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Resumo
Este artigo analisa as charges sobre o governo Juan Domingo Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos
Perón produzidas pela artista alemã Hilde Weber (1913-1994) Doutor em História Social pela
para o jornal carioca Tribuna da Imprensa, no período de 1949 Universidade de São Paulo (USP).
a 1955. Busca-se identificar como o humor foi utilizado para Professor do Instituto Federal de Minas
transmitir determinadas mensagens políticas e as relações Gerais (IFMG).
delas com a posição político-partidária do periódico, cuja Brasil
propriedade e direção estavam nas mãos de Carlos Lacerda, rodolpho.santos@ifmg.edu.br
político e jornalista filiado à União Democrática Nacional
(UDN). Profundamente antiperonista, Tribuna da Imprensa
divulgou principalmente representações que destacavam o
presidente argentino como déspota, conspirador, tolo e
malandro. Nas charges assinadas por Hilde Weber fica
implícita a personalização da experiência política justicialista,
ao apontar uma única pessoa como principal responsável pela
destruição das instituições democráticas. Também é visível
que o jornal usava o noticiário negativo sobre o país vizinho
como arma para a luta político-partidária em nível nacional.
Carlos Lacerda, em especial, atuava como um dos principais
opositores a políticos trabalhistas, como Getúlio Vargas e João
Goulart, que, na sua visão, poderiam conduzir o Brasil a uma
trajetória política semelhante à da Argentina peronista.
DOI: 10.5965/2175180308182016215
http://dx.doi.org/10.5965/2175180308182016215
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 8, n. 18, p. 215 - 248. maio/ago. 2016. p.215
Tempo
As charges antiperonistas de Tribuna da Imprensa (1949-1955)
Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos
&Argumento
Anti-Peronist cartoons by Tribuna
da Imprensa
(1949-1955)
Abstract
This article analyzes the editorial cartoons about the Juan
Domingo Peron’s administration produced by the German
artist Hilde Weber (1913-1994) for the Carioca newspaper
Tribuna da Imprensa, within the period from 1949 to 1955.
We seek to identify how humor was used to convey certain
political messages and their relations with the political and
party-based position of the newspaper, whose ownership
and management were in the hands of Carlos Lacerda,
politician and journalist affiliated to the União Democrática
Nacional (UDN). Deeply anti-Peronist, Tribuna da Imprensa
mainly reported representations highlighting the Argentine
President as a despot, conspirator, naive, and scoundrel
man. In the editorial cartoons signed by Hilde Weber there is
an implicit embodiment of the Justicialist political
experience, pointing out a single person as the main
responsible for destroying the democratic institutions. It is
also noticeable that the newspaper used the negative news
about the neighboring country as a weapon for political and
partisan struggle nationwide. Carlos Lacerda, especially,
acted as one of the main opponents of labor politicians, like
Getúlio Vargas and João Goulart, who, according to their
perception, could lead Brazil to a political trajectory similar
to that of Peronist Argentina.
Introdução
Nascido em dezembro de 1949, o diário carioca Tribuna da Imprensa notabilizou-se,
entre outros aspectos, por seu profundo antiperonismo. A embaixada argentina no Rio
de Janeiro chegou a apontá-lo, em ofício reservado, como um dos meios de comunicação
que praticavam a oposição ao governo argentino de forma mais “radical e permanente”
(1954 apud ALMEIDA, 2005, p. 149). Fundado e dirigido pelo jornalista e político Carlos
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Lacerda, o periódico estava alinhado a uma ala da União Democrática Nacional (UDN),
partido liberal-conservador que combatia com veemência o getulismo e o comunismo.
Desde o século XIX, essa forma específica de humor gráfico, em sua linguagem
peculiar, passou a ser intensamente instrumentalizada para a política. Ao longo do século
XX, as charges se consolidaram como parte importante de tais disputas. Com frequência,
alcançaram grande repercussão ao zombar de homens públicos, mostrando-os não como
seres sacralizados, mas permeados de defeitos. Embora feitas para compreensão
imediata, tornaram-se importante instrumento de intervenção pública cuja importância
ultrapassava o riso fugaz. A respeito desse tipo de fonte histórica, escreveu Rodrigo Patto
Sá Motta (2006, p. 19):
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político que afirmou repetidas vezes admirar. Estabeleceu, entre outras medidas, férias
remuneradas e o aguinaldo, remuneração extra no final do ano (equivalente ao 13º salário
no Brasil).
