Você está na página 1de 11

UMA EXPERIÊNCIA IMAGÉTICA

DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA

A Galeria de Fotos do Centro Cultural Fiesp recebe a exposição


E o Silêncio Nagô Calou em Mim, de Denise Camargo, com
curadoria de Diógenes Moura, em que a artista explora, por meio
de imagens fotográficas, a cultura afro-brasileira. Ao registrar os
rituais do candomblé, busca apresentar crenças e tradições que
têm sido reprimidas ao longo da história de nosso país.

As obras, que incluem fotografias, textos, vídeo, aplicativo de


interação e música, convidam o público a desvendar o verdadeiro
significado dos “silêncios” da artista: representam a espera, a
conexão com forças ancestrais e a vivência nas comunidades
de terreiro. Uma celebração da cultura afro-brasileira com sua
profunda espiritualidade em destaque.

O SESI-SP é uma instituição que trabalha pela educação


de forma ampla e onde a cultura é parte importante nesse
processo. Desta forma, todas as ações e projetos desenvolvidos
pela instituição visam à formação de novos públicos em artes, a
difusão e o acesso à cultura de forma gratuita, além da promoção
da economia criativa nacional.

SESI-SP
EBÓ PÓS-TUDO E segue adiante, esse silêncio nagô, em direção aos
sentimentos que nos pertencem, ao que temos direito, ao que
Diante dos olhos da mulher que escuta está o que ela procurou somos nós. Segue adiante na força dos que assumem o próprio
a vida inteira: o consciente-inconsciente percebido no transe, no rosto, a própria identidade, sem cair na armadilha de modelos
invisível que escorre por entre os dedos e banha o seu corpo identitários politicamente corretos importados de um “primeiro
libertário: o viés do sagrado em um país profano, o Brasil, terra mundo” sempre em guerra. Segue adiante no corpo e na alma
iluminada pela alegria e pela perversidade, onde, a cada 23 dos que possuem uma humanidade distinta, uma protocélula
minutos, um jovem negro é assassinado. Diante dos seus olhos, impregnada de mitos que vêm de um passado futurista, e
a mulher escuta o som dos atabaques de origem banto e nagô, cantam e dançam fincados em nossa raiz + terra + fogo + água
a cerimônia que definiria os destinos da sua presença desde + ar e na memória dos que têm certeza de que cicatrizes não se
sempre ancestral. transferem.

Alguma coisa concreta que, em tempos passados, uniu a


sua mão à mão da sua Madrinha, quando aquela outra mulher, Diógenes Moura
definitiva para a sua compreensão artística e religiosa, a levava Escritor | Curador de Fotografia | Editor
para as festas de São Cosme e São Damião, os Erês, e ela, em
plena infância e diante de um desconhecido silêncio, ouviu
para nunca mais esquecer os Alabês assentarem suas mãos
sobre os atabaques. E então o mundo dos deuses e dos orixás
estariam unidos para sempre dentro do seu Orí, o cérebro da
individualidade do sujeito, guia dos filhos e filhas de santo na
jornada do seu Ayê. Denise Camargo nunca mais estaria sozinha.

