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Alemanha: A Nação
Quando Fassbinder morreu em 1982, os obituários no mundo viram nele sobretudo o
principal representante não apenas do Novo Cinema Alemão como da Nova Alemanha.
Palavras de ordem raivosas, crítico impiedoso, honesto, incorruptível, o espírito de 68, o
farol da raiva virtuosa e integridade estética2. Não foi sempre assim, e de fato a noção de
Fassbinder representando a Alemanha pareceria à primeira vista um tanto improvável.
Para compreender como tais considerações descritas nos obituários puderam vir à tona e
quantos julgamentos desencontrados são esquecidos dentro das homenagens bajuladoras,
necessitar-se-ia voltar atrás e considerar o que representava para um realizador como
Fassbinder, cuja vida tanto ofuscou sua obra, “representar” algo além dele próprio.
O que é uma nação, o que é um cinema nacional, e como pode um realizador representar
ambos? No caso da Alemanha desde a Segunda Guerra essas são, naturalmente, questões
particularmente difíceis. Depois de 1945, poucos países foram obrigados a interrogar sua
identidade geográfica e cultural tão ansiosamente quanto a derrotada, devastada e
dividida Alemanha do Reich. Não somente porque os acordos de Yalta e Potsdam
alteraram irrevogavelmente o mapa, entregando as antigas províncias prussianas à
Polônia e à União Soviética, e criando as Zonas Ocupadas Aliadas das quais emergiriam
os dois estados alemães em 1948/49. Mais decisiva foi a razão da partilha: o fato que
crimes indizíveis praticados por alemães em outras nações tenham sido justificados em
nome da nação, cuja identidade, o Nazismo afirmou, foi baseada tanto numa origem
racial comum quanto num destino territorial manifesto, duas construções da nação para
cuja execução todos os meios foram considerados legítimos.
Mesmo provocando a cultura popular para um tipo de sentimentalidade que podia ser
politicamente explorada foi também uma espécie de contra-movimento para uma análise
explicitamente política e econômica que o Nazismo recebia em outra parte da Alemanha,
aonde o proletariado anti-capitalista e anti-fascista se tornou um dos elementos principais
da auto-definição do estado e a pedra angular da legitimação histórica da Alemanha
Oriental como uma entidade à parte.
6
Ver os ensaios de Ernst Bloch do final dos anos 1920 e idos dos 1930, alertando a esquerda para levar a
literatura de massa, os filmes e a cultura popular de modo mais sério na sua luta política contra a nascente
direita, coletados em Ernst Bloch, Heritage of Our Times (California U Press, 1989).
pelo entretenimento reacionário, contra seus próprios interesses, ou aceitar que mesmo
nos dramas sentimentais, verdades se encontram presentes que falam às esperanças ou
medos das pessoas.
Dentre os diretores dessa segunda geração, Fassbinder, com suas fortes raízes regionais,
seu amor pelo cinema hollywoodiano, e sua crença no cinema de gênero não se
enquadrava em nenhuma das categorias. De fato, ele parecia ser o menos óbvio dos
candidatos a “representarem a Alemanha” para tratar de questões sociais ou políticas; no
sentido que seus filmes criavam mundos ficcionais nos quais as Alemanhas podiam ou
não se reconhecer a si próprias. Um realizador como Kluge era muito mais analítico e
focado na complexidade da vida sócio-política alemã, enquanto Volker Schlöndorff (O
Tambor) e posteriormente Edgar Reitz com Heimat fizeram filmes de maior apelo
popular sobre a realidade alemã e sua experiência histórica.
Se a representação, portanto, é dado dois sentidos, “falar em nome de” ou “construir uma
imagem reconhecível de”, então Fassbinder pode ser considerado como representante da
Alemanha (Ocidental), somente dentro desses termos. Mesmo quando alguém o equipara
com outros diretores talvez comparáveis no exterior, então a Alemanha de Fassbinder não
é como a França de Renoir, a Itália de Fellini ou a Suécia de Bergman. Iniciando sua
carreira como um diretor de vanguarda homossexual, Fassbinder encarnou brevemente a
resposta aos universos claustrofóbicos e kitsches da Nova York de Andy Warhol. Porém
mesmo como realizador homossexual, ele não representa a auto-confiança pós-Stonewall
do movimento gay. Na melhor das hipóteses, como notável membro de sua geração, ele
representou a contra-cultura dos anos 1970, sendo tanto uma figura de proa quanto um
bode expiatório.
De fato, diversos fatores complicam e modificam essa avaliação de não-representação.
Ao longo dos anos 1960 e 1970, os escritores e realizadores alemães-ocidentais
frequentemente possuíam uma figura representativa sendo imposta sobre eles.
Romancistas como Günther Grass, Heinrich Böll ou Martin Walser eram – a despeito ou
justamente por conta de sua avaliação geralmente crítica – considerados como alemães
exemplares: não necessariamente por conta da dimensão de sua visão imaginativa ou da
abrangência de seu realismo, mas por virtude de sua franqueza moral ou compromisso
político. Internacionalmente reconhecidos como porta-vozes de uma nova, e melhor,
Alemanha, eram considerados habilitados de representar o novo espírito democrático,
nascido dos valores da racionalidade do Iluminismo. O mesmo pode ser dito de
intelectuais acadêmicos tais como Jürgen Habermas, herdeiro de T.W. Adorno e da
Escola de Frankfurt, que tomou sobre si a responsabilidade de manter tradições que
uniam pensamento filosófico e crítico na República Federal às correntes libertárias da
República de Weimar. Esse papel proeminente durante décadas foi profundamente
relativizado quando, com a unificação alemã em 1990, este prestígio sofreu um dramático
declínio. Gunther Grass e Hans Magnuns Enzensberg na Alemanha Ocidental e
lideranças dissidentes da ex-Alemanha Oriental como Christa Wolf e Heiner Müller não
somente sofrerem ataques públicos a sua integridade pessoal mas se tornaram
emblemáticos de uma tendência geral de derrubar os ícones culturais de seu pedestal de
lideranças nacionais. Foi como se, com sua identidade geográfica reestabelecida, a
Alemanha passasse a redefinir de forma diferenciada a sua identidade nacional, prestando
menos atenção a seus intelectuais e artistas.
Cerca de uma década antes, entre 1974 e 1984, entretanto, os cineastas foram talvez pela
primeira vez desde sempre sido considerados como parte da elite cultural e, por isso
mesmo tinham, também, se tornado envolvidos com o que Habermas uma vez havia
denominado como “a questão da legimitação”. Qual papel, Habermas indagava, poderia
os artistas e os intelectuais, as universidades e as instituições culturais efetivarem numa
sociedade na qual o mercado de oferta e demanda supostamente regulava todos os
serviços, incluindo aqueles de educação e das artes? Poderiam as artes ser mais que um
sinal distintivo cultural que se relaciona narcisisticamente consigo própria ou
compensação para ideais que a sociedade há muito tempo excluiu de sua agenda política?
Os diretores de cinema estão frequentemente no centro de tais questões. Não somente
seus filmes são invariavelmente financiados com subsídios de instituições
governamentais, como eles também se beneficiam do patrocínio oficial dos Institutos
Goethe espalhados pelo mundo, que apresentam seus filmes e os próprios diretores em
pessoa para plateias estrangeiras. Werner Herzog, Wim Wenders, Hans Jürgen
Syberberg, Werner Schroeter, Margareth von Trotta, Jutta Brückner, Helma Sanders
Brahms em algum momento foram eles próprios destinatários dessa ambígua honra de
embaixadores alemães. A relação próxima do cinema (de arte) com o Estado na
Alemanha Ocidental, com as muitas comissões federais, órgãos de financiamento,
autoridades de subvenção e subsídios, significou que havia algo de “oficial” sobre o
cinema alemão ao longo de seu período de renascimento nos anos 1970 e 1980. Isso foi
acentuado pelo fato de que a distribuição internacional era frequentemente co-financiada
pela Inter Naciones, ela própria o braço publicitário do mesmo Instituto Goethe. Dentro
da Alemanha, o Novo Cinema Alemão raramente provou ser popular ou considerado de
bom gosto, indicando que aquelas plateias alemãs que haviam demonstrado sua lealdade
para o agora crescentemente moribundo cinema comercial, não se sentiam geralmente
representadas pela obra mais “pessoal” dos novos diretores e, como alternativa, buscaram
na televisão sua auto-representação. Dada a ausência de um cinema popular dominando a
devoção das plateias alemãs, juntamente com a quase universal desaprovação da cultura
popular em geral, os realizadores, comparados aos escritores, também enfrentavam um
dilema duplo: ser aceitos como “artistas” (pelo establishment, como forma de atrair
subsídios) e se tornarem populares (como forma de serem reconhecidos e comentados
pelas pessoas). Aqueles que aceitaram serem os representantes foram, além do mais,
atacados por seus colegas menos conhecidos ou flexíveis como corruptos ou oportunistas,
ou ridicularizados como pomposos.7 Poucos diretores foram hábeis o suficiente para
equilibrar essas demandas com distanciamento irônico ou a cabeça fresca, optando antes
tanto pela respeitabilidade quanto pela notoriedade.
