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Setembro/ 2023
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Ficha
Foto da capa: CP
ISBN 978-65-00-80804-9
evvestante@gmail.com
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Sumário
Nota e agradecimentos
Nota final
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Apresentação: Um pouco da história
Tinha eu 14 anos de idade
Quando meu pai me chamou
Perguntou-me se eu queria
Estudar Filosofia
Medicina ou Engenharia
Tinha eu que ser doutor
Mas a minha aspiração
Era ter um violão
Para me tornar sambista...
“14 anos” - Paulinho da Viola
Eu tinha um parceiro, muito parceiro, o Edson Gutierrez. A gente trabalhou junto no fim
da década de 70, começo da de 80, nossa década dos 20. Mas depois fomos fazer outras
coisas, o chamado “cuidar da vida”, e o tempo foi passando. Com pouco mais de 50
anos, o Edson perdeu completamente a memória, por conta da doença de Alzheimer, e
morreu alguns anos depois. O que faço aqui é uma homenagem a ele e uma tentativa de
salvar do esquecimento o seu trabalho.
A tarefa foi difícil pra mim porque ele era o músico e eu o letrista. Comecei então
‘salvando’ as letras, para depois decidir sobre o melhor jeito de lidar com as músicas.
Bem ou mal, datilografadas ou rabiscadas à mão (‘num guardanapo’, como manda o
mito do compositor popular), eu deveria ter todas elas guardadas em algum lugar.
Lugar, naquele tempo, significava um arquivo físico: um caderno, uma gaveta. Revirei
tudo e encontrei muita coisa: todas as letras das canções de que me lembrava, letras de
canções de que não me lembrava, letras avulsas, primeiros rascunhos, anotações... E
fitas, cassete e de rolo, que sobreviveram heroicamente por 40 anos, contendo a maioria
de nossas canções.
Fiz alguma revisão dos textos, mas me empenhei ao máximo para não me tornar um
parceiro anacrônico de mim mesmo. Pensei inicialmente até em atualizar, adaptar as
letras, mas resisti ao desejo irresistível que a gente tem de dar uns retoques na história.
Só que depois uma coisa muito estranha e grave aconteceu: o mundo se adaptou às
letras! O Brasil inesperadamente elegeu um novo governo de extrema direita e vi de
repente as canções reviverem como resistência política e crítica social.
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Quando pensei em preservar o trabalho do Edson, achei primeiro que devia procurar um
modo de gravar as canções. Mas logo vi que isso significaria lidar com muitas variáveis
complicadas, como encontrar uma gravadora ou tentar fazer uma gravação
independente, que então envolveria contratar cantores, músicos, arranjadores, estúdio,
etc. e, certamente, etc.
Nem havia pensado na necessidade de também, e antes de tudo, ter que fazer as
partituras e editar as músicas. Quando soube dessa exigência (consultando um manual
da ordem dos músicos), vi que na verdade ela me oferecia o atalho por onde seguir. Para
preservar as canções, bastava fazer as partituras (editando-as ou não). Era o mínimo e o
suficiente. E eu não precisaria nem chegar perto de enfrentar problemas como se deveria
dar uma roupagem atual às músicas ou tentar gravá-las como tinham sido pensadas na
época em que foram compostas.
Assim o trabalho foi assumindo de fato o perfil que ele tinha desde o início, o de
preservação de um material, digamos, histórico. Parte disso eu já tinha feito,
transformando as gravações originais em fita (cassete ou de rolo) em mp3. Eram
gravações só com violão e voz, feitas despreocupadamente só para fixar uma primeira
versão das canções, que poderiam ser concluídas depois, tanto com relação às músicas
quanto às letras. O material não tinha qualidade técnica, mas era o suficiente para que a
partir dele fossem escritas as partituras. Eu ‘só’ precisava então arranjar alguém que
pudesse fazer isso.
Dei uma sondada pela internet e percebi que ia ser uma tarefa difícil. Eu buscava menos
um técnico do que um parceiro. Era quase como recorrer a um site de namoro, com a
agravante de que ninguém se inscreve por aí como alma gêmea de letrista solitário...
Mas eu me lembrava que Gutierrez e Carlos Pinto tinham tido outro parceiro em uma
das canções. O Edson já tinha composto a música com ele quando me pediu pra fazer a
letra. Só que eu só me lembrava do primeiro nome dele, Osmar. Se eu descobrisse o
sobrenome, e se ele ainda estivesse vivo, e se ele tivesse continuado a trabalhar com
música, e se ele se lembrasse de certos velhos parceiros... poderia ser o ideal.
Em um ano, nas horas vagas, de madrugada, sem aceitar nem conversar sobre
pagamento pelo trabalho, ele fez as partituras de todas as canções disponíveis em mp3.
E ele, que brincava com o non sense gramatical de seu nome assinando os e-mails como
“Os mar”, virou pra mim “Osmares”, um cara plural, que chegou pra resolver, que se
desdobrou pra fazer o projeto virar realidade (sobre as partituras, ver a nota da p. 10).
Consegui resgatar 19 canções completas, com letra e música. Na grande maioria delas
(15), o Edson chegou com a música já pronta para que eu fizesse a letra. Nunca fez
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nenhuma recomendação, nem associou a música a nenhum tema, de modo que fiquei
sempre inteiramente livre para escrever as letras de acordo com aquilo que cada música
me sugeria. Em um único caso, a música foi feita para uma letra já existente (Magro) e
em três canções cheguei com as letras prontas e também com os temas musicais (Samba
do dito, Um treco, um troço e Paz de cheiro).
Além dessas 19 canções, constam aqui também as canções incompletas, para que nosso
trabalho seja apresentado de modo mais completo. Há uma música sem letra do Edson,
preservada pelo Osmar, que foi seu parceiro. Embora eu não me recorde dela, porque
talvez o Edson não tenha tido oportunidade de me mostrar, foi composta no período em
que mantivemos a parceria. Já as minhas letras que ficaram sem música foram
apresentadas a ele, mas não foram aproveitadas, uma vez que o nosso estilo acabou
definido na prática tendo a música como ponto de partida. São dez essas letras
‘solteiras’ e estão transcritas aqui. Ficaram de fora as letras que quase não passaram de
idéias, como de Tietê azul. Eu só me lembro do estribilho: “Ó rio, ó rio/quem te viu,
quem te vê./Quem não sabe Danúbio/quem não pode Danúbio/tem que beber do Tietê”.