E o silêncio nagô calou em mim trata disso: desse silêncio


profundo diante do desconhecido, “do tutano da palavra
sagrada”, do que poderá ir do ontem ao muito além, de um corpo
índio, africano, mestiço que temos obrigação em reconhecer
sem ter medo de possuir as coisas que nos pertencem (o transe,
o fundamento, o sacrifício, o azougue, a passagem), diante, e
por dentro, desse mesmo país onde vivemos e que insiste em
não perceber sua verdadeira identidade: Odùduwà abre os
caminhos para Okán.
NINGUÉM É O MESMO DEPOIS DESSE SILÊNCIO Aquilo ficou em mim. Naquilo eu acreditava. Era a mágica da
aparição. O rosto do homem era revelado no desenrolar do pano.
“Quando eu morder a palavra, Sudário. Ali, eu teria sido condenada ao eterno ver, capturada
por favor não me apressem, pela imagem, que teve mais antecedentes nessas épocas: a
quero mascar, presença da câmera de tio Zé e as colagens em um caderno de
rasgar entre os dentes, lições de português que me ensinaram o ver. Assim, a fotografia
a pele, os ossos, o tutano do verbo, foi, aos poucos, batucando dentro do meu peito.
para assim versejar o âmago das coisas”
Depois, um batuque me livrou do íngreme das ladeiras e
Era longa a ladeira que dava na catedral. Sempre que estivéssemos do plano das ruas. Quase em desgarrar. Começou na atração
ali iríamos às missas que eu nunca entendi bem. Era o passeio. E incontida pelos odores incrustados na Flora Xangô, uma “casa
que cansaço me dava aquilo. Chegando a casa, depois das férias de ervas”, tradicional no bairro, que vendia artigos religiosos
de final de ano, a rotina era a mesma mas as ruas, planas. Todos e “elementos para todo o ritual” – ficava no caminho para a
os domingos. E o padre nos visitava. Ficavam na cozinha à mesa missa e, era também uma sedução para os olhos. E continuou
vermelha, onde era o lugar das conversas sérias, adultas, talvez. E nas festas de Cosme e Damião, umas ruas pra baixo de casa, e,
era estranho, depois, confessar pecados àquele homem doce, gentil, como pareciam só uma brincadeira, vá lá. Depois a mãe, meio
muito alto, olhos meio claros, sempre trajado numa combinação de contrariada, costurou um vestido branco, fortemente inspirado
preto e branco regular, e que jantava em nossa casa às vezes. na estética Clara Nunes, cuja voz Madrinha reproduzia tal e qual.
O pai olhava cismado. As irmãs contavam pros amigos. E se o
O único que me tocava era a Verônica na sexta estação da via padre viesse nos visitar?
crucis. Toda de negro. O véu que deixava e não deixava ser vista.
Mas eu sabia. Era Dona Dulce, a mesma que nos ensaiava para a Madrinha era irmã de meu pai, sobrou solteira, pessoa boa e
cerimônia da coroação de Nossa Senhora, todo final de maio, e que ajudou a nos criar. Muitas vezes foi ela que me escondeu da
cuja filha era a protagonista desse drama da santa que vivíamos fúria de meu pai. Fora cantora da rádio em Bragança Paulista,
nos degraus estreitos do altar. animadinha, miúda, unhas longas e resistentes, gritando no
esmalte vermelho, terninhos justos, saias curtas. Um escândalo,
Umas vezes, era bem na porta de casa que ela suspendia o sentenciava vez ou outra, meu pai, de soslaio. Dizia-se “pra
tecido fluido, nu e, no silêncio, o colocava contra o rosto daquele frente”.
homem. Depois, voltava-o para a multidão e entoava seus agudos
