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Smna. ~O Ire"
LEITURAS AFINS
FRANÇOIS LAPLANTINE
Antropologia do Brasil
Mito, história, etniridade
APRENDER
M:mucla Carneiro da Cunha Coleção Primeiros Passos
A Oleira Ciumenta
Claude Levi-Strauss
MULTIUSO COPIAS
Original da Pasta n° 023
NI° de Folhas F
editora brasiliense
Fgvor devolver este origino'
INTRODUÇÃO
O CAMPO E A ABORDAGEM
ANTROPOLÓGICOS
qüências. Esse pensamento tinha sido até então mitológico, situação de laboratório, da organização "complexa" de nos-
artístico, teológico, filosófico, mas nunca científico no que sas próprias sociedades.
dizia respeito ao homem em si, Trata-se, desta vez, de fazer
passar este último do estauto de sujeito do conhecimento ao
* * *
de objeto da ciência. Finalmente, a antropologia, ou mais
precisamente, o projeto antropológico que se esboça nessa • A antropologia acaba, portanto, de atribuir-se um obje-,
época muito tardia na História — não podia existir o con- to que lhe é próprio: o estudo das populações que não per-
ceito de homem enquanto regiões da humanidade permane- tencem à civilização ocidental. Serão necessárias ainda algu-
ciam inexploradas — surge' em uma região muito pequena mas décadas para elaborar ferramentas de investigação que
do mundo: a Europa. Isso trará, evidentemente, como vere- permitam a coleta direta no campo das observações e infor-
mos mais adiante, conseqüências importantes. mações. Mas logo após ter firmado seus próprios métodos
de pesquisa — no início do século XX — a antropologia
Para que esse projeto alcance suas primeiras realiza- percebe que o objeto empírico que tinha escolhido (as so-
ções, para que o novo saber comece a adquirir um início ciedades "primitivas") está desaparecendo; pois o próprio
de legitimidade entre outras disciplinas científicas, será pre- universo dos "selvagens" não é de forma alguma poupado
ciso esperar a segunda metade do século XIX, durante o pela evolução social. Ela se vê, portanto, confrontada a uma
qual a antropologia se atribui objetos empíricos autônomos: crise de identidade. Muito rapidamente, uma questão se co-
as sociedades então ditas "primitivas", oti seja, exteriores às loca, a qual, como veremos neste livro, permanece desde
áreas de civilização européias ou norte-americanas. A ciên- seu nascimento: o fim do "selvagem" ou, como diz Paul
cia, ao menos tal como é concebida na época, supõe uma Mercier (1966), será que a "morte do primitivo" há de
dualidade radical entre o observador e seu objeto. Enquanto causar a morte daqueles que haviam se dado como tarefa
que a separação (sem a qual não há experimentação possí- o seu estudo? A essa pergunta vários tipos de resposta pu-
vel) entre o.sujeito observante e o objeto observado é obtida deram e podem ainda ser dados. Detenhamo-nos em três
na física (como na biologia, botânica, ou zoologia) pela deles.
natureza suficientemente diversa dos dois termos presentes, 1) O antropólogo aceita, por assim dizer, sua morte,
na história, pela distância no tempo que separa o historiador e volta para o âmbito das outras ciências humanas. Ele
resolve a questão da autonomia problemática de sua disci:
da sociedade estudada, ela consistirá na antropologia, nessa
plina reencontrando, especialmente a sociologia, e notada-
época — e por muito tempo —; em urna distância definiti- mente o que é chamado de "sociologia comparada".
vamente geográfica. As sociedades estudadas pelos primeiros 2) Ele sai em busca de uma outra área de investigação:
antropólogos são sociedades longínquas às quais são atribuí- o camponês, este selvagem de dentro, objeto ideal de seu
das as seguintes características: sociedades de dimensões res- estudo, particularmente bem adequado, já que foi deixado
tritas; que tiveram poucos contatos com os grupos vizinhos; de lado pelos outros ramos das ciências do homem.'
cuja tecnologia é pouco desenvolvida em relação à nossa; e
nas quais há uma menor especialização das atividades e 1. A pesquisa etnográfica cujo objeto pertence à mesma sociedade que
funções sociais. São também qualificadas de "simples"; em o observador foi, de início, qualificada pelo nome de folklore. Foi Van
conseqüência, elas irão permitir a compreensão, como numa Gennep que elaborou os métodos próprios desse campo de estudo. empe-
3
APRENDER ANTROPOLOGIA 17
16 O CAMPO E A ABORDAGEM mernoroLoaioas
zado quando trabalha de forma profissional em algumas
3) Finalmente, e aqui temos um terceiro caminho, que delas, dado que essas cinco áreas mantêm relações estreitas'
inclusive não exclui o anterior (pelo menos enquanto campo
entre si.
de estudo), ele afirma a especificidade de sua prática, não
A antropologia biológica (designada antigamente sob o
mais através de um objeto empírico constituído (o selvagem, nome de antropologia física) consiste no estudo das varia-
o camponês), mas através de urna abordagem epistemoló- ções dos caracteres biológicos do homem no espaço e no
gica constituinte. Essa é a terceira via que começaremos a tempo. Sua problemática é a das relações entre o patrimó-
esboçar nas páginas que se seguem, e que será desenvolvida nio genético e o meio (geográfico, ecológico, social), ela
no conjunto deste trabalho. O objeto teórico da antropolo- analisa as particularidades morfológicas e fisiológicas liga-
gia não está ligado, na perspectiva na qual começamos a
nos situar a partir de agora, a um espaço geográfico, cultu- • das a um meio ambiente, bem como a evolução destas par-
ticularidades. O que deve, especialmente, a cultura a este
ral ou histórico particular. Pois a antropologia não é senão património, mas também, o que esse património (que se
um certo olhar, um certo enfoque que consiste em:
• transforma) deve à cultura? Assim, o antropólogo biologis-
a) o estudo do homem inteiro;
• ta levará em consideração os fatores culturais que influen-
b). o estudo do homem ent todas as sociedades, sob ciam o cerscimento e a maturação do indivíduo. Ele se per-
todas as latitudes em todos os seus estados e em todas
as guntará, por exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor
épocas. da criança africana é mais adiantado do que o da criança
européia?
