Você está na página 1de 20

Departamento de Letras

UMA ANÁLISE DA METÁFORA NORTE-AMERICANA DA ESTRADA


A PARTIR DA VIDA E OBRA DE TOWNES VAN ZANDT

Aluno: Guilherme Victor Testoni Boisson


Orientador: Paulo Henriques Britto

1
Departamento de Letras

“Two roads diverged in a wood, and I—


I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.”
Robert Frost

THE HIGHWAY KIND

Townes Van Zandt foi em seu tempo o perfeito menestrel viajante. Epítome do
trovador solitário e do cantor folk da América, o músico e compositor norte-americano
nascido nos anos 40 viveu o que cantava e cantou o que vivia. Sua “derradeira” morte em
1997, aos cinquenta e dois anos de idade foi, para um homem que cantou: “There ain’t much
that I ain’t tried/ Fast livin’, slow suicide”, ironicamente tardia.
Townes evocou em sua vida e obra a herança de uma duradoura, icônica e rica
tradição na cultura americana, um modo mítico de viver e uma forma arcaica de arte na qual o
artista e seu ofício são inseparáveis.

Jimmie Rodgers riding the rails of the great American West; Woody Guthrie
tramping the highways from dustbowl Oklahoma to the migrant camps of
Carolina; Robert Johnson playing guitar with the devil at a Mississippi Delta
crossroads; Hank Williams driving from roadhouse to roadhouse across the
South, drinking and singing with the Drifting Cowboys (HARDY, 2008, p.1)

Townes viveu na estrada. Ela foi sua vida e não sem que isso lhe custasse muito.
Deixar para trás cada cidade, cada linha no asfalto, cada pôr do sol e, sobretudo, aqueles que
amava. “he blew off everything (...) as a father he had a lot of unforgivable shortcomings that
can’t be excused by his music” disse seu primeiro filho, J.T. (HARDY, 2008, p.2). Townes,
porém, não deixou de tentar se explicar através de sua musa: “I've just begun to see my way
clear and it's plain if I stop I will fall (...) My sorrow is real even though I can't change my
plans” 1
Assim, o preço pago por Van Zandt traduziu-se no ouro que nos deixou através de sua
música e poesia. Vivendo sempre nas “highways” e “roads” da América, Townes foi capaz de
como ninguém as caracterizar, eternizar e extrair a totalidade de sentidos e significados do
que é viver com o destino no horizonte.
Este artigo pretende, portanto, fazer um estudo em sua obra dessa multiplicidade de
sentidos e camadas de significado da estrada. Busca entender, a partir de metáforas que tratam
especificamente da questão, o que é esse símbolo americano, sua mitologia e consequências.

1
in For The Sake of The Song
2
Departamento de Letras

Para isso será analisada a figura da estrada especificamente em três das canções de Van Zandt
onde estão presentes literalmente os termos “highway” ou “road”, situando-as dentro de seu
contexto poético e filosófico e em seu momento histórico na vida de seu autor, além de
relacioná-las com outras canções de sua autoria e de outros compositores. Deu-se também
importância especial à performance musical seguindo a conceitualização de Stimmung de
Gumbrecht (como atmosfera e ambiência) para entender de que maneira a música de Van
Zandt é capaz de evocar a realidade da estrada e produzir efeitos de presença no seu ouvinte,
bem como de que maneira ela agrega significado às metáforas estudadas nas canções.
Desta forma, são claras duas etapas de análise, bem distintas entre si: a primeira
voltada para as letras das canções, utilizando-se de seus aspectos harmônicos, rítmicos e
melódicos apenas na medida em que eles agregam sentido à ideia de estrada; e a segunda
voltada essencialmente para as performances das canções, de maneira a entender como elas
produzem os efeitos de presença e evocam uma atmosfera específica. Essa segunda etapa de
análise, mais apoiada em noções pertinentes aos aspectos musicais, foi realizada de forma que
um leitor-ouvinte leigo possa compreendê-la, ou seja, foi evitado o uso de termos técnicos e,
em casos inevitáveis, eles foram explicados.
Townes é uma figura seminal na música americana; transitou entre o folk, o country e
o blues. Influenciou artistas eminentes como Bob Dylan, Guy Clark e Kris Kristofferson e
exerceu papel fundamental no que se chamou de “outlaw country music”. Willie Nelson,
Emmylou Harris, Waylon Jennings, Don Williams e muitos outros regravaram suas músicas.
É frequentemente considerado um dos maiores cantores-compositores da América e ainda
assim, pouco ou nenhum tratamento acadêmico foi dado a sua obra. É essencial, e este
trabalho se esforça para fomentar este movimento, que a musicologia e a academia como um
todo comecem a voltar os seus olhos para sua poesia e música.