1
O historiador argentino Mariano Ben Plotkin (2013, p. 97-143) demonstrou como o peronismo se apropriou
e reformulou a memória a respeito desse evento histórico (17/10/1945), de modo a integrá-lo ao seu
imaginário político. A partir de 1946, o 17 de outubro passou a ser comemorado nacionalmente como
“Dia da Lealdade” em cerimônias controladas pelo Estado e realizadas principalmente na Praça de Maio,
em frente à Casa Rosada. Em uma tentativa de reformulação da memória coletiva, a propaganda
peronista, ao longo dos anos, ampliou bastante a participação de Eva Perón naqueles eventos e
diminuiu a importância dos sindicatos, enfatizando a espontaneidade do povo, que teria estabelecido
uma relação direta com seu líder. Nos rituais suntuosos e meticulosamente organizados pelos
peronistas, os eventos de 17 de outubro foram romantizados e reforçados como a fonte original de
legitimidade do poder de Perón.
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potência capitalista. A estratégia funcionou e ajudou-o a vencer, com quase 53% dos
votos, em fevereiro de 1946.
Durante o primeiro mandato (1946-1951), foi montada uma ampla e bem articulada
estrutura de propaganda oficialista, que incluía controle sobre grande número de meios
de comunicação (CAPELATO, 2008). Também houve fortalecimento do Poder Executivo,
limitação das liberdades políticas, prisão de opositores e censura aos meios de
comunicação. Nas palavras do sociólogo argentino Juan Carlos Torre (2002, p. 53),
ocorreu ao longo dos anos um processo “sistemático [de] atrofiamento do pluralismo
político e das liberdades públicas”. Aproveitando-se do bom momento econômico, o
peronismo liderou, em 1949, uma ampla reforma da Constituição, que incorporou direitos
sociais e garantiu a Perón ilimitadas tentativas de reeleição.
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A partir da década de 1950, o presidente argentino passou a insistir publicamente
no Pacto ABC, uma iniciativa de integração econômica composta por Argentina, Brasil e
Chile. De acordo com ele, os três países tinham economias complementares e sua união
seria a única forma de contrabalançar o futuro e inevitável ataque das superpotências às
nações detentoras de amplos recursos naturais. O projeto de integração, que provocou
muita polêmica, contrariava abertamente os interesses estadunidenses, para quem a
união continental pan-americana seria a forma mais eficiente de barrar a expansão
comunista.
2
O fortalecimento da oposição na sociedade argentina veio acompanhado da ampliação das dificuldades
econômicas, principalmente a partir de 1952. Para fazer frente à inflação e ao déficit fiscal, o governo
anunciou o II Plano Quinquenal, que incluía a diminuição dos investimentos públicos, o aumento dos
impostos, o congelamento dos salários e o controle de preços. Nos discursos de Perón, o racionamento
de carne e de farinha de trigo foi justificado pela necessidade de sacrifícios diante dos novos tempos.
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seguintes, medidas autoritárias buscaram em vão banir qualquer referência ao
justicialismo do sistema político argentino.
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comercial. O resultado, no entanto, ficou aquém do esperado. Ainda que Dutra, Perón e
Evita tenham se encontrado na cidade de Uruguaiana, em 1947, não existiram grandes
avanços em termos diplomáticos e políticos. De acordo com o historiador Iuri Cavlak
(2008, p. 56-67), a política externa dutrista, ao incorporar diretrizes de Washington,
adotou uma postura de obstrução à integração regional, o que dificultou a assinatura de
acordos de cooperação. Além disso, tais iniciativas eram rejeitadas pela UDN e por um
setor do próprio Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty), órgão com quadros
politicamente conservadores que, geralmente, não viam com bons olhos o regime
platino.
Os rumores não impediram que Vargas fosse eleito presidente com pouco mais de
48% dos votos válidos. Saiu derrotado novamente o candidato da UDN, brigadeiro
Eduardo Gomes. Durante o mandato inconcluso (1951-1954), o presidente brasileiro
enfrentou uma ferrenha oposição do Poder Legislativo e da maioria da imprensa. Uma
parte da UDN, em especial, tornou-se cada vez mais intransigente.
