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COSTA, Flávio Moreira da. Nelson Cavaquinho: enxugue os olhos e me dê um abraço. Rio de Janeiro:
Relume Dumará; Prefeitura, 2000. p. 141-154. (Perfis do Rio, v. 27)

[p.141]

A solidão de Nelson Cavaquinho


Entrevista ao autor, 1973

“Seja por uma necessidade de expansão, seja porque a


música e a poesia suavizem a dor, toda a criatura triste
acha no canto um supremo consolo.”
José de Alencar, O Guarani

O trajeto de ônibus, cheio de esquinas, passageiros e calores, durou uma hora, da Praça Tiradentes ao
Jardim América, “pra lá de Vigário Geral”. Desci no ponto indicado e caminhei uns três quarteirões,
pedindo informações. Era uma vila pequena com suas casas iguais se espremendo umas contra as
outras. E a vila ou rua chamava-se Quincas Laranjeiras. Nela morava Nelson Cavaquinho, poeta e lenda
carioca. (Perceberia ele a coincidência? Quincas Laranjeiras, “porteiro de higiene da municipalidade” no
começo do século, era bom de violão e habitué das primeiras rodas de choro da boemia suburbana
carioca.)
– Nelson não está – falou sua mulher, da janela térrea. – Chegou às seis da manhã, acordou às
oito, pegou a sacola e disse que ia à feira. Procure nos botequins do bairro que é capaz de encontrar ele.
Meio dia e meia, sol a pino, suor na testa, parti para a [p. 142] ronda mais constante na vida de
Nelson Cavaquinho: a ronda dos botequins. Se perguntasse por Nelson Antônio da Silva, ninguém
saberia de quem se tratava. Já o nome Nelson Cavaquinho parecia acender um olhar de simpatia nas
pessoas. Como aconteceu com seu Zeca, dono do primeiro bar que encontrei:
– Não tenho visto o Nelson mas deve tar por aí. Quando ele encontra um bom papo, senta e vai
ficando. Conheço ele há mais de 30 anos, fomos até presos juntos, lá na Penha. Coisas de boemia,
pergunta a ele.
Para perguntar isso e outras coisas, precisava antes encontrá-lo. Sete bares mais tarde (Parece
conta de mentiroso – seriam oito?) voltei ao ponto inicial – o botequim na esquina de sua rua. Foi o
tempo de tomar um cafezinho: olhei e vi Nelson se aproximando, com um “secretário” carregando uma
sacola cheia de legumes.
– Pensei que você não viesse – disse ele, rosto cansado, a esboçar um sorriso.
(Eram 13:45h. A entrevista havia sido combinada para o meio dia).
Como chegara no último posto de abastecimento antes de casa, Nelson pediu uma bebida para
tomar na hora e algumas garrafas de cerveja para levar.
A entrevista começou logo que chegamos à sua casa, pequena e cheia de móveis modestos, a
porta sempre aberta, crianças brincando na calçada. Na verdade, foram necessárias duas tardes
sucessivas para realizá-la: e eu a tentar seguir seu ritmo, suas conversas paralelas, bate-papo informal
e... copos de cerveja para acompanhar o compositor e o calor. Nelson Cavaquinho criou logo um clima
de intimidade. Uma vez pediu para eu colocar seu disco na eletrola nova – não sabia mexer no aparelho
– para exemplificar com sua música o que estava querendo dizer. Às vezes parecia não gostar de falar
[p.143] de si mesmo, e então divagava ou caía em pequenos silêncios. Em seguida me oferecia mais
cerveja ou um pedaço de carne assada:
– Tá muito boa. Você vai gostar.

