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SOBRE O SUJEITO EM BRÉAL:

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Taisir Mahmudo KARIM1


Albano DALLA PRIA2
Jocineide MACEDO KARIM3
Lucas ALVARES4
PPGL/DL/UNEMAT

Um possível deslocamento enunciativo

Há algum tempo a linguística tem possibilitado várias vertentes de estudos sobre


a linguagem, dentre elas estão os estudos enunciativos. De modo bastante particular, este
lugar de reflexão, imprime uma discussão ampla e complexa sobre a linguagem, ao
mesmo tempo, este debate, instigante e desafiador, consolida, no espaço da ciência da
linguagem, o saber sobre o acontecimento do dizer, a enunciação. Também é importante
dizer que ao longo da história dos estudos de linguagem fomos agraciados com
representativos nomes da linguística universal, mais do que isso, neste lugar científico do
saber sobre a linguagem – a Linguística - os estudos enunciativos, ao assumirem a
enunciação como cerne de sustentação para suas observações investigativas, procuraram
incluir aquilo que ficava a margem da língua (sua exterioridade), como elementos
(sujeito/história) essenciais da/na linguagem, esses elementos (sujeito, história) se
constituem em aspectos pertinentes para sustentação dos estudos assumidos desta
posição, dentre esses elementos, o sujeito aparece como parte imprescindível.

O sujeito da enunciação, tomado como constitutivo da/na linguagem, é


marcadamente um sujeito afetado pela história. Essa caracterização é basilar para os
estudos enunciativos de linguagem, e, é nesse sentido, que o funcionamento da língua (a
enunciação) é definido como lastro para os estudos enunciativos. Esse modo de observar
os estudos de linguagem aponta para novas possiblidades de se apreender a enunciação,
bem como, o modo de se constituir o sujeito da/na linguagem. Esse movimento profícuo
dos estudos de linguagem permitiu aos estudiosos da linguagem tratar do funcionamento
enunciativo considerando a proposição da tríade - língua/sujeito/história – esta tríade
sustenta, com o devido rigor que a ciência requer, a relação constitutiva do acontecimento
do dizer, a enunciação. São significativos os olhares sobre a questão aqui levantada, este
trabalho, ao assumir a posição que considera a tríade língua/sujeito/história como
constitutiva do funcionamento da linguagem, procura trazer uma análise que leve em

1
Professor Doutor do Departamento de Letras e PPGL da UNEMAT, coordenador do Projeto de pesquisa
Significar Mato Grosso.
2
Professor Doutor do Departamento de Letras e PPGL da UNEMAT, coordenador do Projeto de Pesquisa
A transitividade nos processos verbais: o movimento do empírico ao formal/Unemat.
3
Professora Doutora do Departamento de Letras e PPGL da UNEMAT. Coordenadora do Projeto de
Pesquisa Avaliação Linguística em Comunidades Quilombolas da região Centro Oeste do Brasil e do
Projeto A variação Geográfica e atitudes: o olhar da sociolinguística sobre as publicações, propagandas
e faixadas comerciais da cidade de Cáceres. . jocineidekarim@yahoo.com.br
4
Doutorando em Linguística PPGL/UNEMAT e membro do Projeto de pesquisa Significar Mato Grosso.
conta o funcionamento da língua, observando mais detalhadamente o acontecimento do
dizer e, com isso a formulação constitutiva do sujeito na/da linguagem. É oportuno dizer
que nos colocamos em uma posição que se filia ao materialismo histórico, que considera
a língua como base, sobre a qual as relações sociais se constroem, isto é, uma abordagem
que leva em conta a relação entre língua e sociedade (Pêcheux, 1990), e, que, toma o
aspecto subjetivo da língua como constitutivo da linguagem, assim, por esse viés de
filiação, recusamos posições que fundamentam os estudos de linguagem a partir do
pragmatismo de um sujeito bio-psíquico, também nos opomos aos formalistas que
sustentam a relação da linguagem por uma abordagem referencialista.