Naqueles anos, boatos sobre uma aliança secreta entre trabalhistas e justicialistas
foram especialmente constantes nos periódicos antigetulistas. Eles se avolumaram
principalmente a partir da indicação de João Goulart para Ministro do Trabalho, Indústria
e Comércio, em junho de 1953. Jornais como Tribuna da Imprensa difundiram à exaustão a
ideia de que o jovem e popular líder gaúcho estaria se aproximando dos sindicatos para
construir uma base eleitoral que ampliasse o poder dos trabalhistas no Congresso. Assim,
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seria possível reformar a Constituição, criar a possibilidade de reeleição ilimitada e
garantir a continuidade do grupo no palácio do Catete. Grosso modo, seria essa a
estratégia dos líderes do PTB para criar uma suposta “república sindicalista”. Tal
expressão foi muito utilizada pela oposição para imputar aos trabalhistas um projeto
político autoritário – a criação de regime discricionário baseado nos sindicatos
semelhante àquele que, alegavam, já existia na Argentina (SANTOS, 2015, p. 134-148).
3
Propositalmente, deixa-se de lado aqui a vastíssima bibliografia a respeito da expressão populismo e evita-
se usá-la porque, como defende Maria Helena Rolim Capelato (2008), as especificidades de cada regime
político tendem a ser obliteradas nessas interpretações generalizantes.
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É muito mais provável que o surgimento da Tribuna da Imprensa tenha
resultado da mobilização de grupos empresariais vinculados ao capital
externo ante o nacionalismo que começava a tomar conta de setores do
Exército e da própria burguesia industrial, e que conseguira paralisar a
tramitação de um projeto governamental que garantiria participação de
investimentos estrangeiros na exploração do petróleo.
O simples exame da relação dos maiores acionistas corrobora essa tese,
bem como a constatação de que, entre os principais organizadores e,
posteriormente, dirigentes da empresa, estavam figuras de proa do
empresariado, com notórias vinculações externas, ou, ao menos, pessoas
que com esses grupos mantinham estreitas ligações (MENDONÇA, 2002,
p. 101-102).
Segundo Maria Victoria de Mesquita Benevides (1981, p. 212), a UDN possuía uma
autoimagem de excelência de seus integrantes, o que a levou a se colocar com frequência
4
Esse personalismo foi corroborado por depoimentos do período. Aluísio Alves, então redator-chefe do
periódico, relatou certa vez que uma das dificuldades do cotidiano era o “método de Lacerda, que
participava de tudo, escrevia do seu artigo a pequenas notas, acompanhava todas as seções do jornal,
orientava, reclamava, modificava, numa velocidade de trabalho difícil de acompanhar” (RIBEIRO, 2007,
p. 148).
5
No auge, em 1954, publicava 40 mil exemplares diários, enquanto vários outros vespertinos, como O Globo
e Última Hora, atingiam 110 mil e 92 mil exemplares, respectivamente (RIBEIRO, 2007, p. 60).
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como um “pedaço de chão limpo”, decente e digno em relação aos demais. Essa ideia de
“partido incorruptível” era reforçada pela atuação parlamentar centrada nas constantes
denúncias de desvios administrativos, de subversão da ordem provocada pelas políticas
trabalhistas e da suposta infiltração comunista na sociedade.
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saber ao certo em que medida as charges ilustram a visão de mundo da artista ou a de
seus colegas e chefes de redação. As caricaturas eram solicitadas pela direção ou, na
maioria das vezes, brotavam da cabeça da artista após as reuniões de pauta? Difícil saber.
É provável que as duas situações fossem comuns. Afinal, jornais devem ser entendidos
como empreendimentos coletivos de indivíduos que possuem um conjunto mínimo de
valores políticos comuns, ou seja, certa comunhão ideológica.
Nesse sentido, vale lembrar o que escreveu o historiador francês Jean François
Sirinelli (apud LUCA, 2005, p. 140), para quem “jornais e revistas não são obras solitárias”,
mas “empreendimentos que reúnem um conjunto de indivíduos, o que os torna projetos
coletivos, por agregarem pessoas em torno de ideias, crenças, e valores que se pretende
difundir a partir da palavra escrita”; ou seja, os órgãos de imprensa são atores
fundamentais nas disputas políticas, pois tendem a ser um “ponto de encontro de
itinerários individuais unidos em torno de um credo comum”. Assim, embora Tribuna da
Imprensa fosse composta por diversos jornalistas e articulistas que tinham visões políticas
múltiplas, não se pode deixar de supor alguma identificação ideológica mínima entre
aqueles que integravam esse meio de comunicação.
