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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Guimarães, Eduardo
Análise de texto - Procedimentos, Análises, Ensino / Eduardo
Guimarães : Campinas, Editora RG, 2011.
Bibliografia.
ISBN 978-85-61622-28-????
2
Eduardo Guimarães
Análise de Texto
Procedimentos, Análises, Ensino
Campinas – 2011
Editora RG
3
CRÉDITOS
4
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
PARTE I - FUNDAMENTOS
Cap 1 - O que é texto
Cap 2 - Análise de texto: procedimentos
CONCLUSÃO
Ensaio não final
5
6
APRESENTAÇÃO
T
odos estamos, o tempo todo, diante do que designamos,
como num acordo de nomeação inquequívoco, pela palavra
“texto”. Os textos fazem parte da história de todos nós, com
maior ou menor força. Não há como não se deparar com eles sem-
pre. No entanto os estudos da linguagem não se dedicam tão am-
plamente a mostrar como analisar textos, como interpretar textos.
E eles são decisivos para tudo que fazemos hoje. Ou como meros
leitores seus no cotidiano, ou como especialistas que precisamos
aprender algo através deles.
A leitura nos pega de modos diferentes e por razões inclusive
desconhecidas. Quando li, ainda no Colégio, Memórias Póstumas
de Brás Cubas, demorei-me sete meses nessa leitura. A cada dia
um capítulo ou dois, mesmo que pequenos, como encontramos
em Machado. E assim fui me tornando íntimo de sua frase, de
suas surpresas permanentes. Surpresas que não deixei de ter, re-
centemente, ao reler Quincas Borba. O avesso disso foi, na mes-
ma época, ler em 16 horas O Guarani, de José de Alencar.
E se falo de Machado de Assis lembro-me também da precisão
da frase que inicia Helena, que de certo modo me levou ao envolvi-
mento com a narrativa que se iniciava. “O conselheiro Vale morreu
às 7 horas da noite de 25 de abril de 1859.” “O conselheiro Vale”
ao morrer dá início aos acontecimentos que serão narrados. É nesta
medida que Machado nos abre a porta para uma narrativa que faz
existir, e nos localiza numa época. E o faz ao tempo em que nos
coloca a condição social deste personagem, e dos que o cercam.
E se a literatura é uma boa companheira dos leitores, não dei-
xa de sê-lo também tantos outros textos que nos levam, por ra-
zões bastante diversas, para novos lugares, para novas reflexões.
Lembro-me, por exemplo, de uma posição expressa por Bréal da
7
qual não me esqueço, e por muitas razões. Uma delas é que sua
posição poderia ser um modo de considerar os sentidos a partir de
como se trata a relação entre as línguas, a enunciação e a história.
Segundo ele diz:
1 Grifo meu.
2 Ver Texto e Argumentação (Guimarães, 1987), 4ª. edição revista e aumentada
(Guimarães, 2007).
8
nação” e “Enumeração”3, entre outros. Meus trabalhos no domí-
nio da História das Ideias Linguísticas claramente se desenvolveu
tendo em vista a análise de conceitos em textos específicos. Isto
pode ser visto, por exemplo, no livro História da Semântica4, por
exemplo. O mesmo se deu com meus trabalhos no Laboratório de
Estudos Urbanos, como se pode ver em Semântica do Aconteci-
mento há pouco referido e em “Quando o Eu se Diz Ele. Análise
Enunciativa de um Texto de Publicidade”5.
Nos últimos anos tenho me dedicado, por diversas razões, a fa-
zer várias análises de texto, e isto me levou a pensar em sistemati-
zar um pouco mais a questão de procedimentos de análise textual
que não se reduzisse a dizer como algo se faz como texto. Mais
do que isso me interessa dizer como devemos analisar um texto,
procurar dizer o que ele significa e de que modo significa. Esta
preocupação sempre me fez pensar em como eu poderia fazer a
análise de textos, os mais diversos, inclusive a análise de textos
literários. Neste particular, me interessou sempre pensar o texto
literário como linguagem e a partir desta posição analisá-lo. Esta
posição pode contribuir para a crítica do texto literário ou não,
mas seguramente pode contribuir para os modos de ler literatura.
Por outro lado, esteve sempre presente para mim, como de resto
para todos, que o texto é uma unidade de significação. Não se trata
de dizer que o texto tem unidade, mas que ele é uma unidade, assim
como a palavra é uma unidade, o enunciado é uma unidade, etc. E
esteve e está sempre presente para mim que a questão do texto é
uma questão semântica (usando inicialmente esta palavra no seu
sentido mais geral), o texto interessa porque significa. O que não
quer dizer que a semântica (disciplina da lingüística) é a encarre-
gada de estudar o texto. Seguramente que não, pois esta disciplina
já teve como sua unidade de análise a palavra e o enunciado. A
semântica, na forma como ela tem sido praticada, não tem como
objeto o texto, assim não cabe a ela, com seus procedimentos de
análise, estudar o texto, interpretar e compreender textos.
Mas para mim interessava pensar como um semanticista pode
se interessar pelo texto de modo específico. Ou seja, não só con-
Eduardo Guimarães
Janeiro de 2011.
12
INTRODUÇÃO
O
objetivo desta obra é analisar textos. É procurar uma
compreensão sobre como funciona e produz sentidos esta
unidade complexa de significação que nos interroga sempre
por caminhos os mais inesperados.
Vou deste modo me dedicar à analise de alguns textos, ou seja,
vou me dedicar a interpretar um conjunto de textos diversos e
diferentes. Assim meu objetivo principal não é descrever funcio-
namentos da linguagem próprios do texto, mas, considerando es-
tes funcionamentos, analisar textos, “lê-los”, dizer que sentidos
eles têm, ou melhor, que sentidos eles produzem, numa relação
de leitura.
Para isso vou desenvolver um procedimento específico de aná-
lise de texto, tomando como posição fundamental a consideração
do funcionamento enunciativo e os desenvolvimentos da semân-
tica da enunciação.
Para que este objetivo possa ser tratado de modo adequado
devemos começar por distinguir:
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tem unidade” na medida em que este último enunciado é paráfra-
se de “o texto é uno”.
Estas práticas não se sobrepõem, uma não é a outra. Fazer
uma semântica da enunciação, ou qualquer outra semântica, não
é fazer análise de texto ou vice-versa. É fundamental sustentar
esta distinção de modo claro para que se possa não só tomar o
texto como unidade de significação, mas também constituir um
procedimento específico de análise textual. Inclusive porque este
procedimento, no presente caso, se fará a partir da posição, sobre
como a linguagem significa, da semântica da enunciação.
Um primeiro passo para isso é então o de procurar caracterizar
o que é um texto, dizer o que é um texto. E isto deve nos levar
a considerar que de um lado podemos nos dedicar a dizer como
funciona um texto, ou seja, como algo se faz texto. Leva-nos, por
outro lado, a ver como podemos compreender os sentidos do tex-
to. E é este nosso objetivo, como já disse acima.
Sabemos que os estudos do texto no interior das ciências da
linguagem têm se dedicado fundamentalmente ao estudo do que
faz algo ser texto. Muito pouco se tem feito neste domínio sobre
o modo de analisar um texto, de interpretá-lo. E ainda há que se
distinguirem dois procedimentos, ligados a posições distintas. De
um lado o estudo do que faz algo ser texto (apresentar a caracte-
rística da textualidade), e de outro o estudo de como o texto faz
sentido. No primeiro caso está, por exemplo, o que se tem chama-
do de lingüística textual: uma referência obrigatória neste quadro
é à obra Cohesion in English (Halliday e Hasan, 1976). No segun-
do está a análise de discurso onde podemos encontrar trabalhos
como Discurso e Leitura, Interpretação, Texto e Discurso (Orlan-
di, 1988, 1996 e 2001, respectivamente). De outra parte, a análise
de texto, como seria de se esperar, tem tido um lugar específico
nos estudos literários, mesmo que isto se faça, em muitos casos,
sem levar em conta que uma obra literária é linguagem.