E da última estrofe da letra, que era mais ou menos assim: “Do rio azul que nossa sede
aplaca/fez veia cloaca da comunidade./Foi arruinar o talho feito à faca/pra sempre arder
em febre sua cidade”.
Completam o songbook, três canções que mostrei ao Edson, com as letras prontas e
esboços da música. Apesar de aprovadas por ele, não chegamos a trabalhar nelas.
Ilustram bem como eram os temas musicais que eu apresentava só ‘batendo na caixinha
de fósforos’ e o trabalho que eu dava a ele. O Osmar fez heroicamente as partituras,
interpretando o que poderia ser a ideia musical por trás do que gravei e mandei em mp3,
‘cantando’ à capela os temas, que não tinham nenhum registro anterior. O Osmar fez
também a partitura para outro tema musical meu, que chegou a ser mostrado ao Edson
já tardiamente, em nossos últimos encontros. O curioso nesse caso é que fiz a música
sem letra, como se eu fosse uma espécie de Gutierrez, mas o folgado do Carlos Pinto
nunca fez a letra... Outra extraordinária novidade é que gravei a música em fita na época
‘tocando’ violão! Imagino que a ‘harmonia’ não tenha nada que ver com a melodia, mas
lá estou eu, mais ou menos como dizia o Nelson Cavaquinho de seu tempo de garoto:
botava uns elásticos numa caixa de charutos e queria executar...
Muita gente tem curiosidade sobre a história das músicas de que gostam. Eu mesmo
andei lendo recentemente sobre as do Chico Buarque e as do Francis Hime (com ou sem
o Chico). Mas só posso falar aqui das letras das canções. Mesmo sobre meus temas
musicais (mais dependentes das letras) tenho pouco a dizer. E o Gutierrez, sabiamente,
nem se dava ao trabalho de comentar comigo sobre suas ideias musicais, inspiradas pela
sonoridade, sei lá, de uma “sucessão de terças”, como diz o Francis Hime a respeito de
“Passaredo”. A propósito, não me soa estranho botar palavras do Francis na boca do
Gutierrez já que os dois se pareciam um pouco fisicamente. Bem, no final do songbook,
uma vez apresentadas as letras e as músicas, contarei também “Um pouco da história
das canções” de que fui me lembrando ao longo do trabalho.
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Se você ainda está lendo este já longo ‘prefácio’, eu lhe digo, como um bônus, que a
parceria do fim dos anos 70 -- que começou lá por 77 ou 78, quando nos conhecemos
através de amigos comuns -- pode ter como marco de seu final a morte da Elis, em
janeiro de 82. Ela tinha revelado muita gente e a gente pensava em mandar as canções
pra ela. Estava vendo como fazer isso, se mandava todas ou devia escolher só algumas
delas. Posso dizer que a forma ideal de várias canções para nós teria certamente o
arranjo do Cesar Mariano, com ele ao piano, Luizão no baixo e Nathan Marques, Paulo
Braga, Chico Batera... Mas as canções nos sugeriam também outras vozes, como a da
Bethania. E descobri, no meio dos papeis antigos, um endereço e um telefone que
poderiam nos ter levado ao MPB4. Mas não nos levaram. Nunca mostramos as canções
pra alguém do ramo.
Quanto a mim, eu não toco nada e em relação à música posso dizer que sou todo
ouvidos... Se algumas vezes ousei mostrar um tema musical, ele foi feito como que
remedando a imagem do compositor. Sabe como é, com o violão na mão ou sentado ao
piano, mas, no meu caso, tentando tirar as coisas da cartola. E, aliás, o Edson devia
sofrer bastante pra dar um jeito naquilo que saía da minha cartola. Acho que algumas
‘notas’ que eu sugeria simplesmente não existiam no tom em que eu chegava cantando...
Na verdade, as minhas músicas eram feitas mais como um apoio para as letras. Só
depois, com a parceria com o Edson, é que parece que houve um equilíbrio maior entre
letra e música (se é que então ele não desequilibrava a favor da música). E suas músicas
me levaram a fazer também outro tipo de letra, a letra regida pela música. A música era
então a musa, a ser cantada em verso. Com emoção, claro, mas também, devo
acrescentar, com muita disciplina.
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Tenho carinho e admiração pelas composições do Gutierrez. E me orgulho também das
minhas letras e dos temas musicais. Acredito que se a gente tivesse, como se dizia,
‘emplacado’ alguma música, encontrado um incentivo real pra continuar com o trabalho
(que não a calorosa recepção de uma gaveta...), nós poderíamos ter chegado a um
resultado decente. Como o Tom Jobim, também “fui educado pra falar mal de mim”. Se
sou então aqui tão mal educado é porque vejo nosso trabalho de garotos de 20 anos com
o distanciamento de mais de 40. É como se o trabalho fosse quase alheio e eu estivesse
então dispensado da modéstia. Mas ela ainda resiste, na certeza que tenho de que hoje
eu não conseguiria fazer mais o que foi feito.
A última vez que falei com o Edson foi pelo telefone em 2004. Ele me ligou e eu me
lembro de lhe ter contado que estava tentando digitalizar aquele nosso velho material.
Eu ia viajar e fiquei de ligar pra ele na volta pra gente retomar de algum modo o
trabalho com as canções. Liguei uns meses depois e o telefone que me deu não existia
mais. Naquela última conversa, embora ele não tivesse dito nada propriamente estranho,
achei que ele estava estranho. Ele perdeu completamente a memória por conta da
doença e foi interditado em 2010. Morreu em 2017.
Bem, e assim podemos dar por contada a nossa história, de acordo com as liberdades da
chamada nova historiografia. Mais um capítulo da ‘história dos vencidos’, uma história
que foi sem nunca ter sido... A ala de compositores do GRESID -- Grêmio Recreativo
Escola de Samba Ilustres Desconhecidos -- pede passagem. É nóis, mano!
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Nota
Esta é a primeira versão do nosso Song e-book. Aqui constam todas as letras, inclusive
as não musicadas. A versão final trará também todas as partituras e algumas gravações
originais (voz e violão) feitas em fita e que foram depois digitalizadas. As partituras e as
gravações ficaram de fora aqui por cautela em relação aos direitos autorais, em princípio
envolvidos no inventário. Na nossa parceria, todas as letras são minhas e o Gutierrez fez
a maioria das músicas (conforme indicado nos textos). Na versão final, espero contar
também com fotos, rascunhos de letras e outros materiais da época, que serão reunidos
na seção “Baú”.