Dentre tantos estudiosos que tomam a linguagem como objeto de estudo, trazemos
para a análise deste trabalho o semanticista Michel Bréal, nosso objetivo aqui, será o de
caracterizar a constituição do sujeito brealino em seus trabalhos. Para tratarmos dessa
questão mobilizamos como aporte teórico-metodológico conceitos da Semântica do
Acontecimento (GUIMARÃES, 2002).

Nossa análise retoma o percurso da produção científica do linguista Michel Bréal,


reunida em Ensaio de Semântica, obra publicada pela primeira vez na França em 1897
(SEIDE, 2006), e traduzida no Brasil em 1992. A escolha do autor para o desenvolvimento
deste estudo, leva em consideração a sua importante produção intelectual que, de certo
modo, sustentada a linguagem como um fenômeno histórico.

Ao falarmos da Ciência dos estudos das Significações é facultada a Michel Bréal


sua nomeação, a Semântica. Esse dizer se institucionaliza com o acontecimento da
publicação de um dos seus artigos publicado em 1883, “Les Lois Intelectuelles du
Langage. Fragment de Sémantique”. Novamente, esse dizer, ganha notoriedade com a
publicação de Ensaio de Semântica (1897). Já na apresentação desta obra, intitulada “A
Idéia Deste Trabalho”, Bréal sugere aos leitores que o livro deve ser visto como uma
“simples Introdução à ciência” que ele propõe “chamar de Semântica.” Na apresentação
do trabalho de Bréal, é possível observar um estudioso que se afasta dos métodos de
estudos linguísticos desenvolvidos pelos seus antecessores e contemporâneos, Bréal
insinua-se em outro lugar de investigação, suas críticas aos modelos de cunho
“mecanicista ortodoxo” da época são diretas. Vejamos como ele insere essa questão.

(1) Limitar o estudo da linguagem às mudanças de vogais e consoantes


é reduzi-lo às dimensões de um ramo secundário da fisiologia;
contentar-se em enumerar as perdas sofridas pelo mecanismo
gramatical é cair na ilusão de que a linguagem é como um edifício em
ruínas; restringir a linguagem às teorias abstratas sobre sua origem é
correr o risco de acrescentar, sem grande proveito, um capítulo à
história já demasiado longa dos sistemas. Há, parece-me, outra coisa a
fazer: extrair da linguística o que dela ressalta como alimento para a
reflexão e – não temo acrescentar – como regra para nossa própria
linguagem, visto que cada um de nós colabora com sua parte para a
evolução da fala humana. Eis o que merece ser trazido à tona, eis o que
tentei fazer neste volume. (BRÉAL, 2008, p.17)
Bréal, ao contrapor os estudos de linguagem apresentados até então (fim do século
XIX), considerados por ele demasiadamente insípidos e repetitivos, traz de algum modo
seu sujeito da/na linguagem, ainda que não explicitamente, mas o indica com sutileza
única sua constituição, para ele, linguagem e sujeito são constitutivos; o sujeito se faz
com e na linguagem, isto é, o sujeito tomado enquanto falante se constitui constituindo a
língua no seu funcionamento “visto que cada um de nós colabora com sua parte para a
evolução da fala humana”. O autor, ainda na apresentação sobre a ideia do seu trabalho,
passa a construir o argumento que acaba por desenhar a configuração do sujeito brealino.
Vejamos, então, como isso se dá. Para ele, o sujeito que enuncia necessariamente se
sustenta no lugar do historicismo marcado pelas relações sócio-históricas, essa
consideração aponta para a primazia que toma o lugar do sujeito como histórico da/na
linguagem, o que o faz afastar das posições que consideram o sujeito pelo viés do
empirismo psicologizante. Esta questão, a que se coloca o sujeito em Bréal no
historicismo, é trazida de modo bastante particular, primeiro porque o termo “sujeito” não
aparece no texto, mas, ainda assim, o falante brealino toma forma logo no início da
apresentação da obra como se pode observar no fragmento acima (1) e no que se segue
(2).

