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Fassbinder Representando a Alemanha

Eu frequentemente pergunto a mim mesmo, aonde eu me situo na história de meu país.


Por que eu sou um alemão?1

Alemanha: A Nação
Quando Fassbinder morreu em 1982, os obituários no mundo viram nele sobretudo o
principal representante não apenas do Novo Cinema Alemão como da Nova Alemanha.
Palavras de ordem raivosas, crítico impiedoso, honesto, incorruptível, o espírito de 68, o
farol da raiva virtuosa e integridade estética2. Não foi sempre assim, e de fato a noção de
Fassbinder representando a Alemanha pareceria à primeira vista um tanto improvável.
Para compreender como tais considerações descritas nos obituários puderam vir à tona e
quantos julgamentos desencontrados são esquecidos dentro das homenagens bajuladoras,
necessitar-se-ia voltar atrás e considerar o que representava para um realizador como
Fassbinder, cuja vida tanto ofuscou sua obra, “representar” algo além dele próprio.

O que é uma nação, o que é um cinema nacional, e como pode um realizador representar
ambos? No caso da Alemanha desde a Segunda Guerra essas são, naturalmente, questões
particularmente difíceis. Depois de 1945, poucos países foram obrigados a interrogar sua
identidade geográfica e cultural tão ansiosamente quanto a derrotada, devastada e
dividida Alemanha do Reich. Não somente porque os acordos de Yalta e Potsdam
alteraram irrevogavelmente o mapa, entregando as antigas províncias prussianas à
Polônia e à União Soviética, e criando as Zonas Ocupadas Aliadas das quais emergiriam
os dois estados alemães em 1948/49. Mais decisiva foi a razão da partilha: o fato que
crimes indizíveis praticados por alemães em outras nações tenham sido justificados em
nome da nação, cuja identidade, o Nazismo afirmou, foi baseada tanto numa origem
racial comum quanto num destino territorial manifesto, duas construções da nação para
cuja execução todos os meios foram considerados legítimos.

Mesmo que o establishment político na Alemanha Ocidental tenha sido rápido em se


purgar a si próprio de qualquer traço desse nacionalismo agressivo e procurado dar aos
alemães ocidentais uma nova identidade nacional através da definição de um novo
inimigo (a União Soviética e a Alemanha Oriental, sua filial) e um novo destino geo-
político (a Comunidade Européia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte), a vida
intelectual da República Federal tinha objetivos bem menos definidos. Politicamente, o
novo inimigo era praticamente o mesmo do antigo (“o Bolchevismo” já era conhecido de
Hitler), levando-o a alianças conservadoras que deram a Alemanha de Konrad Adenauer
e Ludwig Erhard objetivos internacionais e domésticos que remontam a luta de Bismarck
contra os socialistas. Culturalmente, por sua vez, a Alemanha Ocidental não sentia a si
própria enquanto nação. A literatura, as artes e a filosofia estavam ocupadas em recuperar
o atraso em relação aos movimentos internacionais: a pintura abstrata, a “nova música”, o
1
Entrevista com Colette Godard, “L’Allemagne, L’Ouvre Complète”, Le Monde, 14/04/81
2
Para uma coleção de citações ver “Auskunft über Deutschland. Auslandische Reaktionen auf den Tod von
Rainer Werner Fassbinder”, Frankfurter Algemeine Zeitung, 12/06/1982 (com contribuições de Karlheinz
Bohrer, Ivan Nagel, Winfried Wiegand).
existencialismo sartriano e autores americanos como Faulkner, Steinbeck e Hemingway
se tornaram importantes marcos nos anos 50, distanciando as mentes do passado recente e
encarregando de apresentá-las ao presente. Dentre os autores alemães, Thomas Mann no
Ocidente e Bert[olt] Brecht no Oriente deram o tom, refletindo criticamente sobre o que
representava ser um autor alemão, depois de seus respectivos retornos do exílio na
Califórnia. Os que haviam permanecido – poetas como Gottfried Benn ou romancistas
como Wolfgang Kroeppen – tornaram-se figuras ambíguas do que foi chamado “exílio
interno”. As artes populares, incluindo o cinema, ofereceram um retrato ainda mais
desconcertante, ao menos para os que a comentavam: as classes, o kulturbürgertum, em
sua maior parte, deplorava a crescente influência do entretenimento de massa norte-
americano nos filmes e na música popular, enquanto a esquerda se concentrava no que
parecia ser sinistras continuidades entre o gosto pequeno-burguês dos anos 1950 e o
entretenimento oficial do Terceiro Reich, como se expressava a si próprio na sua
inabalável fome por comédia familiar, música schlager e melodrama heroico.

Escritos acadêmicos sobre o nacionalismo e sua responsabilidade sobre o regime nazista


frequentemente tentam traçar suas raízes com o romantismo alemão e sua descoberta do
Volk.3 Aqui, o popular é identificado com o irracional, por sua vez considerado como a
base para o entusiasmo com que as massas haviam acolhido o Führer, e foi então se
tornando crescentemente desconfiada. Tal postura confirmava que nenhum tipo de
categoria metafísica poderia explicar o mal que havia se abatido sobre a Alemanha 4. No
outro extremo, o que fosse vinculado à vida emocional era posto sob suspeição:

O sentimento de introspecção dos alemães, reunidos ao redor da


árvore de natal, podia ser instrumentalizado. O célebre Natal
Alemão se revelou como preparação para a guerra.5

Mesmo provocando a cultura popular para um tipo de sentimentalidade que podia ser
politicamente explorada foi também uma espécie de contra-movimento para uma análise
explicitamente política e econômica que o Nazismo recebia em outra parte da Alemanha,
aonde o proletariado anti-capitalista e anti-fascista se tornou um dos elementos principais
da auto-definição do estado e a pedra angular da legitimação histórica da Alemanha
Oriental como uma entidade à parte.

Numa contra-ofensiva a esse contra-movimento, uma geração posterior – a de 1968 –


buscou conscientemente se afastar de ambas essas visões, voltando-se contra o sistema
educacional, os valores familiares autoritários, a ausência de instituições democráticas na
Alemanha, a ausência de responsabilidade cívica pelas noções agressivas de identidade
nacional que levaram ao genocídio e ao expansionismo territorial. Ao chamarem atenção
para algumas das falhas históricas da sociedade alemã desse século, esses críticos
3
Hans Kohn, The Mind of Germany (Nova York: Charles Scribner’s, 1960). Ver também Ernest Gellner.
Nações e Nacionalismo (Lisboa: Gradiva, 1993) e Eric Hobsbawn. Nações e Nacionalismo na Europa
desde 1780 (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990).]
4
As correspondências de Karl Jaspers e Hannah Arendt dão um eloquente testemunho a esse respeito.
5
Edgar Reitz, comentário sobre um dos episódios de seu filme Heimat. Edgar Reitz, Drehort Heimat
(Frankfurt: Verlag der Autoren, 1993, p. 258)
implicaram a burguesia enquanto classe e o autoritarismo enquanto ideologia como
responsáveis pela catástrofe. Seu pensamento devia muito às teorias da cultura da Escola
de Frankfurt, associadas com T.W. Adorno e Max Horkheimer que, durante o seu exilio
nos Estados Unidos, abordaram a questão da identidade cultural alemã não somente como
uma questão de classe, propriedade e ideologia, mas também psicanaliticamente: a
identidade nacional como uma estrutura de internalização e projeção onde a família
burguesa é chamada para fazer a mediação entre o indivíduo rebelde e o estado
autoritário. Como consequência, muitas das discussões dos anos 1960 declaravam a
questão da identidade nacional e cultural como obsoletas, preferindo reformula-la seja em
termos de Nova Europa (à direita) ou bradando por uma solidariedade política
internacionalista (à esquerda). Ambos os lados se defrontaram como algo como um
dilema: a direita, reivindicando falar por toda a Alemanha e também por sua história,
declara o Nazismo uma aberração e, com isso define a cultura de forma a-política e a-
histórica. A esquerda, quando criticava tal ideia de uma cultura nacional como elitista ou
idealista se arriscava a ser denunciada como “comunista”, mera porta-voz da doutrina e
propaganda alemã-oriental. O que tendeu a se ofuscar inteiramente foi uma avaliação
mais detalhada da cultura popular alemã, tanto antes como após a guerra, e portanto de
qualquer visão diferenciada daquela que o cinema pudesse contribuir em termos de arte
popular para a vida da nação, além de ser um mero instrumento de valores reacionários
ou garantia de respeitabilidade. Poder-se-ia chamar um vínculo duplamente histórico: um
cinema comercial que fora popular com as plateias se encontrava ele próprio desprezado
pelos críticos, mesmo que estivesse, sem dúvida, fazendo o impossível/não permitido
“trabalho de luto” para parte da identidade da nação e do senso de pertencimento que
havia sido formado tanto pelo entretenimento de massa quanto pela propaganda
nacionalista. Orientado para os gêneros e com star-system, sua ausência de realismo
somente poderia ser percebida como reacionária, por uma vanguarda para quem o
popular sempre era necessariamente nacionalista, por conta de durante o período nazista,
terem se assemelhado como os dois lados de uma mesma moeda.

Representando a Alemanha: Uma Estranha Honraria


Porém no cinema, definir o que é “nacional” e o que é “nacionalista” é uma questão
complicada, e as datações políticas frequentemente são um guia nada confiável para os
desenvolvimentos da história do cinema. E é verdade que após 1945, foi sobretudo no
cinema que as “tradições nacionais” do entretenimento permaneceram aparentemente de
forma mais persistente, com os gêneros do período nazista, tais como os dramas de
época, os filmes de temática social e os musicais continuando a serem produzidos
(frequentemente pelos mesmos diretores e com as mesmas estrelas dos anos 1940).
Porém é também verdade que muitos desses gêneros populares datavam dos anos 1910 e
idos da década seguinte e, portanto, não foram meramente invenções nazistas, mesmo
tendo sido bastante abusados pela propaganda. 6 Eles retiveram sua popularidade mesmo
quando, no início dos anos 1960, uma nova geração de realizadores transformou a
indústria de cinema comercial com o Manifesto de Oberhausen e suas próprias produções
de cinema. O dilema que é posto é ou argumentar que o público ainda continua dopado

6
Ver os ensaios de Ernst Bloch do final dos anos 1920 e idos dos 1930, alertando a esquerda para levar a
literatura de massa, os filmes e a cultura popular de modo mais sério na sua luta política contra a nascente
direita, coletados em Ernst Bloch, Heritage of Our Times (California U Press, 1989).
pelo entretenimento reacionário, contra seus próprios interesses, ou aceitar que mesmo
nos dramas sentimentais, verdades se encontram presentes que falam às esperanças ou
medos das pessoas.

Adotando os slogans da Nouvelle Vague francesa, e inspirados pelas estéticas


internacionais, o “jovem cinema alemão” era um cinema conscientemente marginal e
minoritário. Ele se transformaria em algo como um cinema nacional somente muito
depois, principalmente com os filmes de sua segunda geração de realizadores (Herzog,
Wenders, Fassbinder, Syberberg) no estopim da crise política durante os anos 1970 que
parecia ameaçar a auto-definição e o consenso, precisamente, da Alemanha Ocidental
enquanto nação. Mesmo que essa noção de um cinema nacional fosse uma faca de dois
gumes. As plateias alemãs abandonaram seu próprio cinema comercial no início dos anos
70 não pelos filmes de Alexander Kluge e Jean-Marie Straub (a primeira geração), nem
tampouco pelos de Herzog e Wenders, mas pelos blockbusters de Hollywood e pelas
comédias francesas. Evidentemente, portanto, é necessário se distinguir entre um cinema
cujos filmes as plateias alemãs desejava se reconhecer a si próprias (precisamente, o
cinema popular do estrelato-de gênero dos anos 1950 e 1960 e o cinema americano do
estrelato-de gênero dos anos 1970 e 1980) e – ao contrário de ambos – um cinema de
autor cujos críticos estrangeiros (e plateias) aceitavam como “representando” a Alemanha
na espécie de parlamento dos cinemas nacionais que são os grandes festivais de cinema
como Cannes, Veneza e Berlim, por exemplo, ou as salas de arte da cultura
cinematográfica cosmopolita em Londres, Paris e Nova York.

Dentre os diretores dessa segunda geração, Fassbinder, com suas fortes raízes regionais,
seu amor pelo cinema hollywoodiano, e sua crença no cinema de gênero não se
enquadrava em nenhuma das categorias. De fato, ele parecia ser o menos óbvio dos
candidatos a “representarem a Alemanha” para tratar de questões sociais ou políticas; no
sentido que seus filmes criavam mundos ficcionais nos quais as Alemanhas podiam ou
não se reconhecer a si próprias. Um realizador como Kluge era muito mais analítico e
focado na complexidade da vida sócio-política alemã, enquanto Volker Schlöndorff (O
Tambor) e posteriormente Edgar Reitz com Heimat fizeram filmes de maior apelo
popular sobre a realidade alemã e sua experiência histórica.

Se a representação, portanto, é dado dois sentidos, “falar em nome de” ou “construir uma
imagem reconhecível de”, então Fassbinder pode ser considerado como representante da
Alemanha (Ocidental), somente dentro desses termos. Mesmo quando alguém o equipara
com outros diretores talvez comparáveis no exterior, então a Alemanha de Fassbinder não
é como a França de Renoir, a Itália de Fellini ou a Suécia de Bergman. Iniciando sua
carreira como um diretor de vanguarda homossexual, Fassbinder encarnou brevemente a
resposta aos universos claustrofóbicos e kitsches da Nova York de Andy Warhol. Porém
mesmo como realizador homossexual, ele não representa a auto-confiança pós-Stonewall
do movimento gay. Na melhor das hipóteses, como notável membro de sua geração, ele
representou a contra-cultura dos anos 1970, sendo tanto uma figura de proa quanto um
bode expiatório.
De fato, diversos fatores complicam e modificam essa avaliação de não-representação.
Ao longo dos anos 1960 e 1970, os escritores e realizadores alemães-ocidentais
frequentemente possuíam uma figura representativa sendo imposta sobre eles.
Romancistas como Günther Grass, Heinrich Böll ou Martin Walser eram – a despeito ou
justamente por conta de sua avaliação geralmente crítica – considerados como alemães
exemplares: não necessariamente por conta da dimensão de sua visão imaginativa ou da
abrangência de seu realismo, mas por virtude de sua franqueza moral ou compromisso
político. Internacionalmente reconhecidos como porta-vozes de uma nova, e melhor,
Alemanha, eram considerados habilitados de representar o novo espírito democrático,
nascido dos valores da racionalidade do Iluminismo. O mesmo pode ser dito de
intelectuais acadêmicos tais como Jürgen Habermas, herdeiro de T.W. Adorno e da
Escola de Frankfurt, que tomou sobre si a responsabilidade de manter tradições que
uniam pensamento filosófico e crítico na República Federal às correntes libertárias da
República de Weimar. Esse papel proeminente durante décadas foi profundamente
relativizado quando, com a unificação alemã em 1990, este prestígio sofreu um dramático
declínio. Gunther Grass e Hans Magnuns Enzensberg na Alemanha Ocidental e
lideranças dissidentes da ex-Alemanha Oriental como Christa Wolf e Heiner Müller não
somente sofrerem ataques públicos a sua integridade pessoal mas se tornaram
emblemáticos de uma tendência geral de derrubar os ícones culturais de seu pedestal de
lideranças nacionais. Foi como se, com sua identidade geográfica reestabelecida, a
Alemanha passasse a redefinir de forma diferenciada a sua identidade nacional, prestando
menos atenção a seus intelectuais e artistas.

