Você está na página 1de 2

Como alguém que já conhecia as versões anteriores do trabalho da Horrana, antes de

qualquer coisa é necessário assinalar um salto qualitativo bastante significativo nesta nova
versão. Uma pesquisa que, anteriormente, parecia sofrer influência grande dos ditames
jurídicos ou mesmo sociológicos, está adquirindo, a meu ver, cada vez mais, os contornos de
uma pesquisa antropológica - seja ela qual for. A contextualização da autora do seu itinerário
profissional, aliado aos interesses de sua pesquisa, é feito de um modo que não ultrapassa o
limite entre “o que interessa a autora /e o que interessa ao leitor”, como já discuti
anteriormente na disciplina - e que muito me agrada. Ressalto também que as diversas
menções a temas e questões jurídicas no texto não se reveste, a meu ver, numa “abordagem”
jurídica. O tema possui esse caráter como elemento íntimo, e por isso não dá para fugir. Em
resumo: não é em razão do apreço da autora pelas questões jurídicas que o texto se ampara,
muitas vezes, nesses elementos, mas é em razão da temática do texto ter atravessamentos
jurídicos que se torna inevitável reflexões neste campo.

Dito isso, farei apenas algumas breves considerações esparsas:

- Gosto de como o “caso do Seu Belchior” se converte em um espelho para


outros casos do bairro betânia. Este caráter indutivo, de uma
“microantropologia” (em alusão à “microhistóira” inaugurada por Ginzburg),
me parece ter cada vez mais respaldo nas novas tendências de pesquisa de
nossa disciplina. Valeria a pena até explorar melhor outros exemplos
antropológicos de abordagem semelhante;

- Acredito que alguns elementos expositivos podem ser melhor aprimoradas,


por ex.: após as questões que a autora faz em relação a seus próprios objetivos,
se inicia um parágrafo (“A cidade de Belo Horizonte, criada no final do século
XXVIII…”) que me parece um pouco deslocado ao que foi dito anteriormente.
Talvez aí poderia ser o início de um subcapítulo, pois falta algum elemento
mediador entre o que está colocado antes e o que está colocado depois;

- Gosto de como há um diálogo entre autores que tratam especificamente sobre


a questão urbana em Belo Horizonte com autores que tratam da questão
urbana de um modo mais abstrato, como Agier;

- Gosto bastante do fato de que as questões movidas pelo Belchior sejam o fio
condutor do texto, mas acredito que poderia ser melhor explorado, e talvez
levado às últimas consequências, como se conformou esta relação da autora
com o Belchior. Isto é dito e está obviamente subentendido, mas a existência
deste vínculo, ao mesmo tempo de confiança, de trabalho, de aparente
amizade, e que desencadeou em um interesse de pesquisa, me parece algo
muito potente do ponto de vista de uma descrição etnográfica, e isto poderia
ser melhor conduzido no decorrer do texto - como referência, Horrana, talvez
a relação entre a Carmen Andriolli e o vaqueiro Samu (você saberá do que
estou dizendo) pode servir como um bom parâmetro para sua relação com o
Belchior;

- Algo novo nesta versão em relação às anteriores é a temática da “burocracia”.


E aí acredito que valeria a pena pesar um pouco mais nas interessantes
discussões, a nível de Brasil mesmo, que tem se formado em torno da tal
“etnografia de documentos”. Para além do caráter enquanto abordagem
metodológica, acredito que essa bibliografia pode interessar à autora;

- Ainda sobre etnografia: este é um termo que, no texto, aparece apenas no


título. Não é necessário utilizar a palavra para se referir a uma prática (afinal, a
autora deixa claro que se trata de um trabalho etnográfico expresso em ato).
Mas acredito que valeria a pena também explorar, refletir, teoricamente e
talvez metodologicamente, as adjetivações da etnografia que se enuncia;

- Um comentário à parte: o subcapítulo que fala da burocracia como forma de


violência simbólica me lembrou muito a história do “bombinha” do filme
argentino Relatos Selvagens. Talvez possa servir como um recurso estilístico.

Por fim, eu apenas ressaltaria que fiquei com vontade de entender o desfecho da
história que se anuncia, o que é bastante interessante. O texto termina de uma forma
interrupta - o que gosto, afinal, é ressalta esse caráter artesanal do momento do texto - e eu
adoraria continuar lendo. Acredito que essa versão, ainda como algumas deficiências,
representa um avanço considerável em relação às anteriores, o que demonstra também uma
maturidade maior da autora com os temas da antropologia.

Você também pode gostar