caso de falecimento O banco de dados a que ela se refere é, hoje, uma
durante a privação de liberdade, o Estado garantirá “a exigência legal, estabelecida pela Lei Federal 13.812 de
todos que tiverem interesse legítimo nessa informação”, março de 2019, que instituiu a Política Nacional de
como os familiares, o acesso às informações sobre “a Busca de Pessoas Desaparecidas e criou o Cadastro
causa do falecimento e o destino dado aos restos morta- Nacional de Pessoas Desaparecidas. Esse cadastro não
is”. existe na prática. Sequer foram estabelecidos protocolo,
O Brasil assinou esta convenção em 2007 e a rati - equipe responsável e órgão responsável por alimentá-
cou em 2010. Desde 2011, 30 de agosto é considerado lo. O que o Governo Federal chama de Cadastro Nacio-
pela ONU o Dia Internacional das Vítimas de Desapa- nal de Pessoas Desaparecidas, hospedado no endereço
recimento Forçado. Em 2018, foram reportados à polí- www.desaparecidos.mj.gov.br, nada mais é do que o já
cia 82.094 casos de pessoas desaparecidas no Brasil, ultrapassado Cadastro Nacional de Crianças e Adoles-
aqui incluídos os desaparecimentos forçados, voluntá- centes Desaparecidos, instituído por lei federal em 2009
rios e involuntários. Apenas 52.328 foram localizadas, o e abandonado em seguida. O aspecto é de um site “pilo-
que gerou um passivo de 30 mil desaparecimentos não to”, com apenas 106 crianças desaparecidas cadastradas
solucionados somente naquele ano. Esses casos perma- no Estado de São Paulo com nome e fotogra a, a mais
necem em aberto por diferentes razões, mas sobretudo recente delas incluída em 2008.
por omissão. Do Estado. Outras iniciativas neste sentido não são do Executi-
O Estado não é omisso quando exerce deliberada- vo Federal como previsto em lei. A mais importante
mente a ação de sumir com opositores, criminosos e delas é o Sistema Nacional de Localização e Identi ca-
cidadãos inocentes. Nestes casos, ele é autor do crime. O ção de Pessoas (Sinalid), implementado em 2017 pelo
Estado é omisso quando se exime da responsabilidade Conselho Nacional do Ministério Público a partir das
de coibir o desaparecimento forçado e punir aqueles experiências dos Plids. O Sinalid tem sido abastecido
que o praticam. Ele também é omisso quando não envi- pelos Ministérios Públicos estaduais, sem equipes espe-
da esforços su cientes para prevenir o desaparecimento cí cas nem orçamento proporcional ao desa o coloca-
ou buscar soluções. do. Até setembro de 2020, a plataforma havia registrado
Signatário da convenção da ONU contra o desapa- cerca de 73 mil ocorrências, segmentadas por Estado,
recimento forçado há uma década, o Estado brasileiro ano do desaparecimento, sexo, idade e cor da pele das
tem sido criminoso, como no caso Amarildo, e também pessoas desaparecidas.

208
Violência de Estado hoje

Referindo-se às pessoas desaparecidas que vêm a de mortes não violentas – mantém esses corpos em
óbito, e que chegam aos cemitérios como corpos “não câmara fria por um período de 72 horas à espera de
identi cados”, Eliana Vendramini diz que a omissão do alguém que os “reclame”. Mesmo que o corpo tenha sido
Estado se dá quando autoridades que poderiam recor- encontrado com a cédula de identidade no bolso, di -
rer a outros dispositivos de identi cação não o fazem. cilmente a família cará sabendo de sua morte se
“Essas pessoas são nominalmente não identi cadas, nenhum parente for atrás. Não existe um serviço de
mas têm vários dados que as identi cam, para além do busca ativa ou qualquer dispositivo legal que obrigue o
nome”, a rma. “Esses dados deveriam ser minuciosa- Estado a procurar as famílias. É a família que tem de ir
mente anotados para a devida localização”. Dados ao IML ou ao SVO à procura do parente desaparecido.
antropométricos, cor da pele, dos olhos, tatuagens, O resultado é que uma pessoa sozinha, que tenha como
cicatrizes ou mesmo a roupa que vestiam ao chegar ao hábito passar mais de 72 horas sem se comunicar com
IML são elementos identi cadores. Segundo Eliana, algum familiar, ou que tenha família em outras cidades
essas informações deveriam ser anotadas pelo médico ou países, corre o risco real de ser enterrada sem que
legista durante o exame necroscópico e abastecer um amigos e parentes quem sabendo, caso venha a óbito
banco de dados que pudesse ser cotejado com as infor- na rua, vítima de uma bala perdida, um latrocínio, um
mações reunidas pelas delegacias da polícia civil junto atropelamento ou mesmo por causas naturais. Para suas
aos familiares que registrarem o desaparecimento. famílias, entrará nas estatísticas de desaparecimento e,
“Tem um boletim de ocorrência de desaparecimento, possivelmente, sua morte e seu sepultamento jamais
você pega os dados físicos da pessoa, ainda que não venham a ser conhecidos ou esclarecidos.
identi cada por nome, e compara. Para isso seria O Estado é violador de direitos, por negligência ou
fundamental interligar delegacias e IMLs”, explica. omissão, ao não evitar nada isso. “O Estado poderia se
O modelo atual, ao contrário, transforma o corpo empenhar, mas não o faz”, diz a promotora Eliana Ven-
anônimo em “não identi cado”, procedimento que dramini. “As pessoas acham que isso é lenda, ou que é
Eliana chama de “redesaparecimento”: o cidadão desa- fruto de governo ditatorial. Não, é fruto também de um
parece pela primeira vez ao sumir de casa e pela segun- governo pseudodemocrático. Porque a gente tem a
da vez por ação do Estado. Em vez de investigar, divul- necropolítica brasileira. Certas pessoas, não interessa
gar as características da pessoa, fazer um cadastro con- encontrá-las”.
sistente com informações que possam contribuir para
sua localização, mesmo que tardiamente, após o sepul- ***
tamento, o Estado não registra aquele óbito com um
mínimo aceitável de dados físicos ou de informações Necropolítica é um conceito formulado pelo lóso-
sobre o local da morte, as circunstâncias, as roupas que fo camaronês Achile Mbembe, apresentado pela prime-
usava. “Do jeito que é feito, ele nunca mais será identi - ira vez num artigo de 2003. Enquanto o Estado sobera-
cado”, diz Eliana. no, em sua forma clássica, exercia o poder político
O redesaparecimento também tem sido chamado decretando, sempre que necessário, a morte de seus
de “desaparecimento administrativo”. Outra forma de súditos, seja na forca ou na guilhotina, como forma de
desaparecimento administrativo acomete os corpos manter o controle social e evidenciar a própria sobera-
ditos “não reclamados”, aqueles que não são localizados nia, Mbembe veri ca que os Estados contemporâneos,
pelas famílias e, por isso, são sepultados à revelia dos mesmo sem o poder soberano de antigamente, manti-
parentes, em sepulturas comuns, recebendo o mesmo veram diversos dispositivos que produzem a morte
tratamento dados aos não identi cados e aos indigen- como política de Estado. “A expressão máxima da sobe-
tes. Hoje, o IML – bem como o Serviço de Veri cação de rania reside, em grande medida, no poder e na capaci-
Óbitos (SVO), para onde são encaminhadas as vítimas dade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”,

209
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

escreveu. E mais adiante: “Nesse caso, soberania é a perdido a virgindade antes do casamento e empregadas
capacidade de de nir quem importa e quem não domésticas que haviam sido engravidadas por seus
importa, quem é 'descartável' e quem não é”. patrões, deixados ali para serem deliberadamente aban-
O Estado nazista seria, segundo Mbembe, exemplo donados, para que a sociedade pudesse se esquecer
de um poder que domina exercendo o direito de matar. deles. Internados para morrer.
Essa dominação incidiria não somente sobre os inimi- Em São Paulo, todas essas pessoas poderiam ter a
gos externos, o que seria comum à maioria das guerras, vala clandestina de Perus como destino. Muitas tive-
mas também sobre os próprios cidadãos. No caso, os ram, sobretudo os mortos pela Rota, as vítimas dos
cidadãos de origem judaica, os comunistas, os negros, grupos de extermínio e os miseráveis. “A vala de Perus é
os ciganos, os homossexuais, os de cientes físicos, os uma espécie de dispositivo de desaparecimento híbri-
doentes mentais, sindicalistas, padres e adeptos de do, que combina o desaparecimento propriamente dito
outras crenças e religiões. com o desaparecimento administrativo, que já existia
E quem podia ser morto no Brasil de 1971? Os no Brasil muito antes de haver a vala”, diz o lósofo
comunistas, os “terroristas”, os “subversivos”, quase Fábio Franco, autor da tese Da biopolítica à necrogover-
sempre assassinados sob tortura, mas também os namentalidade, defendida na USP, em 2018, com orien-
pobres, os indígenas, os camponeses, os de cientes, os tação de Vladimir Safatle. “O desaparecimento admi-
gays, todos aqueles que não importavam, que eram nistrativo não é algo trazido pela ditadura. Ao contrá-
“descartáveis”, conforme o termo utilizado por Mbem- rio, ele já era parte de uma política frequente, de Estado.
be, que podiam ser abandonados para morrer. E ainda O que talvez tenha sido uma novidade da repressão foi
os delinquentes, os “trombadinhas”, os “marginais”, cuja inserir o resistente político nesse sistema de desapareci-
eliminação cava a cargo das tropas de elite da PM, mento administrativo, um sistema que persiste até
como a Rota, e dos grupos de extermínio. Muito hoje.”
comuns no período militar, os grupos de extermínio Pensando no século XXI, quem “pode morrer” no
consistiam em estruturas extrao ciais, normalmente Brasil de hoje? Todos aqueles, isso é certo, e mais as
paramilitares, que saíam às ruas com autorização tácita mulheres, os pobres, a juventude negra e periférica, a
para matar quem “merecesse”. Entre os grupos de exter- população carcerária. O pedreiro Amarildo podia mor-
mínio mais atuantes nos anos 1960 e 1970 estavam o rer. Marielle Franco, vereadora carioca de um partido
Esquadrão da Morte de São Paulo, comandado pelo de esquerda, preta, periférica, bissexual, ativista dos
delegado do Dops Sérgio Paranhos Fleury, e a Scuderie direitos humanos, também. As vítimas da política de
LeCocq, do Rio, comandada por policiais como José guerra às drogas, quase todas negras, também.
Guilherme Godinho, o Sivuca, que em 1990 seria eleito “A carne mais barata do mercado é a carne negra,
deputado estadual repetindo o bordão “bandido bom é que vai de graça pro presídio e para debaixo do plástico”,
bandido morto”. cantou Elza Soares em 2002 (o reggae A Carne, de Mar-
Outros brasileiros que podiam ser mortos naquele celo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti, foi lançado
período eram os “loucos”. Não à toa, a jornalista Daniela originalmente em 1998 em álbum da banda Farofa
Arbex deu o título de Holocausto brasileiro ao livro de Carioca). “Mais de 30 mil jovens são assassinados no
2013 em que narrou os maus-tratos e o genocídio de 60 país, fruto da violência urbana e cotidiana”, escreveu
mil internos no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Bar- Juliana Borges em O que é encarceramento em massa?.
bacena, no interior de Minas Gerais, o maior manicô- “Conseguimos a rmar de modo categórico a contradi-
mio do Brasil nos anos 1960. Segundo denúncias, 70% ção de que somos um povo e país sem qualquer precon-
dos internos não tinham diagnóstico de distúrbio men- ceito ao passo que, destes mais de 30 mil jovens, 23 mil
tal. Eram os “indesejados”: homossexuais, pessoas com deles sejam jovens negros”. Segundo o Fórum Brasileiro
de ciência, alcoólatras, mendigos, moças que haviam de Segurança Pública, as taxas de homicídio aumenta-