Cerca de uma década antes, entre 1974 e 1984, entretanto, os cineastas foram talvez pela
primeira vez desde sempre sido considerados como parte da elite cultural e, por isso
mesmo tinham, também, se tornado envolvidos com o que Habermas uma vez havia
denominado como “a questão da legimitação”. Qual papel, Habermas indagava, poderia
os artistas e os intelectuais, as universidades e as instituições culturais efetivarem numa
sociedade na qual o mercado de oferta e demanda supostamente regulava todos os
serviços, incluindo aqueles de educação e das artes? Poderiam as artes ser mais que um
sinal distintivo cultural que se relaciona narcisisticamente consigo própria ou
compensação para ideais que a sociedade há muito tempo excluiu de sua agenda política?
Os diretores de cinema estão frequentemente no centro de tais questões. Não somente
seus filmes são invariavelmente financiados com subsídios de instituições
governamentais, como eles também se beneficiam do patrocínio oficial dos Institutos
Goethe espalhados pelo mundo, que apresentam seus filmes e os próprios diretores em
pessoa para plateias estrangeiras. Werner Herzog, Wim Wenders, Hans Jürgen
Syberberg, Werner Schroeter, Margareth von Trotta, Jutta Brückner, Helma Sanders
Brahms em algum momento foram eles próprios destinatários dessa ambígua honra de
embaixadores alemães. A relação próxima do cinema (de arte) com o Estado na
Alemanha Ocidental, com as muitas comissões federais, órgãos de financiamento,
autoridades de subvenção e subsídios, significou que havia algo de “oficial” sobre o
cinema alemão ao longo de seu período de renascimento nos anos 1970 e 1980. Isso foi
acentuado pelo fato de que a distribuição internacional era frequentemente co-financiada
pela Inter Naciones, ela própria o braço publicitário do mesmo Instituto Goethe. Dentro
da Alemanha, o Novo Cinema Alemão raramente provou ser popular ou considerado de
bom gosto, indicando que aquelas plateias alemãs que haviam demonstrado sua lealdade
para o agora crescentemente moribundo cinema comercial, não se sentiam geralmente
representadas pela obra mais “pessoal” dos novos diretores e, como alternativa, buscaram
na televisão sua auto-representação. Dada a ausência de um cinema popular dominando a
devoção das plateias alemãs, juntamente com a quase universal desaprovação da cultura
popular em geral, os realizadores, comparados aos escritores, também enfrentavam um
dilema duplo: ser aceitos como “artistas” (pelo establishment, como forma de atrair
subsídios) e se tornarem populares (como forma de serem reconhecidos e comentados
pelas pessoas). Aqueles que aceitaram serem os representantes foram, além do mais,
atacados por seus colegas menos conhecidos ou flexíveis como corruptos ou oportunistas,
ou ridicularizados como pomposos.7 Poucos diretores foram hábeis o suficiente para
equilibrar essas demandas com distanciamento irônico ou a cabeça fresca, optando antes
tanto pela respeitabilidade quanto pela notoriedade.

Por outro lado, o status oficial em casa e no exterior se encontrava associado, ao menos
em parte, a recepção grandemente favorável que os filmes alemães passaram a gozar a
partir do final dos anos 1970 no exterior. Ela adveio de um Oscar em 1980 para
Schlondorff por O Tambor e a distribuição em grande circuito nos Estados Unidos de O
Barco – Inferno no Mar (Das Boot), de Wolfgang Petersen à aclamação popular de
Fassbinder com O Casamento de Maria Braun e Heimat, de Edgar Reitz, do entusiasmo
da crítica por Hitler, Um Filme da Alemanha, de Hans Jürgen Syberberg a hostilidade
abafada a LILI MARLENE de Fassbinder ou FITZCARRALDO. Em todo caso, no
entanto, os diretores eram tratados mais ou menos como mais do que meros artistas de
entretenimento. Eles haviam alçado ao status de pensadores, aparentemente tomando para
si tal designação para falarem em nome da nação como um todo e constantemente –
como em todos os títulos acima mencionados – para falarem da história alemã, ela
própria tão frequentemente igualada com o Nazismo e suas consequências. Alguns se
sentiram eles próprios chamados para incorporar uma postura ainda mais heroica, como
sábios e profetas: na Alemanha, os críticos começando a falar sobre “Nossos
Wagnerianos”8 entre os quais eram listados não apenas artistas como Anselm Kiefer,
Joseph Beuys ou o compositor Karlheinz Stockhausen, mas também o escritor Heiner
Müller e o cineasta Hans Jürgen Syberberg – incorporando ambições em relação a
Gesamtkuntwerk que bem pode ter sido uma resposta às pressões de serem
“representativos”9.

Porém, também existe diretores que a recusaram: Herbert Achternbusch, um pintor-


transformado em escritor-transformado em cineasta foi um dos poucos a vociferar sua
não disponibilidade10, mas, sem dúvida, a figura não cooperativa de maior destaque, foi

7
Wim Wenders e Reinhard Hauff, por exemplo, foram atacados por Herbert Achternbusch in Semiotexte:
The German Issue, n.11, 1982, p. 8-15.
8
Gabriele Förg (org.), Unsere Wagner. Frankfurt: M Fischer, 1984.
9
A tendência rumo a um certo monumentalismo no Novo Cinema Alemão é incontestável: as façanhas
hercúleas de Herzog como realizador, a duração de Hitler – Um Filme da Alemanha, de Syberberg, as 13
partes de Berlim Alexanderplatz, o Heimat (15 horas, 22 minutos) e o Die Zweite Heimat
(aproximadamente 26 horas) de Reitz.
10
Ver meu “Herbert Achternbusch and the German Avant-Garde”, Discourse, n.6, 1983, pp. 92-112.
Fassbinder11 . Poder-se-ia dizer que ele optou pela notoriedade, porém isso subestimaria a
complexidade tanto da situação de Fassbinder como de sua resposta a ela. Buscando ser
popular ao mesmo tempo que crítico, ele não queria se direcionar nem para o nicho do
vanguardismo político de Straub e Huillet e Harun Farocki ou das palhaçadas excêntricas
que satirizam o status quo de Achternbusch, para não mencionar a postura da minoria
perseguida de Rosa von Praunheim, o diretor gay mais militante do Novo Cinema
Alemão. E, ao contrário dos nomes internacionais proeminentes, Fassbinder parecia
sentir que sendo um “representante” da Alemanha para ser “crítico” de seu país e de sua
história não era suficiente: deveria existir outra forma de auto-apresentação e persona.

Fassbinder se transformou de outsider programático para uma postura mais complexa e


diferentemente provocativa no momento de sua carreira em que a fama internacional ao
qual passou a desfrutar tornou-o auto-consciente de sua obra e sobre ser “alemão” de uma
forma que ele não havia tido anteriormente a meados da década de 1970. Ele gostava de
ser famoso, de procurar financiamentos oficiais, e ficou devastado quando o Festival de
Cinema de Berlim de 1978 não delegou o principal prêmio ao O CASAMENTO DE
MARIA BRAUN, que considerava como seu melhor filme.

Por outro lado, essa espécie de fracasso pode ter tornado mais fácil a recusa de ser
apropriado pelo establishment, mesmo apesar de sua inevitável guinada nos últimos anos
para incorporar a Nova Alemanha. Fassbinder, no entanto, tentou tornar positivo o duplo
vínculo que ele tão claramente reconhecia em si, aquele de enfant terrible, o rebelde e
outsider, cuja Alemanha oficial necessitava como um de seus álibis “liberais” enquanto
negociava um período de crise econômica e quase guerra civil em meados dos anos 70 –
se ele gostava de “morder a mão que o alimentava”, também era capaz ocasionalmente de
se afastar dos subsídios oficiais completamente, como em A Terceira Geração12.

O Balzac da Alemanha – A Comédia Humana de Fassbinder


Como conseqüência de sua súbita morte em 1982, entretanto, algo como um consenso
sobre a obra de Fassbinder encarnar peculiarmente, ou mesmo de forma singular,
características alemãs, rapidamente emergiu. Duas metáforas se tornariam estabelecidas:
com a morte de Fassbinder o Novo Cinema Alemão, do qual ele havia sido a força
motriz, o “coração”, havia morrido e a que Fassbinder havia sido o Balzac da Alemanha
Ocidental, seu cronista mais perspicaz e apaixonado. 13 Essa comparação é justificável e
algo mais que uma mera hipérbole? Nesse capítulo pretendo ter um olhar crítico a
algumas das evidências, e ao mesmo tempo sugerir uma forma diferenciada de
compreender o termo representação enquanto aplicável aos filme de Fassbinder, e a
Alemanha enquanto um país em busca das imagens de si mesma. De acordo com Schutte,
os filmes de Fassbinder revelam uma voracidade para documentar a nação típica do
século XIX.
11
“Entrevista: Lieber Strassenkehrer in Mexiko sein als Filmemacher in Deutschland” in: Der Spiegel,
n.29, 11.07.1977.
12
“ O Que Aconteceu com o Sr. R? é também repleto de zombarias para a mesma afluência que havia
tornado a extraordinária carreira cinematográfica de Fassbinder possível, porém era uma prática de muitos
artistas desses dias. Eles podem morder tais mãos desde que também possam alimenta-los.” Vincent Canby,
“Fassbinder Sneers at German Affluence”, The New York Times, 18.11.1977.
13
Wolfram Schutte, “Unser Balzac is Tot”, FrankfurterRundschau, 11.06.1982.
Somente em retrospecto se torna possível ver que Comédia
Humana deixou atrás de sua obra, quão intensas suas
narrativas fílmicas são saturadas com a política, com a
história e com a vida cotidiana no contexto da Alemanha
(...) Em nenhum outro lugar é a Republica Federal
apresentada de uma forma tão ampla e com tal
profundidade de perspectiva, talvez com exceção da obra
de Heinrich Boll (...). E em contraposição - a um diretor
como Andrzej Wajda - o paradigmático personagem da
obra de Fassbinder surgiu contra o consenso do
establishment mas sem criar uma identidade política. Em
seus filmes, nenhuma nação reconhece a si própria, apesar
da nação ser reconhecível nos e através dos filmes.14

A riqueza dos personagens e situações, de histórias, tipos e pessoas é, de fato,


impressionante. Poder-se-ia apontar as muitas classes e grupos sociais que os filmes de
Fassbinder abrangem: aristocracia e aristocracia rural (FONTANE EFFI BRIEST), alta
burguesia (AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT, MARTHA), velhos ricos
(ROLETA CHINESA) e novos ricos (LOLA), círculos artísticos do show-business (LILI
MARLENE, VERONIKA VOSS), pequena burguesia (O MERCADOR DAS QUATRO
ESTAÇÕES), operários (MAMÃE KUSTER VAI PARA O CÉU), lumpem-proletariado (O
AMOR É MAIS FRIO DO QUE A MORTE), “gastarbeiter” (O MACHÃO), “negros” tanto
estrangeiros quanto nativos (O MEDO DEVORA A ALMA, PIONEIROS EM
INGOLSTADT). Igualmente amplo é o espectro de profissões: jornalistas, industriais,
magnatas, trabalhadores, sindicalistas, fazendeiros, lojistas, açougueiros, atendentes de
bares, proxenetas, prostitutos de ambos os sexos, pequenos gangsteres, assassinos de
aluguel, jogadores, marinheiros, soldados.

Tal urgência em documentar a vida da nação em grande escala é praticamente única no


cinema alemão – ou ao menos era, antes de Fassbinder. Desde então, Edgar Reitz pode
ser considerado como tendo assumido esse projeto em escala semelhante, primeiro com
sua série de TV em doze partes HEIMAT (1979/1984) – abrangendo um vasto período de
tempo, de 1900 a 1970, porém ambientando-a, de forma surpreendentemente atípica,
numa comunidade rural – e sua seqüência, DIE ZWEITE HEIMAT (1987/1993), focado
em um grupo de jovens músicos de Munique e cineastas de 1960 a 1970.

Que essas mudanças para visões panorâmicas ou inventários nacionais tenham assumido
uma configuração palpável no final dos anos 1970 na Alemanha Ocidental não é
acidental. Antes de tudo, sobreveio com o impacto do choque, moral e psicológico, que o
período relativamente breve de terrorismo urbano que culminou com a Fração do
Exército Vermelho, sua captura, julgamentos e suicídios provocou no senso de maturação
política e identidade histórica da República Federal. O primeiro reflexo cinematográfico
da crise foi talvez A HONRA PERDIDA DE KATHARINA BLUM (1975), de Volker
Schlondorff e Margareth von Trotta, porém uma tomada de ação mais ampla foi o filme
14
Jansen / Schutte, 1992, p.64-5.
coletivo ALEMANHA NO OUTONO (1977/78), iniciada por Alexander Kluge com
contribuições, dentre outras, de Schlondorff, Reitz assim como de Fassbinder. Este foi
seguido por outras produções aonde realizadores pareciam determinados a exorcizar esse
momento crítico de auto-análise nacional (IRMÃS OU A BALANÇA DA FELICIDADE
de Margareth von Trotta, FACA NA CABEÇA, de Reinhardt Hauff, A PATRIOTA, de
Alexander Kluge, ALEMANHA, MÃE PÁLIDA, de Helma Sanders-Brahms) utilizando
a situação contemporânea igualmente como uma forma disfarçada de refletir sobre as
origens mais subeterrâneas do mal-estar da nação que levaria a uma situação de quase
guerra civil.15

De fato, diversos dos filmes apenas mencionados foram derivados de um projeto que
novamente parecia ter sido originado por Kluge (possivelmente em diálogo com Peter
Martheismer da República Democrática Alemã) na esteira do sucesso crítico de
ALEMANHA NO OUTONO, isto é, fazer outro filme coletivo, a ser intitulado “Os
Casamentos de Nossos Pais”. O objetivo era traçar a relação entre, como Kluge pôs em
seu episódio (incorporado em A PATRIOTA), “uma história de amor e uma guerra
mundial.” Mesmo que Sanders-Brahms tenha estendido às formulações de Kluge a um
épico grandemente autobiográfico (ALEMANHA MÃE PÁLIDA), e Reitz tenha
concebido seu autobiográfico HEIMAT ao redor de uma família inteira durante e entre as
duas guerras, a contribuição de Fassbinder se tornou seu filme mais conhecido e bem
sucedido, O CASAMENTO DE MARIA BRAUN, escrito por Marthesheimer e sua
esposa Pea Frolich, juntamente com o próprio Fassbinder. O filme não era
autobiográfico.

