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ENSAIO BIBLIOGRÁFICO
A INTERPRETAÇÃO DO NAZISMO,
NA VISÃO DE NORBERT ELIAS
Boris Fausto
Elias, Nobert. 1996. The Germans. Power Struggle and the Development of
Habitus in the Nineteenth and Twentieth Centuries. New York: Columbia Uni
versity Press. 494 pp.
dinásticas continuavam a ser decisivas nas relações com as outras gran des
potências. Desse modo, os dirigentes políticos escolhidos pelo Kaiser
optaram inesperadamente por uma nova guerra, sem se perguntar se a
Alemanha tinha alguma possibilidade de vitória, caso os Estados Unidos
entrassem no conflito ao lado de seus aliados ocidentais. O resultado foi a
derrota na Primeira Guerra Mundial e a humilhação imposta pelo Tra tado de
Versalhes.
O relato sumário da história alemã, efetuado por Elias, não introduz
novidades em si mesmo. A novidade diz respeito à natureza das conse
qüências derivadas desse processo histórico para a compreensão da Ale
manha como um todo e da catástrofe nazista, em particular. Tais conse
qüências não se situam na esfera das grandes estruturas socioeconômi cas
e sim na formação de um habitus. A questão central de Elias consiste em
entender como a história de uma nação, ao longo dos séculos, sedi mentou-
se no habitus de seus membros considerados individualmente (:19).
Essa referência aos “membros considerados individualmente” me
parece ambígua, prestando-se a equívocos. Todo o contexto do livro e
outras afirmações do autor demonstram que ele diverge de uma explica ção
centrada na formação da personalidade individual. Ele sugere,
modestamente, estar formulando algumas considerações que permitiriam
escrever a “biografia” de um Estado-sociedade, pois, tal como no desen
volvimento de uma pessoa as experiências de um tempo passado conti
nuam a ter efeitos no presente, o mesmo ocorre no desenvolvimento de uma
nação. Nesse caso, trata-se de um ser coletivo, forjado em um con texto
mais amplo, como Elias assinala em sua crítica da teoria da perso nalidade
autoritária, citando expressamente Adorno (1950). Em suas palavras, o
pressuposto fundamental implícito nessa teoria é o de que a pessoa, como
resultado de uma estrutura familiar específica quando de seu crescimento,
desenvolve a síndrome da estrutura de caráter corres pondente à familiar.
Entretanto, diz Elias, a explicação, sem ser falsa é insuficiente, por que
a estrutura familiar autoritária está intimamente ligada à estrutura autoritária
do Estado; e, para se entender melhor a natureza dessa cone xão, é
necessário olhar para a organização do Estado, forjada através de um
processo de longa duração.
Assentado esse ponto, é necessário precisar o conceito estratégico de
habitus no pensamento de Elias e, a partir daí, discriminar os elemen tos que
ele considera explicativos no processo de organização da socie dade e do
Estado germânico. Em primeiro lugar, habitus não é sinônimo
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de “caráter nacional”, expressão que o autor emprega no texto, mas sem pre
entre aspas. Uma clara distinção consiste no fato de que o conceito de
caráter nacional tende a corresponder a um dado estrutural abrangen te e
pouco permeável a mutações de uma formação social, quaisquer que sejam
os elementos privilegiados na constituição do “caráter nacional”, tanto em
uma visão racial quanto em uma visão historicista.
O conceito de habitus implica maior flexibilidade, o que se compati biliza
com os cortes e as descontinuidades da história alemã. Assim, Elias refere-
se ao dilema da classe média alemã, no século XIX e no início do século XX,
oscilando entre uma tendência idealista-liberal e outra con servadora-
nacionalista que termina com a vitória da última, ao influxo da forma como se
deu a unificação alemã. Acentua que esse fato constitui um testemunho
eloqüente da natureza descontínua do desenvolvimento alemão, uma
alteração de habitus que pode ser associada com clareza a uma fase
específica do desenvolvimento do Estado.
A rigor, o conceito de habitus aproxima-se do de mentalidade, assu
mido em toda a sua extensão, como se sabe, pela historiografia francesa, a
ponto de Elias referir-se a habitus nacional ou mentalidade como ter mos
pelo menos assemelhados. Entretanto, ao contrário do que ocorre com os
historiadores franceses das mentalidades, a psicologia e, sobretu do, a
psicanálise parecem intervir mais do que a antropologia na consti tuição do
conceito de habitus. A esse respeito, o autor lança mão, expres samente, de
uma analogia com o método freudiano, em uma passagem em que, aliás, as
fronteiras entre a psicologia individual e a psicologia coletiva não são claras.
