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Hitler na crônica militante de Jorge Amado

MÁRCIO HENRIQUE MURACA*

Resumo: Militante comunista até meados da década de 1950, Jorge Amado


configura sua obra na tensão entre projeto estético e propaganda ideológica.
Escritor prolífero, seus escritos vão além dos romances, sendo o autor um
assíduo colaborador em jornais de seu tempo. Entre 1942 e 1945, Amado
escreveu a coluna “Hora da Guerra”, no jornal O Imparcial, de Salvador. Umas
das figuras mais tratadas pelo autor é Adolf Hitler, sobretudo como metonímia
do mal. A figuração demoníaca de Hitler em oposição maniqueísta ao louvor de
Stálin articula-se, no plano internacional, à defesa do movimento comunista
encabeçado por Moscou e, no plano nacional, ao engajamento esquerdista
antifascista que enxerga no período da Guerra a oportunidade de virada
democrática no Brasil. Os elementos textuais característicos da obra romanesca
de Amado também comparecem na configuração textual de suas crônicas de
Guerra.
Palavras-chave: Segunda Guerra; Militância; Comunismo; Crônica.
Abstract: Communist militant until mid-1950’s, Jorge Amado sets his work
over this period using left wing propaganda. As a prolific writer, his writings go
beyond the production of novels, being the author a great newspaper
collaborator in his time. Between 1942 and 1945, Amado wrote a daily column
called “Hora da Guerra” (War Time), published by O Imparcial newspaper of
Salvador. One of the most cited figures in those texts was Adolf Hitler,
especially as evil metaphor. The demoniac representation of the German leader
opposed to the praise to Stalin is linked, in an international level, to the
Communist movement from Moscow, and, in a national level, it is linked to the
left-wing engagement anti-Fascist which would perceive the War period as a
great opportunity to democratic changes in Brazil. Literary elements seem in
Amado’s novels are also present in his newspaper writings.
Key words: Second World War; Militancy; Communism; Newspaper articles.

*
MÁRCIO HENRIQUE MURACA é Bolsista CAPES. Doutorando em Letras na Universidade
de São Paulo (USP), tendo como orientadora a Profa. Dra. Berta Waldman, do Departamento de Letras
Orientais, Estudos Judaicos, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Mestre em Teoria
Literária pela Universidade Federal de Uberlândia - MG (UFU).

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1. Considerações uma calcada no
iniciais: presente e outra no
posicionamento do devir, sendo que esta
autor e metonímias se liga à propaganda
subterrânea do
Hitler é a figura mais
comunismo como
citada na seleção das
alternativa de solução
crônicas de guerra de
às mazelas sociais do
Jorge Amado1,
globo (assim como do
publicada em livro no
Brasil), as quais,
ano de 2008, com o título homônimo da
inclusive, levaram às nações a se
coluna, Hora da Guerra. O Führer é
digladiar em vista da expansão
mencionado em 63 crônicas, o que
imperialista, como é detectável em
corresponde a 60% do total de 103
textos selecionados na publicação. A vários textos. Nessa percepção, o
movimento de esquerda tem a
referência direta ao seu nome (“Adolf”,
“Hitler”) é acionada quase uma centena oportunidade de se legitimar como
opção efetiva no mundo.
de vezes, deixando para trás outros
personagens centrais da guerra, como Ao firmar essa dicotomia, Amado então
Mussolini e Stálin. Como cronista que destaca os heróis dos inimigos,
expressa sua opinião acerca dos argumentando que o que está em perigo,
acontecimentos da Guerra e se posiciona acima de tudo, é o princípio democrático
com clareza em relação ao lado que se que rege as nações, tomando aqui
encontra – algo fulcral numa época recorrente asserção do cronista. Assim,
polarizada –, Jorge Amado estabelece parece inevitável que emerja daí uma
sua crítica ao fascismo articulando-a, visão maniqueísta, como Boris Fausto
também, ao movimento integralista no (2008, p.16) destaca acerca do tom geral
plano nacional. das crônicas: “De um lado, na
Posição colocada a favor dos Aliados, perspectiva de Jorge Amado, encontra-se
sobretudo porque a União Soviética é o ‘bem supremo’, encarnado pela União
uma das forças base de combate ao Eixo, Soviética, a Inglaterra e os Estados
Unidos. De outro, o ‘mal supremo’,
o então escritor militante comunista se
alinha ao esforço de Guerra que visa não encarnado pelos países do Eixo:
somente à vitória contra os governos Alemanha, Itália e Japão.”.
nazifascistas, mas também ao ideal Nesse sentido, Hitler é trazido às
conservador e direitista que deve ser crônicas como metonímia desse mal.
extirpado com o fim do conflito. Há, Fazendo-se representante do povo – algo
portanto, uma preocupação dupla que se justifica pelo “espírito de missão”
baseada na noção de “vitória total”2: que contaminava os artistas-intelectuais
da época3 –, o cronista Jorge Amado
1
Foram selecionadas 103 crônicas, dentre mais
de sete centenas. Para essa coletânea, o projeto “capitulação total dos inimigos” no lugar da “paz
da Cia das Letras contou com o trabalho da negociada” como em conflitos anteriores. Ver: A
antropóloga Ilana Seltzer Goldstein, autora de O Segunda Guerra Mundial – Histórias e
Brasil Best-Seller de Jorge Amado (2000), e da Estratégias.
3
diretora da Fundação Casa de Jorge Amado, Essa noção condiz com o que Luís Bueno
Myriam Fraga. (2006, p.181) assinala em relação a Cacau
2
Tomando noção de Philippe Masson (2010, (1933), romance de Amado que tentava
p.13) segundo a qual os Aliados, depois de estabelecer uma estética proletária: “É como se o
determinado momento na Guerra, exige a escritor estivesse justificando sua própria

