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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS – DCIES
DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA CONTEMPORÂNEA
PROFª.: DRª. MÁRCIA LEILA C. PEREIRA
DISCENTE: NÚBIO KALISSON OLIVEIRA BARBOSA
PERÍODO: 2021/2
60H

ENSAIO CRÍTICO

AFINAL, O QUE É ETNOGRAFIA?


A DEFINIÇÃO DE ETNOGRAFIA A PARTIR DE TIM INGOLD E MARIZA PEIRANO

TERESINA
04 de Maio de 2022
Ao longo da evolução das ciências que tangem a humanidade, podemos perceber um
fenômeno de mudança, de fluidez. Os paradigmas que, há cem anos, eram cruciais para
determinar o mundo e suas nuances, hoje talvez não nos sirvam mais do que para evidenciar
um processo histórico. Novos paradigmas se formaram, conceitos se perderam ou tornaram-se
obsoletos, e os que, por entre as teorias ainda se mantêm, provavelmente adquiriram novos
sentidos e quem sabe já sejam coisas novas em comparação ao seu princípio.
É assim, na passagem do tempo e na chegada das novas teorias, que a Antropologia,
como ciência humana, tem se encontrado ao longo dos últimos anos. Desde Franz Boas até
autores como Tim Ingold e Mariza Peirano – com os quais este ensaio deseja discutir – a
Antropologia percorreu muitos caminhos, meia dúzia de métodos e foi explicada
diferentemente por diversos pesquisadores.
Um dos grandes conceitos que a Antropologia construiu como essencial à sua
existência foi a de etnografia. Modelos etnográficos, pesquisas etnográficas, a própria teoria
etnográfica carrega esta ideia e permeia a pesquisa antropológica em diversos momentos.
Entretanto, como poderemos imaginar, conceitos como este são remodelados e repensados
conforme novos antropólogos se formam. Após longos anos de uma hegemonia do que se
pensa como etnografia, o autor britânico Tim Ingold e a brasileira Mariza Peirano nos
oferecem importantes reflexões sobre o que realmente significa este conceito, e como este nos
ajuda ou prejudica a pensarmos antropologia.
O termo em si, argumenta Ingold, é tão utilizado hoje em dia, permeando tantos
conceitos teóricos e analíticos que já não possui mais boa parte do seu sentido inicial. A
preocupação com o método, a análise com seus modos-de-fazer científicos e determinados por
extensas leis têm prejudicado a condição humana em que se baseia a pesquisa e a antropologia
em geral.
Muito se fala sobre o caráter etnográfico dos encontros que esta ciência propõe. O
pesquisador, enquanto estuda, por exemplo, um povo indígena amazônico ou pensa as formas
como os variados povos da região se relacionam, costuma inundar seus escritos com este
termo. As relações que se estabelecem entre pesquisador e nativo, o próprio trabalho de
campo, além do que se produz através destes, são confundidos como sendo, em si,
etnográficos. Entretanto, essa confusão retira da pesquisa a consciência de um processo
histórico, de um tempo que passa e permeia a sociedade, e a coloca num recipiente fechado,
retirado de seu todo, e exposto como que uma embalagem numa prateleira de supermercado.
Ingold, em seu artigo Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num
mundo de materiais nos propõe a ideia de “meshwork” (INGOLD, 2012, p. 39). Para ele, ao
pensarmos um mundo repleto de coisas, as relações entre estas coisas, humanas e não-
humanas, representam “não uma rede de conexões, mas uma malha de linhas entrelaçadas de
crescimento e movimento.” (INGOLD, 2012, p. 27) Esta malha, repleta da continuidade e
fluidez que essas relações estabelecem, nos possibilita imaginar uma relação entre homem-
mundo que se opõe ao pensamento que coloca em frente ao indivíduo apenas objetos,
determinados por grau e forma em como servem a estes para fazerem suas vontades. A relação
entre a pesquisa e seu foco atualmente reforça esta objetificação do mundo. A etnografia
enquanto método tem apenas objetos, e cria apenas modelos. Não se pode, então, retratar estes
modelos, recipientes de sociedades, como a definição própria da Antropologia, há de se
repensar as formas que esta se determina na pesquisa.
Observando estas duras críticas, poderíamos pensar que o ideal seria abolir a
etnografia do rol de conceitos que a antropologia utiliza. Entretanto, há um momento em que
este conceito nos é importante, e é na sua natureza documental. Apesar de, as relações que se
observam na pesquisa não serem propriamente etnográficas, o que se faz na transcrição e
elaboração de um ensaio ou monografia, ao passo que se “objetiva fazer uma crônica da vida
e época de um povo” (INGOLD, 2016, p. 406) é corretamente etnográfico.
Para Mariza Peirano “Monografias nunca foram respeitáveis pelo retrato fiel de uma
realidade […] mas por sua contribuição teórico-etnográfica.” (PEIRANO, 2014, p. 383).
Peirano, portanto, traz para a etnografia um poder, que por mais que presente nas diversas
monografias escritas ao longo da história da Antropologia, costuma passar despercebido em
comparação a outros: a produção etnográfica, enquanto descreve cronicamente a vida de um
povo, dá vazão à produção de novas teorias.
As monografias então, se posicionam num novo local. A produção teórico-etnográfica
é importante, pois é por meio dos escritos, baseados em encontros entre povos distintos da
realidade do pesquisador, que se forma um terreno fértil para a incubação de novos conceitos,
novas formas de se teorizar sobre a esfera humana com a qual a antropologia se preocupa.
Ora, se pensarmos A interpretação das culturas de Clifford Geertz e sua descrição
sobre a briga de galos balinesa como um retrato real e localizado sobre os homens de Bali e
