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B M T O R A 34

Editora 34 I.tda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa C E P 01455-000
§8o Paulo -.SP Brasil Tel/Fax (11) 3811-6777 www.editora34.com.br

Copyright © Editora 34 Ltda. (edição brasileira), 2013


Tradução @ Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo, 2013
Copyright © Mikhail Bakhtin
Published by arrangement with Elena Vladimirovna Ermilova Questões de estilística no ensino da língua
and Serguey Georgevich Bocharov. Ali rights reserved.

A FOTOCÓPIA D E Q U A L Q U E R F O L H A D E S T E L I V R O É I L E G A L E C O N F I G U R A U M A

APROPRIAÇÃO I N D E V I D A D O S D I R E I T O S I N T E L E C T U A I S E P A T R I M O N I A I S D O A U T O R . Lições de gramática


do professor Mikhail M . Bakhtin,
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Beth Brait 7
Bracher & Malta Produção Gráfica
Nota das tradutoras 19
Revisão:
Cecília Rosas Questões de estilística no ensino da língua,
Mikhail M. Bakhtin 23
I a Edição - 2013 (1 Reimpressão), 2 a Edição - 2019
Sobre o texto de Bakhtin,
CIP - Brasil. Catalogação-na-Fonte
Liudmila Gogotichvíli 45
(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)

Bakhtin, Mikhail (1895-1975)


Notas da edição russa 61
B142q Questões de estilística no ensino da língua /
Mikhail Bakhtin; tradução, posfácio e notas de Bakhtin, Vinográdov e a estilística,
Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo 93
apresentação de Beth Brait; organização e notas
da edição russa de Serguei Botcharov e Liudmila
Gogotichvíli. — São Paulo: Editora 34, 2019 Sobre o autor 117
(2 a Edição).
120 p.
Sobre as tradutoras 119

ISBN 978-85-7326-542-2

Tradução de: Vopróssi stilístiki na urókakh


rússkogo iaziká v sriédnei chkóle

1 . Ensino da língua. 2. Gramática.


I . Grillo, Sheila. II. Vólkova Américo, Ekaterina.
III. Brait, Beth. IV. Botcharov, Serguei (1929-2017).
V. Gogotichvíli, I.iudmila. V I . Título.

C D D - 375.608
Questões de estilística no ensino da língua 1

Mikhail Bakhtin

As formas gramaticais [ l ] 2 não podem ser estudadas sem


que se leve sempre em conta seu significado estilístico. Quan-
do isolada dos aspectos semânticos e estilísticos da língua, a
gramática inevitavelmente degenera em escolasticismo.
Nos tempos atuais essa afirmação, em sua formulação
geral, já soa como um truísmo. Entretanto, no que diz res-
peito ao seu emprego concreto na prática educacional, a
questão está longe do ideal. N a prática, muito raramente o
professor dá e sabe dar explicações estilísticas para as formas
gramaticais estudadas. Às vezes ele até aborda a estilística
nas aulas de literatura (aliás, muito pouco e de modo super-
ficial), mas o conteúdo das aulas de língua materna é a gra-
mática pura. [2]

1 Nesta edição, optou-se por uma forma simplificada do título ori-

ginal, "Questões de estilística nas aulas de língua russa no ensino médio".


O sistema educacional na União Soviética passou por muitas reformas. Na
época em que foi escrito o artigo (anos 1940), dividia-se em três partes: a
pré-escola; o ensino médio; e o ensino superior. O ensino médio, por sua
vez, dividia-se em ensino médio incompleto, da I a à 7 a série (equivalente
Tradução do original russo "Vopróssi stilístiki na urókakh rússko- no Brasil ao ciclo do ensino fundamental), e o ensino médio completo
go iaziká v sriédnei chkóle", em Mikhail M . Bakhtin, Sobránie sotchinié- (opcional), da 8 a à 10 a série (equivalente no Brasil ao ensino médio). No
nii v semítomâkh [Obras reunidas em 7 volumes], vol. 5, Rabóti 1940-kh artigo, Bakhtin relata um trabalho realizado com alunos do último ano do
— natchála 1960-kh godóv [Trabalhos dos anos 1940 ao começo dos anos nosso ensino fundamental até o final do nosso ensino médio. (N. da T.)
1960], Serguei G . Botcharov e Liudmila A. Gogotichvíli (orgs.), Moscou, 2 Os números entre colchetes referem-se às notas da edição russa,
Rússkie Slovarí, 1997. reproduzidas no presente volume às páginas 61-91. (N. da T.)