Until you've turned to song: a herança da tradição


Dada a distância temporal que nos separa e a imprecisão bibliográfica própria daqueles
tempos, as cantigas e canções trovadorescas da Idade Média nos parecem parte de um todo
confuso e coletivo. Seus trovadores restam quase apagados, muitas vezes reduzidos a
assinaturas e, quando muito, a vidas e razos, os pequenos registros biográficos que
acompanhavam as transcrições de suas obras.
O mesmo ainda ocorre em tempos recentes com a música folclórica em sua forma
tradicional. Tal forma traz alguns atributos específicos, assim definidos pelo historiador
Ronald D. Cohen:

1. its origins can perhaps be located in a particular culture or region 2.


authorship has historically been unknown, although authors did emerge over

3
Departamento de Letras

the past two centuries 3. it has traditionally been performed by


nonprofessionals, perhaps playing acoustic instruments 4. its composition has
been fairly simple, with perhaps little complexity so that it can be performed
and shared communally and 5. the songs have historically been passed down
through oral transmission. (COHEN, 2006, p.2)

Portanto, historicamente, a música folclórica, a folk music, tal qual seu nome “folk”,
derivado do alemão “volk” (povo), nos indica, é, em termos mais simplistas, a música das
pessoas, a música dos povos.
No caso norte-americano, especificamente, ela se formou a partir de diversas
influências europeias e africanas: as baladas inglesas, a música tradicional celta, irlandesa e
escocesa (especialmente a música de violino popular, a fiddle music), os hinos religiosos e o
blues primitivo, gêneros musicais estruturados, sobretudo, em cima da escala pentatônica2 e
suas variações.
Se entendermos a pentatonia como a limitação das possibilidades das escalas musicais,
percebemos então que ocorre uma limitação das possibilidades melódicas (vale lembrar que,
ainda assim, em ambos os casos estamos falando de possibilidades infinitas), o que contribui
para a maior “familiaridade” das canções. A melodia de “Heavenly Houseboat Blues” de
Townes Van Zandt é, por exemplo, a mesma de “The Wild Side of Life” de Hank Thompson,
que por sua vez é a mesma de “I’m Thinking Tonight of My Blue Eyes”, gravada anos antes
pela Família Carter e a mesma de "The Great Speckled Bird”, um hino sulista. Pelo menos
três outras canções usaram reconhecidamente a mesma melodia, cuja origem permanece
desconhecida.
O que ocorre com as progressões harmônicas (a base das canções) e com as melodias,
costuma ocorrer também com suas letras. Muitas recontam a mesma história, como é o caso
de “The Death of Queen Jane”, balada inglesa cuja letra possui várias versões, algumas com
finais diferentes, e muitas tratam de temas em comum. Assim, motifs são cristalizados e
frequentemente revisitados e, dentre eles, talvez um dos mais fortes na cultura norte-
americana seja o da Estrada.

2
A predominância da pentatonia é um fenômeno musical que ocorre em praticamente todas as formas
musicais tradicionais ou folclóricas ao redor do mundo. Assim escreveu o educador húngaro Zoltán Kodály
“Pentatony is an introduction to world literature: it is the key to many foreign musical literatures, from the
ancient Gregorian chant, through China to Debussy.” (KODÁLY, 1947, p. 161-162)
É da escala pentatônica que derivam as melodias que nos soam mais familiares. E é nela que estão
baseadas quase todos os acalantos. A explicação pedagógica de Kodály é útil para melhor compreendermos esses
fenômenos:
“Nowadays it is no longer necessary to explain why it is better to start teaching music to small children
through the pentatonic tunes: first, it is easier to sing in tune without having to use semitones (half-steps),
second, the musical thinking and the ability to sound the notes can develop better using tunes which employ
leaps rather than stepwise tunes based on the diatonic scale.” (KODÁLY, 1947, p. 221)

4
Departamento de Letras

Se seguirmos a definição tradicional de música folclórica apresentada pelo professor


Cohen, fica difícil definir cantores-compositores do folk revival, como Bob Dylan, Dave Van
Ronk e Townes, como cantores ou músicos folk, da mesma forma que não podemos dizer que
Eric Clapton é um bluesman do Delta do Mississipi, muito embora seja um dos indivíduos
mais aptos a emular aquele estilo. Assim, talvez, seja melhor defini-los como o próprio Pete
Seeger, também um artista do revival, se definiu: “not a folk singer, but a singer of folk
songs.”
Diante desse quadro geral o que percebemos é um esvaziamento da figura do artista,
do autor, do “folk singer”, em favor da música, das canções e da tradição, em um sentido
muito similar ao proposto pelo poeta e crítico T.S. Eliot.

