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SOMBRAS DO MURO DE BERLIM: A QUEDA DO MURO SOB A ÓTICA DO


CINEMA ALEMÃO

Beatriz Figlino1

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar a história do muro de Berlim, inserida no
contexto da Guerra Fria, a fim de compreender tanto as mudanças que a
Alemanha teve de passar após a queda do muro de Berlim em 1989 como a
consequente reunificação do país em 1990. Além de compreender as causas
da construção desta barreira física, esse artigo busca compreender as
consequências da reunificação das duas Alemanhas, a República Democrática
Alemã (RDA) e a República Federal da Alemanha (RFA), no contexto da
globalização. Para tanto analisam-se os filmes Adeus, Lênin! e A vida dos
outros a fim de ilustrar e compreender tais adaptações – bem como
compreender as diferenças sociais entre as duas Alemanhas –, inserindo nas
análises as permanências e rupturas referentes ao processo da reunificação
alemã.

Palavras-chave: Alemanha. Reunificação. República Democrática Alemã.


República Federal da Alemanha. República de Berlim. Muro de Berlim. Queda
do muro de Berlim. Fim da Guerra Fria. Adeus, Lênin!. A vida dos outros.
Cinema alemão. Guerra Fria. Fim da Guerra Fria.

1
Beatriz Figlino é formada em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Belas Artes de
São Paulo.
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ABSTRACT

This article has the objective of analyzing Berlin Wall’s history, within the
conjuncture of Cold War, in order to comprehend both the changes Germany
had to face after the Berlin Wall fall in 1989 and the consequent country
reunification in 1990. Besides, this article aims to comprehend the
consequences of reunifying two Germanys, the Democratic Republic of
Germany (DRG) and the Federal Republic of Germany (FRG), within the
context of globalization. Therefore the films Goodbye, Lenin! And The lives of
the others are analyzed in this article in order to illustrate such adaptations – as
well as the social differences between two Germanys –, including the
continuities and ruptures referring the German reunification process.

Key words: Germany. Reunification. Democratic Republic of Germany. Federal


Republic of Germany. Berlin Republic. Berlin Wall. Berlin Wall Fall. Goodbye,
Lenin!. The lives of the others. German cinema. Cold War. Cold War end.
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1. INTRODUÇÃO

Os países do Eixo – Japão, Itália e Alemanha – tinham pretensões


hegemônicas no sistema internacional, pretensões essas baseadas em seus
respectivos ideais nacionalistas, com destaque para o nazismo (Alemanha) e
para o fascismo (Itália), impulsionando os países Aliados – Estados Unidos da
América (EUA), França, União das Repúblicas Soviéticas Socialistas (URSS) –
a intervirem em tais pretensões a fim de manter a estabilidade da balança de
poder, ocasionando a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Dentre as quatro potências vencedoras desse conflito bélico, as
protagonistas da Guerra Fria foram a URSS e os EUA, cujos modos de
produção e as ideologias eram antagônicos: socialismo soviético e
neoliberalismo econômico (capitalismo), respectivamente.
O território alemão foi ocupado pelos países vencedores da Segunda
Guerra Mundial e, posteriormente, dividido em zonas de influência, assim como
Berlim: a cidade se tornara uma pequena ilha de ocupações diversas dentro da
zona de influência soviética. O objetivo de dividir a capital e o território alemães
era evitar que a Alemanha viesse a ser novamente dominada pelo sentimento
de revanchismo de guerra após sua derrota na Segunda Guerra Mundial (uma
vez que esse sentimento prevaleceu na Alemanha após a Primeira Guerra
Mundial), levando a comunidade internacional ao maior conflito bélico da
história da humanidade.
O muro de Berlim foi construído em 1961, 16 anos após a divisão da
Alemanha em dois Estados, um parte da zona de influência capitalista, e o
outro, da soviética. Ambos os Estados se submetiam às potências
hegemônicas, não sendo autônomas e responsáveis pelos próprios destinos,
apesar de serem reconhecidos como Estados soberanos. Ainda que a divisão
objetivasse a convivência pacífica entre EUA e URSS na cidade, Berlim
continuou sendo epicentro das tensões da Guerra Fria.
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Com o advento da queda do muro de Berlim (1989), a Alemanha pôde ter