Por outro lado, o status oficial em casa e no exterior se encontrava associado, ao menos
em parte, a recepção grandemente favorável que os filmes alemães passaram a gozar a
partir do final dos anos 1970 no exterior. Ela adveio de um Oscar em 1980 para
Schlondorff por O Tambor e a distribuição em grande circuito nos Estados Unidos de O
Barco – Inferno no Mar (Das Boot), de Wolfgang Petersen à aclamação popular de
Fassbinder com O Casamento de Maria Braun e Heimat, de Edgar Reitz, do entusiasmo
da crítica por Hitler, Um Filme da Alemanha, de Hans Jürgen Syberberg a hostilidade
abafada a LILI MARLENE de Fassbinder ou FITZCARRALDO. Em todo caso, no
entanto, os diretores eram tratados mais ou menos como mais do que meros artistas de
entretenimento. Eles haviam alçado ao status de pensadores, aparentemente tomando para
si tal designação para falarem em nome da nação como um todo e constantemente –
como em todos os títulos acima mencionados – para falarem da história alemã, ela
própria tão frequentemente igualada com o Nazismo e suas consequências. Alguns se
sentiram eles próprios chamados para incorporar uma postura ainda mais heroica, como
sábios e profetas: na Alemanha, os críticos começando a falar sobre “Nossos
Wagnerianos”8 entre os quais eram listados não apenas artistas como Anselm Kiefer,
Joseph Beuys ou o compositor Karlheinz Stockhausen, mas também o escritor Heiner
Müller e o cineasta Hans Jürgen Syberberg – incorporando ambições em relação a
Gesamtkuntwerk que bem pode ter sido uma resposta às pressões de serem
“representativos”9.
7
Wim Wenders e Reinhard Hauff, por exemplo, foram atacados por Herbert Achternbusch in Semiotexte:
The German Issue, n.11, 1982, p. 8-15.
8
Gabriele Förg (org.), Unsere Wagner. Frankfurt: M Fischer, 1984.
9
A tendência rumo a um certo monumentalismo no Novo Cinema Alemão é incontestável: as façanhas
hercúleas de Herzog como realizador, a duração de Hitler – Um Filme da Alemanha, de Syberberg, as 13
partes de Berlim Alexanderplatz, o Heimat (15 horas, 22 minutos) e o Die Zweite Heimat
(aproximadamente 26 horas) de Reitz.
10
Ver meu “Herbert Achternbusch and the German Avant-Garde”, Discourse, n.6, 1983, pp. 92-112.
Fassbinder11 . Poder-se-ia dizer que ele optou pela notoriedade, porém isso subestimaria a
complexidade tanto da situação de Fassbinder como de sua resposta a ela. Buscando ser
popular ao mesmo tempo que crítico, ele não queria se direcionar nem para o nicho do
vanguardismo político de Straub e Huillet e Harun Farocki ou das palhaçadas excêntricas
que satirizam o status quo de Achternbusch, para não mencionar a postura da minoria
perseguida de Rosa von Praunheim, o diretor gay mais militante do Novo Cinema
Alemão. E, ao contrário dos nomes internacionais proeminentes, Fassbinder parecia
sentir que sendo um “representante” da Alemanha para ser “crítico” de seu país e de sua
história não era suficiente: deveria existir outra forma de auto-apresentação e persona.
Por outro lado, essa espécie de fracasso pode ter tornado mais fácil a recusa de ser
apropriado pelo establishment, mesmo apesar de sua inevitável guinada nos últimos anos
para incorporar a Nova Alemanha. Fassbinder, no entanto, tentou tornar positivo o duplo
vínculo que ele tão claramente reconhecia em si, aquele de enfant terrible, o rebelde e
outsider, cuja Alemanha oficial necessitava como um de seus álibis “liberais” enquanto
negociava um período de crise econômica e quase guerra civil em meados dos anos 70 –
se ele gostava de “morder a mão que o alimentava”, também era capaz ocasionalmente de
se afastar dos subsídios oficiais completamente, como em A Terceira Geração12.
Que essas mudanças para visões panorâmicas ou inventários nacionais tenham assumido
uma configuração palpável no final dos anos 1970 na Alemanha Ocidental não é
acidental. Antes de tudo, sobreveio com o impacto do choque, moral e psicológico, que o
período relativamente breve de terrorismo urbano que culminou com a Fração do
Exército Vermelho, sua captura, julgamentos e suicídios provocou no senso de maturação
política e identidade histórica da República Federal. O primeiro reflexo cinematográfico
da crise foi talvez A HONRA PERDIDA DE KATHARINA BLUM (1975), de Volker
Schlondorff e Margareth von Trotta, porém uma tomada de ação mais ampla foi o filme
14
Jansen / Schutte, 1992, p.64-5.
coletivo ALEMANHA NO OUTONO (1977/78), iniciada por Alexander Kluge com
contribuições, dentre outras, de Schlondorff, Reitz assim como de Fassbinder. Este foi
seguido por outras produções aonde realizadores pareciam determinados a exorcizar esse
momento crítico de auto-análise nacional (IRMÃS OU A BALANÇA DA FELICIDADE
de Margareth von Trotta, FACA NA CABEÇA, de Reinhardt Hauff, A PATRIOTA, de
Alexander Kluge, ALEMANHA, MÃE PÁLIDA, de Helma Sanders-Brahms) utilizando
a situação contemporânea igualmente como uma forma disfarçada de refletir sobre as
origens mais subeterrâneas do mal-estar da nação que levaria a uma situação de quase
guerra civil.15
De fato, diversos dos filmes apenas mencionados foram derivados de um projeto que
novamente parecia ter sido originado por Kluge (possivelmente em diálogo com Peter
Martheismer da República Democrática Alemã) na esteira do sucesso crítico de
ALEMANHA NO OUTONO, isto é, fazer outro filme coletivo, a ser intitulado “Os
Casamentos de Nossos Pais”. O objetivo era traçar a relação entre, como Kluge pôs em
seu episódio (incorporado em A PATRIOTA), “uma história de amor e uma guerra
mundial.” Mesmo que Sanders-Brahms tenha estendido às formulações de Kluge a um
épico grandemente autobiográfico (ALEMANHA MÃE PÁLIDA), e Reitz tenha
concebido seu autobiográfico HEIMAT ao redor de uma família inteira durante e entre as
duas guerras, a contribuição de Fassbinder se tornou seu filme mais conhecido e bem
sucedido, O CASAMENTO DE MARIA BRAUN, escrito por Marthesheimer e sua
esposa Pea Frolich, juntamente com o próprio Fassbinder. O filme não era
autobiográfico.
15
Ver Anexo sobre os detalhes do “outono quente” de 1977.
riscos e tentações dessa democracia. Nessa medida, ambos
são filmes bastante políticos.16
As Realidades da Representação
Existem muitas articulações no sentido que alguém pode dar a palavra “política”. Por
exemplo, ela não parece se referir ao realismo social como um estilo, à análise de
instituições políticas ou aos locais da indústria ou dos negócios. Além do que, um diretor
menos dado a descrever a paisagem física de um país que Fassbinder é dificilmente
imaginável. Basta comparar sua obra com a de Antonioni, Tarkvoski ou mesmo Godard
para perceber que o mundo de Fassbinder não se estende para o espaço topográfico como
um todo, não possui a ambição de se abrir para vistas ou paisagens, para o sentido do que
se encontra extra-muros ou transmitir as qualidades de uma paisagem. Se alguém
observar para uma realidade mais próxima dele, para o Herzog de WOYZECK, de
KASPAR HAUSER e CORAÇÃO DE CRISTAL ou para o Wenders de MOVIMENTO
EM FALSO, NO DECORRER DO TEMPO e ASAS DO DESEJO (para não falar das
produções posteriores dos dois diretores realizadas no exterior, tais como ONDE
SONHAM AS FORMIGAS VERDES ou ATÉ O FIM DO MUNDO) a diferença é ainda
mais notória e absoluta. Não é a Alemanha dos castelos do Reno (MOVIMENTO EM
FALSO, de Wenders) e montanhas bávaras (CORAÇÃO DE CRISTAL), ou paisagens
românticas de Caspar David Friedrich (KASPAR HAUSER) ou a Floresta Negra
(WOYZECK) que observamos nos filmes de Fassbinder. Não se testemunha tampouco a
melancolia das regiões de fronteira ou das vilas abandonadas pela prosperidade alemã-
ocidental, como em NO DECORRER DO TEMPO ou em WILLI-BUSCH REPORT, de
Nikas Schilling. Karsten Witte certa vez considerou acertadamente que em Fassbinder
“você encontra tudo da Alemanha que não é o Lorelei e o Neuschwanstein - o castelo de
conto de fadas de Ludwig da Bavária miniaturizado na Disneylândia de Anaheim).17
16
Entrevista de 1980, citada em Werkschau: Programme, pp. 77-8.
