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| Oqueé,como surgiu?

1. O que é Antropologia?

Existem momentos dificeis para os antropélogos


, quan-
do estamos entre pessoas que, mesmo
com boa formação
escolar, não têm familiaridade com as Ciéncias Socia
is. De
repente somos atingidos pela pergunta inevi
tével: “— Afinal, o
que é Antropologia?”. Alids, esta deve ser
a pergunta que
muitos estudantes fazem quando descobre
m que a disciplina
consta de seus curriculos. E, além disso, para
que serve? Nao
há como discordar: a pergunta é difici
l. Mas quais as razées
desta dificuldade?
Em primeiro lugar, existem os esteredt
ipos do antro-
pélogo como pesquisador, assim como
existem as falsas ima-
gens de muitas outras profissdes.
Muitas pessoas nos imagi
-
nam uma espécie de Indiana Jones,
escavando tomulos em
busca de arcas perdidas, ou como desa
jeitados professores,
metidos em roupas estilo safári, desafian
do as florestas africa-
nas para estabelecer contdtos com perigoso
s selvagens. Essas
falsas imagens atrapalham bastante a comp
reenséo do que é
a Antropologia.
Um outro caminho fregiiente é o recurso &
etimolo-
gia, ou seja, & origem da palavra. Então
, anthropos = ho-
mem, logio = estudo. Ahl, o estudo do Hom
em! Mas isso é
muito geral e poderia englobar outras fantas dreas
do conhe-
cimento. A palavra e seu senfido podem ter
servido durante

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rarael José dos Santos
Aniropologia para quem não vai ser anfropslogo
um tempo, mas hoje já não ind
icam muito acerca do ofício de
antropólogo. É bastante complicado definir a Antropologia pelo(s)
Outra dificuldade: muitos nos con seu(s) objeto(s) de estudo, sabe por quê? Porque eles são tan-
ólogos, colegas pesquisadore fundem com arque-
s que estudam vestígios hist tos quantas são as coisas que fazemos em sociedade!
cos ou pré-históricos através óri- A essa altura você poderá estar frustrado, esperando
de escavações. Também somos
muito confundidos com os paleon agora uma definição clara, precisa e prática da Antropologia
télogos, que estudam fósseis
animais ou vegetais. Para con (ainda mais porque você tem o direito de saber o que ela faz
fundir tudo ainda mais, há
expressão “antropologia física” o em seu currículo!). Como veremos adiante, uma definição as-
para designar o estudo de as-
pectos biológicos dos seres humano sim seria contrária ao próprio espírito da Antropologia con-
s. O que posso dizer até
aqui é que não é dessas temporânea. Entretanto, podemos iniciar pensando a Antro-
coisas que iremos fratar,
contribuicées da embora as
Arqueologia e da Paleontologia sejam im-
pologia como um conjunto de teorias (nem sempre concor-
portantes, tanto para o anf dantes) e diferentes métodos e técnicas de pesquisa que bus-
ropdlogo, em seu trabalho,
para qualquer outra pessoa interessada como cam explicar, compreender ou interpretar as mais diversas prá-
cie interessante que somos nés.
em conhecer a espé-
ticas dos homens e mulheres em sociedade. Muitas dessas
Caminhemos um pouco mais. teorias baseiam-se em pesquisas de campo, nas quais os antro-
Em nossa sociedade nos acostu pólogos buscam conviver com as populações locais e apren-
ciéncias descobrindo quais mamos a definir as
sGo seus objetos de estudo, isto ¢ der seus hábitos, valores, modos de vida, crenças, relações de
aquilo sobre o qual os especi parentesco e outras dimensões da vida social. Vejamos como
alistas de cada área fazem
pesquisas e elaboram suas exp suosl tudo isso começou.
licagées. No caso da Antrop
logia (e isso & comum a out o-
ras ciéncias) a pergunta não
pode
2. Como surgiu? Um pouco de história

A Antropologia (mais tarde “Social” ou “Cultural”)


deu seus primeiros passos aproximadamente na segunda me-
tade do século XIX, na Europa, da mesma forma que sua
“irmã” a Sociologia. Em-alguns países, como na França, não
apenas suas histórias se confundem: muitos cientistas sociais
digena (ABA, 2000). franceses, até hoje, não fazem distinção entre as duas, utili-
Uma diversidade tão grande zando ora uma, ora outrá palavra para referir-se & sua área
uma multiplicidade de objetos de referéncias significa
de estudo: das artes à questdo de trabalho.
indigena, passando pela com O fato de ambas comegarem no mesmo momento
unicacdo, pelo turismo e pela
educação. Creio que as coisas são bem mais féce histórico e na mesma região do mundo não foi uma coinci-
logos, astrénomos, is para bió- dência, mas resultado de uma série de mudanças sociais,
matemdticos, fisicos e outr
os cientistas, econômicas e políticas, ou, para falar como cientista soci-
al, de um determinado contexto. Vejamos o caso da Socio-
logia.
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Rafael José dos Santos Antropologia para quem néo vai ser antropslogo

