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3.

Escreva sobre os mundos do trabalho na História do Brasil considerando a escravidão


e questões de etnicidade.

O universo do trabalho, enquanto objeto de pesquisa histórica, é um campo rico e fértil


para diversas análises e investigações. Alguns trabalhos clássicos, como o de Thompson
(1963) sobre a classe operária inglesa, são exemplos de como a discussão sobre esse universo
pode ir além da história institucional, possibilitando identificar dimensões mais amplas,
chegando ao terreno da história social. Os argumentos centrais desses trabalhos é que classes
sociais não existem simplesmente como objetos inertes, mas são ativamente construídas
historicamente e moldam a mudança histórica. Segundo Mike Savage, os primeiros
historiadores marxistas enfatizaram que as classes tanto fizeram quanto foram feitas pela
história, levando-os a ver a classe como o produto da agência, de especificidade histórica e da
necessidade de ver as classes em relação a outras classes, sendo definida assim por
Thompson.

No Brasil, esse campo ganhou novas perspectivas e ampliou-se as análises na


historiografia muito recentemente. Isso se deu no momento que pesquisas direcionaram suas
lentes para agencia de novos personagens como os escravos e deram uma importância para
questões como as de etnicidade, que em interpretações tradicionais eram deixadas de lado e
permaneciam no lugar de inércia e passividade. Esse ganho veio e vem por meio do emprego
de métodos e conceitos que serviram e servem como baliza para as novas produções e
interpretações. A história vinda do povo comum ou “A história vinda de baixo” como vai se
referir George Rudé, possibilitou que historiadores explorassem dimensões até então
desconhecidas, as diversas manifestações e particularidades do mundo trabalho no Brasil é um
exemplo disso.

A partir dos anos de 1980, a historiografia sobre o trabalho e os trabalhadores ganhou


revisões e novos caminhos de investigações. Contudo, segundo Shalhoub e Teixeira da Silva
em “Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira
desde os anos de 1980”, ainda impera na historiografia um “paradigma da ausência” que
relega a alguns atores um lugar secundário, e que interfere nos diálogos entre historiadores
que se ocupam do universo do trabalho e do movimento operário com historiadores da
escravidão. Esses dois campos de investigação histórica se desenvolveram de forma paralela,
porém, poucos foram os diálogos e as convergências criadas entre eles ao longo dos anos. Isso
deve-se a esse modelo interpretativo que predominou as produções acadêmicas sobre os
trabalhadores nas décadas de 1960 e 1970, que apresentava uma história lacunar onde o povo
vez ou outra aparecia com alguma proeminência nos processos históricos, em geral, seu papel
era de passividade, produzindo uma ausência de classes e dando lugar para o Estado, sendo
ele o ator principal da história nacional. Nesse modelo que via o desenvolvimento histórico
europeu e sua a tradição forte dos trabalhadores nas emergências das críticas políticas, suas
tradições e costumes nas lutas do movimento operário, um ideal, apagava-se em suas
narrativas os sujeitos e ocultava os conflitos e diferenças da história peculiar do trabalho no
Brasil.

A respeito da escravidão, o “paradigma de ausencia” interpreta que, diferente das


densas tradições fecundadas nas lutas operárias na Europa, o que a escravidão legara foi
ausência de cultura política, já que o escravo era visto como um ser coisificado que seria
incapaz de ações próprias, restando somente uma posição de dominado, que acabou sendo
substituída ou suprida por ideologias e lideres importados do centro do mundo. Um exemplo
de trabalho que era utilizado como referência nessa perspectiva é o de Joaquim Nabuco
(1883) que trata do abolicionismo como um movimento estritamente protagonizado por
líderes abolicionistas, já que os escravos não possuíam percepções de interesses nem meios de
reivindicar seus direitos, já que, a escravidão deixou um povo “fraco” e “oprimido” que
dependia da benfeitoria dos abolicionistas.

Em consonância a esse modelo interpretativo, se utilizando de alguns personagens da


fala militante operária no período da Primeira República, Claudio Batalha em “Identidade da
classe operária no Brasil (1880-1920)” apresenta as percepções e críticas, similares ao de
Nabuco, desses líderes à classe operária brasileira, que segundo esses militantes como Mota
Assunção, o proletariado era passivo, atrasado e desorganizado. As limitações e as
dificuldades do movimento operário eram motivos de lamentações por parte do discurso da
militância que enxergavam dificuldades para constituição de um proletariado típico, ou seja,
organizado, consciente e industrial. Dessa maneira, o termo “atípico” faz referência a essa
condição do movimento operário no Brasil que contrasta com o paradigma criado pela
militância operária sobre o proletariado Europeu, que era visto como símbolo de luta e
organização e que eram pontos de referências para a identidade e legitimidade do movimento
operário brasileiro. Ficando evidente a percepção de fragilidade e passividade que ao longo do
século XX se construiu em torno dos trabalhadores e do povo comum do Brasil.
Dessa maneira, alguns historiadores e cientistas sociais da década de 1960 e 1970,
como Fernando Henrique Cardoso, que tinham como referência as obras de Nubuco e
utilizavam em suas investigações outros tipos de fontes, não atentavam, por exemplo, ao
preconceito cultural e as intenções políticas dos autores e observadores - no caso de fontes
manuscritas. Resultando em uma negação da cultura política dos trabalhadores, sentimento
compartilhado pelos militantes pesquisados por Claudio Batalha, e a fé na ideia do “escravo-
coisa”. O que acabou resultando em generalizações e em uma desqualificação dos escravos e
dos trabalhadores como agentes de sua própria história.

