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Análise de Texto

Procedimentos, Análises, Ensino

1
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Guimarães, Eduardo
Análise de texto - Procedimentos, Análises, Ensino / Eduardo
Guimarães : Campinas, Editora RG, 2011.

Bibliografia.
ISBN 978-85-61622-28-????

1. Línguística - Teoria linguística 2. Semântica


3. Texto - comunicação escrita 4. Linguagem e História I. Título II.
Autor
CDD - 410
- 001.543
- 301.2

Índices para catálogo sistemático:


1. Línguística - Teoria linguística 410
2. Semântica 410
3. Texto - comunicação escrita 001.543
4. Linguagem e História 301.2

2
Eduardo Guimarães

Análise de Texto
Procedimentos, Análises, Ensino

Campinas – 2011
Editora RG

3
CRÉDITOS

4
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

INTRODUÇÃO

PARTE I - FUNDAMENTOS
Cap 1 - O que é texto
Cap 2 - Análise de texto: procedimentos

PARTE II – ANÁLISES: EM TORNO DA HISTÓRIA


DO BRASIL
Cap 3 - A proclamação da República
Cap 4 - “Desordem” no Congresso
Cap 5 - O Nome da Língua

PARTE III – ANÁLISES: OUTROS TEXTOS NEM


TÃO DISTANTES
Cap 6 – Uma notícia e suas línguas
Cap 7 - O Credo e a enunciação ritualizada
Cap 8 - Os sentidos de uma canção de Bandeira

PARTE IV – O TEXTO NA ESCOLA


Cap 9 - Ler e produzir textos: é possível ensinar na Escola

CONCLUSÃO
Ensaio não final

5
6
APRESENTAÇÃO

T
odos estamos, o tempo todo, diante do que designamos,
como num acordo de nomeação inquequívoco, pela palavra
“texto”. Os textos fazem parte da história de todos nós, com
maior ou menor força. Não há como não se deparar com eles sem-
pre. No entanto os estudos da linguagem não se dedicam tão am-
plamente a mostrar como analisar textos, como interpretar textos.
E eles são decisivos para tudo que fazemos hoje. Ou como meros
leitores seus no cotidiano, ou como especialistas que precisamos
aprender algo através deles.
A leitura nos pega de modos diferentes e por razões inclusive
desconhecidas. Quando li, ainda no Colégio, Memórias Póstumas
de Brás Cubas, demorei-me sete meses nessa leitura. A cada dia
um capítulo ou dois, mesmo que pequenos, como encontramos
em Machado. E assim fui me tornando íntimo de sua frase, de
suas surpresas permanentes. Surpresas que não deixei de ter, re-
centemente, ao reler Quincas Borba. O avesso disso foi, na mes-
ma época, ler em 16 horas O Guarani, de José de Alencar.
E se falo de Machado de Assis lembro-me também da precisão
da frase que inicia Helena, que de certo modo me levou ao envolvi-
mento com a narrativa que se iniciava. “O conselheiro Vale morreu
às 7 horas da noite de 25 de abril de 1859.” “O conselheiro Vale”
ao morrer dá início aos acontecimentos que serão narrados. É nesta
medida que Machado nos abre a porta para uma narrativa que faz
existir, e nos localiza numa época. E o faz ao tempo em que nos
coloca a condição social deste personagem, e dos que o cercam.
E se a literatura é uma boa companheira dos leitores, não dei-
xa de sê-lo também tantos outros textos que nos levam, por ra-
zões bastante diversas, para novos lugares, para novas reflexões.
Lembro-me, por exemplo, de uma posição expressa por Bréal da
7
qual não me esqueço, e por muitas razões. Uma delas é que sua
posição poderia ser um modo de considerar os sentidos a partir de
como se trata a relação entre as línguas, a enunciação e a história.
Segundo ele diz:

“A influência da linguagem sobre o pensamento pouco


observada em geral, desapercebida na antiguidade, não
é menos considerável: pode-se comparar a linguagem a
um vidro que atravessa nossas concepções, mas colorin-
do-se com suas nuanças1. Habituados com este interme-
diário, prestamo-lhe pouca atenção que, mesmo antes de
expressar um pensamento, ele se colore no nosso espíri-
to com as cores da linguagem” (Bréal, 1863, P. 8).

Se aqui podemos encontrar algum eco das posições de Hum-


boldt, encontramos também o caminho para nos afastar dele (de
Humboldt).
O universo da significação, que faz dos textos o que são, é o
que produz o envolvimento que nos transporta, que nos transfor-
ma, mesmo que este universo, na tranquilidade do cotidiano, pa-
reça não fazer parte de nossas vidas, e que descobrimos que faz.
A minha relação com o estudo do texto é antiga. Já na minha
graduação, impressionou-me particularmente um texto de Spit-
zer sobre seu procedimento de análise do texto literário. Depois,
mesmo me dedicando ao estudo semântico de enunciados, este
interesse permaneceu, a tal ponto que, ao estudar as conjunções
do Português de um ponto de vista argumentativo, desenvolvi a
análise de uma perspectiva que levava em conta que o funciona-
mento das articulações argumentativas se dá em virtude de sua
relação com o texto em que funcionam2.
Ao mesmo tempo sempre me ocupei da análise de textos de
modo mais ou menos específico. E isto tem muito a ver com a
forma que a semântica da enunciação acabou por tomar em meu
trabalho de semanticista, tal como aparece em trabalhos como
Semântica do Acontecimento, “Domínio Semântico de Determi-

1 Grifo meu.
2 Ver Texto e Argumentação (Guimarães, 1987), 4ª. edição revista e aumentada
(Guimarães, 2007).
8
nação” e “Enumeração”3, entre outros. Meus trabalhos no domí-
nio da História das Ideias Linguísticas claramente se desenvolveu
tendo em vista a análise de conceitos em textos específicos. Isto
pode ser visto, por exemplo, no livro História da Semântica4, por
exemplo. O mesmo se deu com meus trabalhos no Laboratório de
Estudos Urbanos, como se pode ver em Semântica do Aconteci-
mento há pouco referido e em “Quando o Eu se Diz Ele. Análise
Enunciativa de um Texto de Publicidade”5.
Nos últimos anos tenho me dedicado, por diversas razões, a fa-
zer várias análises de texto, e isto me levou a pensar em sistemati-
zar um pouco mais a questão de procedimentos de análise textual
que não se reduzisse a dizer como algo se faz como texto. Mais
do que isso me interessa dizer como devemos analisar um texto,
procurar dizer o que ele significa e de que modo significa. Esta
preocupação sempre me fez pensar em como eu poderia fazer a
análise de textos, os mais diversos, inclusive a análise de textos
literários. Neste particular, me interessou sempre pensar o texto
literário como linguagem e a partir desta posição analisá-lo. Esta
posição pode contribuir para a crítica do texto literário ou não,
mas seguramente pode contribuir para os modos de ler literatura.
Por outro lado, esteve sempre presente para mim, como de resto
para todos, que o texto é uma unidade de significação. Não se trata
de dizer que o texto tem unidade, mas que ele é uma unidade, assim
como a palavra é uma unidade, o enunciado é uma unidade, etc. E
esteve e está sempre presente para mim que a questão do texto é
uma questão semântica (usando inicialmente esta palavra no seu
sentido mais geral), o texto interessa porque significa. O que não
quer dizer que a semântica (disciplina da lingüística) é a encarre-
gada de estudar o texto. Seguramente que não, pois esta disciplina
já teve como sua unidade de análise a palavra e o enunciado. A
semântica, na forma como ela tem sido praticada, não tem como
objeto o texto, assim não cabe a ela, com seus procedimentos de
análise, estudar o texto, interpretar e compreender textos.
Mas para mim interessava pensar como um semanticista pode
se interessar pelo texto de modo específico. Ou seja, não só con-

3 Guimarães (2002, 2007, 2009) respectivamente.


4 Guimarães (2004).
5 Guimarães (2010).
9
siderar que os enunciados que a semântica analisa integram texto,
mas que é preciso levar para a análise de texto os desenvolvimen-
tos dos estudos da significação.
Deste modo, Esta obra procura tanto apresentar um procedi-
mento específico de análise de texto, nele estabelecendo o lugar
dos estudos semânticos, quanto desenvolver procedimentos pró-
prios para a interpretação e compreensão do texto. Assim espera-
mos contribuir para os modos de ler sustentadamente um texto.
Para isso escolhi um conjunto de textos que se tenham mostrado
para mim importantes por razões diferentes. Textos que me fizeram
pensar não só sobre eles, mas cuja análise acabou por me fazer
ver melhor a história do Brasil, ou o movimento político atual, por
exemplo. Decidi buscar textos com os quais me deparei nos meus
trabalhos em momentos diferentes, quando meu interesse não era
me deter nestes textos, mesmo que eles tenham entrado nas mi-
nhas reflexões como objeto de análise. Assim acabei por escolher
um texto vindo do domínio dos textos da história constitucional
brasileira, com a qual lidei ao estudar a designação de “cidadão” e
de “República”6. Como segundo texto a ser analisado escolhi “Or-
dem no Congresso”, um outdoor recente de responsabilidade da
“Central de Outdoor” e que coloca em questão o funcionamento
de uma instituição fundamental da república brasileira. Por outro
lado busquei um texto do domínio da história das ideias linguísticas
que tinha sido objeto de minha atenção, sobre o qual, porém, não
me detivera suficientemente antes, mas que tem uma importância
fundamental na discussão da questão da língua (oficial, nacional)
e das línguas no Brasil. Trata-se do parecer sobre qual o nome da
língua nacional do Brasil, de 1946. Este parecer é a certidão que
estabelece oficialmente o nome da língua nacional e oficial do Bra-
sil como Língua Portuguesa. Em momentos anteriores, no interior
de meus trabalhos sobre história das idéias linguística no Brasil, fiz
uma análise deste texto tomando dois aspectos fundamentais como
modo de compreensão dele para poder incluir esta reflexão numa
questão geral da política de línguas no Brasil. Agora retomo o texto
e me dedico a uma análise mais específica de seus diversos aspec-
tos, recortando-o, não pelo interesse de uma reflexão de política das

6 Estas análises podem ser encontradas em Guimarães (1992) e Guimarães


(1991).
10
línguas (mesmo que ela se apresente ainda assim), mas pelo inte-
resse de uma compreensão dos seus sentidos enquanto uma unida-
de específica de sentido. Uma quarta análise será a de uma notícia
jornalística sobre a ampliação de negócios internacionais de uma
empresa. Esta análise me permitirá trazer para a reflexão a questão
do espaço de enunciação, das relações entre línguas. Escolhi tam-
bém um texto religioso (o Credo), dado o lugar que ocupa no cris-
tianismo católico, que como sabemos é decisivo na vida brasileira.
Este texto eu já o analisei antes7, e já utilizando o procedimento
que agora procuro desenvolver e sustentar especificamente. É claro
que a análise, ao ser refeita, recebeu os avanços que consegui neste
tempo transcorrido. Por fim escolhi um texto de Manuel Bandeira,
um dos poetas de minha predileção. No entanto busquei escolher
este texto a partir de um critério que envolveu dois parâmetros:
ser um texto relevante no conjunto da obra do poeta e ser um tex-
to pouco estudado pela crítica. Assim cheguei à “Última Canção
do Beco”. Como se vê, a escolha dos textos, estes companheiros
que procuramos ou nos encontram quando menos esperamos, não
se deu para mim simplesmente porque gosto ou não destes textos,
mas porque, por caminhos diversos, eles se apresentaram como
relevantes em seus respectivos domínios. Deste modo, espera-se,
inclusive, que esta obra possa, ao lado de refletir sobre a análise de
textos, produzir resultados de análise que incidem sobre aspectos
decisivos do passado da história do Brasil e de aspectos do momen-
to em que estamos.
Em todas estas análises procurei me deixar expor ao inespera-
do, como me parece adequado na leitura de textos, e não somente
os literários. É por isso que procurei fazer um percurso que não
se apresenta a partir de modelos específicos de texto, como o que
se coloca a partir da noção de gênero textual. E é por isso mesmo
que procurei percorrer caminhos diversos na escolha dos textos.
Assim de um lado pratico esta exposição permanente ao texto, na
qual vivemos hoje. No entanto, por uma escolha ligada a certos
interesses, pude fazer um percurso que, mesmo que este não seja
o objetivo do livro, ele nos permite observar como a análise de
texto pode ser prática fundamental para pensar aspectos da histó-
ria, e da vida atual, do conhecimento em geral.

7 “Credo ou Creio”, Guimarães (1987a).


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Espero que o percurso que escolhi, e para o qual convido os
interessados, seja capaz de não só mostrar um modo de analisar
textos, mas também de mostrar o lugar do texto para a prática da
reflexão, do desenvolvimeno da vida intelectual, para a experi-
ência do prazer de encontrar sentidos ditos por outros, em outros
tempos, em outros lugares.

Eduardo Guimarães
Janeiro de 2011.

12
INTRODUÇÃO

O
objetivo desta obra é analisar textos. É procurar uma
compreensão sobre como funciona e produz sentidos esta
unidade complexa de significação que nos interroga sempre
por caminhos os mais inesperados.
Vou deste modo me dedicar à analise de alguns textos, ou seja,
vou me dedicar a interpretar um conjunto de textos diversos e
diferentes. Assim meu objetivo principal não é descrever funcio-
namentos da linguagem próprios do texto, mas, considerando es-
tes funcionamentos, analisar textos, “lê-los”, dizer que sentidos
eles têm, ou melhor, que sentidos eles produzem, numa relação
de leitura.
Para isso vou desenvolver um procedimento específico de aná-
lise de texto, tomando como posição fundamental a consideração
do funcionamento enunciativo e os desenvolvimentos da semân-
tica da enunciação.
Para que este objetivo possa ser tratado de modo adequado
devemos começar por distinguir:

a) Uma coisa é fazer semântica, construir uma semântica


(disciplina da lingüística), fazer descrições semânticas;
b) Outra coisa é como se pode analisar um texto enquanto
uma unidade de significação.

O sentido de unidade aqui, tal como já indiquei na “Apresen-


tação”, é o que este termo tem em enunciados como “o texto é
uma unidade”, correspondente a “a palavra é uma unidade”, “o
enunciado é uma unidade” e não em enunciados como “o texto

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tem unidade” na medida em que este último enunciado é paráfra-
se de “o texto é uno”.
Estas práticas não se sobrepõem, uma não é a outra. Fazer
uma semântica da enunciação, ou qualquer outra semântica, não
é fazer análise de texto ou vice-versa. É fundamental sustentar
esta distinção de modo claro para que se possa não só tomar o
texto como unidade de significação, mas também constituir um
procedimento específico de análise textual. Inclusive porque este
procedimento, no presente caso, se fará a partir da posição, sobre
como a linguagem significa, da semântica da enunciação.
Um primeiro passo para isso é então o de procurar caracterizar
o que é um texto, dizer o que é um texto. E isto deve nos levar
a considerar que de um lado podemos nos dedicar a dizer como
funciona um texto, ou seja, como algo se faz texto. Leva-nos, por
outro lado, a ver como podemos compreender os sentidos do tex-
to. E é este nosso objetivo, como já disse acima.
Sabemos que os estudos do texto no interior das ciências da
linguagem têm se dedicado fundamentalmente ao estudo do que
faz algo ser texto. Muito pouco se tem feito neste domínio sobre
o modo de analisar um texto, de interpretá-lo. E ainda há que se
distinguirem dois procedimentos, ligados a posições distintas. De
um lado o estudo do que faz algo ser texto (apresentar a caracte-
rística da textualidade), e de outro o estudo de como o texto faz
sentido. No primeiro caso está, por exemplo, o que se tem chama-
do de lingüística textual: uma referência obrigatória neste quadro
é à obra Cohesion in English (Halliday e Hasan, 1976). No segun-
do está a análise de discurso onde podemos encontrar trabalhos
como Discurso e Leitura, Interpretação, Texto e Discurso (Orlan-
di, 1988, 1996 e 2001, respectivamente). De outra parte, a análise
de texto, como seria de se esperar, tem tido um lugar específico
nos estudos literários, mesmo que isto se faça, em muitos casos,
sem levar em conta que uma obra literária é linguagem.
No presente trabalho vai me interessar dizer tanto o que é um
texto, como analisar seu funcionamento e, ao mesmo tempo,
constituir um procedimento que, a partir destas caracterizações,
permitam uma análise dos textos, ou seja, uma interpretação des-
tes textos.
Mas antes de indicar o percurso geral desta obra, é importante
me deter numa questão crucial. Para mim o sentido é produzido na
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enunciação tomada como um acontecimento de linguagem. Esta
questão será tratada posteriormente, na primeira parte deste traba-
lho. Aqui gostaria de definir o que entendemos como acontecimen-
to. Para mim (Guimarães, 2002), o acontecimento é o que faz dife-
rença na sua própria ordem. E o que especifica este acontecimento
é a temporalidade que ele constitui. Assim, um acontecimento não
considerado em virtude de estar num certo momento do tempo,
antes de um outro acontecimento também no tempo. Não é este
aspecto que considero como especificador de um acontecimento. O
que especifica um acontecimento é a temporalidade que ele cons-
titui: um passado, um presente e um futuro. Ou seja, um aconte-
cimento é distinto de outro acontecimento porque ele recorta um
passado de sentidos que convive com o presente da formulação do
Locutor e assim traz um projeção de futuro de sentidos que não sig-
nificariam não fosse o acontecimento em questão. Deste modo não
é Locutor que constitui o presente, parâmetro do tempo, como diria
Benveniste (1959), mas é o acontecimento que constitui o tempo e
assim constitui, agencia o Locutor. Vou rapidamente me valer aqui
de alguns elementos que aparecerão numa das análises do livro. É
o caso do texto do “Credo”, texto ritualizado próprio das práticas
religiosas dos cristãos católicos. Dizer o credo, significar uma ade-
são à crença num acontecimento pelo presente da enunciação só é
possível porque há um passado de sentidos segundo o qual se insta-
lou o ritual. E este passado (este memorável) só interessa enquanto
sentido que junto ao presente da enunciação projeta novos sentidos
(futuro) novas possibilidades de novas enunciações, a possibilida-
de, por exemplo, do cristão realizar outras práticas religiosas como
a confissão, a comunhão, etc.
O percurso que vamos fazer, então, envolve:

1. A conceituação do que seja um texto;


2. A caracterização do funcionamento do texto e do modo de
constituição do sentido;
3. A constituição de um procedimento de análise de texto
tomado como linguagem;
4. A apresentação de análises de textos escolhidos pelo re-
levância deles na História. Estes textos, como já disse antes, são:
“A Proclamação da República”; um outdoor que vou nomear por
“Ordem no Congresso”; o Parecer sobre o nome da língua nacio-
15
nal do Brasil (analisados na Parte II); uma notícia jornalística,
“Os Músculos Brasileiros de Richard Branson”; o “Credo” (ora-
ção do catolicismo); o poema “A Última Canção do Beco” de
Manuel Bandeira (analisados na Parte III).
5. Uma reflexão sobre os resultados conseguidos, avançan-
do, inclusive certos aspectos ligados ao problema do ensino da
interpretação de textos.

16
Parte i
FUNDAMENTOS

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18
O QUE É TEXTO

O
Homem é um ser simbólico. Suas práticas são assim prá-
ticas que significam e que produzem sentidos. Por isso
tem relevo fundamental no modo de estarmos no mundo
a prática da linguagem que se realiza pelo produção do que cha-
mamos texto. E estes textos, saibamos ou não, permeiam tudo que
fazemos. Os textos, começo por dizer, são unidades complexas
de significação, mas é preciso melhor definir e caracterizar o que
seja um texto.
Começo por uma definição que será em seguida melhor espe-
cificada. Texto é uma unidade de sentido que integra enunciados
no acontecimento de enunciação.
Esta definição considera de modo direto que o texto é uma uni-
dade de significação. Ela se caracteriza por produzir sentido, e é
isso que faz dela (desta unidade) um texto. O outro aspecto é que
esta unidade (o texto) integra enunciados, ou dito de outro modo,
o texto é integrado por enunciados. E é isto que faz com que o
texto seja texto e faça sentido. E é este aspecto que é preciso me-
lhor caracterizar para que esta definição não se transforme numa
fórmula um tanto vazia. E também para que não se considere que
o texto tenha uma unidade ou unicidade de sentido, para que não
se considere que o texto seja uno.
Tomemos para exemplificar uma unidade de significação que
em geral não é vista como texto e que nós consideramos como sen-
do, um mapa. Pensemos no mapa das ruas de uma cidade. Ele se
caracteriza por apresentar um conjunto de indicações de localiza-
ção de ruas e por trazer os nomes destas ruas, por alguma notação
qualquer. Este mapa não é simplesmente um desenho, um conjunto
de linhas, traços. Ele traz estas linhas, traços e ao mesmo tempo
nomes. E estes nomes se organizam nele por contigüidade. Cada
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nome está próximo de outro e todos estão vinculados a uma re-
presentação do espaço da cidade. Não há, no mapa considerado,
nenhuma articulação como as que conhecemos como predicação,
determinação, subordinação, etc. E todos os nomes significam, no
mapa, os nomes das ruas, avenidas e praças, exatamente por inte-
grarem o mapa, por estarem nesta unidade superior que os reúne de
um modo particular (que não é a do todo e suas partes). E no mapa
os nomes não são referências às ruas, mas a indicação de que uma
certa rua, localizada num certo ponto da cidade, tem um nome, foi
nomeada de um certo modo. E é nesta medida que estes nomes
podem referir as ruas avenidas e praças. O sentido de integra é aqui
o sentido que Benveniste deu a este termo quando distinguiu forma
de sentido. Ele considera que a divisão de um elemento linguístico
dá a forma desta unidade, e a integração deste elemento em outro
superior lhe dá o sentido. Assim os nomes, por exemplo, José de
Alencar, Brasil, etc são nomes de ruas, avenidas ou praças por inte-
grarem, no caso aqui considerado, um mapa de uma cidade. Assim
o mapa enquanto texto não é formado pelos nomes, o mapa os in-
tegra e os faz significar enquanto nomes de espaços da cidade que
o mapa representa e significa. Não estou dizendo com isso que um
nome só é nome de rua quando está em um mapa de uma cidade.
Ele pode estar em um outro texto e também, pelo modo de integrar
tal texto, significar o nome de uma rua. Ele pode estar numa placa
em uma esquina de uma cidade: Rua José de Alencar. Esta placa é
um texto que integra um enunciado, e este modo de integração do
enunciado único faz dele o nome de uma rua.
Deste modo o texto é uma unidade no sentido de ser algo finito
e que se caracteriza por integrar, no sentido acima definido, enun-
ciados. Ou seja, o texto se caracteriza por ter uma relação com ou-
tras unidades de linguagem, os enunciados, que são enunciados e
que significam em virtude desta relação. O texto é, nesta medida,
uma unidade que se apresenta entre outras da mesma natureza.
No entanto o texto não tem unidade, se esta palavra significa qua-
lidade do que é uno, do que é homogêneo. O texto é uma unidade
(termo-1), mas não tem unidade (termo-2), não é uno.
Antes de continuar não poderia deixar de considerar que Ben-
veniste, ao tratar da relação do enunciado com o texto, recusa
adequadamente a posição segundo à qual o texto é uma frase
“grande”. Ou seja, ele se distancia dos que consideram que o tex-
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to poderia ser pensado a partir das mesmas relações com as quais
se estuda o enunciado. Assim ele evita um equívoco como o de
Van Dijk (1972) no seu Some Aspects of Text Grammars: A Study
in Theoretical Linguistics and Poetics. O problema, na posição de
Benveniste (1962), é que ele não percebeu que entre o enunciado
e o texto há um outro tipo de relação de integração que é possível
estudar por outros procedimentos de descrição e análise.
Por outro lado, ao definirmos texto tal como o fizemos, preci-
samos então caracterizar o enunciado. De um lado o enunciado
é um elemento linguístico que tem tanto sentido, integra texto,
quanto forma, é constituído por certos elementos (sintagmas). No
caso do mapa, os nomes são enunciados porque integram texto,
mas têm também uma forma. Por exemplo, os nomes de ruas são
nomes que podem vir articulados morfo-sintaticamente a outros
elementos lingüísticos: uma forma de tratamento e um nome de
pessoa: Rua Dom Pedro I; um nome comum seguido de um nome
próprio: Av. Presidente Vargas, Rua Baroneza Geraldo de Rezen-
de, etc.8 Assim podemos ver que pode-se ter, entre outros casos,
um nome caracterizado por uma forma de tratamento (caso de
Dom Pedro I), ou um nome próprio que aparece numa relação
apositiva com um nome comum (nos outros dois casos).
O enunciado apresenta assim duas características: ele tem uma
consistência interna e uma independência relativa em relação às
sequências linguísticas que com ele integram texto. Se conside-
ramos o exemplo que acabamos de dar, podemos ver que Rua
Dom Pedro I, enquanto enunciado do mapa tem de um lado Rua,
Dom e Pedro I, que se apresentam como relacionados: não há, no
nome, rua sem o Dom e sem Pedro I e vice-versa. De outra parte
rua Dom Pedro I se apresenta como podendo aparecer em outros
textos, por exemplo, uma placa de trânsito, uma notícia de jornal,
etc. Os enunciados são enunciados por integrarem texto, por te-
rem sentido, mas se apresentam assim por seu caráter de signo,
não são simplesmente um elemento da situação, são elementos
que significam para além das situações empíricas.
Se pensamos em um texto como um artigo de jornal, nos de-
paramos com um outro modo de integração de enunciados ao tex-

8 Estes aspectos podem ser melhor observados na obra Semântica do Aconte-


cimento (Guimarães, 2002).
21
to. Os enunciados trazem certas marcações que indicam que eles
se relacionam enquanto enunciados de um certo texto. Utilizando
uma palavra pouco lembrada da terminologia de Halliday e Hasan
(1975), diria que os enunciados se mostram como integrados ao
mesmo texto por certos laços estabelecidos entre eles. Tomemos
um rápido exemplo só para colocar um aspecto que será desenvol-
vido mais à frente: o texto da Proclamação da República inicia-se
com o vocativo “Concidadãos!”, depois repetido três vezes. Esta
repetição “faz laço” entre estes pontos do texto e faz dos quatro
segmentos que iniciam, segmentos de um mesmo texto: integram
o mesmo texto. Estes laços marcam a relação de integração a uma
mesma unidade de unidades menores, os enunciados, que não se
organizam por uma passagem segmental, ou discreta, do inferior ao
superior. Um texto integra enunciados, um texto não é composto de
enunciados, e muito menos um texto não é um conjunto de enun-
ciados existentes antes e ali reunidos. Uma passagem segmental e
discreta pode, talvez, ser considerada, por exemplo, entre os sin-
tagmas e o enunciado, mas, como nos diz Benveniste, não se pas-
sa do mesmo modo do enunciado ao texto. Aqui, evidentemente,
estou me valendo de Benveniste modificando de um modo muito
particular um aspecto de sua posição. Para ele a relação de inte-
gração iria somente até o nível do enunciado. O que estou dizendo
é que esta relação se dá entre o enunciado e o texto, só que ela se
dá por procedimentos diferentes daqueles que integram morfemas
em palavras ou sintagmas em enunciados. Para Benveniste não só
a passagem do enunciado ao texto é diferente da passagem do sin-
tagma ao enunciado, como a relação de integração pararia, como
dissemos há pouco, na relação do sintagma com o enunciado. O
sintagma integra enunciado, mas não se poderia dizer (para Benve-
niste) que enunciados integram texto. Como minha concepção do
funcionamento da linguagem considera que as relações de sentido
não são segmentais, mas são normalmente transversais, sobrepos-
tas, etc, posso considerar esta relação de sentido, a integração, de
um modo novo e assim caracterizar o texto não como composto
por segmentos, mas como integrado por elementos lingüísticos de
diferentes níveis e que significam em virtude de integrarem esta
unidade. O sentido dos enunciados é esta relação de integração.
Um aspecto que precisa ser considerado aqui é que esta rela-
ção de integração se dá porque ela é constituída pela relação de
22
enunciação, por que um falante, no sentido que dou a este termo
(Guimarães, 2002) preenche a distância que se instalaria entre os
segmentos se eles se combinassem mecanicamente
Para melhor entender este aspecto retomo aqui minhas defi-
nições para Falante; Locutor (alocutário); locutor-x (alocutário-
-x), ou seja, o lugar social de locutor; enunciador (destinatário),
Tal como coloquei em Semântica do Acontecimento (Guimarães,
2002).
Comecemos pelo falante. O falante é a figura da enunciação
determinada pelo espaço de enunciação. O falante só é falante
enquanto falante das línguas de um espaço de enunciação especí-
fico. O Espaço de enunciação é constituído como um espaço de
distribuição de línguas para seus falantes. Assim ele se caracteri-
za como um espaço de relação entre línguas, entre falantes e entre
línguas e falantes. E a distribuição das línguas para os falantes é
uma distribuição desigual, hierarquizada. O Falante não é assim a
pessoa, ser físico-psicológico. Ele é uma figura constituída pelas
relações das línguas com quem as falam.
No acontecimento de enunciação vamos e observar que não há
simplesmente um falante, mas o falante é tomado como Locutor,
que também não é uma figura uma e homogênea. O Locutor (que
vou escrevo com maiúscula), é o lugar que se representa no pró-
prio dizer como sua fonte.
Mas esta representação de origem do dizer se divide porque
para se estar no lugar de L é necessário estar afetado pelos lugares
sociais autorizados a falar, de um certo modo e em certas línguas.
Ou seja, para o Locutor se representar como origem do que se
enuncia, é preciso que ele seja agenciado por um lugar social de
locutor. Retomo aqui o exemplo apresentado em Semântica do
Acontecimento. Se o Presidente da República, ou um Governador
de Estado Decreta X, ele o faz não porque alguém se dá a si ser
a origem do que Decreta, mas porque enquanto Presidente (em
Língua Portuguesa) ele pode se dar como origem daquilo que De-
creta, ou melhor, está autorizado a se dar como origem do próprio
ato de decretar. O que significa dizer que assumir a palavra para
decretar só é possível na medida em que o Locutor, que se dá
como origem do decreto, só o é enquanto constituído como um
lugar social de locutor, ou seja, o locutor-presidente que fala em
Língua Portuguesa. Em outras palavras, o Locutor só pode falar
23
enquanto predicado por um lugar social. A este lugar social do
locutor chamaremos de locutor-x, onde o locutor (com minúscu-
la) sempre vem predicado por um lugar social que a variável x
representa (presidente, governador, etc). Assim é preciso distin-
guir o Locutor do lugar social do locutor, e é só enquanto ele se
dá como lugar social (locutor-x) que ele se dá como Locutor. No
caso do ato de decretar, por exemplo, o Locutor está diretamente
separado do locutor-x que decreta. O Locutor que decreta é sem-
pre locutor-presidente. Deste modo, no acontecimento de enun-
ciação há uma disparidade constitutiva do Locutor e do locutor-x,
uma disparidade entre o presente do Locutor e a temporalidade do
acontecimento9.
Passemos para um outro aspecto da questão. Tomemos um
enunciado do cotidiano como “eu prometo que vou a sua casa”.
Aqui parece se poder dizer que a promessa é do eu dado como
origem da promessa, distinto do eu de vou, aquele que deverá
cumprir a promessa. Ao contrário disso diria que neste caso a ex-
pressão da primeira pessoa em prometo é só a marca da represen-
tação da origem. Ou seja, este eu é a representação de que não há
lugar social no dizer. É, de um lado, a marca do desconhecimento
do Locutor a propósito do lugar do qual fala: de amigo, de pai, de
filho, de vendedor, etc. Ou seja, de que lugar pode prometer algo a
alguém? Em outras palavras, o eu do Locutor é o eu que não sabe
que fala em uma cena enunciativa. É assim um eu que desconhece
que fala de algum lugar. A tal ponto que se toma como a pessoa,
meramente enquanto tal, que deverá cumprir sua própria promes-
sa. Aqui o lugar de Locutor se representa como lugar de dizer
simplesmente. E neste caso um lugar de dizer que se representa
como individual10. Vou chamar este lugar de dizer de enunciador.
Consideraremos, no caso em análise, que se trata de um enun-
ciador-individual. Um outro lugar de dizer (enunciador), que se
apresenta como o apagamento do lugar social, é o do enunciador-

9 Lembro aqui Rancière (1992), que numa análise enunciativa do discurso da


história, diz que o sujeito falante é anacrônico.
10 Isto significa dizer que as teorias dos atos de fala têm operado sobre um
desconhecimento fundamental, o de que um ato de linguagem não é uma ação
individual, é a constituição de um sentido, por um agenciamento enunciativo
específico.
24
-genérico. Aquele que aparece em ditos populares como “Quem
semeia vento colhe tempestade”. Neste caso o Locutor também
simula ser a origem do que aqui se diz. Mas o que aí se diz é dito,
não de um lugar individual, independente de qualquer contexto,
mas é dito do lugar de um acordo sobre o sentido de repetir o dito
popular. O que se diz é dito como aquilo que todos dizem. Um to-
dos que se apresenta como diluído numa indefinição de fronteiras
para o conjunto desse todos.
Ainda um outro caso. Quando se faz uma afirmação sem qual-
quer modalização como “Todas as pessoas morrem”, o enuncia-
dor, ao se apresentar como o lugar do dizer, apresenta-se como
quem diz algo verdadeiro em virtude da relação do que diz com
os fatos. O que esta representação significa? Significa a identifi-
cação do lugar do enunciador com o lugar do universal. Ou seja,
um lugar de dizer que se apresenta como não sendo social, como
estando fora da história, ou melhor, acima dela. Este lugar repre-
senta um lugar de enunciação como sendo o lugar do qual se diz
sobre o mundo. O enunciador-universal é um lugar que significa
o Locutor como submetido ao regime do verdadeiro e do falso.
Este lugar é próprio do discurso científico, embora não seja ex-
clusivo dele. A afirmação acima, por exemplo, não é exclusiva do
discurso científico.
Assim se todo enunciado significa um engajamento específico
do Locutor (uma performatividade específica), o texto como um
todo se apresenta por um engajamento particular do Locutor, num
certo espaço de enunciação, com o texto. A este engajamento do
locutor com o texto vou chamar de relação de autor11. Neste sentido
diria que este engajamento do Locutor com o texto se dá pelo agen-
ciamento do falante, no espaço de enunciação, como autor. Não es-
tou aqui discutindo ou desenvolvendo esta questão da autoria, que
tem merecido importantes reflexões de domínios como o da análise
de discurso. Sobre isto, ver por exemplo, Orlandi (1996).
Quanto à minha posição, ressaltaria que a relação do falante é
com as línguas e a relação de autor, enquanto um engajamento do
locutor, é uma relação do acontecimento de enunciação, e nesta

11 Estes aspectos, nos termos de um momento anterior de minha posição


na semântica da enunciação estão em “Texto e Enunciação” (Guimarães,
1995).
25
medida é uma relação com o texto. E uma relação fundamen-
tal, sem a qual não há texto. É esta relação de autor que signifi-
ca a relação de integração dos enunciados com a unidade texto.
Esta relação de autor não se confunde com a relação do Locutor
com o texto. A relação do Locutor com o texto apresenta como
unidade (uno) o que é disperso. A relação de autor, ao contrário,
permeia todo um conjunto de elementos, na medida em que o tex-
to não é um conjunto de elementos, mas uma unidade integrada
por enunciados. A integração de enunciados no texto é produzida
pelo acontecimento de enunciação, pela relação de autor (por um
locutor-autor). Assim estamos diante de um aspecto importante
do que caracteriza um texto: ele se apresenta enunciativamente
enquanto unidade de integração por uma relação com a exteriori-
dade, por uma relação com um lugar social de locutor (o lugar do
autor). E é exatamente por isso que a relação de sentido, a relação
de integração não é segmental, não se reduz à linearidade, con-
siderar o texto linearmente seria pensá-lo ou como uma unidade
empírica, ou como unidade lógica da ordem do Locutor. Esta po-
sição está, de certo modo, ligada à

“ilusão de evidência ligada ao fato de que há sequências de


linguagem que se caracterizam por ter um princípio e um
fim. Esta evidência está ligada ao fato de que, em dadas
circunstâncias, começa-se a falar e termina-se, começa-se
a escrever e termina-se. Mais que isso, o que se escreve
recebe uma encadernação chamada livro, que constitui
um objeto físico com limites físicos bem determinados e
que hoje tem um valor comercial” (Guimarães, 1995a).