sua relação e autorreconhecimento com seus galos-de-briga, ou como os sistemas de apostas
permeiam as relações entre estes homens, certamente encontraremos inconsistências entre a
atualidade e o que foi retratado há quase cinquenta anos.
O retrato das aldeias de Bali de Geertz pode, em primeiro momento, criar uma
realidade distinta dentro da imaginação do leitor. Suas descrições densas, as nuances nativas e
a forma que é retratada a relação entre homem e galo é quase artística. A briga de galo
balinesa como o autor descreve portanto nos aparece quase como etérea, como um conjunto
natural de características inerentemente ligadas às aldeias que o autor percorreu.
Essa visão, apesar de significantemente mais bonita aos olhos, traz consigo uma
distorção da realidade social. Essa distorção, apesar de comum e presente em diversos escritos
etnográficos, é o que anteriormente percebemos como a objetificação das sociedades.
A briga de galo balinesa como Geertz a descreve é um recipiente de sociedade, que
contém o tempo histórico e seus processos congelados em prol da própria descrição e do
modelo de produção, que depende de um ponto de partida e uma finalidade bem delimitadas.
Porém, esta característica traz a distorção da realidade social ao seu lado, e influencia o
pensamento do leitor para associar esta distorção à própria realidade.
Assim, voltamos ao problema que Ingold enxerga. O modelo, a forma e a condição
estética da produção objetificam o povo das aldeias balinesas e os transformam em objetos da
etnografia, atores com os quais o pesquisador interage para buscar sua etnografia. Os sistemas
de apostas também são objetos que exemplificam as relações monetárias e de poder entre
estes atores, e os galos, outros objetos que se relacionam com estes atores. A grande malha de
significados que permeia a realidade balinesa não pode ser contida num modelo estrito e
dependente de ações entre estes objetos e atores como se estes fossem apenas aparatos que
servem de exemplo para elaborar um modelo de sociedade, mas deveria associar suas coisas,
humanas e não-humanas, para se pensar numa sociedade densa e com significados próprios,
utilizados como referentes para se elaborar então outra coisa.
O que há de errado na etnografia das brigas de galo balinesa é a deturpação de seu
propósito. Fruto das distorções e das inconsistências, o recipiente que a comporta demonstra
sua faceta externa, e a realidade desta carrega algo agradável aos sentidos, porém nocivo.
Caso agora olhemos para Interpretação das culturas com outro olhar, usufruindo do
conceito teórico-etnográfico que Peirano propõe, poderemos observá-lo em nova forma, mais
forte e imponente do que a anterior. Ora, o que Mariza propõe é que, ao se debruçar por
monografias clássicas, busquemos aproveitar seu valor teórico. Para ela, essas etnografias
além de demarcar a transcrição de uma experiência real para o campo documental,
“preenchem também um papel sociológico importante – o de embasar os diálogos além
fronteiras.” (PEIRANO, 2014, 383)
A briga de galos balinesa não tem seu propósito em si, nas descrições que a compõem
ou as distorções que estas provocam. Seu sentido é melhor entendido quando, saindo das
fugas policiais ou das apostas, Geertz elabora uma nova teoria que pretende estabelecer novos
conceitos e uma nova visão dentro da Antropologia moderna.
Ora, a própria condição descritiva é resultado desta teoria. Geertz propõe novas formas
de se observar e participar da pesquisa. A sua condição de observador não é externa ao povo
balinês, mas se desenrola dentro das relações, de forma que o autor está ligado a experiência,
numa observação participante que o insere dentro do que se estuda.
O poder da etnografia de Geertz está na criação de um horizonte de pesquisa novo,
distinto da delimitação estrita entre observador e observado, que tenta dar voz a interpretação
pessoal dos indivíduos aos quais a pesquisa está focada. Essa teoria operou como uma
remodelação do conceito de etnografia que deu início a uma valorização da consciência nativa
e a diminuição do apelo à interpretação cultural por parte apenas da visão do pesquisador.
Diante do exposto, poderemos associar Ingold e Peirano para buscar uma nova
concepção de etnografia, não mais como exemplo de uma realidade social estrita e
sistemática, mas como aparelho representante da malha de linhas entrelaçadas da realidade.
Uma nova etnografia que aproveita as características culturais diversificadas e as relações
humanas para pensar e teorizar sobre seu valor e suas estabelecer novas posturas,
aproveitando os fluxos da realidade ao seu favor.
Estes fluxos serão peças-chave para a remodelação da Antropologia e seus conceitos,
para que a forma como pensamos o mundo e a nós mesmos nos coloque em um mundo aberto
e livre, em vez de em recipientes expostos em uma prateleira qualquer.
BIBLIOGRAFIA:
GEERTZ, Clifford. “Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura” e
“Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa”. In: A interpretação das culturas.
LTC, Rio de Janeiro, 2008.
INGOLD, Tim. Antropologia versus etnografia. Cadernos de campo: São Paulo, 2017.
INGOLD, Tim. Chega de etnografia! A educação da atenção como propósito da
antropologia. Educação, Porto Alegre, v. 39, n. 3, p. 404-411, 22 dez. 2016.
INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de
materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 25-44, jan./jun. 2012.
PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano
20, n. 42, p. 377-391, jul./dez. 2014.

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