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vinca seus textos com a candência de noção de povo como expressão de
quem enxerga o horizonte planetário liberdade, o lirismo que visa à emoção, o
com apreensão e, assim, nas palavras do humor que serve à crítica, o clamor que
próprio autor, Adolf Hitler é o intenta a conscientização. Parece
“anticristo”, cuja “legião” de “asseclas” bastante visível que a ilusão stalinista,
merece atenção por parte dos “povos” vista da atualidade, contribui em muito
que devem se conscientizar da luta e para uma perspectiva enviesada, para um
agir. Essa espécie de convocação no tom de propaganda que, mais tarde,
contexto histórico é um ideal presente Jorge Amado, assim como outros
nas crônicas que valida a noção de escritores, vai deixar de lado. De
despertar de luta de classes a que o qualquer modo, sua crônica tanto quanto
comunismo visa atingir nas nações. seu romance, é, ainda, um apelo à
emancipação dos oprimidos e
Em contrapartida, a metonímia do bem
não parece ser outra do que a frente dos marginalizados.
Aliados amalgamada nas figuras de 2. Uma peça teatral: democracia e
Stálin, Churchill e Roosevelt, em liberdade
marcha, juntamente com seu povo, para “O PALCO É MÓVEL POIS O
enfrentar “o grande ditador”. Dos três, CENÁRIO, A PRINCÍPIO,
Stálin, para Jorge Amado, é aquele que o REPRESENTA AS ESTEPES
autor destina particular “louvação”4, RUSSAS. Porém Adolf está em
para tomar Fausto (2008, p.20). Assim, a movimento, andando para trás, no
coluna de Jorge Amado tem o objetivo caminho de Berlim. Fala ao mesmo
de ser uma “trincheira”, como o autor tempo que foge. De quando em vez
escreve, não importando o fato de que assenta o binóculo de campanha,
“seja pequena”, podendo prometer “a volta-se, tenta enxergar Moscou.
luta pela liberdade, pela democracia, Mas o ruído da metralha faz com
que ele corra mais depressa. Adolf,
pela vitória realmente do povo”: “contra
ao falar, tem a ilusão que o faz para
o nazifascismo e a quinta-coluna o mundo inteiro.” (JORGE
[direitistas brasileiros]” (AMADO, AMADO, “Monólogo de Adolf...”,
2008, p.28). 17/7/1943, 2008, p.91).
Cabe ressaltar que o percurso de Jorge Chama a atenção do leitor o traço
Amado na construção textual de sua megalomaníaco de Adolf logo na
crônica em muito segue seu projeto introdução desse “texto teatral” –
estético o qual orienta sua obra Amado toma a estrutura do drama para
romanesca desde os anos de 19305: a compor sua crônica de crítica a Hitler,
texto (quase) totalmente dedicado ao
posição ao assumir-se como porta-voz de um Führer: “Adolf, ao falar, tem a ilusão
povo ao qual não pertence, mas que, pela que o faz para o mundo inteiro.”
observação e por uma espécie de espírito de
solidariedade conhece e compreende.”. (AMADO, 2008, p.91). A rubrica do
4
“Stálin para nós era um deus! Quem me dramaturgo faz vir à tona a imagem do
dissesse que Stálin não era um deus eu me personagem Hynkel, paródia de Hitler,
revoltava com ele... Mas depois começou o da obra fílmica O Grande Ditador
longo e doloroso processo de dúvida quanto a (1940), interpretado por Charlie Chaplin
Stálin e à realidade soviética daquele momento.”
(AMADO, 1988, em entrevista a DUARTE, que, em clássica cena, brinca com um
1996, p.276).
5
Em relação aos elementos textuais mais
presentes na obra de Jorge Amado, ver os citados aspectos como lirismo, diálogo com o popular e
Duarte, Goldstein e Bueno, os quais tratam de ideologia.

