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SVAMPA, Maria Lucila.

Usos políticos de passados ditatoriais: visualizações na


Alemanha. Revista História (UNESP), Assis, v. 35, p. 1-18, 2016.

Alan da Silva Dias

Maria Lucila Svampa é uma pesquisadora argentina que possui doutorado em


ciências sociais. Sua especialidade se concentra nas áreas de Teoria e Filosofia Política.
Trabalha na faculdade de ciências sociais da Universidade de Buenos Aires, no Instituto
Gino Germani. Uma de suas mais importantes produções foi publicada em 2016 com o
título “La historia en disputa: memoria, olvido y usos del passado”.

O objetivo do seu texto é reconstruir a visualização do passado na Alemanha entre


os anos de 1945 a 2005. As lembranças do nacional-socialismo, as experiências do
holocausto e do nazismo manifestam as inúmeras maneiras pelas quais os alemães tem
buscado lidar com essa parte obscura de sua história e que foram incorporadas na
sociedade de acordo com situações políticas. Dessa maneira, por meio de uma análise
teoricamente estruturada e amparada por alguns eventos históricos, a autora nos apresenta
cincos estágios distintos que descrevem as diversas discussões acerca do esquecimento e
da memória desses eventos.

O primeiro desses estágios é compreendido nos primeiros anos pós-guerra, nos


quais reparações são acordadas e importantes oficiais nazistas acabaram sendo
processados. Nesses primeiros anos ocorreram os principais julgamentos de membros da
liderança política, militar e econômica da Alemanha Nazista, como o de Nuremberg em
1945, o de Auschwitz em 1947 e compensações econômicas através de acordos como o
de Luxemburgo em 1952, foram concretizadas. Em razão da intervenção da comunidade
internacional que supervisionou a maneira que a Alemanha deveria se reconciliar com
seu passado, essas políticas durante esses anos foram grandemente influenciadas pelos
aliados.

Segundo Svampa, o passado nazista nesses anos possuiu um papel predominante


no âmbito judicial, mas não na fala política, se por um lado a Alemanha era julgada e
culpada pela Segunda Guerra Mundial, por outro a barbaridade do Holocausto, não era
um objeto discutido. Esses processos legais demonstram que as consequências toleradas
pelos desenvolvimentos históricos não são metafóricas e que a memória cria
responsabilidades, pois, a intervenção das memórias adquire sua realização material
quando se envolve a possibilidade de distinção entre o que é considerado como ser
inocente e o que é ser culpado. Assim, a relevância da memória representa um cálculo
político a favor de certas obrigações que definem posições diferentes sobre dilemas éticos
de uma nação e estabelecem sua união através da combinação do passado com
sensibilidades em voga.

O segundo estágio vem logo após esse debate inicial e as sentenças dos principais
oficiais nazistas, sendo esse período marcado pelo silêncio e esquecimento. Apoiada em
alguns estudiosos dos debates públicos sobre a lembrança do passado nazista na
Alemanha pós unificação, como Caroline Pearce, a autora aponta algumas razões para
essa falta de debate na agenda pública, quais eram: o principal desafio naquele momento
era consolidação democrática, a reconstrução da vida civil e o desejo de se evitar
renovações do nacionalismo, muitas políticas tiveram como base a noção do “silencio
saudável”, que fez com que o poder político incorporasse ao governo antigos apoiadores
do nazismo, sendo que a democracia só foi possível por ter tido sua inauguração em um
período de silêncio sobre os crimes do passado nazista e que foi reforçada pelo início da
Guerra Fria.

Neste sentido, na segunda metade da década de 1950 as atrocidades da Alemanha


na Segunda Guerra Mundial acabaram sendo reduzidas a um mito de demonização, onde
a culpa recaiu somente sobre Hitler e seu pequeno grupo de associados, enquanto o resto
da nação era representada como indivíduos politicamente seduzidos. Porém, essa
reconstrução do passado foi amplamente criticada, já que a memória é uma obrigação
política e um modo de se reconciliar com o passado através de sua reelaboração e o
esquecimento é associado ao silencio e a impunidade, então, segundo a autora, aqueles
que pretendem preservar a fidelidade com o passado com narrativas históricas defendem
a memória em detrimento do esquecimento.

O terceiro estágio tem início nos anos de 1960, quando surgem novas
preocupações e mesmo não obtendo grandes impactos, foi um período de transição que
despertou uma memória. Quando os julgamentos de Otto Adolf Eichmann em 1961 e a
segunda parte de Auschwitz em Frankfurt em 1963, foram realizados tiveram impactos
políticos e sociais, já que esses eventos forneceram informações sobre o passado e
despertaram o interesse público para esse assunto. Uma das grandes discussões foi feta
por Hannah Arendt, quando ela trabalhou o conceito de “banalidade do mal” enquanto
cobria o julgamento de Eichmann. Assim, a atenção dada aos crimes nazistas trouxe
interrogações de novas gerações e os jovens reivindicavam explicações e culpavam a
geração mais velha pelo silêncio e repressão.

A respeito desse despertar da memória, encontra-se nesse período expressões


públicas de um desejo de se impedir que o passado seja trazido para o presente. Em 1963,
ocorreu uma das representações mais emblemáticas, quando a República Federal da
Alemanha estabeleceu o primeiro memorial nacional que acabou gerando várias críticas
por causa da falta de precisão que a inscrição que veio nela, “Às vítimas da guerra e do
totalitarismo”. Já que não diferenciava as vítimas dos criminosos e evitava mencionar o
regime nacional socialista, esse acaba sendo um exemplo de como o governo pode utilizar
a história para justificar a ordem política.

