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PARA ALÉM DA MORTE: ANÁLISE DOS SENTIMENTOS

SOBRE A MORTE NOS TESTAMENTOS DO CENTRO DE MEMÓRIA


DA AMAZÔNIA (1889-1930)

GT 7

Alan da Silva Dias1

O valor das fontes judiciais nas pesquisas históricas é amplamente conhecido e debatido.
Historiadores que se ocupam na investigação e análise desse tipo de fonte histórica têm lançado
grandes contribuições para a compreensão das mais diversas temáticas. A partir dos processos
cíveis e criminais do Poder Judiciário, vem sendo possível para a historiografia a investigação dos
signos de riqueza, da cultura material, da religiosidade, dos casamentos, das famílias, das
mentalidades e do cotidiano de sujeitos das mais variadas classes sociais de determinada época.
Trabalhos como de Martha de Abreu Esteves (1989) no Rio de Janeiro e Cristina Donza Cancela em
Belém (2011), são exemplos de como essas discussões podem ser feitas em torno dos processos
judiciais. Diante disso, esta pesquisa pretende utilizar processos judiciais, em particular os
testamentos do Centro de Memória da Amazônia (CMA), e com um foco diferente dos citados
acima, objetiva-se investigar nesses processos cíveis os sentimentos em torno da morte no contexto
da Primeira República na cidade de Belém do Pará, fazendo aproximações com a Antropologia das
emoções e contribuir para a História dos sentimentos.
Até o presente momento, foi feito um levantamento parcial no conjunto documental do
Centro de Memória da Amazônia dos processos de testamentos disponíveis. Dentre as onze varas
cíveis disponíveis, a subsérie de testamentos foi encontrada em apenas dois cartórios, sendo o
primeiro na 11ª Vara Cível - Fabiliano Lobato, que possui 123 caixas que abarca o período dos anos
de 1796 a 1970, e o segundo na 14ª Vara Cível - Sarmento, que possui uma caixa com documentos
que se estendem pelo período de 1840 a 1894. Sendo este um volume documental grande e que
carrega uma infinidade de potenciais pesquisas, busquei testamentos que compreendam o período
da Primeira República (1889-1930) e que possuam aspectos particulares, que sejam singulares em

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Mestrando em História, PPGHIS - UFRJ, alandiashist@gmail.com.
sua estrutura e na construção do testemunho, para que se possa chegar a discussões a respeito das
emoções. Assim, sendo produzido em um contexto que antecede a morte da pessoa, o testamento
acaba sendo um testemunho não somente da morte, mas também da vida e dos sentimentos.
Segundo Júnia Ferreira Furtado (2009), essa documentação possui ricas informações sobre
os diversos aspectos da vida do morto e da sociedade que ele fazia parte, sendo registrado nessa
documentação as últimas vontades do sujeito. Em um contexto marcado por grandes mudanças no
Estado brasileiro com a proclamação da República, sua laicização e de profundas alterações na
capital paraense desde os anos de 1870 com o crescimento da economia da borracha, diversificando
e intensificando o comércio e a economia, ocasionando mudanças na estrutura da cidade e
redefinindo das relações sociais (CANCELA, 2011), almeja-se transcender os limites da fonte
original, dos diferentes tipos de testamentos, dos discursos e das linguagens próprias da justiça em
períodos diferentes, para se chegar em dimensões mais profundas. Dessa maneira, os processos
judiciais sendo rastros do passado, é necessário desemaranhar as linhas emboladas das narrativas e
buscar os dados negligenciados ou imperceptíveis para se chegar nos sentimentos por trás dos
testamentos e examinar em que grau o contexto afetou as percepções e sentimentalidades sobre a
morte.
Neste sentido, a micro-história como metodologia surge como uma das possibilidades para
alcançar esses objetivos. Por meio da microanálise e da investigação das particularidades,
singularidades e do exame minucioso das fontes, as coisas consideradas insignificantes e as zonas
opacas, podem ser chaves para interpretar uma realidade mais profunda e pouca explorada, como é
o caso dos sentimentos em torno da morte nos testamentos. O historiador, segundo Ginzburg (2011),
é comparável ao médico que se utiliza de quadros nosográficos2 para identificar e investigar o mal
específicos de cada doente, e, como o do médico, o conhecimento histórico é indireto, indiciário,
conjetural.
Assim, esta pesquisa se propõe em abstrair de casos particulares de testamentos,
considerações gerais, “teóricas”, tendo consciência de que casos individuais podem ser reveladores,
explorando a possibilidade para a história de ligar esses casos particulares a considerações amplas
(FAVERO, 2020). Sendo a micro-história o método que parte de questionamentos gerais e de
respostas locais, ou seja, não tem objetivo de generalizar respostas, mas, através de um lugar, um
documento ou um caso, lindos e examinados a partir do aumento de lente, busca identificar
perguntas com um valor geral, colocando em questionamento a funcionalidade da razão humana

