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Oscar Calavia Sáez

Antropologia como etnografia


A antropologia tende atualmente a se definir como etnografia. Não
em toda parte, certo. Mas sim no Brasil, por exemplo. Essa definição é
uma condição notável da antropologia atual, que não deveríamos
tomar como obvia.
A antropologia nem sempre esteve disposta a se “reduzir” a
etnografia. A etnografia tem uma longa história como atividade
auxiliar. Inicialmente, era o nome de uma atividade quase invisível, e o
que destacava nela não era tanto a etnografia quanto os dados
etnográficos, sendo a etnografia uma atividade de coleta realizada por
indivíduos mais ou menos preparados, que só secundariamente se
definiam como etnógrafos (viajeiros-etnógrafos, missionários-
etnógrafos, etc).
Mais tarde, a etnografia ascendeu na consideração dos acadêmicos,
por causa desse cuidado empirista que enfatiza a qualidade dos dados:
a coleta é uma tarefa complexa que deve ser realizada por um sujeito
especialmente treinado, e de preferência pelo mesmo sujeito que se
ocupará depois da interpretação dos dados. Isso consagra o trabalho de
campo como um dever do próprio antropólogo. Mesmo assim a
etnografia continua estando na base de um esforço piramidal realizado
pelo autor, e que tem, acima da etnografia, mais duas instancias
superiores, a etnologia e a antropologia.
Nesse quadro –que devemos a Mauss-, a etnografia se ocupa
exclusivamente da coleta e organização dos dados; à etnologia cabe
dar um sentido a eles, em termos comparativos, inserindo-os em séries
históricas e geográficas; a antropologia, finalmente, é o esforço teórico
que, com base nesses trabalhos anteriores, alcança a elaboração teórica,
e com ela o conhecimento propriamente científico.
Não pode estranhar que a antropologia tenha vindo a ser entendida
como etnografia numa época em que esse refinamento em três
patamares piramidais já não parece tão verossímil. Um conhecimento
cientifico do ser humano, naquele sentido antigo de um conjunto de
formulas verificáveis que dêem conta das incertezas humanas e
permitam fazer previsões a seu respeito parece muito improvável e
pouco tentador. Desconfiamos das grandes teorias a respeito do Ser
Humano.
As grandes classificações temporais ou geográficas que outrora
davam corpo à etnologia caíram em desuso. Não mais –ou quase não
mais- existe aquele mundo dividido entre o Ocidente e o Resto, onde
cabia à etnologia se ocupar quase em exclusiva da historia, da
sociologia, a arte e a filosofia do Resto.
E enquanto o meio e o topo da pirâmide perdem altura e gás, a
etnografia, outrora tão modesta, parece prosperar. Mesmo as criticas
que a etnografia tem recebido em meio século tem-lha beneficiado,
mostrando que ela em modo algum é, nem poderia ser, essa coleta de
dados mais ou menos simples que antes se esperava. A etnografia é
uma operação mais complexa, muito mais complexa, que na sua
observação participante, nas suas entrevistas ou no diálogo entre o

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Esse obscuro objeto da pesquisa

antropólogo e o nativo leva embutidas as teorias, as hipóteses, as


interpretações. Todo que há de mais essencial na antropologia está no
momento da pesquisa etnográfica, e não espera a se manifestar até o
momento em que o antropólogo se esconda a analisar suas notas e
seus diários.

Há de se elucidar uma diferença. “A antropologia é etnografia”


significa mesmo “é etnografia” ou significa “é apenas etnografia”?
Com o “apenas” continuaríamos ainda a preservar um projeto de
antropologia determinado a alcançar outro patamar mais elaborado, e
talvez incluído no âmbito das ciências naturais. Essa é uma
possibilidade enunciada, há bastantes anos, por Dan Sperber, que
reconhecia a legitimidade de uma tarefa descritiva, a Etnografia,
destinada a satisfazer uma demanda de informação sobre modos de
vida diferentes, mas que propugnava, acima desta, uma antropologia
tendente à ciência natural.
Se a antropologia, pelo contrário, é Etnografia com maiúscula e
sem apenas, isso significaria, por exemplo, que há teoria suficiente na
etnografia, e que a antropologia como etnografia é uma ciência
completa. Disso teremos oportunidade de tratar mais tarde.

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