No presente trabalho vai me interessar dizer tanto o que é um
texto, como analisar seu funcionamento e, ao mesmo tempo,
constituir um procedimento que, a partir destas caracterizações,
permitam uma análise dos textos, ou seja, uma interpretação des-
tes textos.
Mas antes de indicar o percurso geral desta obra, é importante
me deter numa questão crucial. Para mim o sentido é produzido na
14
enunciação tomada como um acontecimento de linguagem. Esta
questão será tratada posteriormente, na primeira parte deste traba-
lho. Aqui gostaria de definir o que entendemos como acontecimen-
to. Para mim (Guimarães, 2002), o acontecimento é o que faz dife-
rença na sua própria ordem. E o que especifica este acontecimento
é a temporalidade que ele constitui. Assim, um acontecimento não
considerado em virtude de estar num certo momento do tempo,
antes de um outro acontecimento também no tempo. Não é este
aspecto que considero como especificador de um acontecimento. O
que especifica um acontecimento é a temporalidade que ele cons-
titui: um passado, um presente e um futuro. Ou seja, um aconte-
cimento é distinto de outro acontecimento porque ele recorta um
passado de sentidos que convive com o presente da formulação do
Locutor e assim traz um projeção de futuro de sentidos que não sig-
nificariam não fosse o acontecimento em questão. Deste modo não
é Locutor que constitui o presente, parâmetro do tempo, como diria
Benveniste (1959), mas é o acontecimento que constitui o tempo e
assim constitui, agencia o Locutor. Vou rapidamente me valer aqui
de alguns elementos que aparecerão numa das análises do livro. É
o caso do texto do “Credo”, texto ritualizado próprio das práticas
religiosas dos cristãos católicos. Dizer o credo, significar uma ade-
são à crença num acontecimento pelo presente da enunciação só é
possível porque há um passado de sentidos segundo o qual se insta-
lou o ritual. E este passado (este memorável) só interessa enquanto
sentido que junto ao presente da enunciação projeta novos sentidos
(futuro) novas possibilidades de novas enunciações, a possibilida-
de, por exemplo, do cristão realizar outras práticas religiosas como
a confissão, a comunhão, etc.
O percurso que vamos fazer, então, envolve:
16
Parte i
FUNDAMENTOS
17
18
O QUE É TEXTO
O
Homem é um ser simbólico. Suas práticas são assim prá-
ticas que significam e que produzem sentidos. Por isso
tem relevo fundamental no modo de estarmos no mundo
a prática da linguagem que se realiza pelo produção do que cha-
mamos texto. E estes textos, saibamos ou não, permeiam tudo que
fazemos. Os textos, começo por dizer, são unidades complexas
de significação, mas é preciso melhor definir e caracterizar o que
seja um texto.
Começo por uma definição que será em seguida melhor espe-
cificada. Texto é uma unidade de sentido que integra enunciados
no acontecimento de enunciação.
Esta definição considera de modo direto que o texto é uma uni-
dade de significação. Ela se caracteriza por produzir sentido, e é
isso que faz dela (desta unidade) um texto. O outro aspecto é que
esta unidade (o texto) integra enunciados, ou dito de outro modo,
o texto é integrado por enunciados. E é isto que faz com que o
texto seja texto e faça sentido. E é este aspecto que é preciso me-
lhor caracterizar para que esta definição não se transforme numa
fórmula um tanto vazia. E também para que não se considere que
o texto tenha uma unidade ou unicidade de sentido, para que não
se considere que o texto seja uno.
Tomemos para exemplificar uma unidade de significação que
em geral não é vista como texto e que nós consideramos como sen-
do, um mapa. Pensemos no mapa das ruas de uma cidade. Ele se
caracteriza por apresentar um conjunto de indicações de localiza-
ção de ruas e por trazer os nomes destas ruas, por alguma notação
qualquer. Este mapa não é simplesmente um desenho, um conjunto
de linhas, traços. Ele traz estas linhas, traços e ao mesmo tempo
nomes. E estes nomes se organizam nele por contigüidade. Cada
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nome está próximo de outro e todos estão vinculados a uma re-
presentação do espaço da cidade. Não há, no mapa considerado,
nenhuma articulação como as que conhecemos como predicação,
determinação, subordinação, etc. E todos os nomes significam, no
mapa, os nomes das ruas, avenidas e praças, exatamente por inte-
grarem o mapa, por estarem nesta unidade superior que os reúne de
um modo particular (que não é a do todo e suas partes). E no mapa
os nomes não são referências às ruas, mas a indicação de que uma
certa rua, localizada num certo ponto da cidade, tem um nome, foi
nomeada de um certo modo. E é nesta medida que estes nomes
podem referir as ruas avenidas e praças. O sentido de integra é aqui
o sentido que Benveniste deu a este termo quando distinguiu forma
de sentido. Ele considera que a divisão de um elemento linguístico
dá a forma desta unidade, e a integração deste elemento em outro
superior lhe dá o sentido. Assim os nomes, por exemplo, José de
Alencar, Brasil, etc são nomes de ruas, avenidas ou praças por inte-
grarem, no caso aqui considerado, um mapa de uma cidade. Assim
o mapa enquanto texto não é formado pelos nomes, o mapa os in-
tegra e os faz significar enquanto nomes de espaços da cidade que
o mapa representa e significa. Não estou dizendo com isso que um
nome só é nome de rua quando está em um mapa de uma cidade.
Ele pode estar em um outro texto e também, pelo modo de integrar
tal texto, significar o nome de uma rua. Ele pode estar numa placa
em uma esquina de uma cidade: Rua José de Alencar. Esta placa é
um texto que integra um enunciado, e este modo de integração do
enunciado único faz dele o nome de uma rua.
Deste modo o texto é uma unidade no sentido de ser algo finito
e que se caracteriza por integrar, no sentido acima definido, enun-
ciados. Ou seja, o texto se caracteriza por ter uma relação com ou-
tras unidades de linguagem, os enunciados, que são enunciados e
que significam em virtude desta relação. O texto é, nesta medida,
uma unidade que se apresenta entre outras da mesma natureza.
No entanto o texto não tem unidade, se esta palavra significa qua-
lidade do que é uno, do que é homogêneo. O texto é uma unidade
(termo-1), mas não tem unidade (termo-2), não é uno.
Antes de continuar não poderia deixar de considerar que Ben-
veniste, ao tratar da relação do enunciado com o texto, recusa
adequadamente a posição segundo à qual o texto é uma frase
“grande”. Ou seja, ele se distancia dos que consideram que o tex-
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to poderia ser pensado a partir das mesmas relações com as quais
se estuda o enunciado. Assim ele evita um equívoco como o de
Van Dijk (1972) no seu Some Aspects of Text Grammars: A Study
in Theoretical Linguistics and Poetics. O problema, na posição de
Benveniste (1962), é que ele não percebeu que entre o enunciado
e o texto há um outro tipo de relação de integração que é possível
estudar por outros procedimentos de descrição e análise.