Tradition is a matter of much wider significance. It cannot be inherited, and if


you want it you must obtain it by great labour. It involves, in the first place, the
historical sense, which we may call nearly indispensable to anyone who would
continue to be a poet beyond his twenty-fifth year; and the historical sense
involves a perception, not only of the pastness of the past, but of its presence;
the historical sense compels a man to write not merely with his own generation
in his bones, but with a feeling that the whole of the literature of Europe from
Homer and within it the whole of the literature of his own country has a
simultaneous existence and composes a simultaneous order. This historical
sense, which is a sense of the timeless as well as of the temporal and of the
timeless and of the temporal together, is what makes a writer traditional. And
it is at the same time what makes a writer most acutely conscious of his place
in time, of his contemporaneity.
No poet, no artist of any art, has his complete meaning alone. His significance,
his appreciation is the appreciation of his relation to the dead poets and
artists. You cannot value him alone; you must set him, for contrast and
comparison, among the dead. I mean this as a principle of æsthetic, not merely
historical, criticism. (ELIOT, 1921)

O cantor folk, portanto, se situa sempre em relação à tradição. Sua originalidade e seu
talento não consistem em criar algo novo do vazio, mas em retrabalhar o que foi feito e
concentrar o passado em si, abrindo caminho para novas possibilidades líricas e musicais.
Eliot toma o poeta como uma espécie de meio para a poesia, um esvaziamento
completo da autoria, e não era raro Townes dizer o mesmo de si. Que as músicas vinham do
céu, ou das pedras, ou do rio. Que não era ele que as escrevia. O poeta de Eliot e o cantor
folk, por extensão, são uma espécie de recipiente das emoções e da tradição.
5
Departamento de Letras

The other aspect of this Impersonal theory of poetry is the relation of the poem
to its author. And I hinted, by an analogy, that the mind of the mature poet
differs from that of the immature one not precisely in any valuation of
“personality,” not being necessarily more interesting, or having “more to
say,” but rather by being a more finely perfected medium in which special, or
very varied, feelings are at liberty to enter into new combinations.
(ELIOT, 1921)

Por mais interessante que possam parecer as histórias de Townes sobre como compôs
suas canções (de acordo com ele “If I Needed You” foi escrita em sonho), Guy Clark, outro
cantor-compositor texano, autor de “L.A. Freeway” e “Dublin Blues”, ganhador do Grammy
por seu disco “My Favorite Picture of You” e seu melhor amigo, pinta outro quadro sobre o
companheiro:

Even though sometimes there are a lot of words there, a lot of phonetic hot
licks going on, it’s the holes you leave, emotionally and in the storyline, and
Townes was so good at that that it sounds unconscious. I don’t believe it was
unconscious, I think he knew what he was doing. He was not unaware of how
good he was and what he was doing. He just wasn’t. He knew what he was
doing, I’m sorry. It wasn’t magic, it was fuckin’ hard work and paying
attention. (SZALAPSKI, 1981)

Ecoando, assim, outro famoso trecho de “Tradition and The Individual Talent” de
Eliot:

There is a great deal, in the writing of poetry, which must be conscious and
deliberate. In fact, the bad poet is usually unconscious where he ought to be
conscious, and conscious where he ought to be unconscious. Both errors tend
to make him “personal.” Poetry is not a turning loose of emotion, but an
escape from emotion; it is not the expression of personality, but an escape from
personality. But, of course, only those who have personality and emotions
know what it means to want to escape from these things. (ELIOT, 1921)

Eliot, por fim, fala de uma entrega completa do artista a sua arte. Um rendição
incondicional do autor a sua obra:

6
Departamento de Letras

The emotion of art is impersonal. And the poet cannot reach this impersonality
without surrendering himself wholly to the work to be done. And he is not likely
to know what is to be done unless he lives in what is not merely the present, but
the present moment of the past, unless he is conscious, not of what is dead, but
of what is already living. (ELIOT, 1921)

What happens is a continual surrender of himself as he is at the moment to


something which is more valuable. The progress of an artist is a continual self-
sacrifice, a continual extinction of personality. (ELIOT, 1921)

Para Townes essa entrega era a única verdade absoluta, abandonando tudo em função
da vontade de se tornar não apenas “a singer of folk songs” mas “a folk singer”, viajando pela
América e levando consigo apenas sua música.
Em “When She Don’t Need Me” ele canta:

On the winds of darkness


The light is soring
And chains are bonded,
Freedom is singing.
Cling to the darkness
Until you've turned to song.