Paises como a França, Alemanha e, principalmente, a Esse é um dado importante, pois não nos deixa esquecer as
Inglaterra, constituíam o centro nervoso do emergente sistema relocdes de forga e poder envolvendo paises centrais, como
capitalista industrial do século XIX. Em Londres e Paris as manu- Inglaterra, França e Alemanha, e paises e regides subjugados
faturas eram as principais unidades de produção e essas cida- direta ou indiretamente pelo sistema, como boa parte das
des viviam os frutos e contradições da chamado modernidade: culturas africanas, asidticas, indianas e latino-americanas.
um veloz desenvolvimento das técnicas entrelagado a graves Algo similar acontecia nos Estados Unidos do século
problemas sociais e uma sequéncia de revoltas operdrias. XIX, mas lá a expanséo capitalista não acontecia para fora
A Revolugao Industrial formou o cendrio de transfor- (pelo menos não naquele momentol): ela fazia um movimento
magdes que deu origem & sociedade capitalista. Foi um peri- do leste para o oeste, provocando o contato dos colonos com
odo de transformacdes também no âmbito das idéias, com as diferentes sociedades indigenas nativas. Esse tema alimentou
reflexdes vindas da Filosofia Poliica e da Filosofia da Histéria bastante o cinema norte-americano, com soldados vestidos
(Bottomore, 1987, p 16-18). Estas correntes de pensamento, de azul — a Cavalarial — protegendo os desbravadores bran-
por sua vez, desenvolveram-se juntamente com as grandes cos que avangavam sobre os territórios dos “perigosos peles-
mudangas politicas dos séculos XVl e XIX, entre elas a Revolu- vermelhas”.
ção Francesa em 1789. Podemos entdo concluir que a socio- Como veremos, estes aspectos econdmicos e politi-
logia formou-se como conseqiéncia de amplas transforma- cos acabaram refletindo em noções e “teorias” dentro da pré-
ções infelectuais, econdmicas, politicas e culturais que tiveram pria ciéncia que estava nascendo.
seu auge no século XIX. Deste ponto de vista, a sociologia Os primeiros antropélogos, cientistas que buscavam
pode ser entendida como uma ciéncia da sociedade industri- o conhecimento das sociedades “exdticas”, não coletavam seus
al, e ao mesmo tempo expressdo que esta sociedade construia dados de modo direto. Eles se baseavam em informagées
acerca de si mesma. enviadas por missiondrios, mercadores, militares e funcionari-
Agora vamos esfabelecer a ligação entre o surgimento os coloniais. Como observou o antropdlogo francés Frangois
do capitalismo e o nascimento da Antropologia como ciéncia Laplantine (1988, p. 64-65), naquela época:
social. O sistema capitalisto não se restringia aos limites da
Inglaterra e do continente europeu. No século XIX acelerou-se a Uma rede de informações se instala. São os questio-
expansdo colonialista que já ocorria desde o mercantilismo do nérios enviados por pesquisadores das metrépoles (em espe-
século XV. Nas palavras do antropélogo Gérard Leclerc: cial da Gra-Bretanha) para os quatro cantos do mundo, e
Nos meados do século XIX, o expansionismo euro- cujas respostas constituem os materiais de reflexão das pri-
peu chegado & sua fase última, começa pressentir “territó- meiras grandes obras de Antropologia que se sucederão em
rios desconhecidos” como “territórios a conquistar”.(...) ritmo regular durante toda a segunda metade do século XIX.
Numerosas são as riquezas a explorar, a ufilizar e a fazer
frutificar pelo Ocidente. (Leclerc, 1977, p.13). Entre as obras cldssicas da Antropologia nesta fase
podemos destacar duas, apenas a fitulo de curiosidade: A
A Antropologia tem suas origens histéricas, portanto, Sociedade Primitiva, do norte-americano Henry Lewis Morgan
no processo de expansdo do capitalismo, mais precisamente (1974) e o belo trabalho do inglés James Frazer, O Ramo
através do colonialismo e do imperialismo das nações ricas, Dourado (1956). Existem dois aspectos desta fase inicial da
que esfendiam seus dominios a lugares remotos do mundo. Antropologia que serdo Uteis para comegarmos a desvendar
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Rafael José dos Santos Anfropologia para quem não vai ser antropélogo