17
Karsten Witte, “Holle & Sohne”, Im Kihno (Frankfurt: Fischer, 1985, p.159)
Wedekind, Bertolt Brecht, Marie-Louise Fleisser e Odon von Horwath que do legado
realista de Thedor Fontane ou Thomas Mann.
Poder-se-ia objetar que com seu FONTANE EFFI BRIEST, suas citações do Tonio
Kroeger18 de Mann, suas adaptações de Despair de Vladimir Nabokov, e Bolwieser, de
Oskar Maria Graf, o Fassbinder “maduro” de fato observava a si próprio como seguidor
de uma tradição narrativa clássica. Porém sua leitura desses textos, como veremos, é bem
diferente e quando, em 1980, ele realizou o projeto que pode ser considerado como o
coração de seu empreendimento “balzaquiano”, o monumental BERLIN
ALEXANDERPLATZ, Fassbinder não produziu nem um Bildungsroman nem uma
adaptação estilizada do romance da cidade modernista de Alfred Doblin. Pelo contrário,
ele tornou-se uma altamente elíptica e intrincada peça de narrativa que, especialmente em
seu epílogo, provou ser próxima, caso seja de algo, de um lúgubre neo-expressionismo
que da prosa futurista-experimental de Doblin.19
Porém, interpretadas dessa maneira, tais categorias estilísticas não chegam ao coração da
questão. Devemos lembrar que os universos de Fassbinder são de decidida e
descompromissada artificialidade: esse foi o seu ponto de partida, e da intensidade dessa
premissa solitária ele fez suas diferentes escolhas estilísticas tornarem-se plenas de
sentido. Uma atmosfera de estufa é muito mais o ingrediente básico do cinema de
Fassbinder como a figura solitária na paisagem o é para Herzog. Fassbinder não apenas
permanecia dentro do estúdio e odiava escolher locações, como igualmente recusava
visitar tais locações antes das filmagens, afirmando que precisava de um elemento de
surpresa para incendiar sua imaginação20. O que se observa são “mundos interiores” nos
quais os personagens se confrontam uns aos outros, porém também a concretização dos
círculos viciosos justamente transformados nos duplos vínculos a serem discutidos no
próximo capítulo. 21 Um espaço imediatamente permeável a novas configurações e
fechado a uma alternativa que Fassbinder jamais cogitou: a vida fora da sociedade e sem
a agônica companhia de outros.
Porém seus filmes são políticos em outro sentido, o que indica os limites da analogia com
Balzac. Os filmes de Fassbinder não apenas criam mundos autônomos, como eles
representam mundos midiáticos, quer dizer, habitualmente repletos de citações,
referências emprestadas de jornais, de fotografias da imprensa, da música popular e,
sobretudo, de outros filmes. Uma das características de sua obra, que endossa provas de
sua acuidade política e testemunha seu senso de história, é precisamente essa consciência
da representação sempre gerando um espaço de realidade midiática. Dois momentos
distintos se encontram implicados: primeiro, Fassbinder nunca pretendeu apresentar as
pessoas como elas “são”, mas antes enquanto representam a si próprias, seja a imagem
que possuem de si próprias ou a imagem que é dada a conhecer a partir dos outros.
Segundo, toda realidade social em Fassbinder já comporta os marcos da mídia (de
massa), de forma que em cada instancia o meio já possui sua própria força material e não
funciona simplesmente como um veículo transparente. Este é o caso com o rádio em
LOLA e LILI MARLENE, a imprensa em MAMÃE KUSTER, e o cinema em MARIA
BRAUN. Porém é também verdade da literatura (como meio material, não como pré-
texto para material ficcional) em FONTANE EFFI BRIEST. Sons e música gravada,
especialmente no modo como Peer Raben elaborou suas trilhas, utilizando música
popular e clássica, os sucesso de Rocco Granata para O MERCADOR DAS QUATRO
ESTAÇÕES, as baladas de The Platters para AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA
VON KANT, a voz de Richard Tauber em BERLIM ALEXANDERPLATZ ou
Beethoven em JAILBAIT, pode-se encontrar uma invulgar sensibilidade para a
materialidade histórica do popular. Um exemplo da forte atração com essa realidade pré-
existente criada pela mídia audiovisual exerce sobre o mundo ficcional, ao ponto de
determinar seu registro emocional, são os créditos da abertura de LOLA, aonde a foto do
chanceler Konrad Adenauer pode ser vista, curvando para observar um gravador,
enquanto na banda sonora e sincronizado com os stills ouvimos a voz de Freddy Quinn,
cantando sobre o desejo de retornar. Duas Alemanhas – a política e a popular – unem-se
aqui de uma forma improvável, já que somente unidas poderia a realidade dos anos 50 se
tornar representável/representativa.
A realidade política que Fassbinder poderia desenhar de sua experiência pessoal foi a de,
essencialmente, quatro governos: o Cristão-Democrata da Guerra Fria, seja com Konrad
Adenauer ou sobre a sombra dele até meados dos anos 1960, a “grande coalizão”, seguida
pela governo social-democrata de centro-esquerda de Willy Brandt e pela social-
democracia de centro-direita de Helmut Schmidt. O mandato de Adenauer, que deu a
Alemanha Ocidental sua identidade política, durou de setembro de 1949 a outubro de
1963. Foi seguido pelo gabinete de Ludwig Erhard – que Adenauer frequentemente
criticava como tido sido o engenheiro do “milagre econômico” – que em 1966 foi
entregue a “grande coalização” social-democrata com Kurt Georg Kiesinger como
chanceler e Willy Brandt como seu deputado e ministro das relações exteriores. Em
setembro de 1969 o primeiro governo de maioria social-democrata chegou ao poder sob a
égide de Willy Brandt, coincidindo com um dos períodos mais turbulentos da história do
pós-guerra alemão, marcado pela prisão de estudantes, terrorismo de ultra-esquerda, uma
recessão econômica e os esforços determinados de Brandt de détente em relação aos
vizinhos orientais, a chamada Ostpolitik. Porém já pela época em que Brandt foi forçado
a renunciar, em 1974, uma virada conservadora passou a se tornar visível nas áreas do
debate e da política cultural domésticas, culminando nas leis de emergência que
restringiam as liberdades individuais (a infame Berufsverbot para, dentre outros, os
ativistas políticos) e expandiu os poderes dos serviços de segurança. O governo de
Helmut Schmidt, que sucedeu Brandt, meramente sublinhou o fato que a Alemanha
Ocidental havia se tornado um consenso democrático cauteloso e excessivamente
conservador. A coalização de Schmidt Social-Democracia-Livre Democracia foi o último
governo conhecido por Fassbinder, por volta do momento em que os livre democratas se
uniram aos sociais-democratas e pela época que os democratas-cristãos voltaram ao
poder com Helmut Kohl em outubro de 1982, Fassbinder já se encontrava morto há 4
meses.
Foi sobretudo o período de meados dos anos 1950 a meados dos anos 1970 que reteve a
atenção de Fassbinder, que tratou essas duas décadas como uma espécie de telescópio,
cujas partes poderiam ser arranjadas de forma a olhar para o passado da história da
burguesia alemã, da família, do casal heterossexual como desenvolvido desde a fundação
do Reich bismarckiano nos anos 1870. Num certo sentido, os filmes ambientados antes
de 1945 são mais preocupados com a “arqueologia” do pós-Segunda Guerra do que com
23
Harry Baer, por sua vez, considerou a série politicamente servil e oportunista: “Não foi radical o
suficiente para mim, achei-a trivial. Foi quando me retirei, de todo modo até O DIREITO DO MAIS
FORTE (...). Muitas pessoas acharam OITO HORAS NÃO FAZEM UM DIA verdadeiramente grande,
porém os personagens das avós eram por demais calculados e insinuados para mim.” In: Juliane Lorenz
(org.), Das Ganz Normale Chaos (Berlim: Henschel, 1995, p. 98).
os períodos de fato em questão, apesar de que, como veremos, eles fomentem uma série
de questões propriamente “políticas”. A causa inicial da virada de Fassbinder para a
política na Alemanha do pós-guerra foi, como mencionado, o projeto ALEMANHA NO
OUTONO e os planos para uma sequencia, Os Casamentos de Nossos Pais. Como outros
diretores que abordaram os conflitos sociais do final dos anos 60 e idos de 70, Fassbinder
se voltou para o tópico “Alemanha” sem a necessária premência, para compreender o
presente: nesse sentido ele foi um animal político.24Foi a crise do estado autoritário, a
legitimação do poder institucional e o Direito, e o papel simbólico do pai como chefe de
família que pôs os termos do conflito que marcou a República Federal durante os anos
70, enquanto os valores cristão-democratas foram seguidos pelos sociais-democratas e,
dentro da social-democracia, a liderança passou de Willy Brandt para Helmut Schmidt 25.
