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Caminhando

e
Cantando
História Fazendo Música
e
Música Cantando História
Marco Antonio Gonçalves

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Caminhando e Cantando

Caminhando
e
Cantando
História Fazendo Música
e
Música Cantando História

MARCO ANTONIO GONÇALVES

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Marco Antonio Gonçalves

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Caminhando e Cantando

“Dedico este livro primeiro à Deus, como tudo em minha vida, e


depois à memória de Fernando Gil Feichas, a primeira pessoa a
conceder entrevista para este trabalho, à Heloisa Feichas, por
ter, de todas as formas possíveis e imagináveis, contribuído para
que este projeto tivesse êxito, a todos que de alguma forma
contribuíram para a realização deste livro e à toda a minha
família, em especial à minha mãe, Francisca Maria da Silva,
simplesmente por ser a melhor pessoa do mundo, que me
ensinou tudo o que sei e a qual devo tudo o que sou”

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Marco Antonio Gonçalves

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Caminhando e Cantando

“A única coisa melhor que música, é falar de música”


Gabriel García Marques

“Estou pensando
Nos mistérios das letras de música
Tão frágeis quando escritas
Tão fortes quando cantadas”
Augusto de Campos

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Marco Antonio Gonçalves

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Caminhando e Cantando

- Sumário

Apresentação...............................................................11

Prefácio........................................................................17

Capítulo 1 – Período Pré-Bossa Nova.........................23

Capítulo 2 – A Bossa Nova..........................................29

Capítulo 3 – Início da Repressão ................................54

Capítulo 4 – Afirmação e Renovação..........................99

Capítulo 5 – A Década do Rock..................................126

Capítulo 6 – Fim de uma Era.......................................142

Epílogo.........................................................................155

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Marco Antonio Gonçalves

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Apresentação
A música brasileira já foi tema de vários livros, reportagens,
séries, filmes e documentários nacionais e estrangeiros. Ela
também já serviu como trilha sonora de vários sucessos do
cinema e até Walt Disney a usou em suas animações. É
admirada nos quatro cantos do mundo. Em todo lugar que se vá
alguém vai cantar, pelo menos cantarolar, “Garota de Ipanema”,
“Aquarela do Brasil”, “Tico-Tico no Fubá” ou então, quem
sabe, alguma coisa do Sepultura ou do Cansei de Ser Sexy.
Mas é claro, nem todos gostam de música brasileira, mas
negar que no Brasil surgiram gênios da música como
Pixinguinha, Tom Jobim, João Gilberto e Chico Buarque é
extrema ignorância. Desde o início da bossa nova em 1958 à era
dos Festivais e início da rotulada MPB na década de 1960 até a
explosão do rock Brasil em 1982, a música tupiniquim sempre
contou a história do país em suas letras e melodias.
A canção brasileira nos últimos 50 anos passou por várias
transformações. Participou da luta contra a ditadura e da volta à
democracia. Apesar das chuvas e tempestades, a boa música
nacional continua aí, seja com os cantores antigos que se
reinventam cada vez mais. Seja com aqueles que só com as
músicas que fizeram no passado não precisam fazer mais nada
(pois já estão no inconsciente popular), ou com a nova geração
que surge para dar um sopro de vida nessa tão fascinante forma
de expressão. Gente que sabe que fazer boa música independe
de mídia ou repercussão. Depende de talento, dom, carisma...
Desde a explosão do rock Brasil pouca coisa nova e com
qualidade surgiu no canário musical brasileiro. O saudoso
nordestino Chico Science e seu Mangue Beat é uma delas, o
outro exemplo que me vem à memória é a banda de heavy metal

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mineira Sepultura, que cantando em inglês levantou platéias no


mundo inteiro. Outras coisas boas podem ter surgido aqui e ali,
mas nenhuma teve repercussão nacional ou até tiveram, mas não
merecendo os créditos deste exigente escriba. Claro que alguns
grupos, bandas e cantores depois dessa época (década de 1980)
são bons e vão ser citados ao longo desta história, mas eles vêm
inspirados pelos antigos roqueiros, pelos emepebistas e pelos
bossa-novistas então não inovaram; mas repito merecem todos
os créditos.
Uma das bandas de qualidade que surgiram na pobre década
de 1990 foi a mineira Pato Fu. Aliás, a música de Minas Gerais
veio com tudo na última década do milênio. Vocalista da banda,
a simpaticíssima Fernanda Takai, talvez tenha sido a minha
maior inspiração para começar esse trabalho. A encontrei pela
primeira vez no ‘Festival da Mantiqueira – Diálogos com a
Literatura’ em São Francisco Xavier, charmoso distrito de São
José dos Campos, em 2008. Estava no segundo ano da
faculdade. Naquela época tinha que fazer uma grande
reportagem e a minha pauta era o cinquentenário da bossa nova,
que se completaria em agosto daquele ano. Entrei na fila dos
autógrafos com a esperança de conseguir gravar pelo menos
algumas palavras suas. Ela havia gravado um CD em
homenagem à bossa-novista Nara Leão. Como se não bastasse
ao seu lado estava o jornalista, escritor, produtor, o
multifacetado Nelson Motta, grande conhecedor da música
nacional e que vivenciou de perto os principais fatos que vão ser
narrados neste livro.
Cheguei tímido ao lado de Fernanda e fiz algumas perguntas.
Ela foi de uma simpatia singular, com um sorriso e uma voz
doce que me fez ficar encantado ainda mais pela sua música e
pela de Nara Leão, motivo da entrevista. Nelson Motta também
foi gentil e me respondeu às perguntas (que certamente estava

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Caminhando e Cantando

cansado de responder) com a autoridade de um juiz de futebol


quando apita uma falta clara a meio metro distância.
Fiz uma excelente reportagem, a melhor que eu já havia feito
(é claro que eu não havia feito muitas antes daquela), mas por
uma dessas coisas que às vezes acontecem, o áudio da entrevista
foi apagado e a voz doce da Fernanda Takai e a grossa e meio
anasalada de Nelson Motta conversando comigo se perderam
para sempre. Já tinha decupado toda a entrevistam então dos
males, o menor. Sem maiores problemas e sem ressentimentos
com o professor que apagou a entrevista.
Alguns meses depois as professoras Vânia Braz e Celeste
Marinho me sugeriram continuar a reportagem no meu trabalho
de conclusão de curso e aceitei o desafio, que aumentei ao ter a
pretensão de falar da música brasileira depois da criação da
bossa nova por João Gilberto.
Sempre gostei de música, quando pequeno ouvia Roberto
Carlos, Chico Buarque e outras coisas assim por tabela, já que
minha mãe é fã desses cantores. Por outro lado, meu pai, como
bom mineiro nascido na roça, tinha vários LPs de duplas
caipiras dos mais variados e esquisitos nomes. Para a minha
sorte puxei o gosto musical de minha mãe, mas confesso que
nutro um certo carinho pela música caipira. Isso vem de berço.
Tinha então genes necessários para gostar de boa música. E
assim foi.
História, no sentido real da palavra, é uma coisa pela
qual sempre me interessei. Sempre achei fascinante saber o que
aconteceu no passado e que pode ter influenciado o que vivemos
hoje e o que virá pela frente. Até hoje me fascino quando
descubro algo que não conhecia ou imaginava. A História tem
esse poder, pelo menos sobre mim.
A música e a história estão sempre ligadas quando contamos
a história recente do Brasil. Chico Buarque e os seus criticando

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a ditadura, Os Incríveis ressaltando o Brasil dos anos de


chumbo, o rock e a redemocratização.
Falar da música brasileira é um trabalho árduo e complicado.
A criatividade do nosso povo e a mistura de raças faz com
tenhamos vários tipos de manifestações através da música em
todo o país; Algumas consideradas de bom gosto e que nos
representam em todo o mundo. Outras podem até nos
representar, mas são de gosto duvidoso e letras sem conteúdo,
ao menos histórico.
O escritor Jairo Severiano, um dos maiores conhecedores de
nossa música, autor de “Uma história da música popular
brasileira – das origens à modernidade”, uma das obras de
referência deste livro, dividiu a história da música brasileira em
quatro partes distintas: Formação (1770-1928), consolidação
(1929-1945), transição (1946-1957) e modernização (de 1958
até os dias atuais). Este livro, portanto, vai tratar da moderna
música brasileira, segundo definição de Severiano, no final do
período de transição até o final do século.
Esse é um livro sobre a história da música brasileira desde os
anos 50. Obviamente, aqui estão algumas histórias, das mais
curiosas, compiladas nos mais diversos livros sobre música,
biografias de artistas, compositores, artigos de revista, jornais,
vídeos e documentários e também em entrevistas com nomes
que fizeram parte da história da música brasileira, como Nelson
Motta e Gilberto Gil.
Este livro, como não poderia deixar de ser, tenta mostrar
como a História do Brasil (política, social e econômica) e a
História da música sempre caminharam lado a lado nos últimos
sessenta anos. Elas estão sempre andando juntas e se cruzam em
diversos pontos.
Durantes alguns anos elas formaram uma só linha, em outros
se distanciaram, mas sempre se encontram. São algumas dessas

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convergências que estão reunidas aqui. Esse livro tem os mais


diversos livros, dos mais variados autores, (que constam na sua
bibliografia) como fontes de histórias e curiosidades. Talvez, o
livro que mais tenha inspirado este trabalho seja “Noites
Tropicais – Solos, Improvisos e Memórias Musicais” de Nelson
Motta, um retrato auto-biográfico do autor, que presenciou de
perto os mais importantes acontecimentos da moderna música
brasileira. A criação da bossa-nova, a Jovem Guarda, a MPB
dos Festivais e o rock da geração 80. Os Gêneros que são
tratados nessa história.
Vamos ver como um baiano de jeito tímido e pouca fala
modernizou e mudou para sempre a história da música
brasileira. Como quatro amigos adolescentes do subúrbio do Rio
de Janeiro se transformaram em ícones de nossa música.
Também saberemos a importância de programas de televisão
para toda uma geração de artistas e como esses programas
reuniram os mais celebres compositores de nossa música na
década de 1960. Como um grupo de teatro e a influência de uma
rádio contribuíram para a cena roqueira nos anos 80, entre tantas
outras histórias e explicações.
É a música como influência para a sociedade, para o
pensamento e para a política. Como combustível para ações
sociais e em alguns casos, rebeldia e protesto.
Aqui estão reunidos os mais diversos pontos em que a
História do país se une à História da Música. Um trabalho que
visa contar a história da música brasileira é, de certa forma, algo
pretensioso. Escrever sobre a história da música é, de fato, um
trabalho instigante, que traz dificuldades, mas ao mesmo tempo,
é extremamente gratificante, pois a música do Brasil é como o
seu povo: cheia de misturas, criatividade, alegria, tristeza e
histórias, ou causos, como se diria em Minas. A música do

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nosso país criou seu próprio sotaque e é, sem sombra de dúvida,


a maior expressão artística nacional.