Fassbinder parecia ter compartilhado a ambição de Balzac de documentar sua sociedade


também geograficamente, proporcionando algo como um inventário das regiões: do norte
da Alemanha (a Prússia de FONTANE EFFI BRIEST) à Berlim (de BERLIM
ALEXANDERPLATZ), a Bremen (de AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON
KANT) via Renânia (O CASAMENTO DE MARIA BRAUN), Francônia e Hesse (o
Coburgo de LOLA, Frankfurt de NUM ANO DE TREZE LUAS) a Bavária no Sul, com
Munique (O MERCADOR DAS QUATROS ESTAÇÕES, O MEDO DEVORA A
ALMA), Lago Constância (MARTHA) e o “sertão” (THE NIKLAUSHAUSEN
JOURNEY, JAIL BAIT, BOLWIESER). Em 1980, Fassbinder expôs as razões de forma
bem clara:

Fiz bastante filmes até minha história da República Federal


encontrar o presente. LOLA e MARIA BRAUN são filmes
sobre o país como ele é hoje. Para compreender o presente,
deve-se compreender toda a história ou ao menos trabalhar
sobre ela (...). MARIA BRAUN e LOLA são histórias que
poderiam ter acontecido no momento no qual estão
situadas. E são, acredito, parte de um quadro geral da
República Federal, que nos ajuda a compreender melhor
seus peculiares contornos democráticos – e também os

15
Ver Anexo sobre os detalhes do “outono quente” de 1977.
riscos e tentações dessa democracia. Nessa medida, ambos
são filmes bastante políticos.16
As Realidades da Representação
Existem muitas articulações no sentido que alguém pode dar a palavra “política”. Por
exemplo, ela não parece se referir ao realismo social como um estilo, à análise de
instituições políticas ou aos locais da indústria ou dos negócios. Além do que, um diretor
menos dado a descrever a paisagem física de um país que Fassbinder é dificilmente
imaginável. Basta comparar sua obra com a de Antonioni, Tarkvoski ou mesmo Godard
para perceber que o mundo de Fassbinder não se estende para o espaço topográfico como
um todo, não possui a ambição de se abrir para vistas ou paisagens, para o sentido do que
se encontra extra-muros ou transmitir as qualidades de uma paisagem. Se alguém
observar para uma realidade mais próxima dele, para o Herzog de WOYZECK, de
KASPAR HAUSER e CORAÇÃO DE CRISTAL ou para o Wenders de MOVIMENTO
EM FALSO, NO DECORRER DO TEMPO e ASAS DO DESEJO (para não falar das
produções posteriores dos dois diretores realizadas no exterior, tais como ONDE
SONHAM AS FORMIGAS VERDES ou ATÉ O FIM DO MUNDO) a diferença é ainda
mais notória e absoluta. Não é a Alemanha dos castelos do Reno (MOVIMENTO EM
FALSO, de Wenders) e montanhas bávaras (CORAÇÃO DE CRISTAL), ou paisagens
românticas de Caspar David Friedrich (KASPAR HAUSER) ou a Floresta Negra
(WOYZECK) que observamos nos filmes de Fassbinder. Não se testemunha tampouco a
melancolia das regiões de fronteira ou das vilas abandonadas pela prosperidade alemã-
ocidental, como em NO DECORRER DO TEMPO ou em WILLI-BUSCH REPORT, de
Nikas Schilling. Karsten Witte certa vez considerou acertadamente que em Fassbinder
“você encontra tudo da Alemanha que não é o Lorelei e o Neuschwanstein - o castelo de
conto de fadas de Ludwig da Bavária miniaturizado na Disneylândia de Anaheim).17

De forma semelhante, quando comparado a Schlondorff, Hauff e Reitz, Fassbinder é um


candidato ainda mais improvável a ser um pioneiro de um novo cinema nacional: ele se
encontrava completamente à margem das tradições do realismo cinematográfico. O
realismo tem sido importante na definição dos cinemas nacionais europeus do pós-guerra
em ao menos dois aspectos: em primeiro lugar, desde que o neo-realismo italiano veio a
colocar a idéia de um cinema nacional europeu, o realismo, enquanto oposto ao visual de
estúdio do cinema de gênero – a postura anti-hollywoodiana – tornou-se o critério de
definição de um cinema nacional; depois, os cinemas nacionais auto-conscientemente
tem frequentemente sido considerados como “cinemas de arte” e tem vigorosamente feito
uso de tradições literárias nativas, principalmente do romance realista. Isso foi verdadeiro
para a Inglaterra, mas igualmente para a Itália, Polônia e também para a Alemanha
Oriental. Guardadas as devidas proporções, tal característica poderia ser considerada
verdadeira também para a Alemanha Ocidental, tanto que muitas das queixas sobre
“literatura filmada” foram aduzidas como provas de que o Novo Cinema Alemão havia
traído suas premissas radicais. Fassbinder, ao contrário, foi celebrado no início dos anos
1970 mais como diretor de filmes de gênero que importavam não a literatura, mas o
melodrama hollywoodiano, para o cinema de arte europeu. E na medida em que ele pode
reivindicar um pedigree literário, este sobreveio mais da herança expressionista de Franz

16
Entrevista de 1980, citada em Werkschau: Programme, pp. 77-8.
17
Karsten Witte, “Holle & Sohne”, Im Kihno (Frankfurt: Fischer, 1985, p.159)
Wedekind, Bertolt Brecht, Marie-Louise Fleisser e Odon von Horwath que do legado
realista de Thedor Fontane ou Thomas Mann.

Poder-se-ia objetar que com seu FONTANE EFFI BRIEST, suas citações do Tonio
Kroeger18 de Mann, suas adaptações de Despair de Vladimir Nabokov, e Bolwieser, de
Oskar Maria Graf, o Fassbinder “maduro” de fato observava a si próprio como seguidor
de uma tradição narrativa clássica. Porém sua leitura desses textos, como veremos, é bem
diferente e quando, em 1980, ele realizou o projeto que pode ser considerado como o
coração de seu empreendimento “balzaquiano”, o monumental BERLIN
ALEXANDERPLATZ, Fassbinder não produziu nem um Bildungsroman nem uma
adaptação estilizada do romance da cidade modernista de Alfred Doblin. Pelo contrário,
ele tornou-se uma altamente elíptica e intrincada peça de narrativa que, especialmente em
seu epílogo, provou ser próxima, caso seja de algo, de um lúgubre neo-expressionismo
que da prosa futurista-experimental de Doblin.19

Porém, interpretadas dessa maneira, tais categorias estilísticas não chegam ao coração da
questão. Devemos lembrar que os universos de Fassbinder são de decidida e
descompromissada artificialidade: esse foi o seu ponto de partida, e da intensidade dessa
premissa solitária ele fez suas diferentes escolhas estilísticas tornarem-se plenas de
sentido. Uma atmosfera de estufa é muito mais o ingrediente básico do cinema de
Fassbinder como a figura solitária na paisagem o é para Herzog. Fassbinder não apenas
permanecia dentro do estúdio e odiava escolher locações, como igualmente recusava
visitar tais locações antes das filmagens, afirmando que precisava de um elemento de
surpresa para incendiar sua imaginação20. O que se observa são “mundos interiores” nos
quais os personagens se confrontam uns aos outros, porém também a concretização dos
círculos viciosos justamente transformados nos duplos vínculos a serem discutidos no
próximo capítulo. 21 Um espaço imediatamente permeável a novas configurações e
fechado a uma alternativa que Fassbinder jamais cogitou: a vida fora da sociedade e sem
a agônica companhia de outros.

Poder-se-ia chama-lo o cronista da história interior da República Federal, dimensão essa


que não significa se tratar de um filme doméstico como é “Deutschland Privat”. 22 Antes,
é dado um sentido do rótulo “político”, na medida em que a política da intersubjetividade,
que conecta a obra de Fassbinder a política de esquerda nas ruas dos anos 70 e a política-
identidade dos anos 80 e igualmente que se ajusta fora de ambas. Se os “autorenfilm”
provaram serem ambíguos quando sobreveio a questão da representação “cultural”,
Fassbinder pode ser considerado como tendo intervido na República Federal e sua
sociedade, mais do que a representado. Porém essa idéia do político também induz a
18
Em CUIDADO COM A PUTA SAGRADA, por exemplo, o mote é proveniente de Tonio Kroeger e diz:
“Algumas vezes, estou morto de cansaço, representando o que é humano sem participar efetivamente do
que é humano.”
19
“O que se procura em vão, portanto, é a evidência das técnicas futuristas de Doblin, de intangibilidade
aural e visual, do intenso, quase desordenado bombardeamento de se andar por uma rua em sua Berlim.”
Michael Hoffman. “A Futurist’s Babel”, Times Literary Supplement, 20.09.85, 1032.
20
Pflaum/Fassbinder, 1976, p.60.
21
Ver também o meu “A Cinema of Vicious Circles” in Rayns, 1980, p. 24-36, reimpresso e revisado em
Rainer Werner Fassbinder. (Nova York: Museum of Modern Art, 1997)
22
Um filme de compilação com este título foi realizado por Robert von Ackeren em 1980.
incompreensão já que o termo hoje conota que a maioria daqueles realizadores cuja
política (por conta de ser ultra-esquerdista e utópica) permaneceu sem conseqüências
práticas, ainda que sua arte tenha sofrido bastante explicitamente um viés ideológico,
tornando os filmes, na pior das hipóteses, propagandas datadas e, na melhor, estudos de
caso sociológicos. Essa foi a sina de diversos realizadores da geração de Fassbinder,
especialmente daqueles associados com o cinema Arbeiter, gênero para o qual Fassbinder
contribuiu com OITO HORAS NÃO FAZEM UM DIA.

Porém seus filmes são políticos em outro sentido, o que indica os limites da analogia com
Balzac. Os filmes de Fassbinder não apenas criam mundos autônomos, como eles
representam mundos midiáticos, quer dizer, habitualmente repletos de citações,
referências emprestadas de jornais, de fotografias da imprensa, da música popular e,
sobretudo, de outros filmes. Uma das características de sua obra, que endossa provas de
sua acuidade política e testemunha seu senso de história, é precisamente essa consciência
da representação sempre gerando um espaço de realidade midiática. Dois momentos
distintos se encontram implicados: primeiro, Fassbinder nunca pretendeu apresentar as
pessoas como elas “são”, mas antes enquanto representam a si próprias, seja a imagem
que possuem de si próprias ou a imagem que é dada a conhecer a partir dos outros.
Segundo, toda realidade social em Fassbinder já comporta os marcos da mídia (de
massa), de forma que em cada instancia o meio já possui sua própria força material e não
funciona simplesmente como um veículo transparente. Este é o caso com o rádio em
LOLA e LILI MARLENE, a imprensa em MAMÃE KUSTER, e o cinema em MARIA
BRAUN. Porém é também verdade da literatura (como meio material, não como pré-
texto para material ficcional) em FONTANE EFFI BRIEST. Sons e música gravada,
especialmente no modo como Peer Raben elaborou suas trilhas, utilizando música
popular e clássica, os sucesso de Rocco Granata para O MERCADOR DAS QUATRO
ESTAÇÕES, as baladas de The Platters para AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA
VON KANT, a voz de Richard Tauber em BERLIM ALEXANDERPLATZ ou
Beethoven em JAILBAIT, pode-se encontrar uma invulgar sensibilidade para a
materialidade histórica do popular. Um exemplo da forte atração com essa realidade pré-
existente criada pela mídia audiovisual exerce sobre o mundo ficcional, ao ponto de
determinar seu registro emocional, são os créditos da abertura de LOLA, aonde a foto do
chanceler Konrad Adenauer pode ser vista, curvando para observar um gravador,
enquanto na banda sonora e sincronizado com os stills ouvimos a voz de Freddy Quinn,
cantando sobre o desejo de retornar. Duas Alemanhas – a política e a popular – unem-se
aqui de uma forma improvável, já que somente unidas poderia a realidade dos anos 50 se
tornar representável/representativa.

A Alemanha Política: A Oportunidade Perdida e a Via Que Não Foi Seguida


Sedutora como possa ser, portanto, tanto a ideia de comédie humaine de Fassbinder e dele
como um artista representativo da Alemanha pode ser enganosa. Mesmo a análise política
que Fassbinder empreende da Alemanha Ocidental deve ser observada com cautela:
como uma dissecação das instituições democráticas alemãs, seus filmes não são
particularmente informativos nem radicais em qualquer sentido documental do termo
(com a possível exceção de OITO HORAS NÃO FAZEM UM DIA). 23Seu valor
enquanto documento está, na verdade, em outro local, e seria enriquecedor distinguir
vários níveis: o da análise política; o da interpretação social, por exemplo, assim como a
complexa relação de Fassbinder com a esquerda alemã-ocidental. No capítulo a respeito
de MARIA BRAUN, voltarei a indagar porque seus filmes lançam questões de
interpretação, mas aqui vou meramente sugerir que seus modos alegórico, inexpressivo-
irônico, excessivo, melodramático ou popular-vulgar são não somente questões de estilo
como de referência histórica.

A realidade política que Fassbinder poderia desenhar de sua experiência pessoal foi a de,
essencialmente, quatro governos: o Cristão-Democrata da Guerra Fria, seja com Konrad
Adenauer ou sobre a sombra dele até meados dos anos 1960, a “grande coalizão”, seguida
pela governo social-democrata de centro-esquerda de Willy Brandt e pela social-
democracia de centro-direita de Helmut Schmidt. O mandato de Adenauer, que deu a
Alemanha Ocidental sua identidade política, durou de setembro de 1949 a outubro de
1963. Foi seguido pelo gabinete de Ludwig Erhard – que Adenauer frequentemente
criticava como tido sido o engenheiro do “milagre econômico” – que em 1966 foi
entregue a “grande coalização” social-democrata com Kurt Georg Kiesinger como
chanceler e Willy Brandt como seu deputado e ministro das relações exteriores. Em
setembro de 1969 o primeiro governo de maioria social-democrata chegou ao poder sob a
égide de Willy Brandt, coincidindo com um dos períodos mais turbulentos da história do
pós-guerra alemão, marcado pela prisão de estudantes, terrorismo de ultra-esquerda, uma
recessão econômica e os esforços determinados de Brandt de détente em relação aos
vizinhos orientais, a chamada Ostpolitik. Porém já pela época em que Brandt foi forçado
a renunciar, em 1974, uma virada conservadora passou a se tornar visível nas áreas do
debate e da política cultural domésticas, culminando nas leis de emergência que
restringiam as liberdades individuais (a infame Berufsverbot para, dentre outros, os
ativistas políticos) e expandiu os poderes dos serviços de segurança. O governo de
Helmut Schmidt, que sucedeu Brandt, meramente sublinhou o fato que a Alemanha
Ocidental havia se tornado um consenso democrático cauteloso e excessivamente
conservador. A coalização de Schmidt Social-Democracia-Livre Democracia foi o último
governo conhecido por Fassbinder, por volta do momento em que os livre democratas se
uniram aos sociais-democratas e pela época que os democratas-cristãos voltaram ao
poder com Helmut Kohl em outubro de 1982, Fassbinder já se encontrava morto há 4
meses.

Foi sobretudo o período de meados dos anos 1950 a meados dos anos 1970 que reteve a
atenção de Fassbinder, que tratou essas duas décadas como uma espécie de telescópio,
cujas partes poderiam ser arranjadas de forma a olhar para o passado da história da
burguesia alemã, da família, do casal heterossexual como desenvolvido desde a fundação
do Reich bismarckiano nos anos 1870. Num certo sentido, os filmes ambientados antes
de 1945 são mais preocupados com a “arqueologia” do pós-Segunda Guerra do que com
23
Harry Baer, por sua vez, considerou a série politicamente servil e oportunista: “Não foi radical o
suficiente para mim, achei-a trivial. Foi quando me retirei, de todo modo até O DIREITO DO MAIS
FORTE (...). Muitas pessoas acharam OITO HORAS NÃO FAZEM UM DIA verdadeiramente grande,
porém os personagens das avós eram por demais calculados e insinuados para mim.” In: Juliane Lorenz
(org.), Das Ganz Normale Chaos (Berlim: Henschel, 1995, p. 98).
os períodos de fato em questão, apesar de que, como veremos, eles fomentem uma série
de questões propriamente “políticas”. A causa inicial da virada de Fassbinder para a
política na Alemanha do pós-guerra foi, como mencionado, o projeto ALEMANHA NO
OUTONO e os planos para uma sequencia, Os Casamentos de Nossos Pais. Como outros
diretores que abordaram os conflitos sociais do final dos anos 60 e idos de 70, Fassbinder
se voltou para o tópico “Alemanha” sem a necessária premência, para compreender o
presente: nesse sentido ele foi um animal político.24Foi a crise do estado autoritário, a
legitimação do poder institucional e o Direito, e o papel simbólico do pai como chefe de
família que pôs os termos do conflito que marcou a República Federal durante os anos
70, enquanto os valores cristão-democratas foram seguidos pelos sociais-democratas e,
dentro da social-democracia, a liderança passou de Willy Brandt para Helmut Schmidt 25.
Por volta de meados dos anos 70, o sentimento foi bastante disseminado entre os
intelectuais e mesmo entre alguns políticos que algo de mais profundo se encontrava
errado na Alemanha Ocidental: em sua relação com a história alemã, sua auto-definição
enquanto nação, e especialmente na afinidade entre pais e filhos algo havia sido perdido.
Na esquerda extra-parlamentar, a noção que ganhou solidez foi a de que sucessivos
governos haviam desperdiçado oportunidades para distanciar a Alemanha da Guerra Fria,
e que depois de 1945 poderia ter existido uma via pacífica de socialismo que as duas
alemanhas falharam de levar a cabo ou nunca se permitiram explorar. Historiadores
sociais e críticos literários reinvestigaram o “grau zero” da sociedade de 1945, as
políticas públicas dos aliados, os sindicatos e os serviços secretos em fazer todo o
possível para o surgimento de uma sociedade menos covarde e egoísta ou grosseiramente
oportunista. Dentre os realizadores alemães, Jean-Marie Straub já havia, nos anos 1960,
com NÃO RECONCILIADOS (baseado no romance de Heinrich Boll), posto em pauta
uma diferente reconstrução da nação daquela que havia crescentemente se identificado
com o milagre econômico. O movimento anti-autoritário na esteira dos protestos
estudantis de 1968, a abertura em relação ao Oeste Europeu, e eventos tais como os
descritos em ALEMANHA NO OUTONO deram a ideia de uma “Alemanha” uma nova
atualização, antecipando em certo sentido, porém igualmente não compreendendo, os
termos do debate que se segue a Queda do Muro de Berlim e a Unificação Alemã em
1989/90, que uma vez mais deslocou dramaticamente o próprio terreno de todos esses
diálogos a respeito de nação e suas possíveis histórias. Apesar de não parecer assim hoje,
durante a década mais ativa de Fassbinder, a Alemanha Ocidental era ainda conhecida
amplamente por ser uma das mais frágeis democracias modernas. 26