Por volta de meados dos anos 70, o sentimento foi bastante disseminado entre os
intelectuais e mesmo entre alguns políticos que algo de mais profundo se encontrava
errado na Alemanha Ocidental: em sua relação com a história alemã, sua auto-definição
enquanto nação, e especialmente na afinidade entre pais e filhos algo havia sido perdido.
Na esquerda extra-parlamentar, a noção que ganhou solidez foi a de que sucessivos
governos haviam desperdiçado oportunidades para distanciar a Alemanha da Guerra Fria,
e que depois de 1945 poderia ter existido uma via pacífica de socialismo que as duas
alemanhas falharam de levar a cabo ou nunca se permitiram explorar. Historiadores
sociais e críticos literários reinvestigaram o “grau zero” da sociedade de 1945, as
políticas públicas dos aliados, os sindicatos e os serviços secretos em fazer todo o
possível para o surgimento de uma sociedade menos covarde e egoísta ou grosseiramente
oportunista. Dentre os realizadores alemães, Jean-Marie Straub já havia, nos anos 1960,
com NÃO RECONCILIADOS (baseado no romance de Heinrich Boll), posto em pauta
uma diferente reconstrução da nação daquela que havia crescentemente se identificado
com o milagre econômico. O movimento anti-autoritário na esteira dos protestos
estudantis de 1968, a abertura em relação ao Oeste Europeu, e eventos tais como os
descritos em ALEMANHA NO OUTONO deram a ideia de uma “Alemanha” uma nova
atualização, antecipando em certo sentido, porém igualmente não compreendendo, os
termos do debate que se segue a Queda do Muro de Berlim e a Unificação Alemã em
1989/90, que uma vez mais deslocou dramaticamente o próprio terreno de todos esses
diálogos a respeito de nação e suas possíveis histórias. Apesar de não parecer assim hoje,
durante a década mais ativa de Fassbinder, a Alemanha Ocidental era ainda conhecida
amplamente por ser uma das mais frágeis democracias modernas. 26
Por volta de meados dos anos 70, uma nova avaliação da história recente da Alemanha
em filmes de longa-metragem podia, portanto, esperar encontrar amplo interesse de
público, porque se tornou crescentemente claro para aqueles que haviam crescido nos
anos 50 e 60 que a sociedade que havia se erigido no interior da Alemanha Ocidental não
havia rompido com o seu passado, e talvez não tenha nem mesmo desejado fazê-lo:
24
Ingrid Caven. “Entretien” in Cahiers du Cinema, 469, jun. de 1993, pp. 59-61.
25
Para uma visão geral da situação política da Alemanha Ocidental e Oriental nos anos 1970, ver Hartwig
Bogeholz, Die Deutschen nach dem Krieg: Eine Chronik (Reinbek: Rowolth, 1995).
26
Ver, por exemplo, Dan Diner (org.) Ist der Nationalsozialismus Geschichte? (Frankfurt: Fischer, 1987) e
Reinhard Kuhnl (org.) Streit ums Geschichtsbild. (Colônia: Pahl-Rugentein, 1987)]
Acredito que especialmente na Alemanha muito do que está
acontecendo agora mesmo indica que a situação está se
desenvolvendo em uma direção regressiva. De modo mais
preciso, eu poderia afirmar que em 1945, no final da guerra, as
chances que haviam existido para a Alemanha se renovar não
foram realizadas. Pelo contrário, as velhas estruturas e valores,
nos quais o nosso estado se assenta, agora enquanto democracia,
tem permanecido basicamente os mesmos. 27
27
Fassbinder citado em Berlin Tip, dez. 1992, pp. 26]
Com o sucesso internacional de MARIA BRAUN, Fassbinder foi amplamente reconhecido como um dos
28
mais agudos comentadores sobre a República Federal em um momento crucial, de acordo com Peter
Marthesheimer, Ulrich Gregor e Karlheinz Böhm, entrevistados em Hans Gunther Pflaum NÃO QUERO
APENAS QUE TODOS VOCÊS ME AMEM, ZDF, junho de 1992.
Como uma avaliação política da Alemanha Ocidental, a oportunidade perdida e a via não
tomada dificilmente era original, já que refletia não somente os consensos da esquerda
liberal sobre a República Federal nos anos 1960 como também racionalizava o
desapontamento dos liberais, e a ira da esquerda, lamentando seus próprios fracassos em
transformar as reinvindicações de 1968 em estruturas políticas mais permanentes. Ainda
que simpatizasse com essas causas, a atitude de Fassbinder para com a esquerda, fosse
sob a forma da oposição extra-parlamentar, os movimentos de liberação internacional ou
a Fração do Exército Vermelho, permaneceram distantes. Ele conhecia Holger Meins e
Horst Sohnlein (ambos membros do FEV), mas de acordo com Ingrid Caven, considerava
estúpida a ação direta e a guinada para a ação violenta e auto-destrutiva.29
Olhando para as próprias práticas de Fassbinder como realizador, torna-se claro que ele
não compartilhava da visão de que o colapso do capitalismo se encontrava iminente; ele
focava na energia que a circulação de bens, serviços e dinheiro gerava e, nesse aspecto,
era um anarquista que acreditava na revolução permanente, da qual o capitalismo era uma
manifestação significativa. Politicamente, a utopia foi para ele um ponto de vista
conceitual pelo qual observava o aqui-e-agora, não como um objetivo a ser trabalhado.
Mais importante ainda para sua obra, ele se encontrava frequentemente às turras com a
esquerda pós-68 em relação às questões de sexo e gênero, não acreditando que a luta por
uma maior igualdade devia esperar até que a luta de classes tivesse sido ganha. Também
recusava por muitas expectativas nos partidos políticos, e nunca forjou a ilusão de que o
sistema político da RFA pudesse proporcionar uma alternativa mais equânime. Por outro
lado, encontrava-se perfeitamente consciente do dilema peculiar da esquerda alemã, na
qual a própria oposição legal havia sido pegue: para muitos nos anos 1960 e 1970, por
exemplo, criticar a política nuclear alemã ou protestar contra sua medida de lei-e-ordem
significava se tornar suspeito de simpatia com a RDA, ser um agente pago ou, ainda pior,
29
Entrevista em Cahiers du Cinema, jun. 1993, p.60.
apoiar o terrorismo: uma espécie de duplo vínculo, aplicado até mesmo em relação a
humanistas liberais renomados como o vencedor do Prêmio Nobel, Heinrich Böll.30
Mesmo que nunca tenha se intimidado de pronunciar suas opiniões a respeito dos que se
encontravam no poder, sobre a corrupção, sobre pretextos ou abusos de privilégios,
Fassbinder parecia não ter muito interesse em outra forma de intervenção política, algo
altamente popular e valorizado nos anos 1970: o jornalismo investigativo e a
documentação da própria elite política de extrema-direita simpatizante com o
radicalismo. O romancista Erich Kuby ganhou notoriedade e se firmou durante os anos
1950, castigando os aspectos obscuros da nova democracia e satirizando a corrida por
poder e riqueza numa série de livros polêmicos. Nos anos 60, Bernt Engelmann publicou
guias detalhados do passado político comprometido da classe política e da elite
econômica da Alemanha Ocidental, porém a estrela dos anos 70 foi o jornalista
investigativo Günther Wallraff. Disfarçando-se de forma ainda mais audaciosa, ele havia
reportado sobre as condições de trabalho dos mineiros e dos imigrantes turcos,
infiltrando-se em negócios e corporações multinacionais, jornais de direita e organizações
religiosas para expor não somente as práticas viciadas e a conduta criminal, mas para
demonstrar igualmente quão frágil era a superfície da democracia alemã, sendo o país
ainda uma sociedade profundamente autoritária, hostilmente direitista e abertamente
discriminatória. Fassbinder parecia ter pouca paciência para esses heróis da esquerda, não
muito interesse nos escândalos públicos revelados a cada semana em revistas como Der
Spiegel, adquirida pelo editor Rudolf Augstein que em meados dos anos 70 foi resgatar
do prejuízo a Filmverlag der Autoren, a companhia de produção e distribuição que
Fassbinder possuía uma grande participação acionária. Relativamente poucos jornalistas
investigativos aparecem em seus filmes e, quando o fazem, como em MAMÃE KÜSTER
e O DESESPERO DE VERONIKA VOSS, são inescrupulosos oportunistas de tabloides
buscando um furo ou covardes auto-indulgentes afogando suas consciências em álcool.
