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Townes Van Zandt foi em seu tempo o perfeito menestrel viajante. Epítome do
trovador solitário e do cantor folk da América, o músico e compositor norte-americano
nascido nos anos 40 viveu o que cantava e cantou o que vivia. Sua “derradeira” morte em
1997, aos cinquenta e dois anos de idade foi, para um homem que cantou: “There ain’t much
that I ain’t tried/ Fast livin’, slow suicide”, ironicamente tardia.
Townes evocou em sua vida e obra a herança de uma duradoura, icônica e rica
tradição na cultura americana, um modo mítico de viver e uma forma arcaica de arte na qual o
artista e seu ofício são inseparáveis.
Jimmie Rodgers riding the rails of the great American West; Woody Guthrie
tramping the highways from dustbowl Oklahoma to the migrant camps of
Carolina; Robert Johnson playing guitar with the devil at a Mississippi Delta
crossroads; Hank Williams driving from roadhouse to roadhouse across the
South, drinking and singing with the Drifting Cowboys (HARDY, 2008, p.1)
Townes viveu na estrada. Ela foi sua vida e não sem que isso lhe custasse muito.
Deixar para trás cada cidade, cada linha no asfalto, cada pôr do sol e, sobretudo, aqueles que
amava. “he blew off everything (...) as a father he had a lot of unforgivable shortcomings that
can’t be excused by his music” disse seu primeiro filho, J.T. (HARDY, 2008, p.2). Townes,
porém, não deixou de tentar se explicar através de sua musa: “I've just begun to see my way
clear and it's plain if I stop I will fall (...) My sorrow is real even though I can't change my
plans” 1
Assim, o preço pago por Van Zandt traduziu-se no ouro que nos deixou através de sua
música e poesia. Vivendo sempre nas “highways” e “roads” da América, Townes foi capaz de
como ninguém as caracterizar, eternizar e extrair a totalidade de sentidos e significados do
que é viver com o destino no horizonte.
Este artigo pretende, portanto, fazer um estudo em sua obra dessa multiplicidade de
sentidos e camadas de significado da estrada. Busca entender, a partir de metáforas que tratam
especificamente da questão, o que é esse símbolo americano, sua mitologia e consequências.
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in For The Sake of The Song
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Para isso será analisada a figura da estrada especificamente em três das canções de Van Zandt
onde estão presentes literalmente os termos “highway” ou “road”, situando-as dentro de seu
contexto poético e filosófico e em seu momento histórico na vida de seu autor, além de
relacioná-las com outras canções de sua autoria e de outros compositores. Deu-se também
importância especial à performance musical seguindo a conceitualização de Stimmung de
Gumbrecht (como atmosfera e ambiência) para entender de que maneira a música de Van
Zandt é capaz de evocar a realidade da estrada e produzir efeitos de presença no seu ouvinte,
bem como de que maneira ela agrega significado às metáforas estudadas nas canções.
Desta forma, são claras duas etapas de análise, bem distintas entre si: a primeira
voltada para as letras das canções, utilizando-se de seus aspectos harmônicos, rítmicos e
melódicos apenas na medida em que eles agregam sentido à ideia de estrada; e a segunda
voltada essencialmente para as performances das canções, de maneira a entender como elas
produzem os efeitos de presença e evocam uma atmosfera específica. Essa segunda etapa de
análise, mais apoiada em noções pertinentes aos aspectos musicais, foi realizada de forma que
um leitor-ouvinte leigo possa compreendê-la, ou seja, foi evitado o uso de termos técnicos e,
em casos inevitáveis, eles foram explicados.
Townes é uma figura seminal na música americana; transitou entre o folk, o country e
o blues. Influenciou artistas eminentes como Bob Dylan, Guy Clark e Kris Kristofferson e
exerceu papel fundamental no que se chamou de “outlaw country music”. Willie Nelson,
Emmylou Harris, Waylon Jennings, Don Williams e muitos outros regravaram suas músicas.
É frequentemente considerado um dos maiores cantores-compositores da América e ainda
assim, pouco ou nenhum tratamento acadêmico foi dado a sua obra. É essencial, e este
trabalho se esforça para fomentar este movimento, que a musicologia e a academia como um
todo comecem a voltar os seus olhos para sua poesia e música.
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Portanto, historicamente, a música folclórica, a folk music, tal qual seu nome “folk”,
derivado do alemão “volk” (povo), nos indica, é, em termos mais simplistas, a música das
pessoas, a música dos povos.