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imenso globo terrestre como se este demonstrar em muitas crônicas: “NÃO
fosse um balão e logo cai em pranto HÁ DÚVIDA QUE, EM TODO O
quando ele estoura. No final da crônica, PAÍS, OS INTEGRALISTAS,
Amado, aproveitando para inserir sua CUMPRINDO ORDENS dos seus amos
crítica ao líder integralista brasileiro, nazifascistas, chegadas através o Führer
conclui a peça desta forma: “Plínio de opereta Plínio Von Salgado, estão se
Salgado chega de Portugal e com um movendo em conspiratas, sabotagens,
lenço bordado da ilha da Madeira, qual boatos e divisionismos [...] tentando
anti-Verônica do anticristo Adolf, entregar o Brasil aos nossos inimigos.”
enxuga-lhe suor e lágrimas e pede-lhe (AMADO, 2008, p.86). A aplicação da
uns marcos emprestados. O PANO É ironia como recurso textual logo leva à
U’A MORTALHA.” (AMADO, 2008, sua conclusão: “Este o plano da quinta-
p.93)6. coluna, este o plano do integralismo,
No plano nacional, Plínio Salgado e os este o plano dos verdes plinistas,
vendedores da pátria.” (AMADO, 2008,
integralistas são percebidos por Amado
como “traidores da pátria”. Convém p.86).
reafirmar que Salgado foi forçado a se A constante nas crônicas de Hora da
exilar em Portugal em 1939, retornando Guerra de que o mal deve ser liquidado
ao Brasil apenas em 1945, com o fim do completamente, para que nenhuma
Estado Novo. Seu exílio ocorreu depois semente fique e brote após a vitória dos
do ataque ao Palácio Guanabara (levante Aliados contra o nazifascismo e seus
de maio de 1938), tema introduzido na apoiadores, está ligada às muitas vezes
crônica “Maníacos do Assassinato”, de que o nome de Hitler é citado, seguido
26/3/1943. Jorge Amado dá início a esse com frequência da menção do de
texto alertando para o perigo da quinta- Mussolini:
coluna7, preocupação que ele vai Todos aqueles militantes e
simpatizantes de todos os fascismos
6
A marca do burlesco imprimida por Amado na [...] se reúnem para impedir que no
crônica/“comédia” parece servir bem como enterro de Hitler e Mussolini, sigam
estratégia para pintar os “inimigos” sob uma os caixões que conduzem o terror, o
perspectiva de “inferioridade moral”, sendo que obscurantismo, a barbárie, a
os personagens assim caracterizados aproximam- exploração e a reação fascistas. Não
se de uma fealdade que preponderou por séculos importa a queda do nazismo, desde
como sinal negativo – o “demônio era feio”6,
que não seja ele sucedido por uma
conforme sublinha Hugo Friedrich (1978, p.77)
em sua obra Estrutura da Lírica Moderna. verdadeira democracia, desde que os
Aristóteles (1999, p.42), na Poética, já indicava germens de uma era fascista
essa mesma relação escárnio/rebaixamento permaneçam. (AMADO, 2008,
moral: “A comédia [...] é imitação de gentes p.136).
inferiores; mas não em relação a todo tipo de
vício e sim quanto à parte em que o cômico é Ou no fragmento:
grotesco.”. Essa caricatura de Hitler também Esse trecho do comunicado oficial
pode ser entendida como aquilo que Affonso dos três grandes líderes
Romano de Sant’Anna definiu como “riso
democráticos [Stálin, Churchill e
poderoso” no texto carnavalizador de Jorge
Amado, baseado na acepção de Bakhtin que
propõe o popular como a “cultura do riso”, esses inimigos, os tais “traidores” a que o
“imensa força transformadora da cultura cronista se refere, os quais sabotam e espalham
popular”. boatos. O termo era bastante comum no período
7
Termo usado por Jorge Amado sinônimo de e tem relação direta com uma quinta força que
“inimigo infiltrado” num país ou região. Serve apoiava Franco na Guerra Civil Espanhola, que
também para aqueles “de dentro” que apoiam marchava rumo a Madri com quatro colunas.