Questões de estilística no ensino da língua 23


O problema é que uma abordagem mais ou menos sis- das de uma perspectiva estilística. No estudo de alguns as-
temática da estilística das formas gramaticais isoladas 3 está pectos da sintaxe, aliás muito importantes, essa abordagem
totalmente ausente da nossa bibliografia metodológica. Essa estilística é extremamente necessária. Isso ocorre, sobretu-
abordagem da questão quase não foi colocada — nem se co- do, no estudo das formas sintáticas paralelas e comutativas,
loca 4 atualmente — em nossa literatura. Caso necessite com- isto é, quando o falante ou o escritor tem a possibilidade de
preender o significado estilístico de alguma forma gramati- escolher entre duas ou mais formas sintáticas igualmente
cal, por exemplo, do aspecto verbal, do particípio, do gerún- corretas do ponto de vista gramatical. [10] Nesses casos, a
dio, o professor precisará consultar livros de acesso muito di- escolha é determinada não pela gramática, mas por consi-
fícil, como Algumas notas sobre a gramática russa [Iz zapís- derações puramente [11] estilísticas, isto é, pela eficácia re-
sok po rússkoi grammátike] de A . A . Potebniá. [7] Embora presentacional e expressiva dessas formas. Por conseguinte,
bem profundas, as análises que ele encontrará nessa obra nem em tais situações é impossível prescindir das explicações
sempre são capazes de dar respostas às suas questões práti- estilísticas.
cas. Repetimos: em lugar algum ele encontrará uma aborda- Por exemplo, o aluno aprende em quais condições uma
gem sistemática para as questões estilísticas da gramática. oração subordinada adjetiva pode ser transformada em um
Desnecessário dizer que os manuais de S. G . Barkhudá- particípio e quando tal mudança é impossível, além de tomar
rov, bem como os textos de metodologia sob sua organização, conhecimento da técnica gramatical dessa conversão. Entre-
não fornecem ao professor nenhuma ajuda nessa área. 5 tanto, nem os professores nem o manual explicam ao aluno
Toda forma gramatical é, ao mesmo tempo, um meio de quando e para quê essa alteração é feita. Involuntariamente
representação. [9] Por isso, todas essas formas podem e de- o aluno se pergunta: para que preciso saber fazer tal trans-
vem ser analisadas do ponto de vista das suas possibilidades formação, se não entendo seu objetivo? Está claro que o
de representação e de expressão, isto é, esclarecidas e avalia- ponto de vista estritamente gramatical não é em absoluto
suficiente em tais situações. [12] Observemos as seguintes
frases:

3 A antiga tentativa de V. Tchernichióv de elaborar tal estilística não A notícia que eu ouvi hoje me interessou muito.
teve êxito e não é capaz de ensinar quase nada ao nosso professor. Ver: V.
A notícia ouvida por mim hoje me interessou muito.
Tchernichióv, Právilnost i tchistotá rússkoi riétchi: ópit rússkoi stilistí-
tcheskoi grammátiki [Correção e pureza da língua russa: estudo de uma
gramática estilística russa], São Petersburgo, 1914-5. [3] Ambas são gramaticalmente corretas. A gramática per-
4 A gramática estilística (e seu fundamento: a estilística linguística)
mite as duas formas. Mas quando devemos escolher uma ou
foi melhor estudada na França. Seus fundamentos científicos foram os outra? Para responder a essa pergunta, é preciso entender os
trabalhos da escola de Ferdinand de Saussure ([Charles] Bally, [Albert] aspectos estilísticos positivos e negativos, isto é, a especifici-
Sechehaye, [Pierre] Thibaud etc). [4] Há excelentes manuais de prática dade estilística de cada uma dessas duas formas. O professor
escolar. [5] Na Alemanha, essas questões foram abordadas pela escola de
deve mostrar, de um modo que seja bem acessível aos alunos,
Vossler (Leo Spitzer, [Etienne] Lorck, [Eugen] Lerch etc). [6]
o que perdemos e o que ganhamos ao escolhermos uma ou
5 Nesse manual, alguns exercícios de sintaxe desorientam completa-
outra dessas frases. Ele deve explicar aos alunos que, ao
mente o professor. [8]

24 Mikhail Bakhtin Questões de estilística no ensino da língua 25


transformar uma oração subordinada desenvolvida em uma Por meio da correta entonação dessa frase, mostramos
reduzida de particípio, diminuímos a natureza verbal dessa aos alunos que as palavras "ouvida por mim hoje" são pro-
frase, realçamos o caráter secundário da ação, expresso pelo nunciadas de forma mais rápida e quase sem nenhuma ênfa-
verbo " q u v i r " , assim como diminuímos a importância da se. O valor semântico dessas palavras é diminuído drastica-
palavra indicativa de circunstância "hoje". Por outro lado, mente: é como se nossa entonação passasse por elas negli-
essa alteração provoca uma concentração de sentido e de gentemente, apressando-se em direção à palavra "notícia"
ênfase no "protagonista" dessa frase, na palavra "notícia", sem parar no caminho, sem pausa. Os alunos compreenderão
ao mesmo tempo em que se obtém uma grande concisão o sentido estilístico da colocação do particípio diante do re-
expressiva. ferido substantivo, um sentido que seria completamente ocul-
N a primeira frase, há dois personagens ou protagonis- to para eles em uma abordagem formal e gramatical sobre o
tas: "notícia" e " e u " , sendo que algumas palavras agrupam- uso das vírgulas. A propósito, o uso das vírgulas ganharia
-se em torno de "notícia" ("muito", "interessou" e " m e " ) , e um novo significado.
outras em torno de " e u " ( " o u v i " e "hoje"). N a segunda É óbvio que a explicação estilística de nossas frases está
frase, o segundo protagonista ("eu") sai de cena, e todas as longe de esgotar o assunto. Porém, é suficiente para nossos
palavras agrupam-se agora em torno do único protagonista, objetivos. Nesse exemplo, o mais importante é mostrar a
"notícia" (ao invés de "eu o u v i " , agora temos " a notícia necessidade absoluta da interpretação estilística de todas as
ouvida"). Isso altera o peso semântico específico das palavras formas sintáticas parecidas. [15] Infelizmente, de modo ge-
isoladas que compõem a frase. A fim de levar os estudantes ral, nossos professores têm dificuldade em dar tais explica-
a compreenderem por si mesmos essa questão, [13] é útil ções. Às questões dos alunos sobre quando e para quê fazer
fazer a seguinte pergunta: seria possível fazer a transforma- a transformação (que eles costumam fazer com frequência e
ção, se o falante quisesse enfatizar [14] que foi justamente insistência), o professor limita-se a responder de modo re-
hoje que ele ouviu a notícia? Imediatamente fica claro para corrente que convém evitar a repetição excessiva da palavra
os estudantes como o peso específico dessa palavra enfraque- "que" [16] e orientar-se [17] pelo que for mais harmonio-
ce com a mudança. E m seguida, é preciso mostrar a eles que so. Tais respostas são insuficientes, além de incorretas em
a natureza verbal da frase e o peso específico das palavras essência.
indicativas de circunstâncias podem diminuir ainda mais, se A interpretação estilística é absolutamente necessária
a oração reduzida de particípio for colocada antes do subs- para o ensino de todas as questões de sintaxe do período
tantivo determinado por ele: composto, [18] isto é, ao longo do curso inteiro da 7 a série. 7