Essa parte da antropologia, longe de consistir apenas
O ESTUDO DO HOMEM INTEIRO no estudo das formas de crânios, mensurações do esqueleto,
tamanho, peso, cor da pele, anatomia comparada as raças
Só pode ser considerada como antropológica uma abor- e dos sexos, interessa-se em especial — desde os anos 50 —
dagem integrativa que objetive levar em consideração as
pela genética das populações, que permite discernir o que
múltiplas dimensões do ser humano em sociedade. Certa- diz respeito ao inato e ao adquirido, sendo que um e outro
mente, o acúmulo dos dados colhidos a partir de observa- estão interagindo continuamente. Ela tem, a meu ver, um
ções diretas, bem como o aperfeiçoamento das técnicas de papel particularmente importante a exercer para que não
investigação, conduzem necessariamente a uma especializa- sejam rompidas as relações entre as pesquisas das ciências
ção do saber. Porém, uma das vocações maiores de nossa da vida e as das ciências humanas.
abordagem consiste em não parcelar o homem mas, ao con-
A antropologia pré-histórica é o estudo do homem atra-
trário, em tentar relacionar campos de investigação freqüen- vés dos vestígios materiais enterrados no solo (ossadas, mas
temente separados. Ora, existem cinco áreas principais da
também quaisquer marcas da atividade humana). Seu pro-
antropologia, que nenhum pesquisador pode, evidentemente,
jeto, que se liga à arqueologia, visa reconstituir as sociçda-
dominar hoje em dia, mas às quais ele deve estar sensibili-
des desaparecidas, tanto em suas técnicas e organizações
sociais, quanto em suas produções culturais e artísticas. No-
nhando-se em explorar exclusivamente (mas de uma forma magistral) as tamos que esse ramo da antropologia trabalha com uma
a distância social e cultural que separa o
tradições populares camponesas,
objeto do sujeito, substituindo nesse caso a distância geográfica da
antro- abordagem idêntica às da antropologia histórica e da antro-
pologia 'exótica'.
IS O CAMPO E A ABORDAGEM ANTROPOLÓGICOS APRENDER ANTROPOLOGIA 19
pologia social e cultural de que trataremos mais adiante. O se interessa também pelas imensas áreas abertas pelas novas
historiador é antes de tudo um historiógrafo, isto é, um técnicas modernas de comunicação (mass media e cultura
pesquisador que trabalha a partir do acesso direto aos textos. do audiovisual).
O especialista em pré-história recolhe, pessoalmente, objetos A antropologia psicológica. Aos três primeiros pólos
no solo. Ele realiza um trabalho de campo, como o realizado de pesquisa que foram mencionados, e que são habitual-
na antropologia social na qual se beneficia de depoimentos mente os únicos considerados como constitutivos (com a
antropologia social e a cultural, das quais falaremos a se-
A antropologia lingüística. A linguagem é, com toda guir) do campo global da antropologia, fazemos questão
evidência, parte do patrimônio cultural de uma sociedade. pessoalmente de acrescentar um quinto pólo: o da antropo-
através dela que os indivíduos que compõem uma socie- logia psicológica, que consiste no estudo dos processos e do
dade se expressam e expressam seus valores, suas preocupa- funcionamento do psiquismo humano. De fato, o antropó-
ções, seus penáamentos. Apenas o estudo da língua permite logo é em primeira instância confrontado não a conjuntos
compreender: sociais, e sim a indivíduos. Ou seja, somente através dos
• como os homens pensam o que vivem e o que sen- comportamentos — conscientes e inconscientes — dos seres
tem, isto é, suas categorias psicoafetivas e psicocognitivas humanos particulares podemos apreender essa totalidade sem
(etnolingüística); a qual não é antropologia. E a razão pela qual a dimensão
• como eles expressam o universo e o social (estudo psicológica (e também psicopatológica) é absolutamente in-
da literatura, não apenas escrita, mas também de tradição dissociável do campo do qual procuramos aqui dar conta.
oral); Ela é parte integrante dele.
• como, finalmente, eles interpretam seus próprios A antropologia social e cultural (ou etnologia) nos de-
saber e saber-fazer (área das chamadas etnociências). terá por muito mais tempo. Apenas nessa área temos alguma
A antropologia lingüística, que é uma disciplina que competência, e este livro tratará essencialmente dela. Assim
se situa no encontro de várias outras,' não diz respeito ape- sendo, toda vez que utilizarmos a partir de agora o termo
nas, e de longe, ao estudo dos dialetos (dialetologia). Ela antropologia mais genericamente, estaremos nos referindo
à antropologia social e cultural (ou etnologia), mas pro-
2. Foi notadamente graças a pesquisadores como Paul Rivet e André curaremos nunca esquecer que ela é apenas um dos aspectos
Leroi-Gourhan (1964) que a articulação entre as áreas da antropologia físi- da antropologia. Um dos aspectos cuja abrangência é consi-
ca, biológica e sócio-cultural nunca foi rompida na França. Mas continua derável, já que diz respeito a tudo que constitui uma socie-
sempre ameaçada de ruptura devido a um movimento de especialização
facilmente compreensível. Assim, colocando-se do ponto de vista da antro- dade: seus modos de produção econômica, suas técnicas,
pologia social, Edmund Leach (1980) fala da "desagradável obrigação de sua organização política e jurídica, seus sistemas de paren-
fazer ménage à irais com os representantes da arqueologia pré-histórica e tesco, seus sistemas de conhecimento, suas crenças religio-
da antropologia física", comparando-a à coabitação dos psicólogos e dos
especialistas da observação de ratos em laboratório.
sas, sua língua, sua psicologia, suas criações artísticas.
-3. Foi o antropólogo Edward Sapir (1967) quem, além de introduzir o Isso posto, esclareçamos desde já que a antropologia
estudo da linguagem entre os materiais antropológicos, começou também a consiste menos no levantamento sistemático desses aspectos
mostrar que um estudo antropológico da língua (a língua como objeto de
pesquisa inscrevendo-se na cultura) conduzia a um estudo lingüístico da do que em mostrar a maneira particular com a qual estão
cultura (a língua como modelo de conhecimento da cultura). relacionados entre si e através da qual aparece a especifici- 5
PvCistiv" f e oin eg o enate-~ ,,cto (9,1-ro á.
APRENDER ANTROPOLOGIA 21
O CAMPO E A ABORDAGEM ANTROPOLÓGICOS
20
das primeiras sociedades estudadas (as sociedades extra-euro-
dade de uma sociedade. E precisamente esse ponto de vista péias), ela é a meu ver indissociavelmente ligada ao modo
da totalidade, e o fato de que o antropólogo procura com- de conhecimento que foi elaborado a partir do estudo dessas
preender, como diz Lévi-Strauss, aquilo que os homens "não sociedades: a observação direta, por impregnação lenta e
pensam habitualmente em fixar na pedra ou no papel" (nos- contínua de grupos humanos minúsculos com os quais man-
sos gestos, nossas trocas simbólicas, os menores detalhes dos
temos uma relação pessoal.
nossos comportamentos), que faz dessa abordagem um trata-
mento fundamentalmente difereqte dos utilizados setorial- E Além disso, apenas a distância em relação a nossa socie-
dade (mas uma distância que faz com que nos tornemos ex-
dade
mente p'elos geógrafos, economist is, juristas, sociólogos, psi-
tremamente próximos daquilo que é longínquo) nos permite
cólogos...