210
Violência de Estado hoje

ram 11,5% para negros entre 2008 e 2018, enquanto Entre 2016 e 2018, enquanto analisava as ossadas
entre os não negros se veri cou uma redução de 13% no de Perus, o Centro de Antropologia e Arqueologia
mesmo decênio. Forense da Unifesp (CAAF) abrigou a realização de um
Douglas Rodrigues tinha 17 anos e havia saído de projeto paralelo de investigação sobre os crimes de
casa junto com o irmão mais novo, de 13 anos, para maio de 2006. Naquele mês, entre os dias 12 e 20, pelo
procurar um chaveiro, quando foi baleado no peito por menos 560 pessoas foram mortas pela polícia no Estado
um policial que nem sequer saiu de sua viatura. “Por de São Paulo num arroubo de violência institucional
que o senhor atirou em mim?”, foram suas últimas pala- sem precedentes no Estado. Em 2016, uma equipe de
vras, em 2013, no Jardim Brasil, Zona Norte de São pesquisadores vinculada ao CAAF debruçou-se sobre
Paulo. O agente foi absolvido. laudos, processos e entrevistas com familiares de ses-
Mais de 200 tiros foram disparados contra o carro senta pessoas mortas na Baixada Santista naquele
do músico Evaldo Rosa dos Santos em Guadalupe, na período. Como resultado, a constatação de que houve
Zona Norte do Rio, em 2019. Do total, 83 balas atingi- truculência desproporcional e prática deliberada de
ram o carro, nove feriram Evaldo, três delas na cabeça. execução sumária: tiros que acertaram os alvos em
Evaldo foi confundido com um bandido e morreu na trajetória descendente etc. Poderiam estar todos na vala
hora. Um dos militares envolvidos na execução fez 77 de Perus, não fosse um singelo deslocamento de 35 anos
disparos contra ele. Outro disparou 54 vezes. No total, entre os mortos de ontem e os mortos de hoje.
doze militares participaram da ação e nove foram pre-
sos. Por 47 dias. ***
Ágatha Félix tinha 8 anos e voltava de Kombi da
escola para sua casa, no Complexo do Alemão, quando Ao lado dos crimes de execução e desaparecimento
foi atingida por uma bala nas costas e morreu. O tiro foi forçado, há uma terceira violência de Estado caracterís-
disparado por um policial que havia mirado um moto- tica da vala de Perus que também permanece: a oculta-
queiro que passava ao lado da Kombi. Nenhum con- ção de cadáveres, irmã siamesa dos outros dois.
fronto, nenhum tiroteio. A versão policial foi de con- A ocultação de cadáveres é, hoje, sobretudo buro-
fronto. Os agentes teriam agido em legítima defesa. Era crática. Um corpo enterrado numa vala comum, como
2019. desconhecido ou não reclamado, está, via de regra,
Também em 2019, numa madrugada de sábado, ocultado para sempre. Quem vai encontrá-lo? Ainda
uma operação policial no bairro de Paraisópolis, em assim, os dispositivos da necropolítica permanecem à
São Paulo, deixou nove mortos e doze feridos numa espreita. E o estrago pode ser maior.
festa. Segundo a versão o cial, morreram pisoteadas ao Em agosto de 2019, a Câmara Municipal de São
tentar deixar o local da festa. Segundo moradores loca- Paulo aprovou a concessão dos cemitérios públicos e do
is, os agentes distribuíram socos e pontapés que resulta- crematório da Vila Alpina. A lógica capitalista faz com
ram nas nove mortes. que os ciclos precisem ser reduzidos. Tempo é dinheiro.
Mizael Fernandes da Silva, o único branco desta Terra também é dinheiro. Neste sentido, há uma pres-
lista, tinha 13 anos e dormia quando foi morto a tiros são permanente para que as ossadas, sobretudo as de
dentro do seu quarto, na cidade de Chorozinho, região desconhecidos e não reclamados, sejam desprezadas
metropolitana de Fortaleza, no Ceará, em julho de mais rapidamente para que as sepulturas sejam ocupa-
2020. O inquérito concluiu que o menino estava arma- das por um novo corpo e assim sucessivamente. Se no
do e que os dois policiais envolvidos no homicídio agi- início dos anos 1970 uma lei municipal reduziu de cinco
ram em legítima defesa. Um deles era investigado por para três anos o prazo para a exumação dos restos mor-
torturar um homem em fevereiro de 2019. Continuou tais, a primeira versão do projeto de lei protocolado na
na ativa. Câmara em 2019 previa reduzir esse tempo para apenas

211
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

seis meses, o que foi retirado da versão nal, implemen- em condições adequadas parte do material genético, em
tada pelo decreto 59.196 de 29 de janeiro de 2020. Ao quantidade su ciente para ns de eventual identi ca-
mesmo tempo em que o aumento da rotatividade multi- ção civil.
plicaria por seis a taxa de ocupação dos cemitérios, o Ao mesmo tempo, a ocultação de cadáveres segue
que teria impacto positivo sobretudo na área econômi- como modalidade corriqueira de violência de Estado
ca, a medida, caso adotada, poderia comprometer por em sua forma mais perversa: as milícias, sobretudo no
completo qualquer tentativa de localização e identi ca- Rio de Janeiro. Milícias são arranjos so sticados que
ção futura dos remanescentes ósseos dos “desconheci- congregam quase sempre lideranças locais, políticos e
dos” e “não reclamados”. policiais e que exercem domínio territorial sobre deter-
Em 2016, quando integrei a Comissão da Memória minada comunidade, área ou região, normalmente
e Verdade da Prefeitura de São Paulo, pudemos nos antagonizando com tra cantes, embora não seja raro
debruçar também sobre este aspecto. Um primeiro que os esquemas também os envolvam. Onde o Estado
dado que nos surpreendeu foi descobrir que existe uma falta, as milícias chegariam para garantir segurança e
lei de 1967, nunca revogada, que permite a cremação de bem-estar aos moradores. Matam com espantosa natu-
desconhecidos e não reclamados. “Em caso de morte ralidade, mas sempre com uma “boa razão”: evitar os
violenta, a cremação, atendidas as condições estatuídas furtos, os roubos e outras possibilidades de violência.
neste artigo, só poderá ser levada a efeito mediante Como se dissessem: o monopólio da força agora é nos-
prévio e expresso consentimento da autoridade policial so, em nome da ordem e da segurança. Parte signi cati-
competente”, diz o parágrafo 2º do artigo 2º da Lei nº va dos moradores costuma apoiar esses arranjos,
7.017 de 19 de abril de 1967. “A Prefeitura poderá deter- mesmo sabendo que eles operam à margem da lei.
minar, observadas as cautelas indicadas nos parágrafos Segundo esse olhar, a crueldade das milícias estaria
anteriores, tal seja o caso, a cremação de cadáveres de reservada aos marginais, nunca a quem respeita as
indigentes e daqueles não identi cados”, diz o parágrafo regras, enquanto o crime comum, os assaltos, os estu-
terceiro. pros, são imprevisíveis e ameaçam a todos. Qualquer
Em nosso relatório nal, incluímos recomendações semelhança com a repressão dos tempos da ditadura
especí cas sobre a gestão dos cemitérios: “Para que a militar e com a forma como parte das pessoas se lembra
legislação municipal esteja de acordo com as práticas daquele período não é mera coincidência.
democráticas e não corrobore violações aos direitos No livro A república das milícias: dos esquadrões da
humanos em nenhuma circunstância”, diz o texto, “esta morte à Era Bolsonaro, lançado em 2020, Bruno Paes
CMV recomenda a supressão dos parágrafos 2º e 3º do Manso narra a trajetória do ex-miliciano Lobo, nome
artigo 2º da Lei nº 7.017/67, e que que proibida a ctício para um personagem real, que foi preso por três
cremação de corpos ou restos mortais de pessoas não anos, acusado de matar pelo menos vinte pessoas e
identi cadas e daquelas cujas famílias não foram locali- ocultar seus corpos em cemitérios clandestinos. Uma
zadas por ocasião do sepultamento nem posteriormen- reportagem do jornal O Dia de outubro de 2019 revelou
te (ou seja: que jamais puderam optar pelo traslado). É que, somente naquele ano, a polícia civil havia localiza-
recomendável que o Poder Executivo municipal tome a dos seis cemitérios clandestinos, com pelo menos 35
dianteira na elaboração de um projeto de lei neste senti- corpos ocultados, dois em Itaboraí e quatro na Baixada
do, e que se empenhe por sua aprovação e sanção”. Fluminense.
O decreto de 2020 manteve a possibilidade de inci- A estratégia de ação das milícias – cobrando men-
neração dos restos mortais decorrido o prazo legal de salidades dos moradores e dos comerciantes, pratican-
três anos após o sepultamento, mas, no caso dos não do o monopólio na venda de gás e de TV a cabo, mas
identi cados, introduziu no texto legal uma medida afastando as drogas e os tra cantes para longe – justi ca
mitigadora relevante: a obrigação de preservar e manter o apoio que esses grupos armados costumam receber