É desse lugar na tradição que Townes cantou a Estrada. Transformado em canção que
dela ecoa.

I'll be here in the morning: o começo de uma estrada3


I’ll be here in the morning foi lançada pela primeira vez em 1968 no disco de estreia
de Townes, For the Sake of the Song, e gravada uma segunda vez, dois anos depois, em
Townes Van Zandt (1970).
A composição é simples, trazendo uma reconfortante melodia vocal acompanhada por
um violão dedilhado de maneira a simular o avançar de um trem em seus trilhos. Van Zandt
ainda é jovem e a visão que apresenta da estrada, aqui, é carregada de deslumbramento,
liberdade, beleza e inocência.

There's no stronger wind than the one that blows


3
Cada um dos três capítulos a seguir trata da canção que lhe dá título. Todas as letras estão incluídas, na
íntegra, no ANEXO I.

7
Departamento de Letras

down a lonesome railroad line


No prettier sight than looking back
at a town you left behind

Ela ainda não é a velha conhecida de Townes, como ele próprio irá chamá-la
posteriormente em Snowin’ on Raton (At my Window, 1987): "I’m thankful that old Road is a
friend of mine”, e sim uma promessa de um caminho a ser seguido:

There's lots of things along the road


I'd surely like to see
I'd like to lean into the wind
and tell myself I'm free

Van Zandt prossegue em uma lírica naturalista para representar a beleza de seu
caminho. A estrada aqui também circunscreve a natureza: “All the mountains and the rivers /
and the valleys”.
A decisão que ele toma neste momento ainda não é a que definiria seus dias futuros.
Townes abre mão da estrada em função da mulher amada, uma escolha que, no entanto,
jamais durou, pelo resto de sua vida.

All the mountains and the rivers


and the valleys can’t compare
to your blue lit dancin' eyes
and yellow shining hair
I could never hit the open road
and leave you lyin' there

Close your eyes


I'll be here in the morning
close your eyes
I'll be here for a while.

Highway Kind: a essência de um homem


Highway Kind (High, Low and in Between, 1972) é o retrato de um artista mais
maduro, mais consciente e aperfeiçoado e, talvez, seja a representação filosófica mais clara do
que são os dias na estrada, do que o homem que a segue e vive, vê e procura.
8
Departamento de Letras

My days, they are the highway kind


they only come to leave
but the leavin' I don't mind
it's the comin' that I crave.

A visão de Robert Earl Hardy, biógrafo de Townes, sobre a canção, é precisa e


completa, traçando importante paralelo filosófico com a obra do artista:

“Highway Kind” – mais obscura e inevitavelmente em tom menor – é outra


composição aparentemente escrita no topo da montanha, onde as forças
primais são representadas metaforicamente por aspectos da paisagem, o lugar
onde o homem interior é refletido no mundo exterior, e onde os mundos
interior e exterior se mostram apenas um. Essa dualidade é refletida nos
duplos pontos de vista assumidos nos versos da canção, saltando do divino
para o terreno. (HARDY, 2008, p.114)

Aqui, a estrada se revela não mais uma entidade separada do homem que a segue: ela é
uma urgência interna, um caminho tanto literal quanto espiritual e filosófico. Um caminho
natural e imanente: “O tema da canção é, na verdade, o Tao, o verdadeiro caminho”
(HARDY, 2008, p.114).
É impossível, então, que não notemos na lírica de Van Zandt ressonâncias de uma
sabedoria oriental milenar. Assim diz Bashô no início de Oku no Hosomichi:

The months and days are the travelers of eternity. The years that come and go
are also voyagers. Those who float away their lives on ships or who grow old
leading horses are forever journeying, and their homes are wherever their
travels take them. Many of the men of old died on the road, and I too for years
past have been stirred by the sight of a solitary cloud drifting with the wind to
ceaseless thoughts of roaming (BASHO, 1996, p.19)

Vagar é seu destino e Townes o aceita, mas aonde leva essa estrada, uma jornada
infinita e sem destino traçado, um lugar do universo tão familiar quanto desconhecido, tão
belo quanto imperfeito? O que significa aceitar essa visão da vida como um todo quando o
horizonte é inalcançável? A resposta é amarga: o vazio.