esta ciéncia. Aligs, não só desvendá-la, mas inclusive compre- desenvolvimento da humanidade em trés estagios: selvageria,
ender muitas de nossas próprias idéias sobre sociedades e barbérie e civilização. Do outro lado do Atlântico, na Inglater-
culturas que não conhecemos. ra, o escocés James Frazer (1 854-1941) elaborava um mode-
O primeirô aspecto é a forte influéncia de correntes lo evolutive do pensamento, afirmando que esse passava por
de pensamento, como o positivismo, o evolucionismo, e os trés fases: magia, religião e ciéncia. Essas trés formas do pen-
determinismos geográfico e biológico nas idéias que os pri- samento humano estariam em uma relação de complexidade
meiros antropólogos tinham das culturas distantes. O segundo crescente, sendo que a ciéncia — assim como a “civilização”,
aspecto diz respeito à ausência do que mais tarde passamos a para Morgan — seria o estágio mais avançado.
conhecer por trabalho de campo (fieldwork), ou seja, da pre- Agora podemos perceber como é importante dar uma
sença in loco do pesquisador na cultura estudada, coletando “olhadinha” no contexto histérico de surgimento da Antropolo-
dados e fazendo observações diretas. gia. O sucesso da visão evolucionista da sociedade pode ser
explicado pela idéia que os europeus tinham de sua própria
sociedade. Esta seria “civilizada” e “complexa” por haver atin-
3. Evolucionismo Social e Positivismo,
gido um grau de industrialização, ciência e tecnologia, en-
Meio e Raça quanto as culturas das colônias seriam “primitivas” e “atrasa-
das”. Em outras palavras, a sociedade européia tomava a si
3.1 Evolucionismo Social mesma como medida de civilização, atribuindo às socieda-
des tribais um perfil “inferior”. No caso de Morgan, os habi-
tantes nativos do oeste norte-americano não haviam, ainda,
As Ciéncias da Natureza, principalmente a Biologia,
exerciam grande influéncia no meio intelectual europeu do alcançado o grau de “civilização” da população branca do
século XIX, em particular as teorias evolucionistas de Pierre
leste. Esse é um daqueles exemplos de como as teorias e
Lamarck (1744-1829) e Charles Darwin (1809-1882). Para La- idéias pretendem explicar uma dada realidade, quando na
verdade “são elas que precisam ser explicadas pela realida-
marck, as adaptagdes dos organismos ao meio ambiente pro-
vocavam mudancas evolutivas. Já para Darwin, que se tornou
de” (Chauí, 1981, p. 16). Veremos mais adiante como estes
modelos, que denominamos de “evolucionismo social”, fo-
mais conhecido que o primeiro, a evolução das espécies ba-
seava-se em um processo de seleção natural. Em ainbas as ram superados pela Antropologia. Notem, entretanto, que no
senso comum, tais idéias ainda são bastante fortes, mesmo no
teorias a idéia básica era de que os seres vivos evoluiam dos
século XXI. .
mais “simples” para os mais “complexos”. O evolucionismo,
Vejamos agora uma outra influência intelectual muito
comio explicagdo para a origem das espécies animais, repre-
sentou um grande avanco frente às explicagdes religiosas do- forte entre os pensadores do século XIX: o Positivismo.
minantes na época.
Por seu aspecto revolucionério, o evolucionismo em- 3.2 O Positivismo
polgou também pensadores de outras dreas, que resolveram
adaptar o modelo, construido para entender a natureza, ao
Assim como no caso do evolucionismo, o Positivismo
estudo das sociedades. Assim, o antropdlogo norte-america-
também surgiu pela forte influência exercida pelas ciências da
no Henry Lewis Morgan (1818-1881) elaborou um modelo de
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Rafael José dos Santos Antropologia para quem ndo vai ser anfropdlogo

natureza. Tudo acontecia, em certa medida, pelo ofimismo já não é mais dominante, mesmo que alguns ainda oceh'em
que muitos cientistas e pensadores do século XIX tinham em esse princípio. No decorrer do tempo, sociólogos e antropólo-
relagGo & ciéncia e as possibilidades que ela abria para expli- gos perceberam que não é possível estudar homens e mulhe-
cagdes racionais; em um mundo que fentava livrar-se do do- res em sociedade da mesma maneira que um biólogo ou um
minio das explicações religiosas. matemático. E por quê? Pelo fato de nós, seres humanos,
vida,
Um desses ofimistas da ciéncia era o filésofo francés sermos dotados da capacidade de criar sentidos para a
Auguste Comte (1798-1857), que pensou na possibilidade de coisa que uma árvore, uma abelha ou uma substância qluímx-
uma ciéncia da sociedade que se baseasse nos mesmos méto- ca não pode fazer. Então, para pesquisar pessoas em socieda-
dos de observacéo das ciéncias naturais. Comte denominou de, gente produzindo, reproduzindo e modificando.o c‘uhurc,
não é possivel adotar a mesma postura de um cientista da
esta nova ciéncia de Sociologia. Vejamos o que nos diz, sobre
Comte, o sociólogo contemporâneo Loic Wacquant: natureza.
A ambição de Comte era fundar uma ciéncia na- Podemos perceber que existem semelhanças entre os
turalista da sociedade capaz de explicar o passado da modelos de Frazer, Morgan e Comte no que diz respeito à
formas de
espécie humana e predizer o seu futuro aplicando os idéia de evolução, sejam das sociedades ou das
mesmos métodos de investigação que tinham provado pensamento. Veja o esquema abaixo para visualizar
a seme-
ser tão bem sucedidos no estudo da natureza, a saber,
observagdo, experimentagdo e comparação (Wacquant,
lhança entre os modelos propostos pelos três pensadores:
citado por Outhwaite e Bottomore, 1996, p. 593). 1798 1857
Comte (França)