fazer esta descoberta: aquilo que tomávamos por natural em
nós mesmos é, de fato, cultural; aquilo que era evidente é
infinitamente problemático. Disso decorre a necessidade, na
O ESTUDO DO HOMEM EM SUA DIVERSIDADE
formação antropológica, daquilo que não hesitarei em chamar
• A antropologia não é apenas o estudo de tudo que com- de "estranhamento" (depaysernent), a perplexidade provo-
põe uma sociedade. Ela é o estudo de todas as sociedades cada pelo encontro das culturas que são para nós as mais
humanas (a nossa. inclusive), ou seja, das culturas da huma- distantes, e cujo encontro vai levar a uma modificação do
nidade como um todo em suas diversidades históricas e .0' olhar que se tinha sobre si mesmo. De fato, presos a uma
c4 única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas
geográficas.
míopes quando se trata da nossa. A experiência da alteri-
, Visando constituir os "arquivos" da humanidade em
suas diferenças significativas, ela, inicialmente privilegiou dade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo
claramente as áreas de civilização exteriores à nossa. Mas que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa difi-
a antropologia não poderia ser definida por um objeto empí- culdade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, fami-
rico qualquer (e, em especial, pelo tipo de sociedade ao qual liar, cotidiano, e que consideramos "evidente". Aos poucos,
ela a princípio se dedicou preferencialmente ou mesmo ex- notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos,
clusivamente). Se seu campo de observação consistisse no mímicas, posturas, reações afetivas) não tem realmente nada
estudo das sociedades preservadas do contato com o Oci- de "natural". Começamos, então, a nos surpreender com
dente, :ela se encontraria hoje, como já comentamos, sem aquilo que diz respeito a nós mesmos, a nos espiar. O co-
nhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevita-
objeto.
Ocorre, porém, que se a especificidade da contribuição velmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos
dos antropólogos em relação aos outros pesquisadores em especialmente reconhecer que somos uma cultura possível
ciências humanas não pode ser confundida com a natureza entre tantas outras, mas não a únical
Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem,
4. Os antropólogos começaram a se dedicar ao estudo das sociedades de que a antropologia, como já o dissemos e voltaremos a
industriais avançadas apenas muito recentemente. As primeiras pesquisas dizer, f& tanta questão, é sua aptidão praticamente infinita
trataram primeiro, como vimos, dos aspectos •tradicionais " das sociedades
"não tradicionais" (as comunidades 'camponesas européias), em seguida,
para inventar modos de vida e formas de organização social
dos grupos marginais, e finalmente, há alguns anos apenas na França, do extremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa disci-
C
setor urbano.
O CAMPO E A ABORDAGEM ANTROPOLÓGICOS APRENDER ANTROPOLOGIA 23
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plina permite notar, com a maior proximidade possível, que uma mutação de si mesmo. Como escreve Roger Bastide
essas formas de comportamento e de vida em sociedade em sua Anatomia de André Gide: "Eu sou mil possíveis em
que tomávamos todos espontaneamente por inatas (nossas mim; mas não posso me resignar a querer apenas um deles".
maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, A descoberta da alteridade é a de uma relação que nos
comemorar os eventos de nossa existência...) são, na reali- permite deixar de identificar nossa pequena província de
dade, o produto de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que humanidade com a humanidade, e correlativamente deixar
os seres humanos têm em comum é sua capacidade para de rejeitar o presumido "selvagem" fora de nós mesmos.
se diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes, lín- Confrontados à multiplicidade, a priori enigmática, das cul-
guas, modos de conhecimento, instituições, jogos profunda- turas, somos aos poucos levados a romper com a, abordagem
mente diversos; pois se há algo natural nessa espécie parti- comum que opera sempre a naturalização do social (como
cular que é a espécie humana, é sua aptidão à variação se nossos comportamentos estivessem inscritos em nós desde
cultural. o nascimento, e não fossem adquiridos no contato com a
O projeto antropológico consiste, portanto, no reconhe- cultura na qual nascemos). A romper igualmente com o
cimento, conhecimento, juntamente com a compreensão de humanismo clássico que também consiste na identificação
uma humanidade plural. Isso supõe ao mesmo tempo a rup- do sujeito com ele mesmo, e da cultura com a nossa cultura.
tura com a figura da monotonia do duplo, do igual, do De fato, a filosofia clássica (antológica com São Tomás, re-
•idêntico, e com a exclusão num irredutível "alhures". As flexiva com Descartes, criticista com Kant, histórica com
sociedades mais diferentes da nossa, que consideramos espon- Flegel), mesmo sendo filosofia social, bem como as grandes
taneamente como indiferenciadas, são na realidade tão dife-
religiões, nunca se deram como objetivo o de pensar a dife-
rentes entre si quanto o são da nossa. E, mais ainda, elas são
para cada uma delas muito raramente homogêneas (como
seria de se esperar) mas, pelo contrário, extremamente diver- como atestam notadamente os relatos de viagens realizadas na Europa
sificadas, participando ao mesmo tempo de uma comum desde a Idade Média, por viajantes vindos da Ásia. E os índios Flathead
de quem nos fala Lévi-Strauss eram tão curiosos do que ouviam dizer
humanidade. dos brancos que tomaram um dia •a iniciativa de organizar expedições a
A abordagem antropológica provoca, assim, uma ver- fim de encontrá-los. Poderíamos multiplicar os exemplos. Isso não impede
dadeira revolução epistemológica, que começa por uma re- que a constituição de um saber de vocação científica sobre a alteridade
sempre tenha se desenvolvido a partir da cultura européia. Esta elaborou
volução do olhar. Ela implica um descentramento radical, um orientalismo, um americanismo, um africanismo, um oceanismo, en- '
uma ruptura com a • idéia de que existe um "centro do quanto que nunca ouvimos falar de um "europefsmo", que teria se consti-
mundo", e, correlativamente, uma ampliação do saber' e tuído como campo de saber teórico a partir da Ásia, da África ou da
Oceania.
Isso posto, as condições de produção históricas, geográficas, sociais e
5. Veremos que a antropologia supõe não apenas esse desmembramen- culturais da antropologia constituem um aspecto que seria rigorosamente
to (eclatement) do saber, que se expressa no relativismo (de um Jean de antiantropológico perder de vista, mas que não devem ocultar a vocação
Léry) ou no ceticismo (de um Montaigne), ligados ao questionamento da (evidentemente problemática) de nossa disciplina, que visa superar a irrcdu
cultura à qual se pertence, mas também uma nova pesquisa e uma recons- tibilidadc das culturas. Como escreve Lévi-Strauss: 'Não se trata apenas
tituição deste saber. Mas nesse ponto coloca-se uma questão: será que a de elevar-se acima dos valores próprios da sociedade ou do grupo do
antropologia é o discurso do Ocidente (e somente dele) sobre a alteridade? observador, e sim de seus métodos de pensamento; é preciso alcançar uma
Evidentemente, o europeu não foi o único a interessar-se pelos hábitos formulação válida, não apenas para um observador honesto c objetivo,
e pelas instituições do não-europeu. A recíproca também é verdadeira, mas para todos os observadores possíveis". 7
- is
APRENDER ANTROPOLOGIA 25
24 O CAMPO E A ABORDAGEM ANTROPOLOGICOS
2) A segunda dificuldade diz respeito ao grau de cien- dades sem história", do que "sociedades que não querem ter
tificidade que convém atribuir à antropologia. O homem está estórias" (únicos objetos da antropologia clássica) a nossas
em condições de estudar cientificamente o homem, isto é, próprias sociedades qualificadas de "sociedades quentes".