Por volta de meados dos anos 70, uma nova avaliação da história recente da Alemanha
em filmes de longa-metragem podia, portanto, esperar encontrar amplo interesse de
público, porque se tornou crescentemente claro para aqueles que haviam crescido nos
anos 50 e 60 que a sociedade que havia se erigido no interior da Alemanha Ocidental não
havia rompido com o seu passado, e talvez não tenha nem mesmo desejado fazê-lo:

24
Ingrid Caven. “Entretien” in Cahiers du Cinema, 469, jun. de 1993, pp. 59-61.
25
Para uma visão geral da situação política da Alemanha Ocidental e Oriental nos anos 1970, ver Hartwig
Bogeholz, Die Deutschen nach dem Krieg: Eine Chronik (Reinbek: Rowolth, 1995).
26
Ver, por exemplo, Dan Diner (org.) Ist der Nationalsozialismus Geschichte? (Frankfurt: Fischer, 1987) e
Reinhard Kuhnl (org.) Streit ums Geschichtsbild. (Colônia: Pahl-Rugentein, 1987)]
Acredito que especialmente na Alemanha muito do que está
acontecendo agora mesmo indica que a situação está se
desenvolvendo em uma direção regressiva. De modo mais
preciso, eu poderia afirmar que em 1945, no final da guerra, as
chances que haviam existido para a Alemanha se renovar não
foram realizadas. Pelo contrário, as velhas estruturas e valores,
nos quais o nosso estado se assenta, agora enquanto democracia,
tem permanecido basicamente os mesmos. 27

Ao invés de uma sociedade engajada em mudança, desenraizada, abalada em suas


fundações em 1945, Fassbinder, quando se deteve dos anos 70 de volta aos anos 50 e o
milagre econômico viu uma sociedade em “mobilidade ascendente” mas não “em
mudança”. Ávido por adquirir a blindagem no exterior de sucesso e respeitabilidade os
alemães pareciam moralmente estagnados, ultra-conservadores, auto-confiantes em suas
certezas e, sobretudo, cegos em suas assertivas sobre o passado nacional. O retrato que
surge em filmes como POR QUE DEU A LOUCA NO SR. R?, O MERCADOR DAS
QUATRO ESTRAÇÕES, O MEDO DEVORA A ALMA, JAILBAIT e MEDO DO
MEDO é o de uma sociedade que é tanto conformista, imatura, “spieberhaft” mesmo que,
igualmente, sobrecarregada de violência latente, seja dirigida ao interior ou exterior e,
portanto, na melhor das hipóteses, precária e, na pior, perigosamente instável. Os
interiores de Fassbinder em particular, conotam a Mief pequeno-burguesa que encoraja a
hipocrisia daqueles que desejam parecer respeitáveis, pretensão subvertida pelo
ressentimento e frustração de sua dificuldade de convencer mesmo a si próprios.

O resultado tangível do momento nacional de auto-reflexão e introspecção familiar na


esteira dos atos de terrorismo da Fração do Exército Vermelho foi a ideia para O
CASAMENTO DE MARIA BRAUN, de acordo com algumas fontes, sugerido para
Fassbinder por Peter Marthesheimer, que estava ansioso de dar ao departamento de
drama da WDR uma série de filmes densos com a história recente enquanto foco. O
sucesso de MARIA BRAUN levou Fassbinder e Marthesheimer a ideia da chamada
trilogia BRD, que também inclui LOLA (1981, subtitulado BRD 3) e O DESESPERO
DE VERONIKA VOSS (1981, subtitulado BRD 2).28 A importância desses filmes –
especialmente para a reputação internacional de Fassbinder – é tal que eles serão
discutidos em um capítulo em separado. Tanto o projeto como um todo, e especialmente
a política de representação implicada, requer um olhar das relações de Fassbinder com a
esquerda alemã durante a década de 1970, e as versões do corpo político que seus filmes
desenvolveram a partir dessas relações.

Fassbinder e a Esquerda: The Niklaushausen Journey

27
Fassbinder citado em Berlin Tip, dez. 1992, pp. 26]
Com o sucesso internacional de MARIA BRAUN, Fassbinder foi amplamente reconhecido como um dos
28

mais agudos comentadores sobre a República Federal em um momento crucial, de acordo com Peter
Marthesheimer, Ulrich Gregor e Karlheinz Böhm, entrevistados em Hans Gunther Pflaum NÃO QUERO
APENAS QUE TODOS VOCÊS ME AMEM, ZDF, junho de 1992.
Como uma avaliação política da Alemanha Ocidental, a oportunidade perdida e a via não
tomada dificilmente era original, já que refletia não somente os consensos da esquerda
liberal sobre a República Federal nos anos 1960 como também racionalizava o
desapontamento dos liberais, e a ira da esquerda, lamentando seus próprios fracassos em
transformar as reinvindicações de 1968 em estruturas políticas mais permanentes. Ainda
que simpatizasse com essas causas, a atitude de Fassbinder para com a esquerda, fosse
sob a forma da oposição extra-parlamentar, os movimentos de liberação internacional ou
a Fração do Exército Vermelho, permaneceram distantes. Ele conhecia Holger Meins e
Horst Sohnlein (ambos membros do FEV), mas de acordo com Ingrid Caven, considerava
estúpida a ação direta e a guinada para a ação violenta e auto-destrutiva.29

A militância pós-68, os partidos políticos de esquerda e o terrorismo político, no entanto,


foram temas de diversos filmes de Fassbinder, particularmente THE NIKLASHAUSEN
JOURNEY, MAMÃE KUSTER VAI PARA O CÉU e A TERCEIRA GERAÇÃO.
Mesmo que esses filmes sejam bastante diferenciados entre si para formarem um
“gênero” ou permitirem que se faça inferências sobre as intenções de voto do autor, um
elemento comum é a desconfiança do ativismo político. Porém são menos as dúvidas
sobre a efetividade de uma ação direta que os motivos contraditórios dos ativistas que
parecem interessar mais a Fassbinder: a mistura de político e pessoal, as lutas por poder
sexual ou ganho financeiro sob o pretexto de justiça social e de libertação das massas. Por
outro lado, os chamados comunistas hipócritas de salão de MAMÃE KUSTERS VAI
PARA O CÉU, ou os terroristas que subitamente fazem reféns em A TERCEIRA
GERAÇÃO, cínicos ego-maníacos, assumem uma visão que os filmes não endossam, já
que é precisamente a duplicidade de todas as motivações e os abismos entre as intenções
e suas consequências que compunham a política dos filmes de Fassbinder. Seria mais
acertado, ao menos do ponto de vista dramatúrgico, pensar que ele concordava com a
regra de ouro do filósofo iluminista alemão Lichtenberg: “não julgue os seres humanos
por suas opiniões, mas pelo que essas opiniões fazem deles.”

Olhando para as próprias práticas de Fassbinder como realizador, torna-se claro que ele
não compartilhava da visão de que o colapso do capitalismo se encontrava iminente; ele
focava na energia que a circulação de bens, serviços e dinheiro gerava e, nesse aspecto,
era um anarquista que acreditava na revolução permanente, da qual o capitalismo era uma
manifestação significativa. Politicamente, a utopia foi para ele um ponto de vista
conceitual pelo qual observava o aqui-e-agora, não como um objetivo a ser trabalhado.
Mais importante ainda para sua obra, ele se encontrava frequentemente às turras com a
esquerda pós-68 em relação às questões de sexo e gênero, não acreditando que a luta por
uma maior igualdade devia esperar até que a luta de classes tivesse sido ganha. Também
recusava por muitas expectativas nos partidos políticos, e nunca forjou a ilusão de que o
sistema político da RFA pudesse proporcionar uma alternativa mais equânime. Por outro
lado, encontrava-se perfeitamente consciente do dilema peculiar da esquerda alemã, na
qual a própria oposição legal havia sido pegue: para muitos nos anos 1960 e 1970, por
exemplo, criticar a política nuclear alemã ou protestar contra sua medida de lei-e-ordem
significava se tornar suspeito de simpatia com a RDA, ser um agente pago ou, ainda pior,

29
Entrevista em Cahiers du Cinema, jun. 1993, p.60.
apoiar o terrorismo: uma espécie de duplo vínculo, aplicado até mesmo em relação a
humanistas liberais renomados como o vencedor do Prêmio Nobel, Heinrich Böll.30

Mesmo que nunca tenha se intimidado de pronunciar suas opiniões a respeito dos que se
encontravam no poder, sobre a corrupção, sobre pretextos ou abusos de privilégios,
Fassbinder parecia não ter muito interesse em outra forma de intervenção política, algo
altamente popular e valorizado nos anos 1970: o jornalismo investigativo e a
documentação da própria elite política de extrema-direita simpatizante com o
radicalismo. O romancista Erich Kuby ganhou notoriedade e se firmou durante os anos
1950, castigando os aspectos obscuros da nova democracia e satirizando a corrida por
poder e riqueza numa série de livros polêmicos. Nos anos 60, Bernt Engelmann publicou
guias detalhados do passado político comprometido da classe política e da elite
econômica da Alemanha Ocidental, porém a estrela dos anos 70 foi o jornalista
investigativo Günther Wallraff. Disfarçando-se de forma ainda mais audaciosa, ele havia
reportado sobre as condições de trabalho dos mineiros e dos imigrantes turcos,
infiltrando-se em negócios e corporações multinacionais, jornais de direita e organizações
religiosas para expor não somente as práticas viciadas e a conduta criminal, mas para
demonstrar igualmente quão frágil era a superfície da democracia alemã, sendo o país
ainda uma sociedade profundamente autoritária, hostilmente direitista e abertamente
discriminatória. Fassbinder parecia ter pouca paciência para esses heróis da esquerda, não
muito interesse nos escândalos públicos revelados a cada semana em revistas como Der
Spiegel, adquirida pelo editor Rudolf Augstein que em meados dos anos 70 foi resgatar
do prejuízo a Filmverlag der Autoren, a companhia de produção e distribuição que
Fassbinder possuía uma grande participação acionária. Relativamente poucos jornalistas
investigativos aparecem em seus filmes e, quando o fazem, como em MAMÃE KÜSTER
e O DESESPERO DE VERONIKA VOSS, são inescrupulosos oportunistas de tabloides
buscando um furo ou covardes auto-indulgentes afogando suas consciências em álcool.

THE NIKLAUSHAUSEN JOURNEY é a análise mais explícita de Fassbinder em


relação à retórica e os sentimentos por trás do ativismo radical e da militância de ultra-
esquerda. Filmado em maio de 1970 para uma brecha tarde da noite do departamento de
dramaturgia da televisão WDR, e claramente inspirado pelo WEEKEND de Godard,
utilizando a mesma estrutura básica de uma jornada picaresca pelo campo que finda em
uma violento conflito e banho de sangue. Encenado como uma série de tableaux
reminiscentes também de O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO
GUERREIRO, de Gláuber Rocha, os personagens são dados a declamar textos
revolucionários, reportagens de jornais sobre ações armadas dos Panteras Negras e
passagens de O Capital, de Karl Marx. Peculiarmente germânico, por outro lado, é o fato
que a história possui suas raízes no folclore bávaro, centrado nos pontos de contato entre
o misticismo camponês e o teatro de agit-prop, o culto da Virgem Maria e o messianismo
revolucionário. Ele remete a uma série de outros filmes de diretores alemães nos anos
30
A caça às bruxas contra os “simpatizantes” atingiu o seu clímax em 11 de outubro de 1977 quando a
Imprensa Oficial do Partido Democrata-Cristão publicou uma lista de citações de proeminentes políticos,
intelectuais e escritores do Partido Social-Democrata, incluindo Heinrich Böll, sugerindo que eles se
encontravam do lado dos terroristas. Como resposta, Böll escreveu o argumento para o episódio
“Antígona” em ALEMANHA NO OUTONO.
1970, dos filmes anti-Heimat de Schlondorff (A SÚBITA RIQUEZA DO POBRE POVO
DE KOMBACH), Reinhard Hauff (Mathias Kneissl) e Volker Vogeler (JAIDER) às
fábulas anarco-místicas de Achternbusch (SERVUS BAVARIA) e CORAÇÃO DE
CRISTAL, de Werner Herzog. A história de um jovem pastor cujas visões da Virgem
Maria são utilizadas para diferentes fins – de uma condessa sexualmente predadora a um
sinistro agente provocador conhecido como monge negro (interpretado pelo próprio
Fassbinder) – antes de ser capturado e queimado na fogueira, dá origem a diferentes
níveis de ironia e humor sarcástico. Equilibrando seus cenários rococó da Contra-
Reforma com hippies flower-power, e mesclando um bispo homossexual viciado em
observar garotos nus e o forte odor corporal exalado pelos camponeses com um mandato
de posse judicial apresentado por policiais alemães ocidentais portando metralhadoras
americanas que provocam o massacre num acampamento, Fassbinder deixa sua faceta
mais buñuelesca aflorar no que é tanto uma colagem satírica sobre a venalidade e a
violência daqueles que se encontram no poder como um ainda mais tocante tributo ao
senso bávaro de franca inadequação. Fassbinder também toca na teatralidade de todas as
energias revolucionárias, apresentando a si próprio instruindo Hanna Schygulla em frente
a um espelho barroco antes do grande discurso dela para as massas e precedendo o filme
com um breve prólogo entre ele, Hanna Schygulla e um personagem com uma espingarda
semelhante a de Antônio das Mortes sobre o papel de um evento vanguardista de
mobilizar o povo e sobre a legitimação de se planejar encenar uma revolução como forma
de provocar as pessoas a participação.

Não é difícil encontrar por detrás desses cruéis jogos pirandellianos a ausência de
simpatia de Fassbinder por demagogos autonomeados ou sofismas jesuíticos quando se
transformam em retórica revolucionária sobre a luta de classes. E mesmo o cuidado com
que alguns fragmentos são unidos, principalmente um discurso de Marx sobre a mais-
valia numa pedreira assustadoramente branca, uma crucifixação encenada tendo ao fundo
uma montanha de carcaças de automóveis e o feroz discurso proveniente da Penthesilea
de Kleist, emitido por três mulheres com pinturas de guerra num aterro sanitário
fumegante, emprestam ao filme não somente uma gravidade sombria, sublinhada pelos
hinos religiosos cantados à capela ou acompanhados pelo bater dos tambores. Eles
indicam que Fassbinder está buscando formas de deixar seus personagens reterem suas
dignidades enquanto seres humanos, ao mesmo tempo distanciando-se ele próprio da
estupidez de seus atos e intenções, sejam oficiais ou de oposição, egomaníacas ou
altruísticas.