Deste ponto de vista, “na memória de um computador, o que


é um texto? Faz sentido a noção de texto neste caso? O modo de
entrar na memória informática independe do começo e fim destas
seqüências tomadas como texto” (idem).
A pertinência de um objeto finito ao qual se atribui o nome
de “texto” não diz respeito à sequência em sim, mas à relação
desta sequência com o acontecimento de enunciação em que ela
se apresenta. Uma seqüência de linguagem tem sua finitude con-
figurada na relação com o lugar de enunciação do Locutor no
acontecimento de linguagem.
26
A presença da palavra texto em tantos campos teóricos, por
outro lado, estabelece pela via da linguagem o acordo sobre a per-
tinência de um campo de interesse do conhecimento, para além
do limite dos enunciados (frases, sentenças).
Só como exemplo de uma diferença, e de como um termo deve
ser tomado na posição em que se formula, podemos lembrar aqui,
por exemplo, a posição de Ducrot (1980) que toma a palavra texto
para nomear o que ele chama uma seqüência de frases, em opo-
sição a discurso tomado como uma seqüência de enunciados. No
primeiro caso a unidade complexa considerada (o texto) é tomada
como uma unidade da língua. No segundo caso a unidade con-
siderada é do plano da enunciação. Deste modo, vê-se que para
minha posição, não há unidade complexa enquanto unidade da
língua. A unidade complexa é sempre do plano da realização, no
meu caso, do plano da enunciação, do acontecimento.
Um aspecto importante a considerar na constituição do texto é
que seus enunciados se reportam sempre a enunciados de outras
enunciações anteriores, de outros textos. Há no acontecimento do
texto sempre o dizer de outros.
Nesta medida vamos ver que um texto fala sempre de outros
textos, ou a partir de outros textos, ou de elementos de outros
textos, incorporando-os e assim os modificando. Um texto chega
mesmo a se apresentar como uma versão de outro texto ou de si
mesmo. Este aspecto aparece de modo muito particular em textos
como as orações ritualizadas de práticas religiosas, por exemplo.
E é por isso, entre outras coisas, que vamos nos dedicar ao estudo
de um texto muito particular próprio dos rituais católicos, o “Cre-
do”. Ele vai se mostrando como sendo sempre o mesmo Credo,
mas que é enunciado segundo versões diferentes. No decorrer da
história podemos encontrar uma série de versões desta mesma
oração. E o que isso significa em termos do que seja o “Credo”
enquanto texto?
Este modo de presença de outros dizeres tem diversos modos
de realização. Podemos lembrar aqui algo muito conhecido de
uma notícia de jornal. Nela o jornalista (locutor do texto) narra
algo, por exemplo, e cita o que certos personagens da vida polí-
tica disseram. Ou seja, o texto do jornalista contém elementos do
texto do seu personagem político, um presidente, um juiz, etc. O
que nos interessa aqui dizer é que o dizer do personagem político
27
não está aí simplesmente como algo a que o jornalista se refere.
A questão é que a enunciação do jornalista traz a enunciação da
personagem de sua notícia.
Vejamos um exemplo. Vamos tomar um trecho do texto “No-
vata na web, Marina se lança primeiro na internet” da Folha de
São Paulo de 16 de fevereiro de 2010, na página A7:

“Novata na web (no final e janeiro, participou de um ‘ba-


tismo digital’ no Campus Party Brasil, maior encontro de
tecnologia do País), a pré-candidata do PV à Presidência é a
primeira a se mostrar na internet entre os postulantes ao car-
go de Luiz Inácio Lula da Silva. Por imposição da legisla-
ção eleitoral, a senadora ainda não se apresenta como can-
didata. ‘O PV é um partido muito presente na web. Conta
com uma forte militância on-line, atuante em blogs e redes
sociais, fundamental nesta caminhada’, afirma João Rami-
rez, que está por trás da comunicação de Marina na rede.”

Observa-se com facilidade que o texto do jornalista fala de


uma personagem pública, Marina Silva. O texto relata algo sobre
sua vida pública. E, para relatar o que relata, introduz, de modo
expresso, duas vezes, palavras de outros no seu texto. Primeiro
aparece “batismo digital”, que aparece, na própria estrutura do
enunciado, como se fossem palavras do jornalista, mas marcadas
ao modo de mostrar que elas são de alguém que antes nomeou o
fato por este nome. Depois vemos que, sob a forma clara de um
discurso direto, o jornalista, ao relatar o que relata, conta o que
alguém disse sobre Marina Silva.
Podemos pensar também como certos textos de caráter legal,
uma constituição, uma lei, um decreto, etc, significam porque fa-
zem parte de uma série12. E a relação com os outros elementos da
série não é uma relação no tempo. Ela tem uma temporalidade, mas
não é uma questão simplesmente de antes e depois. Pode ser que o
texto que vem no tempo depois, faça interpretar certos sentidos do
texto que veio antes. Vamos, nas análises que apresentaremos, nos
ocupar de um caso destes: o texto da Proclamação da República.

12 Em certa medida esta palavra está aqui no sentido que lhe dá Veyne (1971
[1987]).
28
O texto do parecer sobre o nome da língua nacional do Brasil
tem um aspecto interessante quanto a isso. De um lado ele se
coloca na série dos textos científicos sobre língua, o português,
e sobre a língua do Brasil. De outro se coloca na série dos textos
legais brasileiros (constituição, decretos, etc). Mas não podemos
esquecer de pensar que ele também faz parte da série dos textos
que debateram, durante mais de um século, a questão da língua
nacional brasileira, ligada ao problema da constituição de nossa
nacionalidade
Algo parecido com isso, mas igualmente distinto, é o que po-
demos ver, por exemplo, na análise do poema “A Última Canção
do Beco”. Ele é um poema que se mostra como poema de uma sé-
rie, mas ele não é uma versão de outros, como no Credo (o poema
não é um texto de um ritual), nem tem sua performatividade sus-
tentada em outros ou sustentando outros. O poema de Bandeira
se apresenta no interior de uma série de poemas sobre “o Beco”.
O que cria um modo muito particular de relação intertextual no
conjunto dos poemas da série.
Como se vê, a análise dos textos que escolhi para apresen-
tar aqui trará a possibilidade de considerar uma interpretação de
cada texto em si. Que sentidos estão significados neste ou naque-
le texto? Como isto pode ajudar a compreender outras coisas de
uma história, de uma literatura, de um autor, de uma ciência, de
uma religião? Mas estas análises, por aquilo mesmo que os textos
apresentam no seu funcionamento, nos permitirão também pensar
de modo muito específico sobre como se constituem os sentidos,
na medida em que os consideramos produzidos nos acontecimen-
tos em que os textos são enunciados e no modo como integram
enunciados, são integrados por enunciados.

29
30
ANÁLISE DE TEXTO
Estabelecendo o Procedimento

S
e os textos estão por todo lado em nossas vidas, nós os lemos,
nós os interpretamos de certo modo. No entanto, é preciso
pensar que esta relação com os textos exige, em muitos ca-
sos, um investimento particular para uma compreensão mais rica
daquilo que nele está significado, direta ou indiretamente.
Para começar especifiquemos o sentido da expressão “análise
de texto”. Trata-se para mim, já fiz referência a isso antes, de
interpretar os sentidos produzidos pelos textos, os sentidos que
podemos reconhecer num certo texto particular.
Coloco esta questão a partir do lugar de semanticista. E para
mim estar na posição de semanticista é se colocar na posição de
dizer como os sentidos podem ser interpretados. E tomar a se-
mântica como uma disciplina de interpretação não é privilégio
das posições enunciativas ou pragmáticas. Mesmo a semântica
da gramática gerativa coloca a questão a partir da consideração
da semântica como uma disciplina que interpreta uma estrutura
sintática. Katz (1972) no seu Semantic Theory já dizia:

“A teoria semântica deve igualmente conter um modelo


do componente semântico de uma gramática que deve
descrever a maneira pela qual as interpretações semân-
ticas estão traçadas nos marcadores subjacentes da fra-
se” (p. 33).

Aqui, ao colocar a característica interpretativa da semântica


ele considera a interpretação como vinculada à estrutura sintática
31
da frase. Este tipo de posição leva inevitavelmente a uma posição
composicional que considera que a interpretação semântica é feita
pela consideração dos componentes sintáticos da frase segundo a
relação de inclusão do componente mais baixo até o mais alto. As-
sim a questão do sentido fica circunscrita à frase e, mais que isso,
é pensada pela segmentalidade da frase. Neste caso a interpretação
semântica não pode ser pensada relativamente ao texto. E muitas
são as posições que pensam e tratam a significação deste modo.
Por outros caminhos, encontramos o tratamento da questão do
sentido como ligada à interpretação que o destinatário faz do que
alguém diz. Isto aparece na pragmática griceana (Grice, 1957,
1967)13, por exemplo, e nos estudos enunciativos como os desen-
volvidos por Ducrot. O linguista francês, em texto, também do
início dos anos 1970 já afirmava:

“Em outras palavras, o que nós tomamos por dado, por


objeto de observação, é a maneira pela qual os enuncia-
dos são interpretados nas situações particulares em que
são empregados” (Ducrot, 1973, p. 52).

Aqui, a consideração da interpretação envolve outros aspectos.


Como diz o autor, a interpretação se faz “nas situações particu-
lares” em que os enunciados são empregados. Entra em cena a
situação, o sujeito da enunciação. O que leva, como sabemos, a
um modelo de análise semântica muito distinto do da semântica
gerativa, ou de outras a ela ligadas, pela consideração do sujeito
da enunciação e da situação.
Nosso lugar de semanticista traz característica bem específi-
cas. Para nós, colocando-nos no domínio da enunciação, a rela-
ção de significação tem diretamente a ver com uma relação de
integração do enunciado com o texto. E esta relação é, como já
dissemos, transversal, não composicional, como não poderia ser,
já que se considera a relação com o texto. Assim a interpretação
do sentido não é o percurso que se faz na estrutura sintática de

13 Estas posições se projetam nos anos subsequentes e têm forte presença em


certos estudos semânticos e pragmáticos hoje. Um exemplo disso é o traba-
lho de Cherchia que podemos encontrar apresentado em sua obra Semântica
(Chierchia, 1997)
32
seus componentes até a sua totalidade, trata-se da consideração
de atribuição de sentido que sofre os enunciados considerados
na relação com o sujeito pelo acontecimento de enunciação. A
interpretação semântica não se reduz à projeção de uma regra de
“leitura” automática dos elementos da sintaxe. A interpretação se-
mântica é feita de um lugar de leitor, tal como já o especificamos
mais acima. O que também nos coloca fora de qualquer posição
referencialista na consideração da significação.
No caso dos objetivos desta obra se trata de pensar como a
questão se põe para o semanticista. Diria que a interpretação é
uma atribuição de sentido que o analista faz aos enunciados e
ao texto levando em conta a relação de integração que constitui
texto e sua relação com a exterioridade (engajamento do falante
enquanto autor), levando-se em conta a relação de enunciado e
enunciação. O que digo a seguir dará uma melhor especificação
a esta colocação.

1. O Lugar do Leitor

Um aspecto importante a considerar aqui é que a análise de


texto nos coloca no lugar de quem “lê” um texto. Vou utilizar aqui
o verbo ler e os nomes leitor e leitura, não sentido específico de
relação com o escrito, mas no sentido de uma relação de interpre-
tação com um acontecimento de enunciação qualquer.
Estar na posição de analisar um texto é estar num lugar de
leitor do texto. De certo modo podemos considerar que este lugar
de leitor, é o correlato do lugar da relação de autor, que como já
caracterizamos acima, é um engajamento do locutor (lugar social)
com o todo do texto. E este locutor constitui como correlato o
lugar social do alocutário. E isto coloca de saída uma questão im-
portante: na medida em que a relação de autor é tomada como uma
relação do lugar social do locutor e não uma relação do Locutor
com o texto, estamos diante de uma disparidade entre o sentido de
um texto uno e a relação de autor. Ou seja, se o lugar do Locutor
representa o texto como uno, o lugar social de locutor, não, pelo
simples fato de ele ser já uma divisão do Locutor e uma relação
com o fora do texto. Por outro lado, o correlato do locutor-autor,
enquanto lugar social, não é necessariamente da mesma ordem
33
que o lugar de locutor. Um locutor-autor, ou simplesmente autor,
pode ser um historiador, um romancista, um cidadão que requer
algo. E o lugar do leitor não é da mesma natureza, ou seja, o texto
de um autor-historiador pode ser lido do lugar de leitor-linguista,
ou de um leitor-professor, etc. E isto porque o lugar social expõe
a relação enunciativa com o fora do texto no acontecimento.
Ou seja, a relação de leitor com o texto não corresponde ao
lugar do Alocutário. Se assim fosse, ser leitor seria ler no texto
o que nele está estritamente marcado como seu sentido pelo Lo-
cutor. Ou seja, o sentido de um texto estaria todo no texto. Como
dissemos acima, a relação de leitor com o texto se faz a partir
do lugar do alocutário-x, ou seja, do lugar social no intercurso
enunciativo. Além deste aspecto, temos que considerar que este
alocutário-leitor se movimenta pelos lugares de destinatário (uni-
versal, individual, genérico, coletivo), de modo específico e não
necessariamente de modo correlato aos lugares do enunciador.
Assim, se há algo em um texto que é enunciado por um enuncia-
dor universal, isto pode ser interpretado pelo leitor a partir de um
lugar de enunciador coletivo, ou individual.
O que isto significa é que a relação de interpretação com o
texto abre um novo jogo de cena enunciativa, que precisa, é ver-
dade, dar conta de encontrar, descrever e interpretar como estão
configuradas as cenas pela relação de autor. Desta maneira, a re-
presentação de unidade (o que é uno) do texto se dá do lugar do
Locutor e não do lugar de autor.
Deste modo a relação de análise de texto (de “leitor”), coloca
em cena diretamente a relação do texto com o que está fora dele,
tanto porque não se dá na relação com o Locutor, quanto por que
o lugar social de locutor (locutor-x) não vincula necessariamente
o lugar de leitor.
E nesta medida o lugar de leitor constitui um lugar de autor
a ser considerado e é assim que o processo de interpretação vai
ganhar seu modo de funcionamento. Veja que um mesmo texto
pode ser lido do lugar do leitor-historiador, ou do lugar do leitor-
-militante-político. Por exemplo, a análise que faremos, mais à
frente, do texto da proclamação da república pode se faz do lugar
do historiador, mas pode também ser feita do lugar do político, do
militar. Se feita do lugar do historiador ela traz para o processo
de leitura aspectos particulares do interesse deste lugar. A questão
34
fundamental é que, para mim, por esta colocação em cena dos
interesses do lugar do leitor, a interpretação não se faz a partir de
um lugar das motivações pessoais, psicológicas, simplesmente. A
relação de leitor não é uma relação de vontade de uma pessoa, é
um lugar constituído pela cena enunciativa. Ou seja, a relação de
leitor não se dá como uma relação falante/ouvinte, pragmática.
Estas duas categorias (tal como se definem como a pessoa que
fala e a quem se fala) são insuficientes para considerar o processo
de interpretação das enunciações. O lugar de leitor, tal como o
considero, é um lugar social, da cena enunciativa, e enquanto tal
não pode deixar de levar em conta o modo como o lugar do Lo-
cutor, e de locutor-autor estabelecem suas relações com o texto.
Ou seja, não se pode analisar um texto sem levar em conta seu
próprio modo de enunciação e aquilo que ele estabelece pelo fun-
cionamento de suas formas de linguagem.
Como vemos, deste ponto de vista, a relação AUTOR/LEITOR
é uma relação constituída por uma disparidade. E esta disparidade
pode ser compreendida, nos termos de minha concepção do acon-
tecimento como segue: a relação de autor se dá numa relação do
presente ao passado do acontecimento e a relação de leitor, de lu-
gar social de alocutário, se dá na relação do presente ao futuro do
acontecimento. E é esta disparidade que constitui, como próprio
do procedimento de interpretação, a relação com o que se pode
descrever do texto com aquilo que do seu exterior nele significa.
Em outras palavras, o falante é agenciado em leitor enquan-
to alocutário-x e não enquanto Alocutário, e é isto que explica a
abertura da interpretação, pois tal como dissemos, a relação de
leitor é a relação do presente com o futuro na temporalidade do
acontecimento. O futuro é, no acontecimento, o tempo da inter-
pretação
Deste modo fica posto que a relação de leitura, de interpreta-
ção é sempre uma relação que não consegue escapar a certos tra-
ços de anacronismo. Não se lê do lugar correlato ao do Autor. Isto
seria uma mera e impossível reprodução de suas intervenções no
processo de construção do texto. Como a relação de leitura vem
de outro lugar, vem também de outro tempo, na temporalidade do
acontecimento.
Se colocamos isso levando em conta que analisar texto não é
simplesmente interpretá-lo deste lugar de alocutário-leitor toma-
35
do no intercurso cotidiano da linguagem, temos que considerar
que ao analista, tal como faço aqui, cabe apresentar seu lugar de
leitor, seu lugar de interpretação. Trata-se nesse caso de consi-
derar a leitura não como um simples procedimento próprio da
linguagem, mas como um processo que procura dar à interpre-
tação uma sustentação própria de procedimentos cientificamente
sustentados. É preciso constituir um procedimento específico que
ao lado de levar em conta a disparidade entre relação de autor e
relação de leitor, não se descure daquilo que é a relação de autor
e não se transforme a interpretação numa prática própria da oni-
potência do sujeito. Ler é dispor de um procedimento que esta-
belece uma distância e ao mesmo tempo exige uma descrição do
material analisado.
Assim, do meu ponto de vista, o que pretendo desenvolver aqui
é como podemos estabelecer um procedimento, estabelecido de
um lugar de leitor-semanticista capaz de levar em conta o proces-
so enunciativo (de caráter histórico-político) de constituição do
sentido e assim possamos dizer que sentidos são produzidos num
texto e como compreender este processo de produção de sentido,
para que a análise do texto não seja, simplesmente, a reprodução
dos sentidos historicamente estabilizados.
Do lugar de semanticista, poderia me perguntar que ganho
este tipo de análise pode trazer. Para isto a análise não pode ser
a reprodução pura e simples do que faz um falante (porque seria
inútil), mas não pode ser algo que simplesmente desconhece o
que faz o falante quando lê, por exemplo, e os sentidos que ele
encontra no texto. É preciso interpretar os sentidos do texto não
como se estivéssemos, simplesmente, no lugar do falante. É pre-
ciso fazer com que a interpretação seja objetivamente direcionada
por um procedimento expressamente estabelecido para que assim
se tenha um ganho de compreensão que mostre o que o texto sig-
nifica e não necessariamente o que pessoas específicas dizem que
o texto significa.

2. O Texto como Unidade Semântica

Os estudos textuais no domínio da linguística apresentam algu-


mas abordagens que têm privilegiado as relações chamadas de coe-
36
são e coerência. Nestes modelos, é o caso do funcionalismo aberto
por Halliday (Halliday e Hasan, 1976), e dos desdobramentos das
posições cognitivistas (Beaugrande, R. de e W. U. Dressler (1981)
e Van Dijk (1972)). Para estas posições, o que interessa na orga-
nização do texto é, de um lado, o efeito de totalidade, e de outro,
o como um elemento é o mesmo que um outro, do ponto de vista
semântico, na medida em que a concepção de sentido é referencial.
A relação de coesão é vista como uma relação entre, por exemplo,
João e ele em “João fez o que podia. Ele agora desistiu de insistir”.
Nesta relação o que interessa, por este conceito, é tomar o ele como
significando o mesmo que João, ou seja, sabemos a que ele se refe-
re porque sabemos a quem João se refere.
Deste conjunto de trabalhos vou retornar especificamente ao
texto de Halliday e Hasan. A primeira coisa a levar em conta é que
os autores consideram o texto como uma unidade semântica14. E
eles dizem ainda que o texto é uma unidade de uma espécie dife-
rente da sentença (eu diria enunciado). Não há no texto uma relação
estrutural do tipo da que há entre o enunciado e seus elementos.
Feita esta distinção é que os autores vão definir textura como um
conceito adequado para expressar a propriedade de “ser um tex-
to” (Halliday e Hasan, 1976, p. 2). A obra em questão vai se ocu-
par fundamentalmente do que seus autores consideram a relação
de coesão. Segundo eles “a Coesão ocorre onde a interpretação de
algum elemento no discurso é dependente de um outro” (idem, p.
4). E eles também dizem que o sentido em questão é que os termos
relacionados se referem à mesma coisa (idem, p.3)15. E para carac-
terizar a relação de coesão, os autores vão constituir e se valer de
um termo mais geral que traduzo aqui por laço [ligadura]16. E este
sentido me interessa mais, por não estar diretamente comprometido
com o referencialismo da noção de coesão. Segundo os autores:
“nós precisamos de um termo para referir a uma única instância
de coesão, um termo para uma ocorrência de um par de itens rela-
cionados coesivamente. A este termo vamos dar o nome de laço. A

14 “A text is best regarded as a SEMANTIC unit: a unit not of form but of


meaning” (Halliday e Hasan, 1976, p. 2)
15 “Cohesion occurs where the INTERPRETATION of some element in the
discourse is dependent on that of another” (idem, p. 4).
16 Em inglês, tie.
37
relação entre them e six cooking aplles (eles se referem ao exemplo
[I. I] da sua obra) constitui um laço” (idem, p. 3). Deste modo, para
os autores, o que faz que uma certa unidade seja um texto é que te-
nha textura. E isto diz respeito a que os elementos ali presentes fa-
çam laço uns com outros, e laços diferentes (pode ser uma anáfora,
uma repetição). E é o conceito de laço que torna possível analisar
um texto (os autores dizem “analisar um texto em termos de suas
propriedades coesivas” (idem, p.4)).
Como se vê, não se trata de uma posição que procura dizer o
que um texto significa. Trata-se de poder dizer como um texto se
constitui enquanto tal e de mostrar que há funcionamentos lin-
güísticos próprios para isso.

3. Desvio Interessado

Para avançar naquilo que nos interessa, vamos, momentanea-


mente, olhar para o âmbito dos estudos da literatura, um espaço em
que o texto é diretamente objeto de análise. E nesta incursão nos
valeremos, dados nossos objetivos, da posição de dois críticos que
se dedicaram a pensar procedimentos linguísticos de análise e inter-
pretação de textos literários: Siptzer (1948)17 e Rifaterre (1979)18.
Esta reflexão metodológica específica, e nossa aproximação
permanente com textos os mais diversos, foram nos levando à
necessidade de produzir, tal cmo apresentadas antes, algumas dis-
tinções importantes de modo expresso. Não se trata simplesmente
de dizer que é preciso analisar um texto. Trata-se, para mim, en-
quanto semanticista, de dizer como um semanticista pode con-
tribuir para a análise de texto. É preciso especificar esta questão,
pois um semanticista, no que é específico de seu ofício, não ana-
lisa (não interpreta) textos. Um semanticista, parafraseio algo que
já disse antes, analisa funcionamentos de expressões linguísticas
17 Léo Spitzer nasceu em Viena em 1887 e faleceu em 1960 nos Estados
Unidos onde trabalhava na Johns Hopkins University. A obra aqui citada é de
1948, teve uma edição em espanhol em 1955, pelo Gredos. Utilizo a edição
de 1974.
18 Michel Rifaterre nasceu em 20 de novembro de 1924, em Bourganeuf na
França e faleceu em 2006 em Nova Iorque, onde trabalhou na Columbia Uni-
versity. Utilizo aqui a tradução para o português de 1989.
38
e, comumente, um semanticista toma, como unidade de análise,
enunciados. Vamos a seguir dizer como pensamos o modo como
um semanticista pode analisar texto, para chegar às questões es-
pecíficas postas para nossa análise.
Para que um semanticista, enquanto tal, analise textos, ele
deve, partindo do ponto de vista de sua semântica, usar procedi-
mentos descritivos desta semântica. Mas também, por outro lado,
e necessariamente, deve tomar uma posição sobre o que é texto (o
que fizemos no capítulo anterior) e sobre como analisar um texto
(o que procuramos apresentar agora), já que uma análise semân-
tica não é uma análise de texto, embora possamos considerar que
um texto interessa por seus sentidos.
Tal como colocamos na introdução, para considerar a análise
do texto é preciso levar em conta, pelo menos, dois aspectos19.
Podemos, por um lado, nos dedicar a dizer como funciona um
texto, ou, por outro lado, nos dedicar a interpretar um texto, pro-
curar compreender os sentidos de um texto. Interessa-nos, a partir
da posição semântica da enunciação, e para nossos objetivos, o
segundo aspecto. Tendo apresentado no capítulo anterior nossa
concepção de texto, e nossa posição sobre como um texto fun-
ciona, vamos agora constituir o procedimento com que vamos
analisar um texto, e, com este procedimento, na segunda parte do
livro, analisar textos.
O procedimento de análise textual que procuramos desenvol-
ver no decorrer de nossa prática de análise se inspira, de modo
livre, no procedimento “filológico” de Sptizer presente em um
texto com o qual tive meu primeiro contato no início dos anos
1970 (Spitzer, 1948).
As posições de Spitzer e de Rifaterre têm a característica, tal
como para Halliday e Hasan, de considerar o texto como uma
unidade que interessa porque significa. Por outro lado, ambos,
embora de modos diferentes, consideram que a questão do sen-
tido do texto não pode reduzir-se a um tratamento referencial. E
nisto se distinguem de posições como as de Halliday e Hasan e da
lingüística textual em geral.

19 Esta questão foi tratada por Guimarães (2008). Sobre os modos como o
texto sempre esteve presente nas minhas preocupações, ver Guimarães (1987,
1995, 1998 e 2006).
39
Um exemplo desta posição está na discussão que Rifaterre faz
de uma estrofe de Baudelaire de um poema de Fleurs du mal
[Flores do Mal]. Ele se dedica a discutir a análise da estrofe que
segue:

“Quand la terre est changée en un cachot humide,


Où l’Espérance, comme une chauve-souris,
S’en va battant les murs de son aile timide
Et se cognant la tête à des plafonds pourris”20.

Nesta discussão ele vai analisar o sentido de morcego (chauve-


-souris) nestes versos. Depois de várias considerações conclui:

“Assim a estrofe de Baudelaire não tem sentido com re-


lação ao referente “quiróptero”, nem mesmo com o sig-
nificante isolado, mas como uma antítese estereotipada
que é apenas a metáfora de uma antítese literária igual-
mente estereotipada” (Riffaterre, 1979: 26).

E noutro ponto, ao analisar o sentido da expressão “bleus an-


gélus” [ave-marias azuis] do poema L’Azur de Mallarmé, diz:

“Todo o poema de Mallarmé consagra-se a unir a palavra


azul e seus sinônimos a significações (obsessão, ironia,
esterilidade, etc.) que transformam seu valor habitual em
valor negativo. Essa inversão de valores é efetuada pelo
próprio texto” (idem: 27).

Este aspecto é o que fundamentalmente nos interessa, o sen-


tido das expressões linguísticas têm a ver com os textos em que
estão. Em virtude do procedimento de análise que utilizo, que
especificarei a seguir, deixo entre parênteses o caráter estrutural
da análise de Riffaterre.
Posto isto, retornamos a Spitzer. Nosso interesse por sua po-
sição é de dois tipos. Primeiro porque ele a coloca como uma

20 “Quando a terra se transforma em um cárcere úmido,/De onde a Esperança,


como um morcego,/Parte batendo nos muros com a asa tímida/E batendo a
cabeça nos tetos apodrecidos.”
40
posição para se analisar um texto (no caso dele, um texto literá-
rio), a partir de um procedimento de análise que ele diz buscar na
filologia, na análise da linguagem. Vejamos o que ele próprio nos
diz. Depois de mostrar como considera o que seja encontrar uma
etimologia afirma:

“Sentimos que acompanha a nossa compreensão desta


evolução no tempo a ‘mesma agitação interna’ que ex-
perimentamos quando compreendemos o sentido de um
pensamento ou de um poema, que então tornam-se algo
mais que a soma total de cada uma de suas palavras e
sons” (Spitzer, 1948: 15).

E esta relação com um poema, que precisa ser compreendido,


enquanto texto, ganha uma especificação logo adiante:

“Poema e pensamento são, com efeito, os exemplos clás-


sicos postos por Agostinho e Bergson para demonstrar
a natureza de uma extensão da durée réelle ou duração
real: as partes unidas em um todo. O tempo preenchido
de conteúdos” (idem: 15).

Claramente o texto é uma unidade de sentidos, é uma unidade


semântica. Por outro lado, se acompanhamos o que Spitzer desen-
volve sobre como compreender um texto, encontramos:

“Meu método pessoal consiste em passar da observação


do detalhe a unidades cada vez mais amplas, que descan-
sam em grande medida na especulação. É no meu modo
de ver, o método filológico, indutivo, que pretende mos-
trar a importância do aparentemente fútil, em contraste
com o procedimento dedutivo, que começa por unidades
supostamente dadas, e que é o método seguido pelos te-
ólogos, que começam pelo alto para tomar o caminho
de descer até o labirinto terreno dos detalhes, e para os
matemáticos, que tratam seus axiomas como se fossem
revelados por Deus. Em filologia, que se ocupa do me-
ramente e totalmente humano, e estuda os aspectos in-

41
terdependentes e entrelaçados dos assuntos humanos, o
método dedutivo é aplicável somente como comprova-
ção do princípio descoberto pela indução, que se susten-
ta e se apóia na observação” (idem: 42).