(2) A linguística fala ao homem dele mesmo: ela lhe mostra como ele
construiu, como aperfeiçoou, por sobre obstáculos de toda natureza,
malgrado inevitáveis demoras, e mesmo recuos momentâneos, o mais
necessário instrumento de civilização. (Idem.)

Como se vê, o autor sustenta a relação de cumplicidade constitutiva entre


sujeito/falante e linguagem, “[...] ela lhe mostra como ele construiu, como aperfeiçoou
[...] o mais necessário instrumento de civilização”. Mas, como apontamos desde o início
deste trabalho, a questão a ser abordada remete-nos em ensaiar um dizer sobre como se
constitui esse homem/sujeito/falante da/na linguagem em Bréal, levando em conta a
condição que trouxemos logo de início, a de negarmos o lugar do sujeito empírico, bio-
psíquico. Como então se apresenta a constituição do sujeito da enunciação em Bréal? Se
é que possamos dizer isto.
Vejamos, os recortes (1) e (2) acima trazem as seguintes configurações para
fala/linguagem – evolução da fala humana/instrumento de civilização:

a) “linguagem” determina “evolução da fala humana”;


b) “instrumento de civilização” reescreve por substituição “linguagem” que por sua vez
determina o sentido de “evolução da fala humana”.

Assim, temos então, a seguinte paráfrase:

c) A linguagem, enquanto instrumento de civilização é responsável pela evolução da


humanidade, ou seja, a evolução humana se dá na/pela linguagem.

Pelo exposto acima, é possível dizer que o sentido de determinação de


“linguagem” sobre “evolução da fala humana” leva-nos a considerar a relação direta e
constitutiva do sujeito da/na linguagem, visto que: “fala humana” está para aquele que
enuncia, o sujeito falante, essa observação se faz plausível ao considerarmos que o termo
“linguagem”, pelo processo de reescrituração é reescriturado por substituição por
“instrumento de civilização”. Assim, o processo de reescrituração apresenta “linguagem”
articulada por uma relação sinonímica com “instrumento de civilização”, essa articulação
constrói a relação predicativa que determina o sentido de “evolução da fala humana”, o
que é fundamental para que se possa dizer que o sujeito falante, aquele que enuncia, se
constitui no funcionamento da linguagem.
Outra questão importante a se observar nessa configuração é a marca indelével da
história construída do lugar do funcionamento da linguagem, nas relações sócio
históricas, num continuo ir e vir, que tem em “instrumento de civilização” (a linguagem)
a determinação do sentido sobre “evolução da fala humana”, a nosso ver, aspecto
determinante que estabelece a relação constitutiva da tríade língua/sujeito/história.
Dito isso, esperamos, mesmo que timidamente, ter incitado um olhar que nos
permita distanciar das posições que supõem o sujeito/falante de modo pragmático tomado
do lugar do empirismo.
Procurando dar mais abertura a questão que acabamos de enfatizar recorremos
àquilo que Bréal chamou de “vontade humana”, pois é preciso mostrar a configuração do
sujeito brealino constituído na tríade.
O autor, ao tomar a decisão de dar publicidade as suas pesquisas, depois de
inúmeras paradas e retomadas, está convicto do avanço em seus estudos de linguagem,
esse avanço se dá pelo desenvolvimento e progresso da linguagem que se sustenta a partir
da única causa verdadeira a que ele chamou de “vontade humana”. Vejamos o que ele diz:

(3) É certo que hoje vejo mais claro o desenvolvimento da linguagem


do que há trinta anos. O progresso consistiu para mim em afastar todas
as causas segundas e dirigir diretamente à única causa verdadeira, que
é a vontade humana. [...] Entre os atos de uma vontade consciente,
refletida, e o puro fenômeno instintivo, há uma distância que deixa lugar
para muitos estágios intermediários, e nossos linguistas teriam
aproveitado mal as lições de filosofia contemporânea se continuassem
a nos impor a escolha entre as duas alternativas desse dilema. É preciso
fechar os olhos à evidência para não ver que uma vontade obscura, mas
perseverante, preside às mudanças da linguagem. (BRÉAL, 2008, p.19)

