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UnB-IL-LIP

Disciplina: Morfologia do Português (2022.2)


Professora: Helena Guerra Vicente

Anotações 1

Vejamos brevemente os diferentes níveis de análise linguística:

1) Fonologia: o estudo de como os sons se organizam em uma dada língua. Há


unidades chamadas fonemas, que se combinam de várias maneiras possíveis
para formarem unidades maiores de sentido, tais como as palavras.
2) Sintaxe: o estudo de como os membros das classes de palavras se combinam
para formar unidades maiores de sentido, tais como os sintagmas e as orações.
3) Semântica: o estudo sistemático do significado.
4) Morfologia: o estudo da formação de palavras – a “formação” podendo aqui ser
entendida em seu sentido mais estanque, isto é, o do estudo da estrutura interna
das palavras, ou em seu sentido mais dinâmico, isto é, o da possibilidade de se
prever que tipo de palavra pode vir a ser formada dentro do sistema de uma
dada língua (“deletar”, “bugado”, “show-de-bolice”, “sem-jeitismo” etc.).

Esses níveis possuem terminologia própria (‘fonema’, ‘fone’ etc., na fonologia; ‘sujeito’,
‘objeto’ etc., na sintaxe; ‘agente’, ‘paciente’ etc., na semântica; ‘morfema’,
‘substantivo’, ‘verbo’ etc., na morfologia), porém, “conversam” entre si. A essa
“conversa”, damos o nome de “trabalho ou análise na interface”. Para dar um exemplo:
quando associamos um determinado morfema (o de plural, -s, por exemplo) a um
determinado significado (noção de “pluralidade”), diz-se que estamos trabalhando ou
realizando uma análise na interface morfologia-semântica. Outro exemplo: quando
marcamos para o plural todos os membros de um sintagma nominal, para promover a
concordância nominal (“Aquela-s menina-s bonita-s”), diz-se que estamos trabalhando
na interface morfologia-sintaxe. Esse tipo de trabalho é tão comum que até mesmo
temos uma disciplina denominada “Morfossintaxe” nos cursos de Letras.

Pedi a vocês para que fizessem um brainstorming (ou “toró de palpites”) das quatro
principais dicotomias saussureanas estudadas anteriormente na disciplina de
Introdução à Linguística. Vocês se saíram muito bem. De uma maneira resumida, vocês
foram capazes de construir os seguintes quadros:

Língua (langue) Fala (parole)


Fato social Fato individual
Sistema abstrato Realização concreta da língua
Não é função do falante Pressupõe esforço intelectual
Homogênea Heterogênea
A língua é o objeto de estudo da
Linguística
Sincronia Diacronia
Representada pelo eixo das Representada pelo eixo das
simultaneidades; sucessividades;
Helena Guerra Vicente
Morfologia do Português (2022.2)
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Para Saussure, a língua só existe em Um estudo diacrônico de determinado
sincronia; fenômeno da língua envolve o estudo de
Um estudo sincrônico de determinado sua evolução;
fenômeno da língua envolve um recorte Exemplo: verbo pôr como de 2ª
no tempo; conjugação – o verbo pôr é de 2ª
Exemplo: verbo pôr como de 2ª conjugação porque evoluiu a partir da
conjugação – o verbo pôr é de 2ª forma latina ponere (vogal temática de 2ª
conjugação porque sua vogal temática é - conjugação -e- (pon-e-re)).
e- (como comprovam as formas
flexionadas pus-e-sse, pus-e-r, põ-e, etc.)
Relações paradigmáticas (ou Relações sintagmáticas
associativas)
Existem in absentia Existem in praesentia
Constituem listas de possibilidades da Constituem escolhas feitas pelo falante,
língua: dentre um leque de possibilidades
↓ O carro azul disponíveis na língua:
Aquele banco velho →
Esse quadro antigo Aquele carro antigo
Significado Significante
Conceito, sentido Imagem acústica ( = som a que se atribui
um conceito, um sentido)
O signo linguístico se constitui de significado + significante (são noções abstratas,
indissociáveis, como “as duas faces de uma moeda”). O signo linguístico é arbitrário e
convencional.

Prometi, para o nosso segundo encontro, continuar falando sobre as dicotomias, mas
acrescentando críticas e reflexões que foram sendo feitas por linguistas pós-
saussureanos.