Quanto ao que acabamos de citar, fundamentalmente me afas-


to do dilema entre o que ele caracteriza, de um lado, como induti-
vo, e, de outro, como dedutivo. Não se trata, no procedimento que
apresentaremos a seguir, como se verá, nem de uma coisa, nem
de outra. O que principalmente quero tomar desta passagem é o
gosto de Spitzer pelo detalhe. E este gosto pelo detalhe aparece
mais bem caracterizado no parágrafo que segue:

“Evidentemente que procuro descobrir a significação no


detalhe, o hábito de tomar um detalhe linguístico com a
mesma seriedade que o significado de uma obra de arte,
ou, em outras palavras, a atitude que considera todas as
manifestações do homem como igualmente sérias, é uma
conseqüência da firme convicção preestabelecida – do
“axioma” do filólogo – de que os detalhes não são uma
reunião casual de material disperso que nenhuma luz
deixa mostrar” (idem: 42-43).

Assim o que vemos é que, para Spitzer, a entrada, para se com-


preender um texto, não é pelo começo, mas por algum detalhe que
deve ser considerado, em seguida, na relação com o texto que o
faz significar. E isto fica mais claro se tomamos o que diz algumas
páginas à frente:

“Por que insisto tanto na impossibilidade de oferecer ao


leitor uma exposição razoada passo a passo, aplicável à
obra artística? Por uma razão: a de que o primeiro passo, do
qual dependem todos os demais, nunca pode ser idealizado.
Está aí previamente e nos é dado pela consciência de um
detalhe que nos chama a atenção junto com a convicção de
que esse detalhe mantém uma relação fundamental com o
conjunto da obra artística. Isso significa que fizemos uma
‘observação’, ponto de partida de uma teoria” (idem: 49).

42
4. Apresentação do Procedimento

É neste ponto que vemos como podemos transpor a atitude bá-


sica do procedimento de análise de Spitzer para uma posição não
idealista, nem humanista. Há em tudo que ele diz que o que faz
um detalhe significar é sua relação com a obra enquanto unidade,
tal como para Rifaterre, segundo vimos acima. Podemos dizer
isto de outra maneira. E esta posição, vamos tomá-la a partir de
nossa concepção semântica, segundo à qual o sentido de uma ex-
pressão linguística se constitui pelo acontecimento de enunciação
(Guimarães, 2002). Poderia lembrar aqui Bréal que, ao estudar
os mitos, nos diz que o sentido de uma palavra tem a ver com a
história dos textos por que passou (Bréal, 1863).
Por outro lado, enquanto semanticista, consideramos que a
unidade de análise semântica é o enunciado. E consideramos
que o enunciado é um elemento linguístico que integra texto. Ou
seja, para que um certo tipo de sequência linguística21 seja enun-
ciado é necessário que integre texto. Como se vê, deste ponto
de vista, o próprio modo de conceber a tarefa da semântica leva
a uma certa concepção de texto, que apresentamos no primeiro
capítulo.
Como disse, texto é uma unidade de sentido integrada por
enunciados. Ou seja, um texto não é um conjunto de enunciados,
nem é uma unidade composta de enunciados. A relação de inte-
gração é aquela que constitui sentido, ela se caracteriza por ser a
relação de um elemento linguístico de um nível com elemento de
nível superior. E não se trata de uma relação caracterizada pela
segmentalidade. A integração se faz por uma relação transversal
entre elementos diversos e a unidade à qual se reportam. A rela-
ção entre os elementos não é de contiguidade, não se marca pela
direção da segmentalidade.
Para a posição que aqui assumimos, a concepção de funcio-
namento do texto diz respeito a procedimentos de constituição
de sentido que não é segmental. E a compreensão disso pode ser
melhor apresentada na medida em que apresentarmos o procedi-
21 Tal como vimos antes, para mim um enunciado é uma sequência linguística
que tem como características ter consistência interna e ao mesmo tempo inde-
pendência relativa. Sobre isso, ver, por exemplo, Guimarães (2006a, p. 121-
123)
43
mento de análise. Reportando-me ao procedimento de Spitzer22,
considero para a análise:

a) De um lado, que não se pode pensar em seguir a linearidade


textual. Trata-se de tomar recortes do texto, descrevê-los e inter-
pretá-los. A noção de recorte com a qual opero vem da seguinte
conceituação, feita no interior da análise de discurso (e tal como a
utilizo desde Texto e Argumentação (Guimarães, 1987)): “o recor-
te é uma unidade discursiva. Por unidade discursiva entendemos
fragmentos correlacionados de linguagem-e-situação. Assim um
recorte é um fragmento da situação discursiva” (Orlandi, 1984:
14). Do ponto de vista de nossa análise enunciativa, julgamos
poder dizer, reconfigurando esta noção ao domínio dos estudos
enunciativos, que o recorte é um fragmento do acontecimento da
enunciação. Não se trata simplesmente de uma sequência, mas
de formas linguísticas que aparecem como correlacionadas em
virtude de terem uma mesma relação com o acontecimento, inde-
pendentemente da posição na sequência (Guimarães, 2008).
b) Em segundo lugar, que a interpretação do texto parte da
análise de um recorte que leva à consideração de um movimento
de sentidos no texto. A esta análise vão se acrescendo outras, de
outros recortes, que a análise for indicando como pertinentes. Ou
seja, parte-se de um recorte, chega-se a uma interpretação do tex-
to relativamente à descrição deste recorte, volta-se ao recorte (um
outro) e chega-se a uma nova interpretação do texto já levando
em conta os dois recortes, e assim por diante.
c) E por fim que interpretar é atribuir sentidos a uma texto, a seus
elementos e a seu todo, na base da descrição de recortes do texto, le-
vando em conta as relações que marcam a integração dos elementos
ao texto e segundo a posição teórico-metodológica assumida.

Neste ponto é preciso considerar que qualquer elemento de um tex-


to, para a posição que estamos assumindo, qualquer recorte, qualquer
forma de qualquer recorte, significa por integrar (no sentido apresen-
tado acima para este termo) um texto (por integrar uma unidade de
22 Seria interessante lembrar aqui as análises que encontramos em Zancarini
e outros (2008), ao trabalharem com o que os autores chamam “filologia po-
lítica”. Neste caso o interesse é trabalhar com a constituição dos sentidos de
palavras em textos políticos do século XVI.
44
sentido). Assim podemos evitar a noção de todo (de unidade como
homogeneidade) e, ao mesmo tempo, buscar elementos específicos
no texto e acompanhar seu funcionamento pensando-os enquanto
integrados no texto, e assim reportados a tudo que está no texto.
Assim podemos, sintetizando o que acabamos de dizer, consi-
derar, para a análise de um texto, o seguinte procedimento geral:

1)toma-se um recorte qualquer e produz-se uma descrição de


seu funcionamento;
2)interpreta-se seu sentido na relação com o texto em que
está integrado;
3)chega-se a, ou toma-se, outro recorte e faz-se dele uma des-
crição;
4)interpreta-se seu sentido na relação com o texto em que
está integrado, tendo em vista a interpretação feita do primeiro
recorte.
5)busca-se um novo recorte, etc, até que a compreensão pro-
duzida pelas análises se mostre suficiente para o objetivo espe-
cífico da análise.

Como se disse em c acima, a interpretação do funcionamento


dos recortes se faz a partir da posição teórica adotada.
Deste modo é possível pensar operações reiteradas de descrição
e interpretação, que podem ir confirmando uma interpretação já
dada no primeiro movimento. Se for o caso, pode-se complexificar
a interpretação inicial e eventualmente modificá-la se o conjunto
das relações entre recortes e o texto levar a isso, tendo em vista a
teoria de sentido que se adotar. E é isto que nos permite não só dizer
que sentidos se produzem num texto, mas que se produzem em vir-
tude do próprio modo de se produzirem, inclusive. Não se trata de
uma decodificação (o que seria o mero patamar da inteligibilidade),
trata-se de considerar o funcionamento da linguagem pensado nas
condições em que os acontecimentos enunciativos se produzem.
E como produzir os recortes para a análise? A partir de uma
posição teórica específica sobre o que é o sentido. De nossa parte,
tomamos isto tal como apresentado em Guimarães (2002). E para
este procedimento tem particular interesse os dois funcionamen-
tos gerais próprios do acontecimento, do texto: a articulação e a
reescrituração, Guimarães (2002, 2004, 2007, 2009).
45
A articulação é o procedimento pelo qual se estabelecem relações
semânticas em virtude do modo como os elementos linguísticos sig-
nificam sua contigüidade. Ou seja, a organização das contigüidades
linguísticas se dá como uma relação local, significada pela enuncia-
ção, entre elementos linguísticos. Por exemplo, se tomamos as re-
lações dos dois sintagmas “O Craque do Flamengo” e “O Craque
Zico”, vemos que o sentido que se produz pela combinatória de “do
Flamengo” e “o Craque e “Zico” e “o Craque” não é o mesmo.
O procedimento de reescrituração consiste em se redizer o que
já foi dito. Ou seja, uma expressão linguística reporta-se a uma
outra por algum procedimento que as relaciona no texto integra-
do pelos enunciados em que ambas estão. Este procedimento se
caracteriza por fazer interpretar uma forma (reescriturada) como
diferente de si (em virtude da reescrituração). E nesta medida a
reescrituração é um procedimento que coloca em funcionamento
uma operação enunciativa fundamental na constituição do senti-
do pelo acontecimento. Se tomamos a primeira estrofe do poema
“Última Cancão do Beco” encontramos:

“Beco que cantei num dístico


Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades/
(Mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!”

Sem grandes detalhes podemos observar que a primeira palavra


do poema, Beco, é reescriturada por repetição no terceiro verso. Por
outro lado, esta mesma palavra é reescriturada por elipse no quinto e
no sétimo versos. O fundamental para mim é que não se trata de dizer
que a repetição e a elipse referem ao mesmo que Beco. Ao contrário,
a repetição e a elipse são modos de construir o sentido do “Beco”23 .

23 Observe-se que aquilo que Halliday e Hasan chamam de laço, estou con-
ceituando de modo diferente, como reescrituração, exatamente porque não se
trata de construir um conceito referencial como o de coesão, mas um conceito
de produção de sentido. Dizer de novo é produzir sentido.
46
Parte ii
ANÁLISES: EM TORNO DA
HISTÓRIA DO BRASIL

47
48
A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA

N
a história política do Brasil, tal como em geral, encontra-
mos vários textos de grande relevância. Entre estes está
o texto comumente referido como o da “Proclamação da
República”. Trata-se de um texto decisivo que faz parte do processo
de uma mudança fundamental na história brasileira. Este texto é
o marco do início da República. Ele tem a força performativa de
instalação de um novo regime político. É este texto que vamos
analisar a seguir. Ele é datado de 15 de novembro de 1889. Co-
mecemos por retomá-lo.

(1) PROCLAMAÇÃO DOS MEMBROS DO


GOVERNO PROVISÓRIO

Concidadãos!
O Povo, o Exército e a Armada Nacional, em perfeita
comunhão de sentimentos com os nossos concidadãos
residentes nas províncias, acabam de decretar a
deposição da dinastia imperial e conseqüentemente a
extinção do sistema monárquico representativo.
Como resultado imediato desta revolução nacional,
de caráter essencialmente patriótico, acaba de ser
instituído um Governo Provisório, cuja principal missão
é garantir com a ordem pública a liberdade e o direito
do cidadão. Para comporem este Governo, enquanto
a Nação Soberana, pelos seus órgãos competentes,
não proceder à escolha do Governo definitivo, foram
nomeados pelo Chefe do Poder Executivo os cidadãos
abaixo assinados.
Concidadãos!

49
O Governo Provisório, simples agente temporário da
soberania nacional, é o Governo da paz, da fraternidade
e da ordem.
No uso das atribuições e faculdades extraordinárias
de que se acha investido, para a defesa da integridade
da Pátria e da ordem publica, o Governo Provisório,
por todos os meios ao seu alcance, promete e garante a
todos os habitantes do Brasil, nacionais e estrangeiros,
a segurança da vida e da propriedade, o respeito aos
direitos individuais e políticos, salvas, quanto a estes, as
limitações exigidas pelo bem da Pátria e pela legítima
defesa do Governo proclamado pelo Povo, pelo Exército
e pela Armada Nacional.
Concidadãos!
As funções da justiça ordinária, bem como as funções da
administração civil e militar, continuarão a ser exercidas
pelos órgãos até aqui existentes, com relação às pessoas,
respeitadas as vantagens e os direitos adquiridos por
cada funcionário.
Fica, porém, abolida, desde já, a vitaliciedade do Senado
e bem assim o Conselho do Estado.
Fica dissolvida a Câmara dos Deputados.
Concidadãos!
O Governo Provisório reconhece e acata os compromissos
nacionais contraídos durante o regime anterior, os
tratados subsistentes com as potências estrangeiras, a
dívida pública externa e interna, contratos vigentes e
mais obrigações legalmente estatuídas.
Marechal Manoel Deodoro da Fonseca,
Chefe do Governo Provisório.
Aristides da Silveira Lobo,
Ministro do Interior.
Tenente-coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães,
Ministro da Guerra.
Chefe de Esquadra, Eduardo Wandenkolk,
Ministro da Marinha.
Quintino Bocaiúva, Ministro das Relações Exteriores e
interinamente da Agricultura, Comércio e Obras.

50
Este texto, mesmo que sobre ele não se tenha depositado muita
atenção, produziu conseqüências e sentidos no decorrer da his-
tória brasileira. Deste modo vou me dedicar a estudá-lo por esta
relevância para a história do Brasil. Por outro lado, esta análise
pode servir para aqueles que quiserem estudar de modo mais sus-
tentado o ordenamento jurídico da história do Estado Brasileiro.
Um aspecto interessante a registrar de saída é que neste texto,
conhecido pelo nome de “Proclamação da República”, tal como
dissemos acima, não aparece nem uma vez a palavra república.
E o seu título é, como vimos, “Proclamação dos Membros do
Governo Provisório” (nem mesmo no título a palavra república
aparece).
Um primeiro aspecto que chama a atenção no texto são os
vocativos que o dividem em quatro partes. Deste modo tomarei
como primeiro recorte para análise o funcionamento deste voca-
tivo na Proclamação. Para isso vamos analisar a constituição nele
da cena enunciativa. Um segundo recorte, que podemos articular
a este primeiro, é o modo de constituição da performatividade do
texto. Trata-se de um texto que muda o regime político do Estado
brasileiro. Um terceiro recorte é o do sentido da palavra “povo”,
que aparece duas vezes, numa mesma seqüência que se repete.
Esta palavra aparece no início do segundo enunciado, logo após o
primeiro vocativo, e ao final do segundo segmento logo antes do
terceiro vocativo (concidadãos!).

1. Os Concidadãos

Como antecipamos, a Proclamação dos Membros do Governo


Provisório de 15 de novembro de 1889 é iniciado por um vocati-
vo: “concidadãos!”. Este vocativo reaparece mais três vezes, no
início de outros três blocos textuais da Proclamação. Isto, de um
certo modo, divide o texto em quatro partes.
Antes de pensar neste aspecto, consideremos o funcionamen-
to do vocativo. Pensemos em certos modos de apresentação do
vocativo no acontecimento de enunciação. O enunciado vocativo
tem uma característica diversa daquela dos enunciados assertivos,
promissivos, etc. O enunciado vocativo não apresenta um relação
de predicação, por exemplo. O seu caráter vocativo está marca-
51
do no texto pela pontuação, pelo chamado ponto de exclamação.
Este é um enunciado que se mostra como apresentando a relação
de enunciação.

Este enunciado, “Concidadãos!”, pode ser parafraseado por


um enunciado como:
(2) “Eu falo a vocês os [meus] concidadãos”.
Ou seja, o vocativo instala uma cena enunciativa. Por ou-
tro lado é interessante observar que este tipo de funcionamento
dos enunciados pode ter construções diversas. Lembremos de
alguns casos: José, Senhor, Prezado José, Prezada Senhora,
Excelentíssimo Governador, são enunciados que podem iniciar
uma carta, uma conversa, um pronunciamento, etc. E vemos
como a cena enunciativa que o vocativo instala pode consti-
tuir lugares sociais de sujeito diversos. O que se confirma por
outros enunciados vocativos como Povo brasileiro, Senhoras
e Senhores, etc. Enfim há uma boa diversidade de formulações
vocativas que introduzem um dizer. Deste modo pode se ver que
o vocativo não é simplesmente um modo de estabelecer uma
relação com o interlocutor, é bem mais que isso, é a própria
constituição desta relação, na medida em que significa as divi-
sões do falante na cena enunciativa. O vocativo, nestes casos,
constitui, para um texto, quem ele toma como seu alocutário,
ou melhor, o vocativo estabelece o alocutário do texto. É nes-
ta medida que o vocativo estabelece elementos da configura-
ção da cena enunciativa. E ao fazer isso o enunciado vocativo
está de modo bastante decisivo estabelecendo politicamente os
sentidos. O vocativo não é uma referência a algo pré-existente,
simplesmente, o enunciado vocativo estabelece a designação de
algo e nestas condições a ele se refere.

Assim temos para o texto da Proclamação, em princípio, a se-


guinte cena enunciativa24:
(3) Locutor – locutor-cidadão ↔ alocutário-cidadão – Alo-
cutário

24 As figuras da enunciação Locutor, locutor-x (lugar social de locutor) e


enunciador têm como suas contapartes Alocutário, alocutário-x e destinatá-
rio.
52
Ou seja, o Locutor se divide e, enquanto um locutor-cidadão,
fala a seu alocutário-cidadão. Por outro lado, a identificação do
locutor e do alocutário com o lugar do cidadão se apresenta como
se esta divisão (Locutor (L) e locutor-cidadão) fosse universal-
mente aceita e universalmente válida. A apresentação destacada
e repetida do vocativo produz esse efeito no acontecimento da
enunciação do texto. Assim o enunciador desta cena é um enun-
ciador universal (Eun). O Locutor fala do lugar da verdade, para
isso toma o lugar social de cidadão e se significa como um igual
a seus iguais.

Temos então:
(4) L – Eun – l-cidadão ↔ al-cidadão - AL
A enunciação do texto da Proclamação se apresenta como se
dando do lugar do cidadão para o cidadão. E significando essa
relação como inquestionável. Deste modo podemos dizer que a
“Proclamação do Governo Provisório” de 15 de novembro de
1889, significa o que se faz com este texto como do domínio po-
lítico. Como significando uma igualdade de todos com todos. E
isto pode ser confirmado se observamos para o fato de que, na
primeira parte do texto (introduzida pela primeira enunciação de
“Concidadãos!”), se formula a “deposição da dinastia imperial”
e “a extinção do sistema monárquico”. Logo em seguida, esta
formulação é reescrita por totalização pela expressão “revolução
nacional”.

Determina-se, como “revolução”, o sentido da “deposição do


imperador e extinção da monarquia”. Pode-se parafrasear esta re-
lação de reescrituação por:
(5) “A deposição do imperador e extinção da monarquia é
uma revolução nacional”.
E esta cena enunciativa se apresenta como se fosse a que or-
ganiza o texto. Até mesmo o divide em quatro partes. E aí já po-
demos observar alguns aspectos interessantes: na primeira parte
o texto Proclama a deposição do imperador e a extinção do siste-
ma monárquico e informa e constituição do Governo Provisório,
atribuindo-lhe uma “missão”; na segunda parte, o texto apresenta
“intenções” do Governo Provisório (paz, fraternidade, ordem) e
garante segurança, respeito aos direitos; na terceira parte esta-
53
belece o funcionamento da “justiça ordinária”, e altera a consti-
tuição do Senado e abole a Câmara; e na quarta parte garante o
reconhecimento do Brasil a todos os contratos e compromissos do
Estado Brasileiro com Estados estrangeiros.

2. A Proclamação como Lei

Partindo da cena enunciativa acima analisada, poderíamos


pensar a performatividade do texto sendo significada pela relação
cidadão a cidadão. Dir-se-ia que sua performatividade se dá no
interior da relação de cidadania. Veremos, no entanto, que não
é este o caso. Podemos dizer que pela relação de concidadania
constitui uma performatividade assertiva, que se faz argumento
político da Proclamação. No entanto, o estabelecimento de uma
nova regulação das relações, a susbtituição de um regime por ou-
tro, não é produzida assim. A relação de concidadania em que se
mostra esta performatividade assertiva da argumentação política
é sub-categorizada já no segundo enunciado do texto:
“(6.1) Concidadãos!
(6.2) O povo, o exército e a armada nacional, em perfeita
comunhão de sentimentos com os nossos concidadãos residen-
tes nas províncias, acabam de decretar a deposição da dinastia
imperial e conseqüentemente a extinção do sistema monárquico
representativo”
Ou seja, a cidadania, qualidade de todos, se divide em povo,
exército, armada e cidadãos das províncias. Assim, o que o voca-
tivo iguala o primeiro enunciado do texto distingue. E isto acaba
por significar de modo específico o sentido de identificação que
o vocativo traz. Deste modo cabe a pergunta: que outra relação
performativa se dá no texto? Entre que subcategorias das acima
referidas (ou seja, de que lugar social do dizer esta outra perfor-
matividade se realiza)? Em outras palavras, como a performati-
vidade do texto não é una, e como ela trabalha um processo de
identificação e divisão daqueles a quem se reporta?
Comecemos por observar que o texto é assinado por cinco
pessoas que se apresentam como autoridades, segundo o aposto
de que seus nomes vêm seguidos. E estas assinaturas (e aqui é
preciso pensar o peso da assinatura como um ato de responsabi-
54
lidade pelo dizer ao qual se apõe a assinatura) são seguidas por:
Chefe do Governo Provisório, Ministro do Interior, Ministro da
Guerra, Ministro da Marinha, Ministro das Relações Exteriores;
da agricultura, Comércio e Obras (interinamente). Ou seja, Todos
se apresentam como Membros de um Governo Provisório. E é
nesta qualidade que assinam a Proclamação.
Voltando à reescrituração, já considerada na seção anterior, de
“deposição da dinastia imperial e a extinção do sistema monár-
quico representativo” por “revolução Nacional”, vemos que “re-
volução nacional” está no enunciado
(6.3)“Como resultado imediato desta revolução nacional, de
caráter essencialmente patriótico, acaba de ser instituído um Go-
verno Provisório, cuja principal missão é garantir com a ordem
pública a liberdade e o direito do cidadão.”
Podemos observar que o enunciado acima pode ser parafrase-
ado como segue:
(6.3.1)Esta revolução nacional teve um resultado imediato de
caráter essencialmente patriótico
(6.3.2) Este resultado foi a instituição de um Governo Provi-
sório
(6.3.3) a principal missão deste Governo Provisório é....
Interessa aqui principalmente observar que em 6.3.1 o “esta”
nos leva a uma paráfrase feita anteriormente: “A deposição do
imperador e extinção da monarquia é uma revolução nacional”.
Esta paráfrase é possível em virtude da reescrituração que “re-
volução nacional” faz de “a deposição do imperador e extinção
da monarquia”. Assim chegamos a uma outra paráfrase que nos
mostra que “A deposição do imperador e extinção da monarquia
institui um governo provisório”. E este governo é apresentado
por seus próprios membros. Nomeados por um de seus membros,
o chefe do poder executivo, que se apresenta como nomeando
como Governo Provisório os signatários da própria Proclamação.
Assim, o texto nomeia as pessoas que o assinam e representa o
lugar da performatividade da nomeação. Este lugar é o da chefia
do poder executivo provisório. Diria, então, que o texto significa
este lugar enunciativo, embora não o diga expressamente, a partir
de um lugar de locutor exterior aos nomeados.
Para avançar, observemos outros aspectos desse processo: o chefe
do Governo é um marechal (o aposto a seu nome afirma isso e recor-
55
ta como passado deste acontecimento enunciativo as enunciações que
constituem este aposto); o texto distinguiu povo de exército e armada
nacional. Assim o texto dá os elementos para se considerar como lugar
social do dizer o lugar das “forças armadas”, sendo o povo o alocutá-
rio desta posição. Deste modo, o locutor-x “forças armadas” institui a
chefia e o chefe do Governo Provisório e, por conseguinte, através dele
(chefe de governo) institui o Governo Provisório. Diríamos, então,
que a performatividade não se dá no interior da cidadania, mas entre
“forças armadas” e povo. E assim projeta um futuro de enunciações
que se desenvolveriam a partir desta relação. Este aspecto ficará mais
claro ao se considerar a análise do próximo recorte, em 3.
Deste ponto de vista, a performatividade, então, não é política é
legal (da lei). Temos, deste modo, uma relação performativa neste
texto que traz uma simultaneidade: de uma lado a cena em que o
lugar social de locutor é o de cidadão e configura-se uma relação
cidadão - cidadão, de outro a cena em que o lugar social de locutor
é o das forças armadas e a relação é forças armadas - povo, e que re-
presenta o povo fora do lugar que estabelece uma legalidade política.

3. História enunciativa e performatividade

Façamos um recorte mais específico nesta análise da perfor-


matividade. Consideremos a relação do texto da Proclamação
com uma série de textos formados pelo decreto 78-A de 21 de
Dezembro de 1889, pelo decreto 510 de 2 de junho de 1890.
O decreto 78-A de 21 de Dezembro de 1889 diz no seu pre-
âmbulo:
(6.1) “O Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do
Governo Provisório, constituído pelo Exército e Armada, em
nome da Nação, considerando...”
Este texto, tal como os decretos subsequentes, significa ex-
pressamente o que o texto da Proclamação do Governo Provisório
significava sem dizer diretamente, ou seja, que o lugar social de
estabelecimento da legalidade é o das forças armadas.
Quanto ao decreto 510 de 2 de junho de 1890, o que interessa
aqui é que o Governo Provisório decreta uma Constituição para o
Brasil, ao mesmo tempo em que convoca “o Congresso Nacional
dos representantes do povo brasileiro”. E, ao decretar tal Cons-
56
tituição e convocar o Congresso, traz como lugar de sua força
performativa o exército e a armada:
(6.2)”O Governo Provisório da República dos Estados Uni-
dos do Brasil, constituído pelo Exército e Armada,...”
Seria interessante ressaltar aqui que o Governo Provisório, insti-
tuído do lugar das forças armadas, convoca os representantes do pro-
vo brasileiro. Como vimos, o próprio Governo Provisório enunciou a
distinção entre exército e armada de um lado e povo de outro. Assim,
o ato de convocação de nossa primeira Constituinte na República se
dá no espaço de uma diferença, de uma desigualdade hierarquiza-
da, em que as “forças armadas” convocam o povo para fazer uma
constituição. Deste modo mantêm-se o exército e a armada como o
rememorado que garante a formulação da própria constituição.
A significação performativa nos dá, através desta análise his-
tórica, o lugar externo (forças armadas) capaz de arbitrar o texto
da lei, onde ela (as forças armadas) estará presente como interna
à lei. E este lugar externo se configura desde a chamada Procla-
mação da República.
Por outro lado, vemos como, ao considerar esta relação do texto
da Proclamação com enunciações futuras (outros textos) que ela
torna possíveis, encontramos, em (6.2), a palavra república. Vemos
que em (6.2) temos o sintagma “o Governo Provisório” da Pro-
clamação reescrito por “o Governo Provisório da República dos
Estados Unidos do Brasil...” Este sintagma traz uma caracterização
que retorna sobre “o Governo Provisório da Proclamação. Tem-
-se assim a vinculação do Governo Provisório estabelecido pela
Proclamação e o regime republicano, sentidos futuros ao aconteci-
mento da Proclamação que se tornam enunciáveis. Por outro lado,
produz-se um pressuposto significativo em (6.2). Para melhor ob-
servarmos este aspecto, consideremos a seguinte paráfrase:
(6.2a) Os Estados Unidos do Brasil são uma república
(6.2b) Esta república tem um governo provisório constituído
pelo Exercito e Armada.
O que se significa por (6.2a) está apresentado como algo es-
tabelecido e de todos sabido. É enunciado por um enunciador
genérico (Egco), que inclui o locutor. Assim trata-se de um pres-
suposto, que se apresenta como um passado de sentidos do acon-
tecimento significando a República, mesmo num texto, o da Pro-
clamação, em que este termo sequer aparece.
57
4. O Sentido de Povo na Proclamação

Tudo o que até aqui se viu mostra como é importante para


a melhor interpretação e compreensão deste texto, o sentido da
palavra “povo”25. Inclusive porque, como vimos, o lugar social
do alocutário da proclamação é em última instância “o povo” (de-
signe o que designar”. Como dissemos, a palavra “povo” aparece
somente duas vezes, e nos dois casos na seqüência “o Povo, o
Exército e a Armada Nacional”. No primeiro caso faz parte do
primeiro enunciado que vem logo após o primeiro enunciado vo-
cativo, e aí aparece articulado num enunciado como um dos ele-
mentos da enumeração dos agentes da deposição do imperador.
No segundo caso esta seqüência também aparece como agente,
agora da proclamação do Governo provisório (que é reescrito
simplesmente por Governo). Assim a enumeração o povo, o exér-
cito e a Armada Nacional aparecem como agentes da deposição
do Imperador e extinção do sistema monárquico e como agente
da proclamação do Governo Provisório. Nos dois casos estamos
diante de enunciados narrativos, como que a contar para o futuro
quem fez o que. No entanto observemos um aspecto importante
desta enumeração.
Primeiro ela aparece logo depois do primeiro vocativo e
assim distingue o povo dos concidadãos. O conjunto dos con-
cidadãos não é o povo. O sentido de concidadão é assim esva-
ziado do sentido de conjunto de todos aqueles que formam um
“povo”. Veja inclusive que logo a seguir a esta enumeração,
aparece que “o povo, o exército e a armada nacional” está em
“comunhão de sentimentos com os nossos concidadãos resi-
dentes nas províncias”, onde o “nossos” reescreve os elemen-
tos da enumeração, distinguindo-os dos concidadãos das pro-
25 Vou utilizar aqui a distinção que faço entre nomeação, designação, e re-
ferência. A nomeação é a atribuição de um nome a algo, que corresponde a
um modo de significar o real. A designação é o sentido de um nome enquan-
to constituído pelas relações dele com as palavras dos textos em que ocorre.
Assim a designação é o sentido que especifico pelo que chamo Domínio Se-
mântico de Determinação (Guimarães, 2007, por ex). Ou seja, é o sentido de
um nome enquanto produzido pelas relações das palavras segundo as relações
de integração em um texto. E a referência é a indicação de algo específico no
acontecimento enunciativo
58
víncias. Assim há concidadãos do lugar em que a Proclamação
se dá (no caso a cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil),
e há os outros concidadãos. Assim “povo” aparece como uma
palavra que se caracteriza por não significar cidadão, por não
ser “o exército” e por não ser “a armada nacional”, nem “os
concidadãos das províncias”. O sentido de povo é assim de-
terminado, no funcionamento do texto, fundamentalmente por
um conjunto de relações de antonímia:

Cidadão – concidadãos
____________________________
Povo
____________________________
Exército - Armada Nacional

Que outras determinações seria possível incluir nesse DSD?


Consideremos um outro aspecto do texto. Na sua segunda parte,
aparece que o Governo Provisório “garante a todos os habitantes
do Brasil, nacionais e estrangeiros...”. Vemos aí um outro modo
de identificar pessoas. Não são concidadãos, não são povo, são
habitantes. Isto aparece na sequência:
(1.4.)“o Governo Provisório, por todos os meios ao seu alcan-
ce, promete e garante a todos os habitantes do Brasil, nacionais
e estrangeiros,...”.
Sequência que nos permite paráfrases como:
(1.4.1) O Brasil tem habitantes nacionais e estrangeiros
(1.4.2) O Governo provisório... promete e garante a todos
eles...
Ou seja, o texto da Proclamação distingue dois tipos de habi-
tantes: “os habitantes nacionais” e “os habitantes estrangeiros”.
O modo de caracterizar “habitantes” por “nacionais”, já nos
leva, se consideramos o próprio sentido de “povo” nas suas rela-
ções intertextuais e de sua história enunciativa, a pensar que “ha-
bitantes nacionais” reescreve “povo” e assim determina o sentido
de povo. E assim chegamos ao DSD que segue, designação da
palavra “povo” no texto em análise:

59
cidadão – concidadãos
____________________________
habitantes nacionais

Povo
____________________________
Exército – Armada Nacional

Chegamos assim a um sentido de “povo” esvaziado do sentido


da cidadania que vai de par com sua exclusão do lugar do poder
(reservado às Forças Armadas) que estabelece um ordenamento
político: proclama a república, estabelece uma constituição e con-
voca uma constituinte para “deliberar” sobre ela.

Conclusão

Na medida em que fomos avançando na análise dos recortes


pudemos ver que o texto se apresenta como um manifesto político
através de um quadro de performatividade entre um locutor-ci-
dadão e um alocutário-cidadão, mas que na verdade é um modo
de contornar o traço de uma performatividade constituída de um
locutor-forças-armadas para um alocutário-povo. Assim a perfor-
matividade é claramente uma performatividade diretiva agencia-
da de um lugar de autoridade do qual o povo não participa. E é
deste lugar que está significada a deposição da dinastia imperial e
a extinção da monarquia representativa no Brasil. Por outro lado
pudemos ver como o sentido de povo, exatamente pelo que aca-
bamos de dizer, se configura simplesmente como habitante nacio-
nal, opondo-se, inclusive ao sentido de cidadão. E a nacionalidade
aparece no texto simplesmente como o oposto ao estrangeiro. Por
todos estes aspectos, na “Proclamação da República”, a cidadania
se vê formulada e instabilizada pelo lugar que a formula.