Perón, o déspota
Em Tribuna da Imprensa, as críticas ao peronismo estiveram frequentemente
vinculadas à defesa dos direitos individuais, em especial da liberdade de expressão.
Inúmeros editoriais, reportagens e charges foram publicados para denunciar o crescente
6
Esse conceito é pensado a partir da acepção do historiador francês Roger Chartier (1991). Para ele, as
representações dão sentido ao mundo ao permitir o trabalho de “classificação e de recorte que produz
configurações intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos
diferentes grupos que compõem uma sociedade” (CHARTIER, 1991, p. 183). Ao mesmo tempo que
tornam inteligível o real, as representações ajudam a produzi-lo de acordo com interesses sociais mais
diversos.
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autoritarismo do regime argentino. Sob tal prisma, o jornal se colocava como paladino do
liberalismo.
Alto para os padrões do período (com pouco mais de 1,80 m), Perón foi retratado
quase sempre com um longo nariz e com boca e queixo proeminentes. Frequentemente
foi desenhado como um oficial longilíneo. No entanto, em algumas ocasiões, também
apareceu como um homem balofo e desalinhado. Como recurso para caracterizá-lo, Hilde
lançou mão constantemente do recurso da faixa presidencial com a bandeira argentina
que cruzava o peito e do tradicional quepe militar. Ele aparece quase sempre com um
semblante fechado, em oposição às fotografias divulgadas oficialmente, que o
mostravam com um belo sorriso.
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Vale destacar que, inversamente, a forte propaganda peronista também era profundamente personalista,
responsabilizando o presidente argentino por todos os êxitos do regime.
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entre tal situação e os espetáculos públicos de queima de livros ocorridos na Alemanha
nazista em 1933. Ao lado do desenho, publicou-se um editorial de Lacerda em que Perón
era apontado como discípulo aperfeiçoado de Vargas. Também foram destacadas as
características autoritárias de seu governo e sua admiração, junto com outros membros
do GOU, pelos países do Eixo durante a Segunda Guerra.
Figura 1 – HILDE.
Fonte: Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 17/04/1953, p. 4.
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tradicional e influente matutino que, nas palavras do historiador estadunidense James
Cane (2011, p. 1), figurava como “o mais poderoso jornal comercial da América Latina”.
Para os opositores ao regime, a violência contra La Prensa era mais um sinal inequívoco de
seus pendores autoritários. Para os apoiadores, tratava-se de um ato revolucionário
altamente simbólico, porque derrubava um dos pilares das oligarquias.
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A suposta interferência de Perón na política externa do Brasil também foi
denunciada em Tribuna da Imprensa. Em agosto de 1951, o deputado federal João Batista
Lusardo (PSD-RS) foi indicado pelo presidente brasileiro para o cargo de embaixador do
país na Argentina. Muito próximo a Vargas, Lusardo também cultivara boas relações com
o presidente platino desde sua primeira passagem como embaixador em Buenos Aires
(1946-1947). Há anos essa proximidade com o justicialismo era alvo de críticas e suspeitas
por parte de políticos e jornalistas da oposição.
No lápis de Hilde (Figura 3), a indicação de Lusardo teria sido uma imposição ao
presidente Vargas por parte de Perón que, com sua tradicional cara de poucos amigos,
empunha um documento com a palavra ultimatum. Ao lado dele figura Lusardo, com um
sorriso maroto. Em uma possível interpretação, a representação do embaixador com ar
malandro remete a denúncias da época sobre o enriquecimento ilícito deste durante sua
primeira passagem como diplomata pela capital argentina. Seu retorno ao cargo lhe
garantiria a continuidade dos lucros e negócios pessoais escusos – daí o ar de satisfação.
Figura 3 - HILDE.
Fonte: Tribuna da Imprensa, 18-19/08/1951, p. 4.