Agradecimentos
Bem, agradecer devidamente ao Osmar, que atuou no núcleo do projeto, seria muito
difícil. Mas como já expliquei isso no corpo do texto, vou dizer aqui, simplesmente,
“muito obrigado, cara!” E sou grato à Suelene Castro, minha biblioteconomista em
plantão permanente, pelo assessoramento na elaboração do e-book.
Minha gratidão também à Amélia Oliveira e à Baruana Calado, que foram o meu
público, acompanhando e incentivando todo o trabalho. E ajudaram a mudar o tom do
projeto. Do ‘tom menor’, que era o tom no início, motivado pela perda do parceiro e
amigo, passei de repente, com elas, ao ‘tom maior’, solar, que abria portas e janelas e
celebrava também a conquista de novas ‘parceiras’ e amigas.
Sou muito grato também à Márcia (Bernardo), que, além de tudo que eu nem tenho
como agradecer, ajudou a digitalizar as gravações; à Joelma Brito, que digitou várias
letras, e a sua filha Gabi, que fez muita arte e só tem um ano.
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As letras das canções
11
As secas
Música: Gutierrez e Osmar Murad
Letra: Carlos Pinto
12
Banzo
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
13
Corpo de baile
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
14
Entre nós
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
Eu vejo você
Você olha pra mim
Não tem nada a ver
Mas ficamos assim
Eu falo a você
Você responde pra mim
Não há nada a dizer
Mas ficamos assim
Eu pareço um bobo
Você fora de si
Não tem grilo nenhum
Mas ficamos assim
15
Freud explica
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
16
Lá
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
Eu vou contigo,
vamos viajar.
Marinheiro
de tantas viagens
com destino
posso garantir
que eu vou chegar lá.
Vais me levar para lá.
Vou te levar para lá.
17
Magro
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
18
No cravo
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
É no cravo e no cravo:
quem recebe amor,
só pensa em receber.
Ferradura e ferradura:
quem dá amor,
tem que em troca dar amor.
19
Paz de cheiro
Música: Gutierrez e Carlos Pinto
Letra: Carlos Pinto
20
Poente
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
21
Pretinho
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
22
Pródigo
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
E tanto mel...
Você não vai se sentir farto?
Nem vai sentir sede
aqui deste teu quarto?
Vai, então...
Mas pra que você volte logo
eu te espero no portão.
23
Roberto e Rodrigo
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
É um caso antigo
com novo começo
e todo mundo olha.
Roberto e Rodrigo,
um calmo, um aflito
e todo mundo olha.
O moreno de preto,
o loiro de vermelho
e todo mundo olha.
Roberto e Rodrigo,
a febre, a paixão
e todo mundo olha.
Um carinho no rosto,
carícias nos braços
e todo mundo olha.
Roberto e Rodrigo,
um amor, um sofrer
e todo mundo olha.
24
Samba do dito
25
Semana inglesa
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
Segunda-feira
tu tas de cara fechada
tu tomas três talagada
só de abrideira.
É brincadeira
trepar na lata cargueira
com as quantas pratas contadas
na algibeira?
E só pra amestrado
ir lá pro trampo lascado
vender o sangue fiado
semana inteira.
E voltar pra toca
na mesma nau marmiteira
pra nem tocar na mulher
que só canseira.
Segunda-feira
e terça-feira
e quarta-feira
e quinta-feira
e sexta-feira.
E domingo
se Deus quiser
sou farofeiro
tenho mulher
o dia inteiro
para o que der
se não vier
um puta aguaceiro.
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Tesouro
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
Só o que me resta
é saber se estarão
acaso no teu campo, teu cofre,
acaso no teu peito,
meu tesouro
e o meu coração.
Só o que me resta
é saber se estarão
acaso no meu campo, meu cofre,
acaso no meu peito,
teu tesouro
e o teu coração.
27
Trem da alegria
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
Vou partir,
vou-me embora pra Pasárgada.
Lá sou amigo do rei
e afilhado de general.
Vou partir,
me mandar pra Eldorado.
Lá sou o bobo do rei e cunhado
do irmão do primo de um capitão.
Lá vou eu.
Corre trem.
Não corre pra oeste
nem corre pro leste
nem norte e nem sul.
Vou partir,
vou morar em Shangrilá.
Lá sou homem do rei
e sobrinho de Tio Sam.
Vou partir
pra Ilha de Tranquilidade.
Lá sou o credor do rei
e milito no justo partido
justo no partido do governador.
Lá vou eu.
Corre trem.
Não corre pra oeste
nem corre pro leste
nem norte e nem sul.
28
Um treco, um troço
29
Ventre
Música: Gutierrez
Letra: Carlos Pinto
Entre o azedo
dos suores e do sangue
tudo é fresco e bom
como se fosse o sexto dia.
Nunca sair
deste lugar tão largo,
nunca ferir
este lugar tão ventre.
Entre as feridas
dos venenos e do aço
tudo é fresco e bom
como se fosse o sexto dia.
Nunca sair
deste lugar tão claro,
nunca manchar
este lugar tão ventre.
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Letras das canções não concluídas
31
Circo e pão
32
Eu sou o bamba na corda bamba
Sou o rei do fumo e da muamba
Sou mesmo pau pra qualquer obra
Sou mesmo lombo pra toda arroba
33
Luz e sombras
Letra e música: Carlos Pinto
34
Terra boa
Letra e música: Carlos Pinto
35
Letras que ficaram sem música
(Carlos Pinto)
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Ângulo
Quem me dera tudo
viver como todos
resfolegar, extroverter
prender tudo na respiração
crescer, florescer, dar frutos
fazer fotossíntese ao menos uma vez
ser capro, equo, asi, bovi
provar com tua língua
cheirar com o nariz dele
acariciar com todas as mãos
ovar, desovar, correr com pés de pato
arrepiar com o bico dos seios dela
ter sucessivos orgasmos femininos
pajelar, carar e coroar
servir e senhorear
passar por todos os caminhos
voar, suicidar-me do viaduto
no gás, morrer de todas as formas
com teus olhos me ver passando...
