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Noite Sem Lembranças

Um conto de Cristiano Siqueira

Fitava a Lua que brilhava intensamente para mim enquanto fumava um palheiro na beira da rua.
Aos meus ouvidos chegavam o som de música e da extrema alegria que agitava e dava vida ao
restaurante. Não estava frio e nem quente, era uma noite agradável. Engraçado, porque naquela
época do ano o frio se alastrava pela região. Contudo, ainda assim vestia um casaco leve e uma
jeans.

Olhava periodicamente para o relógio, já que não poderia demorar muito. Planejava viajar no dia
seguinte e, cá entre nós, viajar de ressaca não era lá tão agradável assim. Marcava sete e quinze.
Ainda era cedo, havia saído pra rua há menos de uma hora.

O cigarro havia acabado, o que me fez voltar para dentro de novo. Carol, a linda mulher que me
acompanhava, estava sentada junto a uma mesa aos fundos do restaurante. Os músicos que se
apresentavam ao vivo tocavam Clube da Esquina e algumas pessoas cantavam junto a eles.

- Pediu os pratos? - perguntei.


- Você tem que parar com esse hábito nojento, já lhe disse mil vezes - retrucou. Essa era a
forma dela de dizer que sim.

Ignorei suas queixas e levantei o braço. O garçom então veio.

- Pois não? O que deseja?


- Qual o seu nome?
- Jonas.
- Então Jonas, me traz um uísque, puro... nada de gelo, por favor.
- E para a moça?
- Pra mim pode ser uma caipirinha, mas manda caprichar na cachaça, viu?

Ele logo anotou os pedidos e saiu adentrando a cozinha. “Dois alcoólatras”, pensei.

Algum tempinho se passou até que a comida chegasse à mesa. Junto a ela veio a caipirinha e
meu copo de uísque. Ressaltei ao Jonas que trouxesse uma cerveja para acompanhar a comida,
olhei no menu: “Hainisken” e ele foi correndo trazê-la, como um cachorrinho adestrado.

E o pedido chegou exatamente como queríamos, em minha frente estava um prato elegante e
várias guarnições. Dentre elas, porções de arroz, vinagrete, batata frita, farofa e dois bifões
enormes de filé mignon. Nos servimos cada um e... Deus! Devorei tudo sem nem pensar duas
vezes. Estávamos famintos. Na larica, eu diria. Era mais um daqueles jantares em que eu e Carol
fumávamos um antes para aproveitar melhor a comida.

Estava magnífico! Fiquei extasiado. A carne estava no ponto que eu mais gostava e as batatas
não eram daquelas vagabundas que se compram industrializadas, eram artesanais, uma delícia!
Terminamos os dois quase ao mesmo tempo. Pedi mais uma dose enquanto avisava Carol:

- É a saideira!
- Saideira? - diz ela indignada - Como assim? Para onde vamos, amor?
- Aqui tá muito chato, muito parado! Eu sei de um lugar em que a gente pode se divertir.

A dose chegava e eu já fazia sinal para Jonas: “A conta, meu amigo!” Tomei o primeiro uísque
de virote e depois tive um pequeno momento de recuperação, aquele de semi-morte. Ao fundo
pude ver eles calculando e escrevendo o total, a facada, a pior parte sem exceção. Virei um pouco
mais da metade do outro uísque e dei o resto para a Carol. Jonas vinha trazendo a comanda.
Paguei-o, levantei e chamei um táxi:

- Para onde vamos essa noite, senhor?


- Santa Tereza.

E lá íamos nós de encontro a um pouco de agitação.

Ao chegar, avistamos a muvuca, o bar lotado. As pessoas dançavam dentro e fora do lugar.
“Parece que o trem aqui tá bom, ein?”, disse o taxista. “Arrebenta!” respondi. Paguei-o, fechei a
porta do carro e acendi mais um cigarro. Ah, como adorava essa sensação! Chegar numa
bagunça à noite e perceber que tudo pode acontecer, é excitante! Carol me olhou com cara feia e
foi logo em frente toda animada para escolher um lugar para a gente se sentar.

Eram muitas pessoas, muitos rostos, difícil até de se contar. Tentava passar por entre eles sem
que queimasse alguém com meu cigarro. Não era preciso apagá-lo devido ao fato do bar ser um
local aberto e de ter a maioria de suas mesas na calçada. Ao longe, vi com dificuldade uma
baixinha agitada abanando a mão para mim, era Carol. Estava muito apertado passar ali por
causa das cadeiras, mas fui me esgueirando até chegar lá.

Carol era uma garota esperta, quando finalmente cheguei tinha até um copo de cerveja me
esperando. Sentei e agradeci.
- Não pensei que sua forma de diversão envolvia muita gente.
- Se queria algo mais particular deveria ter dito antes, mas me diz quem é que transa depois
de devorar um prato daquele tamanho?

Ela riu e continuou bebendo. “Só queria um baseado.” reclamava o tempo todo.

Estávamos numa mesa grande demais para caber só duas pessoas. Ao nosso redor havia mais
duas, uma lotada e outra nem tanto. Ficamos próximos à pista de dança, onde algumas garotas
requebravam e rebolavam suas rabas. O funk estralava na caixa de som.

- Viu!? Era disso que estava falando! Tumulto, todo mundo alegre, dançando, bebendo.
Comparado a esse lugar, o restaurante estava mórbido!

Acendi outro cigarro. Meus olhos atacaram o relógio: Quase nove. Planejei ir embora pouco
depois da meia noite. Quando voltei pra realidade me dei conta de que Carol havia pedido mais
uma cerva. E já que o cara estava bem ao meu lado, por conveniência então, pedi um
gin&tônica.

A noite fervia cada vez mais. Algumas pessoas iam e outras chegavam. Uma onda de calor e
euforia tomava conta do lugar. Tomávamos cada vez mais e mais drinques. Quanto mais eu
bebia, mais entusiasmado eu ficava. Sentia toda aquela animação tomando conta do meu corpo,
uma sensação de êxtase puro. Eu não conseguia parar de falar, não conseguia parar de encará-la.
Toda vez que meus olhos iam de encontro ao dela eu sentia que tudo era possível. O único
problema foi que eu já estava ficando naquele estado de bêbado em que se enche o saco dos
outros falando de assuntos complexos, principalmente sobre filosofia e afins. Carol se levantou e
foi a caminho da pista de dança. “Vai lá que eu fico aqui tomando conta da mesa”, eu disse.
“Acho que ela só se cansou e foi dançar”. Fiquei de longe observando a dança maluca que fazia
junto com umas meninas. Carol é assim, um tipo de pessoa que entrosa com todo mundo, pra ela
não tem tempo ruim.

Fiquei as observando por um tempo. Depois cansei e reacendi meu palheiro. Fiquei parado,
contemplando o luar. Tragava e exalava a fumaça. Estava hipnotizado, como em um transe, um
estado pensativo. Precisava daquilo, tentava me estruturar. Depois de algumas doses o ritmo
muda um pouco, mas não era hora de parar. Após o instante de convalescência, chamei o Santos,
um garçom amigo meu que estava nos atendendo.

- Desce a marvada, Santos!


- A branquinha?
- Ela mesmo.
Santos voltou com a danada. Dei um trago do cigarro e virei toda a cachaça. Ela desceu
queimando tudo por dentro, a sensação era de um tapa na cara. Soltei o ar. Dei mais um trago...
Agora sim, estava bem melhor!

Enquanto isso, Carol rebolava e se enturmava cada vez mais com as meninas com quem
dançava. Olhei de novo para o relógio: dez e meia. O DJ trocou o estilo de música, dessa vez
para uma com batidas eletrônicas loucas e frenéticas. Carol parecia cansada e chamou as outras
moças para se sentarem com a gente. Como eu havia dito, era uma mesa grande demais para
duas pessoas.

Elas se sentaram e cumprimentei-as. Alice, Ana e Flávia - Flavinha, como gostava de se chamar
- Ficamos conversando ali por um tempo. Santos trouxe mais duas geladas. Alice era uma
morena baixinha, assim como Carol, sorridente e dos olhos castanhos, era enfermeira, mas estava
de folga naquela noite. Ana era uma loira bonitona, alta, usava salto e calças brancas, sua camisa
ostentava um decote generoso, cursava Odontologia na PUC. E por último, Flavinha, que era
mais uma daquelas garotas animadas que gostava de dançar e tomar uns drinques. Das três,
Flavinha era a que mais destoava, fazia Agronomia na UFMG e estava para se formar.

Flavinha viu que eu tinha pedido uma cachaça e perguntou se era boa. “Não é nada mal!” Ela
levantou seu braço dando sinal ao Santos para pedir mais uma. Intervi e disse que seriam mais
duas. Carol então animou e pediu para ser três! No final saiu uma rodada para todo mundo.

“Você faz o que André?” perguntou Ana.


“Bem, é difícil dizer isso, porque eu trabalho com vendas, mas ao mesmo tempo eu escrevo,
queria publicar algo, mas quase nunca tenho tempo pra nada.” disse.
“Humm um escritor, que chique!” exaltou ela. “E como vocês se conheceram?”