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Houve críticas também ao projeto de um amplo acordo econômico envolvendo
Argentina, Brasil e Chile (Pacto ABC), defendido por Perón desde o início da década de
1950. Para meios de comunicação antiperonistas, tratava-se de uma armadilha do
imperialismo platino que pretendia, a médio prazo, dominar a região. Em Tribuna da
Imprensa, uma charge não assinada, provavelmente de Hilde, traduziu a ideia do Pacto
ABC como uma arapuca continental (Figura 4). Nela, Perón, em trajes aparentemente
escolares, equilibra um bloco com as iniciais das três nações. Sua expressão facial não
deixa dúvidas a respeito das intenções perversas do projeto. Abaixo, a legenda: “ABC
(Argentina, Brasil e Chile), bloco político antiamericano, e outro grande sonho de Perón”.
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A imagem foi publicada junto a uma notícia que denunciava a “infiltração
peronista” nos sindicatos brasileiros, promovida pelos adidos operários que trabalhavam
na embaixada argentina. Outra reportagem semelhante assegurou que estava “em pleno
desenvolvimento uma política acintosa de intromissão na vida pública, suborno de
dirigentes sindicais e participação ativa em movimentos grevistas”. Garantiu, ainda, que
“300 agentes peronistas estão atualmente em atividade no Brasil”, incluindo aí
“elementos nativos trabalhando a soldo” (CARLOS, 24/10/1952, p. 12).
Os conspiradores
O tema da conspiração também foi um dos mais abordados nas charges
antiperonistas. A partir de notícias desencontradas, difundiu-se a noção de que, por meio
de doações a campanhas eleitorais, treinamento militar e apoio armado, os peronistas
estariam dispostos a ajudar secretamente os trabalhistas a criar no Brasil um regime
semelhante ao justicialismo. Assim, o regime argentino não foi apresentado apenas como
antimodelo, mas como ameaça real à democracia brasileira mediante a aliança sigilosa
com políticos locais.
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Borja, Rio Grande do Sul, a poucos quilômetros da fronteira com a Argentina.
Astutamente, ele ainda não confirmara sua participação nas eleições presidenciais
vindouras, embora as especulações a respeito disso fossem constantes.
Figura 5 - HILDE.
Fonte: Tribuna da Imprensa, 25/01/1950, p. 4.
8
Além disso, a atuação do Departamento de Estado, representado pelo embaixador Adolf Berle Jr., fora
decisiva para o fim do Estado Novo (BANDEIRA, 2010, p. 222-3).
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Em 22 de junho de 1950, outra charge da artista alemã remeteu à ideia de conjura,
tema que se tornou cada vez mais frequente nos diários antigetulistas, na medida em que
se aproximavam as eleições presidenciais. Nela, Perón ensina planos políticos a Getúlio
Vargas, Luis Carlos Prestes e Ademar de Barros (Figura 6) 9.
Figura 6 – HILDE.
Fonte: Tribuna da Imprensa, 22/06/1950, p. 4.
9
Uma semana antes, o controvertido governador de São Paulo anunciara, em um espetáculo público
pomposo realizado na capital do estado, o que todos já sabiam desde o início do ano – ele daria amplo
apoio ao postulante gaúcho (NETO, 2014, p. 177-8).
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Góes Monteiro, que naquele momento era senador por Alagoas (PSD), aparece
descontente por não ter sido convidado. Figura central na implantação e organização do
Estado Novo, período em que ocupou o cargo de Ministro da Guerra, andava distante de
Vargas desde que liderara sua deposição em outubro de 1945. Ele, que participara de
outros golpes de estado, dessa vez ficaria de fora 10.
Ainda que tenha aparecido com alguma força na imprensa durante a campanha, a
noção de que Getúlio Vargas era o “candidato argentino” – ou seja, apoiado e financiado
pelo governo da Casa Rosada – e que poderia “peronizar o Brasil” parece ter influenciado
muito pouco o pleito. Em 3 de outubro de 1950, o político gaúcho foi eleito presidente
com pouco mais de 48% dos votos válidos.
10
Na ocasião, ele já declarara seu apoio ao candidato do seu partido, Cristiano Machado, e em agosto de
1950 rejeitaria o convite de Vargas para ser seu candidato à vice-presidência na chapa PTB-PSP.