No caso norte-americano, especificamente, ela se formou a partir de diversas
influências europeias e africanas: as baladas inglesas, a música tradicional celta, irlandesa e
escocesa (especialmente a música de violino popular, a fiddle music), os hinos religiosos e o
blues primitivo, gêneros musicais estruturados, sobretudo, em cima da escala pentatônica2 e
suas variações.
Se entendermos a pentatonia como a limitação das possibilidades das escalas musicais,
percebemos então que ocorre uma limitação das possibilidades melódicas (vale lembrar que,
ainda assim, em ambos os casos estamos falando de possibilidades infinitas), o que contribui
para a maior “familiaridade” das canções. A melodia de “Heavenly Houseboat Blues” de
Townes Van Zandt é, por exemplo, a mesma de “The Wild Side of Life” de Hank Thompson,
que por sua vez é a mesma de “I’m Thinking Tonight of My Blue Eyes”, gravada anos antes
pela Família Carter e a mesma de "The Great Speckled Bird”, um hino sulista. Pelo menos
três outras canções usaram reconhecidamente a mesma melodia, cuja origem permanece
desconhecida.
O que ocorre com as progressões harmônicas (a base das canções) e com as melodias,
costuma ocorrer também com suas letras. Muitas recontam a mesma história, como é o caso
de “The Death of Queen Jane”, balada inglesa cuja letra possui várias versões, algumas com
finais diferentes, e muitas tratam de temas em comum. Assim, motifs são cristalizados e
frequentemente revisitados e, dentre eles, talvez um dos mais fortes na cultura norte-
americana seja o da Estrada.
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A predominância da pentatonia é um fenômeno musical que ocorre em praticamente todas as formas
musicais tradicionais ou folclóricas ao redor do mundo. Assim escreveu o educador húngaro Zoltán Kodály
“Pentatony is an introduction to world literature: it is the key to many foreign musical literatures, from the
ancient Gregorian chant, through China to Debussy.” (KODÁLY, 1947, p. 161-162)
É da escala pentatônica que derivam as melodias que nos soam mais familiares. E é nela que estão
baseadas quase todos os acalantos. A explicação pedagógica de Kodály é útil para melhor compreendermos esses
fenômenos:
“Nowadays it is no longer necessary to explain why it is better to start teaching music to small children
through the pentatonic tunes: first, it is easier to sing in tune without having to use semitones (half-steps),
second, the musical thinking and the ability to sound the notes can develop better using tunes which employ
leaps rather than stepwise tunes based on the diatonic scale.” (KODÁLY, 1947, p. 221)
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O cantor folk, portanto, se situa sempre em relação à tradição. Sua originalidade e seu
talento não consistem em criar algo novo do vazio, mas em retrabalhar o que foi feito e
concentrar o passado em si, abrindo caminho para novas possibilidades líricas e musicais.
Eliot toma o poeta como uma espécie de meio para a poesia, um esvaziamento
completo da autoria, e não era raro Townes dizer o mesmo de si. Que as músicas vinham do
céu, ou das pedras, ou do rio. Que não era ele que as escrevia. O poeta de Eliot e o cantor
folk, por extensão, são uma espécie de recipiente das emoções e da tradição.
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The other aspect of this Impersonal theory of poetry is the relation of the poem
to its author. And I hinted, by an analogy, that the mind of the mature poet
differs from that of the immature one not precisely in any valuation of
“personality,” not being necessarily more interesting, or having “more to
say,” but rather by being a more finely perfected medium in which special, or
very varied, feelings are at liberty to enter into new combinations.
(ELIOT, 1921)
Por mais interessante que possam parecer as histórias de Townes sobre como compôs
suas canções (de acordo com ele “If I Needed You” foi escrita em sonho), Guy Clark, outro
cantor-compositor texano, autor de “L.A. Freeway” e “Dublin Blues”, ganhador do Grammy
por seu disco “My Favorite Picture of You” e seu melhor amigo, pinta outro quadro sobre o
companheiro:
Even though sometimes there are a lot of words there, a lot of phonetic hot
licks going on, it’s the holes you leave, emotionally and in the storyline, and
Townes was so good at that that it sounds unconscious. I don’t believe it was
unconscious, I think he knew what he was doing. He was not unaware of how
good he was and what he was doing. He just wasn’t. He knew what he was
doing, I’m sorry. It wasn’t magic, it was fuckin’ hard work and paying
attention. (SZALAPSKI, 1981)
Ecoando, assim, outro famoso trecho de “Tradition and The Individual Talent” de
Eliot:
There is a great deal, in the writing of poetry, which must be conscious and
deliberate. In fact, the bad poet is usually unconscious where he ought to be
conscious, and conscious where he ought to be unconscious. Both errors tend
to make him “personal.” Poetry is not a turning loose of emotion, but an
escape from emotion; it is not the expression of personality, but an escape from
personality. But, of course, only those who have personality and emotions
know what it means to want to escape from these things. (ELIOT, 1921)
Eliot, por fim, fala de uma entrega completa do artista a sua arte. Um rendição
incondicional do autor a sua obra:
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The emotion of art is impersonal. And the poet cannot reach this impersonality
without surrendering himself wholly to the work to be done. And he is not likely
to know what is to be done unless he lives in what is not merely the present, but
the present moment of the past, unless he is conscious, not of what is dead, but
of what is already living. (ELIOT, 1921)
Para Townes essa entrega era a única verdade absoluta, abandonando tudo em função
da vontade de se tornar não apenas “a singer of folk songs” mas “a folk singer”, viajando pela
América e levando consigo apenas sua música.