seu caminho livre à reunificação e, consequentemente, teve de atravessar
mudanças significativas para adaptar o país, no tocante a suas: política,
economia e sociedade, bem como à nova conjuntura da globalização – sendo
que o sucesso das duas primeiras dependia da coesão interna entre
sociedades tão próximas geograficamente, porém tão distintas em suas
culturas (modos de vida e visão de mundo).
À vista disso, o estudo das permanências e das rupturas da queda do muro
de Berlim e da consequente reunificação alemã, é essencial para a
compreensão da dinâmica da atual sociedade alemã (inserida na conjuntura da
globalização) no que tange a construção de laços históricos e, assim, de uma
identidade interna coesa, ainda que sua reunificação seja recente e sua coesão
interna se encontre em estágio inicial de construção.

2. A GUERRA FRIA SOB AS LENTES DE FRED HALLIDAY

O período que se estende após o fim da Segunda Guerra Mundial (1945)


até o final do século XX é denominado de “Guerra Fria”. Este termo foi cunhado
por não existir conflito bélico direto entre as potências, mas sim entre seus
respectivos aliados. Embora o conflito ideológico fosse indireto, havia o perigo
eminente de guerra, uma vez que as potências hegemônicas, EUA e URSS,
eram detentoras da tecnologia nuclear. A deterrência, no entanto, fez com que
a competição se desse nos campos econômico e cultural: as potências não
atiraram armas uma contra a outra, mas se atacaram através do cinema, da
música e da propaganda (ARBEX, 1997, p. 19-20).
Ao contrário do que teoria do Realismo defende, Fred Halliday, téorico
irlandês, afirma que a organização interna dos Estados influencia no seu
comportamento no sistema internacional. A Guerra Fria se caracteriza por um
conflito intersistêmico: um conflito interestatal e intersocietal entre dois
sistemas antagônicos, cujo objetivo principal da disputa era melhorar a própria
imagem em relação ao outro sistema e prevalecer.
O conceito de “sistema” se relaciona à ordem interna dos blocos
capitalista e socialista, refletindo a respectiva organização interna de suas
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sociedades e de seus regimes políticos. Por isso, o conflito da Guerra Fria


existia por conta da heterogeneidade entre os sistemas socioeconômicos
predominantes nos dois blocos:
O resultado disto foi que, enquanto os dois sistemas distintos
existirem, o conflito da Guerra Fria estava destinado a continuar:
a Guerra Fria não poderia terminar com o compromisso ou a
convergência, mas somente com a prevalência de um destes
sistemas sobre o outro. Somente quando o capitalismo
prevalecesse sobre o comunismo, ou vice-versa, o conflito
intersistêmico se encerraria. (HALLIDAY, 2007, p. 192).

Esse conflito era “dinâmico e universalizador” (HALLIDAY, 2007, p. 192)


por conta das contradições existentes entre os sistemas, levando-os a
protegerem seus Estados – e suas zonas de influência – para maximizar seus
ganhos relativos. O “terceiro mundo”, nesse sentido, foi o palco para que os
EUA buscassem mercados e para que a URSS incentivasse revoluções que
tendiam à ideologia socialista, fazendo com que Estado desafiasse o outro para
passar credibilidade de que seu próprio sistema se encontrava em situação de
vantagem.
A lógica do conflito intersistêmico se baseava na premissa de que um
Estado estava comprometido em converter o outro a sua própria ideologia,
operando em esferas como política externa, interação socioeconômica e
interação ideológica e buscando o envolvimento de players que não os Estados
ou governos. O conflito intersistêmico só teria fim quando um dos blocos
prevalecesse sobre o outro, ou seja, quando a homogeneidade fosse
conquistada.
Historicamente, o capitalismo transforma o mundo à sua imagem, o
adapta para sua própria sobrevivência, e por isso, tal sistema incorpora e
destrói sistemas socioeconômicos rivais. Nas palavras de Halliday “um sistema
já estabelecido, o capitalismo, gerou e depois sufocou o seu novo rival
emergente” (HALLIDAY, 2007, p. 203). O socialismo surgiu como uma
alternativa ao sistema capitalista a fim de trazer mais igualdade através da
revolução, uma vez que esse era descrito como opressor e desigual para a
maioria (o proletariado).
Apesar de a heterogeneidade ser o principal motor da Guerra Fria, ela
também trazia a estabilidade que Kenneth Waltz (2004) descrevia: por ser um
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ordenamento bipolar, o qual duas potências hegemônicas lideram o sistema