Viva a Música Brasileira!

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Prefácio

- Contexto histórico

Getúlio Vargas chegara ao poder no Brasil em 1930, depois


da revolução que impediu a posse de Julio Prestes, presidente do
Estado de São Paulo e vencedor das eleições naquele ano. Em
1937, Getúlio instituiria o Estado Novo, regime político
autoritário e ditatorial no Brasil e governaria o país até 1945,
quando acontecem eleições diretas e é eleito o general Eurico
Gaspar Dutra.
Durante esse período o mundo viu a ascensão de Hitler na
Alemanha e de Mussolini na Itália e o início da Segunda Guerra
Mundial, a mais sangrenta batalha de todos os tempos, com a
invasão da Polônia pelos alemães em 1939 e o fim do conflito
em 1945 com a rendição da Alemanha e, posteriormente as
bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, impondo enfim,
a derrota ao resistente Japão.
Em 1942, Getúlio declara Guerra aos países do Eixo, Itália e
Alemanha. No ano seguinte, cria a Força Expedicionária
Brasileira (FEB), tropa brasileira que iria combater a partir de
1944 ao lado dos países aliados na Itália.
A partir do final do conflito, o mundo se via sob a égide da
Guerra Fria, iniciada após o final da Segunda Guerra. Estados
Unidos e União Soviética, vitoriosos na guerra contra Hitler,
disputavam o posto de maior potência mundial.
Os americanos chegaram a essa posição de destaque no
início do século XX, subjugando a Inglaterra, sua antiga
colonizadora. A história do país é um dos fatores que os
levaram, já no início do século passado, a superar as grandes
potências europeias. O país da América do Norte foi um dos

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primeiros do continente a conquistar a independência, em 1776


e logo quando foi alcançada, já foi instalada a república
presidencialista.
A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS)
nasceu com a revolução russa de 1917, com a chegada ao
Kremlin do comunismo de Lênin e a união de outras diversas
nações do leste europeu ao governo russo.
A União Soviética dominava a parte leste do globo,
enquanto o capitalismo americano tinha sob sua tutela o
ocidente. O mundo estava divido em dois. O bloco capitalista e
o bloco comunista. Surgem duas Alemanhas, ergue-se o Muro
de Berlim, a Europa é separada pela Cortina de Ferro.
Esse período foi uma época de grandes transformações no
cenário mundial, em todos os campos possíveis, desde a ciência
à cultura.
Nessa época de disputa de poder, era preciso que as duas
potências conseguissem mais aliados e, principalmente, manter
os que já rezavam pela sua cartilha. Para o historiador Geoffrey
Blainey, “somente o uso imaginativo da palavra ‘Guerra’
poderia descrever apropriadamente as relações entre os Estados
Unidos e a União Soviética – que se assemelhava mais a uma
quente e tensa paz”.

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- A música brasileira antes de 1950

A música brasileira nesse período tinha como seu ritmo mais


popular o samba. O samba poderia ser dividido em algumas
vertentes como o samba do partido alto, o samba-enredo que
animava as escolas de samba nos desfiles de carnaval, as
marchinhas, o samba-canção, que era mais lento e cadenciado
que as marchinhas, além de outras variações do estilo.
O samba, com esse nome, era um gênero que fazia sucesso
desde a gravação de “Pelo Telefone” composição de Donga e
Mário de Almeida, registrado como o primeiro samba da
história, em 1917.
O escritor e jornalista paranaense Leandro Narloch, dedica
um capítulo do seu livro “Guia Politicamente Incorreto da
História do Brasil” ao samba e afirma que o ele não é um estilo
originário apenas de sons africanos. “Os estilos europeus fazem
parte da raiz ancestral do samba tanto ou mais que a percussão
africana. Os primeiros sambistas participavam de bandas de
jazz, adoravam ouvir tango e conhecer as novidades musicais
nos cabarés parisienses”.
O local tido como o berço do samba era a casa de Hilária
Batista da Silva, a Tia Ciata, baiana que morava na Praça Onze,
centro do Rio de Janeiro. Ali se reuniam não só a elite do
samba, mas também a elite intelectual do país. “À noite e nos
fins de semana, músicos, políticos, intelectuais, jornalistas e
amigos iam para o samba na casa dela – até então samba
significava festa e não um tipo de música”, afirma Leandro
Narloch.
No final da década de 1950 seria atribuído a um grupo de
amigos que frequentavam a casa do senhor Jairo Leão, o
surgimento da bossa nova, algo equivocado. Se tivermos de
atribuir a um grupo de amigos a criação de um estilo, há de se

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reconhecer o grupo que frequentava o quintal da mãe-de-santo


de Salvador que morava no centro da capital federal, o Rio de
Janeiro. Da casa da tia Ciata saiu o que hoje chamamos samba.
Em 1942, a política da boa vizinhança já estava em voga
pelos Estados Unidos, era importante que os países não se
sentissem tentados a ir para o lado alemão da batalha.
No mesmo ano é lançado o filme “Alô, amigos”, resultado
de uma visita de Walt Disney ao Brasil e a outros países latino-
americanos. No filme, o Pato Donald encontra um novo
personagem, o Zé Carioca e passeia pela orla de Copacabana,
além de sambar com Carmem Miranda.
Leandro Narloch diz que o estado de euforia no país foi
grande e o samba entrou em evidência quando do lançamento do
filme. “Nada poderia ser mais significativo para os brasileiros.
Na década de 1940, o Brasil era um país rural e pobre – não
participava da lista das trinta maiores economias do mundo. De
repente, a nação que poucas décadas antes se considerava uma
reunião de párias e degenerados, ganhou uma homenagem da
Disney, referência artística de um dos países mais poderosos”,
escreveu ele. Ele ainda vai mais longe e diz que o samba só
virou símbolo nacional por conta do nacionalismo empregado
pelo presidente Vargas e, entre outras coisas, do sucesso do
filme. “Sua ascensão (do samba) tem pouca coisa de pura ou
autêntica: veio da variação de um estilo anterior, nacionalizou-
se com a obsessão dos artistas com o exótico, o interesse de um
presidente fascista e a influência de um desenho animado”.
Na década de 1920 e 1930, o samba teve compositores que
entraram para a história da música brasileira, como o compositor
de Vila Isabel, Noel Rosa.
Noel de Medeiros Rosa nasceu em 11 de dezembro de 1910
no famoso bairro de Vila Isabel, um dos recantos do samba, do
Carnaval e da boemia carioca. Letrista talentoso e cantor

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consistente, o “Poeta da Vila” foi um dos mais importantes


representantes da “Época de Ouro” da música popular brasileira.
Em seus 26 anos de vida – ele morreu em 1936, vítima de
tuberculose, doença que o acompanhou durante anos. Noel
compôs obras-primas da música brasileira como “Com que
Roupa?” e “Palpite Infeliz” e levou o samba para o rádio, recém
inaugurado no país por Roquette Pinto no ano do primeiro
centenário da independência, 1922.
O começo da era de ouro do rádio no Brasil deu-se com a
inauguração da Rádio Nacional do Rio de Janeiro no dia 12 de
setembro de 1936, com a voz melodiosa de Celso Guimarães:
“Alô, alô Brasil! Aqui fala a Rádio Nacional do Rio de
Janeiro!”, seguido pelos acordes de “Luar do Sertão”, de João
Pernambuco e Catulo da Paixão Cearense, precedido pela
benção do cardeal da cidade Dom Sebastião Lemes da Silveira
Cintra.
Com a rádio nacional, a transmissão radiofônica no Brasil se
profissionalizou e ajudou popularizar a música brasileira. A
rádio nacional alcançava boa parte do território do país com seus
programas de auditório (sim, grande parte dos programas do
rádio tinha auditório), musicais, radionovelas e programas
jornalísticos, como o Repórter Esso e a Voz do Brasil, instituída
por Getúlio Vargas em 1935, persistindo no rádio brasileiro até
os dias de hoje.
A Rádio Nacional além de ser grande divulgadora da música
que era feita por aqui tembém foi importante veículo para a
propaganda da ditadura de Vargas. O presidente usava o meio
de comunicação para fazer seus discursos e também para
falatórios de seus apoiadores. Getúlio sabia muito bem usar a
mais nova e poderosa “arma” de comunicação de massa. O
governo federal não enxergava com bons olhos a música que era
feita no território nacional, então tentou nacionalizá-la o mais

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que pôde. Influenciou artistas como Heitor Villa-Lobos e Ary


Barroso a compor músicas que mostrassem o valor do povo
brasileiro. Ary Barroso gravou durante o governo Vargas e,
talvez por influência dele, o samba-exaltação “Aquarela do
Brasil”que virou um dos símbolos do nosso país.
Na música, Ary Barroso exaltava a nossa natureza e a
miscigenação brasileira. Falava bem da mistura de raças que
aconteceu no Brasil e que era combatido com veemência por
alguns intelectuais brasileiros da época, como Monteiro Lobato
– O escritor do Sítio do Picapau Amarelo escreveu na década de
1920 o livro “O Presidente Negro” em que crítica a união
interracial e, de certo modo, prega o extermínio de raças
descritas por ele como inferiores e por outros que eram
apreciadores da eugenia que teve presença forte em vários
países no começo do século XX. A canção veio como um
complemento e uma consequência do que pregava o escritor e
antropólogo Gilberto Freyre no livro “Casa Grande e Senzala”,
publicado em 1 de dezembro de 1933.
Esse nacionalismo na música feita no Brasil ainda persistiu
depois da queda do Estado Novo em 1945, com a chegada de
Dutra ao Catete.