Well, I don't know too much for true


9
Departamento de Letras

but my heart knows how to pound


my legs know how to love someone
my voice knows how to sound.
Shame that it's not enough
shame that it is a shame.
Follow the circle down
where would you be?

Não é à toa que Lola Scobey tenha dito sobre Townes: “[he] carries the terror and the
sorrow of a sensitive man who has looked into the abyss and seen… the abyss”. (HARDY,
2008, p.161)

Pancho and Lefty: as consequências da estrada


Um ano antes de Van Zandt gravar Pancho and Lefty em The Late, Great Townes Van
Zandt (1972), indiscutivelmente sua canção de maior sucesso, Kris Kristofferson lançava The
Silver Tongued Devil and I. O disco incluía The Pilgrim/Chapter 33, que era sobre Johnny
Cash e Dennis Hopper, mas podia muito bem ter sido escrita sobre Townes.
“See him wasted on the sidewalk in his jacket and his jeans/ Wearin' yesterday's
misfortunes like a smile… He's a poet he's a picker he's a prophet he's a pusher/ He's a
pilgrim and a preacher and a problem when he's stoned/ He's a walkin' contradiction partly
truth and partly fiction/ Taking every wrong direction on his lonely way back home” é uma
imagem muito próxima do retrato que o próprio Van Zandt fez de si mesmo em Why She’s
Acting This Way (Our Mother the Mountain, 1969):

No need to glance back again, there ain't nothin' to see


Just this drunken old man and this woman and me
And you've made it quite plain that we're just wastin' time
And you say that it seems strange that I'm staying behind
But you don't worry 'bout me I can make it alone
'Cause I got no place to be and I ain't far from home

“The troubled troubadour”, o trovador atormentado, tem consciência de si mesmo,


sabe a substância da qual é feito e qual é o seu papel: There is the highway/ and the
homemade lovin' kind /the highway's mine” (High, Low and in Between; High Low and in
Between, 1972). Os anos, porém, passam e não há nada que ele possa fazer quanto a isso. A
estrada começa a surtir seus efeitos que, se em sua poesia são romantizados, em sua vida são
literais.

10
Departamento de Letras

A descrição de The Pilgrim continua assombrosamente precisa com: “He has tasted
good and evil in your bedrooms and your bars/ And he's traded in tomorrow for today/
Runnin' from the devils, Lord and reachin' for the stars/ And losin' all he loved along the
way”. E próxima do olhar do próprio Van Zandt: “I used to wake and run with the moon /I
lived like a rake and a young man/ I covered my lovers with flowers and wounds/ my laughter
the devil would frighten” (Rake, Delta Momma Blues, 1971)
Em Be Here to Love Me (BROWN, 2004), Kristofferson concede uma entrevista e em
sua inconfundível voz rouca e áspera declama os primeiros versos de Pancho and Lefty:

Living on the road, my friend


Was gonna keep you free and clean
Now you wear your skin like iron
And your breath's as hard as kerosene

E então completa: “And… and I could think that was me.” E realmente poderia, mas
Townes falava consigo mesmo: “You weren't your mama's only boy/ But her favorite one it
seems/ She began to cry when you said goodbye/ And sank into your dreams”. Van Zandt a
essa altura estava completamente imerso no que a princípio era apenas um sonho e agora
experimentava a realidade dura da estrada. Seu lado literal e eventualmente corrosivo:
“proclivities that Townes and other musicians on the road had always exercised – drinking,
drugs, gambling, and women” (HARDY, 2008, p.160)
A estrada passa a ultrapassar sua dimensão poética de uma promessa de belezas
naturais e liberdade e sua dimensão filosófica de uma rota fundamental a ser seguida,
sinônimo de uma busca quase religiosa onde o caminho importa mais que o destino. Ela
torna-se quase literalmente a estrada dos homens, ou pelo menos a dos que nela vivem.