A Crítica Impossível: Nem de Dentro Nem de Fora


A visão da política do pós-guerra na Alemanha por Fassbinder pode reforçar a noção do
“retorno do reprimido” ou das continuidades fatais, porém é também fundamentalmente
diferente tanto dos arroubos polêmicos ou ativistas em relação ao Estado provenientes da
esquerda e o afastamento superior da política estudantil ou dos argumentos de ainda
maior repressão das diferenças defendidos pela direita. O fato de que o Estado na
Alemanha Ocidental foi internacionalmente o sucessor do Reich Alemão lhe deu o direito
legal de falar em nome das duas Alemanhas, porém deixando seus juízes, cientistas,
tecnocratas e homens de negócios (i.e, a elite educacional e a elite de especialistas)
virtualmente intocados, perdendo igualmente a lealdade e respeito da geração mais
jovem, que apontou para o silêncio sobre a questão do fascismo nas lições de história das
escolas, e o passado maculado de alguns de seus mais altos funcionários (o secretário
para assuntos políticos de Adenauer, Globke, o presidente Kiesinger ou a então chamada
lei da “volta dos porcos” nos serviços civis, o que significava que a cada nova nomeação,
um ex-nazista politicamente compromissado e burocraticamente experiente podia ser
reintegrado. Foi também senso comum que os americanos haviam preferido os nazistas
de ontem aos dissidentes sociais-democratas e emigrados políticos, por conta dos
primeiros serem confiáveis como bons anti-comunistas.

Os escândalos políticos, também, raramente serviram a Fassbinder como material para


seus filmes. Uma razão que ele desacreditava em tais críticas do sistema foi que elas
invariavelmente se colocavam “de fora”, ancoradas nem numa alternativa política viável
nem tampouco em um genuíno interesse por aqueles em favor dos quais reivindicavam
defender. MAMÃE KUSTER FOI PARA O CÉU é, a esse respeito, a mais clara
condenação de Fassbinder dos partidos políticos, do sindicalismo e dos grupos
“maoístas” extra-parlamentares. Ao focar no sentido da moral equivocada, a dor da
vergonha experimentada por Mãe Kuster, a busca de preservar seu próprio amor e
lealdade ao marido e ao pai, rotulados como “criminoso” e “insano” retrospectivamente,
o filme indica como, na política contemporânea, ninguém se encontrava habilitado a falar
em nome de ou “representar” as verdadeiras questões que mobilizavam as pessoas a
tomarem suas ações, que “politizavam” a família ou o local de trabalho.31

De uma maneira geral, o que preocupava Fassbinder era a (im)possibilidade de uma


posição “crítica” completa, o que significava ter um ponto de vista político completo. A
solução inicial de Fassbinder em seus filmes foi a clássica estratégia do drama: deixar a
plateia ver inclusive o ponto de vista do vilão. Falando do passado fascista de uma figura
em JAILBAIT, Fassbinder declarou certa vez:

Penso que sou um dos poucos diretores alemães que possui uma
relação positiva com seus personagens (...) em alguns casos,
como quando o pai de uma garota em JAILBAT fala sobre a
guerra, sou indulgente ao ponto quase da irresponsabilidade.32

Em outras palavras, enquanto intelectualmente Fassbinder parecia apoiar a acusação da


esquerda de covardia moral, ele não utiliza essa acusação para caricaturar as pessoas que
retrata. Nesse aspecto crucial seus filmes são de fato diferentes daqueles feitos pelos
diretores da geração de Oberhausen – filmes como o SCHONZEIT FÜR FÜCHSE de
Peter Schamoni e DESPEDIDA DE ONTEM de Alexander Kluge. Aonde o “jovem
cinema alemão” dos anos 60 utilizou o naturalismo como uma forma de sátira, as
estilizações de Fassbinder, suas estratégias cuidadosamente calculadas de identificação e
distanciamento, discutidas de forma mais detida no próximo capítulo, asseguraram uma
problemática mistura de simpatia e antipatia, para além de posições claramente definidas
de bem e de mal. Fassbinder sabia que tal “indulgência ao ponto da irresponsabilidade”
tinha um preço: a relação de aparente não julgamento do realizador com relação a

31
Para uma sinopse de MAMÃE KUSTERS, ver Apêndice 1: Filmografia Comentada.
32
Entrevista com Wilfred Wiegand em Jansen/Schütte, 1992, p.86
personagens destrutivos ou vis, de fato, deu origem a escândalos e controvérsias. A
simpatia por monstros domésticos tais como Margit Carstensen em AS LÁGRIMAS
AMARGAS DE PETRA VON KANT, Karlheinz Böhm em MARTHA, o marido de Effi,
Von Instetten em FONTANE EFFI BRIEST ou Peter Chatel em O DIREITO DO MAIS
FORTE foi interpretado como uma evidência que Fassbinder era suspeito de apreciar a
descrição da crueldade emocional.33

No caso de JAILBAIT, Franz Xaver Kroetz, o autor da peça na qual o filme é baseado,
achou a leitura de Fassbinder tão “irresponsável” que moveu uma ação judicial.
Contrapondo-se ao que chamou uma paródia “pornográfica” de sua peça, Kroetz
conseguiu impor um mandato que resultou em cortes e o lançamento do filme para um
público bastante limitado.34Fassbinder retrucou em uma carta aberta:

Caro Franz Xaver Kroetz, é uma pena que você não possa ser
completamente honesto. Por que se sentiu embaraçado em admitir
que você recusou minha oferta de trabalhar com você em um
roteiro que seria aceitável para ambos? (...) Você ficou
constrangido de deixar sua peça à deriva...Lembre-se daqueles
para quem você pretende escrever. Pense nas pessoas comuns,
pergunte a elas após um dia inteiro de trabalho se se divertem
com nosso filmes. Suas respostas talvez lhe causem surpresa (...).
Pondo a questão com certo pathos: é a primeira vez que você foi
compreendido (...). Tudo que está no filme se encontra também na
peça. Talvez isso agora o embarace, mas sem motivos, porque sua
peça não é má, honestamente falando. Seu, Rainer Werner
Fassbinder. 35

De forma perturbadora, existe muito amor em seus filmes, mesmo para aqueles que
praticam o mal, como se somente personagens moralmente ambíguos pudessem levar o
espectador a situação também de “dentro”, obrigando-o a observar e tentar compreender
como eles são. Como consequência, existe uma liberdade para Fassbinder retratar o mal,
no sentido de que podemos observar os protagonistas sem a necessidade do realizador de
polemizar ou dos espectadores ou do público se sentir superior. Esse aspecto foi o que
causou posições mais fortemente ofendidas, e não somente de Kroetz. Especialmente
quando Fassbinder toca na questão de grupos marginalizados ou oprimidos, encontrou-se
acusado de misoginia, de ser anti-homossexual e anti-semita. 36 Porém, como ele apontou:

33
No comunicado do lançamento de MARTHA, Fassbinder fez observações que foram efetuadas em uma
discussão com Margit Carstensen, “Ein Unterdruckungsgesprach: Männer Können Nicht so Perfekt
Unterdrucken, wie Frauen es Gern Hätten” (em inglês em Rentschler, 1998: pp.168-71). Ver igualmente a
discussão em Frauen und Film 35, 1987, pp. 92-6.
34
“Eu chamaria de obsceno o modo como o filme denuncia seus personagens. (...) O filme não vai além da
pornografia com um toque elegante de crítica social.” Film Befrein den Kopf, p. 135.
35
Originalmente em Die Abendzeitung, 12 de março de 1973. Reimpresso em Film Befrein den Kopf, pp.
123-4. Michael Töteberg assinala uma inversão curiosa. Em 1981 Fassbinder citou WILDWECHSEL como
um dos filmes mais “odiosos” do Novo Cinema Alemão, enquanto Kroetz, em 1984, admitiu que o filme
possuía qualidades definitivas.
36
Ver capítulo 7. Franfurt, German and Jews.
Tenho sempre mantido que alguém pode aprender mais sobre a
maioria a partir do comportamento das minorias. Posso entender
mais sobre os opressores, quando apresento as ações dos
oprimidos, ou melhor, quando os oprimidos tentam sobreviver
diante da opressão. Inicialmente, fiz filmes onde os opressores
eram vis e as vítimas infortunadas. Porém, no final das contas,
não é assim que ocorre. 37

O que torna a descrição de opressores e oprimidos em seus filmes, em última instância,


tão difícil para algumas plateias é que Fassbinder se recusa a assumir a existência de uma
solidariedade natural entre as vítimas. Pelo contrário, encontra-se uma visão quase
buñuelesca do direito dos párias e oprimidos serem mesquinhos, desumanos e vis como
qualquer pessoa. Seu retrato de vítimas da sociedade apresenta o que as faz como são,
dando origem a um retrato da crueldade entre os despossuídos que reflete mas não pode
justificar a crueldade da classe dominante. A decisão de não “julgar” seus personagens de
um ponto de vista externo, portanto, o obriga a não ser partidário em relação aos grupos
marginalizados tendo como base a sua marginalidade: seus homossexuais nem sempre
são simpáticos, seus judeus podem ser exploradores, seus comunistas podem ser
carreiristas. É aqui que os últimos filmes de Fassbinder retornam ao seu primeiro sucesso,
O MACHÃO, onde Jorgos, o trabalhador estrangeiro proveniente da Grécia, acaba se
tornando tão racista e chauvinista quanto os outros, quando sente que sua própria posição
delicada é ameaçada por outro trabalhador estrangeiro – dessa vez proveniente da
Turquia.

No entanto, se ele foi “indulgente ao ponto da irresponsabilidade” em relação aos seus


personagens como indivíduos, este não foi o caso quando abordou partidos políticos,
grupos e organizações de interesses específicos. Ainda que, graças a reputação marginal
de vanguarda do Anti-Theater, Fassbinder estivesse próximo dos protestos estudantis de
196838, já por volta de 1970, havia tido a presença de espírito, tanto em seus filmes
quanto suas peças, de compreender a ação política, mesmo em sua esfera pessoal, como
construindo uma lógica própria de intensificação, inexoravelmente alimentando-se a si
própria. Liberdade em Bremen (1971), peça escrita para Margit Carstensen, baseado em
manchetes de jornais sobre uma mulher que havia envenenado em 1830 diversos homens,
incluindo seu marido, é instrutiva a esse respeito. Ela pode ser lida como um libelo
feminista contra a ordem patriarcal que como uma hidra, sempre faz brotar novas
cabeças. Porém, enquanto drama, também coloca em exposição a necessidade da heroína
de continuar com os assassinatos, não mais por indignação e opressão, mas apenas para
assegurar o controle sob o que havia conquistado, iniciado por sua ação macabra, até ser
finalmente capturada.

A vitimização e o isolamento são apresentados ocorrendo não apenas no ambiente urbano


especificamente alemão, mas em ambientes familiares a um público particular: o local de
37
“O fato é: se você faz filmes sobre judeus, mulheres, homossexuais, você deve mostrar eles da forma
como são, como a sociedade os fez, assim como suas falhas”. Limmer, 1981: pp.82-3. Entrevista com
Norbert Sparrow, Cineaste VIII/2, Outono de 1977, pp. 20-22.
38
De acordo com Robert Katz, Andreas Baader, o líder do grupo Baader-Meinhof, foi uma presença
frequente nas apresentações do Anti-Theater em Munique.
trabalho, a mesa de jantar da família, o bloco de apartamento dos vizinhos pequeno-
burgueses e seus senhorios, o supermercado e a lavanderia, o café da esquina e o bar
local. O que faz com que seus primeiros filmes se diferenciem dos melodramas não é a
preocupação central, que permanece a mesma ao longo de sua carreira. Antes, seria o fato
que nos círculos viciosos que seus filmes implacavelmente traçam, os filmes de
Fassbinder possuem uma dupla perspectiva: uma de fora e outra de dentro. Os filmes até
(e incluindo) CUIDADO COM A PUTA SAGRADA possuem o fato em comum de
serem sobre relacionamentos entre casais, mas observados a partir do contexto de outros
casais ou do grupo social ao qual pertencem: a perspectiva “de fora” é a visão do grupo
sobre o casal, e portanto também reflete as aspirações das ideologias coletivistas e “anti-
família” que Fassbinder professava de modo compartilhado com o resto de sua geração
durante os anos 60 e idos de 70.

A partir de O MERCADOR DAS QUATRO ESTAÇÕES em diante, entretanto, a ênfase


muda e o casal é visto mais de dentro e do ponto de vista do mais fraco, se não do
parceiro derrotado. Ainda que a perspectiva de fora tenha mantido um modo indireto de
direcionamento, frequentemente percebido como agressivo e mesmo “sarcástico”39 ele
também convida o público a reconhecer a si próprio na situação do casal e a julgá-lo,
porém julgá-lo da posição que pode ser tanto de menosprezo como cínica e
desapaixonada ou elogiada como politicamente correta. Por exemplo, quando (em O
MERCADOR DAS QUATRO ESTAÇÕES) Irm Hermann, esperando em vão por Hans
chegar em casa, e tendo que manter o prato quente e sua filha com fome, finalmente
irrompe em um gesto de violência contra a criança, simpatizamos com a raiva interior de
Irm, com a criança bem comportada brincando com suas tranças e raspando a colher, mas
também com Hans, que se ausente do jantar para permanecer bebendo aguardente com os
amigos num bar. Poderia equivocadamente se chamar tal cena de “distanciada”. Pelo
contrário, nem o olhar para a dinâmica do casal do ponto de vista do grupo (nos filmes
iniciais) nem o beco sem saída que não possui vencedores dos melodramas valorizam
qualquer tipo de perspectiva adicional. Ao contrário, meramente sublinha que a situação
chave interpessoal ao redor da qual Fassbinder opera é tanto auto-centrada quanto auto-
destrutiva. Essa experiência o próprio Fassbinder denominou como exploração
emocional.40Todos os filmes de Fassbinder, quando “vistos de fora” são engenhosamente
dramatizados e ocasionalmente possuem considerações didáticas sobre o que significa ter
poder sobre a capacidade de alguém para o amor e, portanto, de viver dentro de mútua
dependência estruturada em torno da generosidade e da culpa.

Politicamente correta ou Emocionalmente Honesta: A Visão de Dentro


Provando que a situação pessoal de seus heróis possui uma significação social mais
ampla, a visão de Fassbinder se tornou “política” na (então comumente disseminada)
definição do “pessoal como político” compreendida, entretanto, como uma forma de
permitir seus personagens breves insights sobre as possíveis rotas de fuga dos círculos
viciosos que os une em desigualdade ou exploração emocional e, em vez disso, induzir a
39
Vincent Canby, “Fassbinder Sneers at German Affluence”, New York Times, 18/11/1977
40
Meus filmes são sobre a exploração dos sentimentos, independentemente de quem esteja explorando.
Nunca termina, e esse é meu tema de sempre.” Die Anarchie der Fantasie, p. 179. No Brasil, A Anarquia
da Fantasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
plateia a imaginar um plano de realidade ou de ação onde tais contradições possam ser
resolvidas, o que quer dizer, encarar de modo mais fundamental e, assim, mais “político”
as mudanças na ordem social. O otimismo do diretor (ou o que chama seu “anarquismo
romântico”41 se centrou na notável inventividade de suas histórias que demonstravam tal
processo em ação. Representações gráficas de situações envolvendo diferentes universos
sociais proporcionaram a Fassbinder a reputação de cronista dos costumes, das
vicissitudes e das desigualdades sociais do pós-guerra; porém, a mesma obstinação de
aderir aos temas escolhidos é também a responsável pela maior parcela de julgamentos
negativos de Fassbinder como um polemista politicamente ingênuo com um limite
estreito de insights sociais.42

Para se ter uma ideia de quão persistentemente ele cultivava sua escolha, poder-se-ia
somente relembrar os termos do conflito em sua primeira meia-dúzia de filmes: O
MACHÃO desvela um círculo vicioso na esfera das relações de trabalho em Gastarbeiter,
aonde esses excluídos do resto da sociedade encontram outros ainda mais despossuídos
que eles, a quem exploram. Uma semelhante espiral descendente orienta as dependências
sexuais de toda e qualquer forma (heterossexual e homossexual em O AMOR É MAIS
FRIO DO QUE A MORTE, DEUSES DA PESTE, O SOLDADO AMERICANO) aonde
a incompatibilidade entre amor e dinheiro é tornada explícita pela frequência com que os
filmes apresentam prostituição, isto é, amor por dinheiro. Inevitavelmente, enquanto a
busca por dinheiro pode parecer com uma forma unilateral de dependência, a busca por
amor e a entrega afetiva torna todos os personagens igualmente vulneráveis. Este drama
mais refinado de desejo e perda é o tema de filmes como AS LÁGRIMAS AMARGAS
DE PETRA VON KANT e EU SÓ QUERO QUE VOCÊS ME AMEM. Por outro lado,
esse tipo de exploração que são motivados por conflitos de raça e classe (como em
WHITE ou OITO HORAS NÃO FAZEM UM DIA) podem, no ambiente doméstico da
família e do casal também acabar se tornando o ponto de equilíbrio, e mesmo o pivô da
estabilidade mútua na relação (como brevemente para Emmi e Ali em O MEDO
DEVORA A ALMA, de quem se pode afirmar que encontram a felicidade mútua ao
“usarem” um ao outro). E é quando examina a mais sutilmente, e igualmente devastadora,
dinâmica da exploração dentro do casal que o ponto de vista “de fora” eventualmente dá
lugar a um ponto de vista “de dentro”.