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Documento que possui a descrição e explicação de doenças.
que governa as ações e comportamentos (LEVI, 2020), pode ser possível que venhamos encontrar
em casos específicos, questionamentos gerais sobre as sentimentalidades de sujeitos sobre a morte
no período republicano na cidade de Belém do Pará.
Dessa maneira, a aproximação e uma possível relação com a Antropologia as Emoções
podem concatenar e fomentar muitas contribuições. A ideia de se propor um diálogo entre
micro-história e Antropologia das Emoções veio de uma pesquisa recente que analisou a morte na
perspectiva da Antropologia das Emoções na cidade de Belém/PA no ano de 2019. Por meio de 50
entrevistas realizadas no cemitério Santa Izabel, Elisa Rodrigues (2020), em sua monografia
Antropologia mortuária: sentimentalismo contemporâneo acerca da morte, analisou e identificou o
panorama de como a morte era sentida por aquele grupo de pessoas distintas, e em como esses
sentimentos no contexto de morte configuram o indivíduo socialmente, fazendo com que essas
emoções justificassem a interpretação da morte individual e coletivamente, contribuindo para se
compreender quais sentimentos se conectam com pensamento sobre a morte.
Dessa maneira, o movimento analítico que privilegia as emoções como dimensões
autônomas e que possui histórias e conexões, foi possível na investigação de Elisa Rodrigues que
identificou, categorizou e conectou os sentimentos presentes nas falas daqueles sujeitos que
visitavam o cemitério no contexto de dia de finados do ano de 2019, levando em consideração em
como eles se expressavam, as diferenças e convergências das respostas, seus semblantes, quais
classes e grupos pertenciam e se o ambiente - o cemitério - com sua arquitetura e características
influenciavam aquelas emoções. Assim, a investigação de signos, sinais, indícios e o encontro de
particularidades e singularidades presentes na pesquisa de Elisa Rodrigues, que encontrou respostas
locais, mas que serviram para questionamentos gerais e relevantes a respeito das emoções sobre a
morte (RODRIGUES, 2020), levando, também, o imaginário e a relação do cemitério com a cidade
de Belém, e as diferentes emoções e sensibilidades a respeito do estar no cemitério, percebendo o
espaço cemiterial da e na cidade dos vivos e mortos, como também é pontuado no artigo Às portas
das cidades urbana e cemiterial na cidade de Belém (PA) (RODRIGUES; SILVEIRA, 2022), pode
ser o fio que conecta o método histórico com essa perspectiva antropológica.
Por fim, ainda que seja uma pesquisa que esteja em estado inicial, ela possui potencial para
fazer grandes contribuições para os estudos da historiografia na Amazônia sobre a história dos
sentimentos. Se preocupando com os sentimentos e como estes são essenciais para as condições e
relações humanas, já que são ingredientes da sociabilidade e da vida social, não perdendo de vista
as características específicas e que cada comunidade social estrutura uma definição de emoções
(ROCHA, 2021), a história dos sentimentos sublinha que as emoções podem ser examinadas como
práticas sociais, culturais e políticas, sendo possível enxergar a historicidade das emoções.
Trabalhos como o de Thayna Alves Rocha, que analisam doença e sentimento por meio de
diagnósticos de melancolia na cidade de São Paulo na primeira metade do século XX, são exemplos
de como a abordagem vem ganhando novas discussões e que privilegia dimensões importantes para
a história.
Portanto, tendo como objeto de pesquisa os sentimentos em torno da morte nos testamentos
da cidade de Belém, com análise de microscópio e fazendo ponderações e empréstimos com a
Antropologia das Emoções, este trabalho pode contribuir para o desenvolvimento de uma variedade
de investigações no campo da história dos sentimentos, abrindo possibilidades para que a história
venha a tocar em dimensões emotivas de sujeitos que se situavam no contexto republicano.

Palavras-chaves: Micro-história. Antropologia das Emoções. História das Emoções.

Referências:

CANCELA, Cristina Donza. Casamento e Família em uma capital amazônica (Belém


1870-19200). Belém: Ed. Açaí, 2011.
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
FAVERO, Giovanni. Método da história e ciências sociais: Para uma micro-história aplicada. In:
VENDRAME, Maíra e KARSBURG, Alexandre. Micro-história: um método em transformação.
São Paulo, SP: Letra e Voz, 2020.
FURTADO, Júnia. “A morte como testemunho da vida” In: PINSKY, Carla Bassanezi & LUCA,
Tânia Regina de. O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. p.93-118.
GINZBURG. Carlo. Mitos, emblemas e sinais.São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
LEVI, Giovanni. Micro-história e história global. In: VENDRAME, Maíra e KARSBURG,
Alexandre. Micro-história: um método em transformação. São Paulo, SP: Letra e Voz, 2020.
MARTINS, Ana Paula Vosne. A Utopia Amorosa de Jules Michelet. In: BREPOHL, Marion;
CAPRARO, André Mendes; GARRAFFONI, Renata Senna (Orgs.). Sentimentos na História:
linguagens, práticas, emoções. Curitiba: Ed. UFPR, 2012. p. 154-181.
ROCHA, Thayna Alves. Doença e sentimento: diagnósticos de melancolia no manual Psiquiatria
Clínica e Forense. Contraponto, v. 10, n. 1, p. 461, 2021.
RODRIGUES, Elisa Gonçalves. Antropologia mortuária: sentimentalismo contemporâneo
acerca da morte. Orientadora: Renata de Godoy. 2020. 66 f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Licenciatura em Ciências Sociais) - Faculdade de Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal do Pará. Belém, 2020. Disponível em:
https://bdm.ufpa.br:8443/jspui/handle/prefix/3812. Acesso em: 13 agos 2022.
RODRIGUES, Elisa Gonçalves; SILVEIRA, Flávio. Leonel Abreu. (2022). Às Portas Das Cidades
Urbana E Cemiterial Na Cidade De Belém (PA). Revista Conhecimento Online, 1, 67–85.
https://doi.org/10.25112/rco.v1.2867.
ROSEMBERG, André; DE SOUZA, Luís Antônio Francisco. Notas sobre o uso de documentos
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ROSENWEIN, Barbara H. História das Emoções: problemas e métodos. São Paulo: Letra e Voz,
2011.

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