Entre 1830 e 1842 Auguste Comte publicou os seis Morgan (EUA) 1818 1881
volumes de sua obra Curso de Filosofia Positiva. De acordo Frazer (Inglaterra) 1854 1941
com Comte, as explicagdes que os homens davam para os
fenômenos em geral (naturais ou sociais) haviam passado por
trés fases diferentes. Na primeira, denominada “teolégica ou
ficticia”, os homens atribuiam as causas dos fendmenos as
As explicações que os homens Estagios do Fases do
divindades ou outro fipo de ação sobrenatural; pense, por dao aos fendmenos passam por pensamento desenvolvimento
exemplo, nos deuses cultuados na Grécia Antiga ou nas cren- três foses: humano: das sociedades:
ças de sociedades fribais. Na segunda fase — “metafisica ou * Fase teolégica ou ficticia * Magia » Selvo/g?no
* Fase metafisica ou abstrata * Religião * Barbárie
abstrata” — as explicacdes deixaram de ser sobrenaturais, ba-
* Fasecientíficaou Positiva * Ciência * Civilização
seando-se nas especulações filosdficas. Finalmente, ainda de
acordo com Comte, veio a fase “cientifica ou positiva”, na
qual buscava-se através de métodos “cientificos” as leis que Nos dias de hoje nós já sabemos — e descobrimos
regiam os fenémenos sociais e naturais (Wacquant, citado por isso através da própria Antropologia — que as explicações
Outhwaite e Bottomore, 1996, p. 593). A idéia de um conhe- sobrenaturais, filosóficas e cientificas não mantêm entre si uma
cimento “positivo” é que originou a express@o positivismo. relação de “evolução”. Trata-se, na verdade, de explicações
A idéia dos ciéncias da sociedade, como a Antropo- diferentes que dependem, entre outras coisas, dos csmexh?s
logia e a Sociologia, utilizarem métodos das ciéncias naturais culturais. Tanto em sociedades tribais como em nossa própria
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Rafael José dos Santos Antropologia para quem não vai ser antropélogo