A perspectiva de fora, como já posto, é a do grupo, ele próprio implicitamente


identificado com a análise “política” herdada por Fassbinder dos movimentos anti-
autoritários e também do estudo de freudo-marxistas tais como Herbert Marcuse, Wihelm
Reich ou Erich Fromm, popularizados nos anos 60. A base econômica e ideológica da
exploração emocional nos filmes de Fassbinder nunca é mascarada, nem tampouco os
conflitos de classe, voltando sua atenção para o lado demagógico da “afluência
consumista” propagada na Alemanha Ocidental durante os anos 1950 e 1960. Quão frágil
esse consenso era é o que Fassbinder demonstra em cenas concisas de lógica brechtiana,
tais como as que unem Elizabeth a Jorgos e vice-versa em O MACHÃO, ou cenas
41
Limmer, 1981, p. 78.
42
Dentre os obituários mais críticos se encontram os de Mechthild Küpper, “Fassbinder Superstar is Tot”,
Die Tageszeitung, 11/06/1982; Ruprecht Skasa-Weiss, “Ende Eines Unaufhaltsamen”, Stuttgarter Zeitung,
11/06/1982; Derek Malcolm, “Radical Without Chic”, The Guardian, 11/06/82; “A Disturbing Talent”,
Vincent Canby, New York Times, 11/06/82.
semelhantes em filmes posteriores, tais como JAILBAIT ou O DIREITO DO MAIS
FORTE, aonde as barreiras de classe se fecham imediatamente, uma vez que a sorte ou o
dinheiro tenham desaparecido. Mas na medida em que Fassbinder privilegiou como seu
estilo de vida ao mesmo tempo a classe e o dinheiro, descobrindo os mesmos problemas
pessoais em todos os níveis, deu prioridade a descrição dos dilemas emocionais. As
psico-dinâmicas dos personagens tendem a excluírem questões da economia política, e
em alguns casos a produzir uma inversão de papéis, aonde a chantagem emocional é
observada trespassando todas as classes (por exemplo, Hanna Schygulla como a
proletária Karin em AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT compensa
alegremente sua dependência econômica de Petra ostentando sua potência heterossexual e
promiscuidade), ainda que pelo próprio ato, afirmando a importância da classe como um
marcador de diferenças.

Quando um filme põe classe e sexo em linhas paralelas, como faz O DIREITO DO MAIS
FORTE, a história de um herói proletário que é tanto sexualmente explorado e
economicamente arruinado por seu amante burguês, ainda que sua falta de educação, seus
modos rústicos e ingênua adulação dos valores da classe média tornem-no um alvo fácil
para as piadas dos esnobes que ele tanto admira, a narrativa pode parecer facilmente
didática, por aparentar a ausência da dimensão de justiça poética ou reviravolta irônica
que dá as etapas do enredo de Fassbinder uma forma satisfatoriamente austera.
Entretanto, O DIREITO DO MAIS FORTE é o tipo do filme aonde o ponto de vista é
mais complexo e interessante que o padrão formal, daí o porque do filme marcar um certo
beco sem saída: a perspectiva (politicamente correta) observa somente um esquematismo
abstrato ou um devastador pessimismo absoluto, percebido como “reacionário” à sua
época numa situação – 1974 – que os homossexuais lutavam por uma representação mais
justa e positiva na mídia.43 É também digno de lembrar quão únicos foram os filmes
inicias de Fassbinder: preocupados em explorar as reinvindicações conflitantes de
identidade sexual e de classe, eles descrevem situações humanas cotidianas com uma
auto-evidência causal jamais vista antes no cinema (e televisão) do pós-guerra alemão.
Antes de tudo, a subjetividade e o eu social são representados como esferas paralelas,
aonde a opressão sexual e a família patriarcal refletem as pressões sociais mais amplas do
capitalismo e da ideologia burguesa. É uma congruência que preocupava a esquerda
alemã e o movimento anti-autoritário mais do que praticamente qualquer outro tópico.
44
Porém, mais do que tentar uma forma de libertá-los, apresentando seus protagonistas
chegando a uma tomada de consciência, rompendo com a família para se tornarem
militantes, que era a demanda de uma certa “prática de filme político” 45 46, Fassbinder

43
Dentre os ensaios escritos por gays, poder-se-ia mencionar Richard Dyer, “Reading Fassbinder Sexual
Politics” (in Rayns, 1980: pp. 54-64) e Andrew Britton, “Foxed”, Jump Cut 16, novembro de 1977. Se se
aplicar o “ponto de vista interior” a O DIREITO DO MAIS FORTE e outros filmes da fase intermediária
de Fassbinder, uma perspectiva algo diferente emerge. [nota de rodapé: “Quanto mais fatalista um filme é,
quanto mais cheio de esperança...” Entrevista com Norbert Sparrow, Cineaste VIII/2 (Outuno 1977), p.20.
44
Dentre os muitos exemplos dos anos 70, ver Michael Schneider, Marxismus and Pyschoanalyse
(Frankfurt: Surkhamp, 1972) e Bruno Reimann, Psychoanalyse und Gesselschaftheorie
(Darmstadt/Neuwied: Luchterhandm, 1973.
45
O debate sobre os filmes de trabalhadores na Alemanha é documentado em R. Collins, V. Porter. WDR
and the Arbeit Film: Fassbinder and Others. Londres: BFI, 1976] e da teoria de cinema “realista-
progressista.
aparenta deixar seus personagens em pleno desespero.47 Entretanto, os críticos que
argumentam que Fassbinder abandona seus heróis ao próprio desespero e o acusam de
derrotismo talvez estejam adotando uma leitura somente “de fora”, da qual a miséria
implacável dos personagens de fato aparenta uma postura vitimizada, fazendo com que
cada nova tortura ou humilhação pareça ser gratuitamente sádica.

Contra tal veredito, é importante definir a possibilidade que os filmes aderem em sua
estrutura formal e narrativa ao redor de nós cada vez mais apertados da exploração
mútua, porque Fassbinder deseja apontar para um bloqueio, não exatamente da psique de
seus personagens, mas dos anseios programáticos ativistas e críticos de suas plateias. Isso
é particularmente evidentemente em filmes após 1971, tais como O MERCADOR DAS
QUATRO ESTAÇÕES, O MEDO DEVORA A ALMA, O DIREITO DO MAIS
FORTE, MAMÃE KUSTERS VAI PARA O CÉU, MEDO DO MEDO e EU QUERO
APENAS QUE VOCÊS ME AMEM. Eles também, possuem em suas estruturas
dramáticos o “círculo vicioso” em que a ajuda oferecida invariavelmente agrava o
processo. Se existe sadismo, ele é, entretanto, dirigido não aos protagonistas, mas ao
público, talvez tão facilmente convencido de sua superioridade política iluminada quando
confrontado com tipos simplórios como Franz e Ali, Hans e Fox, Emma e Margot. Por
copiosamente insistir em situações aonde os personagens meramente se afundam a si
próprios cada vez mais profundamente em seus dilemas, Fassbinder chama a atenção a
subjetividade, onde a compulsão a repetir, como outras manifestações da pulsão de
morte, possui seu lugar próprio na econômica psíquica deles – e, por extensão, de seus
espectadores. Uma proposição essencialmente melodramática nos permite observar até
onde Fassbinder vai para se manter no “nível” de seus personagens. Ainda que esse
liberalismo de “estar no nível” também implique se encontrar no nível do público (“o
que almejo é um realismo aberto...que não ponha as pessoas na defensiva” 48) e
proporcione uma espécie de horizonte moral que abandone a certeza da ira em favor de
atrair os espectadores para uma visão mais generosa das falhas humanas, mas também
abrindo-se para um inter-relação mais complexa de reconhecimento e identificação:

O espectador deve ser capaz de ativar coisas e sentimentos em si


próprio através dos personagens, porém a estrutura da
apresentação deve proporcionar a ele a possibilidade de
reflexão...quer dizer, a mise en scene deve fazer com que tal
distância e reflexão se torne possível. 49
Tal pode ser a “perspectiva de dentro”, uma indicação que Fassbinder recusa o discurso
de solidariedade de grupo e o programa utópico da geração anti-autoritária: “Sempre
posso imaginar um contra-modelo, sei que posso estar errado...[porque] um contra-

46
Por exemplo, o debate entre Colin McArthur e Colin McCabe sobre o texto realista-progressita in:
Christopher Williams (org.) Realism and the Cinema. Londres: BFI, 1980.
47
A frase falada por Fassbinder (como personagem) em CUIDADO COM A PUTA SAGRADA: “o único
sentimento que eu posso aceitar é o desespero” é comentada no terceiro capítulo, Murder, Merger, Suicide:
The Politics of Despair.
48
Entrevista com Wilfried Wiegand, Jansen/Schütte, 1992, p. 89.
49
Jansen/Schütte, 1992, p. 92.
modelo sempre contém dentro de si aquilo que se opõe a ele.” 50 Uma interpretação, por
exemplo, de EU QUERO QUE VOCÊS ME AMEM que veja o pai meramente como
representante do patriarcado, e portanto do capitalismo em sua esfera doméstica, faria do
herói, Peter, um rebelde na imagem do opressor – posição que a assistente social no filme
tende a tomar. Simpática quanto ela possa ser, o filme questiona sua (narrativa de)
autoridade mostrando como sua recomendação, por mais que não agrave o estado
psíquico e moral de Peter, no entanto, não o alcança naquilo que o perturba. Como no
caso de PSICOSE de Hitchcock, as explicações médicas, ideológicas ou institucionais do
comportamento perturbado em Fassbinder frequentemente funcionam como um sinal de
sua própria insuficiência. Essa convicção parece definir o ponto estratégico ao qual se
torna mais importante para Fassbinder ter acesso a um meio de comunicação de massa
que ser “politicamente correto”: ao menos nessa atitude aparentemente não engajada foi,
poder-se-ia ainda argumentar, “representativo” para as plateias com as quais desejava se
comunicar, mesmo se contrapondo ao “pensamento vitimizado” e, portanto, desafiando
também um aspecto central da política identitária contemporânea. 51

A Crítica de Dentro e de Fora: Soll und Haben


Ao longo de toda a obra de Fassbinder, pode-se observar esse problema da postura do
“crítico” e do “representativo” recebendo diferentes respostas e formulações. Portanto,
nos filmes iniciais, os personagens representam a si próprios com suas próprias palavras,
que vem a ser um discurso mimetizado, frequentemente mimetizado daqueles que são os
mais responsáveis por torna-los marginais. Na sua luta para manterem a ilusão de
pertencerem ao “centro”, seus ódios pessoais ou pequenos vícios são revelados como
uma deformação que o mal mais amplo os impõe. Nos seus últimos filmes, o comércio do
eu e do outro, a dinâmica da projeção, transferência e identificação gera incompreensões
de uma ordem distinta, afetando também a forma que a dialética do senhor-escravo
constantemente redimensiona os antagonismos e as relações de poder entre os
personagens. Que a “complacência ao ponto da irresponsabilidade” de Fassbinder assim
como suas histórias de transferências tenham se tornado centrais para sua política é o
tema de diversos capítulos, pois afeta a representação de todas as “minorias” citadas
anteriormente: mulheres (trilogia RFA), judeus (NUM ANO DE TREZE LUAS),
homossexuais (O DIREITO DO MAIS FORTE e QUERELLE). A ocasião que
confirmou tal consideração – como resposta a um de seus projetos para a televisão que
havia sido cancelado – também proporcionou a Fassbinder uma defesa particularmente
explícita de seu conceito de “crítica de dentro”. A controvérsia surgiu porque ele
escolheu como “texto de fundação”, para rastrear a origem e a auto-definição da
burguesia alemã, um romance notavelmente anti-semita do século XIX: o best-seller Soll
und Haben, escrito em 1855 por Gustav Freytag foi destinado a iniciar a arqueologia de
Fassbinder da “representação” da Alemanha como um processo de auto-representação
“mediado” e necessariamente mal compreendido. O mote de Freytag é inteligente: “O
romance deve procurar o povo alemão onde ele é mais ele próprio – em seus esforços e
no seu local de trabalho.”52 A descrição de Freytag da ascensão da burguesia mercantil
50
Limmer, 1981, p. 78.
51
Slavoj Zizek, “Das Opfer ahl Liebling”, Lettre Internationale 26, 1994, pp.22-4.

Gustav Freytag, Soll und Haben, Leipzig, 1855. Foi adaptado para o cinema em 1924 (dirigida por Carl
52

Wihelm).
contra a aristocracia feudal proprietária de terras baseia-se explícita e implicitamente em
um terceiro termo, a saber, os judeus alemães, que proporcionam a frustração moral e
psicológica para sua definição do que é ser “alemão” na véspera da fundação do estado-
nação (bismarckiano). A identificação de transferência sintomática da parte de seu
autor/narrador com seu herói (ariano) e anti-herói (judeu) teria permitido a Fassbinder
documentar a ideologia do nacionalismo alemão em formação. Concebido como uma
série de televisão “familiar” para a temporada de 1977, a adaptação foi cancelada pelo
diretor-geral da WDR, intimidado por uma campanha da imprensa contra Fassbinder
tendo como motivo o anti-semitismo do romance. Sem se dirigir as insinuações de ordem
pessoal contra si, Fassbinder defendeu o valor do romance para o público de hoje:

Especialmente as mais odiosas passagens do romance Soll und


Haben – aqueles que demonstram, por assim dizer, a falsa
consciência política do autor (...) – força-nos talvez a encarar uma
das mais importantes questões que nos une hoje a nossa história,
ao século dezenove e aos nossos antepassados sociais (...). Soll
und Haben como a burguesia [alemã] em meados do século
passado [XIX], depois de uma revolução fracassada, desenvolveu
sua auto-compreensão e estabeleceu seu sistema de valores,
sistema que não progrediu muito além das noções de trabalho
duro, honestidade, integridade e que definiu o então chamado
“caráter alemão”, cercando-o em todas as direções, internamente
contra o proletariado e a aristocracia e externamente contra tudo
que fosse estrangeiro, e sobretudo contra uma visão de mundo
denunciada como “judia”, mas na verdade notável por sua
objetividade, humanismo e tolerância. E esse sistema de valores
burguês poderia, sem muito esforço, sentir-se em casa na
ideologia nacional-socialista, porém isso também poderia se
estender para a nossa sociedade hoje – daí a necessidade de se
confrontar o romance uma vez mais.53

O que aparentou atrair Fassbinder para o romance foi também outra característica, que é a
afirmar os traços paranoicos que ele via na construção de Freytag da identidade burguesa
alemã. Essa foi a luta entre Freytag, o ideólogo anti-semita e Freytag o jornalista: o
último interessado em demasiado numa boa história – “excitante, sentimental, dramática,
misteriosa” – não deveria prejudicar o tendencioso e racista editorialista que lhe precedia.
Tais tensões, de acordo com Fassbinder, demonstram o valor dessa ficção popular,
enquanto proporcionam ao espectador essas contradições para pensar: “É nosso trabalho,
portanto, voltar as tramas de uma narrativa sentimental e sensacionalista para os seus pés,
os pés da história e, então, tornar a ideologia de Freytag transparente enquanto
potencialmente fascista.”54 Fassbinder aqui permanece fiel a sua preferência pelo

53
Publicado primeiro em Die Zeit, 11/03/77. Reimpresso em Film Befrien den Kopf, p. 36.
54
Filme Befrein den Kopf, p.37.
melodrama como auto-revelador, porém “crítico” 55, graças às suas próprias
inconsistências internas. Ele também define sua atitude para com o popular: não
desprezar nem as exigências de entretenimento de um público do horário nobre da
televisão nem renegar o caráter televisivo de educar assim como entreter.