Contamos a ela nossa história; Contamos sobre nossas escapadas; Sobre nossas desventuras,
quase tudo. E elas nos contaram também um pouco sobre suas vidas. Que eram amigas desde a
infância, menos Flavinha, que era de Juiz de Fora. Comentaram que se encontravam quase todo
final de semana, que estavam solteiras, que gostavam de sair pra dançar, etc. Contaram que iam
muito ali, embora nunca as tivesse visto antes. Foi quando o papo foi interrompido por Alice que
fez questão de lembrar a Ana sobre algo. Disse que alguns amigos delas estavam para chegar.
“Vocês se importam deles sentarem com a gente?” Dissemos que não. E continuamos a
conversar…

Papo vem e papo vai, tudo estava em sua maior plenitude. Pedi licença e me levantei em direção
ao banheiro. Segui um corredor escuro e adentrei a uma porta branca, porém que estava toda
pichada. Lá dentro fedia pra cacete, é difícil ter que aturar esses lugares. Entrei na primeira
cabine, a segunda estava ocupada e a terceira em manutenção, algum maluco havia quebrado a
porta e arrancado o vaso sanitário do lugar. “Cretinos.” Eu já enxergava tudo embaçado e,
sinceramente, não lembro se fui bem na pontaria. Mas não importava, o piso já estava todo
enlameado. “Merda”, eu pensava enquanto mijava. Lavei as mãos, acho, e me ajeitei no espelho,
ou o que tinha dele.

Voltei para a mesa. Sentei e olhei para o relógio, eram onze e sete, quase no horário de eu me
mandar dali. “Porra!” As horas fugiam de mim como o Sol fugia da noite. Eu estava ocupado
demais procurando meu maço de cigarro e isqueiro que nem percebi que os amigos das meninas
haviam chegado. Ana os cumprimentava ao mesmo tempo que tentava explicar pra eles quem a
gente era:

- Nós enturmamos com esse casal, eles estavam na mesa antes. Essa aqui é a…- Ela não
pôde terminar a frase. Seu amigo a interrompeu com tanta euforia que o bar inteiro
começou a olhar.

- Carol!? É você? Há quanto tempo! - Ela se levantou e abraçou ele. “Quer dizer que o
desgraçado a conhecia”, pensei. Encontrei o maço e voltei minha atenção para a mesa
olhando para cima. Um momento de tensão pairou no ar.

- Nem fudendo! Seu filho da puta! - gritei meio que cumprimentando-o. Pelo visto eu o
conhecia também! Era Diogo, um antigo conhecido meu.

- Quer dizer que você conhece todo mundo, hein Diogo? - brincou Flavinha..

- De onde você conhece ele? - perguntou Carol surpresa.

- De onde VOCÊ conhece!? - Retruquei.

- Isso não vem ao caso… Mas me fala! - Exclamou Carol. Acendi meu cigarro, dei uma
longa tragada seguida de um sorriso nostálgico, soltei-a e respondi:

- Esse safado estudou comigo há muito, muito tempo.

- Velhos tempos - completou ele.

De fato, velhos tempos, muita coisa havia mudado desde a última vez que o vi. Todos se
cumprimentaram, inclusive Camargos, o outro amigo que também havia chegado. Diogo se
sentou ao meu lado e começamos a bater um papo.

- Que que cê anda arrumando agora?

- Ah, eu faço um bico aqui e ali, mas to tentando dar um jeito de escrever meu livro, cara.

- Puts, é verdade! Cê curtia escrever na época do colégio né? Fazia um monte de textos!

- Mas e você, cara?

- Bem, acho que posso confiar em você. Quero dizer… - Ele me encarou de uma forma
mais séria, mudando até o tom de sua voz. - Muita coisa mudou depois do colégio, você
sabe. E as coisas não andam muito bem nesse país de merda. - Ele parou, deu um gole do
meu copo e continuou.

- Pois bem, eu arrumei um jeito de arrumar grana fácil, mas digamos que… não é lá
“legal”, se você sabe o que quero dizer. Mas se alguém te perguntar algo, eu dou “aulas
particulares”. Você só precisa saber disso.

Já vivi tempo o bastante pra entender sobre esse tipo de assunto, mesmo estando bêbado no nível
em que estava naquela noite. Diogo corria um risco alto falando aquilo pra mim. Não o via há
décadas. Você não pode chegar falando que é um traficante pra qualquer um, o respeitei muito
por isso. Perguntei a ele o que tinha e me disse que vendia de tudo: ácido, ecstasy, maconha, só
não vendia pó. “Não gosto dessa merda, deixa muita gente viciada.”, brincou.

Pedimos mais uma rodada de cerveja e Flavinha gritou:

- Quem vai beber mais cachaça comigo!? - Obviamente que a maioria concordou, inclusive
eu.

Diogo se levantou para sentar-se ao lado de Ana, com quem ficava de vez em quando. Me juntei
a Camargos e troquei uma ideia com ele por alguns instantes. Pelo o que entendi, Camargos era
uma espécie de ajudante para os “negócios” de Diogo, se é que você pode me entender. Mas de
dia trabalhava como taxista. Gostava de rodar pela cidade, principalmente pela Contorno, disse
que evitava passar pelo Centro por ser uma região muito perigosa. “Com aquela clientela ali não
vale a pena correr o risco!” declarou. Ele me pareceu ser um pouco mais velho, uns vinte e oito
anos eu diria. Esbanjava um belo bigode e um monte de argolas em suas orelhas.

Santos surgiu em cena de novo trazendo consigo as cachaças e mais três cervejas. Todos fizeram
o velho ritual, viraram seus copinhos e… PÁH!!! Mais um murro na cara. A cada virote de
cachaça que fazia mais anestesiado ficava.

Diogo ria de nós. Olhei para ele sem entender nada, até estranhei. Mas logo percebi o motivo de
sua risada. Ele não havia pedido bebida alguma! O questionei. Como resposta tirou de seu bolso
um objeto retangular e metálico. Um cantil. Ele deu um gole e passou pra mim, “Uísque”. Dei
um gole e aquilo queimou como o próprio inferno na terra. Ele fez um sinal para que eu passasse
para Carol, o fiz. “Pode beber, tem mais no carro.”

Ficamos nós quatro nessa brincadeira por um tempo, as meninas não curtiram daquela bebida.
Pedíamos cerveja e entornávamos o cantil de Diogo. Estava acontecendo! Já não ligava mais
para o meu velho relógio em meu pulso, nem lembrava de que ele estava ali. Não havia
problemas, não havia promessas ou qualquer coisa do gênero. Só aquele glorioso presente.
Falávamos sobre tudo, ríamos, fumávamos e bebíamos. Era o nosso paraíso particular.

Camargos então puxou Diogo e os dois ficaram de sussurros por um tempo. Diogo se aproximou
de mim e, bem baixinho, perguntou:

- Cara, bora fuma um?

Não respondi. Só olhei no fundo de seus olhos, ele fez que entendeu e sorriu. Fez um sinal com a
cabeça, queria que eu o seguisse. Cutuquei Carol para que viesse comigo. Enquanto nos
levantávamos consegui ouvir Camargos dizer para as meninas “Não se preocupem, vamos ali e já
voltamos, vou mostrar meu carro pro André e Diogo vai pegar mais bebida pro cantil.”

Aquelas ruas eram mal iluminadas e pouco movimentadas, o que faziam delas o lugar perfeito
para se queimar um. De um lado havia o muro que separava a estrada dos trilhos do trem e do
outro umas casas antigas e abandonadas. Alguns carros estavam estacionados por ali, entretanto
o de Diogo estava mais a frente, e logo em seguida, o famigerado táxi de Camargos. Nos
afastamos do bar e caminhamos em sua direção, cada um com um sorriso estampado na face
causado pela promessa de ficar chapado.

Quando o Diogo me apontou qual era o seu carro, fiquei incrédulo. “Esse cara deve tá ganhando
bem!” pensei. Diogo dirigia um carro do ano. Não era lá o melhor automóvel do mundo, mas
sabia que seu custo era alto. Nos encostamos no capô e Camargos acendeu o banza. Deu umas
longas tragadas enquanto se justificava.

- Cara, não estranha com o que eu disse pras meninas. Só disse aquilo porque eu acho
perigoso vir muita gente, saca? Ficar dando esparro de graça não é legal. Mas se
preocupem não, é melhor ir primeiro nós quatro, depois eu aplico elas num outro
consagrado que tenho aqui. - Terminou seu discurso me passando o baseado, dei uma
tragada. Fiquei extasiado com a qualidade do bagulho.

- Se preocupa não cara, a gente entende…- disse logo depois de tossir e passar para Carol.

- Nossa, que gosto! - disse ela surpresa - O que é? Haxixe?

- Uma coisinha que eu e Diogo plantamos. Mó responsa. - respondeu Camargos


orgulhosamente.

- É isso que você anda vendendo por aí? - perguntei a Diogo.

- Cara, isso é de uma safra mais pessoal, eu diria. Mas se você quiser, eu te arrumo um
pouco.