Quem sou eu
Pra pensar só em mim
Choro até por quem está
Chegando ao fim
“Lágrimas Sem Júri”
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– Meus velhos eram assim como eu sou. Aos domingos tinha feijoada e eles levavam os amigos
lá pra casa, na Lapa. O meu tio Elvinho era professor de violino e eu ficava ouvindo aquelas músicas. Foi
na época que Donga gravou “Pelo Telefone”. E eu fui guardando no ouvido aquelas coisas todas. Aí é
que começou a nascer esta parte da musica em mim. Naquele tempo do lampião a gás, eu era campeão
de pião e de bola de gude da rua Joaquim Silva. E pedia sempre dinheiro pra meu pai e pra minha velha
a fim de assistir filme do Tom Mix e do Buck Jones... (Pára aí, Buck Jones foi mais tarde...) Então a minha
vida era assistir aqueles filmes bonitos num cinema ali da Lapa que ainda existe... Não, agora é um
cabaré... A gripe espanhola foi em 1918, e eu nasci em 1911 – tinha portanto sete anos. A gripe pegou
todo mundo, em casa nós também ficamos gripados, mas ninguém morreu nesta ocasião. Foi terrível:
não havia mais lugar nos cemitérios, caminhões passavam lotados de cadáveres. Depois, no carnaval do
ano seguinte, apareceu ainda mais gente morta.
– Eu estudei um ano só, na rua Evaristo da Veiga. Minha velha trazia comida numa lata pra gente
comer – fazia isso com muito carinho. Foi ai que comecei a fumar [p. 144] e não larguei mais, sabe? E
tomei um porre. Levei uma surra nesse dia. Eu devia ter uns 12 anos, foi quando o rei Alberto chegou ao
Rio e eu encontrei 22 ou 12 contos na rua, ali debaixo dos Arcos. Foi uma alegria, minha mãe comprou
tudo pra mim. Fiquei contente, não estava acostumado a vestir roupa nova.

Feliz nesse mundo


De quem pensa assim
Sou pobre mas sou rico
Da bondade que Deus me deu
“Deus não me esqueceu”

– Aí fui crescendo, crescendo. Meu velho resolveu alugar uma casa em Ricardo de Albuquerque
ali no Largo do Respeito. E eu fui estudar numa escola onde a professora passou a ser comadre da
minha mãe, porque batizou um irmão meu, o José. Era Dona Almerinda. Já morreu todo mundo, estão
sepultados numa hora dessas, muito longe desta vida. O Rio era como no Largo do Respeito, calmo, não
se falava em assalto, nada disso. Era a época dos valentes, Narciso, Romualdo. Eu comecei a jogar
futebol; meu irmão, o Preto, jogava catingolê, e por isso era mais respeitado do que eu. E eu saía pra ir
ao Madureira, que era um cinema, ainda existe, do outro lado da Estação de Madureira – mas acho que
mudou de nome. Eu amarrava uns cordões num pedaço de tábua pra tocar cavaquinho. Não sabia tocar
nada, mas comecei a ouvir cavaquinho, violão, e tentava imitar.
– Me colocaram pra trabalhar numa fábrica de tecidos, em Deodoro. Parece que a fábrica ainda
existe. Mas o que eu queria era aprender música... Nem sei quanto eu ganhava. Isso já é por volta de
1929. Nós nos mudamos pra Gávea – aliás, foi na Gávea que eu aprendi a [p. 145] jogar futebol, na
barreira, com o Arauto, que foi do América. Minha mãe vivia dizendo, “Não casa, Nelson, não casa que
você não vai se dar bem” – aí eu me casei e me dei muito mal. Casei com Alice Ferreira Neves e ela era
médium, recebia lá o protetor dela – e eu quase náufrago nessa época. Meu casamento foi na polícia, e
eu estava numa situação tal que a minha madrinha me deu um sabonete de presente pra eu poder
tomar banho. Eu não tinha nada, nada...

Sei que é doloroso um palhaço


Se afastar do palco por alguém
Volta que a platéia te reclama
Sei que choras palhaço
Por alguém que não te ama
“Palhaço”

