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ABORDAGENS DA LINGÜÍSTICA CONTEMPORÂNEA
DA ESTRUTURA AO USO
Jan Edson Rodrigues
Maria Leonor Maia dos Santos
Introdução
Forma e função
Em lingüística, várias correntes são ditas formalistas, e várias outras são ditas
funcionalistas. Algumas vezes elas são apresentadas como inconciliáveis por aqueles
autores que optaram por alguma das duas denominações. Vamos tentar aqui apresentar
uma caracterização geral dessas atitudes de pesquisa, a formalista e a funcionalista,
para entender suas diferenças, e, ao final, gostaríamos de defender que, apesar de
diferentes, ambas são úteis e corretas em Lingüística.
Podemos nos aproximar inicialmente da oposição entre o formalismo e o
funcionalismo em Lingüística pensando no papel central atribuído à forma ou à função
da linguagem. Será que as línguas humanas têm uma certa forma, uma natureza
intrínseca, e por isso servem para fazer certas coisas, ou será que as línguas têm certas
funções, e por isso ganham determinada forma? Pense numa faca: ela tem uma forma
de faca e por isso serve para cortar (a forma veio antes e determina o uso) ou ela tem
a função de cortar e por isso foi feita com essa forma (o uso veio antes e determina a
forma)? No caso da faca, que é um objeto fabricado e não da natureza, parece óbvio
que foi o uso pretendido que motivou a forma. Mas imagine que você está num lugar
onde não há facas, e sim muitas pedras, e precisa cortar com cuidado alguma coisa.
Uma fruta bem grande e madura, como uma jaca, por exemplo, ou uma fruta-pão.
Que tipo de pedra será melhor? Podemos pensar que as pedras que tiverem uma borda
comprida e afiada serão a melhor escolha. A forma da pedra já está lá, e por isso ela
serve para cortar a fruta. A forma, nesse caso, foi o que permitiu o uso.
Isso se parece, é claro, como lembra José Borges Neto (BORGES NETO
2004:83) com o popular dilema do ovo e da galinha. O que veio primeiro? A forma,
e então podemos usar algo para certo propósito, ou a função, e então modificamos as
coisas para fazer o que queremos?
Como o dilema do ovo e da galinha, essa é uma questão difícil de decidir, talvez
impossível. No caso aqui, primeiro precisamos conhecer um pouco o que motiva as
decisões dos formalistas e dos funcionalistas em Lingüística, a história dessas posições
e o tipo de pesquisa que se faz em cada uma delas.
Vamos começar pelo formalismo. Na verdade, há várias concepções de
formalismo, o que é importante para entendermos as diversas reações funcionalistas.
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Se caracterizarmos o formalismo de uma maneira bem ampla como a atitude de dar
mais importância à forma da linguagem, vemos que essa é uma posição muito antiga.
O estoicismo foi uma escola filosófica antiga, iniciada em Atenas por Zenon (ou
Zenão) de Cítia, no início do século III a.C.
Podemos citar como exemplo o trabalho dos filósofos estóicos, que nos séculos
III e II a.C. se ocupavam, entre outras coisas, com o que há de comum em exemplos
como os abaixo:
1. Se não temos a última aula, os alunos podem ir pra casa mais cedo. De fato, não
temos a última aula. Então, os alunos podem ir pra casa mais cedo.
2. Se o salário não foi depositado, minha conta está sem fundos. De fato, meu
salário não foi depositado. Então a minha conta está sem fundos.
É claro que os exemplos dos filósofos estóicos eram outros, mas a idéia era
encontrar uma forma comum a esses conjuntos de frases, alguma coisa como:
Se acontece ISSO, acontece AQUILO. De fato, acontece ISSO. Então acontece AQUILO.
Eles consideravam que era a forma comum que permitia que exemplos assim
fossem usados de maneira eficiente numa argumentação. Não importa o assunto, se
você construir frases seguindo o esquema, vai sempre ter o que ficou conhecido como
um argumento válido, que deveria servir para convencer alguém.
Claro que você percebeu: a forma é o que permite certo uso, certa função, que
nesse caso era uma argumentação. Aristóteles, que viveu entre 384-322 A.C e ficou
conhecido, entre outros feitos, como o criador da lógica, também estudou formas
semelhantes de argumentos válidos, como os seus famosos silogismos:
3. Todos os professores de Letras da UFPB virtual são brasileiros. Jan e Leonor são
professores de Letras da UFPB virtual. Portanto, Jan e Leonor são brasileiros.
Também nesse caso, a idéia era encontrar a forma subjacente que faz com que o
argumento seja válido, não importando qual assunto abordado (compare com “Todos os
mamíferos têm coração. As girafas são mamíferos. Portanto as girafas têm coração”).
Tanto os estóicos como Aristóteles estavam interessados em caracterizar, nesse caso, a
forma da linguagem usada na argumentação.
Um exemplo diferente de formalismo muito antigo nos estudos da linguagem
– ainda definindo o formalismo de uma maneira bastante frouxa – é a descrição
gramatical tradicional. A preocupação em descrever paradigmas de flexão e unidades
da oração são bons exemplos de preocupações formais. De algum modo, na descrição
250 gramatical tradicional, supõe-se que há uma forma inerente à língua, e que essa forma
pode ser descrita de maneira independente das situações de uso. A forma, nesse caso,
pode ser o padrão de flexão de um verbo (amava, amavas, amava, etc.), ou as partes
da oração (sujeito, predicado, complementos, adjuntos, etc.). O que está em jogo é
encontrar uma regularidade que já estava na língua e que não depende de estarmos
conversando sobre futebol, preenchendo o requerimento de matrícula ou reclamando
porque o vizinho deixou a calçada suja. Novamente, nesse caso, o que é importante é
a forma, que existe antes da função e não é modificada pelo uso.