Ele me puxou em direção ao porta-malas do carro, o segui. Abriu-o. Percebi a quantidade de


tralha que ele carregava no seu carro. “Cê faz entrega é? Que tanto de coisa!” brinquei. Ele me
ignorou. Pegou uma maleta, botou um código e a abriu. Cara, eu nunca vi tanta droga junto na
minha vida. O cara era uma espécie de médico ilegal receitando pílulas, ervas e afins. Pude ver
umas cartelas, um saco cheio de pílulas, diversos tipos de frascos e umas zip bags cheia de
maconha. Ele pegou uma menorzinha e me perguntou quantas eu queria. Pelo preço, só podia
pagar por umas três gramas. “Fica de olho” ele me pediu, “se aparecer alguma viatura você me
cutuca.” Por sorte, nada apareceu. Ele as pesou, colocou em uma ziplock e me entregou.
Agradeci. Ele então fechou a maleta, mas no último momento impedi. “Cara, é o seguinte,
resolvi que quero uns docinhos também, quanto você me faz por cada ácido desses?” Ele riu,
“Pra você é de graça meu amigo!” Fiquei surpreso, ele continuou. “É uma cortesia pela nossa
velha amizade. Bom saber que você anda pelo lado divertido da vida!” Ele pegou o meu maço e
colocou alguns quadrados lá dentro. “Toma e depois diz o que achou.” Pegou um papel e caneta,
anotou alguma coisa e me entregou. Seu número de telefone.

Não podia estar mais alegre! Reencontrei uma amizade antiga e ao mesmo tempo ganhei um
contato de um traficante que vendia drogas de altíssima qualidade. Quem diria! Que noite louca!
Enquanto admirava toda essa ideia e guardava aquele papelzinho como se fosse meu precioso
tesouro, Diogo encarava Camargos, que dizia alguma coisa pra ele. Não consegui entender. Todo
aquele álcool junto às tragadas que dei naquele baseado fizeram um efeito avassalador no meu
corpo. Mas eu me sentia livre para fazer qualquer coisa. Camargos estava fumando e
conversando com Carol esse tempo todo. Caminhamos de volta à eles até que Diogo parou e me
disse:

- Vai na frente, esqueci de fazer um negócio!

- O quê? - disse todo bobo e sorrindo. Ele tirou o cantil do bolso e ficou balançando pra
mim. “Boa!” Comecei a rir descontroladamente, do jeito que só um maconheiro consegue
rir. Só parei quando Camargos me cutucou.

- Cara, eu estava justamente contando aqui para Carol que mais um casal de amigos nosso
está para chegar, você não se importa né? - disse olhando periodicamente para a parte de
trás do carro. Procurava Diogo, eu diria, ou por alguma viatura. Ele me passou o baseado
e respondi da maneira mais agitada que alguém possa imaginar:

- Claro que não! Quanto mais melhor... dane-se, mais gente pra conversar, interagir, viver!

Rimos. Demos mais algumas tragadas do bagulho e voltamos em direção ao bar. No caminho,
bebíamos do cantil recém abastecido de Diogo. Carol já estava muito louca, então se recusou a
dar mais algum trago de qualquer destilado naquela noite. Eu por outro lado estava eufórico,
adorando tudo aquilo, dei um belo gole que quase secou o cantil inteiro. Diogo teve até que
voltar pra reabastecê-lo.

Quando retornamos à mesa, Alice, já embriagada, me perguntava se queria mais alguma dose.
Flavinha e Ana estavam na pista de dança rebolando. Elas esperavam a gente voltar para poder
pedir mais uma rodada.

- Aí, não Alice! Por enquanto chega, deu de cachaça! - reclamava Carol.
- Concordo, eu tô de boa Lice - cambaleava. - Vou ficar só na breja por enquanto. - dizia
sorrindo.

Sentei e chamei Santos. Pedi mais uma gelada. Aguardei-o acendendo outro cigarro.

A noite continuou assim, fervorosa. Parecia que as horas não passavam nunca e que aquele
momento seria até mais do que eterno. O DJ não descansava e a pista parecia estar ainda mais
lotada. Aos poucos ia me acalmando, tinha dado um tempo daquele porre todo. Havia pedido
mais alguma coisa pra comer, mas não me lembrava o que.

Logo depois de laricar, Luís Roberto e Maria Júlia chegaram. Eram o casal amigo que Camargos
mencionara. Luís era arquiteto, mas vivia pela arte, assim como eu, porém no caso dele escrevia
poesias. E, de acordo com Camargos, sempre andava com algum mulherão ao seu lado e quando
não estava com ninguém estava com Maria Júlia, sua “Alma Gêmea”. Luís não parava de repetir
isso a noite toda, o que me deixou estressado.

Já Maria Júlia era uma garota realmente incrível! Ela era influente em várias línguas e não
parava de recitar poesias em francês, o que deixava Luís claramente excitado. Ela era musicista,
tocava clarinete em uma banda de Jazz. “Bem excêntrica pro meu gosto.” cochichou Carol para
mim. “Eu gosto.” disse abobalhado.

- Pois fique com ela! - Olhei para ela como quem não queria causar briga. Ela sorriu. Carol
sempre faz esse tipo de brincadeira. “As mulheres são assim...” pensava, “quando você
acha que estão falando sério, elas não estão. Mas quando você acha que estão
brincando… Ah! Pense duas vezes. É preciso ler bem as entrelinhas.”

- Mas olha só, esse outro ai, não para de me dar cantadas e bem na frente dela!
- Pois é! Do tipo mulherengo. Além de tudo é um prego, mas fazer o quê?
- Uai, não era você o senhor “quanto mais melhor?” - ela riu zombando de mim.

Santos então apareceu mais uma vez. Flavinha estava praticamente casada com ele, porque toda
vez que o via o chamava. Dessa vez não foi diferente, levantou sua mão e fez o pedido para
todos nós: Doses de cachaça. “Eu não sei como ela aguenta!” falava Maria Júlia. “É tudo
questão de até onde você vai” respondi. “É, mas quando chegar amanhã ela vai ter cobrado o
preço…”

- Pois que pague! E não me fale em amanhã. O amanhã ainda não existe! Ou pior, quem
sabe ele deve estar por aí à nossa procura, sempre na espreita. Já eu só me interesso pelo
agora! Isso sim é mais emocionante, mais vibrante. - levantei o copo com a dose e o virei
com voracidade. Maria Júlia não parava de olhar para mim. Sorria. Retribui o sorriso. -
Santos! Venha cá, me traga mais um gin&tônica, por favor! Também aceita? - perguntei a
ela. - São dois então Santos!

Poucas coisas me marcaram tanto na vida como aquele sorriso. Como poderia esquecê-lo?! Ah,
Maria Júlia, encantadora Maria Júlia. Depois de seu sorriso, passei a me lembrar pouco das
coisas que se sucederam.

A noite foi progredindo e aos poucos tomando seu rumo. Ainda estávamos todos agitados e cada
um fazia alguma coisa, falava sobre alguma coisa, fumava alguma coisa ou bebia alguma coisa.
Depois de um tempo, Carol havia se cansado dos olhares de Luís, se levantara e foi se sentar
junto às meninas. Nesse meio tempo, fui procurar o Diogo para beber mais do uísque de seu
cantil, porém ele havia sumido. Na verdade, percebi que ele e Ana não estavam mais presentes.
Carol logo me disse que foram pro carro trocar uns amassos, então fiquei mais tranquilo em
relação a ele. Enquanto isso, Camargos e Luís não paravam de prosear, debatiam sobre como a
cidade havia se tornado mais chata depois que um certo prefeito havia sido eleito. Camargos
estava meio estranho, fazia longas pausas enquanto falava, deduzi que era consequência de tanto
fumar daquele baseado. Por fim, estava eu ali parado, observando toda aquela cena acontecer,
quando, de súbito, resolvi me levantar e sentar ao lado de Maria Júlia. Começamos a beber e a
conversar, discutíamos sobre aquilo que mais gostávamos na vida: Arte.

Ela era daquele tipo de pessoa que te faz parar pra analisar, sua voz era meiga e só conversava
olhando fundo nos olhos da pessoa. E eu sentia aquele olhar penetrando na minha alma, estava
exposto. Não tinha como negar, aquela mulher mexera comigo.

Estávamos debatendo o tópico que eu sempre levanto quando estou tendo esse tipo de conversa
com alguém: sobre a relevância do dadaísmo e sobre porque devemos considerar Duchamp um
grande artista. Ela achou interessantes os meus argumentos, mas ao mesmo tempo era contra
todos eles. Depois falamos sobre filmes, em geral os cult, até que não aguentou mais e começou
a discutir sobre música. Ela era apaixonada! Até declarou um haicai sobre isso. Disse que
escutava todos os estilos, entretanto, o que mais a cativava era o Jazz. “A forma como é tocado,
tão inebriante, tão apaixonante”, era o estilo que mais gostava. O que não é uma grande surpresa,
vindo de uma musicista do porte dela. Maria Júlia contou sobre sua banda, quem eles eram, o
que cada um fazia, o que tocavam. Ela não parava de falar e eu adorava escutá-la.