Por outro lado, ao definirmos texto tal como o fizemos, preci-
samos então caracterizar o enunciado. De um lado o enunciado
é um elemento linguístico que tem tanto sentido, integra texto,
quanto forma, é constituído por certos elementos (sintagmas). No
caso do mapa, os nomes são enunciados porque integram texto,
mas têm também uma forma. Por exemplo, os nomes de ruas são
nomes que podem vir articulados morfo-sintaticamente a outros
elementos lingüísticos: uma forma de tratamento e um nome de
pessoa: Rua Dom Pedro I; um nome comum seguido de um nome
próprio: Av. Presidente Vargas, Rua Baroneza Geraldo de Rezen-
de, etc.8 Assim podemos ver que pode-se ter, entre outros casos,
um nome caracterizado por uma forma de tratamento (caso de
Dom Pedro I), ou um nome próprio que aparece numa relação
apositiva com um nome comum (nos outros dois casos).
O enunciado apresenta assim duas características: ele tem uma
consistência interna e uma independência relativa em relação às
sequências linguísticas que com ele integram texto. Se conside-
ramos o exemplo que acabamos de dar, podemos ver que Rua
Dom Pedro I, enquanto enunciado do mapa tem de um lado Rua,
Dom e Pedro I, que se apresentam como relacionados: não há, no
nome, rua sem o Dom e sem Pedro I e vice-versa. De outra parte
rua Dom Pedro I se apresenta como podendo aparecer em outros
textos, por exemplo, uma placa de trânsito, uma notícia de jornal,
etc. Os enunciados são enunciados por integrarem texto, por te-
rem sentido, mas se apresentam assim por seu caráter de signo,
não são simplesmente um elemento da situação, são elementos
que significam para além das situações empíricas.
Se pensamos em um texto como um artigo de jornal, nos de-
paramos com um outro modo de integração de enunciados ao tex-
12 Em certa medida esta palavra está aqui no sentido que lhe dá Veyne (1971
[1987]).
28
O texto do parecer sobre o nome da língua nacional do Brasil
tem um aspecto interessante quanto a isso. De um lado ele se
coloca na série dos textos científicos sobre língua, o português,
e sobre a língua do Brasil. De outro se coloca na série dos textos
legais brasileiros (constituição, decretos, etc). Mas não podemos
esquecer de pensar que ele também faz parte da série dos textos
que debateram, durante mais de um século, a questão da língua
nacional brasileira, ligada ao problema da constituição de nossa
nacionalidade
Algo parecido com isso, mas igualmente distinto, é o que po-
demos ver, por exemplo, na análise do poema “A Última Canção
do Beco”. Ele é um poema que se mostra como poema de uma sé-
rie, mas ele não é uma versão de outros, como no Credo (o poema
não é um texto de um ritual), nem tem sua performatividade sus-
tentada em outros ou sustentando outros. O poema de Bandeira
se apresenta no interior de uma série de poemas sobre “o Beco”.
O que cria um modo muito particular de relação intertextual no
conjunto dos poemas da série.
Como se vê, a análise dos textos que escolhi para apresen-
tar aqui trará a possibilidade de considerar uma interpretação de
cada texto em si. Que sentidos estão significados neste ou naque-
le texto? Como isto pode ajudar a compreender outras coisas de
uma história, de uma literatura, de um autor, de uma ciência, de
uma religião? Mas estas análises, por aquilo mesmo que os textos
apresentam no seu funcionamento, nos permitirão também pensar
de modo muito específico sobre como se constituem os sentidos,
na medida em que os consideramos produzidos nos acontecimen-
tos em que os textos são enunciados e no modo como integram
enunciados, são integrados por enunciados.
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30
ANÁLISE DE TEXTO
Estabelecendo o Procedimento
S
e os textos estão por todo lado em nossas vidas, nós os lemos,
nós os interpretamos de certo modo. No entanto, é preciso
pensar que esta relação com os textos exige, em muitos ca-
sos, um investimento particular para uma compreensão mais rica
daquilo que nele está significado, direta ou indiretamente.
Para começar especifiquemos o sentido da expressão “análise
de texto”. Trata-se para mim, já fiz referência a isso antes, de
interpretar os sentidos produzidos pelos textos, os sentidos que
podemos reconhecer num certo texto particular.
Coloco esta questão a partir do lugar de semanticista. E para
mim estar na posição de semanticista é se colocar na posição de
dizer como os sentidos podem ser interpretados. E tomar a se-
mântica como uma disciplina de interpretação não é privilégio
das posições enunciativas ou pragmáticas. Mesmo a semântica
da gramática gerativa coloca a questão a partir da consideração
da semântica como uma disciplina que interpreta uma estrutura
sintática. Katz (1972) no seu Semantic Theory já dizia:
1. O Lugar do Leitor
3. Desvio Interessado
19 Esta questão foi tratada por Guimarães (2008). Sobre os modos como o
texto sempre esteve presente nas minhas preocupações, ver Guimarães (1987,
1995, 1998 e 2006).
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Um exemplo desta posição está na discussão que Rifaterre faz
de uma estrofe de Baudelaire de um poema de Fleurs du mal
[Flores do Mal]. Ele se dedica a discutir a análise da estrofe que
segue:
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terdependentes e entrelaçados dos assuntos humanos, o
método dedutivo é aplicável somente como comprova-
ção do princípio descoberto pela indução, que se susten-
ta e se apóia na observação” (idem: 42).
42
4. Apresentação do Procedimento
23 Observe-se que aquilo que Halliday e Hasan chamam de laço, estou con-
ceituando de modo diferente, como reescrituração, exatamente porque não se
trata de construir um conceito referencial como o de coesão, mas um conceito
de produção de sentido. Dizer de novo é produzir sentido.
46
Parte ii
ANÁLISES: EM TORNO DA
HISTÓRIA DO BRASIL
47
48
A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA
N
a história política do Brasil, tal como em geral, encontra-
mos vários textos de grande relevância. Entre estes está
o texto comumente referido como o da “Proclamação da
República”. Trata-se de um texto decisivo que faz parte do processo
de uma mudança fundamental na história brasileira. Este texto é
o marco do início da República. Ele tem a força performativa de
instalação de um novo regime político. É este texto que vamos
analisar a seguir. Ele é datado de 15 de novembro de 1889. Co-
mecemos por retomá-lo.
Concidadãos!
O Povo, o Exército e a Armada Nacional, em perfeita
comunhão de sentimentos com os nossos concidadãos
residentes nas províncias, acabam de decretar a
deposição da dinastia imperial e conseqüentemente a
extinção do sistema monárquico representativo.
Como resultado imediato desta revolução nacional,
de caráter essencialmente patriótico, acaba de ser
instituído um Governo Provisório, cuja principal missão
é garantir com a ordem pública a liberdade e o direito
do cidadão. Para comporem este Governo, enquanto
a Nação Soberana, pelos seus órgãos competentes,
não proceder à escolha do Governo definitivo, foram
nomeados pelo Chefe do Poder Executivo os cidadãos
abaixo assinados.
Concidadãos!
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O Governo Provisório, simples agente temporário da
soberania nacional, é o Governo da paz, da fraternidade
e da ordem.
No uso das atribuições e faculdades extraordinárias
de que se acha investido, para a defesa da integridade
da Pátria e da ordem publica, o Governo Provisório,
por todos os meios ao seu alcance, promete e garante a
todos os habitantes do Brasil, nacionais e estrangeiros,
a segurança da vida e da propriedade, o respeito aos
direitos individuais e políticos, salvas, quanto a estes, as
limitações exigidas pelo bem da Pátria e pela legítima
defesa do Governo proclamado pelo Povo, pelo Exército
e pela Armada Nacional.
Concidadãos!
As funções da justiça ordinária, bem como as funções da
administração civil e militar, continuarão a ser exercidas
pelos órgãos até aqui existentes, com relação às pessoas,
respeitadas as vantagens e os direitos adquiridos por
cada funcionário.