Ouvida por mim hoje a notícia me interessou muito.6


servar as alterações na ordem e no efeito estilístico, embora nem sempre
o resultado soe natural em português. Observe-se que o mesmo ocorre
com alguns exemplos retirados do artigo de Vinográdov utilizados no
6 Por ser uma língua declinada, o russo proporciona uma maior di- texto "Bakhtin, Vinográdov e a estilística" (pp. 93-116 deste volume). (N.
versidade na ordenação das palavras na frase; variação acompanhada daT.)
normalmente por uma mudança de ênfase. Nossa tradução procurou pre- 7 Equivalente ao 9° ano do nosso ensino fundamental. (N. da T.)

26 Mikhail Bakhtin Questões de estilística no ensino da língua 27


[19] A análise estritamente gramatical desses aspectos faz escritas por alunos dos últimos anos ( 8 a , 9 a e 10 a série do
com que os estudantes somente aprendam, no melhor dos ensino médio). 8 Todo professor sabe disso por experiência
casos, a analisar frases prontas em um texto alheio e a em- própria. Analisei detalhadamente todas as redações feitas em
pregar os sinais de pontuação nos ditados de modo correto, casa e na sala de aula de duas turmas paralelas de 8 a série
mas a liflguagem escrita e oral dos alunos quase não se enri- produzidas no primeiro semestre, totalizando cerca de tre-
quece com as novas construções: eles não utilizam, de modo zentas redações. E m todas essas redações ocorreram apenas
algum, muitas das formas gramaticais estudadas e, quando três casos de utilização de período composto por subordina-
o fazem, revelam total desamparo diante da estilística. ção sem conjunção (é claro, com exceção das citações)! Com
Sem a abordagem estilística, o estudo da sintaxe não en- o mesmo objetivo examinei aproximadamente oitenta reda-
riquece a linguagem dos alunos e, privado de qualquer tipo ções dos alunos da 10 a série referentes ao mesmo período.
de significado criativo, não lhes ajuda a criar uma linguagem Nelas ocorreram apenas sete casos de utilização dessas for-
própria; ele os ensina apenas a analisar a linguagem alheia já mas. [22] As conversas com professores de outras escolas
criada e pronta. Entretanto, isso já é escolasticismo. Neste confirmaram as minhas observações. N o começo do segundo
trabalho, pretendemos nos deter na análise estilística mais semestre, fiz ditados especiais para a 8 a e 10 a séries nos quais
detalhada de apenas uma forma: os períodos compostos por havia períodos compostos por subordinação sem conjunção.
subordinação sem conjunção. A nosso ver, o ensino correto Os resultados dos ditados foram bastante satisfatórios: havia
e profundo dessa forma é extremamente produtivo para que pouquíssimos erros de pontuação nesses períodos.
os alunos aprendam a usar a linguagem de modo criativo. Os ditados e as conversas posteriores com os alunos
Entretanto, essa questão ainda não foi elucidada na nossa bi- convenceram-me de que, ao encontrar o período composto
bliografia. Nos trabalhos de Potebniá, Chákhmatov e Pe- sem conjunção em um texto alheio pronto, os alunos o en-
chkóvski encontra-se um número significativo de observa- tendiam bem, lembravam das regras e quase não erravam na
ções valiosas sobre diversos tipos de períodos compostos pontuação. Porém, ao mesmo tempo eles não sabiam em
por subordinação sem conjunção, porém essas observações absoluto utilizar essa forma em seus próprios textos, não
não foram sistematizadas e estão longe de serem completas sabiam utilizá-la de modo criativo. Isso aconteceu porque o
do ponto de vista estilístico. [20] É claro, no nosso caso es- significado estilístico dessa forma notável não foi devidamen-
sa questão nos interessa antes de mais nada sob o prisma te abordado na 7 a série. Os alunos não sabiam seu valor.
metodológico. Seria preciso mostrar a sua importância para eles. Seria pre-
Por meio desse exemplo de análise estilística de uma ciso fazer com que os alunos tomassem gosto por ela, forçá-
questão gramatical particular, esperamos explicar melhor a -los a apreciar o período composto sem conjunção como um
nossa ideia geral sobre o papel da estilística nas aulas de meio de expressão linguística excelente, por meio de uma
língua materna. [21] minuciosa análise estilística das particularidades e vantagens
dessa forma. Mas como fazer isso?