Quando dei por mim, estávamos só eu e ela na mesa. Não sabia onde o resto do pessoal estava.
Era a gin&tônica fazendo efeito. Já estávamos acabando com mais outra dose que pedimos e aos
poucos ia me esquecendo do que estava acontecendo. O DJ tocou uma música aleatória e Maria
Júlia, que estava bêbada, soltou um grito. Era uma de suas músicas favoritas. E já que ela
gostava tanto assim, a chamei para ir dançar.

Mais um flash aconteceu e não me lembrava mais de nada. Estava eu na pista, muito animado e
dançando em frente de Maria Júlia. A música favorita já teria sido tocada faz tempo, mas
estávamos tão felizes, ou bêbados, que continuamos lá nos requebrando.

Duas músicas depois, se era bem isso que me lembrava, encontro-me com Carol e as meninas.
Elas dançavam junto a Luís e Diogo, que estavam muito alterados.

Outro flash acontecia. Dessa vez me sentia estranho. Estava dançando em frente a Maria Júlia,
que não parava de me olhar. Ela tentava dizer algo, mas não consegui escutá-la. Carol então me
puxou e me arrastou para longe da caixa de som. Disse que estava cansada e que queria ir
embora. Eu não argumentei, estava bêbado demais para isso, mas também não queria sair dali.
Ela reclamou de novo, me deu um beijo na bochecha e foi embora junto com as meninas.

- Elas estão indo embora também, Flavinha disse que posso dormir na casa dela hoje. Fica
bem, viu? - e se despediu novamente.

Após a saída de Carol, fiquei mais despreocupado. Queria me encontrar com Maria Júlia, mas
naquele momento era impossível achá-la. Estava muito bêbado e cambaleava. Fui procurá-la na
mesa, mas ela não estava lá. Fui procurá-la na pista de dança, porém também não a encontrei.
Estava eufórico, mais eufórico que o normal. As luzes dos holofotes começaram a se intensificar.
Parecia canhões apontados diretamente para mim. Não parava de suar. Via o rosto de Carol e
Maria Júlia em todo lugar. “Estou ficando doido?” pensei. De repente, tudo começou a ficar
embaçado. Só enxergava borrões de cores à minha frente que iam ficando cada vez mais e mais
vibrantes. A voz de Carol ecoava em minha mente: “Acho que vou embora com as meninas,
você vem?” Não entendia o porquê daquilo tudo. “O que está acontecendo?” me perguntei. Mas
a voz dela não parava: “Fica bem, viu?” ela dizia. E foi essa frase. Essa bendita frase que não
parou de se repetir dentro da minha cabeça. Como algum tipo encanto, ou aviso. Porém eu não
dava bola, tentava, de alguma forma, não escutá-la. Falhei e fiquei mais estressado ainda com
aquilo. “Fica bem... Fica bem... Droga, eu ESTOU bem!” mentia para mim mesmo. Minha
respiração então começou a ficar cada vez mais ofegante. Não sabia mais como respirar. Puxava
o ar, mas ele não vinha. Sentia-me sufocado pelo meu próprio corpo e, por isso, uma enorme
sensação de medo surgiu dentro de mim, chegando até a arrepiar minha espinha. “Algo de ruim
está acontecendo.” pensava. Tive de parar em algum canto e me encostar, pra ao menos tentar
me recuperar. Tudo girava, não me sentia bem. Fui andando mais ao fundo do bar, até que me
perdi de vista. Não sabia mais onde estava e entrei em pânico. Respirava cada vez mais e mais
forte. Até que todas aquelas cores que eu enxergava começaram a sumir e uma escuridão criou
forma em minha frente. E todo o barulho que eu ouvia começou a se distorcer se misturando em
um grande silêncio que passou a tomar conta daquele lugar. E tudo permaneceu assim, por um
bom tempo.
Pah

Pah

Pah Pah

Pah Pah PAh PAh PAH!

Era o som estrondoso de batidas que soavam pelas paredes de onde eu estava. Alguém tentava
arrombar alguma porta. O som logo parou, só que em seguida, outro ainda maior ressoou! Vozes
começaram a ecoar, mas nenhuma foi reconhecida. Eu ainda permanecia inconsciente e sonhava
que estava distante dali. Porém, de alguma forma, eu podia escutar tudo aquilo. Até que comecei
a ouvir passos se aproximando. Senti algo me agarrando e depois uma dor muito forte no rosto,
o que me fez acordar assustado. Logo entendi que alguém me acordara dando um tapa em minha
cara. Foi dolorido, mas preciso. Mas só assim para conseguir me acordar e me tirar daquele
estado deplorável.

- Não, por favor! Não vamos agora! Vamos ficar mais um pouco, tá tão bom aqui que…

- André, porra! Que merda você tá falando? Acorda, cacete! Faz horas que você
desapareceu e esse tempo todo tava aqui desmaiado no banheiro?! Que merda cara! -
disse Santos

- O que? Como assim? Onde é que eu tô?

- No banheiro porra, já disse! Agora levanta daí. Se recomponha cara, lava esse rosto, toma
uma água, sei lá.

Eu me levantei, às custas. As coisas ao meu redor ainda giravam. Me agarrei na pia como um
leão que se agarra em sua presa. Era a única coisa de decente que podia fazer naquela hora. Me
olhei naquele maldito espelho quebrado. “Que merda!” Um flashback se passara na minha
cabeça: Estava virando doses de cachaça com Flavinha. Senti meu estômago embrulhar e uma
vontade terrível de vomitar, mas, por sorte, segurei. Resolvi lavar meu rosto e enquanto o fazia
Santos tirava sarro de mim:

- Que noite maravilhosa, ein?


- Linda! - Respondi. - Não tinha como terminar melhor! Agora, será que alguém pode me
dizer que merda aconteceu aqui?

- Eu posso - Uma voz rouca surgiu do lado de fora do banheiro. Era Camargos. Ele então
entrou no banheiro e continuou - Mas antes, venha, vamos nos sentar lá fora, você precisa
comer alguma coisa, cara. Venha e eu te explico tudo.

O dia estava claro demais e por tanto eu enxergava pouco por causa da fotofobia. O bar parecia
estar funcionando, mas agora como restaurante. Um cheiro de café e pão na chapa perfumava o
ambiente. Havia algumas pessoas ali da noite passada que estavam viradas. Camargos, que
também estava debilitado, me guiava para uma mesa mais ao fundo, fugindo de toda luz solar.

- Senta aí, o Santos já vem com o café.

E foi o que eu fiz. Me sentia o caco. Minha cabeça doía, meu corpo doía e até o ato de pensar me
dava nos nervos. Sentia-me estragado, como se um trator tivesse passado por cima de mim.
Santos logo veio da cozinha trazendo café. Fora isso, também trazia na bandeja uma garrafa
d’água e um prato com pão na chapa e omelete. Tudo aquilo parecia divino, embora na realidade
não chegava nem aos pés disso. E mesmo estando nesse estado de quase morte, ainda estava
esfomeado. Comi aquilo tudo sem prestar atenção no Camargos que ficou ali me observando.
“Só precisava disso, cara.” Naquele momento, mais nada no universo parecia ser importante.
Devorei aquele omelete vorazmente como se dependesse daquilo para sobreviver. Virei a xícara
e senti o café descendo quente pela garganta. Sentia sede, como um beduíno perdido no deserto
por dias e que finalmente acha um oásis; que finalmente acha a vida. E aos poucos fui me
recompondo, meu bucho enchendo e a comida em minha frente desaparecendo. Santos trouxe
outra xícara de café e mais uma garrafa d’água. Camargos finalmente tomou coragem para poder
conversar:

- Está melhor, cara?

- Muito.

- Você sumiu, cara. A gente ficou preocupado.

- Como assim “sumiu”? Eu é que não estou entendo nada. Eu estava agora há pouco na
pista de dança conversando com vocês. Carol me chamou pra ir embora e quando dou por
mim, acordo todo fudido na porra dum banheiro. E agora vem você me dizendo que sumi,
que tava preocupado. Que merda aconteceu cara?
- Eu não sei... - disse Camargos desviando o olhar.

Ele não me pareceu falar sério. Não sei explicar, algo estava estranho no tom da voz dele. Minha
intuição me dizia que ele sabia sim, mas não tinha coragem para dizer. Ele olhou para os lados,
como quem procurasse alguma coisa, mas depois continuou dizendo.

- Bem… Só sei que te achei e que está bem. Carol ligou mais cedo e… - Ele ia continuar a
frase, mas o interrompi com um grande “PUTA MERDA!” O que o deixou bastante
assustado, não sabia o que dizer e nem o que pensar daquele escarcéu todo que eu estava
fazendo.