um objeto que é de mesma natureza que o sujeito? E nossa Essa preocupação de separação entre as abordagens
prática se encontra novamente divididaentre os que pensam, histórica e antropológica está longe, como veremos, de ser
com Radcliff e-Brown (1968), que as sociedade são sistemas unânime, e a história recente da antropologia testemunha
naturais que devem ser estudados segundo os métodos com- também um desejo de coabitação entre as duas disciplinas.
provados pelas ciências da natureza,' e os que pensam, com Aqui, no Nordeste do Brasil, onde começo a escrever este
Evans-Pritchard (1969), que é preciso tratar as sociedades livro, desde 1933, um autor conto Gilberto Freyre, empe-
não como sistemas orgânicos, mas como sistemas simbólicos. nhando-se em compreender a formação da sociedade brasi-
Para estes ,últimos, longe de ser uma "ciência natural da leira, mostrou o proveito que a antropologia podia tirar do
sociedade" (Radcliffe-Brown), a antropologia deve antes ser conhecimento histórico.
considerada como uma "arte" (Evans-Pritchard). 4) Uma quarta dificuldade provém do fato de que
3) Uma terceira dificuldade provém da relação ambígua nossa prática oscila sem parar, e isso desde seu nascimento,
que a antropologia mantém desde sua gênese com a História. entre a pesquisa que se pode qualificar de fundamental e
Estreitamente vinculadas nos séculos XVIII e XIX, as duas aquilo que é designado sob o termo de "antropologia apli-
práticas vão rapidamente se emancipar uma da outra no cada".
século XX, procurando ao mesmo tempo se reencontrar pe- Começaremos examinando o segundo termo da alter-
riodicamente. As rupturas manifestas se devem essencialmente nativa aqui colocada e que continua dividindo profunda-
a antropólogos. Evans-Pritchard: "O conhecimento da his- mente os pesquisadores. Durkheim considerava que a socio-
tória das sociedades não é de nenhuma utilidade quando se logia não valeria sequer uma hora de dedicação se ela não
procura compreender o funcionamento das instituições". pudesse ser útil, e muitos antropólogos compartilham sua opi-
Mais categórico ainda, Leach escreve: "A geração de antro- nião. Margaret Mead, por exemplo, estudando o comporta-
pólogos à qual pertenço tira seu orgulho de sempre ter-se mento dos adolescentes das ilhas Samoa (1969), pensava
recusado a tomar a História em consideração". Convém que seus estudos deveriam permitir a instauração de urna
também lembrar aqui a distinção agora famosa de Lévi- sociedade melhor, e, mais especificamente a aplicação de
Strauss opondo as "sociedades frias", isto é, "próximas do uma pedagogia menos frustrante à sociedade americana. Hoje
grau zero de temperatura histórica", que são menos "socie- vários colegas nossos consideram que a antropologia deve
colocar-se "a serviço da revolução" (segundo especialmente
8. Ao modelo orgânico dos funcionalistas ingleses, Lévi-Strauss substi- Jean Copans, 1975). O pesquisador toma-se, então, um mi-
tuiu, como veremos, um modelo lingüístico, e mostrou que trabalhando no litante, um "antropólogo revolucionário", contribuindo na
ponto de encontro da natureza (o inato) e da cultura (tudo o que não é construção de uma "antropologia da libertação". Numerosos
hereditariamente programado e deve ser inventado pelos homens onde a
natureza não programou nada), a antropologia deve aspirar a tornar-se uma pesquisadores ainda reivindicam a qualidade de especialistas,
ciência natural: 'A antropologia pertence às ciências humanas, seu nome de conselheiros, participando em especial dos programas de
o proclama suficientemente; mas se se resigna em fazer seu purgatório desenvolvimento e das decisões políticas relacionadas à ela-
entre as ciências sociais, é porque não desespera de despertar entre as
ciências naturais na hora do julgamento final" (Lévi-Strauss, 1973). boração desses programas. Queríamos simplesmente observar
APRENDER ANTROPOLOGIA 29
28 •. O CAMPO E A ABORDAGEM ANTROPOLÓGICOS
A questão que está hoje colocada para qualquer antro- convencer reciprocamente da necessidade de não deixar se
pólogo é a seguinte: há uma possibilidade em minha socie- perder formas de pensamento e atividade únicas.
dade (qualquer que seja) permitindo-lhe o acesso a um está- b) Urgência de análise das mutações culturais impostas
gio de sociedade industrial (ou pós-industrial) sem conflito pelo desenvolvimento extremamente rápido de todas as so-
dramático, sem risco de despe'rsonalização? ciedades contemporâneas, que não são mais "sociedades tra-
dicionais", e sim sociedades que estão passando por um de-
Minha convicção é de que o antropólogo, para ajudar senvolvimento tecnológico absolutamente inédito, por muta-
os atores sociais a responder a essa questão, não deve, pelo ções de suas relações sociais, por movimentos de migração
menos enquanto antropólogo, trabalhar para a transformação interna, e por um processo de urbanização acelerado. Através
das sociedades que estuda. Caso contrário, seria conveniente, da especificidade de sua abordagem, nossa disciplina deve,
de fato, que se convertesse em economista, agrônomo, mé- não fornecer respostas no lugar dos interessados, e sim for-
dico, político, a não ser que ele seja motivado por alguma mular questões com eles, elaborar com eles uma reflexão
concepção messiânica da antropologia. Auxiliar uma deter- racional (e não mais mágica) sobre os problemas colocados
minada cultura na explicitação para ela mesma de sua pró- pela crise mundial — que é também uma crise de identidade
pria diferença é uma coisa; organizar política, econômica e — ou ainda sobre o plurarismo cultural, isto é, o encontro
socialmente a evolução dessa diferença é uma outra coisa. de línguas, técnicas, mentalidades. Em suma, a pesquisa an-
Ou seja, a participação do antropólogo naquilo que é hoje tropológica, que não é de forma alguma, como podemos
a vanguarda do anticolonialismo e da luta para os direitos notar, uma atividade de luxo, sem nunca se substituir aos
humanos e das minorias étnicas é, a meu ver, uma conse- projetos e às decisões dos próprios atores sociais, tem hoje
qüência de nossa profissão, mas não é a nossa profissão como vocação maior a de propor não soluções mas instru-
propriamente dita. mentos de investigação que poderão ser utilizados em espe-
cial para reagir ao choque da aculturação, isto é, ao risco
Somos, por outro lado, diretamente confrontados a uma de um desenvolvimento conflituoso levando à violência ne-
dupla urgência à qual temos o dever de responder. gadora das particularidades econômicas, sociais, culturais de
a) Urgência de preservação dos patrimônios culturais um povo.