60
“DESORDEM” NO CONGRESSO

E
ste capítulo se dedica a analisar um texto cujo funcionamento
apresenta características muito particulares. De um lado é
um texto que traz a enunciação de enunciado linguístico e de
enunciados cuja materialidade não é linguística. Trata-se do texto
de um outdoor assinado pela “Central do Outdoor”. A sua escolha
para as análises que desenvolvo nesta obra se deu porque ele se
articula com aspectos da análise que acabo de fazer no capítulo
anterior. Como se poderá ver a seguir, trata-se de um texto que
produz sentido pelo modo como “lida” com a Bandeira Brasileira.
Esta bandeira é estabelecida para o Brasil a partir da República.
Por outro lado, trata-se de um texto atual, sobre a realidade política
do Brasil de hoje.
Uma primeira observação do texto nos traz o relevo dado ao
único enunciado lingüístico (além do nome “Central do Outdoor”)
que ele traz, “Ordem no Congresso”, colocado no lugar corres-
pondente ao que na Bandeira Brasileira traz o enunciado “Ordem
e Progresso”. Isto já nos leva a tomar o recorte cuja contraparte
é o enunciado “ordem no Congresso”. Por outro lado temos a
considerar que este texto se produz enquanto uma “deformação”
da Bandeira do Brasil. Levando em conta estes aspectos, vamos,
na análise deste texto, considerar três recortes: o funcionamento
do enunciado “ordem no Congresso”; a representação modificada
da bandeira; e a cena enunciativa que o texto constitui. Para todos
eles, estará sempre m pauta a intertextualidade que é fundamento
expresso deste texto.
Este texto foi retirado no endereço www.outdoor.com.br. Ele
foi premiado na categoria estudantil no concurso da Central do

61
Outdoor no ano de 2005. O autor do outdoor é Mateus Rosa da
Silveira. Abaixo coloco sua reprodução em preto e Branco para
orientar a leitura da análise que apresento. Indico logo abaixo as
cores que as formas têm.

Outdoor
1.retângulo externo verde; 2.losango em amarelo; 3.círculo em
azul; 4.faixa central e estrelas em branco; 5.círculo central em
vermelho.
62
1. Um enunciado entre muitos textos

O único enunciado linguístico do texto, e que organiza sua


significação, é “ORDEM no CONGRESSO”. Este enunciado in-
tegra o texto em questão na medida em que é colocado no cen-
tro de uma representação modificada da Bandeira do Brasil. Este
enunciado está num espaço que corresponderia, na Bandeira, ao
espaço onde está o lema da Bandeira, “Ordem e Progresso”. O
enunciado do texto em análise tem assim uma relação intertextual
com a Bandeira do Brasil. Deste modo a observação do modo
como este enunciado se distingue do lema da Bandeira passa a
ser fundamental.
De um lado vemos que o enunciado em análise repete a palavra
“ordem” e traz um segundo nome que lembra e modifica a palavra
“progresso”. Por outro lado o enunciado do texto da “Central do
Outdoor” substitui o “e”, por um “no”, mudando claramente a
relação entre os dois nomes. No lema as duas palavras vêm numa
conjunção, numa certa aparência de enumeração, e no enuncia-
do em questão o segundo nome especifica o sentido do primeiro,
numa relação de dependência sintática. No lema da Bandeira, a
conjunção dos dois nomes reúne dois predicados, dados como
concomitantes. A relação de dependência no enunciado que ana-
lisamos faz com que um nome especifique um predicado expresso
pelo nome “ordem”. Vemos, então, que o enunciado “ordem no
Congresso” modifica de modo significativo a organização e o sen-
tido do enunciado que cita e substitui, a partir do qual produz-se
o sentido do novo enunciado. Nesta medida, o lema da Bandeira
é o memorável que faz significar, pelas relações que o presente
do acontecimento formula, o enunciado “ordem no Congresso”.

Pensando a partir desta distorção ao enunciado do Lema, po-


demos nos perguntar pela performatividade do enunciado analisa-
do. Como podemos parafraseá-lo? Por algo como:
(1) Faça-se ordem no Congresso, é preciso ordem no con-
gresso.
Deste modo trata-se de um enunciado imperativo, diferente-
mente do lema. Antes de tudo é preciso considerar o sentido de
palavra de ordem que um lema sempre traz. Este aspecto vai dire-
tamente significar no caráter imperativo do enunciado do outdoor
63
em análise. E qual o sentido desta enunciação imperativa? Uma
ordem traz: uma diretiva de um locutor para um alocutário a res-
peito de uma ação futura em virtude de alguma razão. Deixando
de lado por ora a questão da cena enunciativa, podemos dizer que
o alocutário é aqui o Congresso cuja performatividade diretiva
do enunciado pede que o Congresso tenha ordem. A questão é:
em virtude do quê? Se lembramos que a palavra Congresso subs-
titui, no enunciado, a palavra “Progresso”, podemos considerar
como implicitado, por este enunciado, que a falta de ordem do
Congresso é contra o progresso, o desenvolvimento do país. Para
sustentar esta interpretação, podemos ver que o enunciado “Or-
dem no Congresso”, além da paráfrase já indicada acima, poderia
também ser parafraseado por
(2) “A falta de ordem do Congresso é contra o desenvolvimen-
to do Brasil, é contra as instituições brasileiras.
Se consideramos ainda que este texto é produzido em 2005, em
condições muito particulares da vida política brasileira, momento
em que o Brasil se viu tomado pelo escândalo do que ficou conhe-
cido como “mensalão”, envolvendo as relações entre o Executivo
e o Congresso. Levando em conta este aspecto das circunstâncias
em que o acontecimento da enunciação se dá, e considerando o
enunciado do centro do outdoor (ordem no Congresso), temos
que levar em conta que esta diretiva exigindo ordem significa a
inexistência de ordem, o que significa uma afirmação sobre “a
desordem no Congresso”. Esta afirmação se apresenta como uma
afirmação prévia, implícita, que sustentação da exigência da or-
dem. E o sentido da desordem, nesse memorável do acontecimen-
to, leva, não há como escapar disso neste caso, a considerar que
neste texto mensalão determina desordem. Se utilizo a represen-
tação que já utilizei antes temos o DSD

Mensalão ┤ desordem

Por outro lado podemos considerar um termo que determina


o sentido de ordem é o oposto de mensalão. Podemos neste caso
tomar aqui a palavra “ética” para colocar no campo de antonímia
de mensalão. Deste modo temos:
64
mensalão ┤desordem
_________________________
ética ┤ ordem

Ou seja, mensalão determina desordem e é antônimo de ética


determina ordem. E isto nos permite chegar à paráfrase que se-
gue, pela inclusão do sentido da ética:
(2a) “A falta de ordem do Congresso é contra a ética, é contra
o desenvolvimento do Brasil, é contra as instituições brasileiras,
etc.”
E é mais que isso. Na medida em que o enunciado significa
que o Congresso é contra o Progresso, e isso é feito pela distorção
do lema da bandeira, ou seja, da distorção de um símbolo do Esta-
do e da Nação, o enunciado significa que o Congresso está contra
o Estado e a Nação. Em outras palavras, uma das instituições fun-
damentais do Estado está contra o Estado e a Nação. O Congresso
é uma instituição que distorce o Estado e a Nação brasileira.

2. A Distorção Produzindo sentidos

A análise do primeiro recorte coloca em jogo a “distorção” da


Bandeira, de um símbolo da Nação e do Estado. Deste modo, to-
memos a “distorção” da Bandeira como um recorte a ser descrito
e analisado. Também aqui não há como não considerar a relação
intertextual entre o texto do outdoor e a Bandeira do Brasil. A
bandeira, como sabemos tem um retângulo verde, sobre o qual
vem um losango amarelo, dentro do qual vem um círculo azul e
uma faixa branca, dentro da qual está escrito o lema da Bande-
ria: “ORDEM e PROGRESSO”. O texto do outdoor se apresenta
como uma enunciação que cita e modifica a bandeira. Descritiva-
mente temos no texto do outdoor: um retângulo verde cuja dimen-
são horizontal é proporcionalmente maior do que a da bandeira,
um losango amarelo sobre este retângulo. Este losango aparece
interrompido tanto no alto como em baixo, apresentando somente
dois ângulos visíveis; dentro do losango vem um círculo azul,
também interrompido no alto e em baixo, tal como o losango. No
65
centro do círculo azul, vem um globo vermelho. Atravessa o cír-
culo azul uma faixa branca com o enunciado já acima analisado,
“ORDEM no CONGRESSO”. Assim vemos que as modificações
incluem uma mudança de perspectiva na construção do texto e
um acréscimo, o do globo vermelho no centro do círculo azul.
Além disso há que se acrescentar que a faixa branca que atravessa
o círculo azul está em posição diferente do da Bandeira. Nesta a
faixa branca está na parte superior do círculo e tem uma curvatura
para cima, e no texto do outdoor, a faixa está na parte de baixo do
círculo azul e com a curvatura para baixo. Ainda uma outra mo-
dificação completamente aparente: na Bandeira só há uma estrela
acima da faixa branca, no outdoor há duas e de tamanho muito
maior e em outra posição.
Como interpretar esta descrição. Vejamos como ela sustenta
uma concomitância de sentidos. Ou seja, os aspectos até aqui des-
critos nos permitem mais de uma interpretação para esta “distor-
ção” intertextual. Primeira aproximação: as duas estrelas acima
da faixa branca com o enunciado podem ser interpretadas como
a representação das duas casas do Congresso que, no plano físico
da cidade de Brasília são hoje significados por duas partes que se
apresentam como os dois lados de um mesmo globo, com um pré-
dio que os une ao fundo. Aqui as duas estrelas e o globo vermelho
operam esta significação iconicamente. Ou seja, a combinatória
no outdoor de um globo ao centro com duas estrelas uma dian-
te da outra reportando-se ambas ao globo, significam a própria
representação do Congresso brasileiro exercido por duas casas
legislativas.
Assim vemos que a Bandeira é citada pelo texto do Outdoor, e
é distorcida por uma mudança evidente de perspectiva. Podemos
dizer que o enunciador da Bandeira se apresenta como um enun-
ciador universal, que diz a Bandeira para todos. Já o outdoor se
mostra por uma nova perspectiva, que podemos considerar como
individual e assumida pelo locutor-j. Este locutor-j é ao mesmo
tempo um locutor-estudante e um locutor-empresa. O locutor-
-empresa nos dá em discurso indireto livre o locutor-estudante. O
procedimento do concurso que premia e faz circular o premiado
dá conta deste discurso relatado.
A enunciação do texto do outdoor se faz assim por uma in-
tervenção direta no modo de intervenção da Bandeira. Ela é dis-
66
torcida por um locutor que diz um novo texto que a toma como
um memorável fundamental para a constituição de seu sentido.
Assim a Bandeira, ao ser citada, é modificada, deformada, o que
vai de par com a modificação do enunciado que vem ao centro
do outdoor e da Bandeira. Deste modo podemos dizer que esta
modificação dos aspectos visuais da Bandeira amplificam a dis-
torção do enunciado e a ele se articulam. Estas modificações to-
mam seu sentido exatamente pela articulação com o enunciado
“ORDEM no CONGRESSO”. É este enunciado que faz com que
as modificações na bandeira no processo de enunciação do texto
do outdoor articulem estas modificações aos sentidos produzidos
pelo funcionamento do enunciado. E podemos assim dizer que o
sentido da falta de ordem no Congresso desconstrói o sentido da
Bandeira e assim daquilo de que ela é símbolo (O país, o Estado,
a Nação). Em certa medida a distorção da Bandeira pelo texto do
outdoor produz uma argumentação que sustenta a necessidade de
mudança do Congresso.
Ainda pensando o caráter intertextual do outdoor, não se pode
deixar de considerar que a Bandeira brasileira atual, que é a ban-
deira adotada pelo decreto no. 4 de 19 de novembro de 1889, a
partir da Proclamação da República, se faz a partir da bandeira do
Império. A bandeira do Império é formada pelo retângulo Verde
e pelo losango amarelo, tendo no centro o brasão do império. As-
sim a Bandeira enquanto símbolo da nação estabelece uma conti-
nuidade entre o Império e a República. A diferença fundamental
da nova bandeira está na representação da federação de estados
feita pela estrelas que aparecem no círculo azul e da faixa branca
com um lema que é diretamente tomado ao positivismo, “Ordem
e Progresso”26. E este enunciado é fundamental para a interpreta-
ção das distorções do texto que analisamos.
Segunda aproximação: podemos considerar que as distorções
relativas à Bandeira produzem um outro efeito icônico que faz
figurar, no texto em análise, um cara de palhaço. As duas estelas
acima da faixa branca são os olhos, a faixa com curvatura para
baixo é a boca, e o círculo vermelho no centro é o nariz do palha-
ço. Por este caminho podemos dizer que o palhaço exige “ordem

26 Um estudo extremamente significativo sobre a bandeira do Brasil e particu-


larmente sobre este lema está em Orlandi (1997).
67
no Congresso”, e o locutor desta ordem é o povo. O que significa
que o Congresso, ao não cumprir seu papel institucional, faz o
povo de palhaço e este povo, enquanto autoridade que legitimara
o Congresso dá a ordem: “ordem no Congresso. E cabe aqui a
pergunta, o que este acontecimento toma, por esta via de inter-
pretação, como seu memorável, seu passado de sentido? O que
“desordem” significaria neste caso? Podemos nos valer da análise
já feita acima na seção 1. Assim “desordem” significa pela deter-
minação de “mensalão” sobre seu sentido. Deste modo o desres-
peito do congresso dão Estado assume um sentido específico de
desrespeito ético e moral que transforma o povo em palhaço. E
por transformar o povo em palhaço transforma a nação, os cida-
dãos em palhaços. E é este povo, tornado palhaço que exige do
congresso dignidade, ordem.

3. Quem Diz “Ordem!”

O texto em análise é assinado por “Central de Outdoor”. Por


outro lado, como vimos acima, o locutor-empresa relata em dis-
curso indireto livre o dizer de um estudante. Este dizer da empre-
sa se marca por seu nome, presente em baixo à direita do outdoor,
sob a forma de uma assinatura da publicidade, uma logomarca.
Esta contém, tal como a representação da Bandeira, um enuncia-
do e uma representação visual. O enunciado é o nome da institui-
ção (empresa) e a parte visual traz as cores azul claro, branco e
vermelho, que vêm no centro da logomarca.
Isto pode ser relacionado com a representação da Bandeira, que
tem um círculo azul marinho no centro. No entanto há uma dife-
rença importante, no texto do outdoor, no centro do círculo azul há
algo que representa um globo, que está em vermelho. Assim pode-
mos dizer que o locutor do texto se coloca no centro dele. O assi-
na não como uma mera assinatura, mas pela sua representação na
própria textualidade, vinculando diretamente a assinatura ao texto.
E como vimos no recorte anterior, este globo vermelho faz parte
de um lado da representação icônica do Congresso brasileiro, e, de
outro, da significação do povo como palhaço do congresso. Assim
há um locutor-empresa que fala a um alocutário. E este alocutário
é, de um lado o Congresso, a que o locutor diz: “Faça-se ordem no
68
Congresso”; de outro é o povo (representado pela relação com a
Bandeira). Ao povo o locutor faz a crítica ao Congresso e diz que o
Congresso desrespeita o povo. E estas duas cenas se sobrepõem, fa-
zendo a crítica afetar a representação política que um alocutário (o
Congresso) faz do outro alocutário, o povo: o Congresso no lugar
de representar desrespeita (aqui significado pela metáfora do palha-
ço). E esta sobreposição é particularmente significativa na medida
em que a empresa diz o que diz enquanto relato (em discurso indi-
reto livre) do dizer de um estudante que, enquanto parte do povo,
exige respeito.
Por outro lado, considerando que a Bandeira, ao ser citada pelo
texto do Outdoor, é distorcida, de um modo muito particular, por
uma mudança de perspectiva que reduz o campo e recorta o re-
tângulo, o losango e o círculo azul, podemos considerar aí o fun-
cionamento do enunciador do texto do outdoor. Podemos dizer
que o enunciador da Bandeira se apresenta como um enunciador
universal, que diz a Bandeira para todos, brasileiros e estrangei-
ros. Já o outdoor se mostra por uma nova perspectiva, que pode-
mos considerar como genérica e assumida pelo locutor-empresa,
que deste modo, significa esta crítica como uma crítica de toda
a sociedade. Vejam, se consideramos o enunciado “ORDEM no
CONGRESSO”, e considerando sua paráfrase “Faça-se ordem no
Congresso”, podemos pensar que o enunciado do Outdoor pode
ser parafraseado de modo mais complexo:
(3a) Não há ordem no Congresso
(3b) É preciso fazer ordem no Congresso
(3c) Faça-se ordem no Congresso.
E neste caso podemos considerar que o enunciador genérico
se responsabiliza por (3a), assim como o Locutor do texto do
Outdoor. Ou seja, (3a) aparece como um implícito pressuposto.
Nesta medida a crítica ao Congresso é significada como de todos
os brasileiros, pois a falta de ordem no caso é mostrada como de
todos conhecida.

Conclusão
Estamos assim diante de um texto que é enunciado num acon-
tecimento que toma a Bandeira Brasileira como um memorável e
que funciona como fonte de novos sentidos. E estes sentidos são
produzidos por uma relação de distorção que se faz da Bandeira
69
e assim significa que o Congresso precisa modificar-se, assumir
uma ordem, pois, tal como vem agindo, funciona contra o Estado,
a Nação e o povo (significado como palhaço).
Um aspecto importante é que a tomada da perspectiva genérica
distribui a crítica que o locutor-empresa faz, ao relatar o locutor-
-estudante, para a voz geral do povo. Esta vem significada pelo
pressuposto “não há ordem no Congresso”, que sustenta a possi-
bilidade da diretiva “faça-se ordem no congresso”, assim como
novos dizeres críticos que tal pressuposto pode sustentar como
argumento.

70
O NOME DA LÍNGUA

V
ou neste capítulo analisar um texto cujo interesse se deve
a que ele diz respeito também (como o da Proclamação
da República) à história política do Brasil. Trata-se de um
texto que pode ser incluído numa série de textos legais (tal como a
Proclamação), assim como, e isto lhe dá uma especificidade, numa
série de textos científicos.
Trago, então, para análise, “Denominação do Idioma Nacional
do Brasil”, texto que contém o parecer que decidiu que o nome da
língua Nacional do Brasil é língua portuguesa.
Este texto (transcrito na íntegra no apêndice, ao final) tem rece-
bido pouca atenção de analistas da história do Brasil e da questão
da língua no Brasil. Ele é tomado simplesmente por seu resultado:
o nome da língua nacional e oficial do Brasil é Língua Portuguesa.
No entanto os desdobramentos que ele trouxe para a história da lín-
gua no Brasil são significativos. Um caso importante seria lembrar
que a constituição de 1988 estabelece a língua oficial do Brasil, cla-
ramente partindo deste parecer, exatamente por esquecê-lo: o artigo
da Constituição que diz “A Língua Portuguesa é a língua oficial da
república Federativa do Brasil” parte da nomeação já estabelecida.
Mas nosso objetivo aqui não é essa questão. Vamos à análise do
texto e vejamos como ela pode iluminar aspectos interessantes des-
te texto que fica esquecido exatamente para que seu resultado seja
o mais homogêneo possível, para que as razões daquela discussão
das décadas de 1930 e 1940 não retornem.
Para a análise vou considerar o seguintes recortes27: o da per-

27 Alguns deles foram objeto de meu interesse em trabalhos sobre a política


de línguas no Brasil no Projeto História das Ideias Linguísticas
71
formatividade do parecer; o da designação de “idioma nacional
do Brasil”; o da argumentação do parecer; o do sentido de civili-
zação no texto do parecer.

1. O Parecer Decide sobre o Nome

O texto em análise neste capítulo é o relatório da comissão


de professores, escritores e jornalistas nomeada para atender o
art. 35 das Disposições Transitórias da Constituição brasileira de
1946. Este artigo diz: “O Governo nomeará comissão de profes-
sores, escritores e jornalistas, que opine sobre a denominação do
idioma nacional”. Por uma primeira observação, vê-se que este
relatório traz uma introdução e depois o parecer da comissão, que
teve como relator o linguista Sousa da Silveira.
Dados estes aspectos, toma relevo especial a análise do funcio-
namento da performatividade deste texto e assim do parecer que
ele contém. Pois é esta performatividade que instala constitucio-
nalmente “Língua Portuguesa” como nome da língua nacional e
oficial do Brasil.
A performatividade do parecer apresenta uma complexidade
muito particular. Ele é formulado do lugar social do linguista
(filólogo), quem assina o parecer é Souza da Silveira, e é apro-
vado, tornado portanto texto a ser enviado ao Governo brasilei-
ro, por uma Comissão que incluía cinco membros da Academia
Brasileira de Letras, quatro membros da Academia Brasileira de
Filologia, um General (Inspetor Geral do Ensino Militar), dois
Reitores de universidade, o Presidente da Associação Brasileira
de Imprensa e dois Deputados.
Temos então uma sobreposição que se vale da autoridade do
lugar de lingüista do relator e se sustenta pelo lugar institucional
do saber e do ensino (Comissão). E este deslizamento é constituti-
vo de sua performatividade. A conclusão do texto, a afirmação de
algo como verdade (o idioma nacional do Brasil se chama língua
portuguesa) está garantida pelo lugar da comissão. O governo foi
que estabeleceu a Comissão e deu-lhe a incumbência, e assim a
obrigação e o direito, de enunciar a decisão.
Mas isto não é tudo na configuração da cena enunciativa deste
acontecimento. Há aí, também, um segundo movimento enuncia-
72
tivo (uma outra sobreposição): o texto do parecer inicia-se com
um enunciativo vocativo (Sr. Ministro). Assim já na formulação
do relator linguista consta um endereçamento do texto ao minis-
tro da Educação. Ou seja, no plano da formulação técnica inicial
está marcada a posição do Governo, que assim marca, desde o
início, a posição da comunidade de saber do Brasil (pela via da
Comissão) como instância enunciativa. O texto só se endereça
ao Ministro enquanto texto da Comissão, e não enquanto texto
do filólogo. E mais, enquanto texto da comissão que o Governo
constituiu para o fim determinado. Assim a performatividade le-
gal da decisão se faz do lugar da comissão (um lugar do saber)
estabelecido e sustentado pelo lugar do governo enquanto locutor.
Ainda uma outra sobreposição: a garantia performativa da
aprovação da Comissão, ou seja, o lugar de legitimação desta per-
formatividade, é uma decisão da Constituinte brasileira de 1946.
Decisão que, mesmo se dando (ou talvez por isso) nas disposições
transitórias, transforma em permanente a decisão da Comissão.
Ou seja, a decisão da Comissão é a decisão da Constituinte, do
Estado. Como se vê, é um texto cuja performatividade é consti-
tuída por uma série de enunciações anteriores. Ele significa em
virtude destes textos anteriores, deste passado específico de enun-
ciações, significadas no acontecimento do parecer.
E a Constituinte, para realizar sua determinação, fez desli-
zar para o Governo (O Presidente da República e o Ministro da
Educação) o poder para constituir a Comissão Especial. Deste
modo desliza para o Poder Executivo a formação da Comissão
que decidirá sobre a questão. A decisão que é, por todos estes
meandros, da Constituinte, o é enquanto passa pelo Executivo.
Ou seja, enquanto o executivo toma parte crucial na formulação
da decisão constituinte, que é em última instância a decisão de
uma comissão.
E é tanto mais importante este aspecto se se considera que está
em questão indicar pessoas tomadas como preparadas por suas
qualidades intelectuais, e assim capazes de decidir sem engano
sobre uma questão de identidade nacional.
Deste modo o funcionamento da performatividade do texto
cuja cena específica é:
O locutor-comissão diz X ao alocutário-Ministro
É na verdade:
73
O locutor-comissão diz X ao alocutário- povo brasileiro
E isto se dá na medida em que esta cena performativa tem como
memorável uma história enunciativa muito particular, tal com
acima indicamos28.

2. A designação de “Idioma Nacional do Brasil”

Esta expressão aparece como uma expressão referencial de-


finida no Título do Texto do Relatório da Comissão (“O idioma
nacional do Brasil”). Isto dá conta de que se trata da língua dada
como por todos conhecida e reconhecida como língua nacional.
O modo de presença desta expressão no título traz como pressu-
posto “Há um idioma Nacional do Brasil”.
É interessante ver que o relatório, depois da introdução, traz,
como sua peça fundamental, o parecer. E este parecer, precedi-
do de um pequena introdução, diz apresentar os resultados do
trabalho da comissão. Estes resultados são organizados em duas
partes nomeadas “Breve retrospecto histórico” e “Considerações
linguísticas”. E o retrospecto histórico apresenta a história da lín-
gua portuguesa. Ou seja, claramente, “língua portuguesa” aparece
como reescrituração de “idioma nacional do Brasil”. Para falar do
Idioma Nacional do Brasil o parecer fala da língua portuguesa. E
é pela significação desta identidade, que a reescrituração produz,
que todo o parecer se formula. Podemos dizer que o texto traz um
sentido que pode ser parafraseado como segue:
(1) há um idioma nacional do Brasil
(2) a língua portuguesa é este idioma
(3) apresentamos a seguir a história que sustenta esta identi-
dade.
Ou seja, o aparecer se apresenta como um texto que sustenta
uma afirmação, tomada no passado da nação, implícita e decisiva
(a língua portuguesa é o idioma nacional do Brasil). E é por isso
que o texto nos leva a enumerações como:
28 Análises como esta mostram que a performatividade não é uma ação indi-
vidual de alguém, mas é um agenciamento específico que faz “alguém” falar
de um certo lugar e de um certo modo. Uma análise mais específica do fun-
cionamento performativo mostra que se trata de um agenciamento político da
enunciação.
74
(4) É a Língua portuguesa aquela em que nós, brasileiros, pen-
samos; em que monologamos; em que conversamos; que usamos
no lar, na rua, na escola, no teatro, na imprensa, na tribuna; com
que nos interpela, na praça pública, o transeunte desconhecido
que nos pede uma informação; é, por assim dizer, a nossa língua
de todos os momentos e de todos os lugares.
E o que esta sequência nos traz? Ela significa exatamente por-
que “língua portuguesa” reescreve idioma nacional do Brasil. Se
substituirmos língua portuguesa por esta expressão teremos “é o
idioma nacional aquele em que nós, brasileiros, pensamos; em
que monologamos; em que conversamos; que usamos no lar, na
rua, na escoa, no teatro, na imprensa, na tribuna; com que nos in-
terpela, na praça pública, o transeunte desconhecido que nos pede
uma informação; é, por assim dizer, a nossa língua de todos os
momentos e de todos os lugares.” Assim esta afirmação só existe
no texto em virtude da reescrituração por substituição que vimos
indicando.
E neste ponto é preciso ver que a seqüência (4) se constitui por
enumerações. E esta enumeração contém no seu interior outras
enumerações. Vejamos:
(4.1) É a Língua portuguesa aquela em que nós, brasileiros,
a) pensamos;
b) em que monologamos;
c)em que conversamos;
d)que usamos no lar, na rua, na escola, no teatro, na imprensa,
na tribuna;
e)com que nos interpela, na praça pública, o transeunte des-
conhecido que nos pede uma informação;
f)é, por assim dizer, a nossa língua de todos os momentos e de
todos os lugares.
Assim vemos que (d) é elemento de uma enumeração e se
constitui de outras enumerações. Podemos também considerar
que (d) e (e) são reescriturações especificadoras de (c). Assim o
paralelismo da enumeração no máximo se sustenta nos três pri-
meiros elementos, pois os dois seguintes podem ser interpretados
como reescriturações de (c). E do memo modo vemos que o últi-
mo elemento da enumeração, o elemento (f), é uma reescrituração
totalizadora de toda a enumeração. Desse modo toda a enumera-
ção significa “a língua portuguesa é a nossa língua de todos os
75
momentos e de todos os lugares”, onde o “nosso” reescreve “nós,
brasileiros” do início da seqüência e podemos assim considerar
que “a língua portuguesa é a língua de todos os momentos e de
todos os lugares dos brasileiros.” E aí pela circularidade instalada
desde o início pela reescrituração de “Idioma Nacional do Brasil”
por “língua portuguesa” temos “O idioma nacional do Brasil é a
língua de todos os momentos e de todos os lugares dos brasilei-
ros.” E este enunciado é, no caso, paráfrase de a “a língua portu-
guesa é a língua de todos os momentos e de todos os lugares dos
brasileiros.” Não se trata de uma conclusão, mas simplesmente
de uma significação que já está contida nos implícitos do texto.
Ou seja, o texto traz como memorável de seu acontecimento esta
identidade. E tudo nele vai, em certa medida, significar esta iden-
tidade.
Por outro lado, se observamos o que está ainda no início do
“Breve retrospecto histórico”, encontramos um conclusão tirada
ao final do terceiro parágrafo: Assim o português,... triunfou so-
bre o tupi. E neste caso “português” reescreve “língua portugue-
sa”, e “tupi” reescreve por repetição “tupi” que aparecera logo
antes. E “tupi”, na sua primeira aparição no texto, reescreve por
substituição “a língua dos índios”. Nesta medida “a língua dos
índios” determina “tupi”.
Podemos dizer, por esta análise, que um DSD para a designa-
ção de Idioma Nacional do Brasil neste texto pode ser:

Idioma Nacional do Brasil – Língua Portuguesa ├ língua do povo brasileiro


________________________________________________
Tupi ├ língua dos índios

Ou seja, o “idioma Nacional do Brasil” sinônimo de


“Língua Portuguesa” é determinado por “língua do povo brasi-
leiro”. Assim a sinonímia é o elemento fundamental que opera
a atribuição de “Língua do Povo Brasileiro” a “Língua Portu-
guesa”. De outro lado, “Língua Portuguesa” funciona antonimi-
camente a “Tupi”, que é determinado por “Língua dos Índios”.
O que produz a exclusão dos índios da designação de “povo
brasileiro”.

76
3. O Sentido de Civilização

Esta análise nos impulsiona para a consideração do sen-


tido de “civilização”, também colocado por outros aspectos que
veremos a seguir. No “Breve Histórico” do texto, há um parágra-
fo dedicado a afirmar porque a língua portuguesa se sobrepôs à
língua dos índios, ao tupi. E este parágrafo traz como centro da
razão desta mudança de posição política das língua a palavra e o
conceito de “civilização”.
O parágrafo em questão é:
(5) “Não tardou, porém, que se verificasse um princípio
lingüístico que se tem reconhecido como verdadeiro: postas em
contacto duas línguas, uma instrumento de uma civilização muito
superior à civilização a que a outra serve, esta cede o seu terre-
no à primeira. Assim, o português, expressão de uma civilização
mais adiantada, triunfou sobre o tupi.”
Observemos que seria possível caracterizar a designação
desta palavra no texto em questão. Em vários estudos meus tenho
tratado do sentido de civilização na lingüística brasileira. Veja-
mos como esta designação se constitui no presente texto. Primei-
ra coisa a observar: o enunciado do princípio científico, segundo
Sousa da Silveira, é o seguinte:
(5.1)“postas em contacto duas línguas uma instrumento de
uma civilização muito superior à civilização a que a outra serve,
esta cede o seu terreno à primeira.”
Neste enunciado podemos considerar alguns aspectos de senti-
do pelas paráfrases possíveis para ele:
(5.1’) as línguas servem às civilizações
(5.1’’) as civilizações podem ser mais desenvolvidas ou menos
desenvolvidas
(5.1’’’) no contato entre línguas a que serve a uma civilização
superior predomina sobre a que serve a uma civilização inferior.
E neste caso o locutor-linguista do parecer apresenta (5.1’) e
(5.1’’) como algo dito de uma perspectiva genérica na qual este
locutor se inclui. Ou seja (5.1’) e (5.1’’) são apresentados como
pressupostos, são significados como algo conhecido e aceito por
todos (inclusive pelo Locutor). Assim o sentido de civilização
está dado também como conhecido e aceito, constituído pelo pas-
sado próprio do acontecimento. Este sentido é assim significado
77
como fora de discussão, quando se trata de uma relação de lín-
guas. E nesta medida, a palavra “civilização” pode ser conside-
rada como determinando “língua”. O que se pode “tirar” de uma
consequência atribuível à relação de (5.1’) e (5.1’’): a língua que
serve a uma civilização é mais desenvolvida se a civilização é
mais desenvolvida; e menos desenvolvida se a civilização é me-
nos desenvolvida. E isto é tanto mais razoável se consideramos
que se trata, para o locutor-linguista, de uma afirmação reconhe-
cida, dado o modo pressuposto de sua apresentação, como fora de
questão para a comunidade dos linguistas.
Por outro lado, as articulações pressuposicionais e as implici-
tações acima indicadas, nos colocam diante de sintagmas como:
“uma civilização muito superior à civilização a que a outra serve”.
A expressão “uma civilização” aparece caracterizada por “mui-
to superior à civilização a que a outra serve”. Assim civilização
pode ser considerada como afetada pelo sentido de “progresso”
tomado como “que leva ao nível superior” (ou seja, “progresso”
determina “civilização”. E assim teríamos:

Progresso

Civilização ┤ língua

Ou seja, “progresso” determina “civilização” que determina


“língua”.
Posto isto não podemos deixar de considerar que o sentido de
civilização aparece numa forma adjetiva no último enunciado do
texto. Mais que isso, é a última palavra do texto:
(6)“...a história da nossa origem e a base fundamental de nos-
sa formação de povo civilizado”.
Considerando uma reescrituração de “civilização” por “civili-
zado”, somos levados a considerar que este sintagma final (povo
civilizado) poderia ser parafraseado por
(6a) povo que tem civilização
(6b) povo de civilização
(6c) povo com civilização.
Não seria possível pensar numa paráfrase como
78
(6d) o povo tem civilização.
Assim o sentido de “civilização” aparece num sentido de ci-
vilização como valor. Não se trata de pensar civilizações, como
se fosse o caso significado pela sequência (6c). Trata-se da civili-
zação no singular. Há povos com e povos sem civilização. Deste
modo esta expressão final do texto sustenta a relação de deter-
minação de progresso (de valor superior) sobre civilização. Por
outro lado, o último enunciado do texto:
(7)”Essa denominação (reescritura de língua portuguesa) tem
a vantagem de lembrar, em duas palavras – Língua Portuguesa - ,
a história da nossa origem e a base fundamental e nossa forma-
ção de povo civilizado”.
traz alguns elementos de sentido que podem ser parafraseados
como segue:
(7.1) os brasileiros têm uma origem de povo civilizado
(7.2) o nome língua portuguesa lembra nossa origem e a base
fundamental de nossa formação de povo civilizado
(7.3) a denominação língua portuguesa traz essa vantagem.
Isto nos leva a considerar que o povo é civilizado porque fala
uma língua de um povo civilizado. Ou seja, língua determina o
sentido de povo29. Assim chegamos ao DSD30:

Progresso

Civilização ┤ língua ┤ povo.