O motivo daquilo tudo era óbvio. Eu tinha acabado de lembrar de todo o problema em que estava
metido. Veja bem, a história toda começou quando chamei Carol para sair. Contudo, eu explicitei
para ela que não poderíamos nos demorar, fato muito importante esse, porque toda vez que
saíamos para beber voltavámos muito tarde. O que não foi diferente dessa vez. Entretanto, eu
acabara de recordar que precisava viajar logo pelo fim da manhã. Mas cá estou eu, numa mesa de
bar, com uma puta duma ressaca, conversando com um estranho que conheci ontem, quando me
lembro dessa maldita viagem e que deveria chegar urgentemente em casa para poder pegar
minha mala e então esperar pela carona de meu amigo Carlos, que nos levaria de encontro as
serras com destino ao seu isolado sítio.

- Puta que pariu, eu to fodido! Preciso tá em casa e pra agora, que merda!
- Ei, relaxa. Vai dar tudo certo, eu tô com meu táxi. Posso te levar, nem precisa pagar nada,
é por conta da casa! Ha ha - ele riu.

Camargos foi realmente incrível me ajudando nessa hora. E mesmo eu achando esquisito aquela
história de “por conta da casa”, resolvi aceitar. Afinal de contas, estava atrasado e todo meu
planejamento havia saído dos trilhos. Me levantei, devagar é claro, e fui pagar a conta com os
Santos. Por sorte, descobri que Carol pagou uma boa parte das bebidas que pedimos, mas de toda
forma, ainda era uma conta bastante gorda. “Volte sempre.” Despediu ele. “Você sabe que eu
volto!” Respondi quase que ironicamente. Ele riu.

Saí do bar, mas ele ainda não havia saído de mim.

O sentimento de enjôo permanecia amargando a minha boca. Segui Camargos pela rua até
encontrar seu táxi, que agora se encontrava em lugar diferente. Logo quando eu entrei ele ligou o
rádio e depois o carro. “Alguma rádio de preferência, senhor?” disse, brincando. Ele dirigia um
Fiat 2007, manual, motor 1.0, não era lá muita coisa, mas ele gostava. Ouvíamos uma estação
que só tocava música internacional, mas naquela hora passava um programa de humor.
Camargos dirigia devagar entres os bairros, porém rápido nas avenidas. Era um bom motorista,
estava naquele ramo há tempos. Enquanto nos guiava, usava um velho óculos escuro, daqueles
estilo aviador, para se proteger do Sol de rachar que fazia naquela manhã. Fui percebendo ao
longo da nossa conversa, o quão rouca sua voz parecia estar. Ele estava, assim como eu, com
uma puta ressaca, mas não parecia se importar. “Ninguém escapou dos porres de ontem” disse,
“Mas também não é motivo pra não ir trabalhar.”

A viagem foi curta, já que eu morava relativamente perto do bar. Deu um total de doze reais, mas
isso não importa, Camargos não havia me cobrado.

- Precisa de mais alguma coisa? - Disse ele dentro do carro.

- Tá tranquilo, eu me viro daqui. - Respondi ansiosamente.

- Me liga se precisar de… - ele fez um sinal com a mão, um sinal que todo maconheiro
entende. Então ligou o carro e seguiu em frente, para mais um “dia de labuta”.

Estava atrasado, mas nem tão ferrado como há quarenta minutos atrás. Carlos iria me buscar por
volta das onze e, por sorte, ainda teria tempo de tomar um banho e descer com a minha bagagem.
Foi o que fiz. Depois de ficar limpo e cheiroso e sem nenhum resquício daquele banheiro nojento
de bar, peguei o restante das coisas de que precisava e guardei em minha mala. Desci com a
bagagem e fiquei aguardando a minha “carruagem” em frente ao portão de casa. Minha cabeça
ainda doía um pouco e ainda sentia o cansaço, que não passava. Fumava meu cigarro enquanto
esperava Carlos chegar, o que não demorou muito.

Carlos era um cara de sorte. Era um antigo amigo meu, bastante esperto e bem aventurado.
Adorava ler bons livros e também era um ávido apreciador de jazz e música clássica. Fora isso, o
cara era um beberrão, assim como eu, uma mosca de bar. Curtia usar psicodélicos de vez em
quando, afirmava que abria seu “terceiro olho”, ou qualquer merda que isso significasse - nunca
me interessei nisso, para mim é só mais uma desculpa para querer usar droga - e ainda, era um
grande consumidor de cannabis, la marijuana, embora tenha diminuído após uns anos.

Ele chegou bem no horário marcado, estacionou seu antigo Honda e me gritou:

- Fala, man! Que cara horrível é essa?


- Nem queira saber, nem queira saber! - repeti insistentemente.
Ele desceu do carro freneticamente com o intuito de me “ajudar” com a bagagem - simplesmente
abriu o porta-malas e colocou minha mala de qualquer jeito - depois entrou de novo no carro e
ligou o rádio “Tenho que te mostrar essa cara!” Carlos sempre foi assim; sempre energético,
ansioso, louco para me mostrar um som novo, selvagem e “rico em cultura”, como costumava
dizer. Ele botou o som no volume mais alto e deu a partida no carro; começou a acelerar de
forma constante sem nem ao menos me esperar fechar a porta do carro.

- Porra, nem pra me esperar entrar direito, caralho! Tá ansioso, é!? Já disse pra você que é
a viagem, cara, e não a porra do destino! Se continuar assim, num vamo nem chegar lá!
Tu vai acabar batendo!

Ele me ignorou. “Confia” disse com uma calma eclesiástica “vai dar tudo certo.” Dizia isso
enquanto, ironicamente, cortava de um carro para outro. Ele simplesmente não parava. Furava
todos os sinais, cortava mais outros carros e acelerava, cada vez mais e mais rápido... aos poucos
ia nos levando para o outro lado da cidade, tudo isso em instantes. Carlos era a máquina.
Entramos na autoestrada. Famosa BR. “Olha o radar, ein!” Não adiantava dizer. Carlos estava
possuído. Ele acelerava e cortava, parecia nascer para isso, uma navalha, não estava nem aí!
Tinha a certeza de que nada de mal lhe iria acontecer e no fundo eu também sabia, mas só achava
que ele precisava maneirar um pouco.

Subimos a Serra em tempo recorde. O carro começou a desacelerar “Vou com mais calma agora,
quero curtir isso.” “Finalmente” reclamei. O "isso" a que ele se referia era a uma enorme
construção que surgia em nossa frente. Se tratava de uma antiga linha de trem que ficava
suspensa sobre a estrada. O pior, que aquela coisa era realmente bonita - pra confessar tinha até
um charme poético (pelo seu tamanho colossal) - mas não me interessava tanto quanto para ele.
Preferia ver as serras, os “mares de morros” que se projetavam ao lado da minha janela, aquilo
sim me dava uma certa paz de espírito, coisa que estava precisando há muito... muito tempo.

Permaneci nessa por vários minutos. Ficava divagando, enquanto olhava por toda aquela
paisagem que ia sendo pintada tal qual um Monet. Carlos tentava falar comigo, mas não
conseguia resposta; ficou a viagem toda falando sozinho - coitado - e ouvindo seus quartetos de
jazz. Enquanto isso, admirava todo aquele “mar serrado” e pensava em como estava ressacado e
que, embora estivesse animado para viajar, só desejava dormir. Veja bem, adoro viajar, adoro
pegar uma estrada e partir. Me dá uma sensação de liberdade; de que meus problemas vão ser
deixados para trás e tudo o que tenho está em minha frente: A pura novidade. Sabe-se lá o que
pode acontecer, quem posso conhecer, o que posso fazer e que lugares maravilhosos irei visitar.
Essa experiência toda que não está presente nos dias ordinários. É uma das partes boas da vida
que não se pode deixar de lado, nunca. Deve-se agarrar a oportunidade na promessa de que lá
tudo será possível e abraçar o desconhecido como uma velha amiga. É criar a confiança de que
tudo aquilo que te irá acontecer será a melhor coisa de sua breve existência. É a hora de tirar a
prova do que a vida é capaz de fazer por você. A potente vontade de estar presente; de sentir-se
vivo. Ter aquilo quase que palpável e sacar... sim, sacar, a verdadeira realidade disso tudo; de
aproveitar ao máximo o tempo que nos resta. E o que nos resta? Era bonito de imaginar toda essa
reflexão, mas aos poucos o cansaço ia aumentando. Meu corpo finalmente cedeu e dormi o
restante do caminho.

Acordo horas depois com Carlos freando bruscamente o carro. “Que porra é essa?” gritei
assustado. “Não vê?” disse ele apertando a buzina com toda sua força: BIIIIIIIIII!!!!!!!! Fiquei
surdo por um breve período de tempo e foi quando eu as vi. Estávamos no meio do nada em uma
estrada de chão batido. Cercas de arame separavam aquela velha estrada dos campos verdes que
nos rodeavam. Se tratava de um pasto, onde várias vacas, bois e bezerros ruminavam enquanto
tomavam seu banho-de-sol. Porém, algumas delas conseguiram pular, e até quebrar, uma das
cercas, escapando, assim como nós, de sua pífia rotina ruminante, e deitaram-se no meio da pista.

Carlos não parava de apertar aquela maldita buzina, até que o empurrei pedindo para parar.

- Essas malditas! - gritou Carlos.

- Não vê que isso não está dando certo? - Elas continuaram lá intactas, algumas até vieram
pra mais perto. - O que vamos fazer agora? - disse.