internacional, a estabilidade prevalecia porque a rivalidade mantém o status
quo das potências (HALLIDAY, 2007, p. 196).
A competição entre URSS e EUA era essencialmente desigual para
Halliday. O segundo era superior e mais forte em quase todos os aspectos-
chave, com exceção da esfera militar-tecnológica porque a URSS tinha
capacidade de acompanhar seu inimigo por meio da mobilização intensiva das
massas, sendo possível, por exemplo, que o sistema socialista sustentasse a
corrida armamentista.
O colapso da URSS em 1991 trouxe a prevalência do sistema capitalista
e, consequentemente, dos EUA. Considerando esse o marco do fim da Guerra
Fria, o fim da disputa ideológica não se deu através de um conflito bélico direto
entre os dois sistemas (como os teóricos do Realismo e do Neorrealismo
previam), nem através da dissolução do território de um dos blocos por conta
de pressão militar e comercial. O fim da Guerra Fria se deu através de uma
implosão dentro do bloco soviético, ou seja, pelo efeito demonstrativo do
sucesso do sistema capitalista, segundo Halliday. Portanto, a Guerra Fria teve
fim no momento em que, justamente, um bloco prevaleceu sobre o outro.

3. O MURO DE BERLIM

Com o desfecho da Segunda Guerra Mundial, os países Aliados se


reuniram em Potsdam (Alemanha) em julho e agosto de 1945 a fim de negociar
a respeito da administração do território da Alemanha, considerada culpada
pela Segunda Guerra Mundial2. Foi decidido que o país e sua capital, Berlim,
seriam divididos em quatro zonas de ocupação: o sul seria administrado pelos
EUA; o Oeste, pelo Reino Unido; o norte, pela França; e o Leste, pela URSS.
O objetivo da divisão era evitar a insurgência de um revanchismo de guerra
alemão, o que poderia levar o sistema internacional a outro conflito bélico direto
(JUDT, 2007, p. 253). Apesar dos acordos acerca da divisão do território, a

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A própria Alemanha reconheceu sua parcela de culpa na Segunda Guerra Mundial,
principalmente em relação à perseguição aos judeus.
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Alemanha e sua capital continuaram sendo peça-chave na Guerra Fria, bem


como sendo palco de tensões até 1989.
Nikita Kruschev (secretário geral do partido comunista), em julho de 1961,
fez uma tentativa de acordo de paz a fim de desmilitarizar ambas Alemanhas,
mas não obteve sucesso: os EUA afirmaram que tal acordo de paz era
divergente às negociações realizadas em Potsdam, e a RFA afirmou ter
soberania própria para decidir sobre o próprio destino.
O presidente estadunidense John Fitzgerald Kennedy (1961-1963) anunciou
em julho de 1961 que o Ocidente não abandonaria seus compromissos com a
RFA e que fortaleceria a presença militar dos EUA na Alemanha. Logo após o
discurso, as autoridades da RDA impuseram restrições de trânsito a possíveis
emigrantes na fronteira entre Berlim Ocidental e Berlim Oriental.
Paralela às negociações, Berlim Ocidental, segundo Taylor (2009), era vista
como uma “passagem para a liberdade”, principalmente por conta da facilidade
de cruzar de um lado para o outro: bastava embarcar no metrô ou cruzar a
linha divisória a pé e apresentar o passaporte (Documentário “Construção e
queda do muro de Berlim”).
O Leste alemão carecia de legitimidade porque o Oeste sempre trazia
comparações para a RDA, devido à prosperidade capitalista (KISSINGER,
2012, p. 496). A emigração para Berlim Ocidental e o número de refugiados
transformava a RDA num cemitério soviético.
A partir de qualquer local da República Democrática, alemães
em fuga para o Ocidente vinham até Berlim Oriental,
atravessavam a Zona Russa de Ocupação, entravam nas
Zonas Ocidentais e prosseguiam pelo corredor de estradas e
ferrovias que ligavam Berlim Ocidental ao restante da
República federal. Chegando lá, automaticamente, tinham
direito à cidadania na Alemanha Ocidental. (JUDT, 2007, p.
259).