– Ainda na Gávea, eu ia pra rua da Conceição, ficava ouvindo o João Pernambuco, violinista,
tocar, o Eduardinho, o Pequinote. Foi com aquelas músicas bonitas que aprendi a tocar. Naquela época,
a Gávea era um bairro operário. Eu enganava o velho que ia trabalhar e ia pro cinema poeira da rua
Larga, assistir filme do Tom Mix, Buck Jones – e todos os sábados eu cortava uma volta, porque não
tinha dinheiro pra trazer pra casa. Era só ouvir aquela música e comecei então a compor algumas. Fiz
“Derruba Três”, um choro que era um negócio difícil, ninguém conseguia me acompanhar – por causa
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disso passaram a acreditar em mim. O carnaval na época era todo mundo fantasiado de palhaço, de
macaco – era uma festa.
– Sei que depois que eu casei, veio o primeiro filho, o segundo, o terceiro. Mas eu continuei com
a música e graças a Deus hoje sou Nelson Cavaquinho. “Dar uma [p. 146] queda” foi outro choro que fiz
nessa época e que ainda toco. É um choro amargo, pra derrubar, e quem não conhece música não
consegue me acompanhar. Mas essas músicas só ficavam entre nós. Tocavam assim num dia de São
João, e a gente perto de uma fogueira – é que fazia frio. Agora, não: está tudo mudado...
Depois eu fui pra Brás de Pina. Fiz então um samba que falava em “último quartel da vida”. Foi
daí que nasceu, bem mais tarde, o “Degrau da Vida”: “Sei que estou / no último degrau / da vida, meu
amor...” O outro, era um choro. Naquele tempo era pra derrubar. Hoje, estou muito bem, vivo com uma
companheira, a Durvalina, que você conheceu agora, e que faz tudo pra mim.

Foram-se meus vinte anos de idade


Já vai muito longe a mocidade
Sinto uma lágrima rolar sobre o meu rosto
É tão grande o meu desgosto
“Degrau da Vida”

– Foi triste pra mim quando entrei para a Polícia Militar. Meu velho é que saía comigo pra
arrumar emprego, eu não gostava mesmo de trabalho, e foi ele quem me pôs lá. Uma ocasião montei no
cavalo com o comandante da patrulha e fui pro morro da Mangueira. Cheguei e fui dizendo o meu caso,
que eu não gostava de ser polícia, porque eu não gosto de ser preso, não gosto de privação na minha
vida nem na vida dos outros. Fazia também ronda dos bancos. Abandonava o cavalo, deixava o
mosquetão em frente do quartel e ia passear na cidade. Fiquei assustado quando meu cavalo fugiu, só
não fui excluído porque depois meu irmão resolveu pedir minha baixa.
– Um dia, acho que roubaram meu cavalo. A primeira [p. 147] vez, eu estava em Mangueira e o
bicho apareceu no quartel sozinho, todo suado. Eu tava tocando cavaquinho e bebendo cana com o
Cartola lá no Pindura-a-Saia, um boteco no alto do morro de Mangueira. Fiquei tonto, “será possível que
roubaram o meu cavalo?” Mas felizmente ele foi direitinho pro quartel – ainda me perguntaram onde é
que eu tinha andado que o cavalo tava tão suado... Numa outra ronda tenho quase certeza que alguém
roubou mesmo, sei lá, ou então o cavalo se desamarrou sozinho da cerca. Fui pro quartel de novo, o
comandante da patrulha me disse, “oh, Nelson, o teu cavalo não está no lugar”. Fiquei assustado, mas
quando fui ver ele estava lá comendo sua ração. Felizmente os oficiais estavam todos dormindo,
comiam muito, fazia frio aquela noite... Meu irmão era um dos maiores instrutores do quartel. Por isso,
antes de ser excluído, eu saí. Mas eu vinha do rancho e começava a conversar com o cavalo, “Olha, não
me derruba não, que eu não sei montar”. Eu já tinha escolhido um cavalo bem velho – nunca montei
naqueles cavalos novinhos, não – que era pra ter certeza que não ia cair. Fiquei sete anos assim. Não
quis fazer carreira porque tava doido pra sair de lá.

O meu único fracasso


Está na tatuagem do meu braço (...)
Quanta gente tem o corpo tão bonito
Mas tem a alma toda tatuada
“Tatuagem”