11
Isolado, o partido na ilegalidade negou-se a apoiar qualquer candidato no pleito de outubro de 1950 e
recomendou o voto em branco. Acredita-se, porém, que Vargas tenha recebido o apoio nas urnas de
boa parte dos eleitores vermelhos.
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apenas como J. T. Na caricatura, Vargas, com roupa de palhaço, não passa de um títere
guiado pelo tirânico e soturno líder argentino, que age fora dos holofotes. O presidente
brasileiro estaria nas mãos de seu patrocinador. Nessa perspectiva, os destinos do país
teriam sido vendidos ao estrangeiro e Perón seria, de fato, o novo presidente.
Figura 7 – J. T.
Fonte: Tribuna da Imprensa, 21/11/1950, p. 4.
Outra charge nesse sentido foi publicada em 1952, quando o jornal trouxe
informações a respeito do monótono primeiro dia da V Conferência dos Estados
Americanos Membros da Organização Internacional do Trabalho, realizada em
Petrópolis-RJ. Não havia nenhuma novidade. O único destaque ficou por conta do
discurso inaugural de Vargas, em que ele louvara e prometera ampliação da legislação
social brasileira. Minimizando as palavras do líder trabalhista, o jornalista Newton
Carlos preferiu enfatizar a opinião do adido operário argentino. Este garantira: “o que
disse Vargas é o mesmo que tem dito Perón” (CARLOS, 18/04/1952, p.1). O título da
notícia ia nesse mesmo sentido: “Opinião dos pelegos argentinos: Vargas imita Perón”.
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Figura 8 - HILDE.
Fonte: Tribuna da Imprensa, 19-20/04/1952, p. 4.
No dia seguinte a essa notícia, Hilde desenhou Vargas colocando uma máscara
com a face do presidente platino (Figura 8). A imagem aponta o parentesco ideológico
entre os dois. Novamente, não houve concessão ao líder justicialista, retratado com o
semblante sisudo em alusão à maneira autoritária como lidava com seus adversários.
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Joãozinho Boa Pinta deve sair do ministério e voltar ao cabaré – que é a
sua universidade, a sua caserna e o seu santuário. [...] O Brasil não está
mais em idade de aturar as impertinências de um irresponsável. Ser
ministro não é o mesmo que dançar tango (LACERDA, 05/08/1953, p. 4).
A atuação de João Goulart provocou forte reação também nos quartéis. Ela
culminou na veiculação do “Manifesto dos Coronéis”, assinado por 82 oficiais da ala
conservadora do Exército no Rio de Janeiro. Após a publicação do documento, o jovem
ministro foi exonerado, a contragosto de Vargas, no final de fevereiro de 1954. Nos traços
de Hilde Weber, a saída de Jango foi comemorada com uma referência mordaz ao
justicialismo. Demitido, o político gaúcho voltaria à vida boêmia e à Argentina peronista,
onde poderia bailar o tango (Figura 9).
Figura 9. HILDE.
Fonte: Tribuna da Imprensa. 23/02/1954, 1º caderno, p. 4.
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presidente brasileiro. “Traição à pátria” foi a expressão mais utilizada pela oposição para
reprovar a atuação de Vargas no caso.
É a isso que se refere a Figura 10. O pequenino Getúlio (cerca de 1,60 de altura),
que agiria na escuridão, pede silêncio a Perón após serem descobertos em seus planos
secretos (“Fomos pegados!”). A lanterna da cena pode remeter a, pelo menos, dois
aspectos. Em primeiro lugar, era o símbolo do próprio jornal e estava relacionada ao ideal
de objetividade da imprensa que reivindicava o posto de reveladora da verdade, ou seja,
promotora das luzes. Nesse sentido, também é curiosa a descoberta do “crime” por
várias pessoas e não apenas uma. Isso alude à tradicional noção do jornalismo como
porta-voz da opinião pública, ou seja, meio de expressão de toda a sociedade e não de
interesses particulares. Em segundo lugar, vale lembrar que Lacerda e outros udenistas
haviam fundado em 1953 um grupo de militares e civis de postura radicalmente
antigetulista e anticomunista que carregava o sugestivo nome de “Clube da Lanterna”
(BENEVIDES, 1981, p. 86).
Figura 10 - HILDE.