Fica, porém, abolida, desde já, a vitaliciedade do Senado
e bem assim o Conselho do Estado.
Fica dissolvida a Câmara dos Deputados.
Concidadãos!
O Governo Provisório reconhece e acata os compromissos
nacionais contraídos durante o regime anterior, os
tratados subsistentes com as potências estrangeiras, a
dívida pública externa e interna, contratos vigentes e
mais obrigações legalmente estatuídas.
Marechal Manoel Deodoro da Fonseca,
Chefe do Governo Provisório.
Aristides da Silveira Lobo,
Ministro do Interior.
Tenente-coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães,
Ministro da Guerra.
Chefe de Esquadra, Eduardo Wandenkolk,
Ministro da Marinha.
Quintino Bocaiúva, Ministro das Relações Exteriores e
interinamente da Agricultura, Comércio e Obras.
50
Este texto, mesmo que sobre ele não se tenha depositado muita
atenção, produziu conseqüências e sentidos no decorrer da his-
tória brasileira. Deste modo vou me dedicar a estudá-lo por esta
relevância para a história do Brasil. Por outro lado, esta análise
pode servir para aqueles que quiserem estudar de modo mais sus-
tentado o ordenamento jurídico da história do Estado Brasileiro.
Um aspecto interessante a registrar de saída é que neste texto,
conhecido pelo nome de “Proclamação da República”, tal como
dissemos acima, não aparece nem uma vez a palavra república.
E o seu título é, como vimos, “Proclamação dos Membros do
Governo Provisório” (nem mesmo no título a palavra república
aparece).
Um primeiro aspecto que chama a atenção no texto são os
vocativos que o dividem em quatro partes. Deste modo tomarei
como primeiro recorte para análise o funcionamento deste voca-
tivo na Proclamação. Para isso vamos analisar a constituição nele
da cena enunciativa. Um segundo recorte, que podemos articular
a este primeiro, é o modo de constituição da performatividade do
texto. Trata-se de um texto que muda o regime político do Estado
brasileiro. Um terceiro recorte é o do sentido da palavra “povo”,
que aparece duas vezes, numa mesma seqüência que se repete.
Esta palavra aparece no início do segundo enunciado, logo após o
primeiro vocativo, e ao final do segundo segmento logo antes do
terceiro vocativo (concidadãos!).
1. Os Concidadãos
Temos então:
(4) L – Eun – l-cidadão ↔ al-cidadão - AL
A enunciação do texto da Proclamação se apresenta como se
dando do lugar do cidadão para o cidadão. E significando essa
relação como inquestionável. Deste modo podemos dizer que a
“Proclamação do Governo Provisório” de 15 de novembro de
1889, significa o que se faz com este texto como do domínio po-
lítico. Como significando uma igualdade de todos com todos. E
isto pode ser confirmado se observamos para o fato de que, na
primeira parte do texto (introduzida pela primeira enunciação de
“Concidadãos!”), se formula a “deposição da dinastia imperial”
e “a extinção do sistema monárquico”. Logo em seguida, esta
formulação é reescrita por totalização pela expressão “revolução
nacional”.
Cidadão – concidadãos
____________________________
Povo
____________________________
Exército - Armada Nacional
59
cidadão – concidadãos
____________________________
habitantes nacionais
┴
Povo
____________________________
Exército – Armada Nacional
Conclusão
60
“DESORDEM” NO CONGRESSO
E
ste capítulo se dedica a analisar um texto cujo funcionamento
apresenta características muito particulares. De um lado é
um texto que traz a enunciação de enunciado linguístico e de
enunciados cuja materialidade não é linguística. Trata-se do texto
de um outdoor assinado pela “Central do Outdoor”. A sua escolha
para as análises que desenvolvo nesta obra se deu porque ele se
articula com aspectos da análise que acabo de fazer no capítulo
anterior. Como se poderá ver a seguir, trata-se de um texto que
produz sentido pelo modo como “lida” com a Bandeira Brasileira.
Esta bandeira é estabelecida para o Brasil a partir da República.
Por outro lado, trata-se de um texto atual, sobre a realidade política
do Brasil de hoje.
Uma primeira observação do texto nos traz o relevo dado ao
único enunciado lingüístico (além do nome “Central do Outdoor”)
que ele traz, “Ordem no Congresso”, colocado no lugar corres-
pondente ao que na Bandeira Brasileira traz o enunciado “Ordem
e Progresso”. Isto já nos leva a tomar o recorte cuja contraparte
é o enunciado “ordem no Congresso”. Por outro lado temos a
considerar que este texto se produz enquanto uma “deformação”
da Bandeira do Brasil. Levando em conta estes aspectos, vamos,
na análise deste texto, considerar três recortes: o funcionamento
do enunciado “ordem no Congresso”; a representação modificada
da bandeira; e a cena enunciativa que o texto constitui. Para todos
eles, estará sempre m pauta a intertextualidade que é fundamento
expresso deste texto.
Este texto foi retirado no endereço www.outdoor.com.br. Ele
foi premiado na categoria estudantil no concurso da Central do
61
Outdoor no ano de 2005. O autor do outdoor é Mateus Rosa da
Silveira. Abaixo coloco sua reprodução em preto e Branco para
orientar a leitura da análise que apresento. Indico logo abaixo as
cores que as formas têm.
Outdoor
1.retângulo externo verde; 2.losango em amarelo; 3.círculo em
azul; 4.faixa central e estrelas em branco; 5.círculo central em
vermelho.
62
1. Um enunciado entre muitos textos
Mensalão ┤ desordem
Conclusão
Estamos assim diante de um texto que é enunciado num acon-
tecimento que toma a Bandeira Brasileira como um memorável e
que funciona como fonte de novos sentidos. E estes sentidos são
produzidos por uma relação de distorção que se faz da Bandeira
69
e assim significa que o Congresso precisa modificar-se, assumir
uma ordem, pois, tal como vem agindo, funciona contra o Estado,
a Nação e o povo (significado como palhaço).
Um aspecto importante é que a tomada da perspectiva genérica
distribui a crítica que o locutor-empresa faz, ao relatar o locutor-
-estudante, para a voz geral do povo. Esta vem significada pelo
pressuposto “não há ordem no Congresso”, que sustenta a possi-
bilidade da diretiva “faça-se ordem no congresso”, assim como
novos dizeres críticos que tal pressuposto pode sustentar como
argumento.
70
O NOME DA LÍNGUA
V
ou neste capítulo analisar um texto cujo interesse se deve
a que ele diz respeito também (como o da Proclamação
da República) à história política do Brasil. Trata-se de um
texto que pode ser incluído numa série de textos legais (tal como a
Proclamação), assim como, e isto lhe dá uma especificidade, numa
série de textos científicos.
Trago, então, para análise, “Denominação do Idioma Nacional
do Brasil”, texto que contém o parecer que decidiu que o nome da
língua Nacional do Brasil é língua portuguesa.
Este texto (transcrito na íntegra no apêndice, ao final) tem rece-
bido pouca atenção de analistas da história do Brasil e da questão
da língua no Brasil. Ele é tomado simplesmente por seu resultado:
o nome da língua nacional e oficial do Brasil é Língua Portuguesa.
No entanto os desdobramentos que ele trouxe para a história da lín-
gua no Brasil são significativos. Um caso importante seria lembrar
que a constituição de 1988 estabelece a língua oficial do Brasil, cla-
ramente partindo deste parecer, exatamente por esquecê-lo: o artigo
da Constituição que diz “A Língua Portuguesa é a língua oficial da
república Federativa do Brasil” parte da nomeação já estabelecida.
