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Durante uma incursão a campo, especialmente nas comunidades rurais do municípoio de

São Francisco, compartilhei dias e experiências com membros de duas comunidades


vizinhas, Angical e Arrozal. Quando eu dividia uma conversa mais densa com algum
interlocutor, normalmente o tema se voltava para questões de festividades
populares, religiosidades populares, parentesco, enfim, temas que orbitam minha
atual pesquisa de doutorado. Mas integrado a esses grandes temas, ainda que de
maneira parcelar, algumas questões sequestravam minha atenção e, vez em quando, meu
tempo. Nesta tarde com vocês, quero falar de uma delas. Num determinado momento de
conversa com um interlocutor, ele me contava sobre os momentos em que, quando
jovem, percorria as chapadas com alguns de seus parentes para cuidar ou lidar com a
solta do gado, prática muito comum norte de minas. Em determinado momento, quando
juntavam todas as vacas, bois, bezerros, novilhas, etc., e os levavam para a região
das grotas, onde moravam, costumavam cantar enquanto percorriam o trajeto. Aì que
se inicia o momento que sequestrou minha atenção. O pedi para cantar algumas das
canções, pensando justamente como esses cânticos poderiam compor um quadro
histórico anterior, e como, talvez, pudessem me oferer alguns direcionamentos da
sociabilidade presente de meus interlocutores. E Dionínio, da comunidade de
Angical, começou a cantar uma das canções. Mas logo algo intercedeu e interceptou
sua voz: a lembrança não é um texto escrito, é uma ponte, uma pinguela, melhor, na
qual é necessário dar alguns saltos. A voz embargada de Dionísio falhou algumas
vezes, a tal ponto, que meu interlocutor não lembrava com facilidade a toada que o
acompanhou durante uma fase importante de sua vida. O mesmo aconteceu com seu primo
Salomão, que em razão de seu casamento migrou para o Arrozal, a comunidade ao lado.
Salomão começou a cantar a mesma música de Dionísio, mas também com suas
incompletudes. Curioso que eles esqueciam partes distintas da canção, de modo que o
antropólogo poderia, de algum modo, cumprir esse papel de "completar o quebra-
cabeça". "Que música cantam estes sertanejos?". Era essa a pergunta que, imaginei,
me guiaria. Mas demorei um pouco para perceber o que estava diante de meus olhos:
talvez eu tivesse formulado mal a pergunta. Faria muito mais sentido a questão
"porquê Dionísio e XXX esqueceram a letra da canção?". Essa talvez tenha sido a
primeira "boa pergunta" que eu me fiz sobre essa pesquisa, e aqui, com vocês
pretendo fazer outras.

Muitos acreditam que a categoria de "força produtiva" em Marx seja redutível à sua
mera expressão metodológica, de um modo que sociabilidades mais complexas, e
"desenvolvidas" desfrutassem de uma "força produtiva" mais sofisticada. No

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