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A Tenda do Fraldinha

Apesar de ainda estar bastante claro, o céu celeste imprimia nos objetos uma
espécie de faísca melancólica, fixava uma estampa de cetim até nas coisas que não
poderiam ser reluzentes, mesmo assim, as luzes da rodoviária já estavam acesas quando
os dois chegaram. São cinco horas de uma tarde de domingo e está frio, as pessoas vestem
casacos pesados, friccionam as mãos e limpam com as luvas as secreções do nariz. Um
inverno tardio avança pelo mês de outubro, e isso é bastante comum nessa região. A
rodoviária é dividida em dois andares bastante singelos, o primeiro, abaixo, onde é
possível comprar e marcar as viagens; e o segundo, acima, onde está a estação, aberta
completamente, onde os ônibus chegam e partem. No segundo andar, há apenas
algumas banquinhas de revistas e lancherias sujas e decadentes. Pequenos cartazes de
neon tentam freneticamente e em vão fisgar algum cliente. Naquele momento era
possível ver algumas estrelas ou planetas ou aviões no céu. Por um momento, as
superfícies ficaram abauladas por conta do brilho excessivo, céu, lâmpadas, um paraíso
esquecido.
As histórias começam assim, ele pensa, enquanto fuma o terceiro cigarro de uma
carteira comprada há poucos minutos.
Começam e terminam. Os dois aguardam a chegada do ônibus que a levará para
Curitiba, são quase dois dias de viagem, o ônibus deve fazer inúmeras paradas para
desembarcar e embarcar novos passageiros até o seu destino final. É comum pensar que
a tristeza orbita, em diversos graus diferentes, desde uma melancolia silenciosa a uma
depressão agressiva, as despedidas e em certo ponto é verdade. Nesse caso, como talvez
em todos onde há uma separação forçada, a tristeza é mais invasiva para um do que para
outro. Para ele, que fica, é pior: a solidão. Percorrer os mesmos espaços que antes eram
feitos a dois, a poeira fina de tédio e ansiedade que cobrirá os dias de silêncio, a busca,
eterna e insaciada, por algo que não está ao seu alcance. Para ela, a tristeza é maleável,
ou, pelo menos, acredita que não terá muito tempo para pensar sobre isso: cidade nova,
cidade grande, faculdade, amigos novos: ou seja, há medo e um pouco de pânico, mas
a tristeza de ir é menor do que a de ficar.
E eles sabem.
Demoram no abraço quando o ônibus chega. Demoram até demais, ela pensa.
Ele fedendo a cigarro. Prometem que vão se ver, que vão voltar a se encontrar o mais
breve possível, mesmo que ambos não acreditem mais nisso. A palavra amor é
mencionada algumas vezes, de forma um tanto esquiva e distante. Saudade, frio e
cuidado são as palavras mais usadas por eles. Ela embarca no ônibus e olha duas vezes
para ele: uma logo quando se senta na janela, acena e sorri e já olha para baixo e finge
mexer em algo muito importante; e outra quando o ônibus parte.
Quando entra no táxi, seu maço tem sete cigarros.
Eu também fumo, diz, por isso quase não sinto o teu cheiro, mas se senti é porque
é forte mesmo.
É, preciso achar um jeito mais saudável de lidar com essas coisas.
Que coisas?
Minha namorada se mudou. Foi hoje embora.
A vida segue. A mãe dos meus dois filhos um dia disse que ia embora também.
E foi?
Foi.
Que merda.
A gente dá a volta, rapaz, o que mais tem no mundo é gente, e gente se acha.
Tu tem alguém?
Eu tenho meus dois filhos, o resto é resto.
Se importa se eu fumar?
Só abre o vidro aí. Tá em casa.
Tava a fim de tomar um porre hoje, sabe de algum lugar bom por aqui?
Quantos anos tu tem?
Dezessete.
Acho que na maioria desses bar aí não tem problema tu pedir bebida não. Duvido
que te peçam documento. Só que a maioria desses lugar fecha cedo.
Tem algum que feche mais tarde?
Tem uns inferninho, mas daí acho que vão complicar contigo, tu tem cara de
criança.
Vou tentar.
Eu não bebo, sabe, desde que minha mulher foi embora, faz três anos. Eu bebia
demais. Mas demais mesmo assim. De sair do prumo. Cheirava, bebia, cheirava, aquele
escarcéu. Tem um lugar que é meio afastado aqui do centro que é legal de beber, é ali
na perimetral, tá ligado?
Não sei.
É a Tenda do Fraldinha, um grande amigo, onde eu sempre bebia e não dava
chilique, porque ele controla todos ali.
Me leva lá?