O período composto por subordinação sem conjunção 8 Séries equivalentes ao I o , 2° e 3° ano do nosso ensino médio. (N.
(de todos os tipos) aparece muito raramente nas produções daT.)

28 Mikhail Bakhtin Questões de estilística no ensino da língua 29


Pelas minhas observações e pela minha experiência, esse Estou triste, porque o amigo não está comigo.
trabalho deve ser organizado do seguinte modo. Ele deve Ou:
basear-se em uma análise detalhada das três frases a seguir: Estou triste, uma vez que o amigo não está comigo.
1) Triste estou: o amigo comigo não está. (Púchkin) Ambas as frases estão totalmente corretas tanto do pon-
2) Ele começa a rir — todos gargalham. (Púchkin) to de vista gramatical quanto do estilístico. Ao mesmo tempo,
3) Acordei: cinco estações tinham ficado para trás. (Gó- os alunos aprenderam que a omissão ou a recolocação da
gol) [23] conjunção não é um procedimento simplesmente mecânico:
[24] ela determina a ordem das palavras na oração e, por
Ao começar a análise da primeira frase, em primeiro lu- conseguinte, a distribuição das ênfases dadas às palavras.
gar devemos lê-la com uma expressividade máxima, até re- 2) Fazemos a seguinte pergunta aos alunos: qual é a
forçando um pouco a sua estrutura de entonação e enfatizan- diferença entre a oração com conjunção criada por nós e a
do, com ajuda de mímica facial e de gestos, o elemento dra- oração sem conjunção de Púchkin? Sem grandes dificulda-
mático contido nessa frase: é muito importante fazer com que des obtemos a resposta de que na nossa reformulação foi
os alunos escutem e avaliem aqueles momentos de expressi- perdida a expressividade emocional da frase de Púchkin e
vidade (sobretudo emocional) que desaparecerão quando a que na variante reformulada a oração ficou mais fria, seca e
construção sem conjunção for transformada em um período lógica.
composto por subordinação com conjunção que é mais ha- Adiante, junto com os alunos, chegamos à conclusão
bitual; eles devem sentir o papel norteador exercido pela en- de que o elemento dramático do período sumiu totalmente:
tonação nos períodos desse tipo; eles devem sentir e ver qual aquela entonação, a mímica facial e o gesto com ajuda dos
é a necessidade interna de combinar a entonação com a mí- quais expressávamos a dramaticidade interna durante a lei-
mica e o gesto quando o verso de Púchkin é pronunciado em tura em voz alta do texto de Púchkin tornaram-se claramen-
voz alta. Depois que os alunos escutam a frase, depois que te inconvenientes na leitura da nossa reformulação. De acor-
ela é levada à sua percepção artística imediata, será possível do com os alunos, a frase tornou-se mais livresca, muda, para
começar a análise daqueles recursos que ajudam a alcançar leitura com os olhos: ela não pede mais uma leitura em voz
o seu efeito artístico e a sua expressividade. Essa análise de- alta. De modo geral, os alunos concluem que, do ponto de
ve ser feita na seguinte ordem: vista da expressividade, perdemos muito ao trocar a constru-
1) Transformamos o período analisado em um período ção sem conjunção pela com conjunção.
comum composto com a conjunção "porque" que é mais 3) Começamos o estudo gradual das razões da perda da
habitual. Tentaremos primeiro introduzir a conjunção de expressividade na frase alterada. Antes de tudo, detemo-nos
forma mecânica, isto é, sem mudar a frase: na análise das conjunções subordinativas "porque" e "uma
Triste estou, porque o amigo comigo não está. vez que". Chamamos a atenção dos alunos para o volume
Após a discussão com os alunos, chegamos à conclusão excessivo e a sonoridade desagradável dessas conjunções.
que não é possível deixar a frase desse jeito; o uso da conjun- Exemplificamos como o discurso é afetado quando há um
ção torna a inversão de Púchkin inadequada e é necessário excesso dessas palavras volumosas, e como seu caráter torna-
reconstruir a ordem direta, "lógica" e comum das palavras: -se livresco, seco e sonoramente desagradável, quando ocor-