Em seguida, Bréal continua e traz a seguinte questão: “Como é preciso representar


essa vontade?”, a qual ele mesmo a responde dizendo:

(4) Creio que é preciso representá-la sob a forma de milhares,


milhões, bilhões de tentativas, muitas vezes infelizes, algumas
vezes com algum sucesso, que assim dirigidas, assim corrigidas,
assim aperfeiçoadas, acabam por se definir numa dada direção.
(Idem.)

Como se pode observar no recorte (3), o sentido de “linguagem” opera para a


direção argumentativa de “desenvolvimento” e “progresso”, sendo que ambos os termos
estão sob uma simetria sinonímica, isso nos dá o sentido para linguagem na relação do
desenvolvimento e do progresso, essa argumentação semântica determina o sentido de
linguagem que a predica por “evolução da fala humana” como já visto no recorte (1).
Assim, ainda em (3), temos “desenvolvimento” e “progresso” determinando linguagem e
reescriturando por enumeração “evolução da fala humana”. Isso nos leva a considerar
que “evolução da fala humana” é determinada por “vontade humana”. No recorte (04)
“vontade humana” é reescriturada por condensação pelo procedimento anafórico (ela) em
“representá-la”, e por definição em “sob a forma de milhares, milhões, bilhões de
tentativas, muitas vezes infelizes, algumas vezes com algum sucesso, que assim dirigidas,
assim corrigidas, assim aperfeiçoadas, acabam por se definir numa dada direção.” Com
isso, temos então, as seguintes formulações:

d) A “evolução da fala humana” resulta do “desenvolvimento” e do “progresso” da


“linguagem”, o “instrumento de civilização”;
e) A “linguagem”, enquanto “instrumento de civilização”, determina a “evolução da fala
humana”, enquanto que, “evolução da fala humana” é determinada por “vontade
humana”.

Assim, temos nessa primeira análise, as seguintes projeções parafrásticas:

f) O desenvolvimento e o progresso da linguagem é a causa da evolução da fala humana,


portanto da civilização;
g) O desenvolvimento e o progresso da humanidade se dão pela/com vontade humana;
h) A vontade humana se constrói com o instrumento da civilização (a linguagem),
portanto a evolução da fala humana (a civilização) se faz com o desenvolvimento e o
progresso da linguagem pela vontade humana.