Neste sentido, Shalhoub e Teixeira da Silva (2009), mostram que esse cenário mudou
e novas produções historiográficas abalaram os muros desse paradigma a partir da década de
1980. Isso se deu no momento em que novos problemas e questões como a etnicidade foram
postos a fim de desvendar o cotidiano dos trabalhadores escravos que no seio do sistema
escravocrata brasileiro estabeleciam estratégias para a formação de lutas de classes. Assim, o
que é proposto pelos autores para transpor o “paradigma de ausência”, que de certa maneira
ainda persiste em algumas produções, é a utilização do “paradigma de agência”, que interpreta
as ações de escravos, libertos e trabalhadores resultantes de negociações, decisões e escolhas
frente aos poderes e instituições, sendo o universo de pesquisa sobre o trabalho ampliado e
ficando mais abrangente.

Um trabalho que contribui para essa perspectiva e para convergencia entre


historiadores do mundo do trabalho e da escravidão é a pesquisa sobre alforrias e etnicidade
no Rio de Janeiro oitocentista de Manolo Florentino (2002). Neste trabalho que trata dos
padrões de alforrias, que busca dar explicações para os fenômenos das manumissões no
período e aponta alguns métodos para que se melhorem as abordagens sobre esse assunto, o
autor nos mostra as aproximações e convergências sobre o universo do trabalho e dos
escravos, identificando a agência e o protagonismo de vários atores. Pode-se pontuar que no
meio da liberdade obtida por intermédio das cartas de alforrias no século XIX, o que se viu
desdobrar no Brasil, foi a agência de escravos e de libertos para obtenção dessas
manumissões.

Uma delas eram os diversos meios que os escravos utilizavam para obter a compra de
sua alforria. Mesmo com o afunilamento dos caminhos para a liberdade advindo das altas nos
preços dos escravos desde fins do século XVIII e seguindo ao longo das primeiras décadas do
século XIX, se tornando uma barreira quase intransponível, isso resultou para que as
expectativas e opções dos escravos fossem redefinidas frente a liberdade, eles se utilizaram de
várias formas para conseguir legalmente sua carta de alforria, algumas vezes fugiam da casa
dos seus senhores e pediam esmolas nas ruas da cidade para obterem sua liberdade ou mesmo
a pagavam com suas próprias economias ou de parentes e benfeitores, o trabalho escravo,
então, é expresso monetariamente na compra das alforrias, sendo ele até os anos de 1830 a
condição primária para a libertação de parte significativa dos escravos. Esse episódio já
demarca uma ruptura com o “paradigma de ausência” que foi explicado mais acima, na
ambientação do trabalho escravo, esses sujeitos históricos usaram ferramentas específicas e
em alguns momentos heterodoxas, para obter seus objetivos.

Uma outra via de agência dos escravos para a liberdade, já deixava um pouco de lado
o trabalho, e estratégias mais políticas para a obtenção das suas alforrias eram usadas. A partir
dos anos de 1840 até meados dos anos de 1860, delineou-se uma predominância de alforrias
condicionais e sobretudo as gratuitas, marcando uma politização na busca da liberdade. Neste
momento, Manolo Florentino afirma que a conquista da liberdade deslocou-se para uma órbita
de relações e negociações entre escravo e seu senhor. Em meio a isso ainda há uma questão
que foi levantada, nessas lutas e convenções, alguns grupos étnicos interagiam de forma
diferente com esses tipos de manumissões, alguns grupos eram bem mais sucedidos que
outros. Os africanos, por exemplo, saíam na frente em relação aos crioulos na obtenção da
liberdade dentro de algumas décadas e o inverso ocorria dentro de outros períodos. Assim,
questões levantadas sobre a etnicidade acabam apontando para uma heterogeneidade na busca
dos escravos pela liberdade, ficando clara a complexidade dentro do mundo escravo e do
trabalho, não abrindo espaços para generalizações e fazendo referências para a necessidade do
uso do “paradigma de agência” para as produções historiográficas.