É fácil imaginar um viajante cansado olhando pela janela de seu carro


correndo para outro show em outra cidade, sentindo seu destino, vendo-o
literalmente a sua frente, as listras na estrada voando em sua direção como
relâmpagos, apenas para passar em um piscar de olhos, e então, mais do
mesmo. (HARDY, 2008, p.114)

Sung out my heart for what it was worth: o Stimmung da Estrada na voz de Van Zandt
Para podermos ter consciência e perceber o valor dos diferentes sentidos e das
nuances de sentido invocados pelo “Stimmung”, será útil pensar nos conjuntos
de palavras que servem para traduzir o termo em algumas línguas. Em inglês
11
Departamento de Letras

existem “mood” e “climate”. “Mood” refere-se a uma sensação interior, um


estado de espírito tão privado que não pode sequer ser circunscrito com
grande precisão. “Climate” diz respeito a alguma coisa objetiva que está em
volta das pessoas e sobre elas exerce uma influência física. Só em alemão a
palavra reúne, a “Stimme” e a “stimmen”. A primeira significa “voz”; a
segunda, “afinar um instrumento musical”; por extensão, stimmen significa
também “estar correto”. Tal como é sugerido pelo afinar de um instrumento
musical, os estados de espírito e as atmosferas específicas são experimentados
num continuum, como escalas de música. Apresentam-se a nós como nuances
que desafiam nosso poder de discernimento e de descrição, bem como o poder
da linguagem para as captar. (GUMBRECHT, 2014, p.12)

Assim Gumbrecht inicia sua tentativa de definir o Stimmung. A verdade é que o


conceito é complexo e abundam definições históricas, mas, além dos conceitos de “mood” e
“climate” que auxiliam sua definição, o autor posteriormente se vale de “atmosfera” e
“ambiência” que são conceitos mais próximos daquilo que planejamos explicitar.
Gumbrecht dá também especial importância à perfomance e à capacidade que ela tem
de produzir esses ambientes e atmosferas. É esse aspecto de sua teoria que procurei aplicar em
minha análise. A ideia é que as canções de Townes Van Zandt e sua execução são capazes de
produzir essas esferas sensoriais e, em especial, emular a atmosfera e o ambiente próprios da
Estrada.
O autor faz um estudo sem precedentes da execução de “Me and Bobby McGee”,
canção de Kris Kristofferson, por Janis Joplin. Foi por conta desse estudo que me inspirei
para buscar na performance de Townes essa capacidade de construir ambientes dotados não
apenas de sentido, mas de sentimentos e sensações.

Pancho and Lefty em Heartworn Highways


(https://www.youtube.com/watch?v=zprRZ2wFQD4)

Heartworn Highways foi filmado nas últimas semanas de 1975 e nas primeiras
semanas de 1976. O filme é tido como um dos melhores documentários musicais já feitos e
retrata a cena do “Outlaw Country”, o movimento que apresentava uma sonoridade alternativa
a música country produzida em Nashville e do qual Van Zandt fez parte.
Das performances capturadas em vídeo, a de “Pancho and Lefty” é uma das mais
marcantes. Townes, no trailer de Uncle Seymour Washington, um ferreiro que era seu vizinho
no parque de trailers onde vivia, na época, com sua namorada Cindy e sua cadela Geraldine,
executa a canção com uma voz ainda jovem, mas já marcada pelo uísque e o cigarro (há
inclusive um deles preso na mão do violão e uma garrafa no balcão da cozinha).
12
Departamento de Letras

O chapéu Stetson, a camisa jeans, o instrumento surrado e toda a decoração do trailer


evocam uma América que parece saída dos quadrinhos de Tex ou de um livro de Cormac
McCarthy.
O trailer por si só é uma casa em movimento e nada dali dá a impressão de
permanência ou de qualquer desejo de se assentar. Tudo parece ir embora e se desfazer nas
palavras da canção sobre a dupla de bandidos do Velho Oeste.
A primeira estrofe, escrita em segunda pessoa, imediatamente transforma o ouvinte em
personagem e o transporta para o mundo que cria. “And sank into your dreams”. Townes,
cantando de olhos fechados, também parece ser transportado para esse mundo alegórico e de
sonho, onde a traição dos parceiros é reflexo das durezas do mundo real. A morte de Pancho e
a decadência de Lefty espelham o sonho partido de uma estrada purificadora e o próprio
Townes quando sorri revelando o ouro nos dentes é a prova viva dessa Estrada. Estrada que
penetra os ouvidos e se espalha pela ponta dos dedos quando ele grita: “Pick it”. E sobe ao
coração quando ele, dedilhando seu violão, completa:“And it won’t ever heal”.