Voltemos à dicotomia língua x fala:

Eugenio Coseriu (1921-2002), por exemplo, acrescenta, à dicotomia língua x fala, uma
terceira noção: a de “norma”. Para ele:

A língua é um código. Trata-se de um conjunto de signos utilizados pelos membros de


uma comunidade para comunicação e interação social. Sistema abstrato.
A norma, que estaria numa posição intermediária entre a língua e a fala, seria um
subcódigo, tratando-se do uso concreto da língua sancionado pela comunidade. A
norma revela a maneira pela qual o sistema funciona em uma coletividade.
A fala seria a realização individual desse subcódigo que é a norma. Trata-se de um ato
individual e de vontade e esforço intelectual.

Émile Benveniste (1902-1976), ele próprio estruturalista, faz uma crítica ao


Estruturalismo, um dos “filhotes” das ideias saussureanas: “Para Benveniste, o
estruturalismo teria negligenciado o papel essencial que o sujeito desempenha na
língua. [...]Algumas estruturas [...] deixam de fazer sentido se a língua for descrita sem

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referência à fala e aos diferentes papéis que os falantes assumem na interlocução”
(ILARI, 2005, p. 81).

Michel Pêcheux (1938-1983) e outros analistas do discurso também identificam esse


negligenciamento do sujeito, e direcionam seus estudos para a identidade e a ideologia,
geralmente identificáveis na fala (não entendida como “modalidade oral”, mas como
uma manifestação do indivíduo, do sujeito).

Em relação à dicotomia diacronia x sincronia, há a crítica de Eugenio Coseriu de que “a


possibilidade de delimitar uma sincronia é uma ficção, pois a todo momento o velho
convive com o novo. É a convivência de fragmentos de velhos sistemas com fragmentos
de novos sistemas que caracteriza um estado de língua dado” (ILARI, ANO, p. 81).

Atualmente, convivem pacificamente estudos sincrônicos e estudos diacrônicos da


língua.

Em relação à teoria do signo linguístico (significado + significante, de acordo com


Saussure), há uma crítica bastante interessante por parte de Charles Kay Ogden (1889-
1957) & Ivor Armstrong Richards (1893-1979), representada no chamado “Triângulo da
Referência”, ou “Triângulo do Significado”, ou, ainda “Triângulo Semiótico”. De acordo
com Ogden & Richards, no modelo saussureano ficou faltando representar o referente,
ou seja, a “coisa” no mundo, a “coisa” significada. Nesse triângulo, o
pensamento/referência corresponderia ao significado saussureano, e a linha pontilhada
representa a falta de relação entre o símbolo (que, para Saussure, corresponderia ao
significante) e o referente (adapt. de Kreidler, 1995):

pensamento/referência

1
símbolo.....................referente
Essa ideia faz muito sentido, se aceitarmos a argumentação de Saussure de que não há
motivação para uma casa ser chamada de “casa”, ou uma porta ser chamada de “porta”.
A natureza do signo é arbitrária, mas, a partir do momento em que um signo é
sancionado por uma comunidade, então não se pode chamar uma porta de “cadeira”,
por exemplo.

Referências:

ILARI, R. O Estruturalismo Linguístico: alguns caminhos. In: MUSSALIM, F. & BENTES, A.C.
(orgs.) Introdução à Lingüística: Fundamentos Epistemológicos (vol.3). São Paulo:
Cortez, 2004, p. 53-92.
KREIDLER, C. W. Introducing English Semantics. London and New York: Routledge, 1998.

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Próximo conteúdo: A Teoria Gerativa
Você vai precisar ler sobre:

• A dicotomia chomskiana: competência e desempenho


• Conceitos de gramática
• Gramática Universal
• A Faculdade da Linguagem: a tese inatista
• O problema lógico da aquisição
• A Teoria de Princípios e Parâmetros

Leituras:

MIOTO, C., FIGUEIREDO SILVA, M. C. & LOPES, R. E. V. O estudo da gramática. In: _____.
Novo Manual de Sintaxe. Florianópolis: Insular, 2004, p. 11-37.
ROSA, M. C. Teoria para quê? In: _____. Introdução à Morfologia. São Paulo: Contexto,
2006, p. 14-25.

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