Não é difícil encontrar por detrás desses cruéis jogos pirandellianos a ausência de
simpatia de Fassbinder por demagogos autonomeados ou sofismas jesuíticos quando se
transformam em retórica revolucionária sobre a luta de classes. E mesmo o cuidado com
que alguns fragmentos são unidos, principalmente um discurso de Marx sobre a mais-
valia numa pedreira assustadoramente branca, uma crucifixação encenada tendo ao fundo
uma montanha de carcaças de automóveis e o feroz discurso proveniente da Penthesilea
de Kleist, emitido por três mulheres com pinturas de guerra num aterro sanitário
fumegante, emprestam ao filme não somente uma gravidade sombria, sublinhada pelos
hinos religiosos cantados à capela ou acompanhados pelo bater dos tambores. Eles
indicam que Fassbinder está buscando formas de deixar seus personagens reterem suas
dignidades enquanto seres humanos, ao mesmo tempo distanciando-se ele próprio da
estupidez de seus atos e intenções, sejam oficiais ou de oposição, egomaníacas ou
altruísticas.
Penso que sou um dos poucos diretores alemães que possui uma
relação positiva com seus personagens (...) em alguns casos,
como quando o pai de uma garota em JAILBAT fala sobre a
guerra, sou indulgente ao ponto quase da irresponsabilidade.32
31
Para uma sinopse de MAMÃE KUSTERS, ver Apêndice 1: Filmografia Comentada.
32
Entrevista com Wilfred Wiegand em Jansen/Schütte, 1992, p.86
personagens destrutivos ou vis, de fato, deu origem a escândalos e controvérsias. A
simpatia por monstros domésticos tais como Margit Carstensen em AS LÁGRIMAS
AMARGAS DE PETRA VON KANT, Karlheinz Böhm em MARTHA, o marido de Effi,
Von Instetten em FONTANE EFFI BRIEST ou Peter Chatel em O DIREITO DO MAIS
FORTE foi interpretado como uma evidência que Fassbinder era suspeito de apreciar a
descrição da crueldade emocional.33
No caso de JAILBAIT, Franz Xaver Kroetz, o autor da peça na qual o filme é baseado,
achou a leitura de Fassbinder tão “irresponsável” que moveu uma ação judicial.
Contrapondo-se ao que chamou uma paródia “pornográfica” de sua peça, Kroetz
conseguiu impor um mandato que resultou em cortes e o lançamento do filme para um
público bastante limitado.34Fassbinder retrucou em uma carta aberta:
Caro Franz Xaver Kroetz, é uma pena que você não possa ser
completamente honesto. Por que se sentiu embaraçado em admitir
que você recusou minha oferta de trabalhar com você em um
roteiro que seria aceitável para ambos? (...) Você ficou
constrangido de deixar sua peça à deriva...Lembre-se daqueles
para quem você pretende escrever. Pense nas pessoas comuns,
pergunte a elas após um dia inteiro de trabalho se se divertem
com nosso filmes. Suas respostas talvez lhe causem surpresa (...).
Pondo a questão com certo pathos: é a primeira vez que você foi
compreendido (...). Tudo que está no filme se encontra também na
peça. Talvez isso agora o embarace, mas sem motivos, porque sua
peça não é má, honestamente falando. Seu, Rainer Werner
Fassbinder. 35
De forma perturbadora, existe muito amor em seus filmes, mesmo para aqueles que
praticam o mal, como se somente personagens moralmente ambíguos pudessem levar o
espectador a situação também de “dentro”, obrigando-o a observar e tentar compreender
como eles são. Como consequência, existe uma liberdade para Fassbinder retratar o mal,
no sentido de que podemos observar os protagonistas sem a necessidade do realizador de
polemizar ou dos espectadores ou do público se sentir superior. Esse aspecto foi o que
causou posições mais fortemente ofendidas, e não somente de Kroetz. Especialmente
quando Fassbinder toca na questão de grupos marginalizados ou oprimidos, encontrou-se
acusado de misoginia, de ser anti-homossexual e anti-semita. 36 Porém, como ele apontou:
33
No comunicado do lançamento de MARTHA, Fassbinder fez observações que foram efetuadas em uma
discussão com Margit Carstensen, “Ein Unterdruckungsgesprach: Männer Können Nicht so Perfekt
Unterdrucken, wie Frauen es Gern Hätten” (em inglês em Rentschler, 1998: pp.168-71). Ver igualmente a
discussão em Frauen und Film 35, 1987, pp. 92-6.
34
“Eu chamaria de obsceno o modo como o filme denuncia seus personagens. (...) O filme não vai além da
pornografia com um toque elegante de crítica social.” Film Befrein den Kopf, p. 135.
35
Originalmente em Die Abendzeitung, 12 de março de 1973. Reimpresso em Film Befrein den Kopf, pp.
123-4. Michael Töteberg assinala uma inversão curiosa. Em 1981 Fassbinder citou WILDWECHSEL como
um dos filmes mais “odiosos” do Novo Cinema Alemão, enquanto Kroetz, em 1984, admitiu que o filme
possuía qualidades definitivas.
36
Ver capítulo 7. Franfurt, German and Jews.
Tenho sempre mantido que alguém pode aprender mais sobre a
maioria a partir do comportamento das minorias. Posso entender
mais sobre os opressores, quando apresento as ações dos
oprimidos, ou melhor, quando os oprimidos tentam sobreviver
diante da opressão. Inicialmente, fiz filmes onde os opressores
eram vis e as vítimas infortunadas. Porém, no final das contas,
não é assim que ocorre. 37
Para se ter uma ideia de quão persistentemente ele cultivava sua escolha, poder-se-ia
somente relembrar os termos do conflito em sua primeira meia-dúzia de filmes: O
MACHÃO desvela um círculo vicioso na esfera das relações de trabalho em Gastarbeiter,
aonde esses excluídos do resto da sociedade encontram outros ainda mais despossuídos
que eles, a quem exploram. Uma semelhante espiral descendente orienta as dependências
sexuais de toda e qualquer forma (heterossexual e homossexual em O AMOR É MAIS
FRIO DO QUE A MORTE, DEUSES DA PESTE, O SOLDADO AMERICANO) aonde
a incompatibilidade entre amor e dinheiro é tornada explícita pela frequência com que os
filmes apresentam prostituição, isto é, amor por dinheiro. Inevitavelmente, enquanto a
busca por dinheiro pode parecer com uma forma unilateral de dependência, a busca por
amor e a entrega afetiva torna todos os personagens igualmente vulneráveis. Este drama
mais refinado de desejo e perda é o tema de filmes como AS LÁGRIMAS AMARGAS
DE PETRA VON KANT e EU SÓ QUERO QUE VOCÊS ME AMEM. Por outro lado,
esse tipo de exploração que são motivados por conflitos de raça e classe (como em
WHITE ou OITO HORAS NÃO FAZEM UM DIA) podem, no ambiente doméstico da
família e do casal também acabar se tornando o ponto de equilíbrio, e mesmo o pivô da
estabilidade mútua na relação (como brevemente para Emmi e Ali em O MEDO
DEVORA A ALMA, de quem se pode afirmar que encontram a felicidade mútua ao
“usarem” um ao outro). E é quando examina a mais sutilmente, e igualmente devastadora,
dinâmica da exploração dentro do casal que o ponto de vista “de fora” eventualmente dá
lugar a um ponto de vista “de dentro”.
Quando um filme põe classe e sexo em linhas paralelas, como faz O DIREITO DO MAIS
FORTE, a história de um herói proletário que é tanto sexualmente explorado e
economicamente arruinado por seu amante burguês, ainda que sua falta de educação, seus
modos rústicos e ingênua adulação dos valores da classe média tornem-no um alvo fácil
para as piadas dos esnobes que ele tanto admira, a narrativa pode parecer facilmente
didática, por aparentar a ausência da dimensão de justiça poética ou reviravolta irônica
que dá as etapas do enredo de Fassbinder uma forma satisfatoriamente austera.
Entretanto, O DIREITO DO MAIS FORTE é o tipo do filme aonde o ponto de vista é
mais complexo e interessante que o padrão formal, daí o porque do filme marcar um certo
beco sem saída: a perspectiva (politicamente correta) observa somente um esquematismo
abstrato ou um devastador pessimismo absoluto, percebido como “reacionário” à sua
época numa situação – 1974 – que os homossexuais lutavam por uma representação mais
justa e positiva na mídia.43 É também digno de lembrar quão únicos foram os filmes
inicias de Fassbinder: preocupados em explorar as reinvindicações conflitantes de
identidade sexual e de classe, eles descrevem situações humanas cotidianas com uma
auto-evidência causal jamais vista antes no cinema (e televisão) do pós-guerra alemão.
Antes de tudo, a subjetividade e o eu social são representados como esferas paralelas,
aonde a opressão sexual e a família patriarcal refletem as pressões sociais mais amplas do
capitalismo e da ideologia burguesa. É uma congruência que preocupava a esquerda
alemã e o movimento anti-autoritário mais do que praticamente qualquer outro tópico.