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Roosevelt, Conferência de Teerã] Se Hitler é “antítese” de povo
não se dirige apenas contra a (AMADO, 2008, p.135), Stálin é seu
Alemanha de Hitler ou o que resta sinônimo. Se o nazifascismo é contra a
da Itália de Mussolini. É o enterro vida, o comunismo stalinista é a
de qualquer pretensão muniquista de
democracia. Contudo, o que muitos
manter métodos fascistas no mundo
de amanhã. (AMADO, 2008, p.142).
estudiosos propõem e a história em
muito confirma é justamente fazer ver
Ainda mais evidenciado em: que o regime de Stálin não é muito
Não basta levar o país à guerra diferente do de Hitler – sem querer aqui
contra Hitler e Mussolini. Faz-se diminuir as atrocidades deste. O regime
necessário esclarecer todo o povo soviético exigia, e isso é claro nas
sobre o que é o nazifascismo e a crônicas de Amado, uma “adesão
desgraça que ele representa. espiritual” irrestrita a um Estado
(AMADO, 2008, p.166); “virtuoso”: ideologia e política também
Não basta vencer Hitler e Mussolini. fundidas num só ideal, de modo que não
É necessário liquidar o espírito poderia haver verdade que chegasse
fascista. (AMADO, 2008, p.175); independentemente do Partido
Não é apenas a guerra que está Comunista: “Toda autonomia individual,
perdida para Hitler, Mussolini, [...]. de pensamento ou de ação, é
Também a paz se anuncia terrível condenável, pois somente o Partido pode
para o fascismo. (AMADO, 2008, ter razão.” (TODOROV, 2002, p.28).
p.234). Nesse sentido, justificam-se os grandes
Hitler não só é personificação do regime expurgos de Stálin, os quais se deram no
nazista. Junto aos seus parceiros – empenho “em eliminar ou em dobrar
Mussolini, o mais destacável de todos – todos os membros do aparelho dirigente
é o ideal fascista, totalitarista que deseja suspeitos de querer pensar e agir por
dominar o mundo, ameaçando a conta própria.” (TODOROV, 2002,
liberdade dos “povos e a democracia”, p.28).
sendo a base desta dois grandes Levando-se em conta o projeto estético-
princípios que Todorov discute em ideológico geral de Jorge Amado na
Memória do Mal, Tentação do Bem: época, é provável que democracia, para
“autonomia da coletividade” e ele, estivesse mais associada à liberdade
“autonomia do indivíduo”. Assim, o e à emancipação da população oprimida
Estado totalitário é o extremo oposto do do que àquela noção de Estado
Estado democrático, porque o que é Democrático plural (em contraste com o
valorizado não é o eu de cada indivíduo, monismo do Estado Totalitário na
mas o nós do grupo – daí que a concepção aqui tomada de Todorov).
autonomia e o pluralismo devem ser Nessa possível percepção de Amado,
afastados num regime totalitário, sendo não é estranho que o nome de Stálin
substituído pelo seu contrário, o emerja frequentemente em muitas
monismo. (TODOROV, 2002, p.26). crônicas como um dos “três grandes
Seguindo o pensamento do historiador e líderes democráticos” (AMADO, 2008,
filósofo, que define o totalitarismo ao p.142), ao lado de Churchill e Roosevelt.
contrastá-lo com aqueles princípios da
À vista disso, A União Soviética é a
democracia, emerge a contradição,
nação onde o povo não medra diante dos
perceptível hoje, do modo de ver de
“bárbaros nazistas mais miseráveis entre
Jorge Amado nos anos 1940.
quantos bárbaros e miseráveis já