Assim, na medida em que a forma adjetiva do sintagma “povo


civilizado” acaba por sustentar a determinação de progresso so-
bre civilização, podemos dizer que civilização determina povo,
na medida em que determina língua que determina povo.

29 É claro que isto significa deste modo até porque uma língua é civilizada por-
que é a língua de um povo civilizado. Assim vemos como a uma determinação
circular que se instala: língua determina povo, povo determina língua.
30 Cuja última relação poderia ser língua ┤povo ┤ língua, ou, de outro modo,
língua ├ ┤povo.
79
4. Argumentos para uma Língua Nacional

Passemos agora à análise da construção da argumentação do


texto. A organização geral do texto do parecer se dá como a apre-
sentação de dois grupos de argumentos que sustentam uma con-
clusão. Há duas partes chamadas “Breve Retrospecto Histórico”
e “Considerações Linguísticas”, que levam à última parte, “Con-
clusão”. Assim consideramos que o nome “conclusão” instala na
organização geral do texto uma relação do tipo A e B logo C.
Assumindo aqui, como o tenho feito, a posição de que o funciona-
mento da língua traz como próprio dele uma argumentatividade31,
podemos dar ao texto a seguinte representação argumentativa:
(8) Considerações linguísticas e Breve Retrospecto Histórico
LOGO o nome da língua é língua portuguesa.
Para facilitar a distinção da representação da argumentação
dos enunciados efetivos do texto, vou colocar os elementos entre
colchetes e vou representar o LOGO por ----) e o e por +. Assim
temos
(9) [breve retrospecto histórico (A)] + [considerações lingüís-
ticas (B)] ----) [o nome do idioma nacional do Brasil é língua
portuguesa (C)]
Veja-se que aquilo que fundamentalmente reescreve a palavra
“conclusão” é “o nome do idioma nacional do Brasil, é “Língua
Portuguesa”.
Por outro lado, cada um destes argumentos é construído no
texto de modo específico.
Tomemos o primeiro grupo de argumentos. “Breve Retros-
pecto Histórico” inclui: a) o Brasil foi descoberto por Portugal e
a Língua Portuguesa foi se propagando no Brasil; b) no contato
com as línguas indígenas, a Língua Portuguesa, como instrumen-
to de uma civilização superior, se impôs; c) a Literatura Brasi-
leira é em Língua Portuguesa; d) mesmo alguns grandes autores
que não se pautavam pelo “bom tipo linguístico”, acabaram por
acompanhá-lo; e) os brasileiros pensam, monologam, conversam
(no lar, na rua, na escola, na imprensa, na tribuna, etc) em Língua
Portuguesa.

31 Posição que é fundamentada na semântica argumentativa (Ducrot, 1973,


por exemplo).
80
A primeira grande questão é que basicamente todos estes ar-
gumentos32 são paráfrase, em certa medida, de Falava-se e es-
crevia-se e fala-se e escreve-se no Brasil a Língua Portuguesa,
que é argumento para o Idioma Nacional do Brasil é a Língua
Portuguesa. E o que faz com que a conclusão não seja aqui, sim-
plesmente, paráfrase completa do argumento? Ou melhor, que
diferença é sustentada pelo argumento? A diferença é que o me-
morável do acontecimento atribui Nacionalidade Brasileira para
a Língua Portuguesa.
Esta atribuição de nacionalidade brasileira não se dá por uma
relação de predicação ou determinação específica, mas pela argu-
mentatividade da relação [A] + [B] ----) [C]. De um certo modo,
pode-se ver como a ordenação dos argumentos apresenta o argu-
mento e do “Breve retrospecto histórico” [A] como decisivo, já
que na enumeração argumentativa que compõe [A], ele é o último
a ser apresentado pelo acréscimo, sem marcação especial de pa-
rágrafos que formulam tais argumentos. Para melhor analisá-lo
tomemo-lo na forma como foi enunciado no parecer:
(10) “É a língua portuguêsa aquela em que nós, brasileiros,
pensamos; em que monologamos; em que conversamos; que usa-
mos no lar, na rua, na escola, no teatro, na imprensa, na tribuna;
com que nos interpela, na praça pública, o transeunte desconhe-
cido que nos pede uma informação; é, por assim dizer, a nossa
língua de todos os momentos e de todos o lugares”.
Pode-se observar que este argumento é também formulado
como uma enumeração construída por uma conjunção de afirma-
ções em que a língua portuguesa aparece como “instrumento” de
pensamento, de monólogo, de conversa de todos os brasileiros,
nos quais o autor se inclui pelo nós, de em que nós, brasileiros. E
mais que isso, essa língua em que pensamos, etc, é a nossa língua.
Ou seja, a língua portuguesa é a nossa língua, dos brasileiros. Dá
especial força a essa posse da língua o fato de que depois de uma
longa conjunção de afirmações sobre a língua aparece o último
enunciado introduzido por por assim dizer que afirma a posse
da língua pelos brasileiros. Assim o enunciado que finaliza o ar-
gumento e afirma a posse se apresenta como um resumo (uma

32 Sobre minha concepção de argumentação e funcionamento da orientação


argumentativa ver Guimarães (1995b)
81
reescrituração totalizadora) de tudo o que se disse antes. Deste
modo ele dá a tudo que se disse antes no argumento o sentido da
posse da língua pelos brasileiros. A língua portuguesa ganha a
nacionalidade daqueles que a falam, os brasileiros. Atribui-se a
ela a nacionalidade brasileira.
Mas há outros aspectos ainda a considerar. Os argumentos a e
b introduzem uma predicação especial para Língua Portuguesa:
ela é um instrumento de civilização superior. Esta predicação se
apresenta pelo memorável significado em “Assim, o português,
expressão de uma civilização mais adiantada, triunfou sobre o
Tupi”.
O argumento d de [A] coloca um modelo de vernaculidade
purista para o Português (de Portugal). Ou seja, no Brasil, apesar
das tendências de mudança não houve mudanças importantes, de-
cisivas.
Tomemos agora o segundo conjunto de argumentos (“Consi-
derações Linguísticas”). Temos aí incluídos: a) os brasileiros iam
se formar em Portugal; b) os grandes poetas épicos brasileiros
escreviam em excelente língua portuguesa “com os olhos volta-
dos para os monumentos literários de Portugal”; c) os estudos
linguísticos mostram que a língua nacional é a língua portuguesa
com pequenas diferenças (pronúncia brasileira, pequenas diver-
gências silábicas, vocabulário enriquecido por palavras indígenas
e africanas); d) quando se desconhece uma palavra de um autor
português, tal como de um brasileiro, se recorre a um dicionário
monolíngue e não a um dicionário bilíngue; e) os linguistas nos
estudos de geografia linguística incluem a língua do Brasil no do-
mínio português.
O primeiro aspecto a observar é que os argumentos a e b conti-
nuam a argumentação do primeiro conjunto de argumentos (“Bre-
ve Retrospecto Histórico”). O argumento c diz que as descrições
mostram que a língua do Brasil é a mesma de Portugal com varia-
ções, mas este argumento não apresenta uma descrição, conta-a,
simplesmente. Ou seja, recorta como memorável neste aconte-
cimento sentidos de textos da filologia tomados em bloco como
homogêneos e como demonstrador da semelhança da língua no
Brasil e em Portugal.
Os argumentos d e e trazem uma novidade como procedimen-
to argumentativo. Os instrumentos de gramatização (dicionários,
82
descrições) tomam a língua como a mesma, portanto ela é a mes-
ma (poderíamos dizer que o argumento b tem também esta ca-
racterística). Aqui está consignada uma questão importante para
a história da gramatização: como os instrumentos são tomados
como parte, como constitutivos, da língua, como diria Auroux
(1994), próteses dessas línguas33.
Para este caso, temos uma complexidade específica na articu-
lação argumentativa:
(11) [Eu afirmo que filólogos / dialetólogos / dicionaristas di-
zem que a lingua (no Brasil e Portugal) é a mesma] ----) [A lín-
gua é a mesma (no Brasil e Portugal)].
Assim o argumento de descrição linguística que aqui aparece é
só a afirmação de que ela existe e funciona de um certo modo. E
isto é dado como descrição suficiente da Língua para daí concluir
algo. E é esta argumentação que é argumento para a conclusão do
parecer. Conclusão que em um primeiro passo é “o Idioma Nacio-
nal do Brasil é a Língua Portuguesa”. Assim podemos dizer que é
a seguinte a argumentação global do parecer:
(12) [eu afirmo que filólogos / dialetólogos / dicionaristas di-
zem que a língua no Brasil e Portugal é a mesma] + [falava-se e
escrevia-se e fala-se e escreve-se no Brasil a língua portuguesa]
----) [a língua no Brasil e Portugal é a mesma] ----) [o idioma
nacional do Brasil é a língua portuguesa] ----) [a denominação
do idioma nacional do Brasil deve ser língua portuguesa].
O passo final da argumentação é “o idioma nacional do Brasil
é a língua portuguesa LOGO a denominação do idioma nacional
do Brasil deve ser língua portuguesa” que se sustenta num implí-
cito que pode ser assim apresentado: o nome de uma língua na-
cional tem que ser o nome da língua que é a língua nacional. Este
implícito se apresenta como o dizer de um enunciador genérico
com que todos concordam, e que é aqui o passado que significa
neste acontecimento.
Antes de finalizar o estudo deste recorte, analisemos com mais
detalhe a conclusão do parecer. A conclusão tem três enunciados.
O primeiro diz que à vista do que fica exposto a comissão re-
conhece e proclama a seguinte verdade: “O Idioma Nacional do

33 Sobre esta questão relativamente à língua portuguesa no Brasil ver Guima-


rães (1996) e Orlandi e Guimarães (1998)
83
Brasil é a Língua Portuguesa”. O segundo diz que isto leva à con-
sequência de que o nome do idioma deve ser Língua Portuguesa.
Ou seja, a conclusão final atendendo a determinação constitucio-
nal é, como vimos em (12),
(12a) O Idioma Nacional do Brasil é a Língua Portuguesa] ---
-) [A denominação do Idioma Nacional do Brasil deve ser Língua
Portuguesa]
Interessante é ainda (já vimos isso no recorte sobre a desig-
nação de civilização) a última enunciação da conclusão, ou seja,
do parecer: “Essa denominação, além de corresponder à verdade
dos fatos, tem a vantagem de lembrar, em duas palavras – Língua
Portuguesa –, a história da nossa origem e a base fundamental de
nossa formação de povo civilizado” (Silveira, 1960, 293)34.
Esta afirmação retoma como última coisa a dizer uma das de-
terminações do Argumento Histórico: a Língua Portuguesa se
impôs no Brasil por ser instrumento de civilização superior às
línguas indígenas. Assim se tem, na conclusão, uma argumenta-
ção lateral à argumentação que se mostra como constituidora da
organização do texto:
(13) [A Língua Portuguesa se impôs no Brasil por ser instru-
mento de civilização superior às línguas indígenas] + [Nomear a
Língua Nacional de Língua Portuguesa tem a vantagem de lem-
brar a História do Brasil como a de um povo civilizado] ----) O
nome do Idioma Nacional do Brasil é Língua Portuguesa
E esta argumentação lateral assume neste jogo argumentativo
(o que é marcado pelo “além de ser X, tem....”) a força não só de
uma argumentação no texto, mas da indicação de uma razão deci-
siva para os brasileiros se identificarem enquanto falando língua
portuguesa, ou seja, enquanto povo civilizado.
Como vimos na análise do recorte sobre a designação de civili-
zação, ela se constitui em momentos distintos do texto. Pela aná-
lise argumentativa da conclusão, relacionada ao da designação de
civilização, podemos ver como esta argumentação paralela apare-
ce, no quadro da argumentação global do texto, não só como um
argumento, mas como o argumento decisivo, que tem, inclusive,
a característica de independer da argumentação produzida pelos
argumentos do Breve Histórico e da Descrição Linguística.

34 Este texto está no apêndice ao final do livro.


84
E é nesta medida que a Constituição de 46 mantém na memó-
ria brasileira o sentido de que no Brasil se fala uma só língua.
Ou seja, enquanto povo civilizado, o povo brasileiro só fala uma
língua.

Conclusão

O texto “Denominação do Idioma Nacional do Brasil” susten-


ta uma argumentação fundamental: fala-se no Brasil a mesma lín-
gua de Portugal, a língua portuguesa, assim o idioma nacional do
Brasil é a língua portuguesa. Esta argumentação é sustentada, de
um lado, por uma quase circularidade que se mantém em diversos
aspectos do texto. O próprio sentido “Idioma Nacional do Brasil”
é apresentado reescriturado por “língua portuguesa”, antes mes-
mo de a argumentação se apresentar como concluída. A conclusão
é assim simplesmente parte de um gesto de confirmação de uma
identificação prévia estabelecida. Por outro lado, a performativi-
dade funciona por uma sobreposição tal que o lugar do conheci-
mento que sustenta a argumentação é também o lugar legislativo,
que delibera, em virtude de uma história de enunciações que se
apresentam rememoradas neste acontecimento e assim projeta a
sustentação futura de enunciações sobre a língua no Brasil.
De outra parte o texto constitui um sentido de civilização como
valor, no singular, que é determinada por progresso e determina
língua e povo. Deste modo é que, como argumento, apresentado
lateralmente, a civilização acaba por ser o argumento decisivo
para que se considere a língua como portuguesa e seu nome como
língua portuguesa.

85
86
Parte iii
ANÁLISES: OUTROS TEXTOS NEM
TÃO DISTANTES

87
88
UMA NOTÍCIA E SUAS LÍNGUAS

N
este capítulo, vou fazer um movimento diferente de aná-
lise. Vou me ocupar de um texto que não se insere numa
história tal como os textos até aqui analisados. Trata-se de
um pequeno texto, de uma revista semanal de grande circulação
da mídia brasileira. É um texto aparentemente simples e que se
mostra como uma mera notícia lateral, já que aquilo de que fala
não foi motivo de uma matéria, uma reportagem, com chamada
de capa, etc. Apresento abaixo o texto, no que ele tem de verbal,
já que ele é composto, também, por uma foto do personagem
sobre o qual fala.

(1) Os músculos brasileiros de Richard Branson-


Dono de negócios tão variados quanto uma empre-
sa aérea e uma gravadora de discos, o inglês Richard
Branson, do Grupo Virgin, lquer comprar uma rede de
academias de ginástica no Brasil. Ela seria incorporada
pela Virgin Active, cujas 170 unidades em seis países
já têm 900 000 clientes. Na semana passada, Branson
enviou um emissário para sondar empresas brasileiras
do setor. Os alvos selecionados por Mark Field, diretos
de novos negócios da Virgin Active, são a A! Body Tech,
Companhia Athletica, Bio Ritmo e Monday. Branson
gostaria de concretizar a operação ainda no primeiro se-
mestre. (Veja, 27/01/2010, p. 44).

Comecemos por uma descrição do texto no espaço da página.


Ele está na seção Panorama da revista e ocupa o rodapé da pági-

89
na, utilizando horizontalmente toda sua extensão. A parte verbal do
texto ocupa o espaço de duas colunas (a página está divida em três),
no último terço do espaço vem uma fotografia de Branson que ocu-
pa espaço vertical superior ao destinado ao rodapé em que está o
texto. Este aspecto da fotografia (as demais fotografias da página
são pequenas e têm o aspecto de fotos 3X4, só com o rosto) e o fato
de vir num rodapé são aspectos que significam um relevo dado,
nesta seção, a esta notícia, diferente das demais, que vêm cada uma
numa parte de cada uma das três colunas da página. Na minha aná-
lise vou me ocupar da parte verbal do texto, que, em verdade, orga-
niza seus sentidos. De saída ressalta a metáfora do título e o fato de
que funcionam no texto nomes vindos de outras línguas. Levando
isso em conta, vou me deter, para esta análise, em três recortes: o da
metáfora do título da notícia, “Os músculos brasileiros de Richard
Branson”; o do espaço de enunciação; o do caráter aditivo do texto,
diretamente ligado ao modo de apresentar a notícia.

1. Músculos Brasileiros de um não Brasileiro

Como acabamos de dizer, o título traz uma metáfora35, “mús-


culos brasileiros”. Para não entrar na discussão do que seja uma
metáfora, vou me valer aqui, com o cuidado de me afastar do re-
ferencialismo que esta abordagem carrega, da posição da retórica
clássica. Segundo Lausberg, baseando-se em Quintiliano, “a metá-
fora é a forma breve (brevitas) da comparação” Lausberg, 1966, p.
61). Relativamente a este aspecto encontramos mais à frente:

“Frente à similitudo (comparação) a metáfora tem a vir-


tus brevitatis (Cic. De or. 3, 39, 158); devido à brevitas a
metáfora é mais “obscura”, mas também mais imediata e
incisiva que a comparação.” (idem, p. 62)

O problema, do meu ponto de vista, é que a noção de compa-


ração, tal como aparece na retórica, se articula diretamente com a
relação de referência das expressões envolvidas.

35 Sobre uma interessante reflexão sobre a metáfora ver Joanilho (2005).


90
Mantendo-me no espaço das minhas posições sobre o sentido,
vou considerar que a metáfora36 é um modo de discurso indireto
livre que funde uma reescrituração por susbstituição sinonímica,
de maneira que o dizer do outro determina o dizer do locutor. Se
tomamos o nosso caso em análise, podemos considerar que em (1)
a expressão “os músculos brasileiros” é metafórica porque faz (1)
significar:
(1’) a) Dizem que R. Branson tem poder (A)
b) Eu digo “os músculos brasileiros” de Branson e digo
que ele vai entrar com seu poder no Brasil (A’).
O dito em (a) aparece concomitante ao dito em (b), pelo discurso
indireto livre. De outra parte a relação (a) e (b) aparece fundida
pela enunciação, de tal modo que não se tem um dizer que sus-
tenta o outro, mas uma relação indistinta entre um dizer e outro.
Deste modo pode-se dizer que se o dito em (b) é uma metáfora
(representemo-la por A’), ela tem uma relação com o (A) que a
enunciação traz em discurso indireto livre, tal que:
- A’ é concomitante a A
- A determina A’ e A’ determina A
Deste modo o caráter desta relação de determinação em dis-
curso indireto livre, ao lado de fazer conviver duas vozes num
mesmo segmento, faz com que, em (1’) tudo se apresente sem
separações estanques, como concomitâncias, e faz com que a ex-
pressão “os músculos brasileiros” signifique tanto o poder quando
a atividade específica do empresário, as academias de ginástica. A
fusão deste discurso indireto livre dá a ele uma abertura para sua
interpretação, nada na metáfora se dá explicitamente.
No caso em questão, o enunciado do título traz um operador
fundamental, a caracterização de “músculos” por “brasileiros”.
Este aspecto é parte do que faz com que “músculos” signifique
metaforicamente. Se o título fosse:
(1a) Os músculos de Richard Branson
Ele não traria desde o início o sentido metafórico. Assim a metáfora
ganha contornos específicos e indica que precisamos fazer atenção
a esta caracterização no funcionamento do sintagma nominal.

36 Apresento aqui sumariamente uma conceituação para analisar a metáfora


que merece um maior desenvolvimento, que apresento em um outro texto,
“Uma Hipótese sobre a Metáfora” (no prelo).
91
O “brasileiros” opera, neste modo de discurso indireto livre,
duas coisas ao se articular no sintagma, que é de resto uma expres-
são referencial geral. Primeira coisa: os músculos se deslocam do
sentido físico para o sentido abstrato que poderíamos indicar pela
sinonímia com o sentido de força, enquanto uma “virtude” pes-
soal. E este sentido de força pode ser tomado como sinônimo de
poder, e este sentido determina o sentido de “músculos”. Sentido
que o conjunto do texto vai confirmar.
Veja que, na ausência da metáfora, o enunciado (1) poderia ser
parafraseado por:
(1b) Os interesses pelo Brasil de Richard Branson.
Diante da metáfora o que se tem é algo como:
(1c) A força no Brasil de Richard Branson
Segunda coisa: a metáfora projeta o sentido do poder para o
domínio do negócio específico que interessa ao empresário, as
acadêmicas de ginástica. O “brasileiros” assim desloca o sentido
físico para o sentido do poder e mantém o sentido físico como
num campo de homonímia convivendo com os sentidos da metá-
fora. É assim que “brasileiros” especifica, por um lado, “a força,
o poder” por “no Brasil”; e, por outro, “negócios (o das acade-
mias de ginástica)” por “no Brasil”
Assim o sintagma que dá início ao título da notícia significa:
o poder de Richard Branson no Brasil e Os músculos de brasi-
leiros dos quais Richard Branson quer cuidar. A questão destes
sentidos é que ao formulá-los como paráfrase de um enunciado,
utilizamos palavras que dirigem o sentido para um campo que
pode ser refeito. No caso da segunda paráfrase, utilizo cuidar,
um verbo que lexicalmente, se nos reportamos a um dicioná-
rio, significa um interesse nas pessoas. No entanto trata-se de
um negócio, de uma atividade que o empresário quer ver cres-
cer. Assim, podemos considerar que a melhor paráfrase seria
os músculos de brasileiros de que Richard Branson quer tirar
lucro.
Assim vemos que o que mais interessa não é a metáfora em
si, seu conteúdo, mas o fato de que ao ser constituída pela articu-
lação de brasileiros a músculos no sintagma referencial, cria todo
um conjunto de direções para o sentido. Assim torna-se necessá-
rio pensar no próprio sentido de “brasileiro”. Ele significa aqui
o espaço de expansão dos negócios do empresário inglês, e não
92
simplesmente a especificação de músculos de alguma nacionali-
dade. Assim se marca o Brasil como parte do mundo globalizado.

2. As Línguas do Texto

A interpretação do funcionamento da metáfora do músculo,


nos coloca a questão do mundo globalizado que também está
marcado enquanto espaço linguístico no texto. Ou seja, estamos
diante da questão do espaço de enunciação.
Como dissemos em Semântica do Acontecimento (Guimarães,
2002), o espaço de enunciação é o espaço de funcionamento das
línguas e de sua distribuição para seus falantes. Distribuição que
se dá desigualmente e determina politicamente o falante. Este não
é uma pessoa (psico-fisiológica), mas uma figura da enunciação
determinada enquanto falante pelas relações das línguas e falan-
tes em Inglês:
a) O do personagem,
b) O de um grupo empresarial,
c) O de empresas brasileiras.
Se observamos as articulações dos nomes das empresas brasi-
leiras no texto vamos encontrá-los no enunciado
(2) Os alvos selecionados por Mark Field, diretor de novos
negócios da Virgin Active, são a A! Body Tech, Companhia Athle-
tica, Bio Ritmo e Monday.
Neste enunciado encontramos um nome em inglês, “Monday”,
um nome com uma palavra (que se reduz a uma sílaba) em por-
tuguês seguida de uma expressão em inglês (A! Body Tech.), um
nome que reúne uma palavra em português seguida de um aposto
que adapta para o português uma palavara em inglês (Companhia
Athlética), e um nome em Português (Bio Ritmo). Isto por si já
significa que este texto se formula como num espaço de línguas
globalizado. Este espaço globalizado de línguas caracteriza-se
hoje, pela “supremacia” do inglês. No entanto temos que apro-
fundar a questão. Estes nomes aparem no pequeno texto para fa-
zer referência a empresas cuja nomeação no Brasil é dada como
já existente. Ou seja, quando se diz que a Monday é um alvo para
Brenson, isto significa que há no Brasil um empresa aqui nomeada
de “Monday”. Em outras palavras, há uma enuciação que nomeou
93
uma empresa como “Monday” que torna possível a referência a
esta mesma empresa no texto que estamos analisando. Isto pode
ser observado pelas paráfrases:
(3.1) Há no Brasil a A! Body Tech, a Companhia Athletica, a
Bio Ritmo e a Monday.
e
(3.2) a A! Body Tech, a Companhia Athletica, a Bio Ritmo e a
Monday são alvos selecionados por Mark Field para uma opera-
ção comercial.
O que coloca (3.1) como um pressuposto (com um enunciador
genérico), e assim os nomes em inglês ou que cruzam português
e inglês são significados como de domínio geral no Brasil. Assim
fica claramente significado o lugar das línguas neste espaço de
enunciação. Os nomes em inglês não são o modo de falar de um
personagem inglês cujo nome é em inglês. Trata-se de um sentido
que se mostra como circulando no espaço brasileiro de línguas.
Em outras palavras, não se trata de pensar que alguém usa, de-
cide usar, palavras de outra língua. O que se tem é que os no-
mes constituídos pela relação com outras línguas são significados
como formulados antes neste espaço de enunciação. No espaço de
enunciação do funcionamento da língua portuguesa enquanto lín-
gua do Estado brasileiro. Isto faz deste um texto produzido neste
espaço de enunciação globalizado, com a dominância política do
Inglês. Nesta medida a relação das línguas acaba por significar
as relações econômicas correlatas deste espaço de enunciação. E
este aspecto se articula a um dos sentidos do “brasileiros” que
analisamos no primeiro recorte: “brasileiros” especifica não mús-
culos, mas os negócios de Branson.

3. Uma Argumentação sob o Modo Aditivo

Consideremos, agora, em relação aos dois recortes anteriores


que o texto em análise se apresenta como uma notícia do mundo
dos negócios e faz isso por um processo aditivo que podemos
representar como segue:
(4) Brenson quer X (comprar uma rede de academias) e
Branson fez Y (mandou um enviado ao Brasil) e Brenson quer Z
(concretizar a operação...).
94
Esta formulação aditiva da notícia é um modo de representá-la
como simples informação. Mas se atentamos para cada um dos
pontos desta adição, vemos que ela se articula, em cada ponto,
em direções diversas.
Tomemos
(4.1.) Brenson quer X.
Que enunciado efetivamente aí encontramos?
(4.1a) Dono de negócios tão variados quanto uma empresa
aérea e uma gravadora de discos, o Inglês Richard Branson, do
grupo Virgin, quer comprar uma rede de academias de ginástica
no Brasil.
Este enunciado, (4.1a), pode ser parafraseado pelo seguinte
conjunto de enunciados:
(4.1a’) Branson é dono de negócios variados (uma empresa
aérea, uma gravadora de discos, etc)
(4.1a’’) Branson é Inglês.
(4.1a’’’) Branson é proprietáriodo grupo Virgin.
(4.1a’’’’) Branson quer comprar um rede de academias de gi-
nástica no Brasil.
O que podemos ver é que o texto da notícia, sob o modo de
simplesmente informar um negócio significa muito mais. Coloca
como pressuposto do enunciado o que está nas paráfrases de (4.1a’)
a (4.1a’’’). Assim o texto da notícia toma, pela figura de um enun-
ciador genérico, o interlocutor como alguém que compartilha com
o Locutor estes aspectos da significação e que então fica sabendo
o que está em (4.1a’’’’). Deste modo vemos como o funcionamen-
to destas pressuposições se mostra, no caso, como a sustentação
argumentativa para o caráter alvissareiro da notícia. Não deixa de
ser interessante observar que o que aparece como pressuposto se dá
como um conjunto de afirmações sobre fatos, sobre estados de coi-
sa, como se estes fossem simplesmente pré-existente e conhecidos,
quando não são necessariamente conhecidos e são aqui construídos
pelos próprios pressupostos que os “informam”. E é nesta medida
que são ao mesmo tempo elementos de uma argumentação.
Consideremos agora
(4.2) Branson fez Y.
Os enunciados que encontramos são
(4.2.a) Na semana passada, Branson enviou um emissário
para sondar empresas brasileiras do setor. Os alvos selecionados
95
por Mark Field, diretor de novos negócios da Virgin Active, são a
A! Body Tech., Companhia Athletica, Bio Ritmo e Monday.
Primeira coisa a observar é que se trata de uma sequência de
dois enunciados narrativos. Diferentemente de (4.1a.), claramen-
te descritivo. É fundamental aqui observar que “setor” reescreve
em (4.2.a) “academias de ginástica” do primeiro enunciado do
texto. O que coloca estas academias como determinadas, no tex-
to, por um setor de empresas. Podemos parafrasear os aspectos
fundamentais desta sequência como segue:
(4.2.a’) Mark Field é diretor de novos negócios da Virgin Ac-
tive.
(4.2.a’’) Na semana passada, Branson enviou Mark Field para
sondar empresas brasileiras do setor de academias de ginástica.
e
(4.2.a’’’) Mark Field escolheu como alvos da sondagem a A!
Body Tech., Companhia Athletica, Bio Ritmo e Monday.
Aqui também aparece como pressuposto algo que não é ne-
cessariamente dado como do plano do conhecido e aceito pelo
interlocutor, mas que é dado como da obviedade do mundo dos
negócios. O que constitui um destinatário muito particular para
esta notícia (as pessoas de negócio). E neste espaço de “conhe-
cimento” pressuposto, faz uma pequena narrativa significada por
(4.2.a’’) e (4.2.a’’’).
Agora o último elemento da adição:
(4.3) Benson quer Z.
Aqui estamos diante de um enunciado mais direto:
(4.3.a) Branson gostaria de concretizar a operação ainda no
primeiro semestre.
Inicialmente há que se considerar que “operação” reescreve
“comprar rede de academias de ginástica”. Por outro lado encon-
tramos um outro modo de implicitação neste enunciado que co-
mentaremos a seguir. Podemos considerar para (4.3a) as seguin-
tes paráfrases:
(4.3a’) Branson tem pressa
(4.3a’’) Branson quer finalizar a compra das empresas brasi-
leiras no primeiro semestre
Podemos dizer que o “ainda” é o operador que faz significar
nestas condições o que parafraseamos por (4.3a’). Não se trata
aqui de um implícito pressuposto, o Locutor não apresenta (4.3a’)
96
como dado como conhecido. O Locutor se responsabiliza ele pró-
prio pela afirmação da pressa do empresário que podemos atribuir
a um enuncaidor individual. Assim, se nos dois casos anteriores
os enunciadodores para (4.1) e (4.2) eram genéricos, o do pres-
suposto, e outro individual, o da afirmação e da narração, aqui os
dois enunciadores são individuais e ambos são assumidos pelo
Locutor. O que mostra que o Locutor finaliza o texto com a apre-
sentação de uma posição como da sua responsabilidade. E assim
dá à notícia o caráter de mera informação.
Assim se vê como o caráter aditivo do texto faz parte do modo
de construção da notícia enquanto mera informação. No entanto o
texto se constitui e significa por um conjunto de conexões com o
fora dele, que os diversos pressupostos indicam. Há outros textos,
não sabidos pelos leitores, necessariamente significando nesta no-
tícia, como se isto fosse do plano do evidente.
E isto se projeta sobre o modo como a presença de outras lín-
guas no texto se apresenta também como evidente, quando sob a
metáfora do título o sentido do texto descola para significar a bus-
ca do mercado brasileiro no negócio das academias de ginástica.
E tomando a questão da metáfora já inicialmente analisada,
podemos observar um outro aspecto importante: a Metáfora pode
ser considerada como um argumento (a metáfora marca uma rela-
ção argumentativa)37. Deste modo pode-se dizer que se X’ é uma
metáfora, então X’ é argumento para C (uma conclusão). Ou, dito
de outro modo, X’ portanto C. Tomando esta posição, podemos
dizer que o título do texto aparece como marcado como argumen-
to de uma certa conclusão.
Tomemos (1) e consideremos que ele pode ser parafraseado
por
(1’a) “Os músculos Brasileiros (a força, o poder) de R. Bran-
son” levam à conclusão que “Branson terá sucesso”.
Ou apresentado de outro modo:
(1’b) “Os músculos Brasileiros (a força, o poder) de R. Bran-
son” ---) Sucesso do empreendimento.