locais ameaçados (e a respeito disso a etnologia está desde 5) Uma quinta dificuldade diz respeito, finalmente, à
o seu nascimento lutando contra o tempo para que a trans- natureza desta obra que deve apresentar, em um número de
crição dos arquivos orais e visuais possa ser realizada a páginas reduzido, um campo de pesquisa imenso, cujo desen-
volvimento recente é extremamente especializado. No final
tempo, enquanto os últimos depositários das tradições ainda
do século XIX, um único pesquisador podia, no limite, do-
estão vivos) e, sobretudo, de restituição aos habitantes das
minar o campo global da antropologia (Boas fez pesquisas
diversas regiões nas quais .trabalhamos, de seu próprio saber em antropologia social, cultural, lingüística, pré-histórica, e
e saber-fazer. Isso supõe uma ruptura com a concepção assi- também mais recentemente o caso de Ktoeber, provavel-
métrica da pesquisa, baseada na captação de informações. mente o último antropólogo que explorou — com sucesso —
Não há, de fato, antropologia sem troca, isto é, sem itine- uma área tão extensa). Não é, evidentemente, o caso hoje
rário no decorrer do qual as partes envolvidas chegam a Se em dia. O antropólogo considera agora — com razão — que
APRENDER ANTROPOLOGIA 33
32 o CAMPO E A ABORDAGEM ANTROPOLÓGICOS
Eu queria finalmente acrescentar que este livro dirige-se
é competente apenas dentro de uma área restrita ° de sua ao mais amplo público possível. Não àqueles que têm por
própria disciplina e para uma área geográfica delimitada. profissão a antropologia — duvido que encontrem nele um
Era-me portanto impossível, dentro de um texto de di- grande interesse — mas a todos que, em algum momento
mensões tão restritas, dar conte, mesmo de uma forma par- de sua vida (profissional, mas também pessoal), possam ser
cial, do alcance e da riqueza dos campos abertos pela antro- levados a utilizar o modo de conhecimento tão característico
pologia. Muito mais modestamente, tentei colocar um certo da antropologia. Esta é a razão pela qual, entre o inconve-
número de referências, definir alguns conceitos a partir dos niente de utilizar uma linguagem técnica e o de adotar uma
quais o leitor poderá, espero, interessar-se em ir mais adiante. linguagem menos especializada, optei voluntariamente pela
Ver-se-á que este livro caminha em espiral. As preocu- segunda. Pois a antropologia, que é a ciência do homem por
pações que estão no centro de qualquer abordagem antro- excelência, pertence a todo o mundo. Ela diz respeito a
pológica e que acabam de ser mencionadas serão retomadas, todos nós.
mas de diversos pontos de vista. Eu lembrarei em primeiro
lugar quais foram as principais etapas da constituição de
nossa disciplina e como, através dessa história da antropo-
logia, foram se colocando progressivamente as questões que
continuam nos interessando até hoje. Em seguida, esboçarei
os pólos teóricos — a meu ver cinco — em volta dos quais
oscilam o pensamento e a prática antropológica. Teria sido,
de fato, surpreendente, se, procurando dar conta da plurari-
dade, a antropologia permanecesse monolítica. Ela é ao con-
trário claramente plural. Veremos no decorrer deste livro
que existem perspectivas complementares, mas também mu-
tuamente exclusivas, entre as quais é preciso escolher. E, em
vez de fingir ter adotado o ponto de vista de Sirius, em vez
de pretender lima neutralidade, que nas ciências humanas é
um engodo, esforçando-me ao mesmo tempo para apresentar
com o máximo de objetividade o pensamento dos outros, não
dissimularei as minhas próprias opções. Finalmente, em uma
última parte, os principais eixos anteriormente examinados
serão, em um movimento por assim dizer retroativo, reava-
liados com o objetivo de definir aquilo que constitui, a
meu ver, a especificidade da antropologia.
Antropologia do Brasil
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O que é Religião
Guiado pela Lua Rubem Alves
Xantanistno o USD ritual tia
flyCJImasca no culto O que é Tabu Tradução:
do Santo !Mane Munique Angras Marie-Agires armee!
Edward MacRae
O que e Cultura Prefácio:
Medicinas Paralelas José Luiz dos Santos
Maria Isaura Pereira de QIICÍMZ
Laplantine/P.-L. Rabeyron
A Oleira Ciumenta
Claude Levi-Strauss
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uma alma? O pecado original também lhes diz respeito? — bém a Inglaterra, a França, e algumas de nossas regiões
questão capital para os missionários, já que da resposta irá da Espanha. (...) Pois a maioria dessas nações do
depender o fato de saber se é possível trazer-lhes a revelação. mundo, senão todas, foram muito mais pervertidas, irra-
Notamos que se, no século XIV, a questão é colocada, não cionais e depravadas, e deram mostra de muito menos
é de forma alguma solucionada. Ela será definitivamente prudência e sagacidade em sua forma de se governarem
resolvida apenas dois séculos mais tarde. e exercerem as virtudes morais. Nós mesmos fomos
piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a
Nessa época é que começam a se esboçar as duas ideo-
extensão de nossa Espanha, pela barbárie de nosso modo
logias concorrentes, mas das quais uma consiste no simé-
de vida e pela depravação de nossos costumes"
trico invertido da outra: a recusa do estranho apreendido a
partir de uma falta, e cujo corolário é a boa consciência que
se tem sobre si e sua sociedade;2 a fascinação pelo estranho
Sepulvera:
cujo corolário é a má consciência que se tem sobre si e sua
sociedade.
"Aqueles que superam os outros em prudência e
Ora, os próprios termos dessa dupla posição estão colo- razão, mesmo que não sejam superiores em força física,
cados desde a metade do século XIV: no debate, que se aqueles são, por natureza, os senhores; ao contrário,
torna uma controvérsia pública, que durará vários meses porém, os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo que
(em 1550, na Espanha, em Valladolid), e que opõe o domi- tenham as forças físicas para cumprir todas as tarefas ,
nicano Las Casas e o jurista Sepulvera. necessárias, são por natureza servos. E é justo e útil
que sejam servos, e vemos isso sancionado pela própria
lei divina. Tais são as nações bárbaras e desumanas,
Las Casas: estranhas à vida civil e aos costumes pacíficos. E será
sempre justo e conforme o direito natural que essas
"Àqueles que pretendem que os índios são bárba- pessoas estejam submetidas ao império de príncipes e
ros, responderemos que essas pessoas têm aldeias, vilas, de nações mais cultas e humanas, de modo que, graças
cidades, reis, senhores e uma ordem política• que, em à virtude destas e à prudência de suas leis, eles aban-
alguns reinos, é melhor que a nossa. (...) Esses povos donem a barbárie e se conformem a uma vida mais
igualavam ou até superavam muitas nações e uma ordem humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse
política que, em alguns reinos, é melhor que a nossa. império, pode-se impô-lo pelo meio das armas e essa
(...) Esses povos igualavam ou até superavam muitas guerra será justa, bem como o declara o direito natural
nações do mundo conhecidas como policiadas e razoá- que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e hu-
veis, e não eram inferiores a nenhuma delas. Assim, manos dominem aqueles que não têm essas virtudes".