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apareceram na face da terra.” (AMADO, americanos, mas eu vos perdoo a
2008, p.161). Assim ele afirma na todos pois sois ignorantes! Não
crônica “Luzes da Vitória”, de estais vendo o perigo comunista?
23/1/1944, na qual comemora a Cadê a quinta-coluna? [...] E esses
libertação de mais uma cidade soviética, russos miseráveis... como me
enganaram... São traidores piores
“arrancada das mãos assassinas dos
que qualquer dos patriotas franceses
nazifascistas”: “Homens, mulheres e que eu comprei! (AMADO, 2008,
crianças dão seu esforço na luta de vida p.91).
e morte que sua pátria sustenta. Não há
um só cidadão soviético que não esteja a Embora se aponte que Stálin estaria
postos, combatendo.” (AMADO, 2008, diretamente envolvido no assassinato de
p.161). Trotski8, ocorrido em agosto de 1940,
Jorge Amado coloca este como traidor,
Diferente de outras nações, para o autor, na voz de Hitler: “Também é culpa
a “quinta-coluna” e os apoiadores de minha que fui acreditar em Trotski... O
Hitler não têm vez na pátria soviética, o desgraçado só queria dinheiro e me
que conduz à leitura de que, além da enganou... Ah! Esses russo miseráveis...
vitória militar do povo soviético, se Liquidaram os quintas que consegui por
concretiza a vitória ideológico-política lá.” (AMADO, 2008, p.91-92).
de todo o regime:
A rubrica do monólogo então orienta
Hoje a vitória é uma realidade “mudando o tom de voz”, destacando a
magnífica. As ordens do dia se incoerência de Adolf Hitler, “agarrando-
sucedem. Então as crianças vêm
se” a quem quer que fosse: “Oh!
para as ruas nas noites de alegria. A
neve se estende, branca e pura. Vêm Simpáticos bolcheviques russos! Eu sou
também os homens e as mulheres na socialista! Sempre fui, meu partido é
Praça Vermelha. Ali está o Kremlin, operário. Vamos nos unir contra os
onde vivem os dirigentes. sórdidos capitalistas anglo-americanos,
(AMADO, 2008, p.162). judeus internacionais. Stálin, quero
No parágrafo seguinte e na conclusão do alisar teu bigode [...].”(AMADO, 2008,
texto: p.92).