37 Embora a posição pela qual analisa a metáfora não seja a que utilizaríamos,
Le Guern (1981), nos apresenta a questão do valor argumentativo da metáfo-
ra aproximando-a da posição ducrotiana na semântica argumentativa. Deste
modo nos valemos de sua posição quanto a este aspecto particular.
97
Por outro lado, o texto é um desenvolvimento e uma especifi-
cação (uma reescrituração por expansão) do título do texto. Deste
modo, se como se disse acima, podemos considerar que o título
(“os músculos brasileiros de Richard Branson”) argumenta para
“o sucesso do empreendimento”, devemos também considerar
que a organização aditiva do texto deixa de ser mera descrição ou
narração para ser a representação detalhada do argumento, para
ser argumento de “O sucesso do empreendimento”. Ou seja, esta
retórica aditiva se articula, a partir da metáfora “Músculos brasi-
leiros”, e projeta sobre esta adição a força da metáfora do título.
Assim podemos interpretar o texto como uma argumentação a fa-
vor do sucesso do empreendimento baseado em virtude do poder
do grupo de Richard Brenson, de resto representado com desta-
que por sua fotografia ao lado do texto.

Conclusão

Este texto se apresentando por uma metáfora que desloca a


caracterização do brasileiro articulado a músculos para a especi-
ficação dos negócios, apresenta as atividades de Richard Brenson
como atividades de um mundo globalizado de negócios que se
acompanha da globalização do espaço de enunciação como um
espaço politicamente determinado pela posição do inglês no mun-
do. Por outro lado, sob o modo simples da notícia, o texto argu-
menta, por um processo de adicionar “novas informações” pela
naturalidade do gesto empresarial de Branson ao mesmo tempo
em que argumenta para a força dos empreendimentos do grupo
que busca expandir seus negócios já tão variados. É assim um
texto que não se pergunta sobre o que significa este gesto próprio
do que se chama globalização. Muito ao contrário o toma como
parte normal dos procedimentos do mundo contemporâneo.

98
O CREDO E A ENUNCIAÇÃO
RITUALIZADA

A
s práticas religiosas cristãs católicas incluem a enunciação
de certos textos de modo ritualizado, as orações. São, por
exemplo, muito conhecidas e fundamentais para os cató-
licos o “Pai-nosso”, a “Ave-Maria’ e o “Credo”.
Neste capítulo vamos analisar de modo específico o “Credo”. Re-
tomo aqui uma análise que fiz anteriormente38 e que aqui aparece
modificada por levar em conta aspectos que não considerei naquele
momento. Esta retomada tem a ver com vários aspectos que impor-
tam neste livro. De um lado retoma a análise de um texto que fiz, há
muitos anos, já me valendo do procedimento de análise que utilizo
nesta obra, mesmo que naquele momento o procedimento não te-
nha sido diretamente apresentado nem explorado; de outro, trago,
para a discussão que desenvolvo, um texto que tem uma caracte-
rística, muito particular, de trataremos a seguir: o “Credo” é um texto
que funciona na medida em que é repetido, porque é ritualizado. É
um texto que se recita como um modo de enunciá-lo novamente.
O fato de se tratar de um texto que traz como forma de enuncia-
ção a repetição coloca dois aspectos importantes: o da enunciação
sempre repetida de um mesmo texto, e a questão das versões do
Credo, no decorrer da história das práticas católicas. Tomaremos
estes aspectos como o primeiro recorte desta análise.
Antes de me dedicar aos aspectos deste texto, faço, previa-
mente, uma análise rápida do agenciamento enunciativo de dois
outros textos igualmente ritualizados como este: “Pai-nosso” e na
“Ave-Maria”.
38 Publicada em Orlandi (1987).
99
1. Aproximação por outras vias

Começo pelo Pai-nosso. Uma versão do texto desta oração


aparece no Novo Testamento como ensinado por Jesus Cristo, e
assim se reveste de um caráter muito especial. Assim podemos
considerar que a cena enunciativa em questão tem um Locutor
que do lugar social do fiel (locutor-fiel) enuncia a oração para
Deus (o alocutário sempre o mesmo). E na medida em que ela foi
ensinada por Cristo, temos a considerar que se trata de um discur-
so relatado, ou seja, o locutor-fiel diz para Deus o que Cristo disse
(ou melhor, ensinou para todos os fiéis).
Se observamos de modo mais específico esta cena, podemos
dizer que nela o locutor-fiel realiza (é agenciado em) dois engaja-
mentos performativos: louvar e pedir. Quanto a louvar, o locutor
louva diretamente seu alocutário (Deus), quanto a pedir, ele pede,
àquele a quem louvou, “o reino de Deus”, “alimento” e “perdão
pelos pecados”. Assim é uma enunciação que louva no presente e
pede para o futuro.
Quanto à “Ave-Maria”, ela aparece na Bíblia na anunciação
de Nossa Senhora pelo anjo Gabriel. A ela foi acrescida, poste-
riormente, uma segunda parte, a “Santa-Maria”. Assim a cena
enunciativa será algo parecido como o caso do “Pai-nosso”, com
algumas mudanças: o locutor-fiel se dirige a Maria (que é aqui o
alocutário), também aqui vemos que o locutor-fiel se põe a repetir
o dizer de um locutor-sagrado (um anjo). Esta oração também
é um dizer de Deus (através do anjo) que o fiel repete. Também
aqui o locutor-fiel louva e pede. Louva o alocutário da oração
(Maria), isto na primeira parte do texto (a “Ave-Maria”) e pede
algo, na segunda parte do texto (a “Santa Maria”). Neste caso o
fiel pele ao alocutário-mãe-de-deus sua intermediação junto a seu
filho (Deus).
Estas duas descrições rápidas nos mostram certos aspectos
característicos destes textos, ligados ao modo do agenciamento
enunciativo que toma os falantes.
Um aspecto importante neste caso é notar que rezar, enunciar
o “Pai-nosso” ou a “Ave-Maria”, tendo como alocutários Deus
ou Maria (mãe de Cristo), é estar no lugar do locutor-fiel (é ser
um fiel). Assim rezar não é simplesmente citar o texto de Cristo
ou do Anjo. Rezar é ser tomado pelo lugar do fiel. E ao ser to-
100
mado deste lugar louva-se, pede-se. Veja que este mecanismo é
completamente diferente daquele que encontramos, por exemplo,
quando num artigo científico alguém cita um outro autor. Trata-se
de fazer a enunciação de outro funcionar para a enunciação do
Locutor, mas trata-se de uma citação.
No caso de um texto científico, a enunciação se apresenta
como uma narrativa:
(1) L – EU digo que L1 disse “X”.
Na oração, estar no lugar do fiel é ser tomado pelo texto de
Deus e dizê-lo enquanto uma enunciação propria. Neste caso a
enunciação se apresenta como:
(2) L – EU louvo a Deus
– EU peço X
Por outra parte, se observamos mais de perto este funciona-
mento da enunciação de uma oração, temos que considerar que
há que se levar em que conta que o estudo da enunciação da ora-
ção precisa distinguir de um lado as enunciações infinitas que
os fiéis realizam, de outro a enunciação que estabelece a oração,
que estabelece, por exemplo, o “Pai-nosso”, a “Ave-Maria” ou
o “Credo” como orações. E aqui está um aspecto importante
para pensar inclusive a questão das versões das orações de que
falaremos à frente. O Pai-nosso, por exemplo, aparece no texto
bíblico como ensinada por Jesus Cristo. Assim podemos dizer
que se tem uma cena enunciativa em que o Locutor, do lugar de
Deus enuncia um texto que deve ser repetido por todos os que
são fiéis. Assim o locutor-Cristo (Deus) diz aos alocutários-fiéis,
o que lhe dizer a ele Deus. Estamos diante de um acontecimen-
to, numa certa ordem, na ordem da palavra “revelada” de Deus.
De outra parte, há os acontecimentos em que cada fiel reza uma,
duas, diversas vezes, por toda uma vida, inclusive, o Pai-nosso.
Está-se neste caso diante de um acontecimento de outra ordem.
Deste modo vê-se como a enunciação do fiel é claramente agen-
ciada por uma obrigação criada como sendo de Deus para seus
fiéis. A temporalidade do acontecimento que estabelece a ora-
ção é a da eternidade, a do eterno presente. A temporalidade
do acontecimento em que cada um reza uma oração tem o seu
presente (o do ato de rezar), tem como passado a temporalidade
do eterno presente da enunciação que “cria” a oração, e como
futuro o sentido da salvação.
101
Um outro aspecto interessante a analisar aqui é a questão das
versões de um texto de uma oração. Neste caso, estamos diante
de uma outra cena enunciativa: um locutor-Igreja estabelece, para
seus alocutários-fiéis, a versão a ser utilizada, segundo o ritual,
num certo momento da história. Assim a Igreja aparece como in-
termediária da enunciação de Deus. Tem-se algo como:
(3) O locutor-Deus diz que X.
O que leva a uma outra enunciação que toma a enunciação de
Deus como memorável:
(4) O locutor-igreja diz que y.
E é isto que leva a que a oração seja:
(5) O locutor-fiel diz que y para o alocutário-Deus.
E este acontecimento tem como memorável a enunciação da
Igreja e a enunciação de Deus. Por outro lado, o poder interpreta-
tivo da Igreja faz com que y corresponda a X.
Um recorte que pode tomar um outro aspecto que vai se articu-
lar com este é o do espaço de enunciação da “oração”. A prática
de rezar se faz numa língua, latim (houve tempo em que certas ce-
lebrações só se faziam em Latim), numa língua nacional e oficial
moderna (português, espanhol, Italiano, inglês, etc), em outras
línguas não oficiais, nem nacionais, como uma língua indígena
brasileira, etc. Do ponto de vista da oração, ela se apresenta como
independente desta língua. Ao ser tomado, na cena enunciativa,
pelo lugar social de locutor-fiel, isso é feito num espaço de enun-
ciação específico, o fiel fala em português, ou em francês... mas
isto não aparece como significando nada na oração. Isto signi-
fica a oração como uma relação direta do fiel com Deus, e nes-
ta relação o humano, a história humana não é significada como
constitutiva da relação de enunciação. Assim a oração pode ser
considerada como enunciada de um lugar de dizer universal, de
um enunciador universal. E esta é uma questão importante para
refletir mais à frente, na busca da compreensão do funcionamento
destes textos.
Isto tudo leva a que mudemos de modo significativo a análise
do funcionamento destas relações enunciativas. Pode-se dizer que
a enunciação que estabelece a oração é, em verdade:
(6) locutor-igreja diz para alocutário-fiel
- locutor-deus disse X
- X = xi...xn
102
Deste modo, o ritual de rezar é um acontecimento em que
(7) o locutor-fiel diz xi ao alocutário-deus.
Esta análise coloca a enunciação da Igreja como o aconteci-
mento em que X (o dizer do locutor-deus) é igualado a um xi (x1,
x2...xn). Em outras palavras, qualquer que seja xi (x1, x2, etc), ele
é dado pela Igreja como igual a X. Esta operação enunciativa de
Igreja significa o caráter político e histórico de seu dizer, mesmo
que ele se apresente como universal. De um lado a Igreja se dá
o lugar autorizado de dizer o que é X, de outro ela mostra uma
história de enunciações que em momentos diferentes iguala X a
versões diferentes de X (num caso é x1, noutro x2, noutro xn).

2. O Credo: modificando-se para ser o mesmo texto

Vamos, agora, feitas as duas aproximações anteriores, nos de-


dicarmos à análise do Credo, objetivo fundamental deste capítulo.
Como disse antes, como entrada para a análise tomaremos como
recorte as versões do credo, como o texto se apresenta na história
das práticas católicas. Depois vou descrever a cena enunciativa
do Credo, a partir do que pudemos ver para o Pai-nosso e para a
Ave-Maria, e assim caracterizar a agenciamento do sujeito pela
enunciação. Por fim vou me dedicar ao recorte da constituição da
performatividade desta oração; ao recorte da constituição enume-
rativa do texto; e ao recorte da designação do nome deste texto.

2.1. Um Mesmo Texto ou Muitos


Comecemos, como dissemos, pelo recorte das versões do “Cre-
do”. Observando a prática católica de dizer o “Credo”, acabamos
por encontrar diferentes versões dele. Há, por um lado, diferenças
no modo enunciativo: no batismo ele aparece como um diálogo
entre um cristão representando os cristãos e aquele que virá a
ser cristão. Por outro lado, há diferenças em certas passagens do
próprio texto. Ou seja, podemos ver adaptações diferentes, em
épocas diferentes, do texto latino. Assim podemos encontrar em
um missal da década de 1950 o texto:
(8) “Creio em um só Deus, Pai onipotente, criador do Céu e
da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Em um só Senhor,
Jesus cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai, antes de
103
todos os séculos. Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro, de
Deus verdadeiro. Gerado, mas não feito consubstancial ao Pai
pelo qual foram feitas todas as cousas. Ele, por nós, homens, e
pela nossa salvação, desceu dos céus. E se encarnou por obra do
Espírito Santo, em Maria Virgem. E fez-se homem. Foi também
crucificado por nós: sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi sepultado.
E ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Subiu ao
céu, está sentado à direita do Pai, de onde há de vir segunda vez,
com glória, e a julgar os vivos e os mortos; e seu reino não terá
fim. Creio no Espírito Santo, que é Senhor e dá a Vida e procede
do Pai e do Filho. E com o Pai e o Filho é juntamente adorado e
glorificado, e é o que falou pelos profetas. Creio na Igreja, una,
santa, católica e apostólica. Confesso um Batismo para remissão
dos pecados. E espero a ressurreição dos mortos, e a vida do sé-
culo futuro. Amém”.
Ao lado desta versão existem outras traduções mais reduzidas
que são, ou foram, usadas, com frequência, tanto na missa quanto
em variadas ocasiões em que se reza o credo, habitualmente, de
cor. As diferenças nos textos aparecem desde o início.
Consideremos duas versões razoavelmente próximas:
(9) Creio em Deus padre todo-poderoso, criador do céu e da
terra; (b) Creio em Jesus Cristo um só seu filho, nosso senhor,
que foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria,
padeceu sob Pôncio Pilatos; (c) Creio no Espírito Santo, na San-
ta Igreja Católica, na Comunhão dos Santos, na remissão dos
pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna, Amém.
(10) Creio em Deus pai todo-poderoso, criador do céu e da
terra; (b) Creio em Jesus Cristo seu único filho, nosso senhor,
que foi concebido Pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Vir-
gem Maria, padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos; (c) Creio
no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na Comunhão dos
Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na
vida eterna, Amém.
Neste jogo de condensação ou expansão das diferentes tradu-
ções de épocas ou situações diferentes podemos observar que a)
o texto hoje dado à recitação geral, e de cor, é mais reduzido em
certas passagens. Compare-se, por exemplo, a parte (c) acima e
o final da tradução do latim retirada do missal e apresentada an-
teriormente. Esta versão, usada atualmente, em geral, obscurece
104
a especificidade do Espírito Santo e da Igreja. Esta é uma forma,
então, que privilegia as figuras do Pai e do Filho, na trindade de
Deus. b) do ponto de vista da enunciação da oração, a versão usa-
da não afeta em nada sua performatividade. O locutor-fiel conti-
nua manifestando sua crença em Deus, e dizendo-lhe isto. Ou me-
lhor, manifesta sua crença por dizer a oração. Deste modo a Igreja
adapta-se a situações de enunciação e à história, mas não significa
nestas adaptações mudanças no sentido. Assim dizer mais ou di-
zer menos é significado no ritual como a mesma coisa. Realiza-se
o mesmo engajamento. Retira-se da enunciação, que cada fiel faz
do credo a cada momento que reza, seu caráter de acontecimento.
Rezar é ser agenciado de um lugar universal na temporalidade
eterna de deus. É estar fora da história.

2.2. Uma Cena Ritualizada


Tomemos, agora, a questão do agenciamento do sujeito pela
enunciação. Consideraremos aqui as distinções entre falante/ou-
vinte; locutor/alocutário; enuncador/destinatário, tal como apre-
sentei antes39.
Os falantes aqui são aqueles que rezam em alguma língua uma
das versões deste texto. Seus ouvintes são o conjunto da mesma
comunidade que ouve estes falantes rezando. No caso da oração
em voz baixa, em silêncio, o falante e o ouvinte são a mesma pes-
soa. E uma coisa importante, como já assinalamos antes, é que a
diferença da língua não interessa aqui. Assim este acontecimento
de rezar se significa enquanto neutro relativamente ao espaço de
enunciação. Ou seja, a questão da língua se apresenta como irre-
levante, tal como a história e o tempo.
No momento em que um falante assume um lugar de Locutor e
diz “creio” em resposta a uma das perguntas no batismo, ou recita
o credo, representa-se um lugar social de locutor que se apre-
senta como aquele que se responsabiliza pelo que aí se diz. Ao
apresentar-se como responsável por este dizer, tal Locutor realiza
o ato de afirmar a sua crença. Ao fazer isso. Ele se responsabiliza
pela afirmação que faz enquanto fonte da enunciação (enquanto

39 Esta minha maneira de tratar a questão hoje tem na sua história as posições
de Ducrot (1984) e trabalhos anteriores como Orlandi e Guimarães (1988),
Guimarães (1987, 1989, 1995).
105
L). E, ao se responsabilizar pela afirmação, se responsabiliza pela
verdade da crença a partir do lugar social de locutor (enquanto um
locutor-fiel). Dar-se como origem deste engajamento é ser agen-
ciado pelo lugar do fiel numa comunidade de fé (a Igreja).
Quanto ao lugar social do dizer, podemos ver neste acontecimento
dois aspectos: de um lado podemos ver aí, tal como já caracterizamos
acima, a Igreja que, através de certas pessoas, construiu esta oração
e faz dela traduções e paráfrases dadas como igualmente válidas. Ou
seja, o locutor-fiel fala enquanto agenciado pelo lugar da Igreja. E
esta por sua vez fala em nome de Deus. Assim o locutor-x (fiel) desta
oração, como de resto de outras (lembrar a breve análise que fizemos
sobre o Pai-nosso e a Ave-Maria e a descrição que apresentamos há
pouco em (6) e (7)) enuncia um dizer da Igreja enquanto dizer de
um locutor-deus. Consideramos, então que há dois níveis na repre-
sentação dos lugares sociais de onde se fala. Num primeiro nível,
o locutor-fiel fala do lugar da Igreja, ou seja, da comunidade dos
cristãos (a afirmação da crença é um ato de “comunhão” dos cristãos
entre si, feito da perspectiva dos cristãos, no caso, católicos). Assim
o locutor-fiel fala da perspectiva de um enunciador coletivo. É sig-
nificativo lembrar aqui que, no batismo, a formulação daquilo em
que se deve crer é feita por um cristão, por alguém, portanto, que
representa a Igreja. Num segundo nível, o locutor-fiel fala do lugar
da Igreja como se falasse do lugar de Deus, a própria oração é uma
versão de texto apresentada pela Bíblia, segundo a Igreja, revelada
por Deus aos homens. Por outro lado O locutor-deus e o locutor-
-igreja têm como alocutários o conjunto de fiéis. Assim o alocutário
de Deus e da Igreja é o locutor da oração que toma Deus, ou algum
seu representante, como alocutário.
Pela consideração do modo de representação do sujeito da
enunciação no credo, podemos dizer que o locutor se engaja na
crença pela repetição de uma fórmula (ritualização das orações), e
de tal modo que o cristão se representa, enquanto locutor-x (fiel),
como quem crê, e se representa como fonte de expressão dessa
crença, enquanto L. Mas como ele enuncia o que é uma enuncia-
ção de Deus, o fiel fala de um lugar que representa como seu, mas
é o da Igreja como se fosse o de Deus.
Pelo dizer da Igreja, Deus nos diz o que lhe devemos dizer
como locutores. Vemos, então, que, enunciativamente, esta ora-
ção, e seguramente as outras (lembremo-nos que pela narrativa
106
bíblica cristã o Pai-nosso foi ensinado por Jesus Cristo), é uma
enunciação circular: dizemos a Deus aquilo que ele nos disse para
dizer a ele. Temos a ilusão de que a origem da manifestação de
nossa crença somos nós, quando, no máximo, podemos dizer que
nos engajamos, enquanto locutor-x (fiel) nesta crença. E mesmo
assim instalados pela voz da Igreja que se dá como a voz de Deus.
O fiel é agenciado a enunciar como fiel.
Tal como vimos no caso do Pai-nosso e da Ave-Maria, também
para o Credo vemos que se trata de uma relação direta do fiel com
Deus (ele fala a Deus o que Deus lhe disse para falar a ele), a
enunciação é representada como não afetada pela história huma-
na. Vê-se, mais uma vez, que a enunciação ritualizada da oração
significa-se como fora do acontecimento (do tempo, da história).
Deste modo o ritual de rezar, dizer um texto ritualizado, que
se representa como o dizer de um enunciador universal, é efetiva-
mente um dizer de um enunciador coletivo, tal como já indicamos
um pouco acima.

2.3. Um Engajamento Encomendado


Para pensar a questão da performatividade do credo (o engaja-
mento da pessoa como cristão), consideremos que um dos aconte-
cimentos em que ele se apresenta ritualmente é o do Batismo. De
certo modo, para os católicos, rezar o Credo em qualquer outro
acontecimento futuro do fiel é sempre refazer o compromisso no
qual se engajou pelo batismo. O Batismo é dado somente àquele
que diz, na forma do ritual, Eu Creio em X. Assumido este engaja-
mento, alguém é batizado e assim passa a fazer parte da comunida-
de dos cristãos, dos fiéis. A comunidade daqueles que crêem em X.
A performatividade do Credo, o engajamento na crença em
Deus, etc é primeiro o engajamento de um locutor-pessoa que é
condição para um segundo engajamento, o do batismo, que é o
performativo que transforma alguém em cristão. Por outro lado, e
depois, numa história pessoal particular, o engajamento da enun-
ciação do Credo é o engajamento de um locutor-fiel na comuni-
dade dos cristãos. A performatividade do credo apresenta, portan-
to, dois engajamentos: o engajamento na verdade da afirmação
da crença e o engajamento do locutor-x com todos os que têm
a mesma crença. Isto se dá de tal forma que o locutor-x (aquele
que se representou como tendo tal crença) se torna apto a receber
107
o batismo, e assim se torna apto a se incluir na comunidade dos
cristãos. Ou, considerando as outras situações, derivadas desta
primeira, em que se reza o credo, o locutor-x (fiel) se representa
“junto com os cristãos” toda vez que reza o credo. Rezar o credo
é assim representar-se enquanto pessoa cristã.
Seria interessante registrar, também, que no batismo de uma
criança (que é a situação de batismo mais comum atualmente na
Igreja católica), há, além do locutor-Igreja, um segundo locutor-x,
aquele que responde as perguntas no lugar da criança (o padrinho).
Este locutor, ao dizer “creio”, representa um L, que se responsabi-
liza pela verdade da afirmação da crença expressa, e um locutor-x
que se engaja nesta crença como pessoa (o locutor-x é, no caso, a
criança). Vê-se, então, que a duplicidade da figura enunciativa do
locutor-x possibilita, enunciativamente, que o padrinho responda
(aqui num sentido forte desta palavra) pela criança.
A análise da performatividade do credo nos leva a considerar que
a figura do locutor-x não pode ser vista simplesmente como “o ser
que se refere a si mesmo”. Representar-se com locutor-x nesta enun-
ciação, é representar-se como pessoa no mundo, enquanto ser social,
e não enquanto objeto. Ou seja, como já dissemos, é representar-se
como “quem pode ser batizado”, e quer incluir-se numa comunidade
específica, ou é representar-se como alguém desta comunidade que
como todos, representa-se como continuando digno do batismo que
recebeu. Estas representações, por serem ritualizadas, são cumpridas,
são vividas, mas não são, necessariamente, conscientes. Elas nos são
dadas pela análise da enunciação e não a partir de uma observação do
que está representado psicologicamente nas pessoas.
Resta lembrar que o alocutário deste engajamento é no batis-
mo quem realiza a cerimônia do batismo e pergunta, àquele que
está se batizando, se ele crê em deus Pai, em Cristo, no Espírito
Santo, etc. E seu lugar de alocutário deve também ser visto, como
um lugar social. Ele é um alocutário qualificado enquanto cristão.
E é esta qualificação do alocutário que dá à resposta do fiel (do
locutor-x) a força do engajamento na comunidade dos cristãos.

2.4. Um Verbo que É Nome


Tomemos, enfim, o recorte da constituição da designação do
nome deste texto. A primeira coisa a se observar é que o nome
desta oração é uma palavra latina, um verbo latino na primeira
108
pessoa do singular do indicativo presente. Assim se tem a questão
do espaço de enunciação. Colocam-se dois aspectos: de um lado o
fato de que a enunciação hoje é, no Brasil, em Português; de outro
traz o sentido de que o espaço de enunciação da Igreja inclui o
latim, hoje de um modo e antes de outro. Estes aspectos signifi-
cam algo que a cena enunciativa como que desconhece (e sobre
isso falamos na análise do funcionamento da enunciação de uma
“oração” e na análise do recorte das versões do credo em 2.1):
rezar, enunciar um oração num rito religioso é um acontecimento
de uma prática histórica humana.
De outro lado, e já o indicamos antes, temos que considerar
que a oração se apresenta como podendo ser em qualquer língua.
Tem-se um texto que se apresenta como desvinculado da língua
em que é produzido, como se não estivesse num espaço de enun-
ciação. No entanto podemos ver, no próprio processo de nomea-
ção a representação do espaço de enunciação da Igreja, como um
espaço que inclui o latim. E que hoje este espaço não é o mesmo
que na Idade Média, nem em meados do século XX, quando o
principal rito da Igreja, a missa, era em Latim.
Um segundo aspecto relativo a este nome, e já indicado aci-
ma, é que ele, “Credo”, se faz pela transformação de uma enun-
ciação em primeira pessoa (eu creio) em nome, já que credo é a
primeira pessoa do indicativo presente do verbo credo, credere
em latim. Deste modo a sequência eu creio em X, que é uma
relação de predicação específica e enuncia uma performativida-
de, é uma enunciação que não simplesmente informa a crença,
mas engaja-se nesta crença (este aspecto foi motivo da análise
do recorte analisado no item anterior). No que interessa aqui,
podemos dizer que o nome “Credo” significa “é o nome da ora-
ção em que se diz eu creio”. Nesta medida, o nome da oração é
produzido a partir do funcionamento da forma performativa que
se repete no próprio texto. Temos então um nome formado de-
locutivamente40 . E que nesta medida coloca como aspecto fun-
damental da oração o modo como se preenche o complemento
40 Para Benveniste (1966 [1988], p. 306), um verbo é delocutivo quando
são “derivados de locuções”. Diferentemente do que ele chama verbo “deno-
minativos”, derivados de nomes e “deverbativos” derivados de verbos. Este
conceito de delocutivo tem sido ampliada e aplicada à consideração de outras
categorias, tal como faço aqui.
109
deste predicado. Ou seja, o que se enuncia como X em eu creio
que X. E isto nos leva ao próximo aspecto desta análise.

2.5. As Enumerações da Crença


O nome “Credo” significa: Esta oração é aquela em que digo
eu creio. Ele traz um sentido absoluto para esta crença. Crê-se. E
a próprio “origem” da oração completa seu sentido. Sentido, de
resto, desenvolvido pela própria oração, que é claramente uma
enumeração: eu creio em x1, eu creio em x2, eu creio em x3, que
pode ser parafraseada por Eu creio em x1, x2, x3. E esta ambi-
güidade no modo de enumerar aparece nas próprias versões da
oração, como podemos ver em (8), (9) e (10).
Vemos aqui, nas diversas versões da oração, uma reescritura-
ção por repetição da fórmula performativa “eu creio em...”. Tomo
aqui a versão (10), para uma análise mais específica desta enu-
meração:
(10) Creio em Deus pai todo-poderoso, criador do céu e da
terra; (b) Creio em Jesus Cristo seu único filho, nosso senhor,
que foi concebido Pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Vir-
gem Maria, padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos; (c) Creio
no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na Comunhão dos
Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na
vida eterna, Amém.
O que encontramos é uma enumeração formada por três enuncia-
dos e marcada, cada uma pela repetição de “eu creio em...”. Temos
assim uma enumeração de três elementos. Por outro lado, podemos
considerar que o que faz a diferença na enumeração é o complemen-
to da forma performativa. Podemos então considerar no caso uma
enumeração dos complementos: o que é x1, x2 e x3: Deus pai, Jesus
Cristo e o Espírito Santo, a Igreja Católica a Comunhão dos Santos,
a remissão dos pecados, a ressurreição da carne, na vida eterna. No
entanto não se pode deixar de considerar que a terceira repetição do
“eu creio em...” traz uma enumeração de complementos, diferente-
mente da enumeração inicial (as duas primeiras), que enumera um
complemento por vez. Este modo de enumerar nos coloca, em ver-
dade diante de uma enumeração de três elementos, três enunciados,
tal como dissemos acima, mas traz uma dessimetria: o terceiro ele-
mento da enumeração é constituído por uma outra enumeração. E o
que vemos neste jogo de enumerações dentro de enumerações? De
110
uma lado a enumeração da crença em Deus Pai e em Jesus Cristo, os
dois primeiros elementos enumerados; depois a enumeração da cren-
ça em um conjunto de objetos “o Espírito Santo, a Igreja Católica a
Comunhão dos Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da
carne, na vida eterna”. Deste modo há uma divisão da trindade de
Deus. De um lado o pai e o filho, e de outro o espírito santo junto
com outros objetos de crença relativos não à trindade de Deus, mas
à Igreja e à comunidade dos cristãos e o caminho de sua salvação.
Deste modo, a maneira como se dá a enumeração traz um desli-
zamento que vai da crença em Deus (pai, filho, espírito Santo) e na
Igreja e na salvação pela fé, para uma crença que tem de um lado
pai e filho e de outro Espírito Santo, Igreja, etc. O que dá uma forma
histórica particular (um passado rememorado específico) para a sig-
nificação da trindade de Deus. Esta enunciação do Credo significa
uma proeminência do pai e do filho em detrimento do espírito santo.
Para acompanhar um pouco mais este aspecto, observemos
que no interior de cada enumeração encontramos reescriturações
por expansão interessantes:
No primeiro elemento da enumeração vemos que “Deus pai” é
reescrito por duas expansões: “todo-poderoso” e “criador do céu
e da terra”;
No segundo elemento ele é reescrito, também por expansão:
“Jesus Cristo” é reescrito por “seu único filho, “nosso senhor”, e
por “que foi concebido pelo poder do Espírito Santo”;
No terceiro elemento da enumeração, “Espírito Santo” não
tem nenhuma reescrituração deste tipo.
Mais uma vez se vê o caráter de proeminência das duas pri-
meiras pessoas da trindade de Deus em detrimento da terceira, o
Espírito Santo, nesta versão do Credo. A oração significada como
uma enunciação universal e a-temporal significa segundo o acon-
tecimento enunciativo em que ocorre.

Conclusão

O “Credo” enquanto oração se apresenta como um texto de


caráter universal para a comunidade dos cristãos católicos, não
afetado pelas versões, as mais diversas, que as enunciações da
Igreja produziram no decorrer da história. Isto mostra, no entanto,
111
o caráter político e histórico das enunciações da Igreja, mesmo
que elas se apresentem como atemporais e fora da história. Isto
está fortemente ligado com o caráter ritualizado do que é um texto
como este, uma oração. Nesta cena ritualizada o locutor-fiel fala
a deus, como seu, um texto cuja história de enunciações traz a
enunciação do locutor-igreja que fala em nome de um locutor-
-deus que diz ao fiel o que dizer a ele Deus. É nesta medida que o
fiel é agenciado como fiel, como membro de uma coletividade, de
cuja perspectiva ele fala enquanto enunciador-coletivo.
Nesta cena constitui-se uma performatividade, o engajamento
do fiel enquanto fiel pela manifestação da crença que representa
o fiel enquanto cristão. Este movimento do engajamento resigni-
fica, inclusive pela derivação delocutiva que constituiu o nome
da oração (como vimos, credo é um nome constituído pela pri-
meira pessoa do verbo latino, credo, credere). E esta afirmação de
crença que o próprio nome significa se constitui de uma maneira
particular enquanto uma enumeração de complementos dos pre-
dicados dos enunciados do texto. E esta enumeração se constitui
de tal modo que instala uma diferença, mais uma vez o sentido da
história, de um lado pai e filho, de outro o espírito santo, a igreja,
a salvação.