Walter Ulbricht, presidente do Conselho de Estado da RDA, 1960-1973)


negociou com Moscou a respeito da construção de uma barreira física a fim de
evitar o escoamento de mão de obra para a RFA. Então Moscou permitiu a
construção da barreira por duas razões: para evitar a emigração de alemães
orientais e porque as notas de Kruschev sobre a desmilitarização da Alemanha
foram rejeitadas.
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A tarefa de construir uma barreira física foi designada a soldados e a


operários objetivando evitar o crescente refúgio de alemães que vinha se
intensificando: “Em maio de 1961, 17.791 pessoas fugiram através de Berlim
Ocidental, seguidas de 19.198 em junho e 12.578 só nas duas primeiras
semanas de julho” (TAYLOR, 2009, p. 174).
A madrugada de 13 de agosto de 1961 foi marcada por árduo trabalho
braçal. A construção do muro começara silenciosamente, porém se deu com
muita rapidez. Os soldados fecharam as ruas durante a construção do muro,
mas não houve violência. Foram construídos 156 km de barreira (Documentário
“Construção e queda do muro de Berlim”) de maneira improvisada, cortando
praças e ruas ao meio. O muro se tornou mais alto e fortalecido com holofotes,
arames farpados e guaritas ao longo do tempo. O Ocidente interpretou a
existência do muro como uma ameaça à paz mundial, porque dissipava o medo
de outra guerra mundial, se tornou o epicentro da Guerra Fria.
A RDA, nos anos 1970, havia se tornado a “vitrine da URSS” (Documentário
“Construção e queda do muro de Berlim”) quando eletrodomésticos, em
destaque para as geladeiras, chegaram ao país e estimularam o consumo. A
maioria dos alemães orientais passou a pensar que não era necessário
atravessar o muro para melhorar seus padrões de vida, principalmente porque
seus vizinhos tinham padrões de vida que os garantiam viajar pelo mundo.
Quando a RDA completou 40 anos de aniversário, em 7 de outubro de
1989, Erich Honecker, secretário-geral do Partido Socialista Alemão (1976-
1989), proferiu um discurso em homenagem ao país, passando a impressão de
que a RDA existiria eternamente. No entanto, as reformas implantadas por
Gorbachev na URSS (glasnost e da perestroika: abertura política e aumento da
produtividade a partir da reestruturação econômica, respectivamente) eram
divergentes em relação ao discurso de Honecker.
Devido às relações que a URSS vinha estabelecendo com o Ocidente, mais
especificamente, com os EUA (HOBSBAWM, 1999, p. 248), o império soviético
passou a se enfraquecer porque sua organização política, social e econômica
era antagônica da organização ocidental. Apesar de estabelecer tais relações,
a URSS buscava competir com o Ocidente.
Enquanto isso, a população da RDA continuava pedindo refúgio na RFA e
essa aceitava. Os alemães orientais também se manifestavam pela sua
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liberdade. A revolução popular aspirava validade universal da democracia, dos


direitos humanos e do Estado de direito (CÂMARA, 2003). Por isso, Egon
Krenz, último secretário-geral do Partido Comunista da RDA (de outubro a
dezembro de 1989), decidiu afrouxar os regulamentos de viagens ao exterior e
pretendia comunicar o afrouxamento na noite de 9 de novembro de 1989
(MARIZ, 2013, p. 236).
De acordo com os relatos de Vasco Mariz, ex-embaixador brasileiro na RDA
Houve, houve um erro de interpretação no anúncio a respeito do afrouxamento
dos regulamentos de viagem:
Multidões enormes se dirigiram para os check-points e a polícia
das fronteiras não havia sido informada de nada, nem
reforçada, pois não havia intenção alguma do Governo de abrir
as portas do muro. E todos nós recordamos o que ocorreu
naquela noite histórica. (MARIZ, 2013, p. 236).

Com entusiasmo, o povo alemão bradava Wir sind ein Volk (Nós somos um
povo), clamando o desejo pela reunificação alemã, e o muro foi derrubado. A
partir da alteração do conflito bipolar Leste-Oeste, a reunificação alemã foi
possível em 03 de outubro de 1990, momento em que a RDA desaparece
constitucionalmente e se anexa ao território do Estado soberano da República
Federal da Alemanha, apelidada de “República de Berlim” justamente por sua
capital se estabelecer nessa cidade e não mais em Bonn.