sociedade, encontramos explicações sobrenaturais, baseadas vezes tratadas em termos de evolucionismo social. Os proble-
em crenças religiosas. É perfeitamente possível, por exemplo, mas de ordem econémica e politica que atingem o Norte e o
um cientista social utilizar-se dos métodos científicos para in- Nordeste acabam sendo substituidos pelas idéias de “inferiori-
terpretar a sociedade e a cultura e ter suas próprias crenças dade” e “atraso” das populagdes locais, quando um simples
religiosas, desde que tome o devido cuidado para não “mis- olhar para o papel da mão de obra nordestina em São Paulo,
turar as coisas”. ou para as mais diferentes contribuicées de escritores e pensa-
Da mesma maneira, a idéia de que as sociedades dores daquela região, já coloca “sob suspeita” a idéia de
“evoluem” das mais “simples” para as mais “complexas” (ou inferioridade.
da “selvageria” para a “civilização”) passou a ser questionada Essas noções, ou pré-nogdes (ou, ainda: “pré-concei-
a partir do momento em que os antropélogos foram travando tos”) baseados na idéia de uma hierarquia entre povos e po-
um contato mais estreito com sociedades nativas, indigenas, e pulagdes, encontram-se presentes no senso comum também
percebendo que suas estruturas, seus sistemas simbélicos, suas devido a duas outras correntes de pensamento que marcaram
cosmologias e, não menos importante, suas linguas, caracte- as Ciéncias Sociais em seu inicio. Trata-se dos “determinis-
rizavam-se por uma complexidade imensa. Falaremos disso mos” geogrdfico e biolégico. Vamos a eles.
mais farde.
Por enquanto podemos nos fixar no aspecto politico e
3.3 Meio e Raga
histérico do evolucionismo. No século XIX ele representava o
discurso das metrópoles sobre as coldnias, ou, no caso norte-
americano, de uma região industrializada sobre regides onde Vocés já devem ter ouvido, alguma vez, alguém co-
o capitalismo ainda ndo havia chegado. Tratava-se, portanto, mentar que os paises do hemisfério norte são mais desenvolvi-
de um discurso de poder, no qual o mais forte situava-se a si dos devido ao clima, que predispée os individuos ao traba-
mesmo no pdlo mais avangado, civilizado e cientifico. lho, enquanto nos paises tropicais o calor nos transforma em
Uma observacao importante. Os comentdrios anteri- preguicosos. O mesmo raciocinio é freqientemente aplicado
ores ndo significam, de modo algum, que Comte, Frazer ou para explicar diferencas no desenvolvimento de regides dentro
Morgan fossem pessoas inescrupulosas a servigo do colonialis- de um mesmo pafs, e de novo ocorre o exemplo do contraste
mo. É preciso situar os pensadores em seus contextos histéricos entre o sul e o nordeste do Brasil. Desta vez os motivos seriam
e compreender que eles olhavam o mundo sob as influéncias as condigoes geogréficas.
das idéias dominantes e da realidade social, econémica e A idéia de que o homem é um “produto do meio” foi,
cultural na qual estavam inseridos. durante algum tempo, a explicagdo que alguns gedgrafos e
Gostaria, entretanto, de enfatizar algo que já afirmei antropélogos utilizavam, não só para explicar a variedade de
antes. Embora a visGo evolucionista e, de alguma maneira, o culturas, mas também para hierarquizd-las, isto é, classifica-
positivismo do século XIX, tenham sido superados na (e pela) las em mais ou menos desenvolvidas. Chamamos esse tipo de
Antropologia, encontram-se ainda presentes e muito fortes no explicação de “determinismo geogrdfico”.
senso comum, em nossas explicacdes espontâneas sobre a Como a Antropologia superou esta corrente de pensa-
vida social e cultural. Notem, por exemplo, a forma como as mento? De modo relativamente simples: demonstrando que di-
diferencas regionais, em um pais como o Brasil, são muitas ferentes sociedades vivendo em condições climdticas e geogra-

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Rafael José dos Santos Antropologia para q quem não vai ser antropélogo
pólog:

ficas bastante semelhantes, desenvolveram práticas culturais dis- as coisas não são, de fato, desta maneira. Em segundo lugar,
tintas. O antropólogo Roque de Barros Laraia nos dá alguns e mais importante, temos que aprender a pensar de modo
exemplos interessantes, entre os quais, o das habitações dos relacional, isto é, colocando as sociedades em relação. Em
lapões, habitantes do pólo norte na altura da Europa, e dos vez de buscar o atraso de um país como o Brasil no próprio
esquimós, que vivem ao norte da América. Enquanto os primei- Brasil, que tal pensar as relações entre, por exemplo, Brasil e
ros vivem em tendas feitas de pele de animais, os segundos Estados Unidos, tentando entender a situação de cada um em
moram em iglus, casas construídas com neve. O exemplo mais relação ao outro. Fica a inquietação no ar, mas deixemos as
interessante, contudo, vem dos padrões alimentares dos povos explicações climáticas para o passado.
do Xingu, no Brasil. Enquanto os Kamaiurá dedicam-se à pesca Resta pensar ainda um último tipo de hierarquização
e & caça de aves, os Kayabi alimentam-se de mamiferos. No entre sociedades, aquela que procura estabelecer uma liga-
mesmo meio ambiente, diferentes sociedades recorrem a meios ção entre a raça e o nível de desenvolvimento alcançado pelo
distintos para alimentar-se, e o dado principal para refletirmos: grupo social. O exemplo mais forte é o das populações ne-
a caga de mamiferos é “interditada por motivos culturais” aos gras (ou afro-descendentes), que em países como os Estados
Kamaiurá (LARAIA, 1988, pp. 24-25). Unidos eram considerados, até pouco tempo atrás, como “cul-
A fartura de determinado animal, que é um dado do turalmente inferiores”. O deferminismo biolégico serviu tam-
meio ambiente, não significa, necessariamente, que esse pni- bém para justificar uma suposta superioridade racial como,
mal serd o alimento predileto da sociedade que vive ali. E só por exemplo, a dos “arianos” durante o periodo de Hitler na
pensarmos no cachorro, que em nossa sociedade é um ani- Alemanha.
mal doméstico, mas é apreciado em outras sociedades como Poderiamos “passar batidos” por esse ponto. Afinal,
prato na hora de jantar. Para quem se interessar mais pelo que em sala de aula, ninguém sustentaria em voz alta uma rela-
vem sendo discutido aqui, sugiro o excelente livro Cultura — ção desse tipo. Seria “politicamente incorreto”, embora mui-
Um conceito antropoldgico (Laraia, 1988). tos adeptos de uma certa genética andem colocando as man-
É claro que os seres humanos criam suas vidas tendo guinhas de fora nas revistas cientificas. Entrefanto, apenas para
em vista o meio geogréfico em que vivem, isso é uma coisa. registro, convido para um breve exercicio de imaginação: uma
Outra coisa, muito diferente, é pensar que as mesmas condi- crianga nascida na ltália, que seja retirada imediatamente de
ções geogrdficas vão gerar equivalente maneira de.viver. Em seus pais e levada para o Japdo, onde irá crescer dentro de
Antropologia dizemos que se trata de uma questão de seleti- uma familia japonesa e estudar em escolas locais. Sua lingua
vidade, não de uma relacao de causa e efeito (Laraia, 1988, materna será o japonés, e nada nos garante que ela gostard
p. 25). “naturalmente” de macarronada. Ao contrério do que dize-
Agora resta um problema quanto ao meio geografi- mos no senso comum o gosto por coisas italianas não estard
co. Se é certo que os grupos humanos, vivendo em condições “em seu sangue” (o que não a impede de vir a gostar muito
geogréficas semelhantes, não criam as mesmas maneiras de de tais coisas, mas somente se for colocada em contato com
viver (isto é, ndo fazem as mesmas escolhas), o que dizer da elas depois, mais tarde). Em principio a crianca serd japone-
idéia de que a geografia e o clima podem transformar socie- sa, apesar de seus tracos fisicos dizerem o contrário.
dades em mais “adiantadas” ou mais “atrasadas”? Bem, em Agora, um exemplo do Brasil: os negros trazidos es-
primeiro lugar seria ótimo recorrer a um Atlas e verificar que cravos da Africa, eles mesmos oriundos de diferentes culturas