- Já sei! Acho que isso pode funcionar… Abre o porta-luvas aí e pega o terceiro, se não o
quarto disco.

*Click*

- Não cara, nem pensar! Você é um doente, um maluco, pirado! - Comecei a rir.

O CD que Carlos havia sugerido era um do Pink Floyd. Ele o colocou no aparelho de som e
aumentou o volume, “Agora é só esperar…”
O carro começou a ressoar toda aquela progressividade que já estávamos acostumados a ouvir,
porém, depois de alguns instantes, nada aconteceu. Olhei para ele querendo dar um tom mais
sério e me retribuiu com: "Você tem que esperar, essa parte é mais baixinha mesmo. Espera
chegar no ápice que você vai ver! Todas elas vão sair rapidinho!” Resolvi dar uma chance, afinal,
mesmo sabendo que seria uma bobagem, aquela música era muito boa pra não ser ouvida. Ele
então aguardou um pouco, até que voltou a ficar agitado. Meteu a mão no bolso e tirou de lá um
baseado, “essa merece.” “Concordo”, retruquei. Acendemos o coitado e deixamos o carro todo
empesteado. Ficamos esperando e nada acontecia. Entretanto, alguns minutos depois… Algo
mágico aconteceu. Quando a música começou a chegar no seu ápice, as vacas começaram a se
levantar e um mugido orquestral começou a nos guiar; um mugido tão alto, que quase se
sobrepunha à música. Elas então começaram a caminhar em direção contrária a nossa, até que se
puseram a correr. Carlos ligou o motor e se prestou a segui-las. Com um tempo se afastaram
tanto que a perdemos de vista.

- Tá vendo! É o poder do Pink Floyd!


- Eu acho que elas não tem bom gosto!
- Mas por quê isso? Atom Heart Mother é tão foda! Hahahah...

Seguimos a viagem direto para o sítio de Carlos. Era um casebre de dois andares que dava de
frente para uma das paisagens mais bonitas que já vi. Ao fundo da casa, árvores preenchiam suas
fronteiras e um pouco mais afastado dali havia um local para uma fogueira, onde passei bons
momentos com ele e outros amigos.

Estacionamos e levamos nossas bagagens para dentro da casa. Ainda estávamos chapados e
resolvemos preparar alguma coisa para comer. Como já era de tarde, e nem tínhamos almoçado
ainda, Carlos resolveu fazer suas famosas batatas fritas com calabresa.

Subi para meu quarto para desempacotar minha mala. Escolhi uma das camas e deitei. Minha
mente estava cansada e eu ainda tentava entender o que foi toda aquela bagunça mental que
chamei de noite passada. Tentava ligar os fatos, mas não conseguia compreender. “Como? Eu
bebi muito, mas não a ponto de apagar… Tem de haver algo a mais, não é possível.” Fiquei
tentando recordar de cada instante que eu achava ter perdido ontem. Fiquei me revirando, indo e
vindo, como um filme em replay. Meus olhos começaram a pesar de novo e mais uma vez caí no
sono.

Horas se passaram, a noite já pintara o céu quando me levantei. Desci as escadas na esperança de
me encontrar com Carlos, mas ele não estava. Procurei-o pela casa, porém nenhuma notícia dele.
Resolvi ir mijar - É incrível como o seu corpo retém líquidos enquanto você está numa ressaca -
Saí do banheiro e senti a fome apertando de novo. Achava tudo aquilo esquisito, “onde será que
ele se meteu?” indaguei. Fui para a cozinha na busca de arrumar alguma coisa para encher o
bucho - Não havia muita coisa na despensa, somente alguns biscoitos e enlatados - resolvi
vasculhar a geladeira, mas antes de abri-la me deparei com um bilhete pregado à porta que dizia:

“André,

Tive de sair às pressas, precisei resolver uma coisa urgente com meus pais. Talvez eles apareçam
amanhã. A gente ainda pode fazer o churrasco com eles, se você não se importa? Além do mais,
a casa é minha e sou eu que mando nessa porra… Mas falando sério agora! Você apagou,
mano! Fiquei preocupado. Tentei te acordar, mas você simplesmente não levantava. Que ressaca
BRABA ein!? Resolvi te deixar dormindo mais um pouco (descansa aí meu amigo). Então por
favor, tome conta da casa enquanto eu estiver fora. Deixei um pouco do almoço para você comer
quando acordar. Se eu não voltar pela noite é porque voltarei com meus pais pela manhã.

Até breve,

Carlão”

“Droga!

Bem, pelo menos ele deixou comida para mim…”

Abri a geladeira, esquentei aquela gororoba e mandei para dentro. Carlos nunca deixou na mão
no quesito de cozinha. Sempre se aprimorando aos poucos, puxou isso de seu pai, que sempre
inventava alguma receita muito absurda, mas que no final sempre ficava gostosa.

A noite estava clara naquela noite e eu tinha a casa toda para mim. Não havia muita coisa para se
fazer ali, principalmente quando se está só. A minha dor de cabeça já havia passado, então
resolvi procurar alguma coisa na cozinha para beber e passar o tempo, mas não achei nada ali;
nenhuma cerveja ou qualquer outra coisa que Carlos curtisse beber. Tentei vasculhar pelo resto
da casa em busca de qualquer trago que seja. Procurei por tudo quanto é canto, inclusive na
garagem. Por sorte, ou azar, encontrei algum resto de cachaça e um pouquinho de uísque. “Por
que não?”
Subi para a cozinha e foi quando virei o restante daquele uísque na minha boca. Minha garganta
ardia, mas implorava por isso. “Não adianta”, pensava: “o álcool é a melhor forma de se
entreter quando a solidão bate às portas.” Se tratava de uma garrafa barata, então já esperava
aquele gosto horrível. Peguei um copo na despensa e resolvi virar o restante daquela cachaça.
Veja bem, tudo aquilo era pouco, mas o suficiente pra me fazer esquecer da outra noite por
algum tempo. E, por incrível que pareça, aquela se tratava de uma cachaça muito boa. Era antiga
e tinha toques amadeirados, não ardia na hora de beber, descia suave, suave até de mais.

Resolvi acompanhar as bruxas que se acomodavam nas paredes da varanda e admirar a paisagem
regada pela bela lua cheia que fazia naquela noite. Era tão bonito, apaguei todas as luzes da casa
e fiquei observando… Toda aquela folhagem estava sendo banhada por um belo tom de prata e
cinza e a paz e serenidade que aquilo transmitia transcendia qualquer jovem coração apaixonado.
Era uma noite perfeita.

A cachaça estava quase chegando ao fim e ainda não me sentia satisfeito. Acendi um cigarro e a
fumaça do fumo aos poucos me acalmou. Enquanto isso, via as folhas nas copas das árvores se
mexendo ao toque do vento que se regia como as ondas do mar.

“A natureza às vezes me espanta, contudo de uma forma boa. E isso tudo é um exemplo do que
ela é capaz de fazer. Me entristece ao saber que ainda existem aqueles que preferem destruí-la
do que endeusá-la. São incapazes de ver a verdade nessa beleza abstrata - abstrata porém real.
E se sabotam, achando que tudo é lucro. Mas uma hora vai chegar, a conta sempre chega… Meu
único medo é que seja tarde demais, pois nesse caminho torto de iluminação aparecem tantos
inocentes que são mastigados pela ganância alheia e sofrem, porque não há escapatória para
esse tipo de fim.”

Estava embriagado. Não pelo álcool que havia bebido, mas por todo aquele cenário que parecia
me engolir cada vez mais e mais. Fiquei tão fascinado, tão inspirado, tão emotivo, que mal
percebi que o cigarro aceso em minhas mãos havia caído em meu colo e que estava me
queimando. A minha reação foi demorada demais e só me levantei quando senti um calor perto
da minha cintura. Fiquei apavorado e, ao mesmo tempo que estava tentando me salvar, deixei
tudo o que estava comigo cair no chão: o cigarro, as garrafas de bebida e meu maço; tudo menos
o copo, que ficou parado em cima da grade que separava a casa de um abismo e a mim.

Me recompus e recolhi tudo do chão - por sorte as garrafas não quebraram. O maço havia se
estatelado e os cigarros ficaram espalhados pela varanda. Me ajoelhei e comecei a catá-los,
alguns estavam mais difíceis de alcançar do que outros, mas quando estava prestes a terminar o
“serviço” eu me lembrei do que Diogo havia guardado para mim, o tal “presente” da noite
anterior: dois quadrados de papel contendo ácido lisérgico.
Eu havia me esquecido completamente daquela coisa, havia me esquecido até da erva que ele me
vendeu e de toda conversa que a gente teve. Entretanto, pensando nisso agora, aquela experiência
toda veio até mim! Toda aquela lembrança de Diogo, Camargos e Carol apareceu invadindo as
portas do meu crânio, chutando e se degladiando. Flashbacks de uma noite passada. E eu ficava
ali observando, na espreita de achar alguma resposta para as minhas perguntas. “Será?” Só havia
uma forma de saber, “mas eles não seriam capazes de uma coisa dessas… E qual seria o
intuito?” Mais perguntas invadiam minha mente e de novo a neblina da dúvida cobria meus
pensamentos. “Só há um jeito de confirmar, só me resta uma coisa a se fazer agora!”