Ele dirigiu por bastante tempo até chegar no lugar. A corrida foi imensamente
mais cara do que previra, por sorte tinha trazido bastante dinheiro, sem saber exatamente
o porquê, além do cartão de crédito, que quase nunca usava. Estavam bastante afastados
do centro da cidade, um lugar remoto e vago, onde ele nunca tinha colocado os pés,
nenhuma proximidade ou referência de onde se encontravam lhe vinha à mente. Era
uma tenda dessas que há nas estradas que levam à praia, uma tenda onde vende caldo
de cana, dvds piratas e frutas e verduras. Mas ao lado, junto ao lugar, havia um pequeno
trailer, onde alguém fritava hambúrgueres numa chapa e diversas mesas e cadeiras de
plástico estavam espalhadas por um gramado irregular. Quase todas as mesas estavam
ocupadas, e não eram poucas, ele calculou que umas trinta pessoas estivessem ali,
bebendo e comendo, no frio do entardecer. Havia uma caixa de som no chão, bem ao
lado do trailer, que tocava músicas sertanejas a todo volume.
Ele sentou em uma mesa distante do som, uma das poucas mesas vagas. Foi até
o trailer e pediu uma cerveja de litro e depois voltou para o seu lugar com o casco cheio
e o copo ainda úmido. Depois do primeiro gole, o taxista sentou ao seu lado. Disse que
era pra ele ficar tranquilo, que o levava de volta pra casa com o taxímetro desligado.
Acordaram num valor bastante razoável. Ele foi até o trailer e cumprimentou
efusivamente o chapeiro. Voltou com um copo na mão.
Vai beber?
Só um gole. Ainda sei me controlar.
Tu paga a próxima.
E aqui o Fraldinha controla todo mundo. Tu vai ver.
Como assim?
Aqui não tem folia, entendeu? Aqui ninguém mete a mão. Existe apenas uma
lei, que é a lei do Fraldinha.
Pode crer. E teus filhos?
Ele se viram sozinho já. Já são bem crescidos. Eles sabem que eu não chego cedo
em casa. Tô sempre na correria. Mas hoje vou me dar um descanso.
Tu é taxista há quanto tempo?
Cara, vou te dizer. Nem sou, na verdade. Só tô cobrindo a folga de um camarada,
ele me pediu essa força. O táxi não é dele e muito menos meu, mas ele precisa ficar
rodando.
Pode crer. E quantos dias tu tá com esse táxi?
Dois.
Esse é teu segundo dia, então.
Isso aí.
Bom, mas eu disse que queria tomar um porre. Tu vai me esperar aqui?
Em quanto tempo tu acha que toma um porre?
Não sei.
Tu já tomou um porre?
Já. Duas vezes, mas de vodka.
E demorou muito?
Não lembro. Acho que sim.
Então vamo devagar, eu te acompanho.
Minha vida é uma merda. Vai ficar pior agora.
Porque tua namorada foi embora?
É. Eu só tinha ela, nem sei se tinha ela, mas tinha ela, de certo modo. Deu pra
entender?
Teus pais?
Meus pais não são pessoas boas.
Bom, pelo menos eles existem.
Tu não tem pais?
Meu pai nunca existiu. Minha mãe morreu faz uns três anos já.
Foda.
Eu já trabalhei em tudo que tu possa imaginar, e também já fiz tudo o que tu
possa imaginar.
Tipo o quê?
Tudo. De tudo um pouco. Chão de fábrica em metalúrgica, já fui testemunha
de Jeová sem nunca acreditar muito em Deus, já trafiquei com uns amigos por um
tempo. Já fui preso por brigar de faca em um bar e quase matei um homem que só me
olhou de revesgueio.
E agora?
Agora tô nessa do táxi, vou tentar seguir nisso depois que meu amigo voltar. A
verdade é que não sei se ele vai voltar.
Por quê?
Ele também tem os seus problemas. Foi internado numa clínica no interior pra
ver se para de se drogar. Quase bateu o feio o carro esses dias com uns passageiros. Aí
denunciaram. Disseram que tava alterado. Não sei se vão dar outra chance pra ele. Mas
preciso que deem uma chance pra mim.
Tu já conversou com o dono do táxi?
Conheci ele. Ele gostou de mim.
Imagino que sim.
Mas é um teste, eu fiquei por indicação mesmo. Mas se acharem outro vão
colocar no meu lugar.
Eles beberam a primeira e depois a segunda e a terceira e ele precisou ir no
banheiro urgentemente. De uma hora pra outra tudo ficou meio borrado, um êxtase
intenso tomou conta do ambiente, sem os casacos, as pessoas se levantaram e começaram
a dançar com sofreguidão as músicas que tocavam, como se estivessem em um universo
tomado por um dinamismo primitivo, meio lento, assustador. Havia duas cabines azuis
de banheiro público entre a tenda e o trailer. Ambas estavam trancadas por dentro e de
uma delas se ouvia um gemido baixo. Sentiu uma forte pressão no púbis e achou que
fosse se mijar ali. No mesmo instante, olhou rapidamente na diagonal e viu homens
agrupados em uma espécie de fila horizontal mijando num mato próximo.