Fonte: Tribuna da Imprensa, 17/03/1954, p. 4.
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governo apenas dois meses depois não aplacaram as representações em torno de um
conluio entre a esquerda trabalhista brasileira e os justicialistas.
Figura 11 – HILDE.
Fonte: Tribuna da Imprensa, 29/09/1955, p. 4.
12
Também existe a possibilidade de que esse personagem da cena seja Lutero Vargas, filho do político
gaúcho e presidente do diretório carioca do PTB.
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A imagem apresentou-os como malabaristas uniformizados de um mesmo
espetáculo degradante (“circo vicioso”). Tendo em vista os acontecimentos recentes, a
charge parece jactar-se do possível enfraquecimento de tais homens públicos que
estavam direta ou indiretamente ligados à fórmula J-J (Juscelino-Jango). Eles seriam elos
de uma mesma cadeia que teria começado a desmoronar a partir da destituição do líder
platino e da veiculação da carta Brandi.
Mesmo com a divulgação da carta Brandi, Goulart venceu o pleito por uma estreita
margem de pouco mais de 200 mil votos. Soube-se em seguida, com base em análises
grafológicas, que o documento era uma falsificação grosseira, produzida por dois
argentinos que foram presos e indiciados. A participação de Lacerda no episódio
permanece nebulosa até hoje. O desmascaramento da carta Brandi ajudou a desmoralizar
a representação de um conluio entre trabalhistas e peronistas, que se enfraqueceu no
imaginário político nos anos seguintes. Também colaborou para isso a própria queda do
regime justicialista em setembro de 1955.
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Perón garantiu que o projeto secreto era de caráter pacífico e objetivava a produção de
energia para fins industriais. No entanto, o principal responsável pelos experimentos, um
cientista alemão desconhecido, de nome Ronald Richter, garantiu que o país já conhecia o
segredo da bomba de hidrogênio e poderia produzi-la, se necessário. O anúncio foi
recebido com enorme ceticismo pela imprensa e pelo meio científico internacional.
Embora a Casa Rosada tenha se negado a dar detalhes adicionais, as extravagantes
descrições técnicas de Richter tinham muito pouco a ver com as investigações do gênero
feitas por soviéticos e estadunidenses.
Figura 12 – HILDE.
Fonte: Tribuna da Imprensa, 27/03/1951, p. 4.
Na Figura 12, Perón aparece vestido como um menino, em roupas curtas e com
estilingue no bolso. Nas mãos, carrega uma pequena bomba utilizada nos festejos de São
João, em sinalização de que sua pretensa arma atômica não passaria de um embuste.
Longe de uma expressão marota, seu rosto transmite a tradicional expressão grave de
outros desenhos. Como um garoto arteiro, ele teria aprontado mais uma de suas
traquinagens. O escrito no alto da charge (“Olha a bomba do bambo-lê-lê”) relaciona-se
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ao editorial de Lacerda, publicado ao lado dessa caricatura, com o título: “A bomba do
governo bambo”.
Figura 13 - HILDE.
Fonte: Tribuna da Imprensa, 28/5/1951, p. 4.
13
Malgrado as inúmeras objeções e desconfianças vindas do exterior, o presidente platino seguiu com seu
sonho de obter enegria atômica barata e fácil por mais um ano e meio. Apenas no final de 1952 se
chegou à conclusão de que as pesquisas de Richter realmente não passavam de um embuste, uma
grande e caríssima fantasia que havia seduzido Perón. O enigmático Richter, que sequer era alemão e
tampouco especialista em física nuclear, foi oficialmente demitido, o projeto foi paralisado e o assunto
foi cuidadosamente jogado para escanteio na propaganda peronista.
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Outro episódio ocorrido em 1951 serviu de motivo para mais chacotas. Na
comemoração do “Día de la Lealtad” peronista (17 de outubro), uma pequena nota da
United Press informou que o Observatório Astronômico de La Plata descobrira um novo
planeta e o batizara com o nome de “justicialista”. De acordo com declarações do reitor
da universidade, a homenagem “significa a identidade da corporação universitária com os
ideais do povo argentino em suas festas do corrente mês de outubro, consagrado à maior
das virtudes humanas: a lealdade” (TRIBUNA DA IMPRENSA, 17/10/1951, p. 1).