O fato que Soll und Haden tenha sido cancelado demonstra quão delicado foi o equilíbrio
entre os anseios dos serviços de transmissão televisiva públicos por artistas de proa
encabeçando as mais custosas produções de adaptações do patrimônio literário nacional
para um grande público e a aproximação cautelosa que tiveram com o que pensavam que
essas figuras de proa poderiam ser confiadas a. Após o prematuro encerramento de OITO
HORAS NÃO FAZEM UM DIA e do remanejamento da segunda parte de BOLWIESER
para tarde da noite na ZDF, essa foi uma outra prova para Fassbinder do porque o
formato das séries de televisão era o prêmio a ser visado para alguém que desejasse atrair
a atenção de um público nacional56

Os limites da “opinião pública” para tolerar tal ambiguidade quando veiculado por um
meio público representativo foram testados por Fassbinder uma vez mais em 1980,
quando seu BERLIN ALEXANDERPLATZ foi pela primeira vez ao ar em meio a uma
verdadeira campanha difamatória contra o realizador, por atrever-se a gastar fundos
públicos numa “porca auto-indulgência”57 Talvez falando através de um nome
reconhecido da literatura, fosse ele Freytag, Graf ou Döblin não tivesse, depois de tudo,
ampliado sua dimensão para um autor falando em nome de qualquer um, fosse esse um
alguém bem situado ou marginal e, nesse sentido também, Fassbinder não era
representativo.

“Não Lanço Bombas, Faço Filmes”58


Existe, no entanto, em sua obra uma série de figuras, ou melhor, configurações, que
parecem ter status exemplar, quando não seja por sua “representatividade” ser
profundamente ambivalente. Elas manifestam a si próprias na dialética do bode
expiatório e do redentor ou em termos emprestados do livro de Sartre a respeito de Jean
Genet, cujo Querelle de Brest Fassbinder também adaptou, sendo ao mesmo tempo
“santo, ator e mártir”. Em sua sinopse, THE NIKLASHAUSEN JOURNEY apresenta a
tríade formada por Hans Bohn, o visionário camponês, o monge negro e Margaretha,
figura no estilo de Maria Madalena, apresentando a dinâmica do líder e do bode
expiatório, entre carisma e impostura, fé apaixonada e calculada estratégia.

Outros filmes de Fassbinder também dissecam a lógica dos grupos conspirativos,


sobretudo CUIDADO COM A PUTA SAGRADA, feito no mesmo ano (1970). Lidando

55
Soll und Raben (...) é uma história excitante e bem construída, cheia de suspense, quase como se fosse
escrita para o cinema. Ela é entretenimento (...) e feita para divertir, dar prazer aqueles que descobrirem as
lacunas e remendos mal costurados em sua própria realidade, encorajando-o a reconhecer umas poucas
contradições que criam nossa realidade.” Idem, p.39
56
Limmer, 1981, p. 78.
57
Warun Denn Arger mit Franz Biberkopf”. Frankfurter Algemeinen Zeitung, 29/12/1980.
58
Uma frase de Fassbinder utilizada pelo material publicitário da Filmverlag der Autoren em Cannes,
maio de 1979.
com as tensões entre uma equipe de filmagem numa locação remota esperando por um
cineasta – e o dinheiro – chegar, é habitualmente considerado como um filme aberto à la
clef sobre a trupe e a filmagem de WHITY, o western ambientado no sudeste realizado na
Espanha para uma companhia produtora comandada por Ulli Lommel e sua esposa Katrin
Schaake mais cedo nesse mesmo ano . Porém, igualmente, é uma análise da violência
gerada dentro de círculos fechados, precisamente por conta dos laços que os unem, e os
tornam mútua e grandemente dependentes uns dos outros e, além disso tudo, dependentes
de um líder, particularmente um que possam unir seu amor e ódio. CUIDADO COM A
PUTA SAGRADA tem sido sempre visto com um dos divisores de águas na obra de
Fassbinder59 , mesmo que despojado de sua referência autobiográfica, sua atmosfera de
agressão mal humorada maximizada pelo tédio e ansiedade se adequa bastante ao
ambiente de trabalho de um grupo político e das comunas estudantis dos idos dos anos
70, esperando por algum tipo de desanuviamento do clima abafado dos protestos anti-
Guerra do Vietnã ou novidades sobre a campanha de Che Guevara na Bolívia, desejando
que a guerra fosse trazida para o ambiente doméstico e revelassem o inimigo que pudesse
ser facilmente identificado e, portanto, formalmente atacado.

Nesse sentido, Fassbinder não teria que esperar pelos eventos de 1977 que resultaram em
ALEMANHA NO OUTONO para compreender o nível que a provocação ativista foi
orientada em direção a fazer com que o estado burguês sacasse o ferro das luvas de
veludo da democracia liberal e apresentasse sua própria leitura para a violência. Atraído
intelectualmente pelo radicalismo impiedoso do grupo Baader-Meinhof, porém
igualmente bastante conscientes que o frenesi de suas ações induziriam o corpo político a
isola-los da efetividade e apoio da massa, Fassbinder possuía fé em seu próprio projeto
político, que era o de fazer filmes que comovessem o público, mesmo que a despeito
deles próprios. Não foi uma questão de realizar filmes que “expunha” o estado “não
liberal” dos condenados da FEV (“Fração do Exército Vermelho”, o nome que o grupo
Baader-Meinhof deu a si próprio), mas por no quadro os elementos interiores de angústia,
paranoia e tensão insuportável resultantes.60
Para um dramaturgo e contador de histórias como Fassbinder, portanto, a política de
esquerda se tornou um tema a partir do momento em que o extremismo foi capturado no
labirinto de espelhos e a análise política e a projeção paranoica coincidiram, enquanto os
militantes ajudavam a criar o inimigo que deveriam combater. O que o atingiu
particularmente em meados dos anos 70, durante os anos mais turbulentos da República
Federal, foi que na esfera da política, a mais descompromissada visão crítica (o ponto de
vista de fora) poderia se tornar o mais cúmplice: jogando certo nas mãos do “inimigo”.
59
Algo que o próprio Fassbinder corroborava: “Com CUIDADO COM A PUTA SAGRADA se iniciou
para mim uma nova e decisiva fase” Entrevisa com Wilfried Wiegand, Jansen/Schütte, 1992, p.88. Ver
também entrevista com Peter W. Jansen: “Devo admitir uma vez mais, se existe um desespero maior que
todos, esse é o anterior [ao momento da filmagem]. O processo de aprendizagem que ocorre durante a
filmagem e que é sempre uma experiência profundamente prazerosa. Jansen/Schütte, 1992, p. 114.
60
Eu cheguei a ele e disse: ‘Acabei de ler o roteiro de MAMÃE KUSTERS VAI PARA O CÉU. Gostei
dele, só teve uma coisa que não entendi: eu sei que você é contra a direita, sei que você é contra a esquerda,
você é contra os extremistas, contra os de baixo, contra os de cima, contra os partidos políticos, contra a
religião estabelecida – então, você é a favor do que?’. Ele olhou prá mim por um momento e então
replicou:’Penso que apenas percebo que algo não cheira bem, se é da direita ou esquerda, de cima ou de
baixo, eu não poderia me importar menos. Quando percebo que fede, atiro em todas as direções.’”
Karlheinz Bohn. “Fliessbanderbeit ist Schwerer” in Lorenz, 1995, p. 319
Essa foi de fato uma das lições mais amargas para Fassbinder, mas provocou igualmente
uma das mais divertidas narrativas de acerto de contas com a “esquerda” que
permaneceram até o final da década de 1970, com A TERCEIRA GERAÇÃO. O título é
explicado por Fassbinder:

A primeira geração era a de 68. Idealistas que queriam mudar o


mundo e imaginaram que podiam fazê-lo apenas com palavras e
manifestações. A segunda foi o grupo Baader-Meinhof, que
passou da legalidade à luta armada e daí a total ilegalidade. A
terceira é a de hoje, que age simplesmente sem pensar e sem ter
uma ideologia ou uma política, e que, seguramente sem o saber,
deixa-se manipular pelos outros feitos marionetes.

O filme era para originalmente ser realizado com verbas da televisão (pela Westdeutsch
Rundfunk) mas aqui, também, a emissora abandonou o projeto no último momento, com
medo de tocar em um ponto demasiado sensível, como igualmente fez o Senado de
Berlim, que na época fornecia subsídios aos filmes que utilizavam locações e facilidades
em Berlim. Fassbinder, que alegou somente ter tido notícia de tais decisões dias antes
iniciar a filmagem, apesar de tudo seguiu adiante, em parte com seu próprio dinheiro, em
parte por um acordo de co-produção arranjado às pressas com a Filmverlag der Autoren.61

A história é sobre um grupo de guerrilha urbana, uma mescla de traficante de drogas e


ativistas políticos que formam uma célula subterrânea que, ao suspeitar que haviam sido
delatados para a polícia, decidem agir. Eles sequestram o diretor de uma companhia
americana de computadores, não percebendo que isso é parte de uma armadilha para a
qual haviam sido atraídos. Em suas cenas fortemente registradas, seus entretítulos
brechtinianos e por vezes satíricos, assim como sua intensidade algumas vezes aterradora,
A TERCEIRA GERAÇÃO é tanto um ataque feroz quanto um respeitoso adeus a política
das comunas, fosse ele fundado na política ou nas drogas: ele efetivamente apresenta o
grupo como fascista, porém também torna plausível o quanto de vulnerabilidade
individual e idealismo residual em tal tipo de grupo pode ser usado pelos poderes
instituídos. Nesse caso, por um negociante internacional em equipamento periféricos para
computadores, de forma a incrementar as vendas ao disseminar o pânico na comunidade
dos negócios e política. Ao final, os militantes são baleados, mas não sem antes serem
extremamente mutilados, contraposição irônica ao carnaval anual (ao final de fevereiro),
artifício dramático que Schlöndorff já havia utilizado com bons resultados na sequencia
de abertura de outro filme supostamente simpático à causa terrorista, A HONRA
PERDIDA DE KATHARINA BLUM (1975).

Em Fassbinder, a conspiração entre terroristas e o capital internacional parece propiciar o


sentido do filme à primeira vista, e foi como os resenhistas o apreciaram logo quando de
seu lançamento, algo corroborado pelos próprios comentários de Fassbinder em
entrevistas.62 Porém, duas coisas são evidentes, revendo o filme, especialmente no
contexto dos outros filmes de Fassbinder. A primeira delas é que as relações de poder que

61
Entrevista com Theo Hinz em Lorenz, 1994, p. 245-6, mas também Katz, 1987, pp. 145-54.
62
Jan Dawson, “The Sacred Terror”, Sight and Sound, outono de 1979, p. 242-5. E Anarquia da Fantasia,.
ele lida foram capturadas dentro de um conjunto de termos que são aplicados de forma
mais ampla que a uma situação específica e, depois, que o cuidadoso trabalho tanto com
o som quanto com a imagem criam um outro tipo de realidade complementar, mais no
interior da cabeça (de cada um) que em qualquer lugar ou período específico (mesmo que
alguns dos marcos típicos de Berlim sejam claramente reconhecíveis, tais como a estrela
giratória da Mercedes no Centro Europa e as notícias nas telas de tv juntamente com os
trajes de carnaval permitem precisar uma data). Poder-se-ia observá-lo também como
fazendo companhia a WORLD ON A WIRE, ambientado em uma realidade de ficção-
científica, e sobretudo possuindo a característica de parábola ou de uma “peça modelo”
brechtiniana.63

A referência mais ampla, “alegórica” de A TERCEIRA GERAÇÃO diz respeito a ideia


de crise na ideia de indivíduos como auto-motivados e direcionados de suas
interioridades, e portanto a crise da subjetividade histórica e da ação política na esteira
dos eventos de 68. Poderia ser chamada de dupla crise da sujeito: o que os eventos do
final dos anos 60 sinalizaram foi que com a ausência de uma classe operária militante,
não mais se tornava possível a existência de um sujeito coletivo revolucionário, enquanto
ao mesmo tempo, a ordem burguesa não mais poderia alegar, diante de tão maciço
descontentamento, ser um tema representativo, que agia em prol da sociedade e de seus
membros.64 Um dos temas do filme parece ser o do duplo vínculo político no qual as
democracias representativas necessariamente se encontravam: elas não possuem garantia
de igualdade perante à lei, até por conta de seus suportes na tensão para a articulação da
singularidade, “raízes”, particularidade, o que significa que a diferença reaparece em
outro lugar do sistema, seja sob a forma do gosto e da “distinção” ou como a “política de
identidade” de tradições e genealogias inventadas. A questão suscitada por tal tipo de
problema como as guerrilhas urbanas ou as células revolucionárias foi algo como de que
modo posso conectar o singular ao coletivo, ao qual uma resposta seria a figura do
terrorista, ao mesmo tempo o sujeito existencial (pelo mimetismo da “luta armada”), a
personificação do indivíduo (o santo) e o martírio auto-consciente, preparando-se para a
firmeza e o sacrifício. O terrorista é um representante, porém um com um falso mandato,
tentando inscrever a si próprio “positivamente” na história. Na ausência de um
“representante” que possa se tornar uma figura de credibilidade tanto individual quanto
coletiva (como o líder fascista), ele/ela buscam sua “representação” sob a forma da ação
espetacular e de alta visibilidade.65 Na medida em que o terrorista “responde” a esse
duplo vínculo dentro do sistema político de representação, torna-se uma figura não de
63
A senha dos terroristas é: “O mundo como vontade e ideia”, de Schopenhauer, que Fassbinder comenta
em uma entrevista, afirmando que “o principal problema [a razão de ter realizado o filme], é que as
pessoas que não possuem nenhuma razão, nenhum motivo, nenhum desespero, nenhuma utopia possam ser
utilizados pelos outros. [Ao final] não faz diferença se alguma vez um executivo diretor foi um mentor de
uma célula terrorista com o objetivo de vender mais computadores.
64
O próprio Fassbinder falou dos alemães ocidentais como vivendo em uma “democracia dada a eles de
bandeja”
65
Um dilema similar de como responder ao mandato simbólico proveniente de um culto de seguidores é o
posto as estrelas pop. Os rappers negros dos anos 90, por exemplo, “representam” um mandato que
demanda que sua credibilidade associada à violência se manifeste não apenas através de palavras ou de
música. Tupac Shakur, o “rapper gansgta” cuja mãe foi uma militante dos Panteras Negras, expôs sua
própria “intervenção no real” com resultados fatais. A ele é tido como tendo afirmado “todos bons crioulos,
todos crioulos que mudaram o mundo, morreram violentamente.”
todo dessemelhante do herói fassbinderiano: passa a ser seu alter-ego, sua sombra
“positiva” e duplo diabólico.