44
Porém, mais do que tentar uma forma de libertá-los, apresentando seus protagonistas
chegando a uma tomada de consciência, rompendo com a família para se tornarem
militantes, que era a demanda de uma certa “prática de filme político” 45 46, Fassbinder
43
Dentre os ensaios escritos por gays, poder-se-ia mencionar Richard Dyer, “Reading Fassbinder Sexual
Politics” (in Rayns, 1980: pp. 54-64) e Andrew Britton, “Foxed”, Jump Cut 16, novembro de 1977. Se se
aplicar o “ponto de vista interior” a O DIREITO DO MAIS FORTE e outros filmes da fase intermediária
de Fassbinder, uma perspectiva algo diferente emerge. [nota de rodapé: “Quanto mais fatalista um filme é,
quanto mais cheio de esperança...” Entrevista com Norbert Sparrow, Cineaste VIII/2 (Outuno 1977), p.20.
44
Dentre os muitos exemplos dos anos 70, ver Michael Schneider, Marxismus and Pyschoanalyse
(Frankfurt: Surkhamp, 1972) e Bruno Reimann, Psychoanalyse und Gesselschaftheorie
(Darmstadt/Neuwied: Luchterhandm, 1973.
45
O debate sobre os filmes de trabalhadores na Alemanha é documentado em R. Collins, V. Porter. WDR
and the Arbeit Film: Fassbinder and Others. Londres: BFI, 1976] e da teoria de cinema “realista-
progressista.
aparenta deixar seus personagens em pleno desespero.47 Entretanto, os críticos que
argumentam que Fassbinder abandona seus heróis ao próprio desespero e o acusam de
derrotismo talvez estejam adotando uma leitura somente “de fora”, da qual a miséria
implacável dos personagens de fato aparenta uma postura vitimizada, fazendo com que
cada nova tortura ou humilhação pareça ser gratuitamente sádica.
Contra tal veredito, é importante definir a possibilidade que os filmes aderem em sua
estrutura formal e narrativa ao redor de nós cada vez mais apertados da exploração
mútua, porque Fassbinder deseja apontar para um bloqueio, não exatamente da psique de
seus personagens, mas dos anseios programáticos ativistas e críticos de suas plateias. Isso
é particularmente evidentemente em filmes após 1971, tais como O MERCADOR DAS
QUATRO ESTAÇÕES, O MEDO DEVORA A ALMA, O DIREITO DO MAIS
FORTE, MAMÃE KUSTERS VAI PARA O CÉU, MEDO DO MEDO e EU QUERO
APENAS QUE VOCÊS ME AMEM. Eles também, possuem em suas estruturas
dramáticos o “círculo vicioso” em que a ajuda oferecida invariavelmente agrava o
processo. Se existe sadismo, ele é, entretanto, dirigido não aos protagonistas, mas ao
público, talvez tão facilmente convencido de sua superioridade política iluminada quando
confrontado com tipos simplórios como Franz e Ali, Hans e Fox, Emma e Margot. Por
copiosamente insistir em situações aonde os personagens meramente se afundam a si
próprios cada vez mais profundamente em seus dilemas, Fassbinder chama a atenção a
subjetividade, onde a compulsão a repetir, como outras manifestações da pulsão de
morte, possui seu lugar próprio na econômica psíquica deles – e, por extensão, de seus
espectadores. Uma proposição essencialmente melodramática nos permite observar até
onde Fassbinder vai para se manter no “nível” de seus personagens. Ainda que esse
liberalismo de “estar no nível” também implique se encontrar no nível do público (“o
que almejo é um realismo aberto...que não ponha as pessoas na defensiva” 48) e
proporcione uma espécie de horizonte moral que abandone a certeza da ira em favor de
atrair os espectadores para uma visão mais generosa das falhas humanas, mas também
abrindo-se para um inter-relação mais complexa de reconhecimento e identificação:
46
Por exemplo, o debate entre Colin McArthur e Colin McCabe sobre o texto realista-progressita in:
Christopher Williams (org.) Realism and the Cinema. Londres: BFI, 1980.
47
A frase falada por Fassbinder (como personagem) em CUIDADO COM A PUTA SAGRADA: “o único
sentimento que eu posso aceitar é o desespero” é comentada no terceiro capítulo, Murder, Merger, Suicide:
The Politics of Despair.
48
Entrevista com Wilfried Wiegand, Jansen/Schütte, 1992, p. 89.
49
Jansen/Schütte, 1992, p. 92.
modelo sempre contém dentro de si aquilo que se opõe a ele.” 50 Uma interpretação, por
exemplo, de EU QUERO QUE VOCÊS ME AMEM que veja o pai meramente como
representante do patriarcado, e portanto do capitalismo em sua esfera doméstica, faria do
herói, Peter, um rebelde na imagem do opressor – posição que a assistente social no filme
tende a tomar. Simpática quanto ela possa ser, o filme questiona sua (narrativa de)
autoridade mostrando como sua recomendação, por mais que não agrave o estado
psíquico e moral de Peter, no entanto, não o alcança naquilo que o perturba. Como no
caso de PSICOSE de Hitchcock, as explicações médicas, ideológicas ou institucionais do
comportamento perturbado em Fassbinder frequentemente funcionam como um sinal de
sua própria insuficiência. Essa convicção parece definir o ponto estratégico ao qual se
torna mais importante para Fassbinder ter acesso a um meio de comunicação de massa
que ser “politicamente correto”: ao menos nessa atitude aparentemente não engajada foi,
poder-se-ia ainda argumentar, “representativo” para as plateias com as quais desejava se
comunicar, mesmo se contrapondo ao “pensamento vitimizado” e, portanto, desafiando
também um aspecto central da política identitária contemporânea. 51
Gustav Freytag, Soll und Haben, Leipzig, 1855. Foi adaptado para o cinema em 1924 (dirigida por Carl
52
Wihelm).
contra a aristocracia feudal proprietária de terras baseia-se explícita e implicitamente em
um terceiro termo, a saber, os judeus alemães, que proporcionam a frustração moral e
psicológica para sua definição do que é ser “alemão” na véspera da fundação do estado-
nação (bismarckiano). A identificação de transferência sintomática da parte de seu
autor/narrador com seu herói (ariano) e anti-herói (judeu) teria permitido a Fassbinder
documentar a ideologia do nacionalismo alemão em formação. Concebido como uma
série de televisão “familiar” para a temporada de 1977, a adaptação foi cancelada pelo
diretor-geral da WDR, intimidado por uma campanha da imprensa contra Fassbinder
tendo como motivo o anti-semitismo do romance. Sem se dirigir as insinuações de ordem
pessoal contra si, Fassbinder defendeu o valor do romance para o público de hoje:
O que aparentou atrair Fassbinder para o romance foi também outra característica, que é a
afirmar os traços paranoicos que ele via na construção de Freytag da identidade burguesa
alemã. Essa foi a luta entre Freytag, o ideólogo anti-semita e Freytag o jornalista: o
último interessado em demasiado numa boa história – “excitante, sentimental, dramática,
misteriosa” – não deveria prejudicar o tendencioso e racista editorialista que lhe precedia.
Tais tensões, de acordo com Fassbinder, demonstram o valor dessa ficção popular,
enquanto proporcionam ao espectador essas contradições para pensar: “É nosso trabalho,
portanto, voltar as tramas de uma narrativa sentimental e sensacionalista para os seus pés,
os pés da história e, então, tornar a ideologia de Freytag transparente enquanto
potencialmente fascista.”54 Fassbinder aqui permanece fiel a sua preferência pelo
53
Publicado primeiro em Die Zeit, 11/03/77. Reimpresso em Film Befrien den Kopf, p. 36.
54
Filme Befrein den Kopf, p.37.
melodrama como auto-revelador, porém “crítico” 55, graças às suas próprias
inconsistências internas. Ele também define sua atitude para com o popular: não
desprezar nem as exigências de entretenimento de um público do horário nobre da
televisão nem renegar o caráter televisivo de educar assim como entreter.
O fato que Soll und Haden tenha sido cancelado demonstra quão delicado foi o equilíbrio
entre os anseios dos serviços de transmissão televisiva públicos por artistas de proa
encabeçando as mais custosas produções de adaptações do patrimônio literário nacional
para um grande público e a aproximação cautelosa que tiveram com o que pensavam que
essas figuras de proa poderiam ser confiadas a. Após o prematuro encerramento de OITO
HORAS NÃO FAZEM UM DIA e do remanejamento da segunda parte de BOLWIESER
para tarde da noite na ZDF, essa foi uma outra prova para Fassbinder do porque o
formato das séries de televisão era o prêmio a ser visado para alguém que desejasse atrair
a atenção de um público nacional56
Os limites da “opinião pública” para tolerar tal ambiguidade quando veiculado por um
meio público representativo foram testados por Fassbinder uma vez mais em 1980,
quando seu BERLIN ALEXANDERPLATZ foi pela primeira vez ao ar em meio a uma
verdadeira campanha difamatória contra o realizador, por atrever-se a gastar fundos
públicos numa “porca auto-indulgência”57 Talvez falando através de um nome
reconhecido da literatura, fosse ele Freytag, Graf ou Döblin não tivesse, depois de tudo,
ampliado sua dimensão para um autor falando em nome de qualquer um, fosse esse um
alguém bem situado ou marginal e, nesse sentido também, Fassbinder não era
representativo.