Figura 14 – HILDE.
Fonte: Tribuna da Imprensa, 18/10/1951, p. 4.
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Considerações finais
As charges foram um importante instrumento de atuação política no período
estudado. Por meio de uma linguagem própria, transmitiram mensagens alinhadas à
posição político-ideológica de Tribuna da Imprensa.
A dinâmica de sua publicação evidencia isso. O tema das caricaturas esteve, com
frequência, relacionado ao editorial de Carlos Lacerda, publicado ao lado da imagem, ou
às notícias principais veiculadas naquele dia ou no dia anterior. Isso sugere que, ao menos
na questão do peronismo, a produção da artista esteve fortemente ligada ao ponto de
vista da redação. Nesse caso, as caricaturas funcionaram como crônica política, servindo
principalmente para ilustrar a posição política do diário a respeito do assunto. Analisando
a trajetória profissional da artista, pode-se supor certa comunhão ideológica entre suas
opiniões e as do jornal em que trabalhava.
À primeira vista, parece não haver unidade nas representações das charges
antiperonistas. Se, em algumas, Perón é retratado como um líder autoritário e poderoso,
capaz de influenciar a política sul-americana, em outras aparece como bobalhão vaidoso e
facilmente iludido 14. Vale lembrar, porém, que, embora diferentes, essas representações
fizeram parte do mesmo projeto de desconstrução do regime peronista integrado por
Tribuna da Imprensa e muitos outros jornais conservadores brasileiros. Tratava-se de
atacar o governo argentino por todos os flancos possíveis, pois, especialmente do ponto
de vista de Lacerda, ele seria um mal absoluto a ser combatido diuturnamente.
Assim, pode-se afirmar que as charges integraram um programa mais amplo, cujo
objetivo era negar o regime argentino como um todo e dificultar qualquer aproximação
diplomática com o país vizinho. Notório anticomunista, Lacerda criticou duramente os
projetos de integração regionais. Defendia a continuidade do projeto pan-americano
liderado pelos Estados Unidos, país definido por ele como a “civilização fundada na
liberdade”.
14
Deve-se considerar, também, a existência de uma dinâmica própria desses desenhos de humor publicados
nos jornais. Além de ilustrar o conteúdo dos editoriais, havia a necessidade cotidiana de provocar riso, o
que ampliava bastante as dificuldades do ofício de cartunista. Esses imperativos levaram, ao que tudo
indica, à produção de charges em que tão importante quanto denunciar era debochar. Para ficar em
apenas um exemplo, ao produzir uma charge sobre o batismo de um planeta com o nome de
justicialista, Hilde, muito provavelmente, não levou em conta a relevância dessa notícia, que saiu em
uma pequena nota de rodapé. Importava, nesse caso, o potencial cômico que a novidade carregava.
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Vale notar ainda que os desenhos satíricos que enfatizavam a ideia de uma
conspiração eram produzidos para atuar fortemente nas disputas político-partidárias
brasileiras. Nesse sentido, as charges antiperonistas também foram armas políticas para
questões nacionais. Buscava-se atribuir aos inimigos, os trabalhistas, práticas e projetos
autoritários secretos, que colocariam em risco a democracia brasileira. Estrategicamente,
essa insistente denúncia a respeito de um inimigo supostamente conjurador legitimava
que estratégia semelhante fosse colocada em prática por alguns udenistas, que se
consideravam os verdadeiros democratas. Assim, ao justificar seus contínuos apelos a
soluções extralegais, como a intervenção militar, Lacerda e outros membros do partido
argumentavam que se tratava de uma medida válida para combater opositores que agiam
continuamente nas sombras.
Por fim, vale destacar que, em que pese o autoritarismo do regime justicialista,
Tribuna da Imprensa ignorou que, ao menos em 1946, Perón fora eleito
democraticamente. Além disso, desconsiderou, ao longo dos anos, qualquer tipo de
avanço social, tachando continuamente medidas sociais de demagógicas. Embora
eficiente ao propagar suas mensagens políticas, o periódico esteve distante de uma
abordagem jornalística equilibrada e profunda. Analisadas em conjunto, as caricaturas de
Hilde serviram para reforçar uma perspectiva profundamente maniqueísta.
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Recebido em 14/07/2016
Aprovado em 22/08/2016
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