Na Lingüística no século XX a situação é bastante complexa, porque nem
todos concordam com o que é formalista e o que não é. Em primeiro lugar, vamos
mencionar a preocupação de Ferdinand de Saussure, no Curso de Lingüística Geral,
com a oposição entre língua e fala. A língua é geral, comum aos indivíduos de uma
comunidade falante, em oposição à fala, que é individual e heteróclita, ou seja,
composta por elementos variados e não homogêneos. O objeto da Lingüística, diz
Saussure no Curso, é a língua, que não varia de uma situação de comunicação para
outra, nem de um falante para outro. Vejamos o que diz Rodolfo Ilari acerca dessa
opção saussureana:
É curioso observar, por outro lado, que o surgimento do funcionalismo também está
muitas vezes associado às propostas saussureanas e aos seus seguidores, mas não
vamos tratar disso nesta introdução.
Se você sabia, por exemplo, que muitas línguas têm uma distinção entre adjetivos e
verbos, ou uma ordem básica sujeito-predicado, mesmo assim não podia usar isso na
descrição, a não ser que esses padrões aparecessem nas falas que você tinha gravado
ou anotado.
Além disso, esses autores consideravam que o significado das palavras, frases
e textos não devia ser levado em conta para se fazer a descrição. O lingüista deveria
observar quais partes da língua combinavam com quais outras partes, sem precisar
saber o significado dos enunciados, de maneira que a tarefa era perceber regularidades
formais, sem se preocupar com a interpretação. As formas (fonéticas, morfológicas,
sintáticas) já estavam todas nos dados coletados, era preciso descobri-las. Nem mesmo
a significação das palavras e frases devia ser levada em conta, e portanto nada podia
ser dito acerca do texto completo, ou de uma conversação. Mais uma vez, temos uma
preocupação com extrair uma forma que já está na língua, e que independe do uso, da
função.
Você certamente notou que aqui há um aspecto do formalismo que é diferente, por
exemplo, da gramática tradicional, ou da proposta saussureana. Nem a gramática nem
Saussure propunham que o significado fosse deixado de lado para se fazer a descrição
da língua. É claro que os estruturalistas norte-americanos que seguiam os métodos
propostos por Bloomfield ou Harris sabiam que as palavras e frases têm significado,
mas – talvez motivados pela necessidade de descrever tantas línguas diferentes –
propunham que o estudo fosse feito sem levar isso em conta. Se o estudo devia ser
feito sem levar em conta o significado (e muito menos as situações de uso, as intenções
das pessoas, etc.) é claro que eles deviam pensar que a organização da língua não é
influenciada pelo significado. Esse é um tipo de formalismo um pouco mais radical,
porque o significado está sendo excluído do estudo.
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Síntese das características dos paradigmas Formalista e Funcionalista
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UNIDADE I
SOCIOLINGÜÍSTICA
2. Premissas da Sociolingüística:
Stella Bortoni aponta que o relativismo cultural é uma postura adotada nas
Ciências Sociais, inclusive na Lingüística, segundo a qual uma manifestação de cultura
prestigiada na sociedade não é intrinsecamente superior a outras. Quando consideramos
que as variedades da língua portuguesa, empregadas na escrita ou usadas por pessoas
letradas quando estão prestando atenção à fala, não são intrinsecamente superiores
às variedades usadas por pessoas com pouca escolarização, estamos adotando uma
posição culturalmente relativa e combatendo o preconceito baseado em mitos que
perduram há muito tempo em nossa sociedade.
Ainda no dizer de Bortoni (1997, p. 2), desde os anos sessenta a Sociolingüística
vem lutando em favor do que chama de igualdade essencial das variedades lingüísticas
e teve que lidar com as correlações entre os dialetos das crianças e seu sucesso
educacional. Como exemplo, cita a pesquisa realizada por Kelmer Pringle e associados
260 (Stubbs, 1980), que trata do desempenho na leitura, abaixo da média nacional, de
crianças consideradas de classes sociais inferiores ou de minorias étnicas. Essa pesquisa
agrupou 11.000 alunos na faixa de sete anos em três grupos: leitores bons, médios e
pobres, usando como parâmetro, sua performance no Teste de Reconhecimento de
Palavras Southgate. A porcentagem de leitores fracos na classe alta foi de 7,1%; na
classe média, 18,9% e na classe baixa, mais que 26,9%. O esforço da Sociolingüística
tem sido o de tratar os conflitos dialetais como apenas diferenças e não deficiências.
Para William Labov (1987, p. 10), no entanto, “a causa primária do fracasso escolar
não é a diferença entre as linguagens, mas o racismo institucional”.
1. Sexo
2. Idade
3. Nível de Escolaridade
Variáveis sociais 4. Contexto Lingüístico (Região)
(extralingüísticas): 5. Classe Social
6. Etnia
7. Rede social
O peso dos fatores sociais tem sido minimizado, pois reformulações na teoria
variacionista destacam motivações essencialmente lingüísticas para a variação/
mudança.
Diante de duas variantes, por exemplo, /cantandu/ e /catanu/ (ambas referindo-
se ao gerúndio do verbo cantar), o sociolingüista considera:
• Qual o contexto social de uso de uma das variantes pelo mesmo falante
• Em que contextos específicos uma forma tende a ser usada pela comunidade
lingüística
• Há diferença no uso de uma das formas, de acordo com faixa-etária do
falante?
• Há diferença no uso de uma das formas, segundo o nível de escolaridade do
falante?
• Há diferença no uso de uma das formas, de acordo com o nível socioeconômico
do falante?
• Há diferença no uso de uma das formas, de acordo com o nível registro de
linguagem (formal ou informal) empregado pelo falante?
4. A Sociolingüística Interacional
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