Mas nosso objetivo aqui não é essa questão. Vamos à análise do
texto e vejamos como ela pode iluminar aspectos interessantes des-
te texto que fica esquecido exatamente para que seu resultado seja
o mais homogêneo possível, para que as razões daquela discussão
das décadas de 1930 e 1940 não retornem.
Para a análise vou considerar o seguintes recortes27: o da per-
76
3. O Sentido de Civilização
Progresso
Civilização ┤ língua
Progresso
29 É claro que isto significa deste modo até porque uma língua é civilizada por-
que é a língua de um povo civilizado. Assim vemos como a uma determinação
circular que se instala: língua determina povo, povo determina língua.
30 Cuja última relação poderia ser língua ┤povo ┤ língua, ou, de outro modo,
língua ├ ┤povo.
79
4. Argumentos para uma Língua Nacional
Conclusão
85
86
Parte iii
ANÁLISES: OUTROS TEXTOS NEM
TÃO DISTANTES
87
88
UMA NOTÍCIA E SUAS LÍNGUAS
N
este capítulo, vou fazer um movimento diferente de aná-
lise. Vou me ocupar de um texto que não se insere numa
história tal como os textos até aqui analisados. Trata-se de
um pequeno texto, de uma revista semanal de grande circulação
da mídia brasileira. É um texto aparentemente simples e que se
mostra como uma mera notícia lateral, já que aquilo de que fala
não foi motivo de uma matéria, uma reportagem, com chamada
de capa, etc. Apresento abaixo o texto, no que ele tem de verbal,
já que ele é composto, também, por uma foto do personagem
sobre o qual fala.
89
na, utilizando horizontalmente toda sua extensão. A parte verbal do
texto ocupa o espaço de duas colunas (a página está divida em três),
no último terço do espaço vem uma fotografia de Branson que ocu-
pa espaço vertical superior ao destinado ao rodapé em que está o
texto. Este aspecto da fotografia (as demais fotografias da página
são pequenas e têm o aspecto de fotos 3X4, só com o rosto) e o fato
de vir num rodapé são aspectos que significam um relevo dado,
nesta seção, a esta notícia, diferente das demais, que vêm cada uma
numa parte de cada uma das três colunas da página. Na minha aná-
lise vou me ocupar da parte verbal do texto, que, em verdade, orga-
niza seus sentidos. De saída ressalta a metáfora do título e o fato de
que funcionam no texto nomes vindos de outras línguas. Levando
isso em conta, vou me deter, para esta análise, em três recortes: o da
metáfora do título da notícia, “Os músculos brasileiros de Richard
Branson”; o do espaço de enunciação; o do caráter aditivo do texto,
diretamente ligado ao modo de apresentar a notícia.
2. As Línguas do Texto
37 Embora a posição pela qual analisa a metáfora não seja a que utilizaríamos,
Le Guern (1981), nos apresenta a questão do valor argumentativo da metáfo-
ra aproximando-a da posição ducrotiana na semântica argumentativa. Deste
modo nos valemos de sua posição quanto a este aspecto particular.
97
Por outro lado, o texto é um desenvolvimento e uma especifi-
cação (uma reescrituração por expansão) do título do texto. Deste
modo, se como se disse acima, podemos considerar que o título
(“os músculos brasileiros de Richard Branson”) argumenta para
“o sucesso do empreendimento”, devemos também considerar
que a organização aditiva do texto deixa de ser mera descrição ou
narração para ser a representação detalhada do argumento, para
ser argumento de “O sucesso do empreendimento”. Ou seja, esta
retórica aditiva se articula, a partir da metáfora “Músculos brasi-
leiros”, e projeta sobre esta adição a força da metáfora do título.
Assim podemos interpretar o texto como uma argumentação a fa-
vor do sucesso do empreendimento baseado em virtude do poder
do grupo de Richard Brenson, de resto representado com desta-
que por sua fotografia ao lado do texto.
Conclusão
98
O CREDO E A ENUNCIAÇÃO
RITUALIZADA
A
s práticas religiosas cristãs católicas incluem a enunciação
de certos textos de modo ritualizado, as orações. São, por
exemplo, muito conhecidas e fundamentais para os cató-
licos o “Pai-nosso”, a “Ave-Maria’ e o “Credo”.
Neste capítulo vamos analisar de modo específico o “Credo”. Re-
tomo aqui uma análise que fiz anteriormente38 e que aqui aparece
modificada por levar em conta aspectos que não considerei naquele
momento. Esta retomada tem a ver com vários aspectos que impor-
tam neste livro. De um lado retoma a análise de um texto que fiz, há
muitos anos, já me valendo do procedimento de análise que utilizo
nesta obra, mesmo que naquele momento o procedimento não te-
nha sido diretamente apresentado nem explorado; de outro, trago,
para a discussão que desenvolvo, um texto que tem uma caracte-
rística, muito particular, de trataremos a seguir: o “Credo” é um texto
que funciona na medida em que é repetido, porque é ritualizado. É
um texto que se recita como um modo de enunciá-lo novamente.
O fato de se tratar de um texto que traz como forma de enuncia-
ção a repetição coloca dois aspectos importantes: o da enunciação
sempre repetida de um mesmo texto, e a questão das versões do
Credo, no decorrer da história das práticas católicas. Tomaremos
estes aspectos como o primeiro recorte desta análise.
Antes de me dedicar aos aspectos deste texto, faço, previa-
mente, uma análise rápida do agenciamento enunciativo de dois
outros textos igualmente ritualizados como este: “Pai-nosso” e na
“Ave-Maria”.
38 Publicada em Orlandi (1987).
99
1. Aproximação por outras vias
39 Esta minha maneira de tratar a questão hoje tem na sua história as posições
de Ducrot (1984) e trabalhos anteriores como Orlandi e Guimarães (1988),
Guimarães (1987, 1989, 1995).
105
L). E, ao se responsabilizar pela afirmação, se responsabiliza pela
verdade da crença a partir do lugar social de locutor (enquanto um
locutor-fiel). Dar-se como origem deste engajamento é ser agen-
ciado pelo lugar do fiel numa comunidade de fé (a Igreja).
Quanto ao lugar social do dizer, podemos ver neste acontecimento
dois aspectos: de um lado podemos ver aí, tal como já caracterizamos
acima, a Igreja que, através de certas pessoas, construiu esta oração
e faz dela traduções e paráfrases dadas como igualmente válidas. Ou
seja, o locutor-fiel fala enquanto agenciado pelo lugar da Igreja. E
esta por sua vez fala em nome de Deus. Assim o locutor-x (fiel) desta
oração, como de resto de outras (lembrar a breve análise que fizemos
sobre o Pai-nosso e a Ave-Maria e a descrição que apresentamos há
pouco em (6) e (7)) enuncia um dizer da Igreja enquanto dizer de
um locutor-deus. Consideramos, então que há dois níveis na repre-
sentação dos lugares sociais de onde se fala. Num primeiro nível,
o locutor-fiel fala do lugar da Igreja, ou seja, da comunidade dos
cristãos (a afirmação da crença é um ato de “comunhão” dos cristãos
entre si, feito da perspectiva dos cristãos, no caso, católicos). Assim
o locutor-fiel fala da perspectiva de um enunciador coletivo. É sig-
nificativo lembrar aqui que, no batismo, a formulação daquilo em
que se deve crer é feita por um cristão, por alguém, portanto, que
representa a Igreja. Num segundo nível, o locutor-fiel fala do lugar
da Igreja como se falasse do lugar de Deus, a própria oração é uma
versão de texto apresentada pela Bíblia, segundo a Igreja, revelada
por Deus aos homens. Por outro lado O locutor-deus e o locutor-
-igreja têm como alocutários o conjunto de fiéis. Assim o alocutário
de Deus e da Igreja é o locutor da oração que toma Deus, ou algum
seu representante, como alocutário.