A vontade humana

Retomemos agora uma questão específica dos fragmentos acima, a da “vontade


humana”. Para o autor a “vontade humana” é a única causa verdadeira do
“desenvolvimento” e “progresso” da linguagem. Mas, é importante observar que a
“vontade” em Bréal intervém na história da linguagem, nesse sentido, essa “vontade”,
como diz o próprio Bréal, não se reduz à individualidade do bio-psicologismo simplista,
do desejo do indivíduo querer significar; a vontade consciente, ou instintiva do indivíduo
não tem lugar em Bréal, para ele essa questão reside em outro lugar. A “vontade” brealina
é “obscura” e “perseverante”, constituída por “todo um povo”, como “obra do povo”, por
isso, passível intervir na história da linguagem, nas “mudanças da linguagem”. Ainda em
Bréal, a “vontade humana” é representada sob a forma infinita de tentativas, podendo ser
bem sucedidas ou não, mas que de algum modo “acabam por se definir numa dada
direção” (idem, 19). Para ele, então, o “desenvolvimento” e o “progresso” da linguagem
se dão pela intervenção da “vontade humana” (h), isto é, do sujeito/falante da/na
linguagem. Por essa via, podemos dizer que a linguagem, para ele, é tomada como um
fenômeno histórico, assim, a linguagem não pode ser tratada por uma posição de filiação
darwinista, ou seja, como um “organismo vivo” que, por si só, nasce, se desenvolve e
morre. A linguagem em Bréal é interdependente da “vontade humana”, portanto do sujeito
constituído na/pela linguagem.
Para precisarmos melhor essa formulação vejamos o que o autor diz sobre sentidos
outros das palavras, o deslocamento semântico: na apresentação do livro, “A Idéia deste
Trabalho” temos (5) “As inovações gramaticais são do mesmo tipo, com a diferença de
que todo um povo dela participa” (19, 20); no capítulo, “A história das Palavras”, diz ele:
(6) “[...] as mudanças de sentido das palavras são obra do povo [...] fora do nosso espírito,
a linguagem não tem vida nem realidade.” (Idem. p. 181). Duas questões nessas
passagens são decisivas para a descrição do sujeito em Bréal: primeiro, é de fundamental
importância observar o fato de que as mudanças de sentido se dão de alguma forma pelo
sujeito/falante, não um sujeito empírico marcado pela individualidade bio-psíquica, o que
se tem em Bréal é um sujeito representado por povo, ou seja, o povo é tomado enquanto
sujeito histórico, como resultado das práticas e relações sócio-históricas, estas construídas
na/pela linguagem. Assim, o que leva à mudança de sentido das palavras se produz no
funcionamento da linguagem, isto é, a relação constitutiva sujeito/língua/história se faz
presente nessa passagem, tem se aí o sujeito tomado pela língua enquanto falante de uma
língua; a segunda, de certo modo está ligada à primeira, leva em consideração o fato de
que a língua significa pela intervenção da vontade do sujeito da/na linguagem, mas é bom
retomarmos o que dissemos acima, a vontade não é algo consciente ou individual, é,
segundo Bréal, (7) “obscura e perseverante”, representada “sob a forma de milhares,
milhões, bilhões de tentativas muitas vezes infelizes, algumas vezes com algum sucesso
[...]” (BRÉAL, 2008, p. 19), nesse sentido, a vontade resulta de um acontecimento
caracterizado por uma forma de acordo normatizado simbolicamente, mediado pela
intervenção do sujeito que se constitui na linguagem, marcadamente, sua constituição
leva em consideração os aspectos das práticas sócio históricas, sua historicidade.
Observemos como Bréal procura apresentar esse sujeito histórico, constituído nas
relações das práticas sócio-históricas a partir do funcionamento da “vontade humana”.
Para ele, a “vontade humana” é sempre reflexo da intervenção do povo (sujeito da/na
linguagem). Vejamos a passagem em que ele diz sobre o avanço da civilização:

(8) À medida que uma civilização avança em diversidade e riqueza, as


ocupações, os atos, os interesses que compõe a vida em sociedade se
distribuem entre diferentes grupos humanos: nem o estado de espírito,
nem a direção da atividade são os mesmos para o padre, o soldado, o
político, o artista, o comerciante, o agricultor. Embora tenham herdado
a mesma língua, as palavras assumem para cada um deles nuanças
distintas, que se fixam e terminam por aderir a elas. (BRÉAL, 2008, p.
184)

Como se pode observar, o recorte (8) apresenta o avanço da civilização ligado


intrinsicamente às práticas sociais. Temos o sentido de “civilização” predicado pelo
sentido de “diversidade” e “riqueza”; enquanto que “vida em sociedade” reescreve por
substituição “grupos humanos”. Por outro lado, “vida em sociedade” e “grupos humanos”
determinam o sentido de “civilização”. Ou seja, este recorte (8) pode ser parafraseado
como se segue:

i) O avanço da civilização é resultado da diversidade e da riqueza de uma sociedade,


sendo esta dividida pelo seu extrato social, o povo que a representa.