212
Violência de Estado hoje

nos bairros. Esse apoio acaba facilmente transferido eleitoral de 2018, declarou que seu livro de cabeceira era
para algum candidato na época da eleição: o candidato A verdade sufocada: A história que a esquerda não quer
que o chefe da milícia indicar. Em regiões con agradas que o Brasil conheça, escrito por Ustra. Dos cinco desa-
pela guerra às drogas, onde o Estado formal é ausente parecidos cujos restos mortais foram identi cados na
quanto ao dever de garantir saúde, educação, emprego e vala entre 1990 e 2020, três foram assassinados no DOI-
alimentação, e sobretudo segurança, são os milicianos Codi de São Paulo sob o comando de Ustra.
que exercem, na prática, o poder Executivo. Já na Presidência, Bolsonaro tentou instituir come-
morações nos aniversários do golpe de 1964. Em segui-
*** da, suspendeu os repasses que viabilizavam o Mecanis-
mo de Prevenção e Combate à Tortura, deixando seus
— Por que falar sobre a vala de Perus em 2020? integrantes sem remuneração e o órgão sem infraestru-
Esta questão me foi colocada por um conhecido tura. Meses depois, mexeu na Comissão Especial sobre
enquanto escrevia este livro. Pensei por alguns minutos Mortos e Desaparecidos Políticos, substituindo a presi-
antes de arriscar uma resposta. Disse a ele que, em pri- dente antes do m do mandato. Em maio de 2020,
meiro lugar, falar da violência de Estado dos anos 1970 recebeu o Major Curió, responsável pela repressão à
nos permitiria traçar paralelos e jogar luz sobre a vio- Guerrilha do Araguaia, para uma sorridente reunião no
lência de Estado de hoje. Mostraria de onde vem e res- Palácio do Planalto. Em outubro, foi o vice-presidente
signi caria o desaparecimento político, revelando o da República que elogiou Ustra em entrevista ao canal
quanto é equivocado o argumento negacionista, muito alemão Deutsche Welle. “Um homem de honra que
em voga, de que a ditadura militar só foi ruim para respeitava os direitos humanos de seus subordinados”,
quem “mereceu”, para quem era “terrorista”. Mais de mil disse Hamilton Morão sobre o notório torturador.
corpos ocultados na vala clandestina em 1976 não eram Escrever sobre a vala de Perus em 2020 também
de militantes políticos, mas de outras vítimas do Estado. traz à tona outros aspectos do momento atual. Parte dos
Lembrar a vala de Perus seria oportuno também corpos ocultados na vala é, segundo anotações feitas
para interpretar alguns elementos constitutivos do nos livros de entrada no cemitério, de vítimas de uma
contexto atual. A começar pela atuação da polícia. A epidemia de meningite que se alastrou pelo país na
PM mata mais hoje do que há 50 anos, e sua origem é, primeira metade da década de 1970. Muitas crianças
justamente, a ética militar segundo a qual o cidadão morreram. Em São Paulo, quase todas as famílias tive-
pode ser tratado como “inimigo interno” e, consequen- ram pelo menos um primo ou um neto entre as vítimas
temente, abatido. São passíveis de aniquilamento não fatais. Não deixa de ser curioso, e trágico, que em 2020
apenas os opositores políticos, mas também os indese- tenhamos novamente uma pandemia altamente letal e
jados, os desajustados. igualmente caracterizada pela subnoti cação e pelo
Escrever sobre a vala de Perus em 2020 também nos descaso das autoridades. Meio século atrás, o Estado já
coloca frente a frente com Jair Bolsonaro e sua cosmo- tentava reduzir as estatísticas de modo a evitar manche-
gonia. Logo após o massacre do Carandiru, no qual 111 tes desabonadoras. E reduzia as estatísticas não por
presos da Casa de Detenção de São Paulo foram fuzila- meio de ações de prevenção ou de combate ao vírus,
dos, em 1992, o então deputado federal Jair Bolsonaro mas por meio da ocultação de tudo: das notícias e tam-
a rmou o seguinte: “Morreram poucos; a polícia tinha bém dos corpos. Neste ano, muitos cemitérios enfrenta-
que ter matado mil”. Em 2016, declarou que “o erro da ram um aumento exponencial no número de sepulta-
ditadura foi torturar e não matar”. Ainda em 2016, Bol- mentos e viram se multiplicar o número de pessoas
sonaro dedicou à memória do torturador Carlos Alber- enterradas às pressas, em cova comum, sem identi ca-
to Brilhante Ustra seu voto a favor do impeachment de ção, muitas vezes sem esperar 72 horas. Esses corpos,
Dilma Rousseff. Dois anos depois, durante a campanha ocultados sob um regime dito democrático, serão

213
Vala de Perus: Um crime não encerrado da ditadura militar

algum dia identi cados?


A violência de Estado tem muitas faces. A história
da vala de Perus nos apresenta algumas delas. A perse-
guição política, a tortura, a prática do extermínio como
forma paradoxal de conter a violência por meio do
terror, a falsi cação de laudos e outros documentos, o
desaparecimento forçado e a ocultação de cadáveres.
Nenhuma delas desapareceu. E todas, sem exceção,
existem em maior ou menor escala desde o Brasil colo-
nial. Foram tributárias do modo de produção escravista
e constitutivas da identidade nacional. Ajudaram a
forjar as relações sociais, moldaram o comportamento
da elite e construíram uma institucionalidade calcada
no controle e na opressão, raramente na liderança e no
convencimento. Permanecem, através das gerações,
embaladas no racismo, no machismo, no controle do
corpo feminino, no patrimonialismo, na concentração
dos meios de comunicação, no desmatamento, na cen-
sura e num modelo socioeconômico que segrega e é,
por si, violento. Ou haverá violência de Estado mais
corriqueira – e banalizada – do que a fome, a desnutri-
ção, a falta de acesso a saúde, educação e moradia dig-
na?
Escrever sobre a vala de Perus em 2020 é falar dos
mortos, dos desaparecidos e dos ocultados de ontem e
de hoje. Para nos lembrar que a luta e a vigilância não
dão trégua. E que a democracia está aí para ser con-
quistada. Todos os dias.

214
Brasil: um laboratório do desaparecimento¹⁰⁹
Fábio Luíz Ferreira Nobrega Franco¹¹⁰

¹⁰⁹Uma versão anterior deste


Quando o troço virou guerra, guerra também, disseminar o pavor entre as organizações de
texto foi publicada como mesmo, é que as coisas mudaram. Por- oposição ao governo ditatorial e em toda a sociedade.
parte cons tu va da tese de que a gente também foi aprender fora, Segundo dados da Comissão Nacional da Verdade,
doutorado defendida pelo alguma coisa. Aí os per s das prisões durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985, 243 pesso-
autor em 2018 na Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências daqui mudaram. A forma de contato as foram vítimas de desaparecimento forçado, ou seja,
Humanas da USP e in tulada com os presos mudou. Surgiu a necessi- “mais da metade das 434 vítimas fatais da ditadura”
“Da biopolí ca à dade de aparelhos, porque – isso foi uma (BRASIL, 2014, p. 500). É bom sublinhar que o total de
necrogovernamentalidade:
grande lição que eu aprendi – o que causa desaparecidos por motivações políticas durante esse
um estudo sobre os
disposi vos de maior pavor não é você matar a pessoa: é período é certamente maior, segundo diversos movi-
desaparecimento no Brasil”. você fazer ela desaparecer. O destino ca mentos sociais e levando em conta os próprios fatos
¹¹⁰Fábio Luís Franco é doutor incerto. O que aconteceu, o que irá acon- apontados no segundo volume do relatório nal da
em Filosofia pela USP e
pesquisador de pós-
tecer comigo? Eu vou morrer? Não vou CNV.
doutorado vinculado ao the morrer? Entendeu? O pavor é muito Como sugere Malhães, a prática do desapareci-
Interna onal Research maior com o desaparecimento do que mento forçado predominou a partir do início da década
Group on Authoritarianism com a morte. A morte, não. Você vê o de 1970. Ainda segundo o relatório da CNV, os anos de
and Counter-Strategies of
the Rosa Luxemburg S ung cadáver do cara, o cara ali, acabou, aca- 1973, com 54 vítimas, e 1974, com 53 casos, foram os
e ao Ins tuto de Psicologia bou; não tem mais que pensar nele. O que registraram maior número de desaparecimentos
da USP. meu destino, se eu falhar, vai ser esse. Já (BRASIL, 2014, p. 502).
¹¹¹Paulo Malhães em
quando você desaparece – isso é ensina- O que motivou o uso recorrente do desaparecimen-
depoimento à Comissão
Estadual da Verdade do Rio mento estrangeiro – quando você desa- to forçado naquele período foi menos a súbita irrupção
de Janeiro, em 18 de parece, você causa um impacto muito de uma “guerra mesmo”, na expressão empregada por
fevereiro de 2014. Arquivo mais violento no grupo. Cadê o fulano? Malhães – para o bloco empresarial-militar, nunca se
CNV, 00092.002760/2014-
83, apud BRASIL, 2014, p.
Não sei, ninguém viu, ninguém sabe. tratou de outra coisa que não uma verdadeira guerra
500. Como? O cara sumiu como? contrarrevolucionária, para usarmos a designação
¹¹²A Escola Superior de cunhada pelos franceses –, mas a repercussão das
Guerra de Paris (ESG) foi o O depoimento acima foi dado por um dos poucos denúncias de casos de tortura e assassinato que força-
grande centro exportador da
doutrina francesa da guerra militares brasileiros que depuseram perante uma ram a modi cação das práticas repressivas. Essa modi-
contrarrevolucionária nas Comissão da Verdade: trata-se do coronel da reserva cação foi sintetizada na bela expressão de Marcelo
décadas de 1950 e 1960. Paulo Malhães, ex-agente da inteligência do Exército. Godoy: “do teatro ao desaparecimento”. Segundo o
Suas técnicas, testadas na
Nessa fala, ca patente que o desaparecimento, aprendi- jornalista, autor do livro A casa da vovó, no qual narra a
guerra civil da Argélia,
chegaram à América La na do com os ‘‘estrangeiros’’, tornou-se preponderante história do DOI-Codi, “as encenações teatrais de tirote-
pelas mãos de militares em um dado momento da ditadura brasileira, visando, ios para justi car assassinatos cederiam lugar ao silen-