Ainda fazendo referência ao trabalho de Cláudio Batalha sobre a identidade da classe


operária na República, é explicado que legitimidade e identidade advém de uma experiência
própria e de condições de existência. Nem sempre a identidade de trabalhadores se construiu
em torno do orgulho do trabalho ou da ética do trabalho defendida pela burguesia, sendo esse
elemento, uma construção historicamente determinada. Utilizando o exemplo da União dos
Operários Estivadores em 1903 no Rio de Janeiro, o historiador mostra que essa
materialização de experiencia construiu uma identidade coletiva, porém, não significava que a
identidade de classe e consciência em determinada categoria ou grupos de trabalhadores só
podem ser alcançados por meio de sua organização, mas no ato de se organizar e criar uma
identidade coletiva. Dessa forma, o problema inicial colocado por lideranças operárias
referente a “atipicidade” do proletariado local, se dissipa – mesmo que temporariamente -
com essa organização, colocando experiencia brasileira em comparação com o paradigma de
inspiração e mostrando as particularidades do movimento operário brasileiro.

Esses exemplos citados acima mostram como as novas questões teórico-metodológicas


ajudam a sair de visões generalizantes, para chegar em discussões mais abrangentes e
complexas. Como Thompson enfatizou, não se deve tratar grupos sociais e classes como se
eles fossem “objetos” em si (e de si) mesmos, devendo ter atenção na contingência da
formação de classe, e a necessidade de examinar a articulação concreta de classe para as
pessoas em cenários históricos específicos, essa formulação reconhece sua sensibilidade para
a complexa interação entre estrutura e agência. Neste sentido, sendo reconhecida a dinâmica
da ciência história, os trabalhos como o de Thompson, Claudio Batalha, Manolo Florentino e
Shalhoub e Teixeira da Silva podem ganhar novas contribuições para que se possa investigar
e relacionar o mundo do trabalho, a escravidão e a etnicidade.

O trabalho de Mike Savage, “Espaço, redes e formação de classe”, é um caminho para


que se possa fazer essas contribuições. Defendendo o conceito de classe na análise histórica,
reconhecendo problemas reais e limitações em seus usos existentes, o autor argumenta que as
explicações existentes,como o caso de E. P. Thompson, são valiosas, poém, possuem limites e
algumas fraquezas, já que elas focalizam em dimensões temporais, antes que espaciais, da
formação de classe. Emprestando alguns estudos de geográficos sociais, ele tem sustentado
que o papel de processos espaciais proporciona um conceito mais sensível de formação de
classe, evitando alguns dos problemas historicistas latentes em obras anteriores. Assim, o
autor afirma que uma ênfase no espaço como rede pode ajudar a promover nosso
entendimento das dinâmicas de relações de classe, já que a formação da classe depende da
densidade das redes sociais e também do seu alcance, os grupos que constroem redes sociais
mais sólidas, que mobiliza e conecta uma população dispersa, obtém êxito. Adotando essa
perspectiva, pode-se ir além da ideia de classes como sendo “formadas” e coloca em
evidência a natureza fluida e dinâmica da formação de classe, ajudando a explorar
complexidades de situações históricas como o trabalho e a escravidão.

A assertiva de Ginzburg em “Nossas palavras e as deles: o ofício do historiador na


atualidade” de que a linguagem da história é a linguagem da vida cotidiana, sendo ela a
evidência que os historiadores se baseiam, aponta um caminho metodológico para conseguir
tais objetivos, que é a utilização da micro-história. As análises baseadas em pistas, sinais,
leituras atentas e a enorme quantidade enorme de evidências, estão no cerne dessa produção
historiográfica. Os pontos específicos e singulares podem fornecer uma pesquisa de um caso
detalhado com potencial generalizante. Os casos singulares, e que são em uma primeira
análise, irrelevantes, são ricos e com potenciais abrangentes, isso fica nítido em um ensaio do
Ginzburg intitulado “Sinais: raízes de um paradigma indiciário" onde ele propõe um modelo
interpretativo de análise histórica baseada nos pequenos indícios e dados infinitesimais para a
interpretação de uma realidade, a qual chamou de paradigma indiciário.

Esses estudos de casos, baseada em pesquisa analítica, visando a generalização, estão


em crescente atenção. A micro-história oferece uma oportunidade de subverter hierarquias
preexistentes, por meio da relevância intrínseca do objeto como escrutínio, apoiar-se nessa
metodologia em estudos de particularidades relacionados a contextos específicos são
promissores, pois permitem novas generalizações, gerando novas questões e pesquisas. Longe
de querer apresentar um método ilimitado, a micro-história é um viés que pode ser utilizado
para que se descubra no mundo vasto do trabalho, relações e convergencias com o mundo da
escravidão e etnicidade, identificando com as análises de diversas fontes históricas, as
agencias,as lutas e as formações de consciencias sociais por sujeitos nesses universos, que até
pouco tempo estavam relegados a uma condição de passividade e irrelevancia na historia do
Brasil.

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