Pela consideração do modo de representação do sujeito da
enunciação no credo, podemos dizer que o locutor se engaja na
crença pela repetição de uma fórmula (ritualização das orações), e
de tal modo que o cristão se representa, enquanto locutor-x (fiel),
como quem crê, e se representa como fonte de expressão dessa
crença, enquanto L. Mas como ele enuncia o que é uma enuncia-
ção de Deus, o fiel fala de um lugar que representa como seu, mas
é o da Igreja como se fosse o de Deus.
Pelo dizer da Igreja, Deus nos diz o que lhe devemos dizer
como locutores. Vemos, então, que, enunciativamente, esta ora-
ção, e seguramente as outras (lembremo-nos que pela narrativa
106
bíblica cristã o Pai-nosso foi ensinado por Jesus Cristo), é uma
enunciação circular: dizemos a Deus aquilo que ele nos disse para
dizer a ele. Temos a ilusão de que a origem da manifestação de
nossa crença somos nós, quando, no máximo, podemos dizer que
nos engajamos, enquanto locutor-x (fiel) nesta crença. E mesmo
assim instalados pela voz da Igreja que se dá como a voz de Deus.
O fiel é agenciado a enunciar como fiel.
Tal como vimos no caso do Pai-nosso e da Ave-Maria, também
para o Credo vemos que se trata de uma relação direta do fiel com
Deus (ele fala a Deus o que Deus lhe disse para falar a ele), a
enunciação é representada como não afetada pela história huma-
na. Vê-se, mais uma vez, que a enunciação ritualizada da oração
significa-se como fora do acontecimento (do tempo, da história).
Deste modo o ritual de rezar, dizer um texto ritualizado, que
se representa como o dizer de um enunciador universal, é efetiva-
mente um dizer de um enunciador coletivo, tal como já indicamos
um pouco acima.
Conclusão
112
OS SENTIDOS DE UMA CANÇÃO
DE BANDEIRA
C
omo última análise, vou me dedicar, neste capítulo, à inter-
pretação de um texto literário. Escolhi para isto o poema
de Manuel Bandeira “Última Canção do Beco”. Como não
vou analisar este texto a partir do lugar do crítico literário, procurei
evitar a relação com a fortuna crítica sobre Bandeira. Deste modo
escolhi um poema que não tem tido a atenção dos críticos. Por outro
lado me interessou o fato de ele se incluir numa série constituída
pelos poemas: Poema do Beco; Primeira Canção do Beco; Segunda
Canção do Beco; Última Canção do Beco41.
Exatamente porque não estou na posição do crítico, não vou
me ocupar da série, mesmo que esta inclusão na série seja defini-
dora para minha escolha, e mesmo que minha análise possa servir
aos críticos e aos interessados em Manuel Bandeira.
De acordo com o procedimento aqui adotado, vamos produzir
os recortes no texto considerando aspectos proeminentes, segundo
meu lugar de análise. Tomarei assim os seguintes recortes: as reescri-
turações da palavra “beco”; a constituição da cena enunciativa; a de-
signação de “Beco”; e aspectos da construção dos versos e estrofes.
1. Os Sentidos de Beco
A palavra “Beco”, além de já aparecer no título do poema,
ocorre várias vezes no texto, reescriturada por repetição. “Beco”
é a primeira palavra do poema, reescriturada em seguida:
41 Para chegar a esta escolha me vali das indicações de Raquel Beatriz Gui-
marães que, dados os meus interesses me fez a sugestão de analisar este texto
por ele participar dessa série.
113
a) no início do 3o. verso da 1a. estrofe;
b) no início da 3a. estrofe;
c) no início da 4a. estrofe;
d) no início da 7a. estrofe.
Beco é também reescriturado por elipse
a) na primeira estrofe: no 4o. verso; no 5o. verso; no 6o. verso;
b) na terceira estrofe: no segundo verso.
Beco é ainda reescriturado:
a) pelo pronome oblíquo (complemento) ti, no 2o. verso da
4a. estrofe;
b) pela forma verbal de 2a. pessoa do verbo no 3o. verso da
4a. estrofe;
c) pela forma verbal de 2a. pessoa do verbo no 6o. verso da
4a. estrofe;
d) pelo dêitico aqui no 7o. verso da 4a. estrofe;
e) pela forma de 2a. pessoa do verbo no 3o. verso da 7a. estrofe;
f) pelo pronome te no 5o. verso da 7a. estrofe;
g) pelo pronome te no 6o. verso da 7a. estrofe.
Esta reescrituração passa de um processo de referência (3a.
pessoa) para um processo de interlocução, em que o referido tor-
na-se interlocutor, por uma animização (antropormofização) do
espaço.
Esta passagem é mediada por um passo em que Beco é reescri-
turado por elipse, que aparece de modo significativo no verso sete
(“Adeus para nunca mais!”). Nesse ponto a elipse significa um
vocativo “Beco”. Assim o Beco a que se fala é uma lembrança.
Lembrança de várias coisas.
Deste modo a passagem do Beco de referido a interlocutor pre-
sentifica esta lembrança, estas lembranças.
Na reescrituração de Beco, devemos também considerar um
outro aspecto. Além de Beco há mais duas referências a ele liga-
das: a) esta casa e b) Lapa – Lapa do Desterro.
Em a, a referência está no predicado vão demolir esta casa. Ou
seja, Alguém (agente indeterminado, não referido, não conhecido)
demolirá esta casa, uma referência singular definida. Aí vemos que
esta casa liga-se a uma outra referência também singular definida,
mas agora com uma marca da 1a. pessoa: meu quarto. Assim esta
casa tem o meu (do poeta) quarto e sendo a casa demolida ele per-
manecerá: “meu quarto vai ficar”. E este vai ficar é reescriturado
114
logo a seguir por repetição num predicado expandido por uma cir-
cunstância: “vai ficar na eternidade”. Assim vai ficar na memória
do poema, tal como o Beco que é rememorado por elipses.
Em b, temos algo semelhante. Ligado a Beco, vem Lapa. E o
que é a Lapa? Primeiro, já na sua nomeação ela aparece reescrita
por um aposto com um caracterizador: Lapa do Desterro. E de-
pois Lapa é caracterizada por uma relativa que tanto pecais (sen-
tido pressuposto) no verso que reescreve o anterior (Lapa – Lapa
do Desterro). Ao mesmo tempo o poeta nos leva ao lado oposto
disto por uma articulação argumentativa:
[[Lapa que tanto pecais ---) r]
mas [...que graças angelicais ---) ~r]] ---) ~r
E a conclusão ~r não anula exatamente a conclusão r, convive
polifonicamente com ela. E o que é r e ~r? Um é o oposto do ou-
tro e isso é suficiente, para o sentido do poema. “Lapa que tanto
pecais” dá um sentido à Lapa, oposto ao sentido que lhe da “...que
graças angelicais”.
Assim podemos dizer que Beco tem duas reescriturações por
substituição em direções opostas:
a) é reescrito por esta casa e meu quarto, por especificação
(particularização);
b) é reescrito por Lapa por generalização (ampliação),
Cada um destes elementos reescreve os outros em duas dire-
ções. Podemos assim dizer que num dos sentidos ( ┤lê-se deter-
mina):
a) quarto ┤casa ┤beco ┤lapa
no outro sentido o que se tem é
b) lapa ┤beco ┤ casa ┤ quarto
Vemos assim, de um lado, uma passagem do íntimo ao social
e, de outro, a passagem do social ao íntimo. Em outras palavras:
Em (a) o meu lugar (do poeta) dá sentido a Lapa. Em (b) a
Lapa dá sentido ao lugar do poeta (meu lugar).