I’ll be here in the morning, Townes Van Zandt, Live at McCabe’s


( em “Townes Van Zandt”: https://www.youtube.com/watch?v=AjGOxo0KDMs)
( em “Live at McCabe’s”: https://www.youtube.com/watch?v=Iq9-HFtU9Vk)

O que importa aqui não é exatamente cada performance individualmente, mas o forte
contraste entre as duas. A primeira, no estúdio, em 1970 traz um Townes jovem e promissor
cantando uma música que, como já vimos anteriormente, apresenta uma estrada cheia de
promessas. É o auge de sua capacidade vocal, que, por outro lado, ainda não transmite a
totalidade de sua personalidade e as marcas que a estrada irá imprimir.
A segunda, um dueto ao vivo em 1995 (menos de dois anos antes de sua morte) com
Barb Donovan, demonstra tudo o que a primeira performance não traz. Townes, ao invés de
cantar a canção, e interpolado pelos trechos cantados por Donovan, a declama como um
poema. Sua saúde frágil é refletida em sua voz e a música passa adquirir um outro significado.
Ele não parece ficar até o dia seguinte porque seu amor pela mulher é maior do que sua
vontade de seguir na estrada, ele fica porque não tem condições nem forças para seguir.
Sua voz explicita as consequências da estrada cantadas em “Pancho and Lefty” e
também o desespero da imobilidade presente em Highway Kind: “sometimes the shape I’m in
won’t let me go”. “Road weary” e “road wise” são os melhores termos para definir essa
performance. A estrada não é mais uma promessa e, sim, uma impossibilidade.
O timbre do violão é mais grave e cortante. O dedilhado, que antes trazia conforto,
agora também reflete os braços machucados (um acidente de carro afetou consideravelmente

13
Departamento de Letras

a habilidade de Townes para tocar o violão). O homem diante do caminho que percorreu é
frágil e parece desaparecer. O caminho, sua música, permanece.

It’s Goodbye To All My Friends


A vida e a obra de Townes Van Zandt são inseparáveis. O caminho solitário e breve
que seguiu não tem volta. Seu legado é ao mesmo tempo o de um homem “que nasceu para
crescer e cresceu para morrer” (HARDY, 2008, p.6) e o de um poeta, músico e compositor de
extraordinária qualidade. “What can you leave behind/ when you’re flyin’ lightning fast/ and
all alone? /Only a trace, my friend, spirit of motion born/ and direction grown. /A trace that
will not fade/ in frozen skies” (High, Low and in Between; High, Low and in Between, 1972)
Este artigo se propôs, ainda que limitadamente, a compreender os significados e
dimensões da metáfora da estrada em sua obra. Através das três canções analisadas pudemos
perceber três dimensões de sentido muito claras. Uma estrada como promessa de redenção,
liberdade, beleza e purificação, outra que representa um caminho filosófico e espiritual e uma
terceira, mais literal, envolvendo os aspectos materiais do que significa nela viver. Pudemos,
ainda, localizar Townes na tradição folclórica norte-americana e também compreender de que
maneira sua performance das canções, é capaz de gerar efeitos de presença em seu ouvinte.
O trabalho é limitado, mas lança luz sobre a poesia de um artista que até então, no
âmbito acadêmico, vivia praticamente na escuridão. Ele é, também, representativo de uma
pretensão justificada de iniciar um trabalho de tradução para o português da obra de Van
Zandt.4
A estrada é longa e o caminho difícil, mas ele vale a pena. E de qualquer forma “é
mais fácil do que esperar por aí para morrer5”.(Waitin’ around to die, For the Sake of the
Song, 1968)

4
O trabalho se iniciou com a tradução da música “Highway Kind”, feita por mim com orientação de meu
orientador, o professor e tradutor Paulo Henriques Britto.
5
Tradução livre do autor.
14
Departamento de Letras

ANEXO I
I'll be here in the morning

There's no stronger wind than the one that blows


down a lonesome railroad line
No prettier sight than looking back
at a town you left behind
but there is nothin' that's as real
as the love that's in my mind

(Close your eyes


I'll be here in the morning
close your eyes
I'll be here for a while)6

There's lots of things along the road


I'd surely like to see
I'd like to lean into the wind
and tell myself I'm free
but your softest whisper's louder
than the highways call to me

All the mountains and the rivers


and the valleys can't compare
to your blue lit dancin' eyes
and yellow shining hair
I could never hit the open road
and leave you lyin' there

Lay your head back easy, love,


close your cryin' eyes
I'll be layin' here beside you
when the sun comes on the rise
I'll stay as long as the cuckoo wails
and the lonesome bluejay cries.

6
Os parênteses aqui indicam refrão
15
Departamento de Letras

Highway Kind

My days, they are the highway kind


they only come to leave
but the leavin' I don't mind
it's the comin' that I crave.
Pour the sun upon the ground
stand to throw a shadow
watch it grow into a night
and fill the spinnin' sky.