4. A FRAGMENTAÇÃO INTERNA DA ALEMANHA REUNIFICADA

Apesar de as manifestações terem resultado na queda do muro em 1989 e,


consequentemente, na reunificação das duas Alemanhas em 1990, a RFA não
saiu como a vencedora do conflito ideológico: a Alemanha reunificada não era
equivalente à República de Bonn alargada para o Leste.
A antiga RDA, a partir de então, deveria ser adaptada à conjuntura da
globalização, organizada sob arranjo de poder multipolar, caracterizada por:
velocidade, competitividade, consumismo, individualismo e dependência de
redes de produção globalizada. Helmut Kohl (1982-1998), chanceler da RFA e,
posteriormente, da República de Berlim, transferiu 1,4 trilhão de marcos
alemães (equivalente a € 715 bilhões) do ocidente para o oriente a fim de
igualar os dois lados.
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Apesar da transferência de capital, não foi (e não é, até atualmente) um


processo simples estreitar as diferenças entre as duas Alemanhas, embora o
país estivesse geográfica e politicamente reunificado. A memória de uma
nação unificada pertencia apenas às gerações mais velhas, quando a
Alemanha vivia sob a ditadura nazista com Adolf Hitler como líder eleito através
de um processo democrático.
A desorientação (causada pelo estranhamento a um país reunificado e sob
um regime de “liberdade”, a democracia parlamentarista) trouxe aos alemães
3
orientais o sentimento de Ostalgie ao pleno emprego, à coletividade, à
solidariedade e ao amor pelo social.
A questão da identidade alemã não passou a existir após a reunificação do
país. A Alemanha designou várias unidades geográficas ao longo da história,
dificultando os alemães de criarem laços culturais e buscarem definir “o que é
ser alemão”, marcando sua história pela “diversidade e descontinuidade,
riqueza e fragmentação, fecundidade e fluidez” (SHEEHAN, 1989, p. 7,
tradução da autora).
A capital da Alemanha foi transferida para Berlim a fim de aproximar as
duas Alemanhas e facilitar a reunificação com o Leste, uma vez que o centro
das decisões políticas, econômicas, sociais e diplomáticas estava mais próximo
do bloco Leste. Para Gerhard Schröder, chanceler da República de Berlim
(1998-2005), essa transferência tinha um significado simbólico, pois era
[...] mais do que uma transferência física. Trata-se de uma
renovação. Nós não vamos a Berlim porque teríamos
fracassado em Bonn. Muito pelo contrário. Os quarenta anos
de sucesso (Erfolg) da República de Bonn, a política de
entendimento e a boa vizinhança, a luminosidade de uma vida
em liberdade contribuíram para a superação da divisão alemã e
possibilitaram o que chamamos hoje de República de Berlim.
(CÂMARA, 2013, p. 109).

Apesar do descompasso econômico, o desenvolvimento alcançado pelo


país também contribuiu na propagação da credibilidade alemã, considerando
que tal desenvolvimento trouxe implicações político-sociais no processo de
estabilização da sociedade alemã e na legitimidade do regime democrático.
O sucesso da República de Berlim se deve, segundo Câmara, a uma
combinação de keynesianismo e monetarismo, resultando na eficiência da
3
Termo cunhado para explicar um sentimento de “nostalgia ao Oeste” (Ost + Nostalgie).
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economia social de mercado, na reconciliação com países vizinhos e na


instauração do Estado de bem estar social (CÂMARA, 2013, p. 130). Tais
elementos fazem da Alemanha o país mais populoso e de economia mais forte
na UE.
5. DOIS FILMES, DOIS OLHARES

Para ilustração da queda do muro de Berlim, esta seção analisa os filmes


“Adeus, Lênin!” e “A vida dos outros” considerando os significados da palavra
“sombra”: vestígios; aquilo que persegue; e, num sentido literário, aquilo que
entristece a alma.

“Adeus, Lênin!”