Vejamos, então, como fica caracterizada a “vontade humana” em Bréal:

j) “vontade humana” determina “desenvolvimento” e “progresso” da linguagem;


l) “vontade humana” está na relação antonímica de vontade “consciente” e “instintiva”, a
vontade do indivíduo bio-psíquico;
m) “vontade humana” está na relação sinonímica de “vontade obscura e perseverante”;
n) “vontade humana” é reescriturada por enumeração por “todo um povo” e “obra do
povo”, estas por sua vez predicam “inovações gramaticais” e “mudanças de sentido” (o
funcionamento da linguagem) assim, ambas reescrevem linguagem;

Essas observações reafirmam a propositura que se quer neste trabalho, a da


descrição do sujeito brealino, elas trazem novamente para a discussão a linguagem
marcada como constitutiva do sujeito falante, pois temos em “grupos humanos” os
sujeitos/falantes “divididos por seus direitos ao dizer e modos a dizer” (GUIMARÃES,
2002, p. 18), ou seja, os lugares sociais de dizer, que são constitutivos da/na enunciação,
constituem o sujeito falante em Bréal. Assim, padre, soldado, político, artista,
comerciante, agricultor... (lugares sociais de dizer) predicam o sentido para “vida em
sociedade” e “grupos humanos” que podem ser reescriturados por condensação por
“povo”. Essa caracterização de “povo” tomado enquanto sujeito/falante, aquele que
enuncia, que diz, fala sempre afetado de um lugar social de dizer por um modo específico
de dizer, nesse aspecto podemos considerar que a configuração do sujeito em Bréal traz
também o lugar dos estudos enunciativos como constitutivo da sua produção intelectual.
Essa configuração de sujeito é construída sócio historicamente no funcionamento da
língua, levando em consideração o lugar social de dizer (o sujeito tomado enquanto
locutor), esse caminho que tomamos nos permite marcar a heterogeneidade do sujeito
brealiano, sua pluralidade, bem como a do lugar polissêmico da língua. Vejamos como
Bréal traz essas questões no funcionamento da linguagem em “A História das Palavras”:

(9) As palavras mais abrangentes são por isso mesmo aquelas que têm
mais aptidão a usos mais numerosos. Na palavra operação, se ela é
pronunciada por um cirurgião, vemos um paciente, uma ferida,
instrumentos cirúrgicos; suponha um militar falando, pensamos logo
em exércitos em campanha; tratando-se de um banqueiro,
compreendemos que se trata de capitais em movimento; se quem fala é
um professor de cálculo, o assunto é adição ou subtração. Cada ciência,
cada arte, cada ofício, compondo sua terminologia, marca com seu selo
as palavras da língua comum. (p. 184)

(10) [...] a palavra chega preparada pelo que a precede e pelo que a
rodeia, comentada pelo tempo e o lugar, determinada pelos personagens
que estão em cena. (p.184)

Encontramos no recorte (9), os lugares que caracterizam a heterogeneidade do


sujeito da enunciação (cirurgião, militar, banqueiro, professor...), esses lugares (lugares
sociais de dizer) são determinantes na construção de sentidos no acontecimento do dizer,
com o advindo da heterogeneidade, abre se o lugar que possibilita o caráter polissêmico
da língua, o lugar que compõe a história enunciativa da palavra. Já, no recorte (10), Bréal
apresenta a cena enunciativa, o acontecimento que institui os personagens do dizer,
aqueles que ao falarem insinuam os traços semânticos que se constroem na enunciação.

O Elemento Subjetivo

Bréal no capítulo “O Elemento Subjetivo”, começa afirmando que “o elemento


subjetivo é a parte mais antiga da linguagem”. Para tratar dessa questão o autor traz à
discussão a metáfora que compara a linguagem a