– Há pouco tempo, 70 ou 71, um jornalista me encontrou e disse, “Nelson, a Polícia Militar vai
prestar uma homenagem a você.” Eu não vou – respondi logo. Eu era tão faltoso lá, como é que eu
podia aparecer agora? Tinha vergonha de passar em frente do quartel. Acabei [p. 148] indo e foi uma
maravilha, os oficiais todos me prestaram homenagem, fui chegando e ouvi a banda de música – “ué,
essa música é minha”. É que já estavam prestando a homenagem. Era dia de meus anos e me deram
presentes, camisas, meias – ainda uso até hoje. Fotógrafos batendo chapas, fui bem recebido por todo
mundo. Fiquei até de voltar pra levar um disco meu. Um dia, ainda volto pra entregar o elepê. Os oficiais
da minha época estão todos reformados – os que não estavam presentes é porque já morreram.
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– Mas saindo da PM, fui trabalhar no Curtume Carioca, na Penha. Fiquei um ano lá, com couro
verde, couro seco. Continuava não me dando bem com minha mulher. E eu também bebia muito, havia
sempre discussão. Minha velha passou a se contrariar com aquilo tudo, ficou se sentindo mal do
coração. Um dia, eu saí com o Bahia, que jogou no Vasco. Saí do trabalho e fiquei três dias e três noites
na rua, tocando meu cavaquinho. Quando cheguei em casa, vi o pessoal todo de preto, imaginei logo,
“Puxa! houve qualquer coisa!” A minha velha já estava enterrada há três dias. Senti dor no coração,
passei muito mal. Minha mãe tinha morrido, e daí descontrolou-se tudo, veio a separação – nunca mais
consegui me dar bem com a minha mulher. Eu me desgostei. Era 1942 ou 45. Perdi o emprego também.
Fomos pra casa de uma conhecida no Leblon – já deve ter morrido, não me lembro o nome dela. Foi
antes da separação. Às vezes chegávamos com os garotos de madrugada, e a mulher tinha colocado
água no chão pras crianças não dormirem – ainda me lembro bem disso, elas dormiam no assoalho da
sala. Outra vez a mãe dela fez um escândalo de madrugada, me chamou de vagabundo. Eu passei essas
coisinhas todas, sabe? Eu estava expatriado...
[p. 149]
A minha mágoa quase deformou meu rosto
Repare bem que não é pouco o meu desgosto
Depois de tantos anos perdi meu grande amor
Não cante agora que é demais a minha dor
“Nunca”

– Eu ia muito à Mangueira quando era polícia. Nunca mais me afastei de lá. Ficava com o Cartola
e esse que é meu compadre, o Carlos Cachaça. Gosto muito de lá, mas sair na Escola de Samba, nunca
saí. Dá muito trabalho, ficar toda a noite pulando; no carnaval, no meu tempo, saía nos blocos de sujo.
Mas em Mangueira eles cantam muito minhas músicas, eu já fiz muito samba pra eles. Fazia três sambas
por semana, estava com aquela vontade. Agora só componho com o Guilherme de Britto e, como já
estou bem de vida, quero ver agora se trato da vida dele. Ele faz música e letra comigo. Agora que ele
vai se aposentar, quer se mudar pra Miguel Pereira e quer me arrastar pra lá. Estou com vontade,
porque lá é frio, o clima é bom, e é só fazer música e depois descer pra apanhar dinheiro ou pra colocar
as músicas.
– Meu filho Jorge esteve aqui em casa, um dia desses. Ele está com uns quarenta e poucos anos
– de 31 pra cá são quantos anos? E ele estava se queixando, “Pois é, papai, eu não estou registrado
como seu filho”. É que a mãe dele registrou os filhos erradamente, colocou o sobrenome dela e não o
meu. Mas eu disse pra ele que o que vale é o nosso sangue, ela não entendia nada daquilo, não
podemos fazer nada. Ela morreu no Abrigo Redentora, onde tinha ido com as crianças. Eu só vim a saber
disso mais tarde. Meu filho também foi da Polícia Militar, mas agora está desligado.
Só comecei a gravar em 43. O dinheiro era muito pouco. Comecei com o Rubens Campos e o
Henricão. Eu já [p. 150] tocava desde 28, mas a minha primeira gravação foi “Não Faça a Vontade Dela”,
com o Alcides Geraldi. Não fez sucesso. Depois gravei “Rugas”, “Não Te Dói a Consciência” e “Aquele
Bilhetinho”, com o Ciro Monteiro.