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Capítulo 1
- Período pré-
pré-bossa nova

“BOTA O RETRATO DO VELHO OUTRA VEZ


BOTA NO MESMO LUGAR.
BOTA O RETRATO DO VELHO OUTRA VEZ,
BOTA NO MESMO LUGAR.
O SORRISO DO VELHINHO FAZ A GENTE TRABALHAR

EU JÁ BOTEI O MEU ...


E TU, NÃO VAIS BOTAR?
JÁ ENFEITEI O MEU ..
E TU, VAIS ENFEITAR?
O SORRISO DO VELHINHO FAZ A GENTE SE ANIMAR"

Essa marchinha composta por Haroldo Lobo e Marino Pinto


foi a mais executada no carnaval de 1950. A letra fazia alusão
claramente ao retorno de Getúlio ao cenário político depois de
cinco anos de exílio voluntário na Fazenda Itu em São Borja, no
Estado do Rio Grande do Sul. Getúlio havia estado no poder por
15 anos (1930-1945) dando lugar ao general Eurico Dutra.
Na eleição de 1950, Getúlio consegue se eleger facilmente
com 47,8% dos votos contra 29,6% do brigadeiro Eduardo
Gomes da UDN e 21,5% de Cristiano Machado do PSD, que
informalmente apóia Getúlio.
O primeiro ano da década de 1950 ficaria marcado de
maneira triste na memória dos brasileiros. O Brasil sediou a
Copa do Mundo de Futebol da FIFA. A competição voltava a

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acontecer depois de 12 anos, período que ficou parada por causa


da Guerra.
A Europa estava se reconstruindo depois de ter ficado em
ruínas e era preciso que a competição fosse realizada em outro
lugar. A FIFA escolheu o Brasil e em de 24 de junho a 16 de
julho de 1950 aconteceu a competição com 13 países
participantes.
O jogo final da Copa foi entre Brasil e Uruguai no Maracanã
lotado. Mais de 200 mil pessoas estavam no estádio. O empate
dava o título ao Brasil. O jogo estava empatado em um a um,
quando Ghiggia fez o segundo gol uruguaio, nos minutos finais
da partida. Silêncio no maior do mundo. O Uruguai ganhava
seu segundo título mundial e o Brasil teria que esperar um
menino que em 1950 tinha nove anos, morava em Bauru, tinha
por apelido Gasolina, mas se chamava Edson, para ganhar a sua
primeira Copa ainda naquela década.
Em abril de 1950 também foi feita a primeira transmissão
televisiva, realizada em São Paulo, pelos Diários Associados, de
Assis Chateaubriand. Pouco depois, em setembro, era
inaugurada a TV Tupi, o primeiro canal de televisão brasileiro.
Invenção dos anos 20, a tevê já era bem conhecida nos Estados
Unidos e na Alemanha, onde grandes transmissões já haviam
ocorrido, como a dos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936. A
tela em preto e branco nem havia chegado ao Brasil, mas a RCA
já anunciava em 1949, nos EUA, a criação da tevê em cores,
adotada a partir de 1954.
O início da década também é marcado por grandes
transformações sociais no Brasil. Um grande êxodo migratório
com direção ao Sul do país tem início e as grandes cidades do
Sudeste do país como São Paulo e Rio de Janeiro têm uma
explosão demográfica conhecida apenas no final do século XIX
e início do século XX com a chegada de imigrantes de toda a

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Caminhando e Cantando

parte do mundo, em busca de trabalho nas fazendas de café do


interior.
A cidade de São Paulo tinha pouco mais de um milhão e 300
mil habitantes em 1940. Dez anos depois, a cidade alcançou
quase dois milhões e 200 mil habitantes e em 1960, a cidade já
tinha quase três milhões e 800 mil habitantes. Todo esse
crescimento demográfico resultou em um mistura ainda maior
de culturas na maior cidade do país.
João Rubinato era um comediante da São Paulo do início da
década de 1950, ele fazia seus personagens no rádio e com eles
alcançou o sucesso, mas a consagração de Rubinato viria com o
nome de um famoso personagem seu. Ele assumiu o nome de
Adoniran Barbosa e passou a cantar as coisas da cidade. Ele fez
nascer o samba tipicamente paulistano com o forte sotaque e
com o humor que lhe era peculiar. Ele compôs sambas que
entraram na história não só do cancioneiro paulistano, mas do
repertório musical de todo o Brasil.
Em “Saudosa Maloca”, uma de suas músicas mais
conhecidas, o cantor que completaria 100 anos em 2010 contava
sobre essa rápida urbanização da cidade de São Paulo e sua
verticalização com as casas dando lugares a enormes prédios
que aos poucos tomariam conta da cidade.

SE O SENHOR NÃO TÁ LEMBRADO


DÁ LICENÇA DE CONTAR
QUE ALI ONDE AGORA ESTÁ
ESTE "ADIFÍCIO ARTO"
ERA UMA CASA "VÉIA", UM PALACETE ASSOBRADADO
FOI AQUI SEU MOÇO
QUE EU, MATO GROSSO E O JOCA
CONSTRUIMOS NOSSA "MALOCA"
MAS UM DIA

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Marco Antonio Gonçalves

"NÓIS" NEM PODE SE "ALEMBRÁ"


VEIO OS "HOME" COM AS FERRAMENTA
E O DONO "MANDÔ DERRUBÁ"
PEGUEMOS TODAS NOSSAS COISAS
E FUMOS PRO MEIO DA RUA
"APRECIÁ" A DEMOLIÇÃO
QUE TRISTEZA QUE "NÓIS" SENTIA
CADA TÁUBA QUE CAÍA
DOÍA NO CORAÇÃO
MATOGROSSO QUIS GRITAR
MAS EM CIMA EU FALEI
OS "HOME TÁ CÁ" RAZÃO
"NÓIS ARRANJA" OUTRO LUGAR
SÓ "SE CONFORMEMO"
QUANDO O JOCA FALOU
DEUS DÁ O FRIO CONFORME O "COBERTÔ"
E HOJE "NÓS PEGA" A PAIA
NAS GRAMA DO JARDIM
E PRA ESQUECER "NÓIS CANTEMOS" ASSIM:

SAUDOSA MALOCA, MALOCA QUERIDA


DIM DIM "DONDE NÓIS PASSEMO" OS DIAS FELIZ DE NOSSA VIDA

SAUDOSA MALOCA, MALOCA QUERIDA


DIM DIM "DONDE NÓIS PASSEMO" OS DIAS FELIZ DE NOSSA VIDA

Adoniran Barbosa soube como ninguém escrever sobre as


coisas da capital paulista. Além de “Saudosa Maloca”, no
mesmo período ele comporia “Trem das Onze”, uma das
músicas mais conhecidas do Brasil e que seria marco da cidade
de São Paulo até hoje (Não posso ficar nem mais um minuto

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Caminhando e Cantando

com você... Moro em Jaçanã. Se eu perder esse trem que sai


agora às 11 horas, só amanhã de manhã).
Em 1951, a expansão da capital paulista estava em pleno
vapor. A cidade já dava mostras de que ia se transformar na
maior cidade da América, como é hoje em dia. Os casarões da
antiga São Paulo do período imperial davam lugar a construções
modernas e prédios enormes. Muitos desses casarões estavam
abandonados e eram habitados por migrantes que chegavam a
São Paulo sem ter onde ficar. É sobre essa situação bem típica
de cidades que se industrializou rapidamente que trata a letra de
Adoniran.
De letra melancólica e melodia fácil, a música simboliza
mais do que São Paulo do início da segunda metade do século
XX. Ela também é o retrato de todas as grandes cidades do
mundo pós-guerra, do mundo do início da Guerra Fria. Outro
sucesso do início dos anos 50 que se tornou um clássico foi a
música "Chiquita Bacana", de João de Barro, o Braguinha, e
Alberto Ribeiro, cantada por Emilinha Borba e destaque do
carnaval de 1950 (Chiquita bacana lá da Martinica.Se veste com
uma casca de banana nanica).
Emilinha e Marlene, sua famosa rival, despontaram nessa
época. Era a fase áurea dos programas de auditório no rádio.
Como elas, o público cultuava artistas como Luiz Gonzaga, o
“rei do baião”, que do rádio passaria a gravar seus discos,
emplacando hits nordestinos, como “Assum Preto” e o xote
“Cintura Fina”. A música de Gonzagão que ficou marcada para
sempre foi “Asa Branca”. Essa música, que foi exaustivamente
regravada, nos conta a migração das pessoas do nordeste
brasileiro para o sul. É a história de um homem que precisa
deixar o nordeste por causa da seca que sempre assolou a região.
A música passou de popular a cult ao longo dos anos e hoje é
referência quando se trata de música regional brasileira.

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Marco Antonio Gonçalves

Nessa mesma época, também começavam a atrair a atenção


popular, os músicos Jackson do Pandeiro e a dupla Alvarenga e
Ranchinho, com letras satíricas inspiradas na cena política.
Tonico e Tinoco também já faziam sucesso cantando os causos
do interior do Brasil.
O disco de vinil tinha sido lançado em 1948, deixando meio
obsoletos os antigos e pesadões 78 rotações. Além do baião, e
da música caipira, o samba-canção, mais romântico, revelava
Dolores Duran, Ângela Maria (apelidada Sapoti por Getúlio
Vargas) e Cauby Peixoto, entre outras celebridades da música.
Dolores Duran morreu jovem, aos 29 anos, mas com um seleto
repertório e com parcerias importantes, como o jovem pianista
Antonio Carlos Jobim, que compôs o samba-canção “Estrada
do Sol”, para letra de Dolores. Essa uma das primeiras músicas
gravadas de Tom.
Na primeira metade dos anos 50 também se destacaram
Francisco Alves, conhecido pela alcunha de o "Rei da Voz", o
maior cantor popular da época de ouro do rádio. Ele morreu
carbonizado em um acidente na Via Dutra, na divisa de
Pindamonhangaba e Taubaté. Um caminhão entrou na
contramão e colidiu de frente com seu carro.