(6) [...] um drama em que as palavras figuram como atores e em


que o agenciamento gramatical reproduz os movimentos dos
personagens [...] o produtor intervém frequentemente ação para
nela misturar suas reflexões e seu sentimento pessoal, não à
maneira de Hamlet que, mesmo interrompendo seus atores,
permanece alheio à peça, mas como nós mesmos fazemos no
sonho, quando somos ao mesmo tempo espectador interessado e
autor dos acontecimentos. (BREÁL, p.157)
Para Bréal a questão da subjetividade é uma questão linguística e constitutiva do
funcionamento da linguagem, para ele, é no acontecimento enunciativo que se instaura
indubitavelmente o elemento subjetivo da linguagem. Como se vê no recorte (6), o autor
apresenta o lugar da subjetividade da língua, a relação de dualidade marcante no
acontecimento do dizer, isto é, se temos os atores agenciados pela trama enquanto
personagens, a marca da subjetividade se apresenta, uma vez que, “somos ao mesmo
tempo espectador interessado e autor dos acontecimentos”. Assim, temos o sujeito/falante
marcado pela subjetividade da linguagem, ou seja, na enunciação, no dizer manifesta-se
o elemento subjetivo da língua. Para ele a representação desse aspecto subjetivo se
constitui em três grupos: 1) palavras ou membros de frase; 2) por formas gramaticais; 3)
pelo plano geral de nossas línguas. A subjetividade expõe a impressão do sujeito/falante
no funcionamento da língua.
Ainda, avançado nessa questão, Bréal apresenta as pessoas verbais como
determinantes do aspecto da subjetividade, mais tarde Benveniste também trataria dessa
questão (1946, 1956). Diz o autor:

(07) O homem ao falar está tão longe de considerar o mundo


como observador desinteressado que se pode julgar, ao contrário
que a parte que ele se dá a si mesmo na linguagem é
desproporcionada. Sobre as três pessoas do verbo, há uma que ele
se reserva de modo absoluto (a que se convencionou chamar a
primeira). Desse modo ele opõe sua individualidade ao resto do
universo. Quanto a segunda pessoa ela não nos distancia ainda
muito de nós mesmo, já que a segunda não tem outra razão de ser
que a de achar-se interpelada pela primeira. Pode-se, pois, dizer
que só a terceira pessoa representa a objetividade da linguagem.
(Béal, 2008, p. 161)

Para Bréal, a terceira pessoa está ligada a objetividade da língua, está no plano
descritivo, narrativo da linguagem, é a que apresenta, de certo modo, a relação direta da
linguagem, diria o próprio autor “a fala não foi feita para a descrição, para a narrativa,
para as considerações desinteressadas.” (op.cit., 161). Já a primeira e segunda pessoa está
associada a subjetividade da linguagem, ligadas as denúncias apresentadas pela língua no
dizer. Elas marcam as impressões do sujeito/falante. A subjetividade para ele é, então,
“parte essencial, e sem dúvida do fundamento primordial ao qual o resto foi
sucessivamente ajuntado”.

Considerações

Procuramos mostrar neste trabalho, um Bréal do lugar dos estudos enunciativos.


Nosso estudo tomou a formulação da constituição do sujeito brealino, um sujeito histórico
constituído na/pela linguagem no seu funcionamento, a partir da relação constitutiva da
tríade língua/sujeito/história. Essa caracterização de sujeito, construída sócio
historicamente no funcionamento da língua (a enunciação), marca a heterogeneidade do
sujeito brealiano, sua pluralidade, ao mesmo tempo, a direção analítica que tomamos, nos
leva a dizer, que em Bréal, a língua, no seu funcionamento, se apresenta como não
unívoca, não transparente, seu caráter existencial se dá na possibilidade do lugar que
historiciza e tenciona o sentido entre o parafrástico e o polissêmico, sempre constituído
na relação da tríade língua/sujeito/história.
Assim, em Bréal, temos um sujeito que se constitui sócio-historicamente na/pela
linguagem no seu funcionamento, e por considerar esse sujeito como sujeito da/na
linguagem, o aspecto da subjetividade da língua se faz presente na sua formulação como
aspecto constitutivo da linguagem, para ele, há nas línguas, a marca da subjetividade, as
línguas carregam os traços que identificam essa marca no seu funcionamento.
Esperamos que este caminho aberto por nossas análises possa provocar novos
debates sobre a obra do linguista Michel Bréal.

Referências

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SEIDE, Márcia Sipavicius. A Semântica de Michel Bréal: Recontextualização, Fortuna
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