Os versos de Mangueira são modestos


Mas há sempre força de expressão
Nossos barracos são castelos
Em nossa imaginação
“Sempre Mangueira”

Continuava levando a minha vida. Separado da mulher, não morava em lugar nenhum, não
estava mais em casa. Vivia com uma criatura lá por Belfort Roxo, depois de São João de Mereti. Mas nos
andávamos de casa em casa. A vida dela era também gostar muito de samba, então a gente ficava em
casa de amigos uns três dias, depois ia pra outra. Não cansava, não. Às vezes sentia ressaca, mas logo
recomeçava. Graças a Deus eu tinha uma constituição muito boa, senão já tinha morrido. Ficar na
calçada, tomar sopa – comecei a levar minha vida assim. Agora só bebo de vez em quando. Mas minha
vida é mesmo essa. Todo mundo bebe, não é? Uma vez fiquei doente, mas só fui ao médico, ali em
Botafogo, porque me levaram. Andei botando muito sangue pela boca. Fui para um hospital, fiquei uns
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tempos por lá. Um dia o médico me disse que eu estava curado. Atravessei a rua e fui pro botequim e
bebi uma cerveja preta. Nunca mais tive nada, graças a Deus, me alimento bem... Aquilo tudo foi falta
de alimentação, sabe?
– Os parceiros? Bem, alguns são parceiros mesmo. Mas nessa época eu tava sempre duro e fazia
qualquer negócio, mesmo com prejuízo. Vivi uns tempos no hotel onde o Cesar Brasil era gerente –
então eu fazia a música [p. 151] e pra pagar a estadia, dava parceria a ele. Em “Degrau da Vida” e mais
umas três ou quatro ele está comigo. Bem, era eu quem fazia tudo, mas na ocasião eu não pensei nada
disso, como é que posso reclamar agora? Eles me auxiliaram muito, acho chato falar nisso, não estou
reclamando, apenas dizendo o que é. Coloquei também na parceria um ex-compadre meu, o Braga, que
morreu. Agora preciso até procurar a família dele, porque eles não sabem e têm um dinheiro pra
receber. O Amâncio realmente fez “Luz Negra” comigo. E o Guilherme de Britto fez “A Flor e o Espinho”
e mais umas quinze músicas. A última foi “Quando eu me chamar saudade", gravada por mim e pela
Nora Ney.
– O Zé Keti estava sempre lá em casa, em Mesquita. Fizemos várias músicas juntos. Mas nós não
podemos gravar, porque ele é da SBACEM e eu sou da UBB. Pois é, ainda existe essa política... Ele ficou
com a metade das músicas, eu disse pra ele fazer o que quisesse. Parece que ele conseguiu gravar umas
três, mas o meu nome não podia sair na parceria. Numa delas coloquei o nome do meu filho. Tem uma
outra, que nunca foi gravada, porque tenho receio da censura. É assim:

O nome de mulher é tão sagrado


Mulher é nome pra ser respeitado
A cobra não morde uma mulher gestante
Porque respeita o seu estado interessante

– Não me lembro do resto. Como essa, tenho muitas inéditas. Guardo tudo na cabeça. Mas
esqueci muitas, são mais de 300. Às vezes encontro um amigo na rua e ele me canta um samba e diz que
é meu. Eu digo que não é. Mas ele insiste e acabo me conformando que é meu mesmo. Faz muitos anos
e não tenho nada escrito, [p. 152] está tudo na idéia... Só agora é que estou pensando nisso, antes não
ligava, fazia música e pronto. Dei parceria pro José Ribeiro, que ficou no lugar do Joãozinho da Goméia,
mas não tive sorte – esse negócio de macumba nunca me deu nenhum... Quando o Brasil perdeu a Copa
do Mundo, em 50, eu vi muita gente chorando. Gosto de futebol mas não sou fanático. Fiz uma música,
só me lembro da primeira parte: “Eu já chorei o meu desgosto é tão profundo / depois que vi o Brasil /
perder a Copa do Mundo”. Nunca foi gravado, e nunca mais pensei em fazer música sobre futebol.
– Minha vida é essa mesma, foi sempre uma orgia. Fazer samba, bebida, violão e Mangueira, só
queria saber disso, mais nada. Dos “valentes” da minha época, conheci o Brancura, o Itália, o Cocaína, o
Camisa Preta não cheguei a conhecer – esses homens brigavam pra valer. Já morreram todos. O
Ferrugem também era bamba de briga; ele trazia sempre uma garrafa de conhaque para mim, pra ouvir
minhas músicas, lá no Tuiuti, no Pedregulho, quase em Benfica. Depois, parece que foi assassinado. Ele
só brigava de navalha, sabe? Eu tinha um respeito filho-da-mãe por ele. Na Lapa, estavam sempre por lá
o Miguelzinho da Lapa, o Cocaína, o Itália – naquela época tinha muito movimento na Lapa, agora estão
derrubando tudo, não é? O Madame Satã também brigava muito, mas ele agora me falou que está
criando porco na Ilha Grande. Queria até que eu botasse melodia numa letra dele.
– Eu já tocava muito em clubes lá por 1928, 29, mas show mesmo só a partir de 60, depois em
66, a época do Zicartola – daí pra cá eu finquei pé. Já estive por aí, em Minas, São Paulo, qualquer show
eles me chamam. Esse meu último disco – o primeiro só meu – eu fui gravar em São Paulo.
[p.153]
A luz negra de um destino cruel (Oh, Oh!)
Ilumina o teatro sem cor (Oh, Oh!)
Onde estou desempenhando o papel (Oh, Oh!)
De palhaço do amor
“Luz Negra”