Em “When She Don’t Need Me” ele canta:
É desse lugar na tradição que Townes cantou a Estrada. Transformado em canção que
dela ecoa.
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Ela ainda não é a velha conhecida de Townes, como ele próprio irá chamá-la
posteriormente em Snowin’ on Raton (At my Window, 1987): "I’m thankful that old Road is a
friend of mine”, e sim uma promessa de um caminho a ser seguido:
Van Zandt prossegue em uma lírica naturalista para representar a beleza de seu
caminho. A estrada aqui também circunscreve a natureza: “All the mountains and the rivers /
and the valleys”.
A decisão que ele toma neste momento ainda não é a que definiria seus dias futuros.
Townes abre mão da estrada em função da mulher amada, uma escolha que, no entanto,
jamais durou, pelo resto de sua vida.
Aqui, a estrada se revela não mais uma entidade separada do homem que a segue: ela é
uma urgência interna, um caminho tanto literal quanto espiritual e filosófico. Um caminho
natural e imanente: “O tema da canção é, na verdade, o Tao, o verdadeiro caminho”
(HARDY, 2008, p.114).
É impossível, então, que não notemos na lírica de Van Zandt ressonâncias de uma
sabedoria oriental milenar. Assim diz Bashô no início de Oku no Hosomichi:
The months and days are the travelers of eternity. The years that come and go
are also voyagers. Those who float away their lives on ships or who grow old
leading horses are forever journeying, and their homes are wherever their
travels take them. Many of the men of old died on the road, and I too for years
past have been stirred by the sight of a solitary cloud drifting with the wind to
ceaseless thoughts of roaming (BASHO, 1996, p.19)
Vagar é seu destino e Townes o aceita, mas aonde leva essa estrada, uma jornada
infinita e sem destino traçado, um lugar do universo tão familiar quanto desconhecido, tão
belo quanto imperfeito? O que significa aceitar essa visão da vida como um todo quando o
horizonte é inalcançável? A resposta é amarga: o vazio.
Não é à toa que Lola Scobey tenha dito sobre Townes: “[he] carries the terror and the
sorrow of a sensitive man who has looked into the abyss and seen… the abyss”. (HARDY,
2008, p.161)
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A descrição de The Pilgrim continua assombrosamente precisa com: “He has tasted
good and evil in your bedrooms and your bars/ And he's traded in tomorrow for today/
Runnin' from the devils, Lord and reachin' for the stars/ And losin' all he loved along the
way”. E próxima do olhar do próprio Van Zandt: “I used to wake and run with the moon /I
lived like a rake and a young man/ I covered my lovers with flowers and wounds/ my laughter
the devil would frighten” (Rake, Delta Momma Blues, 1971)
Em Be Here to Love Me (BROWN, 2004), Kristofferson concede uma entrevista e em
sua inconfundível voz rouca e áspera declama os primeiros versos de Pancho and Lefty:
E então completa: “And… and I could think that was me.” E realmente poderia, mas
Townes falava consigo mesmo: “You weren't your mama's only boy/ But her favorite one it
seems/ She began to cry when you said goodbye/ And sank into your dreams”. Van Zandt a
essa altura estava completamente imerso no que a princípio era apenas um sonho e agora
experimentava a realidade dura da estrada. Seu lado literal e eventualmente corrosivo:
“proclivities that Townes and other musicians on the road had always exercised – drinking,
drugs, gambling, and women” (HARDY, 2008, p.160)
A estrada passa a ultrapassar sua dimensão poética de uma promessa de belezas
naturais e liberdade e sua dimensão filosófica de uma rota fundamental a ser seguida,
sinônimo de uma busca quase religiosa onde o caminho importa mais que o destino. Ela
torna-se quase literalmente a estrada dos homens, ou pelo menos a dos que nela vivem.