Eu estava sozinho, entediado, brigando com a minha própria existência. Resolvi me arriscar
colocando aquele pedaço de papel em minha boca. Qualquer pessoa que já tenha usado esse tipo
de droga sabe que os seus efeitos não são de imediato. Demora pelo menos 40 minutos para
sentir alguma coisa. Primeiramente você sente seu corpo estranho, ele esquenta, seu tato fica
mais confuso e aos poucos você vai se sentindo mais leve. Até que passa a primeira hora e o
ácido vai começando a dar efeito, sua mente começa a divagar, as coisas começam a tomar um
outro conceito na sua cabeça e sua prioridade pessoal deixa de ser pontual - coisas como comer,
dormir, mijar, sensação de frio e calor. Depois vêm as ilusões, as cores começam a dançar e se
destoar, deixando uma gama de contraste maior e mais chamativa, qualquer cenário colorido
demais te prende a atenção. É como viver com um olhar infantil, tudo é novo e bonito. E fica
assim até que chega o ápice…

Quarenta minutos haviam se passado e nada… Já estava começando a achar que a droga não iria
bater. Fui para a cozinha procurar alguma coisa - de que não me lembro agora - e retornei para a
varanda. Acendi mais um cigarro e olhei para o relógio, trinta minutos haviam se passado. O
tempo voava, mas sabia que se esse “doce” fizesse algum efeito me marcaria com a sensação de
viver em uma longa e eterna estrada lisérgica. Resolvi acender outro cigarro - porque não? - e
enquanto dava minhas longas tragadas; e enquanto parava para admirar aquelas folhas sob a brisa
noturna; e enquanto tomava aquele banho de Lua; e enquanto ouvia os dizeres secretos do vento;
e enquanto fumava de novo; e enquanto…; e enquanto. Pensava sobre guerras napoleônicas,
revoluções ancestrais, cura do câncer, fome na África, conflitos no Oriente Médio, Bruxaria,
Alquimia, viagem para a Lua e para o centro da Terra. Minha mente divagava e ia e ia. Sem
chegar a conclusão nenhuma, sem ter fim. Transitava para uma linha de pensamento a outra, mas
sempre voltando. Era como estar velejando em idéias, mas com coisas sem nenhum nexo ou
racionalidade. Porém havia alguma verdade escondida naquilo, uma outra percepção, não sei,
algo que vai além de qualquer reflexão profunda ou meditação tibetana. E eu sabia que, embora
não fosse lembrar de nada daquelas breves conclusões; sabia que, logo quando toda aquela
“viagem” passasse, mesmo que subconscientemente, algum resquício daquela impressão ficaria
guardado em mim, esperando... esperando e esperando; até que um dia, em um momento
oportuno, ela floresça; ou simplesmente evolua e com isso saia algo completamente inesperado,
profundo e original; ou também, pode não acontecer nada e a vida seguiria normalmente da
forma como tudo deve ser.

Todas aquelas conjecturas orbitavam minha mente, me abduzindo de forma instantânea, até que
minha atenção caminhou para outro lugar, ou melhor, para fora de mim. As estrelas começaram a
brilhar forte no céu e eu senti que era capaz de enxergar todo o universo. Todo aquele cenário de
antes começou a ser mais intenso e vivo. Na minha cabeça, eu realmente conseguia sentir tudo
aquilo vivo como um único ser, o vento era sua respiração, a Lua seus olhos, os bichos suas
células e eu, que já estava fora de mim, era um mero invasor, um parasita, um vírus - nem vivo
nem morto - só sendo e apreciando a existência do ser, se metamorfizando no espectador daquela
pseudo realidade.

Já não sentia mais as amarras do tempo me controlando. O relógio, seu reles instrumento, não
passava de um adorno para meu braço. Dei uma última tragada, olhei para Lua novamente e
resolvi entrar. “Quem sabe a TV não me distrai um pouco?” Entretanto, mais uma vez tive a
minha atenção roubada. Fiquei hipnotizado por uma peça de tapeçaria que decorava a sala.
Engraçado que ela sempre ficava ali, porém eu nunca havia reparado em sua beleza. Tratava-se
de um tapete enorme que cobria toda a parede. A peça era bem colorida e retratava uma cena
medieval. Ao fundo havia um castelo e mais pra frente uma grande plantação e uma floresta mais
para o meio, também aparecia nela personagens como camponeses, pastores e ovelhas - que
nesse exato momento estavam se mexendo e sorrindo para mim, todos eles dançavam em uma
harmonia distópica - e bem a frente de tudo havia um monge sentado lendo seu livro - ou talvez
rezando, não lembro - Ele era o que mais chamava atenção, pois suas roupas vermelhas se
destacavam de todo o resto. “O que ele faz ali tão longe assim de casa?”

E de novo divagava…

Até que em algum momento me lembrei que a TV estava me esperando. O único problema era
encontrar o controle remoto que estava em algum lugar, mas não o achava de nenhum jeito! E o
pior de tudo, procurá-lo enquanto se está nesse estado contemplativo não é uma das tarefas mais
fáceis do mundo. Era difícil rastreá-lo entre as almofadas e os dois sofás porque minha mente
começava a me enganar jogando peças e me confundindo. Primeiro tinha meus olhos que fugiam
da razão. Eu fiquei incapaz de perceber o que era uma simples almofada ou uma parte do sofá. E
quanto ao meu tato, ele também não me ajudava. Minhas mãos estavam quentes demais e eu não
conseguia sentir direito o que eu agarrava, era como se tudo que fosse sólido derretesse ao meu
toque.
Quando finalmente o encontrei soltei um berro de alegria. Já estava ansioso e relutante, mas
agora calmo e alegre. Liguei o aparelho e me apareceu logo de cara um daqueles filmes bobos de
heróis. Eu odiava esse tipo de coisa. Sempre o bonzinho ganhava no final, e se não ganhava,
sempre havia uma sequência pra arrancar mais dinheiro dos trouxas que pagam pra ver esse tipo
de merda. *CLICK* Passa pra uma novela *CLICK* um programa de história *CLICK* agora
outro filme - DUNA 1984 - de fato era um filme interessante, pensei, mas carregado demais pra
assistir dropado de ácido, já o tinha visto antes e por conhecê-lo bem troquei de novo *CLICK*
Agora sim, uma boa animação americana, a melhor opção para se assistir quando se está drogado
de alguma coisa. O show contava a história de um velho bêbado e seu neto que ambos viajavam
por entre dimensões tendo diversas aventuras. O programa todo era uma pura viagem que me
entreteu por não sei quanto tempo.

E depois de horas, talvez - ou tempo algum - minha cabeça começou a melhorar. Me parecia que
o efeito de toda aquela maluquice já havia ido embora e escapado finalmente da minha mente. O
episódio do programa que eu estava assistindo havia terminado - já não era mais aquele mesmo
desenho - e resolvi levantar um pouco e esticar as pernas. Senti um movimento estranho na
barriga e saí correndo pro banheiro. Fiquei lá por um bom tempo, eu culpo meu intestino preso.
Demorei tanto que até escutei um trovão, pressenti que uma chuva estava a caminho.

Quando saí do banheiro, corri para fora para esperar a tempestade aparecer enquanto enrolava
um baseado - eu adoro fumar um enquanto escuto o barulho da chuva pingando no telhado - o
que, coincidentemente, foi o tempo certeiro de terminar de bolar e acender. A chuva vinha fraca,
no começo, e eu forte nas tragadas do baseado. Ficava cada vez mais chapado e o beck cada vez
menor. A brasa ia queimando conforme a chuva ia se esticando, as gotas que desciam do céu
pingavam como uma bateria em um compasso de jazz *ping* *pong* *ping* *ping* *pong*.
Até que a chuva começou a engrossar e relâmpagos consumiram a paisagem dando um show de
luzes ao vivo. “VENHAM VER HOJE! A MÃE NATUREZA E SEUS RAIOS TROVADORES!
SOMENTE HOJE! UM SHOW INESQUECÍVEL QUE IRÁ DEIXAR TODOS MOLHADOS DE
EMOÇÃO!” Estava maluco, transcendentalmente elevado e perdido. Engraçado como a viagem
de ácido funciona. Toda aquela fumaça de maconha ia entrando na minha cabeça e fazia com que
todas aquelas sensações de antes retornassem, como um ato de revolta contra a sobriedade e
normalidade. O meu ápice de LSD estava prestes a começar...