Ali está o túmulo onde repousa Hitler dirige-se a Mussolini como


Lênin, o que construiu essa pátria. “Musso, meu filho, [...]” (AMADO,
[...] Populações arrancadas às mãos 2008, p.92), e ainda diz que sua
dos assassinos, criminosos que os frustração poderá ser mitigada na volta a
juízes julgam em nome do povo Berlim: “Mando matar umas centenas de
vingador. [...] As luzes sobre a pessoas e me consolo...” (AMADO,
cidade de Moscou iluminam esses
sorrisos felizes. E iluminam 8
Leon Trotski (1879-1940) um dos líderes da
também, nas sacados do Kremlin, o revolução bolchevique, fundador do Exército
lardo sorriso do marechal Josef Vermelho, tornou-se rival de Stálin. Dulles, em
Stálin, saído de sob os bigodes como O Comunismo Brasil, destaca que o assassinato
um símbolo, é o povo soviético de Trotski, no México, “foi anunciado como de
sorrindo, é o povo soviético autoria de um partidário da vítima, merecedor,
vitorioso! (AMADO, 2008, p.162). apesar de tudo, de agradecimentos gerais por ter
dado cabo de um fiel lacaio dos capitalistas [...].
Enquanto isso, Hitler, em seu monólogo Os trotskistas [...] descreveram o assassinato de
tenta achar culpados para o fracasso: Trotski como um ato covarde e miserável de
Stálin.” (DULLES, 1985, p.214). Jorge Amado,
É bem verdade que sois imundos sob a linha stalinista, era, obviamente, contra
judeus, todos vós, ingleses e Trotski e sua linha de pensamento.

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2008, p.92). A conclusão, que segue o É interessante notar a consciência do
tom de caricatura, antes do choro e a projeto de “mitificação de si” e do
visita de Plínio Salgado, que o consola próprio regime, do “poder encarnado na
com o lenço português: “Roosevelt, pessoa do Führer” (TODOROV, 2002,
Churchill, Stálin, eu quero me aliar com p.28) que necessita, para sua
qualquer de vós! Não faço questão, eu manutenção ideológica, de símbolos,
quero é salvar a pele!” (AMADO, 2008, esculturas, desfiles, de toda uma
p.92-93). arquitetura – da destruição, como
qualifica o fundamental documentário9,
3. Os conceitos de Hitler: raça e
em análoga relação com a ideia de
bolchevismo
“estetização igual à barbárie”
Jorge Amado evidencia em duas de suas (LUKÁCS, 1965, p.204):
crônicas, “Senhor do Bonfim, Padroeiro
O altar do santo seria substituído
das Nações Unidas”, de 15/1/1943, e pelos bustos torpes de Hitler e dos
“Hitler contra Zumbi dos Palmares”, de traidores. Jamais a procissão e a
27/2/1943, os conceitos raciais/racistas lavagem da igreja se realizariam.
de Hitler. Vale notar que Amado já Jamais a poesia andaria solta pelas
defendia a miscigenação do povo ruas da Bahia, nos dias como hoje.
brasileiro como elemento crucial de Só o luto encheria a cidade, o luto e
identidade nacional. Gilberto Freyre (e a escravidão. (AMADO, 2008, p.35-
todo o pensamento voltado ao assunto) 36).
estava em voga na época, como No plano da composição, comparece o
analisado em profundidade no livro O tom “lírico” no uso de paralelismo
Brasil Best Seller de Jorge Amado, de (repetição do vocábulo jamais e da
Ilana Seltzer Goldstein. Portanto, Jorge estrutura sintática que a segue), como se
Amado vai comentar sobre a lavagem da o autor sugerisse a musicalidade das ruas
Igreja do Bonfim, em Salvador: “Sob o de Salvador, do povo mestiço que canta
nazismo, a festa de ontem, popular e sua luta em suas manifestações
lírica, seria impossível. Sob o nazismo, populares. O povo (ou o coletivo), uma
apenas há lugar para os desfiles das vez mais, marca presença no texto
tropas de assalto, só há voz para os vivas amadiano como sujeito principal de
ao Führer, tomando o lugar dos santos.” resistência e signo da liberdade.
(AMADO, 2008, p.35).
De modo mais “ensaístico”, a crônica
Mais especificamente sobre o nazista: Hitler Contra Zumbi dos Palmares, de
Hitler odeia tudo que lembra povo e 27/2/1943, expõe, partindo de Arthur
mais odiaria, com certeza, uma festa Ramos10, autor de O Folclore Negro no
que nasce da mistura de sangue, Brasil (1935), “qual seria a situação dos
com a lavagem do Bonfim. [...]
Hitler só veria torpeza e degradação,
não enxergaria nunca, com seus 9
Arquitetura da Destruição, documentário de
olhos incapazes de enxergar a 1989, dirigido por Peter Cohen, no qual é tratado
poesia, o lirismo, o pitoresco, a o projeto de embelezamento do mundo (limpeza)
ingenuidade, a beleza esplêndida da pelo nazismo, incluindo aí a visão de Hitler
procissão e da lavagem. Sob Hitler, acerca da arte de vanguarda como arte
jamais as baianas poderiam vestir degenerada. O clássico/neoclássico é a referência
para o ideal hitleriano.
seus maravilhosos vestidos. Para 10
Arthur Ramos (1903-1949), entre inúmeras
elas e para nós, estariam os troncos publicações, destacou-se por aquelas acerca da
dos escravos. (AMADO, 2008, democracia racial, especialmente da questão do
p.35-36) negro no país.