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Rafae! José dos Santos Antropologia para quem não vai ser antropélogo

no continente de origem, eram vistos pelos europeus como Imaginemos uma cultura indigena, uma sociedade
inferiores em suas préticas religiosas, seus conhecimentos da que vivia no litoral brasileiro antes da chegada dos portugue-
natureza e mesmo em suas capacidades cognitivas. Hoje sa- ses. Não podemos afirmar que essa sociedade nunca tenha
bemos que as cultutas africanas trazidas ao Brasil são acervos passado por mudancas culturais internas, mas temos certeza
ricos em complexidade e variedade culturais, dos sistemas de que as transformações ocorreram com muito mais rapidez
religiosos & música. O que fez com que a imagem do negro quando as populagées entraram em contato com o coloniza-
fosse associada à inferioridade não foi uma suposta “auséncia dor europeu. De acordo com o anfropélogo Julio Cezar Me-
de conhecimentos”, mas sua inserção no tréfico mercantilista a latti:
partir do século XVII, sob o jugo militar e econémico europeu, No primeiro século de colonização, o XVI, foram os
para servirem como mé&o-de-obra nas fozendas das colénias. indios do litoral leste e sudeste do Brasil os que entraram
em choque com os brancos. Estes não somente desejavam
Vamos pensar mais um pouco nisso, utilizando uma
se apropriar das terras dos indigenas para fazer suas la-
definição (não a Unica!) antropolégica de cultura: vouras de cana-de-agucar, como queriam se apoderar das
a cultura é o conjunto dos comportamentos, saberes préprias pessoas dos indigenas, para transformé-las em
e saber-fazer caracteristicos de um grupo humano ou de escravos (Melatti, 1986, pp. 179-180).
uma sociedade dada, sendo essas afividades adquiridas
através de um processo de aprendizagem, e transmitidas
Néo vamos discutir os estragos que esse contato fez,
ao conjunto de seus membros (Laraia, 1988, p. 120)
ao dizimar populações indigenas infeiras. A intenção aqui é
Claro, nenhuma cultura é estdtica, como lembra Ro-
mostrar que duas (ou mais) culturas foram colocadas em con-
que de Barros Laraia, nem mesmo aquela de uma sociedade tato por relações de forga.
isolada no meio da floresta: “porque os homens, ao contrário O europeu, por considerar sua cultura superior & dos
das formigas, têm a capacidade de questionar seus préprios nativos, pensava-se no direito de subjugé-los. Entretanto, a
hébitos e modificd-los” (Laraia, 1988, p. 99). força militar dos colonizadores não foi o Gnico elemento de-
vastador. Uma outra forca, mais ilustrativa para nossa refle-
O que acontece é que existem mudangas culturais
mais faceis de serem visualizadas, outras requerem um olhar xão, não viria das armas européias, mas de seus valores cultu-
mais atento, mais minucioso. Continuemos com Laraia para rais. Claro, estamos falando principalmente dos missiondrios
entender dois tipos bésicos de mudanga cultural: “uma, que é catdlicos e seus esforcos por catequizar os nativos, que eram
interna, resultante do préprio sistema cultural, e uma segunda considerados pagãos.
que é resultado do contato de um sistema cultural com outro” Ora, vamos separar por um momento a cultura do
(Laraia, 1988, p. 100). colonizador e a cultura dos nativos. Tomadas separadamente,
Neste comego de século XXl o segundo tipo de mu- cada cultura tinha seus valores, religiosidades, linguas, costu-
danca cultural é mais visivel e mais forte, pois o processo que mes matrimoniais. Cada cultura tinha sua singularidade.
chamamos de globalização coloca praticamente todos os sis- O que temos, na situação de contato, não é uma
temas culturais em contato, provocando mudangas mais rápi- troca cultural entre iguais, mas a imposição da visão euro-
das e, infelizmente, nem sempre muito felizes para algum dos péia. Isso significa que, além da cultura, existia a força (tanto
das armas como da coerção exercida pelos missiondrios). As-
lados.
sim, os europeus assumem um papel dominante, impondo-se