55
Soll und Raben (...) é uma história excitante e bem construída, cheia de suspense, quase como se fosse
escrita para o cinema. Ela é entretenimento (...) e feita para divertir, dar prazer aqueles que descobrirem as
lacunas e remendos mal costurados em sua própria realidade, encorajando-o a reconhecer umas poucas
contradições que criam nossa realidade.” Idem, p.39
56
Limmer, 1981, p. 78.
57
Warun Denn Arger mit Franz Biberkopf”. Frankfurter Algemeinen Zeitung, 29/12/1980.
58
Uma frase de Fassbinder utilizada pelo material publicitário da Filmverlag der Autoren em Cannes,
maio de 1979.
com as tensões entre uma equipe de filmagem numa locação remota esperando por um
cineasta – e o dinheiro – chegar, é habitualmente considerado como um filme aberto à la
clef sobre a trupe e a filmagem de WHITY, o western ambientado no sudeste realizado na
Espanha para uma companhia produtora comandada por Ulli Lommel e sua esposa Katrin
Schaake mais cedo nesse mesmo ano . Porém, igualmente, é uma análise da violência
gerada dentro de círculos fechados, precisamente por conta dos laços que os unem, e os
tornam mútua e grandemente dependentes uns dos outros e, além disso tudo, dependentes
de um líder, particularmente um que possam unir seu amor e ódio. CUIDADO COM A
PUTA SAGRADA tem sido sempre visto com um dos divisores de águas na obra de
Fassbinder59 , mesmo que despojado de sua referência autobiográfica, sua atmosfera de
agressão mal humorada maximizada pelo tédio e ansiedade se adequa bastante ao
ambiente de trabalho de um grupo político e das comunas estudantis dos idos dos anos
70, esperando por algum tipo de desanuviamento do clima abafado dos protestos anti-
Guerra do Vietnã ou novidades sobre a campanha de Che Guevara na Bolívia, desejando
que a guerra fosse trazida para o ambiente doméstico e revelassem o inimigo que pudesse
ser facilmente identificado e, portanto, formalmente atacado.
Nesse sentido, Fassbinder não teria que esperar pelos eventos de 1977 que resultaram em
ALEMANHA NO OUTONO para compreender o nível que a provocação ativista foi
orientada em direção a fazer com que o estado burguês sacasse o ferro das luvas de
veludo da democracia liberal e apresentasse sua própria leitura para a violência. Atraído
intelectualmente pelo radicalismo impiedoso do grupo Baader-Meinhof, porém
igualmente bastante conscientes que o frenesi de suas ações induziriam o corpo político a
isola-los da efetividade e apoio da massa, Fassbinder possuía fé em seu próprio projeto
político, que era o de fazer filmes que comovessem o público, mesmo que a despeito
deles próprios. Não foi uma questão de realizar filmes que “expunha” o estado “não
liberal” dos condenados da FEV (“Fração do Exército Vermelho”, o nome que o grupo
Baader-Meinhof deu a si próprio), mas por no quadro os elementos interiores de angústia,
paranoia e tensão insuportável resultantes.60
Para um dramaturgo e contador de histórias como Fassbinder, portanto, a política de
esquerda se tornou um tema a partir do momento em que o extremismo foi capturado no
labirinto de espelhos e a análise política e a projeção paranoica coincidiram, enquanto os
militantes ajudavam a criar o inimigo que deveriam combater. O que o atingiu
particularmente em meados dos anos 70, durante os anos mais turbulentos da República
Federal, foi que na esfera da política, a mais descompromissada visão crítica (o ponto de
vista de fora) poderia se tornar o mais cúmplice: jogando certo nas mãos do “inimigo”.
59
Algo que o próprio Fassbinder corroborava: “Com CUIDADO COM A PUTA SAGRADA se iniciou
para mim uma nova e decisiva fase” Entrevisa com Wilfried Wiegand, Jansen/Schütte, 1992, p.88. Ver
também entrevista com Peter W. Jansen: “Devo admitir uma vez mais, se existe um desespero maior que
todos, esse é o anterior [ao momento da filmagem]. O processo de aprendizagem que ocorre durante a
filmagem e que é sempre uma experiência profundamente prazerosa. Jansen/Schütte, 1992, p. 114.
60
Eu cheguei a ele e disse: ‘Acabei de ler o roteiro de MAMÃE KUSTERS VAI PARA O CÉU. Gostei
dele, só teve uma coisa que não entendi: eu sei que você é contra a direita, sei que você é contra a esquerda,
você é contra os extremistas, contra os de baixo, contra os de cima, contra os partidos políticos, contra a
religião estabelecida – então, você é a favor do que?’. Ele olhou prá mim por um momento e então
replicou:’Penso que apenas percebo que algo não cheira bem, se é da direita ou esquerda, de cima ou de
baixo, eu não poderia me importar menos. Quando percebo que fede, atiro em todas as direções.’”
Karlheinz Bohn. “Fliessbanderbeit ist Schwerer” in Lorenz, 1995, p. 319
Essa foi de fato uma das lições mais amargas para Fassbinder, mas provocou igualmente
uma das mais divertidas narrativas de acerto de contas com a “esquerda” que
permaneceram até o final da década de 1970, com A TERCEIRA GERAÇÃO. O título é
explicado por Fassbinder:
O filme era para originalmente ser realizado com verbas da televisão (pela Westdeutsch
Rundfunk) mas aqui, também, a emissora abandonou o projeto no último momento, com
medo de tocar em um ponto demasiado sensível, como igualmente fez o Senado de
Berlim, que na época fornecia subsídios aos filmes que utilizavam locações e facilidades
em Berlim. Fassbinder, que alegou somente ter tido notícia de tais decisões dias antes
iniciar a filmagem, apesar de tudo seguiu adiante, em parte com seu próprio dinheiro, em
parte por um acordo de co-produção arranjado às pressas com a Filmverlag der Autoren.61
61
Entrevista com Theo Hinz em Lorenz, 1994, p. 245-6, mas também Katz, 1987, pp. 145-54.
62
Jan Dawson, “The Sacred Terror”, Sight and Sound, outono de 1979, p. 242-5. E Anarquia da Fantasia,.
ele lida foram capturadas dentro de um conjunto de termos que são aplicados de forma
mais ampla que a uma situação específica e, depois, que o cuidadoso trabalho tanto com
o som quanto com a imagem criam um outro tipo de realidade complementar, mais no
interior da cabeça (de cada um) que em qualquer lugar ou período específico (mesmo que
alguns dos marcos típicos de Berlim sejam claramente reconhecíveis, tais como a estrela
giratória da Mercedes no Centro Europa e as notícias nas telas de tv juntamente com os
trajes de carnaval permitem precisar uma data). Poder-se-ia observá-lo também como
fazendo companhia a WORLD ON A WIRE, ambientado em uma realidade de ficção-
científica, e sobretudo possuindo a característica de parábola ou de uma “peça modelo”
brechtiniana.63
Pela forma do herói fassbinderiano evitar responder a esse falso mandato, evitar se tornar
um terrorista, é por sua negatividade, sua recusa a “confrontar” o sistema ou se rebelar
contra ele. Em A TERCEIRA GERAÇÃO os terroristas são ativistas, porém não possuem
uma plataforma discursiva, que é onde diferem fundamentalmente de heróis tais como
Hans, Fox ou os diversos Franz (dos quais um se encontra em A TERCEIRA GERAÇÃO
e não esboça qualquer reação ao ser baleado).66 Como será discutido nos próximos
capítulos, o herói fassbinderiano atinge uma posição de fala tomando o “sistema” como
algo literal, quer dizer, acreditando na igualdade, no amor, na generosidade e na
confiança. É nesse sentido que O DIREITO DO MAIS FORTE triunfa sobre seus cínicos
exploradores, já que responde a “demanda” por amor, e Mamãe Kusters vai para o céu
porque, também, responde à demanda de justiça para seu marido. O que dizem pode
parecer equivocado, assim como mesmo ocasionalmente o que fazem, porém a “posição”
em que permanecem, de onde falam é justo e, por isso, nesse sentido peculiarmente
específico, “representativo”.