Os vestígios da cultura socialista permaneceram na Alemanha (e ainda não


desapareceram) após a queda do muro de Berlim em 1989, vestígios esses
cujo filme Adeus, Lênin! de Wolfgang Becker ilustra com humor, ironia e
críticas, tanto ao sistema capitalista como ao socialista. Wolfgang Becker é um
cineasta alemão que nasceu na ex RDA em 1954, ainda antes da construção
do muro de Berlim.
O filme se desenvolve a partir do sentimento de Ostalgie, saudando o
estilo de vida que girava em torno do social (e não do capital), ou seja, de
valores de humanidade e de valor ao ser humano, onde todos na sociedade
têm seu valor e seu espaço, o que explica a manutenção das tradições
soviéticas, o pleno emprego, a moralidade e o coletivismo. Apesar de tal
ideologia, os valores na RDA eram falhos se forem levados em conta a ditadura
implantada nos países da zona de influência soviética faziam parte.
O sistema ditatorial do qual a RDA era parte limitava o indivíduo à
condição passiva na vida política e social, não concedendo liberdade de
expressão e de pensamento. Segundo o filósofo inglês John Stuart Mill
(PAULA, 2007, p. 76), uma sociedade civil funciona a partir do momento em
que o indivíduo tenha liberdade sobre si mesmo e para isso, esse indivíduo
precisa: ter consciência de que é livre; ter liberdade sobre os demais, ou seja,
ter a própria opinião em vez de seguir a da maioria ou a do Estado; e ter
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liberdade de associação na sociedade, como se engajar em grupos ou partidos


políticos, por exemplo.
Não foi à toa que em Adeus, Lênin! os alemães orientais foram às ruas
para reivindicar liberdade de imprensa: tinham consciência de que poderiam
ser livres na expressão de seus pensamentos e que deveria lutar por isso. Para
Mill, a liberdade de imprensa nada mais é que a forma de liberdade e de poder
da sociedade. Como o Oeste sempre estava ao lado para trazer comparações,
o Estado socialista censurava e controlava os programas exibidos nas rádios e
na televisão a fim de evitar que o contato com o sistema capitalista pudesse
gerar revolta e sentimento de inferioridade a seus cidadãos – levando à
derrocada do sistema socialista.
Diante da nova conjuntura que a queda do muro de Berlim anuncia,
inserida no contexto da economia e dos valores ocidentais e capitalistas, Alex
percebe que “o futuro estava em nossas mãos, incerto e prometedor” (Adeus,
Lênin!, 2003), porque o Estado não mais é o provedor de todas as
necessidades de seus cidadãos, deixando-os livres (dentro de suas condições
e oportunidades, que passaram a ser desiguais) para escolher o caminho de
suas próprias vidas.
Durante o filme, vê-se pessoas frequentando festas tendenciosas de teor
sexual e pequenos grupos de pessoas embriagadas pelas ruas de Berlim. Tais
valores eram vistos pelos bolcheviques como um corrompimento trazido pela
sociedade capitalista (ARBEX, 1997, p. 21).
Enquanto os ícones de felicidade na sociedade capitalista se
relacionavam à realização pessoal, a aquisições materiais e,
consequentemente, à ostentação4, os ícones de felicidade na URSS eram
associados ao heroísmo do camponês (devido ao desenvolvimento da Rússia,
após a Revolução de 1917), ao sucesso da comunidade e à manutenção das
tradições socialistas.
Adeus, Lênin!, porém, traz uma visão mais humana e leve do que era o
sistema socialista: “todos nós éramos pessoas de valores, não éramos, Alex?”,
pergunta o Sr. Klapprath, diretor da escola da comunidade, ao comentar as

4
O que explica, por exemplo, porque redes sociais como Facebook, Twitter e Instagram têm se
mostrado bem-sucedidas, apresentando alto número de inscritos e se tornando a “nova
sensação” do século XXI. (Nota da autora).
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mudanças ocorridas após a reunificação. As notícias elaboradas por Alex e


Denis amenizavam a esfera de tensão e controle que o sistema socialista
criava em sua sociedade, pois havia pouca repressão, repressão essa tratada
por Becker com humor e simplicidade.
Os cidadãos da antiga RDA, a partir da reunificação do país, teriam de
se acostumar à competitividade, à velocidade, ao desemprego, a meritocracia e
ao individualismo (a ferrugem do ser humano): “A vida no nosso pequeno país
tornou-se cada vez mais rápida. De algum modo éramos todos como átomos
em um grande acelerador de partículas” (Alex, Adeus, Lênin!, 2003).