– Solidão? A minha natureza é assim, não é? Eu vejo tanta coisa por aí, tanta coisa triste em que
às vezes me baseio – por ver tristezas assim é que eu faço músicas tristes. Eu sou inimigo de ver o
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pessoal sofrendo, se eu puder socorrer, socorro. Sei lá, eu tenho pena de todo mundo. Sempre tive
muitos conhecidos, nunca fui verdadeiramente desamparado. Esse negócio de morte também sai assim
nas músicas. “Degraus da Vida” e outras. Não sou só eu, outros compositores também falam da morte.
Agora, parece que eu falo mais do que eles... Mas se eu tivesse medo, não ficava falando nela, não é?
Viajar de avião, também. Não tenho medo não, mas esse negócio de acontecer desastre é que não pega
bem. Se tiver de viajar, embarco com Deus e vou.
– “Rugas”, eu fiz em 1945 mais ou menos – mas eu nunca tive idéia da velhice. São coisas de
compositor – é o que vem na idéia. Como “Notícia”, que eu fiz dentro de um botequim – a história
nunca se passou comigo. Dei a parceria a dois amigos meus, eles até me querem bem por causa disso.
“Pimpolho Moderno”, por exemplo, não fiz pros meus filhos, não. Não fiz nada pra mim. Essa é uma
música alegre. Mas a maioria das músicas são tristes mesmo, as melodias daquela maneira... O choro
tem o nome de choro mas não é penoso não. “Tico-Tico no Fubá” – essa não é minha – não é triste.
Gravei um chorinho com clarinete que tampouco é triste; têm outros que o Carrilho me obrigou a sair
sozinho, “Rio, Tu Não És Mais Criança” – fiz essa na grande festa do Quarto [p. 154] Centenário. Mas a
história da minha vida é a relação de todas as músicas gravadas. Um dia, ainda vou pedir esta lista lá na
UBC.

Me dê as flores em vida
O carinho, a mão amiga
Para aliviar meus ais
Depois que eu me chamar saudade
Não preciso de vaidade
Quero preces e nada mais.
“Quando Eu Me Chamar Saudade”

No final da entrevista apareceu seu vizinho e também sambista Jair do Cavaquinho. Nelson falou
com entusiasmo de seu último long-play, e disse que a época de tristezas passou porque agora vai
receber uma aposentadoria de cinco salários mínimos, além do que já recebe, e por empenho de alguns
jornalistas na época do Governo Negrão de Lima.
Nelson Cavaquinho, ao conversar com o amigo Jair, sonhava com uma casa afastada, rodeada de
árvores – e sem ser devassada como a casa de vila em que vive. Depois, ele desenhou um semi-círculo
com o braço em volta do amigo para ilustrar a vã esperança: “Não adianta, você é prisioneiro, somos
todos prisioneiros”. “Existência” ou “condição humana”, diriam os filósofos, pessoas mais sofisticadas –
pois Nelson, sem saber, acabara de repetir essas palavras de Lao Tse, 600 anos antes de Cristo: “Somos
todos prisioneiros de nós mesmos. Nunca se esqueça disso, e de que não há fuga possível.”

(Caderno B, “Jornal do Brasil”, 1973 e “Vida de Artista ”, Ed. Sulina, 1990)

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