igualavam-se aos gregos e os romanos, e até, em alguns
de seus costumes, os superavam. Eles superavam tam- Ora, as ideologias que estão por trás desse duplo dis-
curso, mesmo que não se expressem mais em termos religio-
2. Sendo, as duas variantes dessa figura: 1) a condescendência e a
sos, permanecem vivas hoje, quatro séculos após a polêmica
proteção paternalista do outro: 2) sua exclusão.
3
APRENDER ANTROPOLOGIA 41
40 A PREDISPORIA DA ANTROPOLOGIA
Essa separação entre um estado de natureza concebido 2) Os julgamentos que acabamos de relatar — que
estão, notamos, em ruptura com a ideologia dominante do
por Pauw como irremediavelmente imutável, e o estado de século XVIII, da qual falaremos mais adiante, e em especial
civilização, pode ser visualizado num mapa-múndi. No século
com o Discurso sobre a Desigualdade, de. Rousseau, publi-
XVIII, a enciclopédia efetua, dois traçados: um longitudinal, cado vinte anos antes — por excessivos que sejam, apenas
que passa por Londres e Paris, situando de um lado a Euro- radicalizam idéias compartilhadas por muitas pessoas nessa
pa, a África e a Ásia, de outro a América, e um latitudinal época. Idéias que serão retomadas e expressas nos mesmos
dividindo o que se encontra ao norte e ao sul do equador. termos em 1830 por Hegel, o qual, em sua Introdução à
Mas, enquanto para Buffon, a proximidade ou o afastamento Filosofia da História, nos expõe o horror que ele ressente
da linha equatorial são explicativos não apenas da constitui- frente ao estado de natureza, que é o desses povos que jamais
ção física mas do moral dos povos, o autor das Pesquisas ascenderão 'a "história" e à "consciência de si".
Filosóficas sobre os Americanos escolhe claramente o critério Na leitura dessa Introdução, a América do Sul parece
latitudinal, fundamento aos seus olhos da distribuição da mais estúpida ainda do que a do Norte. A Ásia aparente-
população mundial, distribuição essa não cultural e sim na- mente não está muito melhor. Mas é a África, e, em especial,
tural da civilização e da barbárie: "A natureza tirou tudo a África profunda do interior, onde a civilização nessa época
de um hemisfério deste globo para dá-lo ao outro". "A dife- ainda não penetrou, que representa para o filósofo a forma
rença entre um hemisfério e o outro (o Antigo e o Novo mais nitidamente inferior entre todas nessa infra-humanidade:
Mundo) é total, tão grande quanto poderia ser e quanto po-
demos imaginá-la": de um lado, a humanidade, e de outro, "E o país do ouro, fechado sobre si mesmo, o país
da infância, que, além do dia e da história consciente,
a "estupidez na qual vegetam" esses seres indiferenciados:
está envolto na cor negra da noite".
"Igualmente bárbaros, vivendo igualmente da caça
Tudo, na África, é nitidamente visto sob o signo da
e da pesca, em países frios, estéreis, cobertos de flo-
falta absoluta: os "negros" não respeitam nada, nem mesmo
restas, que desproporção se queria imaginar entre eles?
eles próprios, já que comem carne humana e fazem comércio
Onde se sente as mesmas necessidades, onde os meios
da "carne" de seus próximos. Vivendo em uma ferocidade
•de satisfazê-los são os mesmos, onde as influências do bestial inconsciente de si mesma, em uma selvageria em
ar são tão semelhantes, é possível haver contradição nos
estado bruto, eles não têm moral, nem instituições sociais,
costumes ou variações nas idéias?" religião ou Estado.' Petrificados em uma desordem inexorá-
vel, nada, nem mesmo as forças da colonização, poderá nunca
Pauw responde, evidentemente, de forma negativa. Os preencher o fosso que os separa da História universal da
indígenas americanos vivem em um "estado • de embruteci-
humanidade. 4.
Esse fascínio exercido pelo indígena americano, e em na filosofia — os pensadores das Lumières" —, mas tam-
especial por te Huron,9 protegido da civilização e que nos bém nos salões literários e nos teatros parisienses. Em 1721,
convida a reencontrar o universo caloroso da natureza, triun- é montado um espetáculo intitulado O Arlequim Selvagem.
fa nos séculos XVII e XVII.!. Nas primeiras Relações dos • O personagem de um Huron trazido para Paris declama no
jesuítas que se instalam entre os Hurons desde 1626 pode-se palco:
ler:
"Vocês são loucos, pois procuram com muito em-
"Eles são afáveis, liberais, moderados... Todos os penho uma infinidade de coisas inúteis; vocês são po-
nossos padres que freqüentaram os Selvagens conside- bres, pois limitam seus bens ao dinheiro, em vez de
ram que a vida se passa mais docemente entre eles do simplesmente gozar da criação, como nós, que não que-
que entre nós". Seu ideal: "viver em comum sem pro- remos nada a fim de desfrutar mais livremente de tudo".
cesso, contentar-se de pouco sem avareza, ser assíduo
no trabalho". É a época em que todos querem ver os lndes Galantes
que Rameau acabou de escrever, a época em que se exibem
Do lado dos livres-pensadores, é o mesmo grito de entu- nas feiras verdadeiros selvagens. Manifestações essas que
siasmo; La Hontan: constituem uma verdadeira acusação contra a civilização.
Depois, o fascínio pelos índios será substituído progressiva-
"Ah! Viva os Hurons que sem lei, sem prisões e mente, a partir do fim do século XVIII, pelo charme e prazer -
sem torturas passam a vida na doçura, na tranqüilidade, idílico que provoca o encanto das paisagens e dos habitantes
e gozam de uma felicidade desconhecida dos franceses". dos mares do sul, dos arquipélagos polinésios, em especial
Samoa, as ilhas Marquises, a ilha de Páscoa, e sobretudo
Essa admiração não é compartilhada apenas pelos nave- Taiti. Aqui está, por exemplo, o que escreve Bougainville
gadores estupefatos.' O selvagem ingressa progressivamente em sua Viagem ao Redor do Mundo (reed. 1980):
9. Um dos primeiros textos sobre os Hurons é publicado em 1632: Le "Seja dia ou noite, as casas estão abertas. Cada um
Grand Voyage ciu Pa» des Hurons, de Gabriel Sagard. A seguir temos: colhe as frutas na primeira árvore que encontra, ou na
em 17.03, Le Supplement aux Voyages du liaron de La Hontan oà l'on
Trouire des Dialogues Curieux entre 1'Am/eus et un Sauvage; em 1744,
casa onde entra... Aqui um doce ócio é compartilhado.