Quando voltou, havia uma mulher na mesa. O taxista se levantou e começou a
dar giros solitários no gramado levemente acentuado, ia e voltava para mesa bebericar
do seu copo que sempre estava cheio. Às vezes bebia tudo num gole e já ia trocar o casco
vazio por um cheio com o homem do trailer, que já não fazia mais lanches, só servia
bebida para uma porção de gente. O garoto ficou com aquela mulher estranha por um
bom tempo na mesa, em completo silêncio, bebendo sem saber o que aconteceria
depois, porque já estava bêbado o suficiente para deixar que as coisas acontecessem sem
nenhum pudor. A mulher se dirigiu ao banheiro.
Quando tu quiser ir pra casa me avisa. Eu te levo.
Tu acha que pode dirigir?
Quê?
Digo, tu tá em condições?
Hahaha. Eu nasci com condições.
E tudo logo virou uma neblina densa, o céu se acinzentou de forma rápida,
violenta até, enquanto as pessoas giravam de um lado pro outro, rebolando, algumas
mulheres com seus grupos, alguns homens em pares olhavam distantes, palitando os
dentes, outros fumando, como se esperassem o momento certo de agir. Era uma
abstração, a névoa, os casacos estendidos, as pessoas que se estendiam as mãos e pareciam
irmãs finalmente.
Tu não vai dançar?
Não sei se consigo.
E, num átimo, tentou levantar da cadeira e caiu. O mundo inteiro girava ao seu
redor e sentiu que ia vomitar, mas conseguiu engolir uma pasta ácida e horrorosa que
brotou em sua boca.
Deixa quieto, fica aí.
Ele olhou em volta e não reconheceu ninguém, muito menos onde estava. Não
sabia como voltar pra casa e isso lhe causou um certo terror. Fora esse taxista, ninguém
mais podia levar ele de volta para um mundo familiar. Mas estavam todos loucos, loucos
demais para notar o seu desespero. Inesperadamente, a música foi baixando e as pessoas
começaram a se acomodar próximas à entrada lateral da Tenda.
Vamos, agora é a hora do espetáculo.
Em fila indiana organizada às pressas, como se houvessem escutado um sinal que
as impelisse ou as obrigasse a entrar naquele lugar, da mesma forma como as crianças
voltam à sala de aula, eufóricas, sujas, depois de um recreio intenso e inconcluso, as
pessoas entravam lentamente pelo vão contíguo que havia ao trailer, já cansadas e
olhando o tempo todo para seus próprios pés.
Aquilo dava a um corredor iluminado por uma lâmpada no centro de um tabique
que direcionava instintivamente às escadas que, por sua vez, levavam ao salão especial
da Tenda. Lá embaixo, um modelo de subsolo abafado, haviam salas interseccionadas
para os seus convivas, as paredes eram nada mais do que barro grosso fixado com uma
espécie de cimento queimado. As pessoas suavam tanto que o chão acetinado começou
a ficar lustroso e liso. Cada dupla era acomodada em uma cabine, apesar de haver casais
só de homens e casais de mulheres.
E isso não foi e nunca vai ser um problema na Tenda. Ao apagar das luzes, de
todas as luzes, as pessoas começaram a se mexer de forma desordenada e maníaca,
tocando seus cabelos, suas partes baixas e seus vestidos. Quando acendia de novo as luzes
os casais estavam todos modificados e precisavam ficar juntos pelo menos até as luzes
voltarem a se apagar, essa era a regra. Nesse meio tempo, se ouvia gemidos e respostas
altas, parecidas com brigas de casais prestes a se matar, e depois silêncio ou berros, e
nada importava. O garoto, semimorto, não entabulava conversa com ninguém, por mais
que achasse gostosa a mulata com o cabelo pintado que havia inclinado os peitos
siliconados na sua frente e dito quer me comer é agora é só meter a capa no teu pau e
vir. Só reagiu quando viu que seu companheiro de cabine era o taxista.
Preciso voltar.
É virgem, coitado. Não sei por que tá aqui, ouviu distante.
Agora que começou a Tenda. Fica até o fim.
E aguardou como um animal preso, como se realmente estivesse em uma cela,
um bicho talhado e colocado mecanicamente ali, como em um laboratório obscuro, em
que poderiam tocá-lo independente de sua vontade, e sentiu medo e logo depois tédio,
porque estava abandonado, apenas um espectador inofensivo, ninguém mais se dirigia a
ele. Achou que fosse madrugar ali e de fato foi o que aconteceu, esticou as pernas em
uma cadeira de madeira e tentou em vão dormir. Se sobressaltou quando ouviu garrafas
explodindo contra a parede. Duas ou três mulheres gritavam com gravidade. O taxista
apareceu com horror nos olhos e o empurrou em direção às escadas.
Como uma bofetada silenciosa viu a claridade da manhã e o orvalho que
dormitava na grama e nas mesas e cadeiras de plástico esperando tacitamente o que seria
feito com aquilo tudo.
Pra onde tu vai?
Não sei.
Como não sabe?
Onde dá pra comer algo?
Só a rodoviária tá aberta agora.
O táxi sacudiu e logo já estavam longe daquele lugar. Uma pequena multidão
havia saído à rua e olhava fixo o movimento do carro. Sem perguntar, girou o a maçaneta
da janela a acendeu um cigarro.

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