Pela forma do herói fassbinderiano evitar responder a esse falso mandato, evitar se tornar
um terrorista, é por sua negatividade, sua recusa a “confrontar” o sistema ou se rebelar
contra ele. Em A TERCEIRA GERAÇÃO os terroristas são ativistas, porém não possuem
uma plataforma discursiva, que é onde diferem fundamentalmente de heróis tais como
Hans, Fox ou os diversos Franz (dos quais um se encontra em A TERCEIRA GERAÇÃO
e não esboça qualquer reação ao ser baleado).66 Como será discutido nos próximos
capítulos, o herói fassbinderiano atinge uma posição de fala tomando o “sistema” como
algo literal, quer dizer, acreditando na igualdade, no amor, na generosidade e na
confiança. É nesse sentido que O DIREITO DO MAIS FORTE triunfa sobre seus cínicos
exploradores, já que responde a “demanda” por amor, e Mamãe Kusters vai para o céu
porque, também, responde à demanda de justiça para seu marido. O que dizem pode
parecer equivocado, assim como mesmo ocasionalmente o que fazem, porém a “posição”
em que permanecem, de onde falam é justo e, por isso, nesse sentido peculiarmente
específico, “representativo”.

Macro e Micro: as Redes de Poder


A segunda característica que torna A TERCEIRA GERAÇÃO não exatamente a
denúncia tendenciosa da direita e da esquerda que aparenta ser é a complexidade das
relações de poder expressas no filme, como frequentemente nos últimos filmes de
Fassbinder, em termos da relação som-imagem. A questão que Fassbinder parece suscitar
em A TERCEIRA GERAÇÃO tem menos a ver com uma postura a ser tomada diante de
uma situação tão “paranoica”, aonde o governo poderia se encontrar em conluio com seus
próprios inimigos juramentados, um necessitando do outro na escalada dos atos de
confronto mas, mais que isso, é o que mantém a sociedade unida. O que, em outras
palavras, faz um país como a Alemanha Ocidental, então ainda considerada uma frágil
democracia, socialmente e economicamente bem sucedida, ao ponto que proporciona
seus cidadãos com altos padrões de vida juntamente com um alto nível de complacência?
Estava clara a resposta que a esquerda desejava: capitalismo e burguesia mantendo a sua
disposição um estado policial mal disfarçado e um parlamento pronto a decretar um
estado de emergência para justificar a suspensão dos direitos civis (como aconteceu com
uma rede extensa de vigilância e identificação computadorizada instalados na esteira dos
ataques terroristas, sequestros e assassinatos) enquanto a maioria silenciosa está disposta
a pagar o preço político para ter tranquilidade. Esse pode ser o tipo de macro-análise
(incluindo algo como grandes paralelos históricos encontrados no filme coletivo
ALEMANHA NO OUTONO). Porém A TERCEIRA GERAÇÃO se concentra mais na
micro-análise de poder e suas várias redes ou dispositivos, do lado dos que se encontram
no poder e aqueles que se “opunham”. Nele, observa-se que tais confrontos diretos e
batalhas arranjadas de forma estratégica não mais existem. Consequentemente, as
fricções e resistências através dos quais determinada sociedade se comunica consigo
própria são mais difíceis de serem definidas com clareza, dando vazão ao que se poderia

66
Wilhelm Roth é reminiscente do herói suicida mascarado como assassinado em Le Diable Probablement,
de Robert Bresson, sendo de fato um clipe dele incluído no filme de Fassbinder. Jansen/Schütte, 1992: 225.
chamar micro-estruturas de traição, de delação, de identificação excessiva e desafetos
através dos quais o “sistema” gera seu próprio “outro” e também, em última instância,
fala para esse “outro”. Daí as complicadas linhas de força que unem os personagens em A
TERCEIRA GERAÇÃO, onde Hanna Schygulla é tanto secretária do diretor quanto
membra de uma célula terrorista e Volker Spengler possui uma rede de terroristas
infiltrados, os trai, quando capturado, sendo curiosamente vulnerável e inseguro, como se
houvesse saído do mundo de NUM ANO DE TREZE LUAS. Todos os personagens
deslizam sem grande esforço de seus trabalhos diurnos para suas atividades noturnas,
provando quão reversíveis seus egos e identidades (constantemente ensaiando seus nomes
falsos e álibis) mas também quão “integrados” são em seus disparatados e aparentemente
incompatíveis estilos de vida.

O maior recurso que Fassbinder implanta para dar a esses mundos imediatamente
“materialidade” e uma dinâmica é seu uso do som, de diálogos sobrepostos, os
fragmentos da imagem da televisão ou do som do rádio contribuindo para um mundo
disposto em camadas, ao mesmo tempo que plano como um monitor, aparentando
ausência de profundidade, mas intensificando e acelerando a interação. Como se uma
nova forma de regular proximidade e distância fosse se estabelecendo por si própria, com
outras regras e novas formas de inter-relação pessoais emergindo de uma topografia
eletrônica de espaço sonoro, música, ruídos e imagens filtradas. 67 Isso dá ao filme de
Fassbinder uma dupla reflexividade, resolvendo igualmente a tensão entre o mundo da
mídia – onipresente em tudo de Fassbinder – e os sentimentos e as paixões humanas.
Esses prosperam e energizam a si próprios ao imergirem completamente na mídia
destacando como os espaços são sempre interferidos e perturbados em Fassbinder em
oposição, digamos, aos espaços contemplativos de Wim Wenders.

Assim, enquanto externamente (a imagem do dia) na sociedade alemã em A TERCEIRA


GERAÇÃO parece sólida, imóvel e (feita de) concreto, uma mudança leve de perspectiva
reverte os termos, e um curioso mundo líquido envolve, como um aquário, movimento
constantes por trás do vidro, transparente mas fechado, claustrofóbico e inalcançável. A
TERCEIRA GERAÇÃO muito marcadamente inclui em seu enredo o Fasching* alemão
como um momento do carnavalesco dentro do (des)regramento da lei, mas também
apresentando sua necessária inversão, o bode expiatório, mesmo ao acaso e sem maior
sentido, no que segue tais transgressões e, principalmente, parece incluir entre suas
vítimas também os inocentes. A grande artificialidade da situação, seu caráter modelar,
ambientado contra a força elíptica do enredo, dá o mais caricatural tipo de identidade aos
personagens, ainda que a presença eletrônica e audiovisual na qual se encontram imersos
cria sua própria invisibilidade e mesmo opaca substância.

O paradoxo que surge é que, se no macro-nível, a Alemanha de Fassbinder surge como


uma sociedade rígida e conservadora, no micro-nível, outra ordem de coisas delineia-se,
envolvendo corpos independente de seus papéis sociais, ideologias políticas ou status
social. Possivelmente sobre a absoluta prioridade do econômico, seja na forma de

67
Numa entrevista, Fassbinder chamou a saturação midiática do filme uma espécie de “terrorismo aurático
(Schallterror)”.
* n.do t.: em alemão no original, termo para designar carnaval.
ganância pessoal, tendo como motivo o lucro ou a expansão dos mercados, o corpo
político manifesta não o que há de estático nas instituições hierárquicas, mas irradia
movimento, liberado através de sua miríade de conspirações e conluios, seu comércio de
drogas ou de qualquer outro tipo, uma espécie de espiral frenética de energia, regulada ao
redor dos polos magnéticos da sexualidade, alta tecnologia, cultura de massa e os novos
modos de luta pelo poder que eles promovem mesmo na esfera privada. 68 Se, como
levantado no início, a análise “política” de Fassbinder pode ter sido convencional, sua
análise “social”, todavia, tem um olhar para uma certa dinâmica que poderia ser
reconhecível como contemporânea, onde corrupção, drogas, crime, terrorismo significam
ao mesmo tempo “infortúnios sociais” e “mecanismos de segurança”. A TERCEIRA
GERAÇÃO demonstra que a sociedade – de modo a funcionar perfeitamente – deve
construir em suas estruturas algo como circuitos não convencionais, “ilegais”, que
permitem uma confrontação direta, não mediada, entre ricos e pobres, o entrelaçamento
dos poderosos com os sem poder, dos estabelecidos com os oprimidos, do “lumpem-
proletariado” com os “arrivistas”: daí o fascínio de Fassbinder com os proxenetas,
traficantes, agentes duplos e provocadores. Essas figuras sombrias são, em muitos dos
filmes de Fassbinder, mais confiáveis e simpáticas que todos os cidadãos “direitos”, os
representantes oficiais, os políticos ou outros apoiadores da ordem social estabelecida que
o diretor nunca pôs em seus filmes. No limite, qualquer forma de dependência e
interdependência entre indivíduos – mesmo aquelas que possam ser nomeadas como
“exploração” – é preferível para o ego autônomo, a auto-confiança e outros ideais de
desenvolvimento pessoal dentro da existência burguesa. Somente tais formas,
aparentemente, dão acesso às energias pelas quais as relações “extra-territoriais”
representadas nos filmes (através das drogas, dinheiro e sexo) se tornam possíveis.

Mesmo que, portanto, nem sua persona nem seus personagens, encaixam-se no papel de
representativos, uma série de outras configurações do universo de Fassbinder parecem
responder ao artista-autor-diretor de cinema enquanto “figuras representativas” no âmbito
doméstico e embaixador da boa vontade no estrangeiro: além do “terrorista”
autonomeado, presumindo falar sobre um tema histórico (desaparecido) e revolucionário,
ou comandando uma célula (fascista, sado-masoquista), claque ou grupo como líder
carismático e os heróis sacrificados indo para seu inevitável e previsível fim como
cordeiros indo para a matança, e respondendo a seu modo a um mandato simbólico 69 ,
existe uma terceira possibilidade, frequentemente reservada aos fortes personagens
femininos (as “Mata Haris dos Milagres Econômicos”) e, como veremos, algumas vezes
ocupadas pelo “próprio” Fassbinder: o de mensageiro e negociante do mercado negro,
vivendo e alimentando-se do sistema, necessários para o sistema, mas também
sacrificados pelo sistema.

Representação, Reconhecimento, Credibilidade


68
Quando o escritor Thomas Brasch indagou de Fassbinder a possibilidade de incluir um trecho da peça de
teatro dele, Fassbinder quis que fosse excluído Hitler e Stálin do discurso, afirmando que “deixasse de fora
os nomes de políticos”, pois seus personagens estão lutando por poder, porém sua luta pelo poder não é
uma luta política, é sobre outra coisa.” Lorenz, 1995: 355.
69
Quando um entrevistador citou uma frase de Brecht que “somente os mais estúpidos cordeiros escolhem
seus próprio açougueiros”, Fassbinder retrucou: “ah, mas existem muitos tipos de cordeiros.” Limmer,
1981: 83.
Tal pode ser a leitura alegórica e retrospectiva dessas figurações. Na época, a “realidade”
de sua situação deve ter parecido bem diferente para Fassbinder. Os anos entre 1970 e
1977 foram seus mais prolíficos, uma miraculosa efusão de trabalho e, ainda assim, ele
ainda se encontrava bastante isolado. Depois de ter feito uma intervenção brutal na
entorpecida cultura cinematográfica alemã, depois de ter provocado tantos debates, sua
posição, caso pudesse ser definida, era mais marginal e precária que havia sido em 1969.
Visto como uma espécie de pária, nenhum grupo ou partido na Alemanha se reconhecia
em Fassbinder, e embora ele fosse famoso, dele não poderia ser dito que “representasse a
Alemanha”. Nem mesmo a WDR, instituição na qual havia trabalhado e recebido
considerável prestígio, estava disposta a tê-lo de volta. Na vida pública alemã, ele
também claramente não representava ninguém: não o establishment nem a burguesia,
nem a esquerda nem a direita, nem as minorias raciais ou sexuais. Com o grande sucesso
internacional após O CASAMENTO DE MARIA BRAUN, seu status mudaria, porém
somente na medida em que ele agora não era repudiado em casa, mas antes isolado:
sintomático de um tipo de fama. No estrangeiro, por sua vez, ele passou crescentemente a
se tornar representativo, mesmo verossímil enquanto alemão, paradoxalmente por conta
de ser tão “excessivo”, e talvez por conta da mistura de sentimento e brutalidade, de
sensibilidade, talento inegável e rude franqueza, de fato, transmitirem uma “imagem”:
aquela que logo mais poderia se adequar a reserva cautelosa mesclada com completa
suspeita que o resto do mundo institivamente adotou em relação aos “representantes” da
Alemanha. Foi como se, juntamente com a caricatura de super-eficiente e alta tecnologia
alemã dos comerciais da Audi, o único outro alemão confiável na mídia internacional
fosse Willy Brandt, representante oficial mas também combatente do nazismo e retornado
do exílio ou um Rainer Werner Fassbinder, vergonhoso Wunderkind e obeso, workaholic
e dependente de substâncias químicas.

Talvez esta seja outra razão pelo qual um período da Alemanha chegou ao fim com sua
morte em 1982. O Novo Cinema Alemão como realização autoral era também
“politicamente motivado”, no sentido de que a infra-estrutura econômica do cinema e o
prestígio cultural tinham se aprimorado em grande parte graças às decisões tomadas pela
coalização liderada por Willy Brandt para que no início dos anos 80, realizadores alemães
tais como Volker Schlondorff e Wolfgang Petersen (cujo drama sobre o submarino da
Segunda Guerra O BARCO – INFERNO NO MAR, se transformou em sucesso
internacional) estivessem já a caminho de Hollywood70 No ano da morte de Fassbinder,
Helmut Kohl se tornou primeiro-ministro, e com ele uma figura oficial passou a
“representar” à Alemanha cujo verdadeiro apelo, tanto em casa quanto externamente, era
o fato de que aparentava ter sido tão pouco traumatizado pela história 71: confortável em
ser alemão, gemülicht em sua potência física, provinciano em seu conhecimento e
“popular” em seus gostos, tendo sido hábil na engenharia das reconciliações políticas
(como nos vários encontros de alto nível Mitterand-Kohl, Reagan-Kohl, Gorbachev-
Kohl) que eventualmente tornariam ainda mais plausível para ele angariar a maior parte
70
Schlondorff desde então retornou à Alemanha, para fazer Euro-cinema de custosos orçamentos, enquanto
Petersen, juntamente com o diretor Paul Verhoeven e colegas alemães como Uli Edel e Roland Emmerich,
tornou-se um bem sucedido diretor hollywoodiano. Ironicamente, isso era o que Fassbinder frequentemente
professava, e somente se pode especular que caminho ele teria tomado.
71
Kohl cunhou essa frase: “Abençoados com a graça de um nascimento tardio”, dentre os quais ele incluía
a si próprio.
do crédito pela unificação alemã. Com Kohl, a questão inteira das figuras do “crítico x
representativo” uma vez mais tomam outra completa guinada, para tanto, como primeiro-
ministro da Tendenzwende, ele será lembrado como o político que ajudou os alemães a se
tornarem “normais” novamente, tanto para eles próprios como para os outros. Embora ao
longo de todos os anos 70, Brandt sutilmente sentiu que a história alemã precisava ser
reescrita por conta de Hitler e da culpa do Holocausto e de tantos outros crimes que
haviam tornado cada alemão, “representativo”, sendo apresentado ao Gueto de Varsóvia
como um testemunho à guisa da expiação, em nome de seu país, a reescrita de Kohl da
história alemã foi bem diferente. É verdade, o período nazista foi também “escrito no”
(Bitburg e Bergen Belsen, museus de história alemães em Bonn e Berlim), mas não havia
mais razão para que a história tivesse que ser reescrita. 72 Durante os anos 70, é tentador
se afirmar que Willy Brandt possui em Fassbinder um similar companheiro-alemão
“representativo”: uma contra-figura mas igualmente uma figura complementar.
Fassbinder também reescreveu a história do pós-guerra alemão, agora em imagens de seu
cinema-história, que incluíam a UFA e o período nazista, e através deles um olhar severo
sobre o próprio campo histórico, enquanto arena igualmente ambígua de representações
em disputa. Na obra de Fassbinder, o campo do visível, do ver e ser visto, da imagm e do
corpo, do espetáculo e do evento, em resumo da política do “ego” e da “identidade” pode
ser definida diferentemente do sentido de ser representativo e, com isso, pode ter ajudado
a redefinir o cinema e suas representações da história. Esse é o tema dos capítulos que se
seguem.

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Willy Brandt é visivelmente o único primeiro-ministro que não é “negativo” na série de retratos que vai
de Hitler a Helmut Schmidt ao final de O CASAMENTO DE MARIA BRAUN.

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