Moeurs dez Sauvages Américains, de Lafitau; em 1767. L'Ingénu, de Vol- pelas mulheres, e o empenho em agradar é sua mais
taire... preciosa ocupação... Quase todas aquelas ninfas esta-
Notemos que de cada população encontrada nasce um estereótipo. Se
o discurso europeu sobre os Astecas e os Zulus faz, na maior parte das
vam nuas... As mulheres pareciam não querer aquilo
vezes, referência à crueldade, o discurso sobre os Esquimós a sua hospita- que elas mais desejavam... Tudo lembra a cada ins-
lidade, estes últimos não hesitando em oferecer suas mulheres como tante as doçuras do amor, tudo incita ao abandono".
presente, a imagem da bondade inocente é sem dúvida predominante em
grande parte na literatura sobre os índios.
1 1. Condillac escreve: 'Nós que nos consideramos instruidos, precisa-
10.No século XVIII, um marinheiro francês escreve em seu diário de
viagem: 'A inocência e a tranqüilidade está entre eles, desconhecem o ríamos ir entre os povos mais ignorantes, para aprender destes o começo
orgulho e a avareza e não trocariam essa vida e seu país por qualquer de nossas descobertas: pois é sobretudo desse começo que precisaríamos:
coisa no mundo' (comentários relatados por 1. P. Duviols, 1978). ignoramo-lo porque deixamos há tempo de ser os discípulos da natureza".
APRENDER ANTROPOLOGIA 5r1
50 A PRÉ-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA
• não tinha alma e não acreditava em nenhum deus, fico, como acabamos de observar, ainda no final do século
ou era profundamente religioso; XX. Não basta viajar e surpreender-se com o que se vê para
• vivia num eterno pavor do sobrenatural, ou, ao in- tornar-se etnólogo (não basta mesmo ter numerosos anos de
verso, na paz e na harmonia;. "campo", como se diz hoje). Porém, numerosos viajantes
• era um anarquista sempre pronto a massacrar seus nessa época colocam problemas (o que não significa uma
semelhantes, ou um comunista decidido a tudo compartilhar, problemática) aos quais será necessariamente confrontado
até e inclusive suas próprias mulheres; qualquer antropólogo. Eles abrem o caminho daquilo que
• era admiravelmente bonito, ou feio; laboriosamente irá se tornar a etnologia. Jean de Léry, entre
os indígenas brasileiros, pergunta-se: é preciso rejeitá-los fora
• era movido por uma impulsividade criminalmente
congênita quando era legítimo temer, ou devia ser conside- da humanidade? Considerá-los como virtualidades de cris-
rado como uma criança precisando de proteção; tãos? Ou questionar a visão que temos da própria humani-
dade, isto é, reconhecer que a cultura é plural? Através de
• era um embrutecido sexual levando uma vida de
orgia e devassidão permanente, ou, pelo contrário, um ser muitas contradições (a oscilação permanente entre a conver-
são e o olhar, os objetivos teológicos e os que poderíamos
preso, obedecendo estritamente aos tabus e às proibições de
chamar de etnográficos, o ponto de vista normativo e o ponto
seu grupo;
de vista narrativo), o autor da Viagem não tem resposta.
• era atrasado, estúpido e de uma simplicidade brutal, Mas as questões (e para o que nos interessa aqui, mas espe-
ou profundamente virtuoso e eminentemente complexo; cificamente a última) estão no elitanto implicitamente colo-
• era um animal, um "vegetal" (de Pauw), uma "coi- cadas. Montaigne (hoje às vezes criticado), mesmo se o que
sa", um "objeto sem valor" (Hegel), ou participava, pelo
o preocupa é menos a humanidade dos índios do que a inu-
contrário, de uma humanidade da qual tinha tudo como manidade dos europeus, seguindo nisso Léry que transporta
aprender. para o "Novo Mundo" os conflitos do antigo, começa a
Tais são as diferentes construções em presença (nas introduzir a dúvida no edifício do pensamento europeu. Ele
quais a repulsão se transforma rapidamente em fascínio) testemunha o desmoronamento possível deste pensamento,
dessa alteridade fantasmática que não tem muita relação com menos inclusive ao pronunciar a condenação da civilização
a realidade. O outro — o índio, o taitiano, mas recente- do que ao considerar que a "selvageria" não é nem inferior
mente o basco ou o bretão — é simplesmente utilizado como nem superior, c sim diferente.
suporte de um imaginário cujo lugar de referência nunca é Assim, essa época, muito timidamente, é verdade, e por
a América. Taiti, o País Basco ou a Bretanha. São objetos- alguns apenas de seus espíritos os menos ortodoxos, a partir
pretextos que podem ser mobilizados tanto com vistas à explo- da observação direta de um objeto distante (Léry) e da re-
ração econômica, quanto ao militarismo político, à conver-
flexão a distância sobre este objeto (Montaigne), permite
são religiosa ou à emoção estética. Mas, em todos os casos,
a constituição progressiva, não de um saber antropológico,
o outro não é considerado para si mesmo. Mal se olha para muito menos de uma ciência antropológica, mas sim de um
ele. Olha-se a si mesmo nele. saber pré-antropológico.
Voltemos ao nosso ponto de partida: o Renascimento.
Seria em vão, talvez anacrônico, descobrir nele o que pode-
ria aparentar-se a um pensamento etnológico, tão problema-
.10
APRENDER ANTROPOLOGIA 55
fia ou exegese. Tornou-se paulatinamente (com de Brosses, 4) um método de observação e análise: o método indu-
Rousseau) o objeto específico ,de um saber científico (ou, tivo. Os grupos sociais (que começam a ser comparados a
pelo menos, de vocação científica); organismos vivos, podem ser considerados como sistemas
3) uma problemática essencial: a da diferença. Rom- "naturais" que devem ser estudados empiricamente, a partir
pendo com a convicção de uma transparência imediata do da observação de fatos, a fim de extrair princípios gerais,
cogito, coloca-se pela primeira vez no século XVIII a ques- que hoje chamaríamos de leis.