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Caminhando e Cantando

Capítulo 2
- A Bossa Nova
Tendo tudo isso como pano de fundo, vamos parar de
respeitar a cronologia e voltar um pouco no tempo até 1956. O
cenário é a Avenida Atlântica, 2853, apartamento 303, coluna
Louvre, do edifício Palácio Champs Élysées, no bairro de
Copacabana, no Rio de Janeiro. O imóvel é de propriedade do
advogado Jairo Leão e sua esposa, conhecida como Dona
Tinoca.
Eles têm duas filhas, Danuza, a mais velha, modelo e casada
com Samuel Wainer, diretor do jornal Última Hora, o jornalista
mais amado e odiado do país. A mais nova é Nara, nascida em
19 de janeiro de 1942 em Vitória no Espírito Santo. Com dois
anos viera com a família para a então capital federal. Ela adora
música e tem aulas de violão com Patrício Teixeira, professor
renomado e talentoso músico. Não era comum àquela época,
famílias como a de Nara deixar seus filhos, principalmente
filhas, aprenderem algum instrumento. Mulher ainda era vista
apenas como a rainha do lar e era em casa que deveria ficar. A
mulher daquela época ficaria imortalizada na canção de Mário
Lago e Ataulfo Alves, “Amélia”. Mas a família da menina de
Copacabana era liberal para os padrões.
No livro “Chega de Saudade - A História e as Histórias da
Bossa Nova”, que é considerado uma obra de referência quando
o assunto é bossa nova, o escritor Ruy Castro conta que a
liberdade que Dona Tinoca e Dr. Jairo davam às filhas
impressionava muito a todos que os conheciam. “Danuza saíra
de casa aos 18 anos, tornara-se manequim em Paris, namorara
um galã barra-pesada do cinema francês e, de volta ao Rio, aos

29
Marco Antonio Gonçalves

20 anos, casara-se com Samuel Wainer, o principal jornalista do


país.”
A mais nova não era tão independente e ousada como a irmã,
mas liberdade não lhe faltava. “Nara, nove anos mais nova que
Danuza, não era do balacobaco como a irmã, mas fora educada
na mesma liberdade. Não precisava ter hora pra dormir ou
acordar, nem para jantar ou fazer os deveres, nem para ir ao
cinema ou voltar da praia. Estudava porque queria e se quisesse
deixar os estudos, ninguém a impediria (fez isto aos 16 anos, em
1958) e se quisesse namorar algum garoto da vizinhança,
também nenhum problema.”
O cúmulo do liberalismo era a menina receber ensinamentos
musicais. É claro que o mesmo não acontecia com a tradicional
família Menescal, também residente no bairro de Copacabana. O
menino Roberto Menescal era muito amigo de Nara Leão.
Amizade colorida, digamos. Eles sempre estavam juntos. No
cinema, na escola, na praia, em casa. Com o passar do tempo, a
amizade cresceu tanto que o romance foi ficando em segundo
plano. Amizade que duraria até o fim da vida de Nara, embora,
interrompida durante alguns anos, depois da passagem do
furacão Maysa pela bossa nova.
Menescal não podia tocar violão em casa. Seus pais
consideravam que a música não era para se levar a sério.
Roberto teria que estudar e se tornar doutor, mas ele gostava era
de música. Ele e Nara resolveram então se reunir na casa da
menina para fazer e ouvir música. Ouviam de tudo à época:
boleros, sambas, jazz, blues... Tudo o que havia de bom naquele
tempo.
Eles foram crescendo e a turma também cresceu. Reuniam-
se na casa da menina, além dela e de Menescal, os violonistas
Carlos Lyra e Chico Feitosa, o violonista e pianista Oscar Castro
Neves e seus irmãos Mário, Leo e Iko, também músicos, o

30
Caminhando e Cantando

repórter e letrista Ronaldo Bôscoli, os pianistas Luiz Eça e Luiz


Carlos Vinhas, o flautista Bebeto Castilho, o contrabaixista
Henrique, o baterista João Mário e outros músicos pertencentes
à jovem burguesia carioca. As reuniões eram regadas a muito
suco, pelo menos em 1956, já que aquela era uma casa de
família e Nara tinha apenas 14 aninhos.
Ela ainda não cantava, era dona de uma timidez enorme, mas
possuía um charme que lhe era peculiar, um misto de delicadeza
e insensatez. Tinha lindos joelhos. Ronaldo Bôscoli diz no livro
“Eles e Eu – Memórias de Ronaldo Bôscoli”, em depoimento a
Luiz Carlos Maciel e Ângela Chaves, que se apaixonou por ela
ao bater à porta de seu apartamento, pois a menina veio ao seu
encontro com um vestido que deixava “descoberto seus lindos
joelhos, que foram motivos de muitas crônicas, versos e suspiros
gerais”.
Nara e Bôscoli começaram a namorar em 1957, ela então
com 15 anos, ele com 28. Desse namoro surgiram várias
canções célebres como “O Barquinho”, de Menescal e Bôscoli e
“Lobo Bobo”, também da dupla. Nara só gravaria uma música
dos dois na década de 1980, após reatar a amizade com
Menescal.
A turma da casa da Nara Leão, nome pelo qual ficou
conhecido o grupo que se reunia na casa da cantora, procurava
algo novo, estavam cansados da mesma música de sempre. Até
que um dia, Menescal chegou ali com um baiano de jeito tímido,
modo de cantar baixinho, mas com uma batida de violão
impressionante e revolucionária. Eles estavam diante do
“messias encarnado” que, como muito bem diz Ruy Castro, “ao
invés de tábuas da lei, carregava um violão embaixo do braço”.
Ficaram loucos e fascinados por João Gilberto, começaram
então a segui-lo e idolatrá-lo e os que continuam por aqui o
fazem até hoje.

31
Marco Antonio Gonçalves

No início de 1958, foi lançado o disco de Elizeth Cardoso,


“Canção do amor demais”, com músicas da dupla Tom Jobim e
Vinicius de Moraes. João Gilberto tocou violão em algumas
faixas, inclusive em “Chega de Saudade”. Era a primeira vez
que se ouvia a batida do que viria a ser chamado bossa nova.
É importante lembrar que cantores, como Maysa, já haviam
gravado canções de Tom e Vinicius, mas ainda não era bossa
nova. A bossa nova só pode ser ouvida na interpretação de João
Gilberto no disco de Elizeth Cardoso. Em agosto do mesmo ano,
a Odeon lança o disco 78 RPM, “Chega de Saudade” de João
Gilberto, marco do início da bossa nova. Onde João mostrava a
batida que ele havia inventado.
João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, um dos maiores
nomes da música brasileira, tido como o “papa da bossa nova”
nasceu em 1931, na cidade sertaneja de Juazeiro, na Bahia. Ele
ganhou o primeiro violão aos 14 anos e nunca mais largou o
instrumento. Aos 18 anos foi embora para Salvador tentar a vida
como cantor. Logo depois se mudou para o Rio de Janeiro onde
se consagraria. Na capital da Guanabara entrou para a banda
Garotos da Lua, de onde foi expulso por indisciplina e viveu os
anos seguintes com pouquíssimo dinheiro. Até que foi
apresentado a Antônio Carlos Jobim, pianista e compositor.
Com Tom Jobim sua vida começou a mudar. Via nele, a
esperança de se tornar um cantor de sucesso. As músicas de
Tom se encaixavam no seu jeito de tocar. Depois conheceu
Vinicius de Moraes, pouco tempo mais tarde encontrou Roberto
Menescal e através dele, toda a turma da casa de Nara. Estava
formado o grupo de músicos que faria a bossa nova entrar para a
história. Mas eles ainda não sabiam disso.
O disco primogênito de João continha além da canção-título
“Chega de Saudade” de Tom e Vinicius, também “Desafinado”
de Tom e Newton Mendonça, “Bimbom” do próprio João e

32
Caminhando e Cantando

outras músicas de compositores populares da década de 1930,


todas em ritmo de bossa nova. André Midani, que nasceu na
Síria, cresceu na França e se fez profissionalmente no Brasil e
foi presidente de grandes companhias de música, contou em sua
biografia “Música, Ídolos e Poder” que apresentou esse disco a
algumas gravadoras e recebeu como resposta: “Isso é música de
“viado”. Esse álbum foi o marco inicial da bossa nova e até hoje
é considerado um dos melhores da música brasileira. Com esse
disco, a bossa nova ganharia o mundo e influenciaria outros
ritmos, até mesmo o jazz norte-americano, uma das influências
para a criação do ritmo brasileiro.
A bossa nova simboliza para a música brasileira o que a
tomada da Bastilha significa para a Revolução Francesa. Separa
a antiga música, da música moderna. Em “Uma História da
Música Popular Brasileira”, o escritor Jairo Severiano separa a
música em quatro tempos. O último deles começa justamente
em 1958, com o lançamento do disco de João. O autor dá a essa
fase o nome de modernização e ela segue até os dias atuais. A
partir deste ponto, a música brasileira começou a ser feita, vista
e ouvida de modo diferente. Deixamos as raízes para começar a
fazer algo novo. Algo que o samba antigo não havia feito. Esse
momento era necessário para a música do Brasil, que começava
a perder espaço para as músicas americanas e logo perderia
para as britânicas. E João Gilberto foi a pessoa escolhida para
dar o pontapé nessa modernização de nossa música.
Praticamente todos os músicos que viriam a escrever seu
nome na música brasileira nas décadas seguintes foram
diretamente influenciados pela música de João, como Chico,
Caetano, Edu, Tim e Milton. Até o rock da geração dos anos
1980 se deixou influenciar pela bossa nova, como se vê em
composições de Cazuza e de outros nomes.