30 Mikhail Bakhtin Questões de estilística no ensino da língua 31


re um uso frequente dessas conjunções. Por isso, os artistas ção da primeira palavra do período (depois da pausa). A
da palavra sempre tentavam minimizar o seu uso. Contamos conjunção curta no começo da oração não ocupa um lugar
aos alunos como ao longo de todo o século X I X e ainda no especial na entonação, porém as locuções conjuntivas "por-
século X X (em poetas arcaizantes como Viatcheslav Ivánov) que" e "uma vez que" preenchem de forma improdutiva esse
continuaram a existir (principalmente na linguagem poética) primeiro lugar (não sendo enfáticas) e, por isso, enfraquecem
as conjunções arcaicas do eslavo eclesiástico ibo e zane9 toda a estrutura entonacional do período. Além disso, a na-
justamente porque eram mais curtas e soavam melhor do que tureza semântica dessas conjunções e sua frieza específica
"porque" e "uma vez que", excessivamente volumosas. Ilus- influenciam toda a ordem das palavras no período: a inversão
tramos essa questão com exemplos. emocional torna-se impossível. Comparando o período de
Adiante passamos às particularidades semânticas das Púchkin com aquele modificado por nós, mostramos aos
conjunções subordinativas, explicando aos alunos que tais alunos como a recolocação provocou uma diminuição do
palavras auxiliares, como as conjunções subordinativas que peso entonacional da palavra "triste" na primeira parte do
expressam relações puramente lógicas entre os períodos, são período composto e da palavra "comigo" na segunda parte;
totalmente privadas dos elementos visual ou imagético: não e como o tom emocional da palavra " n ã o " foi bruscamente
se pode visualizar o seu significado como uma imagem; por enfraquecido.
isso, elas nunca terão um significado metafórico no nosso 5) Fazemos os alunos tirarem suas próprias conclusões
discurso, nem serão usadas de maneira irónica, e tampouco a partir de nossa análise. Apresentamos a seguir essas con-
a entonação emocional poderá basear-se nelas (ou elas sim- clusões. A substituição da oração de Púchkin sem conjunção
plesmente não podem ser pronunciadas com emoção); por- pela com conjunção resultou nas seguintes mudanças estilís-
tanto, são totalmente privadas daquela vida rica e diversifi- ticas:
cada que as palavras com significado referencial ou imagéti- a) a relação lógica entre as orações simples, revelada e
co têm no nosso discurso. E claro que essas conjunções pu- posta em primeiro plano, enfraqueceu a relação emocional e
ramente lógicas são indispensáveis no nosso discurso, mas dramática entre a tristeza do poeta e a ausência do amigo;
são palavras frias e sem alma. [25] b) diminuiu-se drasticamente a carga entonacional, tan-
4) Após a análise das conjunções subordinativas, abor- to em cada uma das palavras quanto em todo o período: o
damos a sua influência no contexto inteiro. Antes de mais papel da entonação foi substituído pela conjunção lógica fria;
nada, explicamos aos alunos o significado estilístico da ordem agora, há mais palavras no período, porém bem menos espa-
das palavras no período (ou, mais precisamente, refrescamos ço para a entonação;
essa questão em sua memória, pois eles já a devem conhecer). c) a dramatização da palavra por meio da mímica facial
Mostramos (com exemplos) o significado especial da entona- e do gesto tornou-se impossível;
d) diminuiu-se a capacidade do discurso de produzir
imagens;
9 São conjunções sinónimas com significado de "porque". O eslavo
e) o período parece ter passado ao registro mudo, tor-
eclesiástico é uma língua eslava antiga que se formou por volta do século
X I e continua a ser usada pela Igreja Ortodoxa russa contemporânea em nou-se mais adaptado à leitura silenciosa do que à leitura
missas, rituais etc. (N. da T.) expressiva em voz alta;

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f) a oração perdeu sua concisão e se tornou menos agra- A presença das locuções conjuntivas nos períodos (principal-
dável aos ouvidos. [26] mente as muito volumosas) traz lógica à sua estrutura, porém
não tanto quanto a presença das conjunções subordinativas
A aoálise do segundo período de Púchkin pode ser rea- complexas.
lizada com base em tudo o que foi dito acima e de modo mais Na análise posterior destacamos os seguintes aspectos:
breve. É necessário chamar a atenção dos alunos apenas para 1) A dramaticidade é própria da segunda frase de Púch-
o que há de novo no segundo período. Antes de tudo, lem- kin, porém não é emocional como na primeira, mas dinâ-
bramos aos alunos que aqui ocorre outra relação lógica mica. A ação desenvolve-se diante dos nossos olhos como
entre orações simples: isso se expressa também em outro sinal se fosse no palco; a segunda oração simples ("todos garga-
de pontuação. [27] Adiante passamos à substituição dessa lham") literalmente responde à primeira ("Ele começa a r i r " ) .
construção sem conjunção pela com conjunção. Aqui encon- E como se não estivéssemos diante da narração de uma ação,
tramos dificuldades de imediato. O período "Quando ele mas da própria ação. Essa dramaticidade dinâmica é alcan-
começa a rir, todos gargalham" não satisfaz de modo algum çada antes de tudo por meio do estrito paralelismo na cons-
os alunos. Todos sentem que foi perdido um traço semânti- trução de ambas as orações: "ele" — "todos", "começa a
co muito importante. Comecemos a análise. Alguns dão a r i r " — "gargalham"; a segunda oração representa uma espé-
formulação "Sempre que ele r i , todos gargalham", outros cie de reflexo espelhado da primeira, assim como a gargalha-
sugerem "Apenas quando ele r i , outros também ousam gar- da dos convidados é reflexo efetivo da risada de Oniéguin. 10
galhar", ou então "Basta ele rir que todos começam a garga- Desse modo, a construção do discurso reproduz de forma
lhar servilmente". Todos concordam que o último período é dramática o acontecimento narrado. [28] Chamamos a aten-
o mais adequado do ponto de vista do sentido, embora ele ção dos alunos para a forma do verbo na primeira oração
reformule o texto de Púchkin com liberdade excessiva. A ("começa a r i r " ) : 1 1 ela reforça a dramaticidade da ação ao
discussão com os alunos nos faz concluir que as palavras mesmo tempo que expressa a sua reiteração (que, no período
"sempre", "apenas quando" e "basta... que" — e até mes- com conjunção, é expresso por meio de "sempre que").
mo as palavras "ousam" e "servilmente" — transmitem sen- 2) Chamamos a atenção dos alunos para a laconicidade
tidos diferentes das do texto de Púchkin e são necessárias excepcional do período de Púchkin: duas orações simples
para tanto, porém todas elas em conjunto não exaurem a formadas pelos termos essenciais e apenas seis palavras, mas
plenitude desse sentido, que é inseparável da sua expressão com que plenitude o período revela o papel de Oniéguin
verbal. nessa reunião de monstros, como mostra sua autoridade do-
Antes de passar à análise seguinte seria útil apresentar minante! Observaremos também que, ao escolher para Onié-
aos alunos as particularidades semânticas das locuções con- guin o verbo " r i r " e para os monstros o verbo "gargalhar",
juntivas que se manifestam na substituição desse tipo de fra-
se. As locuções conjuntivas, diferentemente das conjunções, 1 0 Ievguêni Oniéguin, protagonista do romance em versos homóni-