215
cioso desaparecimento de opositores marcados para visava ainda a outro objetivo: institucionalizar o mode-
morrer”. lo político autoritário, o que signi cava, entre outras gálicos que desembarcaram
Foi em 30 de novembro de 1973 a última coisas, controlar a violência da repressão, ou melhor, no Novo Mundo, seja
vez em que os agentes simularam um controlar sua publicização para, então, garantir a legiti- cumprindo missões oficiais,
a pedido dos governos
confronto armado para tornar crível a mação do governo e um processo de abertura política locais, seja por meios
morte de guerrilheiros que haviam sido liberalizante – ainda que não democrática, a médio e extraoficiais.
presos, torturados e assassinados horas longo prazos – regida pela batuta dos que deram o gol- ¹¹³Entre os 243
desaparecidos listados pela
antes em um centro de detenção clandes- pe. Em suma, a adoção do desaparecimento como téc-
CNV, não se encontram, por
tina. ⁴ Depois deles, ninguém mais nica predominante de enfrentamento aos movimentos exemplo, camponeses e
assassinado fora do DOI apareceu. O identi cados como revolucionários fazia parte de um índios que morreram em
sumiço passou a ser a regra. Tudo virou pacote mais amplo de medidas tomadas principalmente decorrência de conflitos por
terra, ví mas de esquadrões
segredo (GODOY, 2014, p. 391) no início do governo Geisel (1974-1979). da morte, entre outros
A necessidade imperativa de “normalizar a exce- grupos sociais sobre os quais
A predominância do desaparecimento sobre outras ção” exigia acalmar as tensões entre o governo ditatorial incidiu a ditadura brasileira,
práticas repressivas também é explicitada por presos e setores in uentes da sociedade, principalmente a como revela o próprio
relatório da CNV no seu
políticos que, em 1975, assinaram a “Carta ao presiden- Igreja Católica. As críticas eclesiásticas à ditadura tor- segundo volume.
te do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil”, naram-se ainda mais contundentes em 1973, por conta ¹¹⁴Godoy refere-se à
documento que cou conhecido como Bagulhão. ⁵ “O do assassinato do estudante de Geologia da USP Ale- encenação da execução dos
guerrilheiros Antônio Carlos
expediente de procurar encobrir o assassinato de oposi- xandre Vannucchi Leme, nas dependências do DOI-
Bicalho Lana, o Bruno, e sua
tores ao regime com 'tiroteios', 'atropelamentos', 'tenta- Codi, em São Paulo. Em sua memória, o arcebispo de companheira, Sônia Maria
tivas de fuga', 'suicídios', predominou até o ano de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, recém nomeado de Moraes Angel Jones. Após
1973”, diz o texto. “Desde então, preponderou a prática Cardeal, celebrou missa na Sé no dia 30 de março de serem sequestrados por
agentes de Estado, levados
dos 'desaparecimentos' de presos políticos” (apud 1973, ⁶ véspera das comemorações pelo aniversário de para um centro clandes no
BRASIL, 2014, p. 501). Foi uma saída estratégica, uma nove anos do golpe. Além disso, em fevereiro de 1973, a de detenção, o Sí o 31 de
vez que os comunicados o ciais atribuindo a morte de Conferência Nacional dos Bispos do Brasil escolhera os Março, no bairro do Cipó, na
presos políticos aos tais 'tiroteios' já não estavam sendo 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos Zona Sul de São Paulo,
torturados e executados, os
convincentes. como tema da sua XIII Assembleia Geral. agentes precisavam
Tratava-se de um processo semelhante ao ocorrido Ao lado da Igreja, outras organizações passaram a mascarar a execução
na Argentina, uma vez que lá também as práticas explí- se aproximar da causa dos direitos humanos, amplian- sumária do casal. “Os corpos
foram colocados nos porta-
citas de execução estavam sob a mira de diferentes seto- do o coro dos críticos ao regime ditatorial. Uma delas foi
malas de carros e levados
res da opinião pública e de organismos internacionais. a Ordem dos Advogados do Brasil, que assumiu clara- até a zona sul. Ali ocorreu o
Como fuzilar centenas ou até milhares de opositores? mente o lado da oposição à ditadura dedicando sua V teatro simulando a
Entregar esses milhares de “inimigos internos” para a Conferência Nacional, em 1974, ao tema “O advogado e perseguição e o roteio.
Uma tenente da PM, amiga
justiça comum também não era uma opção, pois, da os direitos do homem”. Mesmo grupos simpatizantes ao de Neuza, encenou o papel
mesma forma como justi cavam os militares franceses golpe e avessos ao “comunismo” cavam sensibilizados de Sônia enquanto um
na Argélia, isso apenas sobrecarregaria os tribunais, que com as crescentes denúncias envolvendo a participação agente fez o de Bruno”
não trabalhariam no tempo exigido pela guerra. Então, de militares em casos de tortura e execuções sumárias. (GODOY, 2014, p. 398).
¹¹⁵SÃO PAULO (Estado).
como solucionar o problema dos guerrilheiros que não Tudo isso exigia uma nova economia do poder Assembleia Legisla va.
poderiam ser fuzilados nem entregues à Justiça? Os ditatorial: tornava-se premente ocultar sua face repres- Comissão da Verdade do
militares argentinos optaram por sistematizar e genera- siva, ao mesmo tempo que se abriam canais de diálogo Estado de São Paulo ‘‘Rubens
Paiva’’. ‘‘Bagulhão’’: a voz
lizar uma prática já conhecida: o desaparecimento for- (seletivo) com a sociedade civil – isto é, sobre pautas
dos presos polí cos contra
çado. determinadas e com grupos especí cos. A distensão do os torturadores. São Paulo:
No Brasil, o recurso às técnicas de desaparecimento regime rumo a uma “democracia relativa”, nos termos ALESP, 2014.

216
de Geisel, não poderia prescindir “de instrumentos do 36º Distrito Policial de São Paulo, localizado na rua
excepcionais” para a manutenção da ordem, todavia Tutóia. Esse órgão possuía um estatuto particular, pois,
esses precisavam desaparecer juntamente com as víti- ao mesmo tempo que respondia ao Centro de Informa-
mas. ções do Exército (CIE), situava-se fora de hierarquia
É no interior dessa nova economia do poder que se militar, gozando de certa autonomia para centralizar e
consolida a montagem dos dispositivos de desapareci- coordenar ações conjuntas entre diferentes organismos
mento no Brasil. A respeito desses dispositivos, é de segurança. Graças a essa particularidade, a Oban
importante ressaltar que eles resultam não apenas das estava ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento
técnicas adquiridas nas guerras coloniais “estrangeiras”, jurídico, o que permitia aos agentes dessa instituição
mas também de estruturas já existentes, ⁷ criando uma encobrir ações ilegais sob o manto do sigilo:
ampla articulação institucional em torno do desapare-
cimento forçado. Tal articulação aparece claramente a Subordinada à 2ª Seção do estado-maior
partir da análise do modus operandi do desaparecimen- das grandes unidades, essa célula repres-
to. siva era uma anomalia na estrutura mili-
Essa análise tem sido bastante prejudicada em tar convencional. Na originalidade e na
decorrência da di culdade de acesso aos arquivos autonomia, assemelhava-se ao dispositi-
militares e do silêncio dos responsáveis pelo desapare- vo montado pelo general Massu em
cimento de pessoas. Dos poucos agentes de Estado que Argel. Num desvio doutrinário, essa
contribuíram para o esclarecimento de violações de unidade de centralização das atividades
direitos humanos ocorridas na ditadura, destacam-se repressivas operava sob a coordenação
os depoimentos de três militares que detalharam alguns do Centro de Informações do Exército,
dos métodos e das técnicas utilizadas para fazer desapa- órgão do gabinete do ministro
recer corpos na ditadura (SÃO PAULO, 2015, p. 336): o (GASPARI, 2002, p. 60-61).
já mencionado Paulo Malhães, Cláudio Guerra e Mari-
val Chaves. Evidentemente, como pondera o próprio A referência de Gaspari ao comandante militar de
¹¹⁶Vale destacar que, antes relatório da CNV, é necessário tomar suas declarações Argel, General Massu, não pode passar despercebida,
da morte de Vannucchi
Leme, “a repressão entrara com cautela, posto que podem estar baseadas em estra- pois ela explicita a presença do ensino francês no mode-
em choque contra o clero tégias de contrainformação (BRASIL, 2014, p. 518), lo de guerra contrarrevolucionária que os militares
diretamente, tanto no caso mas isso não impede que se extraia delas material capaz adotaram no Brasil. Em janeiro de 1957, o governo
dos frades dominicanos
de esclarecer as formas de desaparecimento utilizadas francês atribuiu a Massu poderes de polícia para coibir a
presos e torturados durante
a caçada a Marighella pelos agentes da ditadura. ascensão dos movimentos pela independência da Argé-
quanto no assassinato do A articulação institucional para a produção do lia. Essa decisão foi interpretada, corretamente, pelos
padre Henrique Pereira desaparecimento tinha como principal eixo organiza- militares como uma passagem de bastão no governo da
Neto, assessor de Dom
Helder Câmara, arcebispo de
dor o Exército, embora as outras armas também manti- segurança na colônia africana. Dotados das atribuições
Olinda e Recife e símbolo da vessem seus próprios centros de repressão e de inteli- policiais, os militares tinham uma vantagem a mais: “o
Igreja progressista nos anos gência, como o Centro de Informações da Marinha exército está habilitado a exercê-las fora de todo o qua-
1960 e 1970” (NAPOLITANO, (Cenimar) e o Centro de Informação e Segurança da dro legal” (ROBIN, 2008, p. 95). É nesse contexto que o
2014, p. 244).
¹¹⁷Tais estruturas incluíam Aeronáutica (Cisa). A pedra angular desse sistema general Paris de la Bollardière pronunciou esta frase: “O
um conjunto de processos institucional responsável pelo desaparecimento foi a exército, pouco a pouco, conquistou um após o outro
burocrá cos e ro nas criação, em julho de 1969, da Operação Bandeirante todos os instrumentos do poder, aí compreendido o
ins tucionais para a
(Oban), uma agência de repressão, nanciada por judiciário, e se tornou um verdadeiro Estado no Estado”
produção do cadáver
desconhecido que empresários, daqui e de alhures, e rmemente apoiada (ROBIN, 2008, p. 95).
antecediam o golpe de 1964. por certos políticos, que funcionava nas dependências No Brasil, a concentração dos poderes de segurança