Mas do meu ângulo agudo
só vou espiando.
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Branca
Madrugada eu te olhei
Chorando só de um olho
Meia-luz à cabeceira
Enroscada em cabelos vermelhos
Pés frios nos travesseiros
Fungando a cada tragada
A noite tão cheia de espera.
Madrugada eu te olhei
Lúcido por todos os poros
Filha de todos os tragos
Mãe de todos os copos
Cartão beijo de ponto
Gilete de ressentimento
Suores tão licorosos
Moscas em tanto silêncio.
E o corpo tão cheio de sardas
O rato tão farto do queijo
Os gestos virados do avesso.
Pra que vestida tão branco?
Pra que vestida tão branco?
Pra que vestida?
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Cenas para um quarto sem janela
Os dias passavam nos fios da moça.
Cada fio aumenta a tarde
cada dedo conta as noites
cada dedo de sonhar.
O fio é um homem,
o amor é um fio da moça a fiar.
A mãe emaranha
todo fio da meada.
A mão é uma aranha
que tece sua trama:
a vida por um fio
da moça a fiar.
Mas o sonho não vive
e a moça a desfiar.
A moça em casa
e a moça no quarto,
espartilho na moça
e a moça a fiar.
39
Forma
Amassar e reamassar o barro
e salivar e gaguejar
e dar palavra às coisas.
E misturar as tintas, o preto
o branco, o preto, o branco
até poder falar do cinza
dos seus olhos.
E buscar os sons
os tons, os timbres
da voz passiva,
dos silêncios.
E dançar e cantar e representar
e reconstituir a cena
dos crimes cotidianos
das carências, das esperas.
E ensaiar e formar e deformar
e errar e apagar
e riscar e rasgar e amassar
e reamassar o barro.
E soprar o vidro
e insuflar
dar corpo à alma.
E fotografar e retocar
e revelar sombras
e mastigar e ruminar
e rabiscar e desenhar
mãos enormes pás
para catar todos os cacos
toda aflição
a história quase infinita
de uma ruga de expressão.
40
Garganta
Você ficou entalada na garganta, Da.
Passei meses tentando te engolir
meses tentando te cuspir.
41
Matutina
Manhã de muita luz bem cedo
eu dei pra estar tão mole, tão sereno.
Eu dei pra estar tão manso,
tão denso, creio até meio doce.
42
Ovo carioca
Ela é carioca da gema
Ele é carioca da clara
Certo, sou um carioca da casca
Mas você não passa
de um carioca do pelo
43
Passear
Vamos passear na praça
Até que o lobo venha
Antes que sirenes soem
E que os sinos devam dobrar.
Vamos passear na praça
Tua insatisfação, meu dano
Se danem.
Vamos de mãos dadas
A corrente assim
Remar contra a corrente assim
Remar outra corrente assim.
Vamos passear na praça
Após a lua nova
Após os ventos calarem
E abrir a luz da manhã.
Vamos passear na praça
Tua esperança e meu sonho
Que sonhem.
Vamos de mãos dadas
Rodar pela praça
A sintomática alegria
Tão só de ir e de vir.
44
Pelo nariz
Se não puder falar pela boca
Se não puder cantar pela boca
A gente fala pelo nariz
A gente canta pelo nariz
45
Velha guerreira
Eles têm bem mais altura
Eles têm bem mais largura
Eles têm tão mais furor!
Eles têm bem mais dureza
E têm bem mais profundeza
Para o prazer e pra dor.
46
Dizem que esgotou o meu ouro
Que eu já não dou mais no couro
Só resta a cinza do ardor.
Mas podem me deixar doida
Se a mim me rasgarem toda
Só de tirar e de por
.
E eu que fui a boneca
E eu que fui a peteca
Sem cair, de mão em mão
Vou me virando sozinha
Acabo uma andorinha
Que vai caçar gavião.
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Marvada pinga (novos porre)
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Um pouco da história das canções
Como disse no “prefácio”, por não saber quase nada de música, só posso falar aqui das
letras das nossas canções. Vou mencionar vários poetas (Manuel Bandeira, Jorge de
Lima, Drummond, João Cabral), mas muito antes de ler os poetas ditos eruditos eu já
ouvia os poetas populares da MPB. Acho que a LPB - Letra Popular Brasileira foi a
principal influência que tive. Eu tinha vontade de ser um compositor muito mais do que
ser um poeta. Poeta era um cara que escrevia alguma coisa parecida com uma letra, mas
o que fazia não tinha música! Pra mim isso era fatal: tornava o poeta,
comparativamente, uma espécie de autor deficiente. Por isso quase sempre pensei nas
coisas que escrevi como letras. Algumas nem se prestam a música, como duas ou três
que inclui aqui na seção “letras sem música”, como se isso tivesse ocorrido apenas
circunstancialmente.
É o caso de Ovo carioca e, certamente, também de Ângulo (de que falarei mais adiante).
A Ovo inicialmente tinha só os cinco primeiros versos. Mas a eles se seguia, entre
parênteses, um texto autobiográfico: “JCPO é paulistano, mas trineto de Dona Augusta,
uma mulata carioca, casada com um português”. Musicar parênteses?!... Bem, a letra foi
transformada em projeto de marchinha de carnaval (à moda de Braguinha e Lamartine
Babo, quem nos dera!). Falei da ideia da marchinha pro Edson, mas acho que ele não
chegou a ver a adaptação, a segunda parte, como consta aqui. Imagino que ele ia achar
engraçado o “paulista e japonês”. A letra, que brinca com a expressão “carioca da
gema”, que os cariocas usam como um título de nobreza, é uma homenagem ao Rio,
como capital da MPB. E é uma letra bem paulista porque paulista é que procura pelo em
ovo. Carioca procura cabelo em ovo.
Garganta pedia, é claro, uma canção a ser interpretada “com voz gutural”, como
brinquei ao apresentar a letra a ele. Ou seja, tinha que ser um blues. Era essa a ideia,
mas a música não saiu. Na verdade, pelo que me recordo, apesar de ele ter gostado da
letra, nem tentamos lidar com ela. Outra que ficou ali na fila pra sempre foi Matutina.
Sempre me interessei por processos de mudança e ali tento fazer o flagrante de um
processo dramático, que poderia ser simbólico. Narrado na primeira pessoa, o
personagem, curiosamente, parece se espantar com o ponto de partida e não com o de
chegada. Daí o título de Matutina. Tinha o apelo teatral da transformação, que a música
podia captar, mas o ‘vampiro’ acabou abortado.