112
OS SENTIDOS DE UMA CANÇÃO
DE BANDEIRA

C
omo última análise, vou me dedicar, neste capítulo, à inter-
pretação de um texto literário. Escolhi para isto o poema
de Manuel Bandeira “Última Canção do Beco”. Como não
vou analisar este texto a partir do lugar do crítico literário, procurei
evitar a relação com a fortuna crítica sobre Bandeira. Deste modo
escolhi um poema que não tem tido a atenção dos críticos. Por outro
lado me interessou o fato de ele se incluir numa série constituída
pelos poemas: Poema do Beco; Primeira Canção do Beco; Segunda
Canção do Beco; Última Canção do Beco41.
Exatamente porque não estou na posição do crítico, não vou
me ocupar da série, mesmo que esta inclusão na série seja defini-
dora para minha escolha, e mesmo que minha análise possa servir
aos críticos e aos interessados em Manuel Bandeira.
De acordo com o procedimento aqui adotado, vamos produzir
os recortes no texto considerando aspectos proeminentes, segundo
meu lugar de análise. Tomarei assim os seguintes recortes: as reescri-
turações da palavra “beco”; a constituição da cena enunciativa; a de-
signação de “Beco”; e aspectos da construção dos versos e estrofes.

1. Os Sentidos de Beco
A palavra “Beco”, além de já aparecer no título do poema,
ocorre várias vezes no texto, reescriturada por repetição. “Beco”
é a primeira palavra do poema, reescriturada em seguida:
41 Para chegar a esta escolha me vali das indicações de Raquel Beatriz Gui-
marães que, dados os meus interesses me fez a sugestão de analisar este texto
por ele participar dessa série.
113
a) no início do 3o. verso da 1a. estrofe;
b) no início da 3a. estrofe;
c) no início da 4a. estrofe;
d) no início da 7a. estrofe.
Beco é também reescriturado por elipse
a) na primeira estrofe: no 4o. verso; no 5o. verso; no 6o. verso;
b) na terceira estrofe: no segundo verso.
Beco é ainda reescriturado:
a) pelo pronome oblíquo (complemento) ti, no 2o. verso da
4a. estrofe;
b) pela forma verbal de 2a. pessoa do verbo no 3o. verso da
4a. estrofe;
c) pela forma verbal de 2a. pessoa do verbo no 6o. verso da
4a. estrofe;
d) pelo dêitico aqui no 7o. verso da 4a. estrofe;
e) pela forma de 2a. pessoa do verbo no 3o. verso da 7a. estrofe;
f) pelo pronome te no 5o. verso da 7a. estrofe;
g) pelo pronome te no 6o. verso da 7a. estrofe.
Esta reescrituração passa de um processo de referência (3a.
pessoa) para um processo de interlocução, em que o referido tor-
na-se interlocutor, por uma animização (antropormofização) do
espaço.
Esta passagem é mediada por um passo em que Beco é reescri-
turado por elipse, que aparece de modo significativo no verso sete
(“Adeus para nunca mais!”). Nesse ponto a elipse significa um
vocativo “Beco”. Assim o Beco a que se fala é uma lembrança.
Lembrança de várias coisas.
Deste modo a passagem do Beco de referido a interlocutor pre-
sentifica esta lembrança, estas lembranças.
Na reescrituração de Beco, devemos também considerar um
outro aspecto. Além de Beco há mais duas referências a ele liga-
das: a) esta casa e b) Lapa – Lapa do Desterro.
Em a, a referência está no predicado vão demolir esta casa. Ou
seja, Alguém (agente indeterminado, não referido, não conhecido)
demolirá esta casa, uma referência singular definida. Aí vemos que
esta casa liga-se a uma outra referência também singular definida,
mas agora com uma marca da 1a. pessoa: meu quarto. Assim esta
casa tem o meu (do poeta) quarto e sendo a casa demolida ele per-
manecerá: “meu quarto vai ficar”. E este vai ficar é reescriturado
114
logo a seguir por repetição num predicado expandido por uma cir-
cunstância: “vai ficar na eternidade”. Assim vai ficar na memória
do poema, tal como o Beco que é rememorado por elipses.
Em b, temos algo semelhante. Ligado a Beco, vem Lapa. E o
que é a Lapa? Primeiro, já na sua nomeação ela aparece reescrita
por um aposto com um caracterizador: Lapa do Desterro. E de-
pois Lapa é caracterizada por uma relativa que tanto pecais (sen-
tido pressuposto) no verso que reescreve o anterior (Lapa – Lapa
do Desterro). Ao mesmo tempo o poeta nos leva ao lado oposto
disto por uma articulação argumentativa:
[[Lapa que tanto pecais ---) r]
mas [...que graças angelicais ---) ~r]] ---) ~r
E a conclusão ~r não anula exatamente a conclusão r, convive
polifonicamente com ela. E o que é r e ~r? Um é o oposto do ou-
tro e isso é suficiente, para o sentido do poema. “Lapa que tanto
pecais” dá um sentido à Lapa, oposto ao sentido que lhe da “...que
graças angelicais”.
Assim podemos dizer que Beco tem duas reescriturações por
substituição em direções opostas:
a) é reescrito por esta casa e meu quarto, por especificação
(particularização);
b) é reescrito por Lapa por generalização (ampliação),
Cada um destes elementos reescreve os outros em duas dire-
ções. Podemos assim dizer que num dos sentidos ( ┤lê-se deter-
mina):
a) quarto ┤casa ┤beco ┤lapa
no outro sentido o que se tem é
b) lapa ┤beco ┤ casa ┤ quarto
Vemos assim, de um lado, uma passagem do íntimo ao social
e, de outro, a passagem do social ao íntimo. Em outras palavras:
Em (a) o meu lugar (do poeta) dá sentido a Lapa. Em (b) a
Lapa dá sentido ao lugar do poeta (meu lugar).

2. O Beco a Quem se Fala

Consideremos as relações de intercurso enunciativo do poema. Se


ele pode ser tomado como uma enunciação entre um locutor-poeta
e seus leitores, o andamento do texto nos coloca uma outra relação:
115
Isto coloca uma outra questão, a do recorte da relação

{
Locutor Alocutário
| |
Poeta Beco

Isto aparece, tal como indicado na análise do primeiro recorte,


já no último verso da primeira estrofe:
“- Adeus para nunca mais.”
Verso que é reescriturado no último verso (sétimo) da séti-
ma estrofe (último verso do poema). Ou seja, o poema começa
por uma referência (Beco) e termina pela relação interlocutiva
Poeta — Beco. Assim o texto traz um movimento que se fecha
sobre si mesmo: aquilo a que se refere é a quem se fala. E o
poema termina como a dizer: aquele de quem falo [a quem
refiro] (beco) é aquele a quem eu falo (Beco).
E aqui toma particular relevo o fato de que, no processo de
reescrituração analisado na seção anterior, a reescrituração de
Beco por elipse significa a memória, a lembrança do poeta e dá
sentido ao que poderia ser simplesmente um referente. O pró-
prio processo de reescrituração marca a ausência – presença de
algo (a casa, o quarto, o Beco) que é assim um interlocutor do
poeta.

3. O que Beco Designa

A consideração deste aspecto envolve, pelo que acabamos de


dizer, dois movimentos necessários: a caracterização do referido
– beco; a caracterização do destinatário (interlocutor) – Beco.

3.1. A caracterização do referido: o que beco designa?


A) Enquanto referido por “beco”, o Beco recebe caracteriza-
ções diversas (por articulações muito particulares), numa forma
que repete a estrutura Beco de x:
a) “das minhas tristezas”;
b) “dos meus amores”;
c) “dos meus beijos”;
d) “dos meus sonhos”.
116
todas na primeira estrofe, e, na terceira e quarta estrofes:
e) “de sarças de fogo”;
f) “de paixões sem amanhã”;
g) “das minhas tristezas’ (que repete (a)).

B. Enquanto vocativo do destinatário do poeta, “Beco” apare-


ce predicado, numa articulação do tipo Ø [V SN], em que o que
está entre colchetes é um predicado do enunciado, e “beco” está
elíptico. Vejamos:
a) “foste rua de mulheres (verso 24);
b) Dantes foram carmelitas” (verso 26);
c) “eras só de pobres” (verso 27);
d) “és como a vida” (verso 45).
“Beco” aparece também especificado por uma incisa relativa em
e) “...que nasceste à sombra (verso 43)
de paredes conventuais” (verso 44).
Em A, a caracterização do “Beco” é pelos estados de espíri-
to do poeta, na primeira estrofe e depois passa a uma descrição
mais geral do Beco como lugar (espaço) de intensidade e paixão
(fogo).
Em B, vê-se o “Beco” afetado por predicados que dizem res-
peito a uma caracterização de sua população que, na história, vai
da religião ao pecado, passando por e incluindo a pobreza.
Assim, quando o Beco é o referido, as características são “afe-
tivas”, quando o Beco é o interlocutor, suas características são
objetivas, sociais.
Mais uma vez uma convivência de opostos de toda ordem. As
coisas são tomadas como objetivas, mas contraditoriamente sig-
nificadas pela relação com o sujeito e vice-versa.

4. A Construção dos Versos

Como estamos analisando um poema podemos olhar também


para o modo como são nele construídos os versos e estrofes. Ob-
servamos que é um poema que produz certas simetrias:
a) o poema tem 7 estrofes;
b) cada estrofe tem 7 versos;
c) cada verso tem 7 sílabas;
117
Esta construção tem a ver com a forma popular da redondilha,
historicamente própria da quadra. Este verso nos dá o sentido do
íntimo, do não formal.
Mas esta regularidade não forma quadras (as estrofes têm sete
versos), e nem obedece uma rima própria da quadra “clássica”:
abba. A estrutura das rimas fica entre a dos versos brancos e dos
versos com rima: só há rima em dois versos por estrofe. O se-
gundo e o sétimo verso sempre rimam em todas as estrofes. E a
estrutura geral da rima poderia ser assim representada:

ESTROFE TIPO DE RIMA

Primeira a
a

Segunda b
b

Terceira c
c

Quarta d
d

Quinta a
a

Sexta b
b

Sétima a
a

Uma primeira observação parece indicar que não há aí nenhu-


ma regularidade. Uma observação mais detida, no entanto, nos
faz ver o contrário. Tomemos os tipos de rima por estrofe e com-
paremos a partir dos extremos:
a) na primeira e na sétima estrofe a rima é aa;
b) na segunda e na sexta a rima é bb.
118
No centro do poema encontramos uma outra regularidade:
c) na terceira e na quarta estrofe as rimas são, respectivamente
cc – dd.
Deste modo a 5a. estrofe quebra o que seria uma regularidade
espelhada: aa bb cc dd bb aa. E o que esta irregularidade nos
mostra? A quinta estrofe é a estrofe de apresentação da Lapa que,
como vimos no primeiro recorte, é algo importante no poema.
Assim a irregularidade da quinta estrofe significa a Lapa e marca
a Lapa como algo específico para o sentido do Beco, tal como
identificáramos pela análise das reescriturações em 1.
Assim a estrutura (irregular) da rima, opostamente às 7 sílabas,
7 versos, 7 estrofes, nos leva à Lapa, ao fora, ao social.
Um outro aspecto interessante a registrar é que a rima é sempre
rica, mais uma oposição ao “popular”, íntimo, da rendondilha.
Um outro aspecto ainda a ver na rima: sua estrutura separa e
mistura a referência ao Beco e a interlocução com o Beco que
vimos em 1. e tal como se vê no quadro abaixo.

1a e 7a. a referência
a interlocução

2a. e 6a. b referência


b referência

3a. c referência
c referência

4a. d interlocução
d interlocução

5a. a referência
a referência

E neste caso é interessante notar como esta mistura obedece,


em certo sentido uma regularidade: a de referir ao Beco e falar ao
Beco. Podemos notar isso se apresentamos o quadro acima como
segue (na primeira coluna indicamos a estrofe, na segunda a rima
aí presente, na terceira a indicação de que ora o poema faz refe-
rência ao beco ora o poeta fala ao Beco):
119
Primeira estrofe A Referência
A Interlocução

Segunda estrofe B Referência


B Referência

Terceira estrofe C Referência


C Referência

Quarta estrofe D Interlocução


D Interlocução

Quinta estrofe A Referência


A Referência

Sexta estrofe B Referência


B Referência

Sétima estrofe A Referência


A Interlocução

Observa-se que há estrofes em que os versos que rimam


misturam a referência e a interlocução, primeira e sétima, e
outras que trazem somente a referência (segunda, terceira,
quinta e sexta). Vê-se, então que é exatamente a estrofe do
meio do poema, antes dela há três estrofes e depois também
três, cujos versos que rimam significam ambos à interlocução
com o Beco. Em outras palavras, esta interlocução, identifica-
da de modo particular pela rima, é fundamental, está na estrofe
central do poema. É em torno dela que o poema está construí-
do. E o modo de esta interlocução se representar por estes dois
versos da quarta estrofe tem, além de tudo, uma característica
muito particular: o Beco aparece referido por “ti” (segundo
verso), o TU da interlocução do poeta; ao mesmo tempo, o EU
do poeta aparece marcado por um “aqui” que, nessa medida,
marca também o lugar do poeta para os leitores do poema, na
medida mesmo em que o Eu do poeta se marca relativamente
ao “ti”, mas dele se desloca exatamente porque é tomado como
um lugar ao qual se refere.
120
Um outro aspecto que a consideração da rima sugere, é a re-
petição da palavra Beco. Vamos marcar com B as estrofes com a
palavra e com X as estrofes sem a palavra. Teríamos:

1a. – B
2a. – X
3a. – B
4a. – B
5a. – X
6a. – X
7a. – B

O que vemos é uma regularidade parecida com a das rimas,


com um ponto de irregularidade. Mas esta irregularidade é relati-
vamente à simetria. Veja que temos nos extremos, 1a. e 7a. estrofe
: B. Na terceira e na quarta B, na quinta e na sexta X. Isto isola
a segunda estrofe. E o que ela nos traz? A casa e o quarto. Que
como vimos é outro ponto fundamental na reescrituração de Beco
e em sua caracterização.
Ou seja, de um lado a dissimetria da rima traz a Lapa, de outro
a dissimetria da repetição de Beco traz a casa e o quarto. Mais
uma vez o social e o íntimo.
Mais extraordinário é que se observarmos por outro ângulo
a dissimetria teríamos: na primeira e sétima B, na segunda e na
sexta X, na terceira e na quarta B. Isto isola a quinta estrofe, já
isolada, como vimos por uma dissimetria das rimas, e colocaria
diretamente em correlação a quinta e a segunda estrofe: de um
lado a Lapa, de outro a casa e o quarto.

1a. – B
2a. – X
3a. – B
4a. – B
5a. – X
6a. – X
7a. – B

Pelo percurso feito vemos como os aspectos tomados para


análise (os recortes) vão se projetando uns sobre os outros e traba-
121
lhando a relação dos sentidos do íntimo e do fora. E nos apresenta
um texto cuja edificação é fortemente estruturada e ao mesmo
tempo quebrada. E é esta relação entre o modelo e sua quebra que
nos dá a força dos sentidos do poema.

Conclusão

A análise dos recortes nos mostra um poema construído com


grande rigor, e ao mesmo tempo com movimento e distensão. Com
isso o poema significa esta relação indissociada entre o íntimo e o
social. No movimento de referência ao Beco o poema movimenta-
-se de uma referência em terceira pessoa, pela repetição da palavra
“beco”, para uma referência dêitica, que faz parte do movimento
do texto que coloca o poeta na sua interlocução com o Beco. E
nesta duplicidade do Beco enquanto referido, sobre o qual ele nos
fala, como leitores (alocutários), encontramos um Beco de pecados
e virtudes, um Beco cujo sentido é determinado pela Cidade, pela
Lapa, ou por seu quarto, sua vida pessoal. Assim estes dois hori-
zontes se fundem. E este movimento se adensa por outros aspectos
como: ao nos falar, o poeta nos caracteriza o Beco da vida íntima, e
ao falar ao Beco ele nos significa o Beco de todos os outros (pros-
titutas, carmelitas, pobres...). Acresce-se a isso que o poema, pela
organização de seus versos e rimas, nos leva à Lapa de um lado,
ampliando, ecoando assim o movimento entre o íntimo e o social, e
de outro chega-se ao Beco com o qual o poeta conversa, que é o seu
Beco e é o Beco dos outros. E neste ponto encontramos uma articu-
lação preciosa na marcação da interlocução do poeta com o Beco:
o Beco aparece referido por “ti”, o TU da interlocução do poeta, e
ao mesmo tempo o EU do poeta aparece marcado por um “aqui”,
que nessa medida marca o lugar do poeta, para os leitores do poe-
ma. E esta fusão fundamental do funcionamento da linguagem no
poema se dá, pela observação que fizemos, no centro do poema, na
quarta estrofe, entre as três primeiras e as três últimas. Esta estrofe
pode ser vista, nesta medida, como um dos pontos fundamentais da
irradiação das polissemias do poema, de suas concomitâncias, de
sua riqueza de sentidos.

122
Parte iv
O TEXTO NA ESCOLA

123
124
ESTUDANDO COM TEXTOS

C
omo o Homem é um ser de linguagem, ele desde sempre
ficou exposto à relação com textos. Com a escrita esta re-
lação tomou contornos muito específicos que produziram
um imaginário muito particular sobre a finitude do texto. Este ima-
ginário ganha ainda novos contornos com a invenção da imprensa
que levou à possibilidade de reprodução em larga escala. Hoje as
novas tecnologias dão, mais uma vez, outros contornos ao modo
de se representar o que seja um texto e de fazê-lo circular.
Diante desta nova cena histórica, a Escola tem um papel es-
pecífico na formação das pessoas tomadas como cidadãos de um
Estado-Nação. Levar em conta a relação com a Escola como uma
obrigação do Estado com seus cidadãos, produz necessariamente
o aumento da população escolar. E a Escola precisa enfrentar este
crescimento com critérios muito específicos de qualidade.
Embora não seja objetivo desta obra discutir estes aspectos,
não se pode deixar de levar em conta que pensar a Escola, nas
condições históricas atuais, leva à consideração destas condições.
Por outro lado, não estamos diante de uma condição que traga
consigo, por si mesma, uma concepção do que seja texto. Esta
concepção é constituída pelas posições do pensamento científico.
Quanto ao que nos interessa, nos capítulos anteriores procuramos
dar conta de uma concepção de texto e de um modo de analisá-lo,
de compreendê-lo.
Neste capítulo procuraremos apresentar algumas reflexões que
mostrem como, partindo de uma concepção como a aqui apresen-
tada, se pode, com grande proveito, produzir atividades capazes
de desenvolver nos alunos, em cada nível: a capacidade de com-

125
preender um texto, poder pensar sobre ele, poder falar sobre ele; e
a capacidade de produzir textos, os mais diversos, nas condições
as mais diversas.

1. O Enunciado e o Texto

Pela própria conceituação que fizemos a respeito do que seja


texto, temos que começar aqui por tomar como centro do que
vamos colocar a seguir que, segundo nossa posição, o texto é
uma unidade de sentido integrada por enunciados. Esta posição
coloca, de início, no centro da questão do ensino dois aspectos
fundamentais: 1) o funcionamento do enunciado; 2) o fato de que
o sentido dos enunciados são produzidos por sua relação de inte-
gração com o texto
Comecemos pelo primeiro aspecto. Um enunciado tem as ca-
racterísticas de possuir uma consistência interna e uma indepen-
dência relativa. Vejamos o que são estas duas características que
se apresentam como inseparáveis. Quanto à primeira, a de que um
enunciado se caracteriza por apresentar uma consistência interna,
ela nos coloca diante do que podemos considerar as sistematici-
dades próprias do enunciado. Trata-se de aspectos como a relação
gramatical entre sujeito e predicado, as relações de determina-
ção do sintagma nominal, os modos de desenvolver no enunciado
funcionamentos apositivos, as relações entre enunciados através
dos procedimentos conhecidos como coordenação e subordina-
ção sintática, etc.
O que isto indica é que se faz necessário ensinar a observar e
saber levar em conta estas sistematicidades. Isto inclui ensinar
o que conhecemos como o funcionamento gramatical (fonológi-
co, morfológico, sintático) junto ao funcionamento semântico, da
produção do sentido. Ademais, o chamado funcionamento grama-
tical é inseparável da produção do sentido.
Quanto ao segundo aspecto, temos que levar em conta que
um enunciado significa na sua relação com o texto e os demais
enunciados do texto. Ele tem uma independência relativa. Assim
é preciso tratar de mostrar aos alunos todas as questões relativas
a estas conexões próprias da textualidade, que nada mais são do
que marcas da integração dos enunciados no texto. Ou seja, há
126
elementos do texto que mostram como se dá a articulação dos
enunciados com o texto. E isto é decisivo para se poder interpre-
tar e compreender o que diz um texto.
A questão, do ponto de vista do ensino, é como, diante do que
acabamos de colocar, podemos considerar novos modos de ensi-
nar como ler, escrever, falar em situações públicas, etc.

2. O Aspecto a ser Posto no Centro

Por tudo que desenvolvemos no decorrer desta obra, torna-se


decisivo, quanto ao ensino considerar que questão central, para
o ensino da compreensão e produção de texto, não é a da corre-
ção lingüística, o que não quer dizer que os aspectos conhecidos
como gramaticais não tenham interesse. Ou seja, o principal a
se observar no texto não é se ele é correto, segundo um padrão
lingüístico normatizado. Trata-se de considerar como ele faz sen-
tido. E neste particular a questão da língua estará concernida, mas
não pela observação da qualidade da correção, pautada por uma
homogeneidade da língua, de resto inexistente. Mesmo que seja
necessário, em certas circunstâncias, levar em conta a chamada
qualidade da correção.
É por esta perspectiva que não se deve também considerar
como central a questão dos gêneros textuais. Isto seria colocar o
problemática do texto a partir do plano do ensino normativo do
texto e não do seu funcionamento. Os gêneros aparecem como
modos corretos de escrever em certas condições, mesmo que o
termo usado seja adequação, ou outro assemelhado. O ensino
que toma como central a questão dos gêneros é um ensino que
se configura como do mesmo tipo que aquele ligado ao ensino da
gramática normativa, que ensino um padrão específico de lingua-
gem. Trata-se de uma gramática ou de modelos autorizados que
se apresentam como dizendo o que deve ser feito. O que não quer
dizer que, tal como para a chamada correção gramatical, não haja,
em certas circunstâncias de ensino instrumental, lugar para o que
se tem chamado de gêneros textuais.
Posto este aspecto central, consideremos, antes de chegar ao
principal, como se deve considerar a questão da língua. A rela-
ção com a língua deve ser pensada de outro modo. Os textos são
127
construídos nos espaços de enunciação, tal como definimos na
primeira parte deste livro. Consideremos, levando isto em conta,
a questão da escrita. Escrever um texto é ser tomado por um certo
espaço de enunciação. Neste sentido um texto trará “as línguas”
que o espaço de enunciação mobilizar. Se consideramos um texto
como “A Proclamação da República”, analisado no capítulo 3,
podemos considerar que ele se dá na língua do Estado (a língua
portuguesa) enquanto tomada como única. Já para um texto como
“Os Músculos Brasileiros de Richard Branson”, analisado no ca-
pítulo 6, a questão se coloca de modo diferente.
A relação que interessa observar é a relação entre língua e
enunciação que aparece nas enunciações específicas de textos
particulares. Deste modo, devemos levar em conta os modos de
circulação dos textos próprias dos acontecimentos específicos de
enunciação, nos quais se diz (se escreve, se fala) um texto.
Por outro lado, como consideramos que um texto não é um
todo acabado, nem significa por sua linearidade, podemos pen-
sar em relacionar os procedimentos de análise e ensino do texto
a partir dos recortes de interpretação (tal como apresentados na
primeira parte do livro e nas diversas análises da segunda parte).

3. Apresentação de um Procedimento

Para considerarmos um percurso interessante para o ensino do


texto, baseado no que fizemos antes, vamos apresentar um conjunto
de indicações que faremos a partir de um dos textos aqui analisa-
dos, “A Proclamação da República”, cuja análise está no capítulo 3.
Assim podemos pensar em articular a questão da interpretação e do
ensino da escrita de textos com outras disciplinas como a História.
O próprio modo como apresento a questão aqui mostra um aspecto
importante para mim, o texto não pode aparecer como sendo algo
específico da disciplina língua portuguesa, ou qualquer que seja o
nome dado a ela. A questão do texto é para todas as disciplinas esco-
lares e tem que projetar o fato de que é uma questão relativa ao modo
de estar em sociedade hoje. Há textos para tudo, em todo lugar...
Para facilitar, vou apresentar o procedimento através de um
conjunto de movimentos e passos, ou atividades a serem realiza-
dos numa certa ordem.
128
Antes de indicar estes movimentos e passos, precisamos con-
siderar que o professor pode se colocar em uma das seguintes si-
tuações: a) o professor vai fazer a análise do texto; b) o professor
vai levar os alunos a fazer a análise do texto. Evidentemente que
a posição (b) só será utilizada depois que, uma vez pelo menos, o
professor tenha feito o indicado na posição (a).

3.1. Movimento 1 – O Professor analisa um texto


Comecemos pela posição (a). O professor diz ao grupo que
escolheu um texto interessante para analisar que vai fazê-lo passo
a passo, de modo que todos possam acompanhar e possam depois
fazer isso sozinhos.

3.1.1. Passo 1 – o Contato com o texto


O primeiro passo será sempre, obviamente, a apresentação
do texto para os alunos, pedindo o que o leiam com atenção e
cuidado. Como parte deste passo, o professor pode pedir que os
alunos façam uma pesquisa sobre a Proclamação da República
no Brasil (esta pesquisa pode variar de nível de exigência segun-
do a série da turma a que o texto for apresentado). Este aspecto
tem importância, pois terá desdobramentos no próprio processo
de interpretação e compreensão do texto e poderá ajudar a que se
faça uma interessante discussão a partir da melhor compreensão
do texto. Esta atividade de pesquisa pode ser ou não combinada
com um professor de história. Este passo é importante no sentido
de que ele deve mostrar que ler um texto envolve o interesse por
outros textos que podem ajudar a melhor compreendê-lo. Assim
a análise de um texto não pode se reduzir só ao momento da aula.
No caso deste primeiro passo, pode-se, inclusive, anunciar que
numa aula seguinte se vai analisar um texto sobre a Programação
da República e pedir a pesquisa por antecedência. Estas possibi-
lidades devem ser acertadas segundo as possibilidades da Escola,
da relação com um professor de história, e das condições da bi-
blioteca da Escola.
O professor conversa com o grupo mostrando certos aspectos
que chamam a atenção no texto, por razões diversas, que podem
ser observadas pelo modo como o texto está constituído por sua
linguagem. O professor pode rapidamente indicar alguns destes
aspectos e depois passar a cada passo.
129
3.1.2. Passo 2 – o sentido da cidadania
Indicados os aspectos que serão observados o professor toma
um deles como primeiro, por exemplo, a questão do vocativo que
inicia o texto. Tomado este aspecto ressalta como há 4 partes no
texto marcadas pelo fato de todas serem iniciadas por um vocati-
vo (“Concidadãos”). Coloca a problemática de analisar o funcio-
namento deste vocativo, se for o caso o professor pode fazer uma
apresentação deste funcionamento (aqui o professor procuraria
que os alunos fossem levados a considerar o que está na seção
“1. Os Concidadãos” do capítulo 3 em que analisamos este tex-
to). Em seguida o professor mostra que o texto está, pelo menos
“aparentemente”, formulado do lugar da cidadania (ao final deste
passo o Professor pode pedir que todos façam uma síntese do re-
sultado da reflexão de análise em um pequeno de texto de 5 a 10
linhas, por exemplo).

3.1.3. Passo 3 – A Força de Lei da Proclamação


Tratado este aspecto, o professor passa a um outro. Conver-
sa com o grupo mostrando, fazendo-os observar, aspectos como
o fato de que a Proclamação é assinada por certas autoridades
e formula certas decisões; ele pode neste ponto fazer com que
os alunos digam quem são estas autoridades e o que formulam
enquanto autoridades, a partir disso mostra que a força de lei da
Proclamação (aquilo que chamamos na nossa análise do texto de
performatividade) se dá de uma posição que não é a da cidadania,
como poderia fazer parecer o vocativo que se repete durante todo
o texto; neste ponto seria interessante levar os alunos a pensar
sobre o fato de que esta performatividade (não é necessário usar
o termo para os alunos, basta dizer que a lei tem força de lei por-
que é formulada de um certo lugar de autoridade, de poder), em
certo sentido, é contraditória relativamente à relação enunciativa
da cidadania (e veja como uma pesquisa articulada com a história
pode ter importância aqui).
Ao final desta etapa o professor pede que todos façam uma
síntese de umas 5 a 10 linhas da discussão.

3.1.4. Passo 4 – o sentido de “povo”


Cumprido o passo anterior, o professor diz que vai mostrar um
outro aspecto importante. Mostra como a palavra “povo” aparece
130
pouco no decorrer do texto. E assim mostra como no texto há ele-
mentos que indicam como o sentido de “povo” aparece nele. Com
estes elementos ele mostra aos alunos como o sentido de povo
traz uma contradição que significa o povo como todos os cida-
dãos, como significa, em contrapartida, o povo só como uma par-
te deste todos, e ao mesmo tempo significa o povo como distinto
das forças armadas. Aqui o professor mostra aos alunos a relação
entre este aspecto e os tratados nos passos anteriores. Deste modo
o professor pode refletir (e fazer refletir) sobre povo e cidadania,
povo e forças armadas, povo e poder, etc.
Ao final o professor pede que todos façam uma síntese de 5 a
10 linhas sobre a discussão deste aspecto.

3.1.5. Passo 4 – fazendo uma retomada


O professor mostra como por estes passos puderam fazer uma
reflexão sobre o texto observando aspectos muito específicos. E
que isto está sustentado em aspectos do texto e não simplesmente
em opiniões pessoais. É evidente que, a partir da análise, tanto
o professor quanto os alunos podem tomar posições para além
do texto, motivados pela análise feita. O professor então ressalta
que é assim que se interpreta e compreende um texto, ressaltando
que o texto não significa pela linearidade nem por uma totalidade
fechada em si.
Em seguida o professor faz uma síntese, que corresponderia a
umas duas páginas escritas, algo como uns 5 minutos de exposi-
ção, apresentando o resultado da análise do texto.

3.2. Movimento 2 - Os alunos analisam um texto


Este é um movimento que vai se repetir muitas vezes. O pro-
fessor faz todo o percurso que acabamos de mostrar, passo a pas-
so, mas com uma diferença fundamental, ele não analisa, ele vai
levando os alunos a fazerem todos os passos. Os alunos encon-
tram os aspectos proeminentes, os alunos tomam cada aspecto e
descrevem o que encontram, fazem as sínteses em cada caso, tal
como o indicado acima, chegando até o final, quando o professor
pede que os alunos, retomando todo o percurso, façam um texto
de uma a duas páginas que apresente o resultado da análise do
texto, lembrando da discussão feita e das sínteses feitas para cada
passo. Neste caso, o professor vai pedir para alguns alunos, 2 ou 3
131
(ou mais), lerem suas sínteses e depois vai levar a uma discussão
do texto.
Todo este procedimento tem a vantagem de levar o aluno a ter
uma relação com o texto menos enigmática. Basta olhar para al-
guns aspectos, pensar sobre eles, e levando em conta o que o texto
traz pelo seu modo de apresentar-se linguisticamente.