217
nas mãos do Exército, cujo ponto de partida foi a Opera- Polícia Civil.
ção Bandeirante, estabeleceu-se de nitivamente em No caso de São Paulo, a Comissão Parlamentar
1970, num documento assinado pelo então ministro criada para investigar o caso da vala clandestina de Perus
Orlando Geisel, intitulado Diretriz de Segurança Inter- revelou que as prisões extrajudiciais e informações extra-
na, posteriormente consolidado pelo presidente Médici ídas – na maioria das vezes sob tortura – pelo DOI-Codi
por meio da criação do Sistema de Segurança Interna, eram formalizadas, ganhando aspecto o cial no Depar-
que submetia todos os órgãos da administração pública tamento de Ordem Política e Social (Dops/São Paulo),
nacional à coordenação do comando uni cado da que, em 1975, passou a ser designado como Departa-
repressão política, bem entendido, ao Exército. Desse mento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo
processo nasceram, em 1970, com o propósito de aperfe- (Deops/ SP). Embora também coubesse aos DOI-Codi
içoar e ampliar a atuação da Oban paulista de forma a prender e obter informações necessárias para o desman-
abarcar outras regiões do Brasil, os Destacamentos de telamento dos movimentos de oposição ao regime dita-
Operações de Informações (DOI), que atuavam como torial, “era no Dops que os depoimentos obtidos no
organismos operacionais dos Centros de Operações de DOI-Codi eram o cializados e que, eventualmente, a
Defesa Interna (Codi). Assim, instalaram-se os DOI- prisão era assumida com a comunicação das autoridades
Codi de São Paulo, do Rio de Janeiro, do Recife, de Brasí- judiciais e a suspensão da incomunicabilidade do preso”
lia, de Curitiba, de Belo Horizonte, de Salvador, de Belém (CPI PERUS apud BRASIL, 2010, p. 108). O caráter
e de Fortaleza (GASPARI, 2002, p. 179-180). Sobre o o cial do Deops/SP não impediu que oito pessoas desa-
funcionamento desse órgão, a rma a CPI Perus: parecessem nesse local, entre 29 de junho de 1969 e 20 de
outubro de 1973, de acordo com a CNV (BRASIL, 2014,
Em cada jurisdição territorial, os Codi p. 549).
detinham o comando efetivo sobre todos Finalmente, nalizando a composição dessa organi-
os organismos de segurança existentes na zação institucional desaparecedora, encontram-se os
área, tanto das Forças Armadas como dos centros clandestinos, os tais “equipamentos” a que se
policiais estaduais e federais. [...] Tinham referia Malhães na citação com que abrimos este texto,
atribuição de garantir a coordenação e a ponto máximo do processo de invisibilização do próprio
execução do planejamento das medidas poder desaparecedor. Evidentemente, como diz Elio
de ‘‘Defesa Interna’’, nos diversos escalões Gaspari referindo-se ao aparelho de Petrópolis, seria
do Comando, e de viabilizar a ação conju- “um erro” chamá-lo de clandestino.
gada da Marinha, Aeronáutica, SNI, Polí-
cia Federal, Polícia Civil e Polícia Militar. O comandante da PE [Polícia do Exérci-
O comando das ações cava a cargo dos to] sabia da sua existência. Em 1973, um
DOI. Os DOI-Codi contavam com dota- general revelou a Geisel que havia outras
ções orçamentárias regulares, o que per- instalações, no Alto da Boa Vista. Os
mitia uma ação repressiva muita mais “doutores’’ que nela operavam cumpriam
aparelhada. (apud BRASIL, 2010, p. 106) escalas de serviço do Centro, dentro da
sua hierarquia e de acordo com seu
A criação dos DOI-Codi fomentou o aparecimento comando. Era um dispositivo comple-
de centros secundários de repressão e informação a eles mentar aos DOIS. Estes, com todas as
vinculados. Essa estrutura de cooperação funcionava em suas anomalias, vinculavam-se à rotina
instalações o ciais formadas por delegacias, quartéis, administrativa do Exército. Já o aparelho
presídios, auditorias militares, secretarias de segurança dispunha de uma autonomia outorgada
ou Departamentos de Ordem Política e Social (Dops), da pela che a. (GASPARI, 2002, p. 378-379)

218
O ex-coronel Paulo Malhães, em durante a decomposição zesse o corpo
depoimento à Comissão Nacional da boiar. [...] Em seguida, eram colocados
Verdade, afirma que os corpos de em sacos impermeáveis com pedras, e
lançados em um rio que, no caso de
presos na Casa da Morte de Petrópolis
Rubens Paiva, ⁹ estaria localizado na
eram descaracterizados e, depois, região serrana do Rio de Janeiro. Segun-
jogados em rios para que do disse, havia um “estudo de anatomia”
desaparecessem que levava em conta o inchaço dos cor-
pos para estabelecer o peso que teria de
Essa autonomia conferia aos “equipamentos’’ uma ser acrescentado ao saco, para que o
existência sem lugar, verdadeiros espaços de exceção corpo não viesse à tona, fosse desviado
nos quais agentes da repressão decidiam sobre as leis. para as margens ou depositado no fundo
Uma listagem completa desses locais não é possível em do rio, e seguisse a correnteza e desapare-
razão do próprio estatuto de invisibilidade que os carac- cesse (BRASIL, 2014, p. 519).
terizava; ainda assim, vale mencionar alguns para reve-
lar a disseminação desses centros em várias regiões do Técnicas semelhantes teriam sido empregadas,
país: no Estado do Rio de Janeiro, existiram a Casa da segundo o mesmo depoente, por ocasião da chamada
Morte ou Casa de Petrópolis, a Casa de São Conrado e “Operação Limpeza”, cujo objetivo seria apagar os vestí-
instalações no Alto da Boa Vista; no Estado de São Pau- gios do extermínio dos militantes que atuavam na
lo, citam-se a Fazenda 31 de Março de 1964, na região de região do Araguaia. Também nesse caso, após a exuma-
Parelheiros, a Casa de Itapevi, uma fazenda na Rodovia ção dos corpos e sua descaracterização – que consistia,
Castello Branco, a casa no bairro do Ipiranga; em outros de acordo com Malhães, em quebrar os dentes e retirar
Estados, há a casa dos Horrores, nos arredores de Forta- as impressões digitais dos dedos para que os corpos dos
leza (CE), a Fazendinha, em Alagoinhas (BA), o Colégio guerrilheiros não pudessem ser identi cados –, os
Militar, em Belo Horizonte (MG), o subsolo do SNI, em cadáveres do Araguaia foram colocados em sacos e
¹¹⁸Para uma descrição de Recife (PE), o centro de tortura, em Olinda (PE), a “Do- lançados no Rio Araguaia.
cada um desses
pinha”, em Porto Alegre (RS), a Clínica Marumbi, em Outra técnica de desaparecimento utilizada pela
equipamentos, ver o livro
Habeas corpus: que se Curitiba (PR), as Granjas do Terror, em Campina Gran- ditadura foi exposta pelo ex-delegado da Polícia Civil
apresente o corpo (BRASIL, de (PA), a Casa Azul, em Marabá (PA). ⁸ do Estado do Espírito Santo, Cláudio Antônio Guer-
2010, p. 110-111) e o Sobre as técnicas usadas para o desaparecimento de ra, ⁰ em depoimento à Comissão Nacional da Verdade.
relatório da CNV (BRASIL,
2014, p. 792-829). corpos nesses locais, voltemos às declarações dos mili- Segundo Guerra, ele teria levado corpos de desapareci-
¹¹⁹Sobre o caso Rubens Paiva, tares citados. O ex-coronel Paulo Malhães, em depoi- dos da ditadura, executados ou na Casa da Morte de
ver o úl mo volume do mento à Comissão Nacional da Verdade, a rma que os Petrópolis ou no quartel da Polícia do Exército, localiza-
relatório da Comissão
corpos de presos na Casa da Morte de Petrópolis eram do na rua Barão de Mesquita, na capital carioca, para
Nacional da Verdade:
BRASIL, 2014, p. 519-528. descaracterizados e, depois, jogados em rios para que serem incinerados no forno da usina Cambahyba, na
¹²⁰No depoimento à CNV, desaparecessem. cidade de Campos de Goytacazes, no Estado do Rio de
Guerra reafirma denúncias já Janeiro, que pertencia ao ex-vice-governador do Rio de
feitas para os jornalistas
Paulo Malhães comentou as fases da Janeiro, Heli Ribeiro Gomes. A prática da incineração,
Rogério Medeiros e Marcelo
Ne o em Memórias de uma ocultação dos cadáveres, iniciada com a de acordo com o depoente, teria começado a partir de
guerra suja. Rio de Janeiro: descaracterização das vítimas. Segundo 1974 ou 1975:
Topbooks, 2012. ele, a arcada dentária e as pontas dos
¹²¹Nesse quartel, foi
instalado o DOI-Codi do Rio dedos eram retiradas e o ventre era corta- [...] Nesse período aí, 74, 75, na mudança
de Janeiro. do para impedir que a produção de fezes da política americana, começou uma

219
pressão muito grande em cima daqui do Uma das especificidades da ditadura
governo por causa do desaparecimento de
brasileira foi complementar as técnicas
corpos. Precisava. Os coronéis que esta-
vam no comando do país [...]. Queriam
de desaparecimento desenvolvidas no
um meio de desaparecer mesmo. Então contexto das guerras coloniais com
foi dada essa ideia de se incinerar os cor- processos de desaparecimento que
pos porque aquilo: “Ah, cortou em peda- transcorriam em organismos
ços, jogou em tal lugar”. Houve essas práti- oficialmente responsáveis pela gestão
cas. Não estou dizendo que não houve, da morte
houve. Agora, de 75 para cá foi mudado o
sistema. Era incinerado. (BRASIL, 2014, p.
520).