33
Marco Antonio Gonçalves

A música nacional dá um salto com a voz doce e baixinha de


João e seu violão revolucionário, que somados ao piano e
música de Tom e as letras de Vinicius fariam sucesso no mundo
inteiro e desbancariam até os Beatles.
Nelson Motta é jornalista, compositor, escritor, roteirista e
produtor musical. Um dos homens mais influentes no cenário
musical brasileiro, ele participou dos mais importantes
movimentos musicais brasileiros da última metade do século
passado e continua participando intensamente do mundo da
música no Brasil. Hoje, além de escrever para diversos jornais
do país, ele tem uma coluna semanal no Jornal da Globo, onde
aborda a música mundial, além de outros gêneros de arte.
Nelson Motta (ou Nelsinho, como é conhecido no meio
musical) viveu a Bossa Nova intensamente. Morador de
Copacabana, ele conheceu de perto os maiores nomes do gênero
e mesmo sem cantar se tornou um deles. Em entrevista ao autor
destas linhas disse que o primeiro disco de João Gilberto foi
essencial para a Bossa Nova. “A batida da Bossa nova inventada
pelo João Gilberto foi fundamental, sem aquela batida não existe
Bossa Nova.”
A cantora Maysa, ainda com o sobrenome Matarazzo, na
década de 1950 era uma das maiores cantoras do Brasil. Fazia
tremendo sucesso com suas músicas românticas. Conhecida
como “Rainha da Fossa”, foi uma das primeiras grandes
intérpretes do país a gravar Tom e Vinícius em 1957 e a
reconhecer que havia algo de diferente naquele violonista baiano
tímido, que mal falava. Lira Neto, biógrafo de Maysa conta
como a cantora conheceu João Gilberto, dois anos antes do
lançamento do lendário disco, no livro “Maysa – Só Numa
Multidão de amores”.
“A própria Maysa garantia que bem pouca gente ouvira falar
de um baiano muito tímido, que tocava um violão diferente de

34
Caminhando e Cantando

tudo que se ouvira até ali. Maysa teria ficado tão impressionada
com o rapaz que o levou para participar de seu programa na TV
Record, em São Paulo.”
Em uma de suas últimas entrevistas, Maysa conta em
detalhes esse encontro: “A direção do programa não gostou da
ideia de eu cantar acompanhada apenas por um violonista. Pois
eu tinha uma orquestra inteira só para mim. Mas, mesmo assim,
consegui que ele tocasse em uma das músicas. O rapaz ainda era
completamente desconhecido e, logo percebi, era também muito
estranho. Fomos do Rio de Janeiro a São Paulo de automóvel e
durante os mais de quatrocentos quilômetros da viagem, não deu
uma única palavra.” Lira Neto continua a história: “Na hora de
apresentá-lo a Eduardo Moreira, produtor do programa, Maysa
virou-se para aquele moço franzino, de camisa esporte e um
violão debaixo do braço e indagou: “Escuta, como é mesmo seu
nome?” “João Gilberto”, ele respondeu bem baixinho.”
A bossa nova renovou o estilo de música no Brasil. Ela
trouxe letras mais alegres e que falavam de coisas como
beijinhos, peixinhos, sorriso, flor e mar, enquanto o samba de
morro abordava temas mais profundos e suas letras falavam da
realidade do morro e das favelas cariocas. Um dos maiores
exemplos disso é a música “Chega de Saudade” de Tom e
Vinicius que se imortalizou na voz sussurrada de João Gilberto
no disco de mesmo nome.

VAI MINHA TRISTEZA,


E DIZ A ELA QUE SEM ELA NÃO PODE SER,
DIZ-LHE, NUMA PRECE
QUE ELA REGRESSE, PORQUE EU NÃO POSSO MAIS SOFRER.
CHEGA, DE SAUDADE
A REALIDADE, É QUE SEM ELA NÃO HÁ PAZ,
NÃO HÁ BELEZA

35
Marco Antonio Gonçalves

É SÓ TRISTEZA E A MELANCOLIA
QUE NÃO SAI DE MIM, NÃO SAI DE MIM, NÃO SAI
MAS SE ELA VOLTAR, SE ELA VOLTAR
QUE COISA LINDA, QUE COISA LOUCA
POIS HÁ MENOS PEIXINHOS A NADAR NO MAR
DO QUE OS BEIJINHOS QUE EU DAREI
NA SUA BOCA,
DENTRO DOS MEUS BRAÇOS
OS ABRAÇOS HÃO DE SER MILHÕES DE ABRAÇOS
APERTADO ASSIM, COLADO ASSIM, CALADO ASSIM
ABRAÇOS E BEIJINHOS, E CARINHOS SEM TER FIM
QUE É PRA ACABAR COM ESSE NEGÓCIO DE VOCÊ VIVER SEM MIM.
NÃO QUERO MAIS ESSE NEGÓCIO DE VOCÊ LONGE DE MIM...

“Chega de Saudade” (o disco e a canção) não é só um marco da


música nacional, mas também é mundialmente reconhecido com
um dos momentos mais importantes da história desse gênero de
arte.
Como já foi dito, essa música mais leve e mais doce só foi
bem recebido por que o Brasil vivia um momento de raro
florescimento cultural e político, durante o governo JK. Tudo
que era bom e novo, recebia o apelido de “Bossa Nova”.
Juscelino recebeu a alcunha de “Presidente Bossa Nova” e
ganhou uma música de Juca Chaves com o mesmo nome.

BOSSA NOVA MESMO É SER PRESIDENTE


DESTA TERRA DESCOBERTA POR CABRAL
PARA TANTO BASTA SER TÃO SIMPLESMENTE
SIMPÁTICO, RISONHO, ORIGINAL.
DEPOIS DESFRUTAR DA MARAVILHA
DE SER O PRESIDENTE DO BRASIL,

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Caminhando e Cantando

VOAR DA VELHACAP PRA BRASÍLIA,


VER A ALVORADA E VOAR DE VOLTA AO RIO.
VOAR, VOAR, VOAR, VOAR,
VOAR, VOAR PRA BEM DISTANTE,
ATÉ VERSALHES ONDE DUAS MINEIRINHAS VALSINHAS
DANÇAM COMO DEBUTANTE, INTERESSANTE!
MANDAR PARENTE A JATO PRO DENTISTA,
ALMOÇAR COM TENISTA CAMPEÃO,
TAMBÉM PODER SER UM BOM ARTISTA EXCLUSIVISTA
TOMANDO COM DILERMANDO UMAS AULINHAS DE VIOLÃO.

ISTO É VIVER COMO SE APROVA,


É SER UM PRESIDENTE BOSSA NOVA.
BOSSA NOVA, MUITO NOVA,
NOVA MESMO, ULTRA NOVA!

Juca Chaves, cantor e humorista, não tinha o vozeirão da bossa


velha e alguns o ligaram equivocadamente ao grupo de João
Gilberto. Nessa música de grande sucesso, ele retratou a vida do
presidente JK. “Risonho, simpático e original” traduzia bem o
que era o presidente. Um homem de bem com a vida, que
conduzia o país com alegria e mostrava isso para o povo. Foram
contadas suas idas e vindas de Brasília que estava em
construção. JK, às vezes, ia de manhã para o canteiro de obras
da nova capital, despachava do Catetinho, local especialmente
construído para o presidente, e voltava à noite para o Rio, indo
dormir na Residência Oficial, o Catete. A quarta estrofe remete
ao fato de JK mandar sua filha Maristela ao dentista em Belo
Horizonte de avião particular. Isso não era problema, afinal a
família Kubtscheck era queridíssima do povo. “Tenista
campeão” se referia a Maria Esther Bueno, campeã do torneio
de Wimbledon em 1958 e 1959 e do Aberto dos Estados Unidos

37
Marco Antonio Gonçalves

(US Open) em 1959 e que se tornou amiga da família


presidencial. Já “Dilermando” de que se refere a música é o
violonista Dilermando Reis, um dos maiores do país e também
íntimo de JK.
Bossa nova virou nome de geladeira, de carro, de presidente,
de tudo que agora era novidade no Brasil. Esse nome, “Bossa
Nova” nasceu por acaso graças à turma que freqüentava o
apartamento de Nara Leão.
Sérgio Cabral, jornalista e amigo íntimo da cantora, contou
esse episódio em seu livro “Nara Leão – Uma Biografia”.
Segundo ele, Moisés Fuks, diretor artístico do Grupo
Universitário Hebraico do Brasil, foi a uma reunião no
apartamento de Nara e ficou entusiasmado com o que lá ouviu.
Conversou com Ronaldo Bôscoli sobre a possibilidade do grupo
se apresentar no colégio. Bôscoli achou uma grande ideia e
convidou Silvinha Telles para ser a estrela da apresentação, já
que ela era a única famosa do grupo.
“Apenas o seu nome figurou nos cartazes de divulgação:
“Silvia Telles e um grupo bossa nova”, informavam os
cartazes”. O “Grupo Bossa Nova” poderia identificar o conjunto
de Roberto Menescal, ainda sem nome (piano, Luis Carlos
Vinhas; sax e flauta, Bebeto; bateria, João Mário; contrabaixo,
Henrique; e violão, Menescal), que acompanharia Silvinha, ou,
além dele, Carlos Lyra e Chico Feitosa que também se
apresentaram.
Ao chegar ao local do show, Menescal quis saber que “grupo
bossa nova” seria aquele e Moisés Fuks explicou que, não
sabendo os nomes deles, achou melhor adotar aquela solução.
“Mas, se vocês quiserem, eu mudo”, defendeu-se Fuks. “Pode
deixar assim mesmo”, liberou o violonista. O fato é que a partir
dali, a expressão bossa nova passou a identificar a música e os
músicos comprometidos com o movimento.”

38
Caminhando e Cantando

Nelson Motta afirmou que Tom Jobim é muito importante


para a bossa nova, mas que João Gilberto é venerado com toda
razão por todos que gostam do gênero. “Tom Jobim é um
compositor fabuloso, um dos maiores do século XX, comparado
a Cole Porter, Mile Davis e alguns outros, mas ele não inventou
nada de novo. Quem inventou uma coisa de novo foi o João
Gilberto. Aliás, o Tom Jobim com as músicas que fez nem
precisava ter inventado nada de novo. O inventor da Bossa Nova
é o João Gilberto”
Ruy Castro no fascículo dedicado à Nara Leão da “Coleção
Folha 50 Anos de Bossa Nova” lançado em 2008, enfatizou que
“fique claro de uma vez por todas que a bossa nova não nasceu
ali, ao redor de Nara. A idealização da bossa nova como uma
música criada por meninos quase amadores no apartamento de
uma adolescente é fascinante, mas é até ofensiva para com as
centenas de profissionais que, pelo menos dez anos antes, a
partir do pós-guerra já estavam contribuindo para a
modernização da música brasileira – ao mesmo tempo em que
tinham de dar duro na noite e tocar toda espécie de música para
pagar o aluguel”.
Ruy Castro destaca alguns desses músicos: Radamés
Gnatalli, Dick Farney, Lúcio alves, Luís Bonfá, Antonio Maria,
Johnny Alf, Newton Mendonça, Antônio Carlos Jobim, João
Donato, Nora Ney, Dolores Duran, Maysa, Silvinha Telles e
tantos outros que deixaram registrados seus nomes e suas obras
na história da música brasileira.
Nesse período, final dos anos 50, os jovens que haviam
nascido na década anterior e que começariam a escrever suas
histórias na música brasileira estavam atentos a tudo e ouviam e
veneravam João Gilberto, como todo mundo. Na Bahia, terra
natal de João, na pequena Santo Amaro da Purificação, Caetano
e sua irmã Maria Bethânia eram apaixonados pela música de

39
Marco Antonio Gonçalves

João. Também na Bahia, Gilberto Gil, tinha igual idolatria pelo


cantor baiano. No Rio de Janeiro, 4 amigos, cantores e
compositores, também eram grandes admiradores da música
inventada por João Gilberto. Seus nomes: Roberto, Erasmo,
Sebastião e Jorge.