também possuem um caráter imagético, mas ele é fortemen- mo (1830) de Aleksandr Púchkin. (N. da T.)
te enfraquecido e, portanto, privado da força metafórica; elas 1 1 Em russo o verbo está no tempo futuro, porém em português

também admitem certa tonalidade emocional (muito fraca). optamos pelo presente. (N. da T.)

34 Mikhail Bakhtin Questões de estilística no ensino da língua 35


mostra-se claramente como eles deturpam de modo grosseiro plenitude do que foi mostrado e apresentado dramaticamen-
e bajulador as ações do seu soberano. te diante dos nossos olhos. Após a discussão com os alunos,
3) Levamos os alunos à conclusão que encerra nossa optamos pela seguinte substituição: "Quando eu acordei, ve-
análise: q período sem conjunções de Púchkin não narra um rificou-se que cinco estações já tinham ficado para trás".
acontecimento, mas o apresenta de modo dramático diante Depois de formular e anotar na lousa esse período, cha-
de nós por meio da própria forma de sua composição. Quan- mo a atenção dos alunos para a expressão metafórica auda-
do tentamos transmitir seu sentido com a ajuda da forma ciosa, quase uma personificação usada por Gógol: "cinco
subordinativa com conjunções, passamos da apresentação estações tinham ficado para trás". De fato, não foram as
para a narração e, portanto, por mais que colocássemos pa- estações que ficaram para trás (embora seja justamente essa
lavras adicionais, nunca transmitiríamos toda a plenitude a impressão imediata de quem está viajando), mas o viajante
concreta daquilo que foi apresentado. [29] Ao tornar lógicas é que seguiu adiante. Perguntamos aos alunos se essa expres-
as relações entre as orações simples por meio da introdução são soava bem em nossa reelaboração do período gogoliano
das locuções conjuntivas, destruímos a dramaticidade eviden- (pois a de Gógol soava excelente) e se ela seria cabível no caso
te e viva do período puchkiniano. [30] da subordinação com conjunção. Os alunos concordam co-
migo que essa expressão quebra um pouco o estilo lógico do
Depois de tudo que foi dito, a análise do terceiro exem- nosso período e que ela deveria ser substituída por uma mais
plo não apresenta mais dificuldades. No período de Gógol, sóbria e racional, embora não menos metafórica e dinâmica:
o dramatismo dinâmico que já conhecemos é expresso de for- "eu já tinha passado cinco estações". Como resultado das
ma ainda mais evidente, embora um pouco distinta. N a lei- transformações, obtivemos um período bastante correto, po-
tura do texto gogoliano é necessário transmitir, com certo rém seco e inexpressivo: não sobrou nada da dramaticidade
exagero entonacional, a surpresa agradável do viajante que dinâmica de Gógol e do seu gesto impetuoso e audacioso.
acabara de acordar. A pausa entre as orações simples (marca- A partir do exemplo analisado e do uso de material com-
da por um travessão [31]) transmite a expectativa diante de plementar, explicamos aos alunos que todas as expressões,
uma surpresa, o que tem de ser expresso na leitura dramática imagens e comparações metafóricas murcham e perdem sua
por meio da entonação, da mímica facial e do gesto e, depois, expressividade no ambiente frio criado por conjunções su-
é preciso apresentar, com uma admiração alegre, a segunda bordinativas e locuções conjuntivas; além disso, as compa-
oração de modo a enfatizar a palavra "cinco" (já foram cin- rações hiperbólicas, as metáforas e às vezes até os ilogismos
co!). N a apresentação desse período, a mímica facial e o ges- diretos apreciados por Gógol seriam completamente impos-
to estão pedindo para serem usados — não dá para segurá- síveis no âmbito sóbrio do período com conjunções. [32]
-los! À nossa frente vemos esse viajante que esfrega os olhos Adiante, ampliamos um pouco essas teses e mostramos por
sonolentos e, com agradável surpresa, descobre que, enquan- meio de exemplos como, em um período composto por su-
to dormiu, já passaram cinco estações. Quando tentamos bordinação com conjunções (especialmente de causa), acon-
transmitir isso por meio da subordinação com conjunção, tece uma rígida seleção lexical: são retiradas as palavras com
passamos para uma narração formada por um excesso de pa- forte conotação emocional, as metáforas audaciosas demais,
lavras, mas mesmo assim não conseguimos transmitir toda a bem como as palavras pouco "literárias" (no sentido mais