Time among the pine trees


it felt like breath of air
usually I just walk these streets
and tell myself to care.
Sometimes I believe me
and sometimes I don't hear.
Sometimes the shape I'm in
won't let me go.

Well, I don't know too much for true


but my heart knows how to pound
my legs know how to love someone
my voice knows how to sound.
Shame that it's not enough
shame that it is a shame.
Follow the circle down
where would you be?

You're the only one I want now


I never heard your name.
Let's hope we meet some day
if we don't it's all the same.
I'll meet the ones between us,
and be thinkin' 'bout you
and all the places I have seen
and why you where not there.
16
Departamento de Letras

A Estrada (Tradução de Highway Kind)

Meus dias eu passo na Estrada,


Eles só vêm pra partir,
Mas a partida não importa nada,
É pela vinda que eu anseio.
Derrame o sol sobre o solo,
Levante-se e lance a sombra,
Veja-a transformar-se em noite
E encher o céu a girar.

O tempo entre os pinheiros


Era como lufada de ar,
Eu apenas ando por estas ruas
E digo pra me importar.
Às vezes eu acredito,
Às vezes eu não me escuto,
Às vezes o meu estado
Sequer me deixa seguir.

Na verdade, muito não sei,


Mas meu coração sabe bater,
Minhas pernas sabem amar alguém,
minha voz sabe soar.
Pena que não é o bastante,
pena que é uma pena.
Siga a espiral pra baixo,
onde você estaria?

Agora só quero você


E eu jamais ouvi seu nome.
Um dia te encontro, espero,
Se não, então dá no mesmo.
Encontrarei, entre nós, os outros,
e então pensarei em ti
e nos lugares que eu vi
e por que não estavas lá.

17
Departamento de Letras

Pancho and Lefty

Living on the road, my friend


Was gonna keep you free and clean
Now you wear your skin like iron
And your breath's as hard as kerosene
You weren't your mama's only boy
But her favorite one it seems
She began to cry when you said goodbye
And sank into your dreams

Pancho was a bandit, boys


His horse was fast as polished steel
Wore his gun outside his pants
For all the honest world to feel
Pancho met his match you know
On the deserts down in Mexico
Nobody heard his dying words
That's the way it goes

(All the federales say


They could have had him any day
They only let him hang around
Out of kindness I suppose)7

Lefty he can't sing the blues


All night long like he used to
The dust that Pancho bit down south
Ended up in Lefty's mouth
The day they laid poor Pancho low
Lefty split for Ohio
Where he got the bread to go
There ain't nobody knows

The poets tell how Pancho fell

7
Os parênteses aqui indicam refrão
18
Departamento de Letras

Lefty's livin' in a cheap hotel


The desert's quiet and Cleveland's cold
So the story ends we're told
Pancho needs your prayers it's true,
But save a few for Lefty too
He just did what he had to do
Now he's growing old

A few gray federales say


They could have had him any day
They only let him go so wrong
Out of kindness I suppose

19
Departamento de Letras

Referências Bibliográficas

1. BASHO, Matsuo. The Narrow Road to Oku. Trad. Donald Keene. Tóquio:
Kodansha International, 1996
2. BROWN, Margaret. Be Here To Love Me: A Film About Townes Van Zandt.
Documentário. Estados Unidos. 2004. 100 minutos. Cor.
3. COHEN, Ronald D. Folk Music: The Basics. United Kingdom: Taylor and Francis,
2006
4. ELIOT, Thomas Stearns. The Sacred Wood. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1921;
Bartleby.com, 1996.
5. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre um
potencial oculto da literatura. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto:
Editora PUC RIO, 2014
6. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Production of Presence: what meaning cannot
convey. Stanford: Stanford University Press, 2004
7. HARDY, Robert Earl. A Deeper Blue: the life and music of Townes Van Zandt.
Texas: University of North Texas Press, 2008.
8. ROY, William G. Reds, Whites, and Blues: Social Movements, Folk Music, and
Race in the United States. Princeton: Princeton University Press, 2010\
9. SZALAPSKI, James. Heartworn Highways. Documentário. Estados Unidos. 1981.
92 minutos. Cor.
10. VAN ZANDT, Townes. Discografia e Performances.

Discografia de Townes Van Zandt

For the Sake of the Song (1968)


Our Mother the Mountain (1969)
Townes Van Zandt (1970)
Delta Momma Blues (1971)
The Late, Great Townes Van Zandt (1972)
High, Low and in Between (1972)
Flyin’ Shoes (1978)
At My Window (1987)
No Deeper Blue (1994)

20

Você também pode gostar