- Nasce um rei

Nos últimos anos da década de 1950, o capixaba Carlos


Imperial era famoso no Rio por ser cafajeste e por seu programa
de auditório na TV e no rádio. Ele era detestado pela “Turma da
Bossa Nova”. Imperial ainda agenciava cantores e era produtor
musical. Ele surfava na onda do rock de Elvis, que no Brasil
ainda não tinha vingado.
Em “Noites Tropicais” Nelson Motta conta que certo dia
Imperial chegou a uma dessas festas do pessoal da bossa nova
em que o próprio Nelson estava. Todos olharam desconfiados e
com desprezo para a figura grande e gorda de Imperial. Ele
chamou a atenção de todos e disse que tinha que apresentar um
cantor que seria o príncipe da bossa nova.
“Meus Jovens, belos e queridos amigos, bossa nova é
silêncio. Si-lên-cio. E eu peço silêncio a vocês para apresentar o
futuro príncipe da bossa nova”, disse.
O cantor que Imperial trazia era “magro e tímido, com
cabelos crespos e escuros e pele muito pálida, tinha olhos
profundos e tristes e sorria nervosamente”.
“O jovem conterrâneo de Imperial cantou, com seus lábios
finos e um fio de voz, bem afinadinho e até com certo charme,
duas músicas de seu mentor, que ele tinha acabado de gravar. O
rapaz imitava escancaradamente João Gilberto e a música era
uma sub-bossa imperialesca”.

40
Caminhando e Cantando

“As jovens senhoras adoraram. Foi a primeira vez que ouvi


Roberto Carlos”, escreveu Nelson Motta. Roberto Carlos
chegara ao Rio em meados da década de 1950. Ali, no bairro da
Tijuca, conheceu Três adolescentes, como ele: Erasmo Esteves,
Jorge e Sebastião Maia. Os três eram fascinados por João
Gilberto e pela Bossa Nova, além de também gostarem de
Chuck Berry, Elvis Presley e Little Richard.
Tião fundou uma banda e pôs nela o nome de The Sputiniks,
nome do satélite espacial russo que fora para lançado meses
antes. Chamou dois amigos, Arlênio Lívio e Wellington Oliveira
para acompanhá-lo. Mas ainda faltava gente na banda da Tijuca.
Arlênio tinha um amigo que apresentou a Tião, a fim de
entrar no conjunto. Tião achou o amigo de Arlênio meio magro,
com olhos tristes e que ainda por cima puxava de uma perna.
Mas ele gostava de rock e cantava bem. Era o que interessava
para Tião. Ele aceitou Roberto Carlos no grupo. Roberto chegou
e se assustou com a voz de trovão do mulato gordinho
Na biografia de Tim Maia, Nelson Motta conta: “Os ensaios
foram tensos, com muitas brigas na escolha do repertório, dos
solistas e de quem tocaria violão. A solução foi manter os dois,
com Tião tocando o mais rítmico e Roberto o mais harmônico.
Roberto sabia muito bem o que queria: o mesmo que Tião, ser
um solista, um cantor popular. The Sputniks era apenas uma
plataforma de lançamento, os dois queriam voar alto.” E
voaram.
Fizeram algumas apresentações na igreja, mas as brigas eram
inevitáveis. Por que eram dois gênios da música juntos e por que
Tião gostava de uma encrenca. Mas antes da briga que acabaria
com o grupo, eles tocaram no “Clube do Rock”, programa de
Carlos Imperial na TV. Eles foram junto com outros dois
amigos Erasmo e Jorge Ben. Lá conheceram outros cantores e
aspirantes a cantores que se tornariam notáveis, como Wilson

41
Marco Antonio Gonçalves

Simonal, um mulato que Tião foi com a cara logo da primeira


vez.
Foi imperial que sugeriu que Tião trocasse de nome. “Tião
não era nome de artista de sucesso”. Ele sugeriu Tim. Tião
achou meio coisa de bicha, mas aceitou. A partir dali ele era
Tim Maia. Roberto pediu para Imperial deixá-lo cantar algumas
músicas de Elvis, separado dos Sputiniks. Imperial concordou,
mas Tião achou aquilo a mais alta traição e foi logo dizendo:
“Seu filho-da-puta! Eu boto você no meu conjunto e você
vai cantar sozinho?”
Não adiantou Roberto explicar. Os Sputiniks deixaram de
existir ali. E cada um seguiu seu rumo.
Tião achava que não ia dar certo no Brasil e foi tentar a vida
nos Estados Unidos, em 1959. Na terra de Elvis, depois de
algum tempo, Tião foi preso por ter cometido vários pequenos
delitos. Erasmo sempre se comunicava com o amigo através de
cartas e no final assinava: “Erasmo Gilberto”, devido a sua
paixão pela música de João Gilberto. O amigo respondia
assinando “Tim Jobim”.
Enquanto Tim estava no exterior, Erasmo e Roberto
começaram sua parceria vitoriosa. A primeira canção que fez
sucesso foi a versão de “Splish Splash” na voz de Roberto. No
livro “Vale Tudo – O som e a Fúria de Tim Maia”, Nelson
Motta (sempre ele) conta que Tim, em Nova Iorque, não
acreditou quando recebeu uma carta de Erasmo dizendo que
uma música sua e de Roberto estava estourando no Brasil
inteiro. “Não era mais “Erasmo Gilberto”, agora era Erasmo
Carlos”.
Em “Noites Tropicais”, o autor conta o que Erasmo fez
quando ganhou seu primeiro dinheiro com a sua música: “Mãe,
assaltei a padaria, foi o que Erasmo anunciou aos gritos

42
Caminhando e Cantando

chegando em casa e jogando um bolo de dinheiro em cima da


mesa.”
“Vá devolver já”, rebateu Dona Diva, apontando para o
dinheiro e ameaçando Erasmo com a vassoura”.
“É mentira! É mentira! Ganhei com a minha música”, ele
respondeu, abraçando a mãe”.
Erasmo Carlos gastou tudo em roupas.
Em 1962, o cenário de rock no mundo havia ganhado muito
mais força. De Liverpool, cidade portuária a oeste da Inglaterra,
vieram os garotos que se tornariam a mais famosa banda do
mundo.
John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo
Starr formavam a “fab four”: The Beatles. Com o single “Love
me Do”, canção composta por Lennon e McCartney, quando
tinham 18 e 16 anos, respectivamente, eles alcançaram o topo
das paradas britânicas e com o disco “Please Please Me”,
lançado no ano seguinte foram alçados à galeria de maiores
artistas da Terra, alcançando o topo das paradas americanas.
Mas nas lista das mais tocadas nos Estados Unidos, eles
enfrentaram uma concorrente de peso: Astrud Gilberto, mulher
de João, com sua gravação clássica de Garota de Ipanema, com
o marido ao violão e Tom Jobim ao piano, figurou entre as mais
tocadas durante todo o ano de 1962. Ultrapassando muitas vezes
os garotos de Liverpool.
Os Beatles foram, sem sombra de dúvida, o maior fenômeno
pop da história. Há historiadores que pregam que, com o
surgimento da banda, o período chamado contemporâneo, que
vigora desde a tomada da Bastilha na Revolução Francesa, deva
ser dividido em Antes dos Beatles e depois deles.
John, Paul, George e Ringo influenciaram muito do que
passou a ser feito no Brasil. Tudo a partir daí, exceto, talvez, a

43
Marco Antonio Gonçalves

MPB nascida nos festivais, nasceu com muita influência dos


quatro garotos geniais da cidade de Liverpool.
Os anos 60 começam no ritmo que terminou a década
anterior. JK cumpre a promessa e inaugura a capital no meio do
cerrado de Goiás, no dia 21 de abril de 1960, propositalmente,
no dia dedicado ao herói da Inconfidência Mineira, Tiradentes.
A construção da capital no meio do país tinha vários
objetivos. Um deles era povoar o interior do Brasil, onde existia
um imenso vazio demográfico. A cidade projetada pelo
arquiteto Oscar Niemeyer e planejada pelo urbanista Lúcio
Costa significava o futuro do Brasil, o Brasil Moderno. Foi a
grande obra do governo Juscelino e uma das maiores, senão a
maior, obra da história do Brasil. A construção da capital teve
também opositores que condenavam a obra, principalmente pela
grande quantia emprestada pelo presidente para custear a
construção da cidade.
A capital foi construída para ser o novo símbolo do país,
dinâmico e avançado. Os maiores legados de Brasília foram,
porém, um enorme rombo financeiro e o descontrole das contas
públicas. Além de desestabilizar os governos de Jânio Quadros e
de João Goulart, esses problemas foram indiretamente
responsáveis pela intervenção dos militares em março de 1964,
quando se encerrou a experiência democrática representada pela
república.
Ainda em 1960, foram realizadas eleições para a sucessão de
Juscelino. O presidente e seu partido o PDS, lançaram como
candidato, o Marechal Henrique Teixeira Lott, o mesmo que
tinha garantido a posse de Juscelino, cinco anos antes. O
candidato que tinha o apoio da UDN era o governador paulista
Jânio Quadros, que teve uma carreira meteórica. Em 15 anos de
vida pública, foi vereador, prefeito e governador de São Paulo,
tinha como símbolo da campanha a vassoura, que varreria a

44
Caminhando e Cantando

corrupção do Brasil. Com isso, a campanha de Jânio criou um


dos jingles eleitorais mais famosos da história do Brasil.