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Rofoel José dos Santos Antropologia para quem néo vai ser antropólogo

às culturas indígenas existentes nas novas terras, imposição conclus@o: a existéncia de uma imensa diversidade cultural —
que viria a se repetir com os escravos trazidos da Africa. tanto nos niveis regionais e nacionais como na sociedade glo-
Desde o mercantilismo, a infensa expansão européia bal — implica a existéncia de diferengas, mas não de desigual-
pelo mundo entre'os séculos XIV e XVII, a cultura dos coloniza- dades. Em outras palavras, a Antropologia nos ensina hoje
dores se impôs sobre as diferentes populações nativas das que sociedades e grupos sociais cujos valores, prdticas e co-
Américas, da África, da Asia. Em outras palavras, uma cultura nhecimentos não são iguais aos nossos não são primitivos ou
singular, a européia, colocava-se como universal, isto é, como inferiores: sGo diferentes. As diferencas só passam a ser sindni-
única verdadeiramente válida. Vejamos o que diz a respeito mo de desigualdade quando estdo inseridas em relações de
disso a antropólogo Ana Valente: dominagéo e exploracdo.
A exploração das colônias sobre as metrópoles, em Voltando ao assunto (se é que saímos dele): não exis-
beneficio exclusivo destas últimas, só pôde ser assegurada te nenhuma relação entre os tragos raciais, no sentido biolégi-
pela imposição da visão de mundo européia sobre a popu- co do termo, e quaisquer caracteristicas culturais, nem para o
lação nativa, compreendendo-se a forma de organizar-se
mal, nem para o bem. Tanto o evolucionismo social, como as
social, cultural e educacionalmente. Ou seja, a singularida-
de européia se arroga como universalidade sobre as de- explicações raciais e ambientais foram superadas pela Antro-
mais singularidades, com as quais entra em contato na pologia. Desde, aproximadamente, a segunda década do sé-
empresa colonizadora (Valente, 1999, p. 27). culo XX, os estudos sobre as culturas demonstraram que elas
possuem uma outra légica de funcionamento.
Desta maneira, fica difícil pensar as mudanças cultu- O que está em jogo aqui é uma coisa muito discutida
rais ocorridas nos últimos cinco séculos sem considerar que em Antropologia: a relação e os limites entre natureza e cultu-
elas se dão, quase sempre, em relações de força. No início, ra. Para inicio de conversa, vamos pensar que uma fermina
essas relações acontecem entre as metrópoles e as popula- onde a outra comega.
ções nativas dos territórios coloniais, além daquelas trazidas Pense, por exemplo, na idéia de “belezas naturais”,
como escravas para o trabalho nas lavouras. Depois, à medi- que aparece nas publicidades de turismo: belas praias, águas
da que a população branca era socializada nos padrões eu- azuis, coqueiros. Ora, nem sempre uma paisagem litoranea
ropeus, estes se tornavam dominantes também entre os não- foi considerada “bela” em si mesma, e apenas no final do
indios e não-ofricanos. A visão “européia”do mundo está na século XIX é que se iniciou a prática de ficar na praia para
base de muita coisa que pensamos hoje. É uma constatação descansar e sentir a brisa do mar, primeiro como forma de
difícil, mas o fato é que somos ainda, de algumas maneiras, tratar da saude, depois como lazer (Ah, uma praial). A visão
herdeiros daquele modo de pensar. da natureza também depende muito de quem a vê e da rela-
Você já pode notar que a Antropologia não consegue ção que as pessoas mantém com ela. O socidlogo inglés John
trabalhar sozinha, precisando muitas vezes recorrer a outras Urry, em um estudo sobre turismo e lazer, lembra que “nas
ciências. Nesse caso, à História, que é ótima para desvendar mais antigas aldeias onde a pesca constituia a principal ativi-
as muitas razões das desigualdades sociais e econômicas que dade econémica, as casas muitas vezes eram construidas com
acabam por “aparecer” como supostas desigualdades cultu- os fundos dando para o mar”. Foi apenas com a transforma-
rais, determinações raciais ou influéncias do meio geográfico. ção do mar em objeto de contemplacdo e lazer que os pri-
As consideragées sobre a cultura nos levam a uma importante meiros bangalés de veranistas foram construidos de frente para
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Rafoel José dos Santos Antropologia para quem não vai ser antropólogo