Ainda sobre as técnicas de desaparecimento, o ex- Uma das especi cidades da ditadura brasileira foi
sargento Marival Chaves, também em depoimento à complementar essas técnicas de desaparecimento,
CNV, a rma que o esquartejamento dos corpos com a desenvolvidas no contexto das guerras coloniais, com
dispersão das suas partes seria um método bastante utili- processos de desaparecimento que transcorriam em
zado pelos agentes da ditadura, inclusive na Casa da organismos o cialmente responsáveis pela gestão da
Morte de Petrópolis: morte e frequentemente utilizados para desaparecer
com milhares de pessoas sem qualquer envolvimento
Marival Chaves Dias do Canto: Porque político, como testemunha o caso da vala clandestina de
quando eu falo de esquartejamento [...]. E Perus. Assim, são recorrentes no período ditatorial
aí quem me falou foi uma pessoa que já situações nas quais ocorre
passou por aqui e que nada falou [...]. Que
eu sei que nada falou, que é o senhor Mag- O sepultamento deliberado de militantes
no, ou Magro, como é o nome dele, meu em valas clandestinas, como indigentes,
Deus? Que era um dos carcereiros da Casa por vezes com identi cação, ou ainda
de Petrópolis, não vem ao caso agora, eu com indicação errada de localização. Por
não estou me recordando do nome, mas vezes, há informações ou indicações
eu já falei muito sobre ele. Por isso, o que sobre a sepultura, mas a localização é
eu estou dizendo agora corrobora exata- di cultada, seja porque os corpos foram
mente com o meu depoimento lá atrás. O levados para valas comuns, seja porque
cadáver para ser desaparecido, não é? foram feitas modi cações nas plantas
Segundo esse nosso amigo aí. Eles inclusi- dos cemitérios. (BRASIL, 2014, p. 502)
ve, ele e mais dois outros, um chamado
Pardal e outro chamado [...]. Fugiu o A esse respeito, muitos casos poderiam ser lembra-
nome dele outra vez. Eles discutiam entre dos. Fiquemos com um deles, que, não por contingên-
si quantas partes daria aquele cadáver. cia, liga-se ao Cemitério de Perus: trata-se de Gélson
CNV: Como se fosse um açougue? Reicher e Alex de Paula Xavier Pereira, ambos militan-
Marival Chaves Dias do Canto: Como se tes da Ação Libertadora Nacional (ALN). Eles foram
fosse um açougue. Porque o corpo era executados por agentes da repressão em 1972. Porém, a
completamente retalhado. (BRASIL, versão da polícia, veiculada pela imprensa à época e, até
2014, p. 522) recentemente, mantida pelas Forças Armadas, dizia se

220
tratar de morte decorrente de resistência à prisão. Os vel legal pelos serviços funerários do
laudos dos exames necroscópicos, dos quais um dos município de São Paulo, com os órgãos
signatários foi o médico-legista Isaac Abramovitc, da repressão, funcionários do IML, médi-
corroboram essa versão policial, desconsiderando que cos legistas, o ciais do DOI-Codi e
os cadáveres apresentavam padrões de ferimentos com- policiais civis e militares com o propósito
patíveis com situações de execução – como recente- de sonegar informações sobre os oposi-
mente apontou a equipe pericial da CNV, as feridas na tores políticos e desaparecer com os
face e no esterno indicam que os atiradores se situavam corpos enterrados nos cemitérios paulis-
em plano superior ao que estava posicionado Alex. tanos. (SÃO PAULO, 2016, p. 143)
Além disso, os laudos foram lavrados com os nomes
falsos Emiliano Sessa e João Maria de Freitas, respecti- Na capital paulista, três cemitérios foram usados
vamente, com os quais os dois militantes foram encami- para desaparecer com cadáveres de opositores políticos:
nhados para sepultamento como ‘‘indigentes” no Cemi- o já referido Cemitério Dom Bosco, em Perus, o Cemi-
tério Dom Bosco, no bairro de Perus. Outra peça no tério de Vila Formosa, na Zona Leste da cidade, e o
mecanismo de desaparecimento de Gélson e Alex: a 2ª Cemitério de Campo Grande, na Zona Sul. Neles, infor-
Auditoria Militar recebeu ofício do Dops/SP comuni- ma a CMV/PMSP, entre 1969 e 1976, foram sepultados
cando a morte dos militantes bem como informando como desconhecidos 47 cadáveres de militantes, isto é,
¹²²Em depoimento à CPI de que os óbitos foram lavrados com aqueles nomes falsos. quase 60% do total de inumações de opositores da dita-
Perus, Abramovitc confirmou
Contudo, o Juiz Auditor Nelson da Silva Machado Gui- dura realizadas na capital paulista. ⁴ Tal cifra expõe a
“que assumiu o
compromisso de colaborar marães, de posse de documentos ilegais, e ciente da frequência com que a repressão recorreu ao ocultamen-
sem restrição com os órgãos adulteração das informações, apenas declarou a extin- to de cadáveres como técnica privilegiada de desapare-
de repressão polí ca” ção de punibilidade em relação a Gélson e Alex, sem, cimento.
(BRASIL, 2014, p. 513).
¹²³“Em depoimento à CNV contudo, avisar as famílias, determinar a reti cação dos O mesmo aconteceu em outras regiões do Brasil,
em 31 de julho de 2014, o documentos e proceder com o indiciamento dos envol- principalmente nos Estados do Rio de Janeiro e de Per-
juiz Nelson da Silva Machado vidos. nambuco. O livro Habeas corpus: que se apresente o
Guimarães reconheceu que
Nesse caso, impõe-se também considerar o papel corpo (BRASIL, 2010) dá ideia da magnitude dessa
recebia atestados de óbito
com nomes falsos de determinante do serviço funerário no processo de desa- prática no país apresentando a lista de cemitérios utili-
militantes polí cos que parecimento dos corpos dos militantes. São atribuições zados pela repressão, com o apoio dos IMLs e dos servi-
estavam sendo processados dos municípios, em todo o Brasil, a administração dos ços funerários, para o desaparecimento de corpos: além
à revelia e que, com bases
neles, determinava a
cemitérios públicos e a scalização daqueles pertencen- dos três cemitérios municipais de São Paulo, no Estado
ex nção da punibilidade por tes a associações religiosas. Em São Paulo, até 1976, o existem ainda o Cemitério de Areia Branca, em Santos,
morte. O juiz admi u que Serviço Funerário era responsável pelos funerais e o Cemitério do distrito de Parelheiros; no estado do
não ordenava a re ficação enquanto as atividades de construção e gestão dos cemi- Rio de Janeiro, são elencados os cemitérios de Ricardo
dos atestados para corrigir a
iden ficação das ví mas e térios estavam sob o comando de um departamento de Albuquerque, de Santa Cruz, São Francisco Xavier
tampouco prestava especí co, o Cemit. Desde 1976, ano em que a vala (no Caju), de Inhaúma, da Caucáia (na Ilha do Gover-
informações às famílias que, clandestina de Perus foi construía, todas as atividades nador) e os cemitérios de Petrópolis e Itaipava; no Esta-
àquela altura, estavam à
referentes aos cemitérios, da administração às cerimô- do de Pernambuco, os cemitérios de Santo Amaro e da
procura de seus parentes”
(BRASIL, 2014, p. 506). nias, foram uni cadas sob a alçada do Serviço Funerá- Várzea, ambos em Recife, e o Cemitério Dom Bosco, em
¹²⁴Segundo a CMV/PMSP, no rio. Segundo apurou a Comissão Municipal da Verdade Caruaru; no Estado de Tocantins, antigo Estado de
município de São Paulo da Prefeitura Municipal de São Paulo (CMV/PMSP), Goiás, Cemitério de Natividade, Cemitério de Guaraí e
foram sepultados 79 corpos
de militantes polí cos
Cemitério de Paraíso do Tocantins; no Estado de Minas
durante a ditadura (SÃO há evidências irrefutáveis da cooperação Gerais, o Cemitério Municipal de Juiz de Fora (BRASIL,
PAULO, 2016, p. 141). da administração municipal, responsá- 2010, p. 129-133).