66
Wilhelm Roth é reminiscente do herói suicida mascarado como assassinado em Le Diable Probablement,
de Robert Bresson, sendo de fato um clipe dele incluído no filme de Fassbinder. Jansen/Schütte, 1992: 225.
chamar micro-estruturas de traição, de delação, de identificação excessiva e desafetos
através dos quais o “sistema” gera seu próprio “outro” e também, em última instância,
fala para esse “outro”. Daí as complicadas linhas de força que unem os personagens em A
TERCEIRA GERAÇÃO, onde Hanna Schygulla é tanto secretária do diretor quanto
membra de uma célula terrorista e Volker Spengler possui uma rede de terroristas
infiltrados, os trai, quando capturado, sendo curiosamente vulnerável e inseguro, como se
houvesse saído do mundo de NUM ANO DE TREZE LUAS. Todos os personagens
deslizam sem grande esforço de seus trabalhos diurnos para suas atividades noturnas,
provando quão reversíveis seus egos e identidades (constantemente ensaiando seus nomes
falsos e álibis) mas também quão “integrados” são em seus disparatados e aparentemente
incompatíveis estilos de vida.
O maior recurso que Fassbinder implanta para dar a esses mundos imediatamente
“materialidade” e uma dinâmica é seu uso do som, de diálogos sobrepostos, os
fragmentos da imagem da televisão ou do som do rádio contribuindo para um mundo
disposto em camadas, ao mesmo tempo que plano como um monitor, aparentando
ausência de profundidade, mas intensificando e acelerando a interação. Como se uma
nova forma de regular proximidade e distância fosse se estabelecendo por si própria, com
outras regras e novas formas de inter-relação pessoais emergindo de uma topografia
eletrônica de espaço sonoro, música, ruídos e imagens filtradas. 67 Isso dá ao filme de
Fassbinder uma dupla reflexividade, resolvendo igualmente a tensão entre o mundo da
mídia – onipresente em tudo de Fassbinder – e os sentimentos e as paixões humanas.
Esses prosperam e energizam a si próprios ao imergirem completamente na mídia
destacando como os espaços são sempre interferidos e perturbados em Fassbinder em
oposição, digamos, aos espaços contemplativos de Wim Wenders.
67
Numa entrevista, Fassbinder chamou a saturação midiática do filme uma espécie de “terrorismo aurático
(Schallterror)”.
* n.do t.: em alemão no original, termo para designar carnaval.
ganância pessoal, tendo como motivo o lucro ou a expansão dos mercados, o corpo
político manifesta não o que há de estático nas instituições hierárquicas, mas irradia
movimento, liberado através de sua miríade de conspirações e conluios, seu comércio de
drogas ou de qualquer outro tipo, uma espécie de espiral frenética de energia, regulada ao
redor dos polos magnéticos da sexualidade, alta tecnologia, cultura de massa e os novos
modos de luta pelo poder que eles promovem mesmo na esfera privada. 68 Se, como
levantado no início, a análise “política” de Fassbinder pode ter sido convencional, sua
análise “social”, todavia, tem um olhar para uma certa dinâmica que poderia ser
reconhecível como contemporânea, onde corrupção, drogas, crime, terrorismo significam
ao mesmo tempo “infortúnios sociais” e “mecanismos de segurança”. A TERCEIRA
GERAÇÃO demonstra que a sociedade – de modo a funcionar perfeitamente – deve
construir em suas estruturas algo como circuitos não convencionais, “ilegais”, que
permitem uma confrontação direta, não mediada, entre ricos e pobres, o entrelaçamento
dos poderosos com os sem poder, dos estabelecidos com os oprimidos, do “lumpem-
proletariado” com os “arrivistas”: daí o fascínio de Fassbinder com os proxenetas,
traficantes, agentes duplos e provocadores. Essas figuras sombrias são, em muitos dos
filmes de Fassbinder, mais confiáveis e simpáticas que todos os cidadãos “direitos”, os
representantes oficiais, os políticos ou outros apoiadores da ordem social estabelecida que
o diretor nunca pôs em seus filmes. No limite, qualquer forma de dependência e
interdependência entre indivíduos – mesmo aquelas que possam ser nomeadas como
“exploração” – é preferível para o ego autônomo, a auto-confiança e outros ideais de
desenvolvimento pessoal dentro da existência burguesa. Somente tais formas,
aparentemente, dão acesso às energias pelas quais as relações “extra-territoriais”
representadas nos filmes (através das drogas, dinheiro e sexo) se tornam possíveis.
Mesmo que, portanto, nem sua persona nem seus personagens, encaixam-se no papel de
representativos, uma série de outras configurações do universo de Fassbinder parecem
responder ao artista-autor-diretor de cinema enquanto “figuras representativas” no âmbito
doméstico e embaixador da boa vontade no estrangeiro: além do “terrorista”
autonomeado, presumindo falar sobre um tema histórico (desaparecido) e revolucionário,
ou comandando uma célula (fascista, sado-masoquista), claque ou grupo como líder
carismático e os heróis sacrificados indo para seu inevitável e previsível fim como
cordeiros indo para a matança, e respondendo a seu modo a um mandato simbólico 69 ,
existe uma terceira possibilidade, frequentemente reservada aos fortes personagens
femininos (as “Mata Haris dos Milagres Econômicos”) e, como veremos, algumas vezes
ocupadas pelo “próprio” Fassbinder: o de mensageiro e negociante do mercado negro,
vivendo e alimentando-se do sistema, necessários para o sistema, mas também
sacrificados pelo sistema.
Talvez esta seja outra razão pelo qual um período da Alemanha chegou ao fim com sua
morte em 1982. O Novo Cinema Alemão como realização autoral era também
“politicamente motivado”, no sentido de que a infra-estrutura econômica do cinema e o
prestígio cultural tinham se aprimorado em grande parte graças às decisões tomadas pela
coalização liderada por Willy Brandt para que no início dos anos 80, realizadores alemães
tais como Volker Schlondorff e Wolfgang Petersen (cujo drama sobre o submarino da
Segunda Guerra O BARCO – INFERNO NO MAR, se transformou em sucesso
internacional) estivessem já a caminho de Hollywood70 No ano da morte de Fassbinder,
Helmut Kohl se tornou primeiro-ministro, e com ele uma figura oficial passou a
“representar” à Alemanha cujo verdadeiro apelo, tanto em casa quanto externamente, era
o fato de que aparentava ter sido tão pouco traumatizado pela história 71: confortável em
ser alemão, gemülicht em sua potência física, provinciano em seu conhecimento e
“popular” em seus gostos, tendo sido hábil na engenharia das reconciliações políticas
(como nos vários encontros de alto nível Mitterand-Kohl, Reagan-Kohl, Gorbachev-
Kohl) que eventualmente tornariam ainda mais plausível para ele angariar a maior parte
70
Schlondorff desde então retornou à Alemanha, para fazer Euro-cinema de custosos orçamentos, enquanto
Petersen, juntamente com o diretor Paul Verhoeven e colegas alemães como Uli Edel e Roland Emmerich,
tornou-se um bem sucedido diretor hollywoodiano. Ironicamente, isso era o que Fassbinder frequentemente
professava, e somente se pode especular que caminho ele teria tomado.
71
Kohl cunhou essa frase: “Abençoados com a graça de um nascimento tardio”, dentre os quais ele incluía
a si próprio.
do crédito pela unificação alemã. Com Kohl, a questão inteira das figuras do “crítico x
representativo” uma vez mais tomam outra completa guinada, para tanto, como primeiro-
ministro da Tendenzwende, ele será lembrado como o político que ajudou os alemães a se
tornarem “normais” novamente, tanto para eles próprios como para os outros. Embora ao
longo de todos os anos 70, Brandt sutilmente sentiu que a história alemã precisava ser
reescrita por conta de Hitler e da culpa do Holocausto e de tantos outros crimes que
haviam tornado cada alemão, “representativo”, sendo apresentado ao Gueto de Varsóvia
como um testemunho à guisa da expiação, em nome de seu país, a reescrita de Kohl da
história alemã foi bem diferente. É verdade, o período nazista foi também “escrito no”
(Bitburg e Bergen Belsen, museus de história alemães em Bonn e Berlim), mas não havia
mais razão para que a história tivesse que ser reescrita. 72 Durante os anos 70, é tentador
se afirmar que Willy Brandt possui em Fassbinder um similar companheiro-alemão
“representativo”: uma contra-figura mas igualmente uma figura complementar.
Fassbinder também reescreveu a história do pós-guerra alemão, agora em imagens de seu
cinema-história, que incluíam a UFA e o período nazista, e através deles um olhar severo
sobre o próprio campo histórico, enquanto arena igualmente ambígua de representações
em disputa. Na obra de Fassbinder, o campo do visível, do ver e ser visto, da imagm e do
corpo, do espetáculo e do evento, em resumo da política do “ego” e da “identidade” pode
ser definida diferentemente do sentido de ser representativo e, com isso, pode ter ajudado
a redefinir o cinema e suas representações da história. Esse é o tema dos capítulos que se
seguem.
72
Willy Brandt é visivelmente o único primeiro-ministro que não é “negativo” na série de retratos que vai
de Hitler a Helmut Schmidt ao final de O CASAMENTO DE MARIA BRAUN.