3.3. Movimento 3 – Indo para Outros Textos


Depois de todos os passos de interpretação e de escrita de um
texto, em qualquer dos movimentos indicados acima, sustentado
na análise, o professor pode propor uma atividade que corres-
ponde a escrever um texto sobre questões da história do Brasil
no período da proclamação. Para isso pode escolher um assunto:
a abolição da escravatura no Brasil. Pedir que todos façam uma
pesquisa sobre esta questão levando em conta sua relação com os
movimentos republicanos da época.
Numa aula subsequente pede para que cada um escreva um
texto que pode ser uma narrativa em torno de um personagem, ou
uma discussão sobre o processo de abolição, ou sobre o caráter
tardio ou não da abolição no Brasil.
Veja que com estes movimentos e passos vai-se praticando
uma certa concepção de texto, envolvendo os alunos tanto na ati-
vidade de interpretar a partir de uma descrição cuidadosa de as-
pectos do texto e de suas condições históricas de funcionamento,
quanto na de produzir textos. Inclusive, é preciso ver que em todo
processo eles estão envolvidos na atividade de discutir oralmente
e de resumir oralmente e por escrito um texto.
Ao mesmo tempo, vai-se mostrando, pela prática, que para
interpretar um texto ou para escrever ou falar um texto de im-
proviso, é preciso se ter um conjunto de “conhecimentos” que é
possível buscar em fontes seguras. Busca-se assim também fazer
refletir sobre os modos de circulação de informações tão própria
da Internet hoje, sem deixar a Internet de lado.
Neste ponto, e segundo o nível em que se estiver, pode-se dis-
curtir procedimentos muito comuns ligados à cópia, pura e sim-
ples de textos alheios (hoje tão comuns pela opera de recorta e
cola dos computadores). Esta discussão deve mostrar a questão
do acesso a outros textos e da produção específica de um texto
próprio. Nestas condições pode inclusive caber uma discussão
132
que seja capaz de mostrar a diferença entre o plágio e outros pro-
cedimentos como o do discurso relatado (direto, indireto, indireto
livre), e o da citação e o da menção.
Veja que um aspecto fundamental aqui é que o Professor pre-
cisa se preparar bem. Precisa ele próprio escolher boas entradas
para o texto e buscar sustentação para seu trabalho de encaminha-
mento da análise com os alunos.

3.4. Movimento 4 - Uma Outra Estratégia


Um outro modo de lidar com os aspectos acima indicados (mo-
vimentos de 1 a 3) é começar por mostrar que um texto traz mui-
tos sentidos. Significa muita coisa. Que o professor escolheu um
texto e que vai discutir questões relativas a um aspecto do texto.
Por exemplo, pode tomar “A Última Canção do Beco”. Diz que
vai considerar a questão da relação entre o íntimo e o social no
poema. Pede para que considerem este aspecto. Assim pode utili-
zar, por exemplo, o que coloquei na análise na seção 1 do capítulo
8. Os alunos apresentam isso, o professor pede que eles façam
uma síntese. Em seguida o professor pede que vários apresentem
suas sínteses e depois discutam levando em conta o modo como
o próprio poema se apresenta. Ao final volta a pedir uma síntese
e pede que os alunos leiam algo sobre Bandeira, que o Professor
indica, para ver o que se diz disso sobre o poeta e como eles mes-
mos consideram este aspecto a partir da análise que fizeram.
Esta é uma estratégia que privilegia o estudo do autor, neste
caso, valendo-se de um procedimento de análise de texto baseada
na posição que aqui mostramos sobre o funcionamento do texto.
É claro que o professor pode fazer a análise do poema de modo
mais geral, levando em conta vários recortes e assim levando os
alunos a escreverem ao final uma análise do poema.
Pode também se valer deste tipo de consideração sobre o fun-
cionamento semântico enunciativo do texto para incluir uma re-
flexão sobre um ponto bem particular do mesmo. Por exemplo, a
articulação argumentativa do mas na segunda estrofe do poema.
Aqui o professor pode mostrar como um mas funciona argumen-
tativamente, não opondo simplesmente um segmento do enuncia-
do a outro segmento do enunciado, mas um sentido que aparece
atribuído ao enunciado, exatamente pela articulação da argumen-
tação. Neste caso específico, “demolir a casa” significa “vão de-
133
molir então não vou me lembrar”. Assim “mas x vai ficar”, faz
significar a permanência da memória, etc. “x vai ficar então vou
sempre me lembrar”. E assim se pode refletir sobre a questão do
mundo, das coisas e dos sentidos deste mundo, destas coisas para
as pessoas, segundo sua história.
Passemos a um outro exemplo. O Caso do texto “Ordem no
Congresso”. Ele pode ser tomado para discutir a questão da vida
política hoje no Brasil. Assim o professor pode pedir para os alu-
nos analisarem a relação do lema da bandeira brasileira com o
enunciado do outdoor. Depois pode, a partir disso, levar a uma
discussão sobre os aspectos da vida pública e da gestão pública
no Brasil. Para isso pode pedir que os alunos façam uma pesquisa
específica. Esta pesquisa pode ser antes da colocação do texto,
ou depois. Neste caso analisa-se o aspecto considerado, faz-se
a pesquisa e volta-se ao texto numa aula subsequente. Ao final
do processo o professor pede que os alunos produzam um texto
sobre a questão discutida.
Uma outra entrada interessante, como tomada de um aspecto para
refletir seria, por exemplo, partir da consideração do que é um outdo-
or como modo de colocar em circulação certos textos, de publicida-
de, de propaganda, etc. Coloca-se assim a questão da circulação de
textos na conjuntura histórica contemporânea. A partir desta coloca-
ção pode-se entrar na questão do público e do político e avançar na
discussão utilizando a análise de aspectos do texto do outdoor.
Tomada a questão da circulação de textos no mundo contem-
porâneo, pode-se, ainda, fazer a análise do texto como um todo,
passo a passo (e isto tanto pode ser feito pelo professor, como no
movimento 1 ou pelos alunos como no movimento 2), e assim
discutir os diversos aspectos, tal como apresentei na análise no
capítulo 4, e depois pedir uma crítica ao texto, a partir de textos
específicos dos alunos.

3.5. Movimento 5 - A Língua e os Textos


Este movimento deve levar em conta pelo menos dois aspec-
tos: 1) a questão de em que língua se escreve um texto, ou melhor,
como se dá a relação das línguas em um texto; 2) a questão das
divisões de uma língua no texto.
O primeiro aspecto se apresenta hoje, inclusive, porque é mui-
to comum que todos encontrem textos de publicidade, em outdo-
134
ors, na televisão, em revistas, etc, formulados numa certa língua,
a língua portuguesa, por exemplo, mas que se mostra como um
texto em que se apresentam outras línguas. Assim uma atividade
que pode ser interessante é analisar textos que tragam esta carac-
terística. Assim um dos aspectos a serem analisados é exatamente
a questão das relações de língua que o texto apresenta. Nos textos
analisados nesta obra tratamos deste aspecto na análise do texto
“Os Músculos Brasileiros de Richard Branson” no capítulo 6. Um
dos interesses aqui é desmistificar esta questão das relações das
línguas. Deve-se levar a refletir sobre os sentidos que isto envol-
ve: tanto a questão em si, do modo como estas relações de língua
se dão, quanto de que modo esta confluência de línguas diferentes
num mesmo texto significa.
Dependendo do nível da turma para a qual se ensina, pode-se
já mostrar como esta relação de línguas não é algo só dos dias de
hoje, em outros momentos isto também se dava, como por exem-
plo em textos de filosofia, em textos científicos. É já de muito
conhecido que um texto científico, por exemplo, traz passagens
em outras línguas, quando se trata de uma citação, ou ainda, traz
termos que vêm de outras línguas, o que é bastante comum na
terminologia científica.
Quanto ao segundo aspecto, o das divisões da língua, o que in-
teressa é mostrar como numa mesma língua há várias, ou melhor,
uma língua se divide em falares diversos de natureza regional ou
social. Uma atividade interessante neste caso seria mandar ler um
romance em que os personagens falam num registro diferente do
narrador. Depois de feita a leitura mostrar isso aos alunos e pedir
para que mostrem como esta diferença se caracteriza. Assim se
pode ver, tanto como as “línguas” estão no texto, quanto como a
diversidade de uma língua também pode estar.
Pode-se também mostrar como certos poemas, de Bandeira,
por exemplo, colocam na voz do poeta formas que são de ou-
tros registros. Assim em literatura, um poema está enunciado
num espaço de enunciação que não se reduz a dizer na forma de
uma “língua” tomada como homogênea, mas funciona no espaço
constituído pelas divisões desta língua.
Depois de observar estes aspectos, pode-se pedir para que
os alunos refaçam certos diálogos, apagando a diferença de re-
gistros, tornando o texto homogêneo deste ponto de vista. Em
135
seguida pode-se refletir com os alunos, que diferença isso faz na
caracterização dos personagens da história ou no sentido de um
poema.
O que importa em tudo isso é que tomada uma certa posição
sobre o que é texto, como um texto funciona, tal como fizemos
aqui, é possível fazer com que todo um conjunto de práticas
possam se realizar e enriquecer muito o processo de reflexão na
escola a partir do texto e de textos os mais diversos. Por outro
lado deve-se também colocar no centro de atenção o fato de
que esta diversidade no interior da língua funciona marcando
diferenças. Não se trata simplesmente de dizer que é preciso
reconhecer as diferenças, trata-se de ver como elas funcionam
e como produzem sentidos. Neste ponto pode-se considerar que
há condições nas quais o texto se apresenta como incorporando
uma certa concepção de correção gramatical como a que é trata-
da nas gramáticas normativas e nos dicionários, como apresen-
tamos a seguir.

3.6.Movimento 6 – A língua e a organização dos enunciados


Um aspecto particularmente importante nesta consideração da
língua e o texto, é que as divisões de uma língua (língua colo-
quial, língua padrão, língua de uma região específica, etc), reper-
cutem de modo específico na forma dos enunciados e na forma
dos elementos que compõem os enunciados.
Pode-se então pensar na observação de textos que apresentam
divisões diversas da língua, como um romance ou um poema e
depois considerar que há textos em que esta diversidade tem uma
regulação mais específica. Há textos que se fazem com a gramá-
tica que é considerada a gramática da língua oficial de um país.
Este movimento deve ser desenvolvido durante todo o tempo le-
vando em conta o modo de se apresentarem as formas gramaticais
nos enunciados dos textos. E dependendo da relação dos enuncia-
dos com os textos estes enunciados podem ter tais formas ou tais
outras.
Este ponto pode ser bem articulado com a parte do ensino que
se ocupa de refletir sobre as formas gramaticais e ao modo de
organização dos enunciados.

136
4. Observações Suplementares

O que é importante, de todo modo, é saber encontrar textos


apropriados a cada nível e a cada situação de ensino. Ao mesmo
tempo é importante saber encontrar nos textos os aspectos rele-
vantes tanto para sua interpretação quanto para ensinar a pensar
a partir de textos. Deste modo é sempre possível fazer ler e com-
preender bem os textos e a partir disso é possível fazer escrever
ou dizer textos.
E um aspecto sempre presente: como dosar os passos. Eles po-
dem ser mais divididos, se for caso, dependendo do grupo de alu-
nos e do nível em que se está. Não se trata de apresentar receitas
de aulas, mas de procedimentos que podem ser muito produtivos.

137
138
Conclusão

139
140
ENSAIO QUASE FINAL

E
speramos ter mostrado que é possível tomar como centro
de várias atividades intelectuais, inclusive na formação na
Escola, a questão texto. Por outro lado, espero ter mostra-
do como é possível tratar a análise de texto de modo objetivo se
partimos de procedimentos de descrição bem delineados, articu-
lados a um procedimento que oriente o processo de interpretação,
e baseados em posições teóricas claras e concernentes ao texto.
Evidentemente que uma primeira a coisa a dizer nesta conclu-
são é que cada texto exige que se encontre o caminho para ana-
lisá-lo. Veja que em certos casos o funcionamento da designação
e das reescriturações foi decisivo, em outros a observação da ar-
gumentação ou da metáfora, em outros ainda o modo de agencia-
mento específico da performatividade, ou a própria organização
dos versos do poema, ou ainda as relações de intertextualidade.
Encontrar os recortes a fazer e se guiar por suas descrições é o
fundamento desta prática, no modo como a apresentei aqui.
Como se viu, para nossa posição, é preciso considerar, na des-
crição que sustenta a interpretação, o funcionamento do texto. Tra-
ta-se, para nós, de um funcionamento lingüístico caracterizado his-
toricamente, considerando que a presença do locutor se dá por um
agenciamento lingüístico próprio do acontecimento de enunciação.

1. Voltando sobre as Análises

Retomando o percurso realizado, vemos que as análises feitas


mostram que o procedimento utilizado pode produzir leituras de

141
textos os mais diversos, independentemente da posição que a his-
tória reservou a eles. Estes textos fazem parte de práticas que os
fazem circular de modos diferentes. E estes modos de circulação
são construídos pelos acontecimentos em que são enunciados.
Percorrendo as análises feitas, há várias coisas que podemos
mostrar nessa direção, e que é importante para a própria definição
de texto. No percurso que fizemos vamos encontrar, por exemplo,
um texto como o da Proclamação da República que se formula
tanto como um texto político quanto como um texto jurídico. Se
consideramos o texto “Ordem no Congresso”, estamos diante de
um texto que se apresenta como publicidade e como um texto
político, mais uma vez numa duplicidade que não é a de um texto
de um certo gênero que contém sequências de um outro gênero.
Não se trata de um texto “carta” que contém a transcrição de um
artigo de uma lei, por exemplo.
De um outro ponto de vista, podemos pensar o “Credo” como
um texto que se caracteriza por estar numa série de versões. Coisa
diferente do texto “A Última Canção do Beco”, que é um texto
que está numa série, a das canções do Beco de Manuel Bandeira.
Mas há aí um diferença fundamental que diz respeito ao próprio
modo de enunciação da oração e do poema. Por outro lado, o tex-
to de Bandeira se diz uma canção, mas se procuramos pela carac-
terização do que seja uma canção vamos ver que este poema não
cumpre exatamente o que se apresenta com a forma da canção.
Se fazemos atenção no texto sobre o nome da língua nacio-
nal do Brasil, vamos também encontrar um texto que traz nele
a convivência de cenas enunciativas distintas. De um lado ele é
um texto que circula como um texto de especialistas e de outro
ele circula como um texto jurídico, um texto que decide sobre a
nomeação da língua de um povo. E tem assim um valor perfor-
mativo de lei. Neste sentido ele participa, em certa medida, do
modo de enunciação da Proclamação da República, mas não de
seu aspecto de texto político, militante.
E há ainda outros aspectos a considerar. No caso do texto “Ordem
no Congresso, vemos que ele é um “outdoor” e ao mesmo tempo
menciona um símbolo nacional. Traz para seu sentido o sentido do
símbolo nacional, embora ele mesmo não seja um símbolo nacional.
Assim este texto é um outdoor que significa não porque é outdoor,
mas porque “deforma” a bandeira nacional e oficial do Brasil.
142
Quanto ao “Credo” podemos observar que ele é uma oração,
uma prática de engajamento de fé que pode ser professado como
diálogo (perguntas e respostas, tal como no ritual do batismo cris-
tão católico), ou como uma oração que se reza individualmente
ou coletivamente. E num e no outro caso é considerado como um
engajamento de alguém como Cristão.
Se nos reportamos ao texto “Os Músculos Brasileiros de Ri-
chard Branson” encontramos um texto que se apresenta como um
relato que, no final das contas, é um argumento a favor do empre-
endimento do Grupo empresarial globalizado que tem Branson
como dirigente.
Todas estas concomitâncias e deslocamentos podem ser com-
preendidos se o procedimento de análise não se limita nem a se-
guir a linearidade nem a referencialidade do texto. Mas ao contrá-
rio se o procedimento instala, tal como fizemos, a necessidade de
observar as relações transversais que a integração dos enunciados
ao texto constituem em virtude de sua enunciação.

2. Os Gêneros e a Regulação do Sentido

Um aspecto interessante que gostaria de retomar aqui, e que,


como vimos acima, percorre todo o conjunto das análises, é que a
questão do texto não se define por aquilo que poderíamos chamar
de gêneros textuais.
A consideração dos gêneros tem uma história bastante conhe-
cida e tem merecido a atenção de muitos. Lembremos-nos aqui
que, na sua história, os gêneros são tratados no interior da retóri-
ca (arte, no sentido latino, que ensina como falar bem). Assim a
questão do gênero está ligada a modos de dizer adequados numa
relação específica do orador e seu auditório. Deste modo o estu-
do do gênero se mostra como um modo de ensinar a argumentar
adequadamente segundo as condições em que se estiver. Já no
primeiro livro da Retórica de Aristóteles encontramos a coloca-
ção de três gêneros retóricos: o deliberativo (cuja finalidade é per-
suadir tendo em vista uma decisão sobre o futuro), o judiciário
(cuja finalidade é persuadir tendo em vista uma decisão sobre o
passado) e o epidítico (cuja finalidade é o elogio ou a censura).
Neste sentido podemos dizer que a consideração do gênero inclui
143
um aspecto normativo próprio das artes, no sentido latino deste
termo e já acima referido, e que aproxima a gramática e a retórica.
Desta maneira, o que procuramos foi não colocar a questão do
texto nesta perspectiva, ou seja, procuramos não colocar o texto
na perspectiva de uma definição retórica, no sentido aqui conside-
rado. Deste modo interessou-nos a observação do funcionamento
semântico enunciativo dos textos, baseado fundamentalmente no
que consideramos, a partir de Benveniste, de relação integrativa,
do enunciado para o texto.
A leitura pelo gênero acaba por reduzir o alcance da leitura,
pois o aspecto normativo da concepção do gênero acaba por diri-
gir a leitura numa direção desde o início. Deste ponto de vista, po-
demos dizer que não é o gênero que define como é um texto, mas
é o funcionamento do texto no acontecimento em que é produzido
que vai historicamente trabalhando isto que se tem considerado
como gêneros. O gênero é resultado histórico e não processo de
produção de sentidos.
No processo de definição e compreensão do que seja um texto,
os textos não podem ser tomados como modelos, como matrizes
de funcionamento, mas como acontecimentos específicos que tra-
balham o tempo todo o já realizado e o ainda não-realizado.
Se pensamos isto ao considerar o texto na Escola, este aspecto
fica mais forte, pois não se deve mandar ler simplesmente para
aprender modelos, mas para construir uma erudição rica e va-
riada, e para ter o domínio disto que conhecemos sob o nome de
textualidade e de texto.

3. Os Textos e o nosso Saber

Este aspecto que acabo de chamar de erudição é, segundo pen-


so, o mais importante no caso desta obra. Deste modo gostaria de
ressaltar, neste ensaio quase final, como, mesmo que o objetivo
do livro não tenha sido analisar uma série de textos para refletir
especificamente sobre algum aspecto da história, do conhecimen-
to em geral, podemos ver, pela conexão que procurei dar ao con-
junto dos textos, que analisar textos é um caminho para se pensar
sobre as questões que nos interessam.
Consideremos, por exemplo, o conjunto de textos analisados
144
na parte II. Neles podemos tanto encontrar elementos de uma re-
flexão fundamental sobre como se constituíram certos sentidos na
história do Brasil república. Nesta história de sentidos vamos nos
deparar com o modo como a relação do cidadão com o Estado
já se apresenta pela constituição de um lugar de cidadão exclu-
ído do lugar de deliberação sobre a forma do Estado. Este lugar
está ocupado pelas Forças Armadas. Esta questão se conecta com
os aspectos do texto “Desordem no Congresso”, que significa o
desconhecimento do Congresso relativamente ao povo, aos cida-
dãos. Deste modo podemos nos perguntar sobre as razões desta
continuidade específica na vida brasileira. De outro lado vamos
ver o quanto a questão da língua é uma questão que permanece
sem decisão, do ponto de vista legal, até 1946, quando se decide
pelo nome de “língua portuguesa” para a língua nacional e oficial
do Brasil. Questão que vai aparecer diretamente na constituição
em 1988. E esta questão se decide na base de um argumento que
se faz do lugar de colonizado, é o argumento da civilização. Es-
tes aspectos, sem dúvida por si já trazem muitos elementos para
pensar o Brasil a partir da leitura cuidadosa de textos os mais
diversos.
Se observamos os textos na parte III, vamos ver que eles, mes-
mo que não se vinculem ao trajeto da história como os três pri-
meiros, eles colocam questões fundamentais: de um lado a ques-
tão da globalização em geral e, neste quadro, da globalização das
relações de língua, o que coloca em cena uma relação com as
análises sobre o parecer que estabelece o nome da língua na parte
II. Por outro lado há a análise do Credo, que põe no centro das
atenções a questão religiosa, tão particular no Brasil, envolvendo
a Igreja Católica. E por fim a literatura. No texto de Bandeira, ve-
mos como ao manifestar sua tristeza o poeta nos conta um pouco
do Brasil.
Evidentemente que estas análise não nos permitem produzir
nenhuma generalização sobre um assunto em particular, mas
o percurso feito, ao lado de mostrar como fazer uma análise, e
como analisar textos é decisivo para o desenvolvimento da com-
preensão das questões que nos tocam, mostra como podemos nos
dedicar a estudos articulados em torno de algum assunto em parti-
cular, de algum interesse em particular, bastando para isso reunir
o conjunto de textos que permitam, por uma série de textos defini-
145
dos segundo uma questão decisiva, fazer análises e chegar a uma
reflexão particular sobre algum assunto.
Seguindo nesta perspectiva, estas análises podem nos aju-
dar, por exemplo, a refletir sobre o funcionamento da mídia na
sociedade atual. Um aspecto relevante da análise do texto “Os
Músculos Brasileiros de Richard Branson” foi a consideração da
metáfora do título e de seu funcionamento argumentativo. E este
funcionamento se projeta por sobre o texto que, ao se mostrar
como mera notícia, sustenta um argumento aparentemente não
formulado, o que sustenta o sentido da força dos negócios do per-
sonagem objeto da notícia e assim de seu sucesso. Este pequeno
texto mostra, assim, como o funcionamento da notícia, que os tex-
tos da imprensa têm, é uma forma de funcionamento que não se
esgota nesta aparência de mera informação. Os textos apresentam
seus operadores próprios de engajamento no valor do que se diz.
É interessante notar que um texto como o da Proclamação da Re-
pública transita, sob certos aspectos, por caminhos semelhantes,
mesmo que seu efeito final seja, diferentemente da notícia, a per-
formatividade diretiva que instala a República. A proclamação,
como vimos, é um texto que funciona por uma cena de conexão
com o povo no sentido de argumentar a favor da posição tomada
pelas forças armadas, a de depor o rei e estabelecer a República.
Um outro aspecto a considerar no conjunto das análises é
que a relação de intertextualidade se apresenta de modos diferen-
tes se consideramos de um lado o texto “Ordem no Congresso”,
e de outro o poema de Bandeira ou o Credo. Neste último caso
dizer o “credo” é afirmar a existência de uma enunciação que
funda a obrigação do fiel em dizê-lo. No Caso do poema a relação
vincula o texto do poeta a sua própria poesia, à série de canções
do Beco, e no caso do texto “Ordem no Congresso”, ele toma
diretamente a Bandeira do Brasil como um texto que dá sentido
ao outdoor considerado a partir de uma relação que formula este
texto como deformação da Bandeira.
Para finalizar este percurso espero que ele tenha sido do
interesse de quem se dedicou a lê-lo, e que o que aqui procurei
colocar possa ajudar numa relação amistosa, mesmo que difícil,
com os textos com os quais vivemos, mais de perto ou mais de
longe.

146
VAI SER ABERTURA DE CAPÍTULO OU VAI TER UM
‘OLHO’ AQUI???

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149
150
Apêndice

151
152
DENOMINAÇÃO DO IDIOMA
NACIONAL DO BRASIL

P
ara cumprir o art. 35º. Das disposições transitórias da Cons-
tituição de 18 de setembro de 1946, o qual determina: “O
Governo nomeará comissão de professores, escritores e
jornalistas, que opine sobre a denominação do idioma nacional”,
foi constituída a seguinte comissão:
Da Academia de Letras
Embaixador José Carlos de Macedo Soares
Dr. Cláudio de Sousa
Dr. Afonso de Taunay
Professor Pedro Calmon
Dr. Levi Carneiro

Da Academia de Filologia
Professor Sousa da Silveira
Pe. Augusto Magne
Professor Clóvis Monteiro
Professor Júlio Nogueira

Gal. Fortes de Oliveira, Inspetor Geral do Ensino Militar.
Professor Inácio Manuel Azevedo do Amaral, Reitor da Uni-
versidade do Brasil.
Pe. Leonel Franca, Reitor da Universidade Católica.
Dr. Herbert Moses, Presidente da Associação Brasileira de Imprensa.

Deputados Federais
Dr. Gustavo Capanema, Ex-Ministro da Educação
Dr. Gilberto Freire

153
A Comissão elegeu para seu presidente o Embaixador Macedo
Soares, para vice-presidente o Dr. Cláudio de Sousa e para relator
o Professor Sousa da Silveira.
O professor Sousa da Silveira apresentou o seguinte relatório
aprovado unanimemente pela Comissão, ao Ministro da Educa-
ção, que então era o Professor Ernesto de Sousa Campos:
“Sr. Ministro:
A Comissão, designada por V. Ex.a , com a aprovação do Sr.
Presidente da República, para cumprir a determinação contida no
art. 35º. Do Ato das Disposições Transitórias, apenso à Constitui-
ção dos Estados Unidos do Brasil promulgada em 18 de setembro
do corrente ano, tem a honra de trazer ao conhecimento de V. Ex.a
o resultado dos seus trabalhos.

BREVE RETROSPECTO HISTÓRICO


Descoberto o Brasil pelos portugueses em 1500, tomada posse
da terra em nome do Rei de Portugal, e iniciada anos depois a
colonização, a língua portuguesa foi trazida para cá, e pouco a
pouco se foi propagando.
Encontrou-se, como era natural, com a língua dos índios; e,
durante algum tempo, foi mesmo o tupi falado em maior propor-
ção do que o português.
Não tardou, porém, que se verificasse um princípio lingüísti-
co que se tem reconhecido como verdadeiro: postas em contacto
duas línguas, uma instrumento de um civilização muito superior à
civilização a que a outra serve, esta cede o seu terreno à primeira.
Assim, o português, expressão de uma civilização mais adianta-
da, triunfou sobre o tupi.
Desde os primeiros tempos da nossa história, já apareciam,
escritas em português, obras relativas ao Brasil; e toda a nossa li-
teratura, de então para cá, tem sido vazada em língua portuguesa.
Os nossos mais altos escritores, uns com maior, outros com
menor apuro estilístico, estes aproximando-se mais, aqueles
menos, do padrão ideal da língua literára, todos escreveram em
portuguÊs. Assim o fizeram José Bonifácio, João Francisco Lis-
boa, Odorico Mendes, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Ca-
simiro de Abreu, Castro Alves, Fagundes Varela, Gonçalves de
Magalhães, Pôrto-Alegre, Manuel António de Almeida, Alencar,
Macedo, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Joaquim Nabuco,
154
Eduardo Prado, Rui Barbosa, Taunay, Afonso Arinos, Euclides
da Cunha, Raul Pompéia, João Ribeiro, Olavo Bilac, Alberto de
Oliveira, Raimundo Correia, Vicente de Carvalho, etc., etc.
A própria literatura nossa regional exprime-se numa língua
que, apesar de tudo, não deixa de ser a portuguesa; e o falar diale-
tal da nossa gente inculta é, na essência, língua portuguesa.
Alguns dos grandes escritores brasileiros, como Rui Barbo-
sa, João Ribeiro e Raimundo Correia,, que no princípio da sua
carreira literária, embora escrevessem em português, se afasta-
vam um pouco do bom tipo linguístico, esforçaram-se depois por
acompanha-lo de mais perto, e conseguiram tornar-se modelos da
mais formosa vernaculidade.
É a língua portuguesa aquela em que nós, brasileiros, pensa-
mos; em que monologamos; em que conversamos; que usamos no
lar, na rua, na escola, no teatro, na imprensa, na tribuna; com que
nos interpela, na praça pública, o transeunte desconhecido que
nos pede uma informação; é, por assim dizer, a nossa língua de
todos os momentos e de todos os lugares.

CONSIDERAÇÕES LINGUÍSTICAS
É inteiramente falso dizer-se que, assim como do latim vul-
gar transplantado para o ocidente da Península Ibérica resultou o
idioma português, assim do português trazido para o Brasil resul-
tou a língua brasileira.
Proceder desse modo é comparar fatos diversos, e a conclusão
a que se chega percorrendo semelhante caminho, será, forçosa-
mente, errada.
O latim vulgar levado para o ocidente da Península Ibérica e
adotado por língua própria pelas populações que lá habitavam, -
de civilização inferior à dos romanos - , esteve longo tempo sem
escrever-se; e, depois da queda do Império Romano do ocidente,
ficou entregue à ação das forças naturais de evolução e diferen-
ciação; quando, mais tarde, foi adotado como língua escrita, es-
tava muitíssimo diversificado do padrão latino da língua clássica,
conservado na sobras dos grandes escritores romanos e imitado
pelo escritores do Baixo Latim.
Comparado esse latim vulgar evoluído com o antigo latim dos
documentos, literários ou não, ele apresenta diferença de estrutu-
ra fonética, de morfologia e de sintaxe, que constituem caracterís-
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ticas suficientes para torná-lo uma nova língua, independente do
latim, embora dele derivada.
Com o português transplantado para o Brasil outros, bem ou-
tros são os fatos. Nunca ficou em abandono igual ao do latim
vulgar na Península Ibérica; ao contrário, esteve sempre em con-
tacto com o da Metrópole, onde a literatura atingiu alto cume no
s´peculo XVI e continuou no seu desenvolvimento florescente até
os nosso dias, Frei Vcente do Salvador, nascido no Brasil, escrevi
em português a sua História do Brasil; o Padr Antonio Vieira pre-
gava no Brasil muitos dos seus Sermões; Morais, nascido no Bra-
sil, compunha o seu Dicionário da Língua Portuguesa; brasileiros
iam a Portugal e formavam-se na Universidade de Coimbra; D.
João VI, com sua corte, veio para o Rio de Janeiro e aqui perma-
neceu por mais de uma década. Os nossos grandes poetas épicos
Santa Rita Durão e Basílio da Gama; outros ilustres poetas nos-
sos, como Cláudio Manuel, Alvarenga Peixoto, etc., escreviam
em excelente língua portuguesa, com os olhos sempre voltados
para os monumentos literários de Portugal.
Os estudos lingüísticos, sérios e imparciais, aplicados ao Bra-
sil, fazem-nos concluir que a nossa língua nacional é a língua por-
tuguesa, com pronúncia nossa, algumas leves divergências sin-
táticas em relação ao idioma atual de além-mar, e o vocabulário
enriquecido por elementos indígenas e africanos e pelas criações
e adoções realizadas em nosso meio.
Ainda mais: esses estudos, à proporção que se ampliam e se
aprofundam, reduzem a lista dos brasileirismos, mostrando que
alguns deles existem em dialetos portugueses (parecendo que de
Portugal nos vieram) e que, se outros podem ser admitidos como
inovações nossas, podem também considerar-se relíquias brasi-
leiras de arcaísmos portugueses.
As palavras brasileiras são iguais às portuguesas na sua compo-
sição fonética, apenas diferindo na pronúncia; os nomes de números
são os mesmo em Portugal e no Brasil; as conjugações são as mes-
mas, num e noutro país; as mesmas são também as palavras gra-
maticais: os pronomes (pessoais, possessivos, demonstrativos, relati-
vos, interrogativos, indefinidos), os artigos, os advérbios (de tempo,
modo, quantidade, lugar, afirmação, negação), as preposições e as
conjunções. Em geral é o mesmo o gênero gramatical, cá e lá; são as
mesmas as regras de formação do plural, o mesmo o sistema de graus
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de substantivos e adjetivos; os mesmos os preceitos de concordância
nominal e verbal; quase na totalidade dos casos é a mesma a regência
dos complementos dos nomes e dos verbos; o mesmo o emprego de
modos e tempos, e a mesma a estrutura geral do período quanto à
sucessão das orações e à ligação de umas com outras.
Lemos e compreendemos tão bem uma página de Eça de Quei-
rós, quanto uma de Machado de Assis; e, quando, em escritos
de autor brasileiro ou português, desconhecemos o significado de
qualquer palavra, recorremos, salvo tratando-se de algum termo
muito restritamente regionalista, a um dicionário da Língua Por-
tuguesa; nunca o brasileiro, para ler, compreendendo, um jornal
ou livro português, precisou de aprender previamente a língua de
Portugal como se aprende uma língua estrangeira; não há dicioná-
rio português-brasileiro, nem brasileiro-português, como há, por
exemplo, dicionário português-espanhol e espanhol-português; a
gramática da língua do Brasil é a mesma gramática portuguesa.
Afirmações idênticas a essas que acabamos de fazer, não te-
riam lugar e comparássemos o português com o espanhol, não
obstante serem línguas românicas parecidíssimas uma com a ou-
tra: é que espanhol e português sã línguas diversas, ao passo que
é a mesma língua a que se fala e escreve no Brasil e a que se fala
e escreve em Portugal.
Quando os lingüista tratam da geografia das línguas românicas,
incluem a língua do Brasil, no domínio do português; e nas estatís-
ticas relativas ao número de pessoas que falam as grandes línguas
do globo, o povo brasileiro figura entre os de língua portuguesa.

CONCLUSÃO
À vista do que fica exposto, a Comissão reconhece e proclama
esta verdade: o idioma nacional do Brasil é a Língua Portuguesa.
E, em conseqüência, opina que a denominação do idioma na-
cional do Brasil continue a ser: Língua Portuguesa.
Essa denominação, além de corresponder à verdade dos fatos,
tem a vantagem de lembrar, em duas palavras – Língua Portu-
guesa -, a história da nossa origem e a base fundamental de nossa
formação de povo civilizado.

Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1946.


SOUSA DA SILVEIRA, relator
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