ele. Até aquele momento, para os pescadores, o “mar era des. Isso acontece porque fomos criados, educados, socializa-
para se pescar, não para se contemplar” (Urry, 1999, p. 52). dos de uma tal maneira que interiorizamos valores, normas,
A natureza, em si mesma, não é nada. Ela “significa” posturas e até “formas de sentir, pensar e agir”, como expres-
aquilo que os seres humanos atribuírem a ela. Talvez o maior sou tão bem o francés Emile Durkheim, um dos pais fundado-
exemplo seja o do corpo humano, com a diferença entre ho- res da Sociologia e da Antropologia, de quem falaremos no
mens e mulheres. À presença de órgãos genitais é um dado proximo capftulo. Isso influencia desde nossas escolhas ali-
da natureza, sem dúvida algo biológico. Entretanto, cada so- mentares até nossa visdo sobre a morte.
ciedade atribui um significado ao “ser homem” e ao “ser mu- Os indios wari’ da região de Roraima, por exemplo,
lher”, isto &, transforma a natureza em cultura. Daí, em Antro- têm um ritual funerério, bastante complexo, que inclui a inges-
pologia, falarmos em “gêneros” para diferenciarmos dos as- tão dos corpos de seus mortos (Vilaga, 1998). Certamente
pectos biológicos das diferenças entre os sexos. essa idéia nos dá nojo. Entretanto, se um wari” nos visse enter-
Uma menina não nasce com comportamentos femi- rando um parente a sefe palmos de terra, provavelmente ele
ninos, ela os adquire através da educação, aprendendo a “ser também sentiria nojo. Tanto nés como eles vivemos centrados
menina” de acordo com os padrões da cultura onde ela cres- em nossos próprios valores culturais.
ce. O mesmo acontece com os meninos (“homem não chora”, Enfim, aquilo que interiorizamos desde pequenos tem
dizia minha avó). esta forca porque temos a fendéncia, como apontam Peter e
Concluindo: a cultura é a exclusividade humana, in- Brigitte Berger, de experimentar como absolutas coisas que,
clusive porque através dela nós transformamos o que nos é ao fim das contas, são relativas (Berger e Berger, 1980, pp.
dado pela natureza, uma transformação tanto no sentido do 204-205).
trabalho — que é uma forma material de transformação da Descobrir a relatividade das coisas da nossa cultura e
natureza — como em termos de atribuição de significados. da cultura dos outros ¢, porfanto, um passo importante para o
estudo antropolégico. Concordo, não é algo fácil. É muito bom
e tranquilizador quando os hdbitos, valores e praticas diferentes
4. Etnocentrismo
das nossas apresentam apenas aquilo que consideramos “belo”
ou “exdtico”, como algo folclérico. Entretanto, o contato com a
Uma dificuldade enfrentada pela Anfropologia — e diversidade cultural nem sempre é bem digerido.
pelos antropélogos em campo — diz respeito a algo expresso A idéia (e a forga) do etnocentrismo nos ajuda a en-
pela palavra etnocentrismo. Em principio ele consiste em uma tender a postura dos primeiros antropélogos quando, por exem-
postura na qual tomamos a nossa sociedade e a nossa cultu- plo, falavam em civilização para referir-se à sua prépria soci-
ra, nossos valores, préticas e crencas, como medida para jul- edade, ou colocavam a ciéncia como algo superior & magia
gar valores, préticas, crencas, enfim, tudo que consfitui cultu- ou à religiGo. Mas se vocé estd descobrindo o etnocentrismo
ras diferentes da nossa. Centrados em nossa efnia. no fundo de seu espirito, não se sinta culpado: todos nós,
O etnocentrismo traz dificuldades metodolégicas e como já foi dito, estamos impregnados do “olhar” moldado
problemas politicos. pela nossa sociedade. O que importa é reconhecermos isso e
Em termos metodolégicos as nossas préprias referén- sabermos lidar com essa dificuldade no reconhecimento da-
cias culturais atrapalham a compreenséo de outras realida- quilo que nos é estranho.

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