36 Mikhail Bakhtin Questões de estilística no ensino da língua 37


estrito dessa palavra), populares, ligadas ao cotidiano sim- conjunção em nossa fala coloquial. Por exemplo, pode-se
ples e expressões específicas da linguagem coloquial. O pe- analisar um período como o seguinte: "Estou muito cansado:
ríodo composto com conjunções tende ao estilo literário-li- tenho trabalhado demais". E compará-lo com o período:
vresco e etvita a vivacidade coloquial e a desenvoltura da fa- "Estou muito cansado, porque tenho trabalhado demais". É
la cotidiana. [33] preciso mostrar como, no segundo caso, diminui-se a vivaci-
dade e a expressividade do discurso. Depois de revelar o
Então, é possível contar aos alunos, de modo acessível,
enorme significado das formas de subordinação sem conjun-
sobre o significado das formas sintáticas da subordinação sem
ção na nossa língua e de atentar às suas vantagens diante das
conjunções na história da linguagem literária russa e mostrar
formas correspondentes com conjunções, [36] é necessário,
a eles como as épocas complexas hipotáticas [34] frias e re-
porém, mostrar aos alunos a legitimidade e a necessidade da
tóricas do século X V I I I dificultavam a aproximação entre a
existência na língua dessas últimas formas também; é preciso
linguagem literária livresca e a linguagem viva e coloquial;
não apenas apontar a importância da subordinação com
mostrar que o embate entre a natureza livresco-arcaica e a
conjunções na linguagem prática e científica, mas também a
natureza viva coloquial na linguagem literária estava ligado
impossibilidade de evitá-la na literatura de ficção. Os alunos
de modo inseparável ao confronto entre as construções com-
devem entender que as formas de subordinação sem conjun-
plexas (períodos) e as formas simples — em sua maioria sem
ção não podem ser utilizadas sempre.
conjunções — da sintaxe coloquial. [35] Esses aspectos po-
dem ser bem ilustrados por meio de exemplos da sintaxe Depois, junto com os alunos, analisaremos os resultados
coloquial das fábulas de Krilóv 1 2 (cuja sintaxe, a propósito, de todo o trabalho estilístico que foi feito. O professor veri-
era extremamente dinâmica); também seria útil comparar o fica em que medida o objetivo do trabalho foi alcançado: ele
estilo de K a r a m z i n 1 3 nos períodos compostos hipotáticos da conseguiu ensinar aos alunos o gosto e o amor à subordina-
sua História do Estado russo com o estilo de suas novelas ção sem conjunção? Os alunos conseguiram realmente apre-
sentimentais. ciar o caráter expressivo e a vivacidade dessas formas? Se esse
objetivo for atingido, resta ao professor apenas levar os es-
Tais digressões históricas podem ser feitas não apenas
tudantes a empregarem essas formas em sua linguagem oral
na 8 a , mas também na 7 a série, caso se tenha bons alunos.
e escrita.
Ao terminar a análise dos três períodos selecionados da Realizei essa prática da seguinte maneira. E m primeiro
obra dos escritores clássicos russos, é necessário mostrar aos lugar, fazíamos uma série de exercícios especiais no decorrer
alunos como são comuns as formas de subordinação sem dos quais formávamos diversas variantes de períodos com-
postos com e sem conjunções de acordo com temas previa-
mente dados, ponderando cuidadosamente a conveniência e
1 2 Ivan Andréievitch Krilóv (1769-1844), poeta e tradutor russo, a utilidade estilística de uma ou de outra forma. Depois, ao
autor de várias fábulas cujos enredos remetem às obras de Esopo e La corrigir os trabalhos feitos em casa e em sala de aula, eu
Fontaine. (N. da T.) chamava a atenção para todos os casos em que foi convenien-
1 3 Nikolai Mikháilovitch Karamzin (1766-1826), historiador, escri- te a substituição da subordinação com conjunção pela sem
tor e poeta russo, autor da monumental obra História do Estado russo. conjunção e fazia uma modificação estilística consequente
(N. da T.)