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negros e mulatos sob a trágica ‘nova imperialismos...” (AMADO, 2008, p.47-
ordem’ nazista” (AMADO, 2008, p.63). 48). No parágrafo seguinte, uma
Assunto esse caro a Amado, que traria comparação: “O lobo das histórias
aos seus romances a figura do negro de infantis quis, numa última tentativa,
modo a colocá-lo no centro da narrativa, vestir novamente a pele de cordeiro.”
sobretudo a partir do romance Jubiabá (AMADO, 2008, p.48).
(1935) em que o protagonista Antônio
4. Vitória total sobre Hitler
Balduíno é considerado um dos
primeiros heróis negros da literatura É detectável nas crônicas de Jorge
brasileira (TAVARES, 1980, p.49). Amado que o problema central do
conflito a ser resolvido, em sua
Na crônica, o autor considera: “[...] os percepção, é a eliminação cabal de Hitler
planos de Hitler são de referência a no teatro bélico que o próprio Führer
todos os negros, mulatos e mestiços, e criara: “todos os demais problemas são
ele sempre considerou o Brasil um secundários” (AMADO, 2008, p.84), ele
‘miserável país de mestiços’ que devia diz em “As Bandeirantes e o Esforço de
ser civilizado pelos cultos arianos Guerra”, em 24/3/1943. Talvez o autor
nazistas.” (AMADO, 2008, p.63). já previsse o arrastar da guerra, a não
Amado pondera que “Hitler se levantou renúncia do Führer que teria dito em
contra Moisés e a raça judia tem sido sua janeiro de 1945, três meses antes do
vítima mais constante e mais torturada.” suicídio: “Não capitularemos. Nunca.
(AMADO, 2008, p.63). Serve-se mais Podemos afundar. Mas levaremos o
uma vez do recurso irônico ao afirmar mundo conosco.” (KERSHAW, 2010,
que o Führer, “no seu delírio bestial, [...] p.922)11.
se voltou também contra todas as demais
raças que não fossem a raça ariana que O clamor preocupado do cronista atinge
produziu a ‘beleza’ do fenômeno seu clímax quando do afundamento de
nazista.” (AMADO, 2008, p.63). A embarcações nacionais. Na crônica
noção de que a loucura de Hitler não “África! África!”, em 13/3/1943, o autor
conhecia limites está bem expressa na escreve: “Se o pensamento de Hitler e
argumentação de Amado. seus asseclas, ao torpedearem navios
brasileiros, foi intimidar o povo da nossa
Amado destaca em “Até a Rendição pátria, já devem ter, mais uma vez, se
Incondicional”, 28/1/1943, o desiludido.” (AMADO, 2008, p.71). O
pensamento do Führer acerca do ideal de união nacional assim é expresso
marxismo: “[...] nas irradiações para o em contraste com a “guerra de Hitler”:
estrangeiro, Hitler, com voz de choro, “A cada agressão, a cada tentativa de
tentou levantar o mais desmoralizado amedrontamento, o povo responde com
dos seus desmoralizados truques: mais sua decisão de lutar, de honrar os
uma vez falou no perigo bolchevista compromissos assumidos pelo Brasil, de
sobre o mundo, preparando um pedido formar ao lado do governo uma
de paz à Inglaterra e aos Estados
inquebrantável unidade nacional
Unidos.” (AMADO, 2008, p.47). E
[...].”(AMADO, 2008, p.71).
como em seu monólogo, estaria fazendo
jogo duplo: “Possivelmente também 11
proporia a paz à União Soviética para Tomando o pensamento de Hanna Arendt
(2007, p.35) em sua obra “Sobre a Violência”, o
poder continuar a guerra contra a Führer representaria a “forma extrema da
Inglaterra e os Estados Unidos. violência” porque é “Um contra Todos”, em
Naturalmente falaria então no perigo dos contraste com a “forma extrema do poder” do
“Todos contra Um”.