O quarto e quinto estágio ocorrem a partir dos anos de 1970-1980 e com a


reunificação alemã. Com decorrer dos anos as discussões sobre o nacional socialismo se
tornaram cada vez mais intensas por partes de diversos setores da sociedade, vários
artistas, intelectuais, diretores de cinema e historiadores começaram a demonstrar um
interesse especial sobre as políticas da memória entre os anos finais dos anos de 1970 e
início dos 1980. Esse mesmo período ficou conhecido pelo crescimento internacional da
memória, que afetou as pesquisas historiográficas e as de cunho político e filosófico.
Esses novos questionamentos demonstraram que no passado ainda estavam ferimentos
não cicatrizados e que necessitavam de uma nova elaboração.

É importante pontuar que nesse período um fenômeno chamado


“contramonumento” surgiu em diversas cidades alemãs. Essas iniciativas rejeitavam o
conceito tradicional de monumento e ofereciam ao público uma experiência de auto-
reflexão onde eles não estariam mais em uma posição receptiva. É interessante perceber
que esses contramonumentos contra o fascismo e de nomes de cemitérios judeus
representam uma lacuna que expõem a ideia de uma representação comemorativa não-
estética que acaba por estimular a memória. A representação não é definida, nesse caso,
como estática ou terminada, mas possui uma constante dinâmica, ao revelar sua ausência,
a identidade não cria um valor, mas sim uma construção.

Com a reunificação alemã a cultura da memória tem sido radicalmente alterada, e


isso trouxe novas inquietações sobre a memória. Múltiplos aspectos fomentaram grandes
mudanças, como por exemplo a criação de uma identidade nacional forçada foi acrescida
às representações simbólicas, novos atores estiveram envolvidos com a intervenção de
mais gerações e reflexões sobre o passado tornaram-se mais polemicas à medida que não
estavam focadas na singularidade do Holocausto. Ao invés disso, o foco deslocou-se
sobre o comportamento dos criminosos e nas formas como lembrar e compensar as
vítimas e sua famílias. Essas três intervenções partilham uma singularidade: elas não
demonstram nenhuma nova evidência como resultado de uma pesquisa científica, mas
manifestam um ponto de vista diferente e sensível, focando nos criminosos, na
cumplicidade e nos responsáveis.

Dessa forma, questões de representação receberam grandes destaques nas políticas


de memória criando uma visão completamente nova da cidade de Berlim, repleta de
evidências da memória. Muitos outros memoriais começaram a ser planejados e
edificados, como o Memorial aos Homosexuais perseguidos sob o nacional socialismo.
Contudo, novas questões foram levantadas por pensadores da época como Koselleck, que
criticou a proposta do monumento do Holocaust-Mhnmal-Denkmal für die ermordeten
Juden Europas que exclusivamente dedica esse memorial aos judeus, hierarquizando as
vítimas, dando relevância aos judeus e obscurecem outras vítimas. Koselleck sustenta que
esse memorial esconde fatos e bloqueia lembranças apropriadas desse episódio trágico da
história ao negar sua realidade.

Diante do exposto é evidente a relevância desse trabalho para as discussões sobre


os usos políticos do passado e sobre memória. O termo “uso políticos do passado” vem
ganhando cada vez mais espaço nos debates acadêmicos e nas redes sociais e trata-se da
utilização do passado para fins exclusivamente políticos, como é mostrado pela autora
Maria Lucila Svampa. Eles ocorrem quando personagens ou acontecimentos históricos
são usados meramente para justificar ações, agendas políticas do presente, ideias e
sentimentos. De forma geral, eles ocorrem no espaço público, e é o que observamos
quando Svampa detalha os cinco estágios dos programas de memórias na Alemanha de
1945 a 2005. Vale ressaltar, que a relação com o presente é uma das principais
características dos usos políticos do passado, ou seja, o foco desse campo de pesquisa está
nas escolhas dos distintos grupos sociais ao rememorar, dialogar e representar elementos
do passado. Dessa maneira, esse artigo traz grandes contribuições para os estudos desse
campo de pesquisa focando em passados ditatoriais e que podem ser aplicados na
realidade local, com o advento da ditadura civil-militar.

Através desse texto da autora, podemos fazer relações muitos positivas com a
produção de Pierre Nora “Entre memória e história: a problemática dos lugares” que
discute as diferenciações sobre os conceitos de memória e História. A primeira era
concebida como algo natural e orgânico, servindo como elo entre as gerações e que
operava como a própria história não existindo diferenciação entre as duas coisas. A
segunda seria o discurso que desnaturaliza a memória, “a história começa, onde a
memória termina”, ou seja, a história através de seu discurso controla, ressignifica e
analisa a memória. Dessa forma, dentro desse confronto, se estabelece uma luta de
representações em torno da interpretação da realidade. É o que podemos ver ao logo da
argumentação de Svampa.
Neste sentido, os lugares de memórias, que é discutindo por Nora, pode ser
identificado dentro daqueles cincos estágios mostrador por Maria Lucila Svampa, que
são instituições modernas que se dedicam a guardar a memória, nos ajudam a pensar sobre
esse confronto e na materialização da memória. Não fazendo mais parte do ambiente da
experiencia psíquica individual e coletiva como algo natural e orgânico, a memória se
materializa nesses espaços objetivando guardar aquilo que deve ser lembrado, e esse
trabalho de guarda e seleção da memória está a cargo da história que tenta vencer o
esquecimento. Assim, o papel dos lugares de memórias é de uma eficácia de natureza
pedagógica, construindo condições para as experiencias simbólicas dentro desses
espaços, entre aqueles que estão vivos e aqueles que não estão vivos.

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