tão da relação ao impensado, bem como a dos possíveis • Esse naturalismo, que consiste numa emancipação defi-
processos de reapropriação dos nossos condicionamentos fi- nitiva em relação ao pensamento teológico, impõe-se em
siológicos, das nossas relações de produção, dos nossos sis- especial na Inglaterra,' com Adam Smith e, antes dele, David
tema de organização social. Assim, inicia-se uma ruptura Hume, que escreve em 1739 seu Tratado sobre a Natureza
com o pensamento do mesmo, e a constituição da idéia de Humana, cujo título completo é: "Tratado sobre a natureza
que a linguagem nos precede, pois somos antes exteriores Humana: tentativa de introdução de um método experimen-
a ela. Ora, tais reflexões sobre os limites do saber, assim tal de raciocínio para o estudo de assuntos de moral". Os
como sobre as relações de sentido e poder (que anunciam filósofos ingleses colocam as premissas de todas as pesquisas
o fim da metafísica) eram inimagináveis antes. A sociedade que procurarão fundar, no século XVIII, uma moral natu-
do século XVIII vive uma crise da identidade do humanis- ral", um "direito natural", ou ainda uma "religião natural".
mo e da consciência européia. Parte de suas elites busca
suas referências em um confronto com o distante. * * *
Em 1724, ao publicar Os Costumes dos Selvagens Ame-
ricanos Comparados aos Costumes dos Primeiros Tempos, Esse projeto de um conhecimento positivo do homem
Lafitau se dá por objetivo o de fundar uma "ciência dos — isto é, de um estudo de sua existência empírica conside-
costumes e hábitos", que, além da contingência dos fatos rada por sua vez como objeto do saber — constitui um
particulares, poderá servir de comparação entre várias for- evento considerável na história da humanidade. Um evento
mas de humanidade. Em 1801, Jean Itard escreve Da Edu- que se deu no Ocidente no século XVIII, que, evidentemen-
cação do Jovem Selvagem do Aveyron. Ele se interroga sobre te, não ocorreu da noite para o dia, mas que terminou im-
a comum humanidade à qual pertencem o homem da civili- pondo-se já que se tornou definitivamente constitutivo da
zação:em que nos transportamos e o homem da natureza, modernidade na qual, a partir dessa época, entramos. A fim
a criança-lobo.' Mas foi Rousseau quem traçou, em seu Dis- de avaliar melhor a natureza dessa verdadeira revolução do
curso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade, o pensamento — que instaura uma ruptura tanto com o "huma-
programa que se tornará o da etnologia clássica, no seu nismo" do Renascimento como com o "racionalismo" do sé-
campo temático' tanto quanto na sua abordagem: a indução culo clássico —, examinemos de mais perto o que mudou
de que falaremos agora; radicalmente desde o século XVI.
físicos, psíquicos, sociais, culturais) e quais devem ser suas Mais especificamente, o obstáculo maior ao advento de uma
exigências epistemológicas. antropologia científica, no sentido no qual a entendemos
hoje, está ligado, ao meu ver, a dois motivos essenciais.
As Considerações sobre os Diversos Métodos a Seguir
na Observação dos Povos Selvagens, de De Gerando (1800) 1) A distinção entre o saber científico e o saber filo-
são, quanto a isso, exemplares. Primeira metodologia da sófico, mesmo sendo abordada, não é de forma alguma rea-
viagem, destinada aos pesquisadores de uma missão nas lizada. Evidentemente, o conceito da unidade e universali-
"Terras Austrais", esse texto é uma crítica da observação dade do homem, que é pela primeira vez claramente afir-
selvagem do selvagem, que procura orientar o olhar do mado, coloca as condições de produção de um novo saber
observador. O cientista naturalista deve ser •ele próprio tes- sobre o homem. Mas não leva ipso facto à constituição de
temunha ocular do que observa, pois a nova ciência — qua- um saber positivo. No final do século XVIII, o homem
lificada de "ciência do homem" ou "ciência natural" — é interroga-se: sobre a natureza, mas não há biologia ainda
uma "ciência de observação" devendo o observador partici- (será preciso esperar Cuvier); sobre a produção e reparti-
par da própria existência dos grupos sociais observados.' tição das riquezas, mas ainda não se trata de economia
Porém, o projeto de De Gerando não foi aplicado por (Ricardo); sobre seu discurso mas isso não basta para ela-
aqueles a que se destinava diretamente, e não será, por borar uma filosofia (Bopp), muito menos uma lingüística.'
muito tempo ainda, levado em conta!' Se esse programa que O conceito de homem tal como é utilizado no "século
consiste em ligar uma reflexão organizada a uma observação das luzes" permanece ainda muito abstrato, isto é, rigorosa-
sistemática, não apenas do homem físico, mas também do mente filosófico. Estamos na impossibilidade de imaginar
homem social e cultural, não pôde ser realizado, é porque o que consideramos hoje como as próprias condições episte-
a época ainda não o permitia. O final do século XVIII teve mológicas da pesquisa antropológica. De fato, para esta, o
um papel essencial na elaboração dos fundamentos de uma objeto de observação não é o "homem", e sim indivíduos
"ciência humana". Não podia ir mais longe, e não podería- que pertencem a uma época e a uma cultura, e o sujeito
mos creditá-lo aquilo que só será possível um século depois. que observa não é de forma alguma o sujeito da antropolo-
gia filosófica, e sim um outro indivíduo que pertence ele
7. Estamos longe de Montaigne, que se contenta em acreditar nas pa- próprio a uma época e a uma cultura.
lavras de 'um homem simples e rude", um huguenote que esteve no Brasil,
a respeito dos índios entre os quais esteve.
8: Os cientistas da expedição conduzida por Bodin não eram de forma 9. A antropologia contemporânea me parece, pessoalmente. dividida
alguma etnógrafos, e sim médicos, zoólogos, minerálogos, e os objetos entre uma homenagem a esses pais fundadores que são os filósofos do
etnográficos que recolheram não foram sequer depositados no Museu de século XVIII (Lévi-Strauss, por exemplo, considera que- o Discours sus'
História Natural de Paris, e sim dispersados em coleções particulares. O !'Origine de l'Inégalité de Rousseau é "o primeiro tratado de etnologia
próprio Gerando, "observador dos povos selvagens" em 1800, torna-se geral") e um assassínio ritual consistindo na reatualização de urna ruptura
"visitante dos pobres" em 1824. O que mostra a prontidão de uma passa- com um projeto que permanece filosófico, enquanto que a ciência exirge
gem possível entre o estudo dos indígenas e a ajuda aos indigentes, mas a constituição de um saber positivo e especializado. Mas neste segundo
sobretudo, nessa época, uma certa ausência de distinção entre a antropo- caso, a positividade, não mais do saber, e sim de saberes que, muito rapi-
logia principiante e a "filantropia". damente (a partir do século XIX), se rompem parcelam, formando o
Notemos .finalmente que, publicado em 1800, o mémoire de Gerando que Foucault chama de 'ontologias regionais" constituindo-se em torno dos
só foi reeditado na França em 1883. E o primeiro museu etnográfico da territórios da vida (biologia), do trabalho (economia), da linguagem (lin-
França foi fundado apenas cinco anos antes (em Paris, no Trocadero). giiística), é evidentemente problemática para o antropólogo, que não pode
sendo depois substituído pelo atual Museu do Homem. resignar-se a trabalhar em uma área setorizada.
o SZCULO XVIII
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