As letras que constam aqui como “sem música” formavam uma espécie de banco de
letras que fui deixando com o Edson, de onde ele ‘sacou’ a de Magro para musicar. Ela
fala cruamente de um relacionamento totalmente desencontrado. A mulher é sonhadora
e o homem é básico, estrutural, um cabra cabralino de uma ‘educação pelo osso’...
Gosto da música, que lembra um pouco as canções eruditas, talvez apenas porque elas
fossem compostas em cima de poemas que já existiam. Acompanhando a letra, a música
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tem notas mais agudas nas “pontas” e nas “quinas”. Pena que o Gutierrez não tenha
feito outras experiências desse tipo.
Branca, por outro lado (ou pelo mesmo), mostra cenas de um casamento ou
descasamento encruado. Eu estava iniciando meus relacionamentos mais sérios e me
‘arrepiava’ ver casais mais velhos jantando num restaurante sem dizer uma palavra um
ao outro. Ou casais que andavam na rua um longe do outro, em geral o homem
deixando a mulher uns dois metros atrás... Por que ainda estavam ‘juntos’? Pensei então
nessa letra em que os personagens não se suportam mais, mas mesmo assim a noite
parece acabar em sexo.
Já a Cenas para um quarto sem janela, que sempre foi chamada pelo apelido de Moça a
fiar, foi feita com certeza para uma música do Klecius, que, aliás, já tinha letra. Ele
fazia parte do grupo de músicos que frequentava o pequeno apartamento alugado pelo
Edson na rua Plinio Barreto em São Paulo (perto do túnel da Nove de Julho). Era o caso
do próprio Osmar e do Betho Silva, vizinho do Edson no mesmo prédio, que já tinha
sido meu parceiro antes e me apresentou à turma (eu morava na Nove de Julho, menos
de 2 km de lá).1 O Klecius gostou da letra, mas acabou deixando a canção com a letra
original que, naturalmente, lhe soava mais natural. De qualquer modo, o resultado foi
importante porque levou o Edson a me dizer, como quem não quer nada, que tinha lá
algumas músicas sem letra... E assim começou nossa parceria.
A primeira que tentamos fazer foi Pródigo (mas que só ‘saiu’ mais tarde, depois de
outras). Esse é um fato inesquecível pra mim porque, pra mostrar a melodia e orientar a
letra, o Edson me mandou uma fita cantando o que lhe passou pela cabeça. Seu primeiro
verso, para essa que é uma de nossas poucas músicas românticas, era “O menino é um
cachorro”... Eu “cobri de redondilhas” e nas músicas seguintes pedi pra ele fazer “o
1
Esse encontro em SP tinha que ver com o movimento natural em direção à capital. O Betho e eu éramos de Jundiaí
e o Edson de Americana. Ele devia ter tido o seu grupo local, onde ‘tudo’ começou pra ele em termos de música. Eu e
o Betho iniciamos nossa parceria em 1971 ou 72, participando de festivais lá em Jundiaí e convivendo com outros
garotos e garotas da cidade interessados em música. Alguns deles fizeram uma carreira musical de sucesso, como o
próprio Betho, que se tornou um percussionista profissional, tocando e gravando com Sá e Guarabyra e outras
bandas. O Paulo Calasans, que era mais jovem que nós e tocou violoncelo no nosso grupo, é um pianista e produtor
musical que já trabalhou com o Caetano, o Gil, a Gal, o Djavan... O Paulo Braga, um menino de uns 10 anos na época
(irmão de amigos nossos) e que já ficava rondando por ali, é um pianista e compositor, com uma longa parceria com
o Arrigo Barnabé, além de professor universitário de música. Eu, que tinha naquele período entre 18 e 20 anos, era o
mais velho... Essa ‘turminha’ de Jundiaí, de que fiz parte e de que me orgulho, vale um songbook à parte.
50
menino é um cachorro” de novo ao mandar a fita, mas, compreensivelmente, ele nunca
mais usou o método. A letra tenta mostrar a ‘argumentação’ sem sentido a que recorre a
pessoa abandonada – cuja forma mais perfeita talvez seja a de “Sua estupidez” de
Roberto e Erasmo – e a instabilidade dos pronomes possessivos na hora h de um fim de
caso: o que é meu?, seu?, nosso? (na primeira versão, a letra era repetida com a
mudança dos possessivos, mas ficava muito longa). E o título bíblico, que só poderia ter
sido dado pela própria protagonista, sugere a última esperança de uma volta. Tesouro
também tem uma epígrafe bíblica: “Onde está o teu tesouro, aí está o teu coração”.
Transpus a frase para o nível afetivo e imaginei os escombros de um relacionamento. A
letra não lembra a Dolores Duran, mas pensei nela na época, especialmente em “A noite
do meu bem”, uma canção romântica cantada em serenatas e que me dava a referência
de uma paixão viva. Foi a ela que eu contrapus a minha letra, perguntando onde estava o
tesouro ou o coração no momento de uma paixão extinta ou ameaçada de extinção.
Freud explica compensa um pouco o ‘romantismo’ das duas canções anteriores com um
toque de realismo e ironia. A referência a Freud através dessa expressão é bastante
popular e, no caso, indica que ele explica o desejo “inconsciente” por baixo do
comportamento desinteressado, mas que o protagonista, melancolicamente, já é ele
próprio capaz de perceber. A letra antecipa uma preocupação LGBT quando fala
genericamente em “alguém”, sem definir o gênero. Com a canção Pretinho ocorre algo
parecido. Embora eu tenha pensado numa menina de uns três ou quatro anos, a letra não
identifica o gênero (os adjetivos são neutros, “alegre” e “triste”) e a canção pode ser
cantada sem adaptação por qualquer criança (menina, menino ou menine).