agudíssimos, de dar aflição, soltando aquele cântico pungente, Era ela que me apresentava as procissões, as cinzas da quarta-
plangente, tão dolorido e que atravessava, longamente, o feira, os primeiros bailes e a oração a São Brás numa versão
quarteirão. toda especial: “São Brás, São Brás, dois pra frente, dois pra trás”,
num ritmo cantadinho que me fazia rir e mais ainda engasgar.
Benzia minha cabeça para tudo o que fosse patologia. Íamos à O fato é que começaram a correr, fortes, uns “Brasis”, em mim.
missa das dez juntas, e, atrasadas, a passos rápidos. E ministrava Este, negro, das religiões de origem banto e nagô, foi um deles.
o Johrei, militava no Seicho-no-Ie, vendia Avon e Tupperware, Com ele, fui pensando expressões culturais e experiências diversas.
queimava palmas de Santa Bárbara bentas no “domingo de Reconhecê-lo é um modo de manter vivos e livres os que fizeram a
ramos” a todo ameaço de temporal, clamando por Iansã a cada travessia da “calunga grande”, o mar.
raio.
Os episódios não passariam de dados biográficos e anedotas
E não faltava às festas de Cosme e Damião. Lá, me dava um de vida não fossem marcantes como uma cicatriz tribal, como
“medinho”. Era a mão da Madrinha que eu apertava, pequena – uma memória cravada na árvore do esquecimento. E, assim,
misto de interesse e aflição. Mas o de que gostávamos, mesmo, matéria para esta minha fotografia.
eram as balas, os doces e brinquedos distribuídos à profusão. Foram
assim muitos setembros. O som dos atabaques ia correndo alto. Parecem, assim, existir dois modos de conviver com o ritual –
Chegávamos e já estavam todos. Fluxo contínuo, tudo acontecendo que, aqui, é iniciático, mas também fotográfico. De dentro: pés
ao mesmo tempo. Não entendia bem. Mas lembro meus olhos no chão, saias e saiotes engomados das mulheres, a comida
pousados em tudo o que se movesse, em tudo o que silenciasse. que sai cheirosa e pelando da cozinha, o batuque das mãos
dos instrumentistas, o transe do povo de santo. De fora: gente
Mais tarde, foi ela que não demorou a me acompanhar aos chegando para a festa – são os abiãs. É sempre assim para quem
rituais de uma umbanda distante. “Macumba boa é macumba se aproxima dele. Foi assim que meus olhos se achegaram.
longe”, já me disse alguém. Lá, ela performava toda sorte de Depois entraram para o xirê, para a dança, para os espaços
mães-pretas, curandeiras, rezadeiras, benzedeiras. Vez ou outra, sagrados.
ouvia vozes e desatava em profecias. Vez ou outra, batuques
fora do peito e dentro dele. E fazia um peixe grelhado no limão… Do canto do barracão assisto à expressão de axé. Do centro da
provavelmente, evocando uma cozinheira boa das antigas. Ao roda, participo dela. Das imagens, às vezes elas escapam do ver
final da vida, cândida, incorporava Elis Regina e cantava de consciente – inconsciência como a do transe, para além da cena
arrepiar. Que saudade! religiosa: imagens são notas que resgatam belezas em cicatrizes,
aquelas que só conhece quem sabe que é preciso rezar bem o
A distância e o tempo nos perturbaram. Viajei. A “macumba” feijão fradinho para fazer um bom acarajé.
deve ter ido para ainda mais longe. Madrinha adoeceu. Nos
perdemos uns dos outros. Anos depois, o corpo recluso sobre Denise Camargo
a esteira permitiria a grafia que sai de uma terra distante e pulsa
nas peles e veias das pessoas daqui. Ninguém é o mesmo depois
desse silêncio.