Questões de estilística no ensino da língua 39


38 Mikhail Bakhtin
nos cadernos dos alunos. [37] Durante a análise dos traba-
lhos na sala de aula, todos esses períodos eram lidos em voz
alta e discutidos, sendo que às vezes os "autores" não con- Os professores de língua russa conhecem por experiên-
cordavam com a minha correção e surgiam discussões ani- cia que a produção escrita dos alunos sofre normalmente uma
madas e interessantes. E claro, havia casos em que alguns mudança muito abrupta. Nas séries iniciais, não há uma di-
alunos entusiasmavam-se demais com as formas sem conjun- ferença significativa entre produção escrita e falada das crian-
ções e nem sempre as utilizavam de modo adequado. ças. Eles ainda não escrevem redações e ensaios sobre temas
N o geral, os resultados de todo esse trabalho eram bas- de literatura e, nas suas redações (descrições e narrações),
tante satisfatórios. A composição sintática da linguagem dos utilizam a língua de modo bastante livre; por isso, a lingua-
alunos melhorou significativamente. Nas duzentas redações gem desses trabalhos, embora nem sempre correta, é viva,
do segundo semestre da 8 a série, já havia mais de setenta ca- metafórica e expressiva; a sintaxe das crianças aproxima-se
sos de uso de períodos compostos sem conjunções. N a 10 a da fala; eles não se preocupam ainda com a correção das
série, 1 4 os resultados foram melhores ainda: ocorreram dois construções e por isso formam períodos bastante audaciosos,
ou três períodos desse tipo em quase todas as redações. A mu- que por vezes são muito expressivos. Por não conhecerem
dança da forma sintática resultou também em uma melhora nada sobre seleção lexical, o seu léxico é variado e sem estilo,
geral do estilo dos alunos, que se tornou mais vivo, metafó- ao mesmo tempo que é expressivo e ousado. Nessa lingua-
rico e expressivo, e o principal: começou a revelar-se nele a gem infantil, embora de modo desajeitado, expressa-se a
individualidade do autor, ou seja, passou a soar a sua pró- individualidade do autor; a linguagem ainda não está des-
pria entonação viva. As aulas de estilística não foram em vão. personalizada.
Finalmente, é necessário observar que as análises estilís- Depois acontece uma mudança brusca. Ela normalmen-
ticas, mesmo as mais profundas e elaboradas, são bastante te começa no final da 7 a , porém atinge o seu auge na 8 a e na
acessíveis e agradam muito aos alunos desde que sejam rea- 9 a séries. Os alunos começam a escrever usando uma lingua-
lizadas de modo animado e os próprios jovens participem gem estritamente literária e livresca. Eles tomam como mo-
ativamente do trabalho. Assim como as análises estritamen- delo a linguagem uniformizada dos manuais de literatura: na
te gramaticais podem ser tediosas, os estudos e exercícios de verdade, as suas primeiras redações sobre literatura consistem
estilística podem ser apaixonantes. Mais do que isso, ao se- em simples paráfrase dos manuais. [39] Porém, por falta de
rem realizadas corretamente, essas análises explicam a gra- experiência, a linguagem dos manuais torna-se ainda mais
mática para os alunos: ao serem iluminadas pelo seu signifi- uniformizada e impessoal em seus trabalhos. Os alunos pas-
cado estilístico, as formas secas gramaticais adquirem novo sam a ter receio de qualquer expressão original, qualquer
sentido para os alunos, tornam-se mais compreensíveis e locução diferente dos padrões livrescos por eles conhecidos.
interessantes para eles. [38] Eles escrevem para a leitura e não põem o texto escrito à
prova da voz, da entonação e do gesto. E verdade que a sua
linguagem torna-se mais correta do ponto do vista formal,
mas ela é privada de personalidade, de cor e de expressivida-
14 Equivale ao último ano do ensino médio na escola brasileira. (N.
daT.)
de. Os alunos entendem o caráter livresco dessa linguagem

40 Mikhail Bakhtin Questões de estilística no ensino da língua 41


como algo positivo, bem como a sua diferença em relação ao rica, abstraía e livresca. [44] O destino posterior das capaci-
discurso oral, vivo e livre. dades criativas de um jovem depende em muito da linguagem
O empenho perseverante do professor se torna necessá- com a qual ele se forma no ensino médio. O professor tem
rio justanjente aqui. [40] A nova mudança da produção es- essa responsabilidade.
crita dos alunos precisa ser obtida com afinco e aproximada O sucesso da missão de introduzir o aluno na língua viva
novamente do discurso oral, vivo e expressivo, isto é, da e criativa do povo exige, é claro, uma grande quantidade e
linguagem da vida viva. Porém, essa aproximação deve acon- diversidade de formas e métodos de trabalho. Entre essas
tecer em um nível mais elevado de desenvolvimento cultural: formas, um lugar de destaque pertence ao trabalho com a
precisamos aqui não da espontaneidade ingénua da lingua- subordinação sem conjunção que acabamos de analisar. Os
gem infantil, mas da confiança corajosa e da ousadia da pro- períodos compostos sem conjunção representam uma arma
dução linguística adquirida por meio do estudo da língua dos poderosa na luta contra a linguagem livresca e privada de
clássicos da literatura. personalidade: neles, como havíamos observado, a indivi-
Para tanto, a correta condução do ensino da 7 a série dualidade do falante revela-se com maior liberdade e a sua
possui um significado decisivo. A sintaxe do período com- entonação viva soa com mais clareza. Quando esses períodos
posto deve ser acompanhada do começo ao fim pela análise são introduzidos na produção escrita dos alunos, eles passam
estilística. [41] Isto dará aos alunos uma boa vacina preven- a influenciar também outras formas desse discurso e até todo
tiva contra a doença infantil a ser enfrentada por eles: o ca- o seu estilo; a partir dessas formas inicia-se o processo de
ráter estritamente livresco da sua linguagem escrita. Esse mal dissolução dos lugares comuns livrescos impessoais e a ento-
será muito menos grave e eles se livrarão dele muito mais nação individual do autor passa a transparecer em tudo.
rapidamente. [42] Resta ao professor ajudar nesse processo de nascimento da
O trabalho estilístico deve ser continuado com a mesma individualidade linguística do aluno por meio de uma orien-
intensidade na 8 a série. N a 9 a série é preciso alcançar uma tação flexível e cuidadosa.
mudança completa; é necessário tirar os alunos do beco sem
saída da linguagem livresca, para colocá-los no caminho da-
quela utilizada na vida: uma linguagem tanto gramatical e
culturalmente correta, quanto audaciosa, criativa e viva. A
linguagem livresca, impessoal e abstraía, que ainda por cima
se gaba ingenuamente da sua erudição pura, é sinal de uma
educação pela metade. Uma pessoa completamente madura
no sentido cultural não utiliza essa linguagem. [43]
A língua tem ainda uma influência poderosa sobre o
pensamento daquele que está falando. O pensamento criati-
vo, original, investigativo, que não se afasta da riqueza e da
complexidade da vida, não é capaz de se desenvolver nas
formas da linguagem impessoal, uniformizada, não metafó-

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