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exílio” de Gonçalves Dias, parodiada também por um ‘poetão’ como Drummond. Acho
que a única vez em que o Edson ‘implicou’ com uma letra minha foi com relação a As
secas. Ele perguntou se não devia ser “quando eu vim pra cidade grande” e não “pra
grande cidade”. Eu falei que era uma pequena licença poética, que todo mundo
entenderia. Escrevendo sobre isso agora, me recordo imediatamente da canção “Retrato
em branco e preto” do Tom e do Chico. Wagner Homem conta o ‘causo’ no seu livro
sobre as letras do Chico: “...Tom teria dito a Chico que ninguém fala ‘retrato em branco
e preto’ e que a expressão correta seria ‘retrato em preto e branco’. Ao que Chico teria
respondido: ‘Então tá. Fica assim: ‘vou colecionar mais um tamanco/outro retrato em
preto e branco’. Diante de uma tamancada tão convincente, Tom entregou os pontos”...
Nas letras de meus próprios temas musicais, a influência maior foi certamente do Chico
Buarque e também do Aldir Blanc, ambos, digamos, na linhagem, na ‘cadeira’ do Noel
na Academia da MPB. Nas letras para as músicas do Gutierrez ou nas letras que ficaram
sem música, as influências foram mais variadas. A Ângulo, por exemplo, tem uma
vinculação com o conto “El Aleph” do escritor argentino Jorge Luis Borges, mas com
um protagonista ansioso que, quase sem fôlego, quer ver e ser tudo. Já Ovo carioca e
Garganta, que são da mesma época (já do inicio de 80), e Magro, parecem mais
independentes.
Aliás, com Magro, tive uma tarde de celebridade. Quando cheguei pra conhecer a
música que o Edson tinha feito (a única depois da letra em nossa parceria), ele estava
acompanhado de um amigo que me saudou como “o poeta”. Era um grande elogio
porque parece que, para a maioria das pessoas, o poeta é um artista e o letrista, um
artesão. O rapaz (que tinha a nossa idade) me olhava como se eu fosse um Bandeira em
pessoa e então eu pude perceber através dele a aprovação do meu discreto parceiro, que
certamente tinha influenciado aquela calorosa recepção do meu fã único.
Mas eu me lembro de o Edson ter comentado o verso “quem que viu um gatinho” de
Pretinho, chamando a atenção com prazer para o “que”, que lhe pareceu captar bem a
linguagem infantil. E que era legal ser uma historinha, como criança gosta. Isso foi
importante pra mim porque eu temia que ele não recebesse bem a letra. Foi o caso mais
‘arriscado’ porque fui eu, com minha letra, que transformei a música em uma canção
infantil. E ainda me meti na música ao sugerir as mudanças de tom no final pra
acompanhar as duas surpresas da menina. Mas ele gostou.
Corri um certo risco também depois com Entre nós, que, com minha letra, transformei
em uma espécie de canção teen. Mas logo concordamos que ela trata do sentimento, da
primeira percepção de que há “algo mais” entre duas pessoas, que é sempre uma
emoção meio adolescente. Devo ter sido influenciado pelas letras dessa eterna
adolescente que é a Rita Lee (no bom sentido, como a Baby Consuelo). A célula
primitiva da letra foi o encaixe na música da expressão “entre nós”. O resto foi
‘clonado’ a partir dali. Aconteceu o mesmo com a forte adversativa de “É verdade” (as
ruas têm o sangue no ar) em Poente. Comecei a letra por ali, pelo meio do caminho.
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Poente, como o Samba do dito, tem a preocupação do engajamento. O lírico não impede
de se ver o trágico na frente do nariz. A epígrafe por trás de Poente vem de Jorge de
Lima: “Chove sangue sobre as nuvens de Deus e há poetas míopes que pensam que é o
arrebol”. Já no caso do Samba (como de No cravo), a música pretendia abrir espaço
para uma interpretação malandra de um bamba do ritmo como a Elis (“Cai dentro” ao
vivo em Montreux), a Elza Soares, o Jackson do Pandeiro ou o incrível Germano
Mathias. Apesar disso, os últimos versos me lembravam um pouco o João Cabral e
continuo com a impressão de que são versos meio ‘severinos’.
Paz de cheiro começou com o verso “Eu sinto muito forte o cheiro dessa paz”. Aí o
cheiro forte levou ao podre do verso shakespeariano sobre a Dinamarca, que ‘puxou’ os
outros países e chegou até La Paz. O título era provisório, foi ficando natural e quase
nem me dei conta de que é estranho e precisava me referir a ele aqui. Mas já não sei de
onde veio. Talvez do fato de eu achar curiosa uma expressão como “cheiro verde”,
usada com naturalidade pelas pessoas, e pensei em fazer algo parecido.
Deliberadamente, o Brasil não aparece na letra, uma vez que era considerado uma ilha
de tranquilidade... Isso é dito explicitamente no Trem da alegria, trem que, ao contrário
do ‘inocêncio’ “Trem das onze” do Adoniran, não tinha horário nem precisava sair do
lugar... Eu mesmo me espantei agora com a (lamentável) atualidade da letra do Trem,
que se inspira em Manuel Bandeira e fala em general e até em capitão! Como disse o
pintor alemão Max Liebermann no início do nazismo: “Não consigo comer o quanto eu
queria vomitar”.
Na canção No cravo, a música ‘meio Baden’ do Edson me levou a uma letra ‘meio PC
Pinheiro’, falando do frequente desnível nas relações amorosas. Parece haver muitos
casais em que um se especializa em receber amor e então o outro se torna um
especialista em dar amor, sempre devedor. Outro samba, Semana inglesa, fala sobre as
condições de trabalho dos operários e ironiza o título pomposo dado ao benefício dos
sábados livres (com a devida compensação de horas durante a semana). A letra me fez
propor uma adaptação na música para incluir a repetição monótona dos dias da semana
do trabalhador até a ‘felicidade’ (mais conhecida como esgotamento) de poder passar o
sábado inteiro nos braços de Morfeu...
2
Como escrevi em “Mínima canção”: “O pássaro faz a música/e o povo bota a letra:/bem-te-vi”.
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recolheu ao longo do tempo, das rodas de viola onde os autores anonimamente foram
acrescentando versos, como numa canção folclórica.
Vou ‘desembestar’ a falar aqui da “Marvada Pinga”, como também é conhecida, porque
é uma canção importante em si e pra situar essas minhas letras. Ela não é uma apologia
do alcoolismo, como obviamente poderia pensar uma pessoa mais moralista. Acho que
ela tá na linha das criações populares que lidam com o mito, como as mentiras de
pescador, as proezas do malandro (Malasartes, etc). O ‘bebão’ toma todas, se gaba disso
e, no momento seguinte (na estrofe seguinte), já tá “pronto pra outra”. Como um
personagem de um cantador ou repentista em um desafio, ele é uma espécie de herói
popular, que faz o que gosta, se excede, afronta a ordem, e sai ileso, para repetir tudo ou
se superar mais uma vez.