Freud, diz Elias, tratou de mostrar a conexão entre o desfecho de uma
conflituosa canalização dos impulsos no desenvolvi mento da personalidade
e seu habitus daí resultante. Mas há também conexões análogas entre o
destino e as experiências de um povo, a longo prazo, e seu habitus social
assim assentado. Nesse plano, ocorrem muitas vezes sintomas complexos
de distúrbio que têm praticamente a força das neuroses individuais.
Tanto na situação individual quanto na coletiva, segundo Elias, é
necessário empreender a mesma tarefa: trazer de volta à consciência, quase
sempre em face de uma forte resistência, coisas que tinham sido
esquecidas. Tal esforço, em ambos os casos, requer um autodistancia
mento e, se tiver êxito, pode contribuir para a flexibilização de rígidos
modelos de comportamento.
Quais as relações entre a constituição do habitus e as vicissitudes da
história da Alemanha? O autor acentua que o desenrolar do processo his
tórico alemão, em contraste com países como a França, a Inglaterra, a
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Notas
1
Isto não quer dizer que as explicações microconjunturais tenham desapa
recido de cena. Para um exemplo recente, ver Turner Jr. (1997).
2
Este último argumento é central para os historiadores que tentaram relati vizar
o genocídio nazista, gerando a “querela dos historiadores”, aberta por Habermas, em
1986, com sua crítica ao “revisionismo conservador”. Dentre os autores criticados,
destaca-se, por seu prestígio, Ernst Nolte. Nolte argumenta que, embora o genocídio
tenha sido incontestável e deplorável, estaria inscrito em uma série de eventos
comparáveis, característicos do século XX. Mais ainda, ele não teria ocorrido, se não
fosse o genocídio cometido pelos bolcheviques rus sos, por razões de classe (ver
Nolte 1988).
Referências bibliográficas
ADORNO, T. W. et alii. 1950. The Author itarian Abstract
Personality. New York: Harper & Row.
ELIAS, Norbert. 1993. O Processo Civili zador.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
FURET, François. 1995. O Passado de uma This paper analyzes the significance of
Ilusão. Ensaios sobre a Idéia Comunista no Nazism, one of the central themes in the
Século XX. São Paulo: Ed. Siciliano. latest book by Norbert Elias. It refers to the
NOLTE, Ernst. 1988. “Un Passé qui ne Veut pas reasons behind the per plexity of the
Passer”. In: B. Vergne-Cain (org.), Devant liberal and Marxist cur rents in dealing with
l’Histoire. Documents de la Controverse sur the phenomenon, at least initially.
la Singularité de l’Extermination des Juifs. Beginning with this observation, the author
Paris: Cerf. presents Elias’ point of view, which strays
TURNER JR., Henry A. 1997. Hitler’s Thirty from a kind of progress-history towards an
Days to Power: January 1933. Cambridge: increas ingly perfected civilizatory process.
Addison Wesley. It seeks to demonstrate how Elias’ inter
152 ENSAIO BIBLIOGRÁFICO pretation is founded on a long-range
analysis of German history, highlight ing
the constitution of habitus as an original
explicatory concept, not to be confused
Resumo with that of national charac ter. The essay
also discusses the sec ondary (albeit
relevant) weight Elias ascribes to the
context of the 1920s and early 1930s in
Este trabalho analisa um dos temas implanting Nazism. Fi nally, the author
centrais do último livro de Norbert
asks whether in Elias’ view Nazism was a
Elias: a significação do nazismo. Refe dated, specific phe nomenon and –
re-se às razões da perplexidade das
depending on the an swer – what the
correntes liberal e marxista para dar possibilities might be for its reemergence
conta do fenômeno, pelo menos em
in the current con text.
um primeiro momento. A partir dessa
cons tatação, expõe o ponto de vista
de Elias, que se aparta de uma
história-progres so, no rumo de um
processo civilizatório cada vez mais
aperfeiçoado. Procura-se demonstrar
como a interpretação de Elias está
fundada na análise de longa duração
da história alemã, dando rele vância à
constituição do habitus como um
conceito explicativo original que não se
confunde com o de caráter na cional. O
ensaio discute também o peso
secundário, embora não irrelevante,
que Elias atribui à conjuntura dos anos
20 e princípios dos anos 30 na implan
tação do nazismo. Indaga-se, por últi
mo, se, na opinião de Elias, o nazismo
foi um fenômeno datado e específico e,
em função da resposta, quais as possi
bilidades de sua reemergência no qua
dro atual.