221
O governo da morte
Tais alterações foram realizadas sem
Voltando ao caso de São Paulo, é interessante subli- qualquer projeto formal, registro ou
nhar que a maior parte dos sepultamentos de presos cautela em preservar a possibilidade de
políticos como cadáveres não identi cados ocorreu futura localização de sepulturas. Ruas
entre 1969 e 1973, ⁵ portanto antes do período de pre- foram alargadas e árvores plantadas.
ponderância da técnica de desaparecimento forçado no Toda a área em que está situada a antiga
Brasil. Dessa incongruência de datas, duas hipóteses quadra 11, que acabou cando conheci-
podem ser extraídas: em primeiro lugar, que, se a análi- da como a quadra dos ‘‘terroristas’’, foi
se se concentra nas práticas de desaparecimento, é pos- descaracterizada. [...] Dessa maneira, a
sível constatar que as decisões nem sempre partem dos antiga quadra 11 desapareceu e as qua-
centros de tomada de decisão para os organismos dras próximas, que também sofreram
subordinados, como se o uxo do poder escoasse em alterações, foram renumeradas. Não há
um único sentido das instâncias hierarquicamente registros de exumação para que os novos
superiores para as inferiores. De fato, não podemos traçados e alargamento das ruas fossem
desconsiderar que os organismos de repressão, em feitos, sendo que o mais provável é que as
razão da autonomia administrativa e decisória de que ruas tenham sido abertas com a violação
gozavam, tinham capacidade de estabelecer procedi- das sepulturas pela passagem do maqui-
mentos locais, alguns dos quais, por diferentes vias, nário pesado. O mesmo ocorreu com os
acabavam se generalizando, sendo con rmados pelas corpos enterrados no local onde as árvo-
instâncias de che a. A esses poderes subo ciais, res foram plantadas. [...] Foi também
micropoderes descentralizados e espalhados em dife- criada uma vala ou ossário clandestino
rentes instituições da repressão, deve-se certamente naquele cemitério, visto que não há
grande responsabilidade na montagem dos dispositivos registro nos livros próprios, e utilizado
desaparecedores. em meados da década de 70, o qual pode
Em segundo lugar, podemos supor que, após o ter sido utilizado como destino das ossa-
sepultamento daqueles cadáveres, um segundo proces- das exumadas por ocasião das alterações
so desaparecedor incidiu sobre aquele primeiro, levan- acima mencionadas [...]. (BRASIL, 2010,
do à criação da vala clandestina, em 1976, no Cemitério p. 128-129; BRASIL, 2014, p. 508-509)
Dom Bosco, e, na mesma época, ao replanejamento do
Cemitério de Vila Formosa, que até 1971, quando foi Dado o vínculo administrativo que unia o Serviço
inaugurada a necrópole de Perus, era utilizado para Funerário ao governo municipal, o replanejamento da
inumação dos corpos dos militantes. A simultaneidade área do Cemitério de Vila Formosa não ocorreria se a
com que se deram esses dois procedimentos levou o Prefeitura Municipal de São Paulo não tivesse de algu-
Ministério Público Federal da 3ª Região, em relatório ma forma autorizado as intervenções na área. Trata-se
datado de 10 de setembro de 2010 e assinado pelos pro- de mais um exemplo da articulação profunda entre
curadores da República Eugênia Augusta Gonzaga e diferentes níveis de governo, organismos e agentes da
Marlon Alberto Weichert, a concluir que se tratava de repressão com o objetivo de desaparecer uma segunda
“ação coordenada, planejada para promover a oculta- vez com aqueles que já estavam desaparecidos.
ção dos corpos” (BRASIL, 2014, p. 509). No entanto, apesar de não haver registro de inuma-
Sobre as alterações realizadas no Cemitério de Vila ções de militantes políticos nos cemitérios de São Paulo ¹²⁵Os dados são do relatório
Formosa, o relatório do Ministério Público Federal entre novembro de 1973 e agosto de 1975, a entrada de da CMV/PMSP (SÃO PAULO,
descreve-as em detalhes: corpos desconhecidos no Cemitério de Perus não ces- 2016, p. 150).

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sou. Dados apresentados no relatório da Comissão
Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São
Paulo mostram que, no período de março de 1971, De 1971 a 1980, quase 5 mil cadáveres
quando o primeiro sepultamento é realizado na necró- deram entrada no cemitério de Perus
pole Dom Bosco, a 1980, quase cinco mil cadáveres iden ficados como “desconhecidos”
entraram no cemitério identi cados como “desconhe-
cidos” (SÃO PAULO, 2015, p. 13). A maior parte desses
mortos foi registrada nos livros de sepultamento do meses até serem depositados na vala clandestina.
cemitério em 1972 e entre 1974 e 1976. Assim, mesmo Nos IMLs, procedimentos ‘‘especiais’’ também
que os mecanismos de gestão da morte não estivessem eram adotados para minimizar os ruídos que poderiam
sepultando desaparecidos políticos nesses anos, muitas interferir no desaparecimento. Segundo a rma a CNV,
outras pessoas foram capturadas pelo dispositivo de
desaparecimento, convertendo-se em corpos desconhe- havia orientação para que as fotos da
cidos. necropsia não fossem esclarecedoras.
Se o baixo número de desaparecidos políticos refu- Segundo Josué Teixeira dos Santos, admi-
taria, para alguns, a existência de um poder desaparece- nistrador do necrotério, exigência vinda
dor no país, que sirva como contraprova o fato de que do comando da Oban e, depois, do DOI-
mais de 550 cadáveres desconhecidos foram sepultados Codi/SP determinava que apenas a cabe-
por ano, no período de 9 anos, em um único cemitério ça da vítima deveria ser fotografada. Ele
do município de São Paulo. Além dos alvos do momen- relatou, inclusive, que foi repreendido
to, isto é, os militantes que atuavam contra a ditadura, os quando fotografou um “terrorista” mos-
dispositivos de desaparecimento sempre funcionaram trando também o tórax. Além disso, o
administrando as mortes de muitos outros setores da tratamento dado a presos políticos inclu-
população, gerindo seus sepultamentos, decidindo ía menor tempo na geladeira, para que os
sobre a identi cação como não identi cados de corpos fossem liberados mais rapida-
cadáveres determinados. mente, descumprindo o procedimento
A colaboração articulada para a produção do desa- padrão de manter o corpo por três dias
¹²⁶Segundo o relatório da parecimento abarcava, também, o não cumprimento de no IML, à espera de familiares. O traba-
CMV/PMSP, essa lei nha procedimentos técnicos e de normativas emanadas pelo lho de legistas de con ança da repressão
como jus fica va ‘‘a
próprio poder público (SÃO PAULO, 2016, p. 167-182). garantia a tomada de uma série de preca-
necessidade de liberar
espaço para novos Exemplos desse tipo de irregularidade são encontrados uções para impedir a localização dos
sepultamentos, ainda que as nos processos de exumação, como revela o relatório corpos e a apuração do ocorrido.
no cias veiculadas na nal da CMV/PMSP (SÃO PAULO, 2016, p. 167-174). (BRASIL, 2014, p. 513)
imprensa apontassem que
tal déficit não exis a na Em 1971, a Lei Municipal 7.656 alterou de cinco para
cidade depois da três anos a concessão de sepultura para adultos, período Além disso, o trabalho investigativo de diversas
inauguração dos cemitérios após o qual os restos mortais poderiam ser removidos, Comissões da Verdade comprovou o que movimentos
de Perus, Vila Nova
abrindo espaço para outro cadáver. ⁶ Os despojos não de familiares e de ex-presos políticos bem como organi-
Cachoeirinha e São Pedro. A
mudança na legislação reclamados por familiares deveriam ser reinumados na zações de direitos humanos há tempos denunciavam: a
permi u que, entre 1975 e mesma sepultura, alguns palmos abaixo, com os respec- colaboração dos IMLs com os processos de desapareci-
1976, ocorressem grandes tivos registros. Contudo, isso não aconteceu nas exuma- mento por meio da validação de versões falsas sobre a
exumações de indigentes
ções em massa no Cemitério Dom Bosco; ao contrário, execução de militantes e da emissão de laudos necros-
sepultados em Perus nos
anos de 1971 e 1972”. (SÃO os restos mortais ali exumados foram removidos para a cópicos ou certidões de óbito fraudulentas, com adulte-
PAULO, 2016, p. 170-171) sala do velório onde permaneceram abandonados por ração do nome da vítima, modi cação da causa mortis,

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omissões de informações sobre as condições do óbito o comparecimento de repórteres e nem
(sobretudo, em resposta ao quarto quesito do laudo mesmo o caixão foi aberto durante o
necroscópico, que pergunta: “[a morte] Foi produzida período de nossa permanência no veló-
por meio de veneno, fogo, explosivo, as xia ou tortura, rio e no sepultamento. (Documento da
ou por outro meio insidioso ou cruel?’’). No seu relató- Delegacia Especializada de Ordem Polí-
rio nal, a CNV indica 49 médicos-legistas como tica, 01/03/1972, investigações nº 069
autores diretos ou cúmplices de condutas que resulta- apud SÃO PAULO, 2016, p. 147)
ram em graves violações de direitos humanos.
(BRASIL, 2014, p. 873-931) Por isso, é importante insistir que os desapareci-
mentos ocorridos na e pela ditadura brasileira depen-
Até mesmo os sepultamentos dos corpos de mili- deram da articulação direta ou indireta de rotinas buro-
tantes entregues aos familiares eram monitorados pelos cráticas, normativas, trânsitos judiciais, instituições
órgãos da repressão. A CMV/PSMP relata a presença diversas (destacamentos policiais, quartéis, cemitérios,
ostensiva de agentes de Estado durante os velórios e hospitais, institutos médico-legais etc.), gestão de u-
sepultamentos, intimidando parentes e amigos do fale- xos cadavéricos e dos papéis gerados em cada uma
cido. O poder incidia claramente nos processos fúne- dessas etapas, produzindo formas de vida melancoliza-
bres. Nos arquivos do Deops/SP, os pesquisadores dessa das e dessubjetivações encarnadas em corpos desconhe-
Comissão encontraram documentos que atestam essa cidos.
prática, tal como este, datado de 1972: A existência de uma rede de práticas, discursos e
atores responsáveis pelo desaparecimento é atestada
Dando cumprimento à determinação do pelo testemunho dos sobreviventes. A militante da
Senhor Delegado Titular de Ordem ALN Iara Xavier, irmã de Alex e Iuri Xavier, e ex-
Política no sentido de acompanhar o companheira de Arnaldo Rocha Cardoso, todos os três
féretro do terrorista Alexandre José executados pela repressão, é precisa quanto à articula-
Ibsem Veronese [sic] que se encontrava ção entre os órgãos em depoimento prestado à Comis-
no Instituto Médico Legal, para o cemité- são da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo
rio da Paz, no Bairro do Ferreira, Vila “Rubens Paiva”:
Sônia, temos a informar o seguinte:
Nos deslocamos ao Instituto Médico Então nós vemos que a operação que eles
Legal por volta das 7,30 horas, e, no veló- tinham era do DOI, operação, busca,
rio o cial deste referido instituto encon- captura, morte; passava pela conivência
travam-se velando o corpo do referido do IML; passava, pra mim, pela conivên-
terrorista, mais de 50 pessoas. cia do cartório, do 20º Cartório aqui do
O cortejo fúnebre, saiu do velório às 8,10 Jardim América, onde mais de 90% dos
horas, compondo-se de 12 veículos e atestados de óbito, sejam falsos, sejam os
umas 40 pessoas mais ou menos. verdadeiros, foram lavrados; passavam
Chegamos ao cemitério às 8,50 horas pela conivência dos médicos legistas,
quando se deu o sepultamento, o mesmo adulterando os laudos de necropsia, aos
foi feito na Quadra 68, sepultura 28, declarantes de óbito, e chegavam na
conforme cartão anexo fornecido pela Justiça, na máquina perfeita e montada
administração do mesmo. para esconder crimes. (BRASIL, 2014,
Não sendo constatado por nós qualquer 507)
irregularidade digna de nota. Não houve