74
Em 13/6/1944, na crônica “Os Povos pontua muitos textos, assim como o
Combaterão”, as massas são o fato lirismo e a estrutura dicotômica. A
decisivo para o combate final, esse noção de povo é ampla e identificada
“último ato da tragédia que Hitler com a conscientização das massas que
desencadeou”: deve insurgir e fazer a revolução
[...] já nos Balcãs, especialmente na proletária. É a união da população, como
Iugoslávia, ele [o povo] decide os demonstrado, quem deve vencer no
acontecimentos. Também na Itália já final.
o povo marcou a sorte [...] Nos Num processo metonímico, Jorge
demais países, como num ensaio
Amado articula a figura de Hitler ao mal
geral, o povo sabota, faz saltar trens,
espera na calada da noite os
e, a dos Aliados, sobretudo Stálin, ao de
opressores nazistas. (AMADO, heróis das nações subjugadas pelas
2008, p.212). ameaça nazifascista. A tensão entre a
“opinião” humanista do autor e o intento
Então, a síntese: “Os povos combaterão de fazer chegar ao leitor a visão da
porque esta é a guerra dos povos contra necessidade de uma mudança radical via
a tirania fascista é a guerra democrática o comunismo abre brechas para um texto
e libertadora.” (AMADO, 2008, p.213). que, no geral, se aproxima do panfleto.
Portanto, a revolução sonhada pela No entanto, é justamente a capacidade
esquerda apenas pode acontecer quando de expressão que permeia a obra
as massas se conscientizarem do mal amadiana que em muito se justifica pelo
instalado nas nações e, desse despertar, a diálogo com a tradição popular que faz
revolta é capaz de suscitar a dessas crônicas exemplo de um autor
transformação social. Tudo isso está em “em aprendizagem”12, o qual, enquanto
articulação com o ideal de ascensão afirmava uma ideologia, cristalizava sua
proletária que o jovem escritor militante prosa.
apoia. Hitler, nesse contexto, é a
encarnação de tudo o que é contrário a
essa dimensão libertadora e
emancipadora.
5. Considerações finais: opinião em
tensão 12
Em analogia a Duarte que considera o período
Ao colocar Adolf Hitler como causador de “aprendizagem romanesca” de Amado em
suas três primeiras obras – O País do Carnaval,
da Guerra, bem como sua eliminação Cacau e Suor – seguido pelo “romance de
como fator primordial para que o ideal formação proletária”, quando o autor encontra o
fascista fosse extinto do mundo, Jorge diálogo popular de forma mais intensa em obras
Amado parece amalgamar elementos em como Jubiabá e Capitães da Areia. À época das
suas crônicas que vão além da mera crônicas de Guerra, então, uma fase romanesca,
como em Terras do Sem Fim e São Jorge dos
opinião acerca do conflito. Ao se Ilhéus, na qual o autor articula realismo e
posicionar a favor da democracia que etapismo na representação. O estudo de Duarte
emancipa os povos, portanto, contrário se completa com o “crepúsculo do partidarismo
ao pensamento expansionista e opressor romanesco”, quando o partido se torna herói na
do direitismo conservador (o que inclui, obra amadiana, encerrando sua primeira fase
como romancista militante ao publicar a trilogia
no plano nacional, o integralismo e a “Os Subterrâneos da Liberdade”. A partir de
política ditatorial de Vargas), o autor meados dos anos de 1950, o autor se afasta do
aciona recursos de expressão textual Partido Comunista e inaugura uma fase artística
para firmar seu ideal socialista: a ironia em que o discurso político dá vez ao “colorido”
do país e ao humor.

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Publicado em 2013-09-06
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