{
Locutor Alocutário
| |
Poeta Beco
Primeira a
a
Segunda b
b
Terceira c
c
Quarta d
d
Quinta a
a
Sexta b
b
Sétima a
a
1a e 7a. a referência
a interlocução
3a. c referência
c referência
4a. d interlocução
d interlocução
5a. a referência
a referência
1a. – B
2a. – X
3a. – B
4a. – B
5a. – X
6a. – X
7a. – B
1a. – B
2a. – X
3a. – B
4a. – B
5a. – X
6a. – X
7a. – B
Conclusão
122
Parte iv
O TEXTO NA ESCOLA
123
124
ESTUDANDO COM TEXTOS
C
omo o Homem é um ser de linguagem, ele desde sempre
ficou exposto à relação com textos. Com a escrita esta re-
lação tomou contornos muito específicos que produziram
um imaginário muito particular sobre a finitude do texto. Este ima-
ginário ganha ainda novos contornos com a invenção da imprensa
que levou à possibilidade de reprodução em larga escala. Hoje as
novas tecnologias dão, mais uma vez, outros contornos ao modo
de se representar o que seja um texto e de fazê-lo circular.
Diante desta nova cena histórica, a Escola tem um papel es-
pecífico na formação das pessoas tomadas como cidadãos de um
Estado-Nação. Levar em conta a relação com a Escola como uma
obrigação do Estado com seus cidadãos, produz necessariamente
o aumento da população escolar. E a Escola precisa enfrentar este
crescimento com critérios muito específicos de qualidade.
Embora não seja objetivo desta obra discutir estes aspectos,
não se pode deixar de levar em conta que pensar a Escola, nas
condições históricas atuais, leva à consideração destas condições.
Por outro lado, não estamos diante de uma condição que traga
consigo, por si mesma, uma concepção do que seja texto. Esta
concepção é constituída pelas posições do pensamento científico.
Quanto ao que nos interessa, nos capítulos anteriores procuramos
dar conta de uma concepção de texto e de um modo de analisá-lo,
de compreendê-lo.
Neste capítulo procuraremos apresentar algumas reflexões que
mostrem como, partindo de uma concepção como a aqui apresen-
tada, se pode, com grande proveito, produzir atividades capazes
de desenvolver nos alunos, em cada nível: a capacidade de com-
125
preender um texto, poder pensar sobre ele, poder falar sobre ele; e
a capacidade de produzir textos, os mais diversos, nas condições
as mais diversas.
1. O Enunciado e o Texto
3. Apresentação de um Procedimento
136
4. Observações Suplementares
137
138
Conclusão
139
140
ENSAIO QUASE FINAL
E
speramos ter mostrado que é possível tomar como centro
de várias atividades intelectuais, inclusive na formação na
Escola, a questão texto. Por outro lado, espero ter mostra-
do como é possível tratar a análise de texto de modo objetivo se
partimos de procedimentos de descrição bem delineados, articu-
lados a um procedimento que oriente o processo de interpretação,
e baseados em posições teóricas claras e concernentes ao texto.
Evidentemente que uma primeira a coisa a dizer nesta conclu-
são é que cada texto exige que se encontre o caminho para ana-
lisá-lo. Veja que em certos casos o funcionamento da designação
e das reescriturações foi decisivo, em outros a observação da ar-
gumentação ou da metáfora, em outros ainda o modo de agencia-
mento específico da performatividade, ou a própria organização
dos versos do poema, ou ainda as relações de intertextualidade.
Encontrar os recortes a fazer e se guiar por suas descrições é o
fundamento desta prática, no modo como a apresentei aqui.
Como se viu, para nossa posição, é preciso considerar, na des-
crição que sustenta a interpretação, o funcionamento do texto. Tra-
ta-se, para nós, de um funcionamento lingüístico caracterizado his-
toricamente, considerando que a presença do locutor se dá por um
agenciamento lingüístico próprio do acontecimento de enunciação.
141
textos os mais diversos, independentemente da posição que a his-
tória reservou a eles. Estes textos fazem parte de práticas que os
fazem circular de modos diferentes. E estes modos de circulação
são construídos pelos acontecimentos em que são enunciados.
Percorrendo as análises feitas, há várias coisas que podemos
mostrar nessa direção, e que é importante para a própria definição
de texto. No percurso que fizemos vamos encontrar, por exemplo,
um texto como o da Proclamação da República que se formula
tanto como um texto político quanto como um texto jurídico. Se
consideramos o texto “Ordem no Congresso”, estamos diante de
um texto que se apresenta como publicidade e como um texto
político, mais uma vez numa duplicidade que não é a de um texto
de um certo gênero que contém sequências de um outro gênero.
Não se trata de um texto “carta” que contém a transcrição de um
artigo de uma lei, por exemplo.
De um outro ponto de vista, podemos pensar o “Credo” como
um texto que se caracteriza por estar numa série de versões. Coisa
diferente do texto “A Última Canção do Beco”, que é um texto
que está numa série, a das canções do Beco de Manuel Bandeira.
Mas há aí um diferença fundamental que diz respeito ao próprio
modo de enunciação da oração e do poema. Por outro lado, o tex-
to de Bandeira se diz uma canção, mas se procuramos pela carac-
terização do que seja uma canção vamos ver que este poema não
cumpre exatamente o que se apresenta com a forma da canção.
Se fazemos atenção no texto sobre o nome da língua nacio-
nal do Brasil, vamos também encontrar um texto que traz nele
a convivência de cenas enunciativas distintas. De um lado ele é
um texto que circula como um texto de especialistas e de outro
ele circula como um texto jurídico, um texto que decide sobre a
nomeação da língua de um povo. E tem assim um valor perfor-
mativo de lei. Neste sentido ele participa, em certa medida, do
modo de enunciação da Proclamação da República, mas não de
seu aspecto de texto político, militante.
E há ainda outros aspectos a considerar. No caso do texto “Ordem
no Congresso, vemos que ele é um “outdoor” e ao mesmo tempo
menciona um símbolo nacional. Traz para seu sentido o sentido do
símbolo nacional, embora ele mesmo não seja um símbolo nacional.
Assim este texto é um outdoor que significa não porque é outdoor,
mas porque “deforma” a bandeira nacional e oficial do Brasil.
142
Quanto ao “Credo” podemos observar que ele é uma oração,
uma prática de engajamento de fé que pode ser professado como
diálogo (perguntas e respostas, tal como no ritual do batismo cris-
tão católico), ou como uma oração que se reza individualmente
ou coletivamente. E num e no outro caso é considerado como um
engajamento de alguém como Cristão.
Se nos reportamos ao texto “Os Músculos Brasileiros de Ri-
chard Branson” encontramos um texto que se apresenta como um
relato que, no final das contas, é um argumento a favor do empre-
endimento do Grupo empresarial globalizado que tem Branson
como dirigente.
Todas estas concomitâncias e deslocamentos podem ser com-
preendidos se o procedimento de análise não se limita nem a se-
guir a linearidade nem a referencialidade do texto. Mas ao contrá-
rio se o procedimento instala, tal como fizemos, a necessidade de
observar as relações transversais que a integração dos enunciados
ao texto constituem em virtude de sua enunciação.
146
VAI SER ABERTURA DE CAPÍTULO OU VAI TER UM
‘OLHO’ AQUI???