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Como temos insistido desde o início deste texto, a de desaparecimento con guram uma multiplicidade de
montagem do que chamamos dispositivo de desapare- elementos discursivos e não discursivos, tais como:
cimento na ditadura brasileira resultou do acoplamento rotinas funerárias, órgãos policiais e militares (DOI-
entre a tecnologia do desaparecimento, desenvolvido Codis, Deops, quartéis etc.), instituições judiciais, leis e
principalmente nas guerras coloniais francesas, com o regulamentações, discursos o ciais, procedimentos
desaparecimento administrativo (HATTORI et al., periciais, documentos o ciais (laudos necroscópicos,
2016), que, desde antes do golpe de 1964, estava em atestados de óbito, guias etc.), instituições (cemitérios,
funcionamento, produzindo corpos anônimos e sepul- IMLs), espaços clandestinos, conhecimentos técnicos
tando nas valas coletivas, não raramente clandestinas, (lembremos como Paulo Malhães testemunhou a reali-
os desconhecidos da sociedade. O regime ditatorial no zação de estudos sobre as condições em que os corpos
Brasil incorporou e sistematizou essas rotinas burocrá- boiariam) etc. Em segundo lugar, a relação entre esses
ticas geradoras de desaparecimento, incluindo-as na elementos varia no tempo e no espaço, tanto que aos
estrutura responsável por coordenar a gestão da segu- processos de desaparecimento administrativo existen-
rança e da repressão política. Tratava-se de uma saída tes no Brasil vieram se juntar posteriormente as técni-
perfeita, uma vez que conferia aos atos de exceção a cas aprendidas com os franceses, que, por sua vez, as
aparência requerida de o cialidade e normalidade desenvolveram nas guerras contrarrevolucionárias da
decorrente da emissão de documentos, da realização de Indochina e da Argélia, sistematizando procedimentos
perícias sob a chancela da Polícia Civil e do sepultamen- praticados pelos próprios guerrilheiros. Além disso, o
to em áreas especí cas nos cemitérios. discurso o cial serviu para ocultar essas práticas,
Vimos que a ditadura também usou de outras téc- sonegando informações ou adulterando dados. Quan-
nicas de desaparecimento, que prescindiam da media- do a situação se tornou incontornável, produziram-se
ção das rotinas burocráticas, tais como a incineração teorias sobre a excepcionalidade dos excessos cometi-
dos corpos ou o lançamento dos cadáveres descaracte- dos por alguns insubordinados.
rizados em rios e mares. Todavia, apesar das diversas Quanto ao papel estratégico dos dispositivos de
formas de fazer desaparecer, alguns elementos são desaparecimento, não resta dúvida de que procuraram
comuns entre elas: o poder intervém sobre os corpos responder a urgências diversas nos diferentes contextos
produzindo, de um lado, cadáveres desconhecidos, não em que apareceram. No caso da ditadura brasileira,
identi cados, e, de outro, tornando a si mesmo anôni- tratava-se de criar uma nova economia do governo da
mo, invisível, desindividualizado. Mas, a gestão dos morte, em que ao desaparecimento do morto se associ-
mortos que serão reconhecidos ou não avança um ava à desindividualização e ao anonimato do poder.
passo adiante: lembremos da maneira como o Da análise detalhada do processo histórico que
Deops/SP, por exemplo, incumbia-se de monitorar as resultou na montagem dos dispositivos desaparecedo-
cerimônias públicas do luto para se certi car que
nenhum risco à segurança se produziria ou da colabo-
Os disposi vos desaparecedores
ração de médicos-legistas e tabeliões para que os nomes
verdadeiros dos executados fossem substituídos por
brasileiros podem ser chamados
outros, de forma que eles di cilmente poderiam ser necropolí cos não apenas porque
rememorados. Gestão dos corpos, mas também gestão subjugam a população, produzindo a
do sofrimento, do luto e da melancolia. morte de muitos, mas, também, porque
Feitas essas considerações, podemos concluir insis- assumem a responsabilidade pela
tindo no que dissemos no início: o desaparecimento no gestão dos cadáveres desses mesmos
Brasil constituiu de fato um dispositivo de governo da
mortos
morte. Isso porque, em primeiro lugar, os dispositivos

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res na ditadura brasileira podemos extrair alguns ele- vínculo do acontecimento morte com
mentos capazes de complementar a teoria da necropolí- algum fato excepcional que explique a
tica, de Achille Mbembe (2003), incluindo nela aspec- causa mortis.
tos não explorados pelo lósofo camaronês. Funda- Nessa rotina de de nição de um corpo
mentalmente, os dispositivos desaparecedores brasilei- sem vida enquanto morto, os policiais do
ros podem ser chamados necropolíticos não apenas IML matam o morto. Assim, observando,
porque subjugam a população, produzindo a morte de abrindo, manipulando e interpretando o
muitos, mas, também, porque assumem a responsabili- corpo, ao construírem os registros públi-
dade pela gestão dos cadáveres desses mesmos mortos. cos, constroem a morte do morto e o
Portanto, trata-se de um dispositivo que expõe o caráter matam institucionalmente.
propriamente governamental da necropolítica, o que Como demonstrei, se por um lado está o
chamamos de necrogovernamentalidade. perito médico-legal se relacionando com
Em outras palavras, se a governamentalidade, os cadáveres e ouvindo o que os corpos
estudada por Michel Foucault, produz formas de subje- falam; por outro lado, está o mesmo
tivação a partir da internalização de parâmetros de perito médico-legal, se relacionando
conduta, de critérios de escolha, de balizas para o exer- com os papéis e traduzindo o que os cor-
cício da liberdade, tudo isso visando determinar as pos falam. Tanto no ouvir os corpos quan-
condições em que a vida pode ser possível, a necrogo- to no traduzi-los, os peritos contam com
vernamentalidade, por sua vez, de ne as condições nas o auxílio de técnicos de cortes e de digita-
quais a morte é possível e reconhecível, gerindo indire- ção de laudos, respectivamente. Esses,
tamente as condutas dos vivos a partir da administração como mediadores, fazem parte da rela-
da circulação dos mortos e das formas de ‘‘matar o mor- ção que é estabelecida entre corpos e
to”, jargão utilizado por funcionários de IMLs, cujo papéis. E é a assinatura do perito médico-
sentido a dissertação de Flávia Medeiros (2012) procu- legal que dá fé pública aos papéis dos
ra explicitar. Segundo a antropóloga, “matar o morto” se corpos (MEDEIROS, 2012, p. 135).
refere aos procedimentos técnicos realizados no IML-
RJ, onde a autora fez sua pesquisa de campo, que reali- Da mesma forma que a tradição biopolítica insisti-
zam a passagem do cadáver para o morto, isto é, que rá frequentemente que a vida não é um substrato natu-
cobrem de signi cações múltiplas o evento da morte e ral imediatamente acessível aos mecanismos de poder,
inserem o morto na rede de relações sociais por meio da pois o que entendemos por vida é ao mesmo tempo
atribuição de uma identidade civil. Assim, causa e efeito do cruzamento entre poderes e saberes,
também a morte deve ser compreendida tanto como o
os procedimentos realizados nessa insti- que agencia dispositivos necropolíticos, quanto aquilo
tuição são feitos a partir de uma série de que resulta do trabalho que esses efetivam. As mencio-
registros que, a partir do corpo, inscritos nadas pesquisas de Hattori et al. (2016) e Medeiros
em papéis de nem quem é o morto e (2012), bem como a análise do funcionamento dos
como fora a sua morte. Tais registros dispositivos desaparecedores, ampliam o que normal-
combinam características policiais, de mente se entende por fazer morrer, na medida em que
dimensão cartorial e burocrática; com incluem sob essa máxima a “construção institucional do
características médicas e seu domínio morto” (MEDEIROS, 2012) e da morte como derivada
sobre o corpo humano; com característi- da intervenção de agentes, procedimentos e instituições
cas médico-legais no que concerne aos variadas.
procedimentos de identi cação e ao Há uma população de mortos que existe longe de

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nossos olhos, nos necrotérios de hospitais e IMLs, nas Pós-Graduação em Antropologia (PPGA), Instituto de
salas de necropsia, nos anatômicos das faculdades de Ciências Humanas e Filoso a (ICFH), Universidade
Saúde, nos cemitérios. Essa população é objeto de um Federal Fluminense (UFF), 2012.
conjunto de micropoderes necrogovernamentais, que NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime
estabelecem hierarquias e classi cações – pois há Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.
mortos mais importantes do que outros –, uxos – ROBIN, Marie-Monique. Escadrons de la mort,
alguns são entregues à família para que essa proceda l'école française. Paris: La Découvert, 2008.
com seu sepultamento, enquanto outros são direciona- SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa.
dos às aulas de anatomia ou aos cemitérios de massa –, Comissão da Verdade do Estado de São Paulo ‘‘Rubens
distinções de tratamento – para alguns mortos, os exa- Paiva’’. ‘‘Bagulhão’’: a voz dos presos políticos contra os
mes periciais ocorrem com um zelo jamais visto nos torturadores. São Paulo: ALESP, 2014.
casos de outros mortos –, registros burocráticos e, o que ______. Comissão da Verdade do Estado de São
também passa despercebido por Mbembe, formas de Paulo ‘‘Rubens Paiva’’. Assembleia Legislativa do Estado
subjetivação dos mortos com consequências signi cati- de São Paulo. Relatório: A formação do grupo de antro-
vas para a constituição das subjetividades viventes. pologia forense para a identi cação das ossadas de Vala
de Perus. São Paulo: ALESP, 2015.
SÃO PAULO (Município). Prefeitura Municipal
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HATTORI, Márcia Lika et al. O caminho burocráti-
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http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revista_do_arquiv
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MBEMBE, Achile. Necropolitics. Public Culture,
Duke University Press, v. 15, n.(1,p. 11-40, 2003).
MEDEIROS, Flavia. “Matar o morto”: A construção
institucional de mortos no Instituto Médico-Legal do
Rio de Janeiro. Dissertação (mestrado), Programa de

227
Impresso em 2021, com miolo em off-set 75g/m², pela
IGIL - Indústria Grá ca Itu

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