VARRE, VARRE, VARRE VASSOURINHA


VARRE, VARRE A BANDALHEIRA
QUE O POVO JÁ ESTÁ CANSADO
DE SOFRER DESTA MANEIRA
JÂNIO QUADROS É A ESPERANÇA
DESSE POVO ABANDONADO

JÂNIO QUADROS É A CERTEZA


DE UM BRASIL MORALIZADO
ALERTA, MEU IRMÃO
VASSOURA, CONTERRÂNEO
VAMOS VENCER COM JÂNIO .

Mesmo com alta popularidade, o presidente JK não consegue


eleger Lott. Jânio consegue uma vitória avassaladora nas urnas.
Ele obteve 48,26% dos votos, contra 32% do candidato da
situação.
Em 1961, ele assume o poder no Palácio do Planalto em
Brasília. É o primeiro brasileiro a assumir o cargo na nova
capital federal. Em janeiro, JK passa a faixa a Jânio. Somente
em 2003, quando Fernando Henrique Cardoso passou o cargo
para Luiz Inácio Lula da Silva, um presidente eleito pelo voto
do povo voltaria a passar a faixa presidencial a outro que chegou
ao poder democraticamente.
Em agosto de 1951, Jango –que fora vice de JK e se elegera
novamente para o cargo- viaja para a China, enquanto no Brasil
o presidente Jânio condecora com a maior honraria do governo
brasileiro, a Ordem do Cruzeiro do Sul, o maior guerrilheiro dos
últimos tempos, o médico argentino Ernesto “Che” Guevara.

45
Marco Antonio Gonçalves

Che foi peça fundamental na revolução socialista em Cuba


que culminou na deposição do presidente Fulgêncio Batista,
dando início à ditadura de Fidel Castro, em 1959. Fidel ficaria
no poder até 2007 quando renunciou por problemas de saúde,
mas passou o bastão a seu irmão Raul. Depois da revolução em
Cuba, Che voltou à América do Sul para tentar implantar o
comunismo, objetivo amplamente fracassado.
A cerimônia de condecoração de Che Guevara pelo governo
brasileiro foi feita à noite, longe dos holofotes da imprensa e
pouco divulgada. Ainda estávamos sob o contexto da guerra fria
e éramos controlados pela batuta do Tio Sam e do capitalismo.
Nunca um governo aliado aos Estados Unidos poderia dar
qualquer honraria ao mito e símbolo do socialismo, que era Che.
Dias depois, em 25 de agosto, Jânio renunciou ao mandato,
apenas oito meses depois de ter assumido o comando do país.
Dera um tiro no pé. Jânio que ganhara a eleição pouco tempo
antes por uma grande maioria usou o pretexto de que estava
sendo perseguido e sofrendo conspirações. Isso nunca vai se
saber, mas o que mais se especula é que esperava revolta
popular e que o congresso não aceitasse sua renúncia, queria
voltar a Brasília nos braços do povo, tal qual fez Getúlio,
voltando ao Catete sete anos antes, eleito democraticamente.
Com a morte de Getulio o país inteiro ficou comovido e Jânio
esperou que com sua renúncia acontecesse o mesmo. Queria
voltar com o aval do povo e com poder ainda maior.
É certo que podia estar sofrendo ameaças porque a ditadura
estava prestes a acontecer a qualquer momento. A revolução
seria pacífica ou sangrenta, dependeria da resistência. Mas o
fato mesmo, é que em apenas oito meses de mandato, Jânio
propôs medidas impopulares e incoerentes, a esmagadora
maioria a favor agora não o aprovava e o feitiço virou contra o
feiticeiro. Coisa que Jânio não previra.

46
Caminhando e Cantando

João Goulart ou simplesmente Jango, estava ainda em


viagem oficial à China de Mao Tse-tung, país comunista,
quando soube da renúncia de Jânio. Não tinha nada pior no
momento para ele, devido à posição política do país asiático e à
sua imagem de herdeiro da política de Vargas, o que não era
bem visto pelos militares. Queriam impedi-lo de assumir
alegando, entre outras coisas, estar “contaminado” pelo
socialismo.
Parte das forças armadas e grupos políticos não queriam
sequer que Jango desembarcasse no Brasil. Seu cunhado, o
então governador do Rio Grande do Sul, Leonel de Moura
Brizola, defendeu a posse de Jango, deu proteção a ele em seu
estado quando voltou ele voltou de viagem e assegurou a sua
posse como presidente da república, cargo que acompanhara de
perto com os dois últimos presidentes. Mas o seu mandato não
chegaria ao final.
Porém, Jango só foi aceito, depois de emenda constitucional
que instituiu no Brasil o parlamentarismo. Tancredo Neves foi
escolhido como primeiro-ministro e João Goulart pode enfim
assumir seu posto, mas com poderes limitados. Em janeiro de
1963, um plebiscito decidiu que o presidencialismo voltaria a
ser a forma de governo do país e Jango assumiu todo o controle
do Brasil, mas não ficaria assim por muito tempo.

47
Marco Antonio Gonçalves

- Muito além de Copacabana

Em 1960, a bossa nova já tinha conquistado o Brasil, pelo


menos a elite brasileira e partia para conquistar o mundo, com
Tom Jobim como maior maestro e compositor do ritmo,
Vinicius de Moraes como o poeta e João Gilberto, o inventor e
papa do gênero. A bossa nova nunca foi música de apartamento
e há muito deixara de ser música da Zona Sul. O morro e os
lugares mais pobres não a idolatravam ainda, mas já conheciam
o ritmo e o mundo estava começando a conhecer.
Tom, João e outros músicos como Menescal e Carlos Lyra
foram para os Estados Unidos levar a música que tanto sucesso
faria por lá. Fizeram shows memoráveis e no Carnegie Hall, em
Nova Iorque, fizeram o mais marcante de todos em 1962. Vários
ícones da música americana e mundial como Stan Getz, Ella
Fitzgerald, Sarah Vaughan e Frank Sinatra se interessaram pela
bossa nova e gravariam seus sucessos. O primeiro deles foi Stan
Getz, que com Tom Jobim ao piano e João Gilberto no violão e
na voz e, também a então esposa de João, Astrud Gilberto,
gravaria o memorável “Getz/Gilberto”, um dos maiores discos
da música mundial. João Gilberto, já famoso por suas
excentricidades e esquisitices, não poupou nem Getz de suas
ácidas críticas e, referindo-se a ele, disse a Tom: “Esse gringo é
muito burro”.
João também exigia o som perfeito (como ainda faz até
hoje), no qual era prontamente atendido, pois já era considerado
um gênio pelos americanos. João Gilberto foi para os Estados
Unidos em 1962 e por lá ficou. Hoje em dia são raras as vezes
que é visto em terras brasileiras e mais raro ainda, é ver um
show do cantor por aqui. Para Nelson Motta, a bossa nova
acabou quando Tom e João Gilberto se mudaram para os
Estados Unidos. “A Bossa Nova acabou em 1962, quando

48
Caminhando e Cantando

aconteceu o concerto em Nova Iorque. O Tom, o Vinicius e o


João Gilberto foram para os Estados Unidos e lá ficaram. Aqui
ficaram alguns outros que já não faziam bossa nova. Com o João
Gilberto fora não existe Bossa Nova”. Ele tem razão, embora, o
fim cronológico da bossa nova, isto é, quando ela deixou de ser
referência no Brasil e foi criado outro estilo, deve-se ao início da
chamada MPB em 1966, já no regime militar.
No início da década de 60, a rainha da fossa, a cantora
Maysa Monjardim, ex-Matarazzo, se juntou à bossa nova e à
Ronaldo Bôscoli, então noivo de Nara Leão. Em uma excursão
que fizeram a trabalho pela Argentina, o jornalista e a cantora
iniciaram um tórrido romance. No aeroporto, na chegada ao Rio,
Maysa informou a todos que estava noiva de Bôscoli, isso sem o
conhecimento do jornalista e muito menos de Nara, que assistiu
a tudo pela televisão.
Nara, claro, encerrou o romance com Bôscoli. Ela
interrompia ali, também, sua amizade com Roberto Menescal
que fazia parte da excursão de Maysa, assim como todo o grupo
de jovens que, poucos anos antes se encontravam na casa de
Nara e juntos descobriram a nova música de João Gilberto,
músicos como Luizinho Eça, Luis Carlos Vinhas, Bebeto
Castiho e outros Bossa-novistas. Nara pressupôs que Menescal e
os outros amigos soubessem do caso de amor entre a Maysa e
seu noivo e achou uma traição enorme por parte deles. Ela
voltaria a se relacionar com Menescal alguns anos mais tarde. O
compositor seria um de seus grandes parceiros e companheiros
até o fim da vida da cantora.
Maysa merece destaque quando o assunto é bossa nova. Sua
vida é recheada de histórias de amor e loucuras. Aos 17 anos,
casara com o milionário paulista André Matarazzo. Ela, desde
pequena, cantava em reuniões familiares. Aos 20 anos,
convenceu seu marido a deixá-la gravar um disco em que toda a

49
Marco Antonio Gonçalves

renda seria revertida ao recém-fundado Hospital do Câncer de


São Paulo. Separou-se do marido e das convenções que o
sobrenome lhe impunha, assim estava livre para se tornar a
maior estrela deste país e assim o fez, em meio à muita bebida e
a uma multidão de amores, de Bôscoli a Roberto Carlos, de João
Goulart a Júlio Medaglia. Maysa passou de rainha da fossa à
pioneira da bossa nova. Foi a primeira a gravar a dupla Bôscoli
e Menescal e já antes da explosão da bossa em 58 já havia
gravado várias músicas da mais famosa dupla do gênero, Tom e
Vinicius. Depois, Maysa convidou Ronaldo Bôscoli e sua turma
para gravarem com ela um disco, o primeiro que fugiria do
estilo dor-de-cotovelo e gravou o disco intitulado “O
Barquinho”, nome também, da música composta em
homenagem a Nara Leão. Depois disso, Maysa voltou ao seu
estilo original, mas não mais largou a bossa nova, que passou a
ser presença constante em sua discografia.
Além de romper com Bôscoli e Menescal, Nara, naquela
ocasião, rompeu também com a bossa nova. Ela se cansou de
falar de coisas belas como beijinhos, sol e mar. Queria retratar
os problemas vividos pelo povo, pelos mais pobres e inspirada
por uma visão mais nacionalista e popular, juntamente com
Vinicius de Moraes, Carlos Lyra e o grande violonista e agora
parceiro de Vinicius, Baden Powell, começou a criticar a
influência que a bossa nova sofria do jazz norte-americano e
“subiu o morro” para cantar músicas de sambistas como Zé
Ketti, Ernesto Nazareth e Nelson Cavaquinho.
Os sambistas tocavam músicas que abordavam temas mais
profundos e suas letras falavam da realidade do morro e das
favelas cariocas, diferente da Bossa Nova que trazia letras mais
doces falando de flores, sol, mar, natureza e paixão. Da mistura
desses assuntos surgiram discos memoráveis como “Afro-
samba”, de Vinícius e Baden Powell, e o primeiro LP de Nara.