Pensei nisso e numa transição do rural para o urbano ao botar o trabalhador “contando
vantagem” em Circo e Pão. Já Velha guerreira passa também pelo fato de que a
“marvada pinga” ficou mais engraçada ao ser cantada por uma mulher, como no caso da
Inezita. Provocativamente, a protagonista da Velha conta vantagem sobre sexo, o que
ficava bem menos engraçado para as pessoas mais conservadoras. Basta imaginar como
seria recebida, naquele tempo, uma roda de mulheres num bar cantando a Véia... As
rimas dos últimos versos não indicam diretamente uma censura, mas a malandragem de
falar, por assim dizer, burlando a linguagem do mesmo modo que a lei. Agora, mulheres
como a Valesca Popozuda e outras rainhas do chamado “funk proibidão” já soltaram o
verbo e mandaram seu recado sexual e político com todas as letras (sem nenhum
asterisco pudico).
A versão clássica da Inezita para a “Marvada” não é a original de 1953, mas a que ela
registrou em 1958. Ela tem duas estrofes bônus do Paulo Vanzolini e isso me animou,
no tempo da parceria com o Gutierrez, a escrever também algumas novas estrofes, que
chamei de novos porre. Fiz uns retoques depois (acrescentei a última estrofe sobre a
Copa do mundo) e inclui essa minha colaboração aqui no Song como curiosidade. Acho
que tem alguns versos divertidos, mas serve mais pra mostrar como a letra original e os
acréscimos de Vanzolini têm uma verve caipira inigualável.
Terra boa explora a ambiguidade do termo “terra” e foi pensada como um lamento e
uma denúncia diante da milenar questão da terra. Imagino que foi escrita no momento
em que começava a surgir o MST. A letra faz menção à carta de Pero Vaz de Caminha e
me lembra o João Cabral na economia de recursos pra lidar com o tema. E também o
Cartola na letra de “Acontece”. Devo ter tentado fazer algo parecido com os mestres...
Lá tem problemas de prosódia e quase foi deixada pra lá. Mas esse problema está
presente endemicamente no cancioneiro popular desde o “berrô que o gato deu”... E
hoje nossa linguagem passa por mudanças consideráveis, até na fonética, na forma
como pronunciamos as palavras. Talvez por influência direta ou torta do Inglês, falamos
em "cômputador", "cápitalismo" e já ouvi mais de uma pessoa dizer heroicamente
"espêcificamente"... Incluí a Lá para ilustrar o fato de que nossas canções, mesmo as
consideradas acabadas aqui, ainda estavam na fase de trabalho em andamento.
O "lá" diz respeito ao horizonte, à ideia de se chegar a algum lugar, mas tem também a
leitura mais direta da busca da satisfação sexual, o que, apesar da chamada revolução
dos costumes dos anos 60, ainda parecia distante de muitas mulheres no final dos 70.
Vivia-se um momento complicado em que alguns homens já tentavam não ser
machistas, mas ainda éramos. E também muitas mulheres eram machistas. Mas elas já
estavam reagindo em várias frentes. Em A moça a fiar, com uma contraposição à
resignada “velha a fiar” da conhecida canção, imagino como poderiam ter sido os
primeiros vislumbres dessa reação. Recentemente, encontrei no romance “Inocência” de
Taunay a descrição perfeita para o quarto sem janela que imaginei: “Mulher é para viver
muito quietinha perto do tear, tratar dos filhos e criá-los no temor de Deus; não é nem
para parolar-se com ela, nem a respeito dela”...
Roberto e Rodrigo foi inicialmente R&R, pra evocar o velho hábito dos casais de
“eternizar” seu amor gravando as iniciais em muros e árvores. E também pra não revelar
no título a identidade que a letra esconde em seus primeiros versos. A descrição inicial é
compatível com qualquer casal e a identidade homo só é revelada depois, no refrão. A
ideia veio através de minha companheira na época (a Lê, hoje profa. da UNB), que
chegou em casa encantada com o fato de ter visto um casal gay na rua, “de mãos dadas
e tudo”. Eu logo vi que não teria achado aquilo propriamente encantador (mesmo
considerando politicamente correto), mas me encantei com o encantamento dela.
Imaginei a cena, ousada na época (e novamente agora...), com eles passando e todo
mundo olhando. A letra é concebida como uma câmera que vai registrando o passeio
irreverente pela cidade. Assim, a repetição de “e todo mundo olha” não é exatamente
uma repetição. São novas pessoas que vão olhando a cada ponto ao longo do trajeto. Em
todo lugar, todo mundo olha.
Um treco, um troço e Pelo nariz são letras contra a censura dos anos 70, que,
infelizmente, voltou a rondar recentemente todos os meios de expressão. Pelo nariz
mostra a resistência até ao absurdo (lembrando o “você me prende vivo, eu escapo
morto” da canção “Pesadelo” de Mauricio Tapajós e PC Pinheiro). Eu só dei a letra por
terminada quando me surpreendi com o verso mais candente, sobre a tortura: “Se não
puder calar pela boca, a gente cala pelo nariz”. Um treco fala da ameaça da autocensura,
da censura mais arraigada, aquela que vai se interiorizando e paralisando tudo.
Aconteceu o mesmo há pouco. Durante o novo governo de extrema direita, as pessoas
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estavam se autocensurando com medo dos ataques e das ameaças nas redes sociais. A
canção Passear, cuja música, como comentei acima, foi a única que esqueci, também se
manifestava contra um governo repressor, a proibição das passeatas e a ameaça até à
mínima liberdade de ir e vir nos anos 70. Agora, mal saindo da quarentena por conta da
pandemia do coronavírus, ela parece tristemente atual, na referência que faz à
“sintomática alegria tão só de ir e de vir” e até na singeleza de seu título, “Passear”...