BIBLIOGRAFIA
149
150
Apêndice
151
152
DENOMINAÇÃO DO IDIOMA
NACIONAL DO BRASIL
P
ara cumprir o art. 35º. Das disposições transitórias da Cons-
tituição de 18 de setembro de 1946, o qual determina: “O
Governo nomeará comissão de professores, escritores e
jornalistas, que opine sobre a denominação do idioma nacional”,
foi constituída a seguinte comissão:
Da Academia de Letras
Embaixador José Carlos de Macedo Soares
Dr. Cláudio de Sousa
Dr. Afonso de Taunay
Professor Pedro Calmon
Dr. Levi Carneiro
Da Academia de Filologia
Professor Sousa da Silveira
Pe. Augusto Magne
Professor Clóvis Monteiro
Professor Júlio Nogueira
Gal. Fortes de Oliveira, Inspetor Geral do Ensino Militar.
Professor Inácio Manuel Azevedo do Amaral, Reitor da Uni-
versidade do Brasil.
Pe. Leonel Franca, Reitor da Universidade Católica.
Dr. Herbert Moses, Presidente da Associação Brasileira de Imprensa.
Deputados Federais
Dr. Gustavo Capanema, Ex-Ministro da Educação
Dr. Gilberto Freire
153
A Comissão elegeu para seu presidente o Embaixador Macedo
Soares, para vice-presidente o Dr. Cláudio de Sousa e para relator
o Professor Sousa da Silveira.
O professor Sousa da Silveira apresentou o seguinte relatório
aprovado unanimemente pela Comissão, ao Ministro da Educa-
ção, que então era o Professor Ernesto de Sousa Campos:
“Sr. Ministro:
A Comissão, designada por V. Ex.a , com a aprovação do Sr.
Presidente da República, para cumprir a determinação contida no
art. 35º. Do Ato das Disposições Transitórias, apenso à Constitui-
ção dos Estados Unidos do Brasil promulgada em 18 de setembro
do corrente ano, tem a honra de trazer ao conhecimento de V. Ex.a
o resultado dos seus trabalhos.
CONSIDERAÇÕES LINGUÍSTICAS
É inteiramente falso dizer-se que, assim como do latim vul-
gar transplantado para o ocidente da Península Ibérica resultou o
idioma português, assim do português trazido para o Brasil resul-
tou a língua brasileira.
Proceder desse modo é comparar fatos diversos, e a conclusão
a que se chega percorrendo semelhante caminho, será, forçosa-
mente, errada.
O latim vulgar levado para o ocidente da Península Ibérica e
adotado por língua própria pelas populações que lá habitavam, -
de civilização inferior à dos romanos - , esteve longo tempo sem
escrever-se; e, depois da queda do Império Romano do ocidente,
ficou entregue à ação das forças naturais de evolução e diferen-
ciação; quando, mais tarde, foi adotado como língua escrita, es-
tava muitíssimo diversificado do padrão latino da língua clássica,
conservado na sobras dos grandes escritores romanos e imitado
pelo escritores do Baixo Latim.
Comparado esse latim vulgar evoluído com o antigo latim dos
documentos, literários ou não, ele apresenta diferença de estrutu-
ra fonética, de morfologia e de sintaxe, que constituem caracterís-
155
ticas suficientes para torná-lo uma nova língua, independente do
latim, embora dele derivada.
Com o português transplantado para o Brasil outros, bem ou-
tros são os fatos. Nunca ficou em abandono igual ao do latim
vulgar na Península Ibérica; ao contrário, esteve sempre em con-
tacto com o da Metrópole, onde a literatura atingiu alto cume no
s´peculo XVI e continuou no seu desenvolvimento florescente até
os nosso dias, Frei Vcente do Salvador, nascido no Brasil, escrevi
em português a sua História do Brasil; o Padr Antonio Vieira pre-
gava no Brasil muitos dos seus Sermões; Morais, nascido no Bra-
sil, compunha o seu Dicionário da Língua Portuguesa; brasileiros
iam a Portugal e formavam-se na Universidade de Coimbra; D.
João VI, com sua corte, veio para o Rio de Janeiro e aqui perma-
neceu por mais de uma década. Os nossos grandes poetas épicos
Santa Rita Durão e Basílio da Gama; outros ilustres poetas nos-
sos, como Cláudio Manuel, Alvarenga Peixoto, etc., escreviam
em excelente língua portuguesa, com os olhos sempre voltados
para os monumentos literários de Portugal.
Os estudos lingüísticos, sérios e imparciais, aplicados ao Bra-
sil, fazem-nos concluir que a nossa língua nacional é a língua por-
tuguesa, com pronúncia nossa, algumas leves divergências sin-
táticas em relação ao idioma atual de além-mar, e o vocabulário
enriquecido por elementos indígenas e africanos e pelas criações
e adoções realizadas em nosso meio.
Ainda mais: esses estudos, à proporção que se ampliam e se
aprofundam, reduzem a lista dos brasileirismos, mostrando que
alguns deles existem em dialetos portugueses (parecendo que de
Portugal nos vieram) e que, se outros podem ser admitidos como
inovações nossas, podem também considerar-se relíquias brasi-
leiras de arcaísmos portugueses.
As palavras brasileiras são iguais às portuguesas na sua compo-
sição fonética, apenas diferindo na pronúncia; os nomes de números
são os mesmo em Portugal e no Brasil; as conjugações são as mes-
mas, num e noutro país; as mesmas são também as palavras gra-
maticais: os pronomes (pessoais, possessivos, demonstrativos, relati-
vos, interrogativos, indefinidos), os artigos, os advérbios (de tempo,
modo, quantidade, lugar, afirmação, negação), as preposições e as
conjunções. Em geral é o mesmo o gênero gramatical, cá e lá; são as
mesmas as regras de formação do plural, o mesmo o sistema de graus
156
de substantivos e adjetivos; os mesmos os preceitos de concordância
nominal e verbal; quase na totalidade dos casos é a mesma a regência
dos complementos dos nomes e dos verbos; o mesmo o emprego de
modos e tempos, e a mesma a estrutura geral do período quanto à
sucessão das orações e à ligação de umas com outras.
Lemos e compreendemos tão bem uma página de Eça de Quei-
rós, quanto uma de Machado de Assis; e, quando, em escritos
de autor brasileiro ou português, desconhecemos o significado de
qualquer palavra, recorremos, salvo tratando-se de algum termo
muito restritamente regionalista, a um dicionário da Língua Por-
tuguesa; nunca o brasileiro, para ler, compreendendo, um jornal
ou livro português, precisou de aprender previamente a língua de
Portugal como se aprende uma língua estrangeira; não há dicioná-
rio português-brasileiro, nem brasileiro-português, como há, por
exemplo, dicionário português-espanhol e espanhol-português; a
gramática da língua do Brasil é a mesma gramática portuguesa.
Afirmações idênticas a essas que acabamos de fazer, não te-
riam lugar e comparássemos o português com o espanhol, não
obstante serem línguas românicas parecidíssimas uma com a ou-
tra: é que espanhol e português sã línguas diversas, ao passo que
é a mesma língua a que se fala e escreve no Brasil e a que se fala
e escreve em Portugal.
Quando os lingüista tratam da geografia das línguas românicas,
incluem a língua do Brasil, no domínio do português; e nas estatís-
ticas relativas ao número de pessoas que falam as grandes línguas
do globo, o povo brasileiro figura entre os de língua portuguesa.
CONCLUSÃO
À vista do que fica exposto, a Comissão reconhece e proclama
esta verdade: o idioma nacional do Brasil é a Língua Portuguesa.
E, em conseqüência, opina que a denominação do idioma na-
cional do Brasil continue a ser: Língua Portuguesa.
Essa denominação, além de corresponder à verdade dos fatos,
tem a vantagem de lembrar, em duas palavras – Língua Portu-
guesa -, a história da nossa origem e a base fundamental de nossa
formação de povo civilizado.