A vida dos outros

Em oposição ao filme Adeus, Lênin!, o filme A vida dos outros de Florian


Henckel von Donnersmarck, também cidadão da ex RDA, ilustra e critica a
censura e a tortura as quais os cidadãos da RDA eram submetidos, focando na
espionagem das vidas privadas dos indivíduos, interferindo na liberdade
individual a fim de manter a homogeneidade da sociedade. O controle de
segurança exacerbado no sistema socialista existia a fim de manipular os
indivíduos e de manter a ordem social como uma forma de censura.
Segundo o filósofo francês Benjamin Constant, dentro do contexto da
liberdade dos modernos, a liberdade civil significa que cada indivíduo tem os
direitos: de expressar sua opinião, de ir e vir sem a necessidade de permissão;
e de se reunir a outros indivíduos.
No sistema socialista, o indivíduo era responsável tanto por seus
pensamentos e não apenas pelos seus atos, como Stuart Mill defende. O
Estado socialista impunha o modo de agir e pensar em sua concepção de
“certo e errado”, construída a partir dos modelos defendidos pelo filósofo
alemão Karl Marx e pelos bolcheviques após a vitória na Revolução de 1917,
quando o socialismo soviético passou a ser o modelo político para a Rússia.
O sistema representativo na URSS, à vista disso, era falho ou se quer
representativo: as eleições para chefe de Estado e cargos “representativos”
eram realizadas dentro do Comité Central do Partido Socialista, e esse era o
modelo que a RDA seguia. Não havia democracia, o povo não participava das
eleições e ficava à mercê das decisões de seus chefes de Estado, sendo que
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eles representavam o interesse do povo, que era igualitário como o sistema


socialista pregava (HOBSBAWM, 1999, p. 376).
Para Constant, a igualdade é uma ameaça à liberdade uma vez que fere
a liberdade individual e, por isso, um sistema de leis que desrespeite a
liberdade individual é tirânico. Um governo baseado na tirania não limita o
poder dos representantes, tornando os cidadãos escravos do coletivo e
desrespeitando a liberdade individual.
A partir da dissolução da URSS, o indivíduo que vivia na ex RDA passou
a ter a liberdade de fato, o que para Mill significa a liberdade total de
pensamento do indivíduo, associada à cidadania, ou seja, à participação na
vida social, cumprindo deveres e exercendo direitos.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O muro de Berlim, então, permanece como sombra na questão da


definição da identidade alemã porque contribui para a manutenção de vestígios
que envolvem a divisão do país, considerando que unidade nunca foi uma
constante na história alemã. Ainda que a identidade, de qualquer povo, esteja
em constante mutação por sofrer influências externas a todo momento
(resultado do contato com diferentes povos), o povo alemão apresenta
dificuldades no que tange à questão de unificação de uma nação justamente
pela questão territorial e pela descontinuidade de laços históricos e culturais.
“Socialismo” não era um termo político e não remetia a nenhuma
organização de sociedade ou regime político, mas se referia ao fato de que “o
ser humano é por natureza social e sociável” (HOBSBAWM, 1992, p. 255). Por
isso, o contrário de socialismo era “individualismo”, e não capitalismo. Os
valores socialistas se pautavam no social, diferentemente dos valores
capitalistas, que se pautavam no material e no benefício próprio.
O fim da Guerra Fria marca também o fim do socialismo? O capitalismo
pós Guerra Fria (o capitalismo globalizado) fortaleceu o argumento de que o
material deveria se sobrepor ao social, fazendo com que as necessidades
básicas (como alimento, água, moradia e saúde) se tornassem produtos
mercantis, favorecendo indivíduos de maior poder aquisitivo e aumentando as
disparidades entre ricos e pobres – mantendo esses presos num mundo sem
15

liberdade de escolha, pois estão fadados a permanecer em suas condições


econômico-sociais até não sobreviverem ao vão entre solidariedade e lucro.
Liberdade pra quem, afinal?
Devido aos problemas advindos dessa conjuntura caracterizada pelo
individualismo, pela busca incansável por lucro e pelo benefício próprio,
resultando em guerra, fome, xenofobia, migrações forçadas, desemprego,
aumento da concentração de riqueza, intensificação de mazelas sociais, entre
outros problemas que assolam e assombram o mundo do século XXI, o
socialismo não morre porque vem como uma via alternativa pela humanização
das relações sociais e pela conscientização de que o Outro também é um ser
humano, não importando a etnia, condição financeira, posição política,
nacionalidade, gênero, religião ou qualquer outra diferenciação construída ao
longo da história: são humanos e devem se conscientizar de sua igualdade uns
com os outros.

REFERÊNCIAS:

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