No caso de Ventre, fiquei em dúvida entre tomar como referência o quinto ou o sexto
dia da criação. De acordo com a narração bíblica, o homem foi criado no sexto dia. O
primeiro rascunho da letra falava no quinto dia -- o paraíso, portanto, antes da existência
do homem. Mas acabou prevalecendo, menos radical, o sexto dia. Afinal, só há poucas
dezenas de anos (mas, infelizmente, com muita eficiência), estamos interferindo no
equilíbrio do planeta. Foi uma das últimas canções que fizemos juntos e foi um prazer
ver a reação do Edson à entrada da letra em cena. Eu me recordo que, ao contrário de
outras canções, eu não botei a letra por baixo da porta ou li pelo telefone. Nesse caso,
como a gente já tinha combinado um encontro de trabalho por outras razões, eu fiz uma
surpresa chegando com a letra pronta pra música que ele tinha me mandado. Eu vi então
ele pegar logo o violão e cantar a canção pela primeira vez. Ele deu uma estranhada
com a referência ao sexto dia, mas depois fiquei emocionado com a emoção que ele
sentiu ao entrar a parte final e a gente cantar junto: “Só aqui no bendito ventre/pode
vingar a semente./Só aqui no, bendito seja, lugar do sol e das águas,/o meu fruto, o teu
fruto, pode dar”. Quando entramos no “bendito seja” e ele fez uma segunda voz acima
eu já não tinha mais como disfarçar a emoção. Ele quase disfarçou bem, procurando
uma outra harmonia no violão. Aquela coisa que músico tem mania de fazer, ficar
testando acordes, ‘discutir a relação’ com a música bem na hora da emoção...
A canção não foi gravada em fita ali na hora. Mas foi gravada logo depois, como a
gente fazia sempre, sem maiores ensaios do violão ou da voz. Era só um registro, das
músicas pré-prontas, a definição de uma base a partir da qual chegar depois, num belo
dia, à versão final (tanto da letra quanto da música). As exceções ficaram por conta das
gravações em fita de R&R, Tesouro e do Trem, um pouco mais elaboradas. Por outro
lado, Pródigo, Entre nós e Pretinho nem chegaram a ter a gravação rústica típica.
A gente conversava, é claro, sobre as músicas feitas por outros compositores, os discos
que saiam (e eram muitos os grandes discos na época), mas agora só me recordo do que
falamos sobre uma canção que a Gal gravou em 1985. Talvez por ter sido um de nossos
últimos encontros, já raros. Ele me perguntou o que eu andava ouvindo e eu disse que
uma das canções que tinha me chamado mais atenção era a “Bem bom” (Arrigo-Gudin-
Rennó). Ele ficou impressionado com isso. Quer dizer, ele concordava comigo, mas
achava surpreendente que, sem conhecer música, intuitivamente, eu chegasse a essa
conclusão. E acho que talvez fosse esse o nosso ponto de contato, uma convergência
entre o formal e o intuitivo, que era estimulante para os dois. E que acontecia, em
posições inversas, também em relação às letras, que só eu escrevia mas ele compreendia
muito bem e intimamente eu sentia que compartilhava comigo.
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No “prefácio”, me referi à Elis, à Bethania e ao MPB4, mas as canções nos sugeriam
muitas outras vozes. Acho que o Cd do songbook que eu gostaria de mandar pro
Gutierrez, produzido, claro, pelo saudoso Almir Chediak, seria mais ou menos assim:
É uma verdadeira “seleção brasileira” de intérpretes, totalmente utópica, mas que serve
pra mostrar como a gente via (ou ouvia) cada música. Escalei o time sem repetir nomes
para poder homenagear mais gente de quem a gente gostava. E o sonho vai se tornando
cada vez mais utópico: quando fiz a listinha, a Gal, a Rita Lee e o Elton Medeiros ainda
estavam vivos. Além da Elza Soares, o Aldir Blanc e o Germano Mathias, também
citados no texto. Felizmente, são todos eternos.
Muita gente boa falou o que deve ser falado sobre a MPB. Um autor resumiu em um
parágrafo o que ‘todos’ sentimos e eu posso citá-lo aqui:
Todo mundo sabe por viver e poucos sabem racionalmente, mas, no fim das contas, não tem erro: a
canção popular brasileira é talvez a modalidade artística mais presente, universal e confiável que o país
produziu desde sempre. Há pelo menos 50 anos que vivemos informados pela canção, porque é ela que
está sempre aí, disponível, para comentar e iluminar nosso modo de ser e estar no mundo. Não é
impressionante? É, sim. Faça as contas e veja: a gente nasce, vai para o colégio, namora, trabalha e se
diverte com ela por perto. Ela cantando as mazelas sociais do país e as dores do amor. Ela refletindo sobre
o que é que significa isso tudo à nossa volta. Ela, em três minutos, matando charada por charada (Luís
Augusto Fischer. Ver https://www1.folha.uol.com.br/fsp/folhatee/fm2201200121.htm).
Pra terminar, faço minha festa modesta, tomando emprestados os versos da festa
imodesta do Caetano e do Chico: Viva aquele que se presta a esta ocupação! Salve o
compositor popular! Viva o cantor popular! Palmas pra todos os instrumentistas! Evoé,
jovens à vista!
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Nota final
Por acaso, o trabalho com o songbook começou a ser desenvolvido sob o desgoverno da
extrema direita, que se elegeu no país em 2018 através da manipulação da informação e
do eleitorado. O país viveu um longo período de sobressaltos e irrealidade, como se
estivesse ocupado por um inimigo estrangeiro, que não se importava com a morte das
pessoas na pandemia nem minimamente com a cultura ‘nativa’ e o meio ambiente. O
que imperava era uma mistura de ignorância e arrogância, canalhice e moralismo. Por
razões práticas, meu projeto foi sendo interrompido, mas também porque percebi, em
minha falta de ânimo, que aquele trabalho de preservação só teria sentido com a derrota
do fascismo, como aconteceu nas eleições democráticas de 2022. Não faria nenhum
sentido lutar pela preservação cultural de algo minúsculo como nossas canções se toda a
cultura estivesse ameaçada. E é isso o que estaria acontecendo neste exato momento.
Uma repetição da farsa como tragédia. A reeleição teria valido como um referendo para
um ilimitado abuso do poder. Compreensivelmente, meu trabalho aqui foi virando uma
(modesta) celebração da MPB, da cultura como um todo que por um triz não foi
subjugada.
Palmas então pra todos os que ajudaram a preservar a democracia, que são também
preservadores da vida, da cultura brasileira, do meio ambiente, do respeito e até mesmo
de algumas velhas canções!
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