Osún, essa água, 2007. Série Do útero sagrado, a natureza, Denise Camargo
Privilégio do objeto 1, 1992. Travessia,1992.
Série Máscaras africanas, Série Latejar inquietudes,
Denise Camargo. Denise Camargo.
Oxóssi, 2000. Tia Mina, ou, o lelê, 2009.
Série Eu só acredito em deuses e Série Em roupas de ração,
deusas que dançam, Denise Camargo. Denise Camargo.
Oguns no xirê. 2000. Ogum 1, 2000.
Série Eu só acredito em deuses e Série Eu só acredito em deuses e
deusas que dançam, Denise Camargo. deusas que dançam, Denise Camargo.
Galo na bacia, 2009.
Série Eu só acredito em deuses e
deusas que comem, Denise Camargo.
SESI – SERVIÇO SOCIAL EQUIPE DE ARTES VISUAIS E AUDIOVISUAL SONOPLASTAS
Charles Alves dos Santos
QUEM FEZ ESTE SILÊNCIO
DA INDÚSTRIA ANALISTAS DE ATIVIDADES CULTURAIS Roberto Aparecido Coelho
Elder Baungartner Roselino Henrique Silva Projeto e fotografias DENISE CAMARGO
DEPARTAMENTO REGIONAL Eliana Garcia Curadoria DIÓGENES MOURA
Larissa Lanza CONTRARREGRAS
DE SÃO PAULO Carlos Leandro de Carvalho Braga
Projeto expográfico, iluminação e produção
JULIANA AUGUSTA VIEIRA
CENTRO CULTURAL FIESP Evandro Pedro da Silva Direção de arte PEDRO MENEZES
Júlio Silva Neto Museologia POLLYNNE SANTANA
PRESIDENTE SUPERVISOR TÉCNICO Tratamento de imagens FERNANDO FOGLIANO
Josué Christiano Gomes da Silva Marcio Madi ESTAGIÁRIAS Impressão de imagens
Bianca Moriel Rodrigues RICARDO TILKIAN e KELLY POLATO
CONSELHEIROS MEDIADORES CULTURAIS Maria Fernanda Minuci Motta Molduras ESPAÇO OPHICINA e CAPRICHO MOLDURAS
André Luiz Pompéia Sturm Alcides Moraes Neto Yasmin de Souza Araújo Pintura LOURIVAL LIMA OLIVEIRA
Dan Ioschpe Maria Fernanda Guerra Montagem fina PEDRO LAYUS
Elias Miguel Haddad Rodrigo Domingos de Andrade NÚCLEO DE MEMÓRIA CULTURAL Comunicação visual VAIMA COMUNICAÇÃO VISUAL
Luiz Carlos Gomes de Moraes
Antero José Pereira ORIENTADORA DE ARTES CÊNICAS ANALISTA DE ATIVIDADES CULTURAIS Consultoria de acessibilidade EDSON DEFENDI
Narciso Moreira Preto Priscila Aparecida Gabriela Borges Josilma Gonçalves Amato Direção artística da audiodescrição CHE LEAL
Sylvio Alves de Barros Filho
Vandermir Francesconi Júnior ORIENTADORES DE PÚBLICO ESTAGIÁRIAS Paisagem sonora “Notas para o silêncio”
Massimo Andrea Giavina-Bianchi Éderly Cármen C. Ribeiro Rocha Nathaly Fernandes Souza CHE LEAL e UGLETSON CASTRO
Irineu Govêa Herbert de Souza Laurentino Thais dos Anjos Bernardo
Marco Antonio Melchior Matheus Cardoso Nogueira Aplicativo “O que cala em você?”
Alice Grant Marzano EQUIPE DE COMUNICAÇÃO Programação FERNANDO FOGLIANO
Marco Antonio Scarasati Vinholi MONITORES DE ARTE EDUCAÇÃO Desenvolvimento web
Sérgio Gusmão Suchodolski Alessandra Rossi DIRETORA EXECUTIVA DE MARKETING GIOVANI FERREIRA e FELDS LISCIA
Daniel Bispo Calazans Diana Proença Modena E COMUNICAÇÃO CORPORATIVA Operações web LUCAS AQUINO
Ítalo Ângelo Pereira Galiza Ana Claudia Fonseca Baruch
SUPERINTENDENTE DO SESI-SP Joyce Neves Vídeo “E o silêncio...”
Alexandre Ribeiro Meyer Pflug Tainá Alves Custodio GERENTE DE MARKETING E Concepção DENISE CAMARGO
Thalita Marangon Bião COMUNICAÇÃO CORPORATIVA Direção e edição GUGA FERRI
GERENTE EXECUTIVA DE CULTURA Vinicius Araujo Buava Leticia R. C. Martins Acquati
Débora Viana Assessoria de imprensa AGÊNCIA GALO
Redes sociais FABIANE BENETTI
ENCARREGADO MAQUINISTA DIREÇÃO DE CRIAÇÃO
SUPERVISOR TÉCNICO DE CULTURA Nilson dos Santos Bruno Bertani Assessoria jurídica nacional ARTUR FERNANDES
Luis Davi Gambale
Assessoria jurídica internacional YOSARA TRUJILLO
MAQUINISTAS GERENTE DE PLANEJAMENTO DIGITAL Assessoria financeira PRESTACON CONTABILIDADE
SUPERVISOR DE GESTÃO DE PROJETOS CULTURAIS Alessandro dos Santos Peixoto Rafael Queirós
Jonatas Willian de Oliveira Sousa Menes Santos Machado Assistência de produção
GERENTE DE IMPRENSA LÉIA MAGNÓLIA e LEANDRO GABRIEL
NÚCLEO DE CONTRATAÇÕES ARTÍSTICAS ILUMINADORES Rose Matuck Produção-executiva ATELIÊ OJU
ANALISTAS DE SERVIÇOS ADMINISTRATIVOS André Luiz Porto Salvador
Eduardo Viegas Cerigatto Dara Thayna de Lima G. Duarte ASSESSORA DE COMUNICAÇÃO
Ione Augusta Barros Gomes Rubens Marcel G. Torres Masson Mariana Soares de Andrade Lima
Jonatã Ezequiel da Silva Rutílio Gomes Pauferro
ESTAGIÁRIO
Klelvien Cabilo Arcenio https://silencionago.oju.net.br
@silencio_nago
@camargodenise
Visitação | 15 de novembro de 2023 a 14 de abril 2024
de terça a domingo, das 10h às 20h

GALERIA DE FOTOS - CENTRO CULTURAL FIESP


Av. Paulista, 1313 - São Paulo/SP
Em frente à estação Trianon-MASP do Metrô

Agendamentos de grupos e preferencial:


enviar e-mail para ccfagendamentos@sesisp.org.br

www.centroculturalfiesp.com.br l #CentroCulturalFiesp #SesiSP

Entrada gratuita

Realização

Centro Cultural FIESP


Alvará 2023/06208-00 válido até 20/09/2024
AVCB nº 574304, válido até 18/04/2025

Você também pode gostar