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RUBEM FONSECA – A SERVIÇO DA LITERATURA E DA DITADURA

Falecido no dia 15 de abril, escritor manteve estreitas relações com militares nos anos 1960

Artífice do romance policial no país, escritor e roteirista agraciado com os prêmios Jabuti,
Camões e Kikito, autor inovador e influente dentro da literatura brasileira, o recém-falecido
Rubem Fonseca também foi, textualmente, um golpista.

Caso considere-se sua participação como um “retórico” da propaganda antiesquerdista que


minou intensamente o governo de João Goulart, o escritor mineiro teve papel importante nas
ações que culminariam no golpe civil-militar de 1964.

Antes de ser escritor, Rubem Fonseca foi vendedor ambulante, policial de gabinete diplomado
em direito e treinado nos Estados Unidos – função que lhe serviu de estofo criativo para seus
contos—, relações públicas da companhia canadense Light e, finalmente, coordenador do IPÊS
(Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais).

Fundado logo após a renúncia de Jânio Quadros, em novembro de 1961, por empresários
estrangeiros e brasileiros – entre eles, Antônio Gallotti, da Light –, entidades de classe e
financiado parcialmente pela CIA, o IPÊS, ao lado do precursor IBAD (Instituto Brasileiro de
Ação Democrática), foi fundamental para a construção de um clima favorável à deposição de
Jango. Dirigido pelo então coronel Goubery do Couto e Silva, futuro criador do SNI, o instituto
tinha como função principal “a defesa da democracia”, pregando aspectos positivos do
capitalismo e simultaneamente coordenando oposição política ao trabalhista Goulart.

Foi o historiador uruguaio René Dreifuss quem revelou, em seu emblemático livro 1964: A
Conquista do Estado, Ação Política, Poder e Golpe de Classe, que Fonseca supervisionava a
unidade ideológica e editorial do material de divulgação do IPÊS.

Levado à instituição por Gallotti, Fonseca era responsável pela redação ou revisão dos
panfletos, apostilas e roteiros de cinejornais que eram distribuídos e exibidos por todo o país,
de favelas a cinemas e igrejas de pequenas e grandes cidades. As colegas Rachel de Queiroz e
Nélida Piñon também contribuíram para redação de textos.

“Rubem assinou várias atas de reuniões do instituto. E se não escrevia tudo, ele revisava ou
alterava os roteiros dos filmes”, relata Gabriel F. Monteiro, pesquisador e diretor de O Prólogo,
documentário que enfoca a propaganda política que antecedeu o golpe de 1964.

Segundo a historiadora e pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade, Joana Monteleone,


Rubem Fonseca foi um dos principais elos entre empresários, militares e jornalistas. “Ele
coordenava uma assessoria de imprensa que pautava textos jornalísticos para desestabilizar o
governo. Esse material era fartamente reproduzido na mídia, como no Repórter Esso”.

Tal material contribuiu para criar um clima de pânico na população conservadora diante de
uma suposta “ameaça comunista”. O IPÊS forneceu suporte ideológico à famigerada Marcha
da Família com Deus pela Liberdade, em 19 de março de 1964, que desencadeou
definitivamente a queda de Jango.
A contribuição do IPÊS foi além do golpe: o conjunto documental reunido em pesquisas do
instituto serviu de base de informações para o SNI, o temido Serviço Nacional de Informação
do regime militar. “O IPÊS documentou, por exemplo, quem eram os personagens de
esquerda, como Paulo Freire”, diz Gabriel Monteiro.

Admirado por Golbery, o futuro escritor foi favorecido diretamente pelo IPÊS. Por meio de
suas reuniões, Fonseca conheceu seu primeiro editor, o integralista Gumercindo Rocha Dorea,
diretor da Editora GRD, que publicou – assim como fizera com Piñon – seus dois primeiros
livros: Os Prisioneiros (1963) e Coleira de Cão (1965).

Já como celebrado -- e recluso – escritor, Rubem Fonseca jamais assumiu sua figura de
militante de direita. Numa rara entrevista ao Fantástico, em 2001, o autor dizia não se lembrar
de ter redigido roteiros, mas admitia ter participado do instituto até março de 1964, quando,
por discordância, deixara o cargo.

“Ele atuou no IPÊS até o final, em 1972”, afirma Joana. “O instituto acabou por problemas
financeiros e brigas internas. Mas o motivo do fim foi por terem atingido seus objetivos, com o
golpe”, conclui.

No ano seguinte ao fim do IPÊS, Fonseca publicou seu primeiro romance, O Caso Morel. Em
1975, seu livro de contos Feliz Ano Novo foi proibido pela censura do regime militar, por conter
“excesso de palavrões” e “matéria contrária aos bons costumes”. Curiosamente, várias de suas
obras foram censuradas recentemente em Rondônia, num momento em que o atual governo
federal é, ironicamente, tributário da ditadura.

SÉRGIO BARBO

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