A chuva não parava de cair e piorava cada vez mais. Fiquei atônito observando aquela
quantidade absurda de água caindo. Chegou um momento em que eu não aguentava mais! Me
sentia o próprio Pinóquio sendo engolido pela baleia, mas de vez um menino de madeira, era eu
e de vez uma baleia assassina gigante, era toda aquela tempestade que me engolia de sensações
ruins. Entrei de novo para ver TV e esquecer tudo aquilo, mas não conseguia. O meu encanto por
aquele cenário havia se transformado num terror. A cada estrondo que escutava sentia um
calafrio. O medo começou a invadir meu corpo da mesma forma que a chuva invadiu o céu
daquela noite. Olhava pela janela e imaginava um grande oceano - imaginava não, eu via! Minha
alucinação era tão viva que enxergava diversos tipos de peixes, lulas e até algas - que
transbordavam pela paisagem e junto a eles a varanda, as árvores e todo o sítio. Meu pavor
controlava meu corpo e o ácido controlava a minha mente. Liguei a TV e não estava passando
nada além de umas propagandas mudei mais uma vez de canal *CLICK* *PAM PANPAM
PARANRANRAM * “INTERROMPEMOS A PROGRAMAÇÃO PARA INFORMAR QUE UMA
FORTE CHUVA ATINGIU A REGIÃO DE RIO ACIMA E NOVA LIMA, A BARRAGEM - QUE
ESTAVA DESATIVADA HÁ MUITO TEMPO - CEDEU, DESTRUINDO EM LARGA ESCALA AS
PROXIMIDADES DA ÁREA, BOMBEIROS ESTÃO TRABAlhando para evacuação…”

Neste exato instante, senti um grande tremor junto a um estrondo que mexeu com toda a casa.
Não podia acreditar no que estava ouvindo. Não podia acreditar no que estava acontecendo. Meu
coração acelerou e minha ansiedade - que já estava alta - subiu a níveis nunca antes visto. Fiquei
catatônico. Comecei a correr pela sala. Os personagens da tapeçaria riam de mim, davam várias
gargalhadas. Outro tremor invadiu a casa e pude senti-la se mexendo. Agora estava ao chão me
tremendo de medo. Pude ver pela janela as ondas empurrando a casa. Os peixes passavam
fugindo em pavor de tudo aquilo, estavam tão perdidos quanto eu. A casa ia se movendo e
esbarrando em tudo à sua frente. As ondas a guiava para um destino incerto, junto com tudo
aquilo que a seguia. Até que um estrondo mais forte fez com que a casa tremesse toda mais uma
vez e, de repente, tudo parou.

Uma quietude tomou conta do lugar. Os peixes ainda passavam e as ondas já não tinham forças
para mais nada, porém não demorou muito para que algo acontecesse. Os peixes que me
rodeavam começaram a fugir, o que levantou preocupações mais uma vez, e subitamente surge
um grande tubarão-martelo. Ele devorava os peixes que ali restaram e me encarava como se
fosse uma espécie de ameaça: “VOCÊ É O PRÓXIMO!” Começou a martelar sua cabeça contra
a janela fazendo ressoar um terrível som, um barulho que agourava a minha morte. Bateu e bateu
até que o vidro começou a rachar. Estava quase conseguindo chegar em sua presa, eu. Ele deu
mais uma batida… *CRACK* Entretanto dessa vez um outro som ecoou, como um estalo ou
assobio, algo agudo o suficiente para espantar aquela criatura dali. Desorientado, o tubarão
nadou para bem longe e aquele som ecoou mais uma vez. Me levantei para procurar a origem
daquele barulho e ao fundo vi uma pequena mancha branca. Comecei a bater nas portas querendo
chamar sua atenção. Na hora pensei que se tratava dos bombeiros que a televisão havia
anunciado e que eles iriam me salvar. Mas aquela mancha ia se aproximando, seu grito ia
aumentando e seu tamanho dobrava a cada segundo que passava.
“AH COMO EU SOU IDIOTA!” gritei. O pânico havia retomado as rédeas do meu corpo.
Aquela mancha se tratava nada mais nada menos do que a grande baleia branca, MOBY DICK,
que agora estava vindo em minha direção, vindo para me devorar! - Não só eu, como a casa toda
também - foi quando eu começei a gritar desesperado: “VOCÊ NÃO VAI ME DEVORAR SUA
BALEIA IDIOTA! NÃO VAI ME DEVORAR!” e logo em seguida pensei “Se eu sou Ahab,
quem ficará para contar a minha história?” Olhei para a tapeçaria “ VOCÊS NÃO VÃO ME
AJUDAR!?” A Baleia acelerava o nado enquanto a TV, ainda ligada, informava: “Foram no
total 2000 residências destruídas, 500 mortos…” A casa voltara a se mexer e a Baleia
continuava vindo em minha direção. Senti de novo uma falta de ar, tentava respirar mas ele
simplesmente não chegava em meus pulmões. As luzes não paravam de brilhar, os trovões não
paravam de explodir meus tímpanos, olhei para a tapeçaria uma última vez, o monge finalmente
parou de rir e de novo tudo ficou preto e cinza, e novamente um silêncio profundo dominou o
lugar.

Ficou evidente, leitor, sobre o que aconteceu naquela noite de tormenta e que mais uma vez
havia desmaiado perante a minha loucura. Acordei na mesma cama em que dormira mais cedo,
porém não lembrava de como havia chegado ali ou o que acontecera antes de toda aquela
tempestade de paranoias perturbar a minha cabeça. A única sensação que eu tinha foi de ter
morrido, ou assim acreditava quando acordei. Me olhava para o espelho tentando entender quem
era aquela figura que se refletia em minha frente, tentava compreender se ela estava realmente
viva ou morta. Foi então que alguém bateu na porta… Era Carlão.

- Entra.
- Ah, então você já está acordado! Bom dia Bela Adormecida!
- É, bom dia…
- Que cara é essa?
- Cara, eu nem te conto o que aconteceu ontem. Acho que tive um pesadelo.
- Pesadelo? Sei. Acho que você deve tá se referindo a bagunça toda que você fez lá na sala. - ele
ria.

Contei pra ele toda a história, a de ontem e a de Diogo. Falei que estava entediado, que achei o
ácido perdido no meu maço e que deu tanta merda depois que devo ter desmaiado com a bad
trip, até me desculpei por todo o transtorno. Ele me contou que eu devia ter me assustado com
alguma coisa, Carlão entende dessas coisas. Ele disse que a barragem realmente havia explodido,
mas não foi por causa da chuva. E também que não era a de Nova Lima, mas sim de Brumadinho
- o que era razoavelmente perto dali -
Fiquei sem acreditar em toda aquela história que ele havia me contado que a única reação que
tive ao ouvir aquilo foi rir descontroladamente. Carlos me chamou para descer e tomar um café.
Alertou que seus pais estavam chegando para o churrasco e que ele precisaria de minha ajuda
para preparar a churrasqueira.

O ajudei com o carvão e depois com as carnes. Ele havia colocado algumas cervejas dentro do
congelador mais cedo e logo voltou com duas latinhas na mão. “Toma. Agora vamos colocar
alguma coisa pra assar que estou morrendo de fome.” Coloquei algumas asinhas e uma linguiça
na churrasqueira. Ficamos esperando e conversando até que escutamos um barulho de carro
parando na porta da casa. Os pais deles chegaram, Dona Sophia e Seu Cândido. Sophia vinha
trazendo uma panelinha com vinagrete e farofa. Já Cândido, subia com um fardinho e mais carne
para assar.

- André, quanto tempo! Como tem passado? - Comprimentou ela.


- Nossa nem te conto, Dona Sophia.

Passamos uma tarde muito agradável, comemos churrasco e bebíamos cerveja. Diferente da noite
anterior, o clima estava razoavelmente nublado e, já para o final do dia, alguns raios de sol
batiam nas copas das árvores. Havia conversado mais cedo com Cândido, ele era engenheiro de
minas e pôde me explicar um pouquinho sobre toda aquela situação - o que, sinceramente, me
acalmou bastante - Ele disse que não havia perigo nenhum ficar ali no sítio e que o risco de mais
alguma coisa acontecer era mínimo. “Só rezo por aqueles que tiveram suas casas destruídas e
pelas famílias que tiveram seus entes queridos.” disse ele.

Estávamos agora observando um majestoso pôr do Sol e concentrados, após uma longa conversa
filosófica. Fiquei irriquieto e fumava meu cigarro. Pensava ainda sobre tudo o que acontecera,
sobre a vida, a morte e a falta de controle que temos pelas coisas e a quebra de confiança que as
pessoas fazem. Cândido também fumava. Tinha um olhar mais sério e preocupado. Algo
acontecia em sua vida que ele não queria me contar. “A gente acha que entende das coisas, mas
no fundo sabe de nada.” dava um trago no cigarro. Falava em voz alta tudo aquilo que pensava e
a cada tragada dizia algo do tipo “É natural, só se entende quando se vive isso.” Ou: “Mal vejo a
hora disso tudo passar, porque tudo passa.” Fumava e ao longe o Sol ia se pondo. Divagava
como um velho sábio, o que realmente era. Naquela hora minha atenção se voltara toda para ele,
nos seus dizeres. Parecia repetir coisas de algum antigo provérbio chinês, mas num tom de
arrependimento. Algo o incomodava profundamente, mas nunca saberei ao certo. Ao fundo os
raios iam se desfazendo, o céu que agora estava laranja aos poucos ia escurecendo. E o mundo
lhe observava enquanto fumava o seu cigarro.

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