Sung out my heart for what it was worth: o Stimmung da Estrada na voz de Van Zandt
Para podermos ter consciência e perceber o valor dos diferentes sentidos e das
nuances de sentido invocados pelo “Stimmung”, será útil pensar nos conjuntos
de palavras que servem para traduzir o termo em algumas línguas. Em inglês
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Heartworn Highways foi filmado nas últimas semanas de 1975 e nas primeiras
semanas de 1976. O filme é tido como um dos melhores documentários musicais já feitos e
retrata a cena do “Outlaw Country”, o movimento que apresentava uma sonoridade alternativa
a música country produzida em Nashville e do qual Van Zandt fez parte.
Das performances capturadas em vídeo, a de “Pancho and Lefty” é uma das mais
marcantes. Townes, no trailer de Uncle Seymour Washington, um ferreiro que era seu vizinho
no parque de trailers onde vivia, na época, com sua namorada Cindy e sua cadela Geraldine,
executa a canção com uma voz ainda jovem, mas já marcada pelo uísque e o cigarro (há
inclusive um deles preso na mão do violão e uma garrafa no balcão da cozinha).
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O que importa aqui não é exatamente cada performance individualmente, mas o forte
contraste entre as duas. A primeira, no estúdio, em 1970 traz um Townes jovem e promissor
cantando uma música que, como já vimos anteriormente, apresenta uma estrada cheia de
promessas. É o auge de sua capacidade vocal, que, por outro lado, ainda não transmite a
totalidade de sua personalidade e as marcas que a estrada irá imprimir.
A segunda, um dueto ao vivo em 1995 (menos de dois anos antes de sua morte) com
Barb Donovan, demonstra tudo o que a primeira performance não traz. Townes, ao invés de
cantar a canção, e interpolado pelos trechos cantados por Donovan, a declama como um
poema. Sua saúde frágil é refletida em sua voz e a música passa adquirir um outro significado.
Ele não parece ficar até o dia seguinte porque seu amor pela mulher é maior do que sua
vontade de seguir na estrada, ele fica porque não tem condições nem forças para seguir.
Sua voz explicita as consequências da estrada cantadas em “Pancho and Lefty” e
também o desespero da imobilidade presente em Highway Kind: “sometimes the shape I’m in
won’t let me go”. “Road weary” e “road wise” são os melhores termos para definir essa
performance. A estrada não é mais uma promessa e, sim, uma impossibilidade.
O timbre do violão é mais grave e cortante. O dedilhado, que antes trazia conforto,
agora também reflete os braços machucados (um acidente de carro afetou consideravelmente
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a habilidade de Townes para tocar o violão). O homem diante do caminho que percorreu é
frágil e parece desaparecer. O caminho, sua música, permanece.
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O trabalho se iniciou com a tradução da música “Highway Kind”, feita por mim com orientação de meu
orientador, o professor e tradutor Paulo Henriques Britto.
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Tradução livre do autor.
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ANEXO I
I'll be here in the morning
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Os parênteses aqui indicam refrão
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Highway Kind
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Os parênteses aqui indicam refrão
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Referências Bibliográficas
1. BASHO, Matsuo. The Narrow Road to Oku. Trad. Donald Keene. Tóquio:
Kodansha International, 1996
2. BROWN, Margaret. Be Here To Love Me: A Film About Townes Van Zandt.
Documentário. Estados Unidos. 2004. 100 minutos. Cor.
3. COHEN, Ronald D. Folk Music: The Basics. United Kingdom: Taylor and Francis,
2006
4. ELIOT, Thomas Stearns. The Sacred Wood. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1921;
Bartleby.com, 1996.
5. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre um
potencial oculto da literatura. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto:
Editora PUC RIO, 2014
6. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Production of Presence: what meaning cannot
convey. Stanford: Stanford University Press, 2004
7. HARDY, Robert Earl. A Deeper Blue: the life and music of Townes Van Zandt.
Texas: University of North Texas Press, 2008.
8. ROY, William G. Reds, Whites, and Blues: Social Movements, Folk Music, and
Race in the United States. Princeton: Princeton University Press, 2010\
9. SZALAPSKI, James. Heartworn Highways. Documentário. Estados Unidos. 1981.
92 minutos. Cor.
10. VAN ZANDT, Townes. Discografia e Performances.
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