50
Caminhando e Cantando

Ela nunca pensou em ser cantora profissional. Os amigos


não a incentivavam e ela mesmo não lhe dava crédito. Achava
que não tinha voz para cantar. Quando disse a Dr. Jairo Leão
que iria ser cantora, o pai respondeu: “Quer dizer então, minha
filha, que você vai ser puta?”. Isso por que o pai da cantora era
considerado liberal e era amigo de diversos músicos.
Ela foi pega totalmente de surpresa quando subiu no palco
pela primeira vez, segundo conta Sérgio Cabral na biografia de
Nara. Em uma das apresentações do grupo de Menescal com
Sílvia Telles, a cantora chamou Nara ao palco: “Meus amigos,
eu quero apresentar a vocês agora, um dos mais novos
elementos da bossa nova, que faz hoje sua primeira apresentação
ao público: Nara!”
Em depoimento ao MIS (Museu da Imagem e do Som) Nara
conta detalhes: “Quando Silvinha começou a falar, desconfiei
que era comigo. Tentei fugir a tempo, mas a porta do auditório
estava trancada. Então ela me chamou ao palco e eu entrei em
pânico. Cantei de costas para o público, quase chorando”.
O onipresente Nelson Motta estava em uma das primeiras
apresentações da cantora e relata sua impressão em seu livro
“Noites Tropicais”: “No auditório da Escola Naval foi onde vi e
ouvi pela primeira vez Nara Leão, timidíssima, cantando de uma
maneira que eu fiquei sem saber se gostava ou não. Mas sem
dúvida queria ver de novo: ela era de uma beleza estranha, tinha
uma bocona, uns olhos meio caídos que lhe davam um ar de
musa existencialista, um cabelo muito liso e muito escuro e uma
pele muito branca, um fio de voz e um charme discretíssimos,
sem dúvida era diferente. A cara da bossa nova”.
A cantora Fernanda Takai, vocalista da banda Pato Fu, fez
sucesso de público e de crítica ao lançar, em 2007, um disco
com músicas do repertório de Nara Leão. Ela disse em
entrevista que Nara “era uma excelente escolhedora de

51
Marco Antonio Gonçalves

repertório, escolhia repertório como ninguém, fazia discos


diferentes um do outro, mas com muita consistência. Eu acho
que das vozes femininas de Bossa nova ela é a mais importante,
tanto que no Japão ela continua muito conhecida até hoje, nos
Estados Unidos e Europa também. Ela já morreu faz vinte anos
e você viaja e olha nas prateleiras de Bossa Nova, Nara Leão
está lá com certeza, em maior quantidade que qualquer outro
artista”.
Nelson Motta disse em entrevista ao autor dessas linhas o
motivo do sucesso de Nara: “O sucesso deve-se à inteligência
dela, ao seu talento, à sua coragem e à independência que ela
tinha”. Ele também cita as várias fases por qual passou a
cantora. “A Nara foi mudando, se transformado ao longo do
tempo. Foi musa da Bossa Nova, depois foi musa do que seria
chamado MPB, participou do Tropicalismo, foi a primeira a
gravar Roberto e Erasmo, gravava versões de músicas
americanas e terminou gravando Bossa Nova, num tempo em
que ninguém mais queria saber de Bossa Nova. Nos anos oitenta
ela gravou coisas estupendas de Bossa Nova, pouco antes de
morrer”.
A renovação da canção brasileira foi o grande diferencial do
movimento bossa-novista e a mistura interessante e muito
peculiar entre ritmo, melodia e harmonia fez com que o gênero
ganhasse o mundo. O afastamento de Nara Leão da bossa nova
significava o fim do gênero no Brasil. A bossa nova ficou de
lado e parecia ser muito americanizada para o gosto de Nara e
também para Vinicius. Em 1963, Nara foi convidada pela
gravadora Elenco para gravar um LP. Ela estreou em disco o
mais distante possível de suas raízes bossa-novistas.
Nara formou um repertório com canções da sua “nova
turma”. Era o pessoal, que Carlinhos Lyra, que também brigara
com Bôscoli e com a bossa nova, levou no famoso apartamento

52
Caminhando e Cantando

da Avenida Atlântica. Eram os sambistas das antigas: Zé Kéti,


Nelson Cavaquinho, João do Valle e o mestre Cartola. Ruy
Castro em “Chega de Saudade” diz que “esse disco cheio de
sambas da “velha bossa” formalizou o rompimento da cantora
com a música que teria sido musa e parteira”.
Aí começou a confusão entre os que a apoiavam e os que
defendiam que ela deveria cantar bossa nova. Alegavam que ela
que, praticamente, só conhecia o Rio das areias de Copacabana,
não poderia falar de favela e, muito menos, do Nordeste. Nara
respondia classificando a bossa nova como “música de
apartamento para meia-dúzia de intelectuais burgueses,
alienados das questões do povo”.
Assim, Nara chegou às lojas de discos e às rádios, com
músicas que nem de perto lembravam a menina do apartamento
no Edifício Champs Élysées. Ali, com aquele disco, estava
desfeita a união da cantora com a bossa nova. Ao mesmo tempo,
significava que era hora de outra coisa surgir para movimentar
mais uma vez o cenário musical brasileiro. As mudanças
políticas que estavam prestes a ocorrer no Brasil contribuiriam
para que essa transformação ocorresse.
Nesse período, início dos anos 60, estavam nascendo ou
eram bem pequenos os nomes que fariam o a revolução do rock
brasileiro dos anos 80. Gente como Cazuza, Renato Russo,
Paulo Ricardo, Evandro Mesquita, Herbert Vianna, Paula Toller,
Lobão e muitos outros, mas a história dessa galera vai ser
contada mais a frente.

53
Marco Antonio Gonçalves

Capítulo 3
- Início da repressão
Em 1964, o governo de João Goulart chegaria ao seu terceiro
ano, mas não o completaria. O golpe de estado há muito vinha
se anunciando: em 1954, na época da morte de Getúlio. Depois
na tentativa de impedir a posse de JK e depois da renúncia de
Jânio, quando tentaram impedir a posse do vice, Jango.
Em 31 de março de 64, os militares finalmente conseguiram
depor Jango do cargo. O golpe era financiado e apoiado pelo
governo americano do presidente Lindon Johnson sucessor do
mítico presidente John Fitzgerald Kennedy que em novembro de
1963, fora morto com um tiro na cabeça, enquanto desfilava em
um carro conversível com sua mulher Jacqueline, em Dallas, no
Texas.
Era conveniente para os norte-americanos que fosse
instalado o estado ditatorial nos países da América Latina e foi o
que aconteceu no Brasil e depois no Chile, Argentina e México.
O governo João Goulart estava se tornando cada vez mais
independente dos Estados Unidos e se aproximando da União
Soviética. O lançamento das Reformas de Base, principal
programa de Jango, foi considerado um primeiro passo para
transformar o Brasil em uma república socialista.
No Brasil, os militares esperavam resistência por parte do
governo, porém Jango, corretamente, optou por não lutar em
uma batalha que fatalmente seria perdida.
Os americanos patrulhavam as fronteiras continentais e
marítimas do Brasil e, seriam, nada menos, que oito submarinos
do exército norte-americano em águas brasileiras, a pedido do
embaixador americano no Brasil Lincoln Gordon. Na mesma

54
Caminhando e Cantando

noite de 31 de março, Jango deixou Brasília e foi para o Rio


Grande do Sul, de lá partiu em exílio para o Uruguai onde
permaneceria até sua morte, sob condições altamente suspeitas,
em 1976.
O maior posto do país estava vago e uma junta militar foi
chamada a governar o país, que depois teria como presidente o
General Humberto de Alencar Castello Branco, escolhido pelos
militares. O país ainda tinha congresso nacional, mas essa
representação política duraria pouco.
Começavam tempos difíceis para a sociedade e para a
política do Brasil, mas também gloriosos para a música
brasileira. 1964 foi um péssimo para a história da liberdade no
Brasil, mas para a música foi um ano maravilhoso. Nara Leão
faz sucesso com seu primeiro LP, recheado de afros-sambas.
Depois de terem alcançado o topo da paradas americanas com
Garota de Ipanema, João Gilberto e Stan Getz, lançam “Getz &
Gilberto 2” e “Samba de Verão”, de Marcos Valle, é uma das
músicas mais regravados no mundo neste ano, levando o cantor
a fazer uma enorme turnê pelos Estados Unidos e Europa.
Mas a música que mais retratava o sentimento político do
país naquele momento era uma marcha rancheira de Carlos
Lyra, com letra de Vinicius: “Marcha de quarta-feira de Cinzas”
em uma metáfora do golpe militar.

ACABOU NOSSO CARNAVAL


NINGUÉM OUVE CANTAR CANÇÕES
NINGUÉM PASSA MAIS BRINCANDO FELIZ
E NOS CORAÇÕES
SAUDADES E CINZAS FOI O QUE RESTOU

PELAS RUAS O QUE SE VÊ


É UMA GENTE QUE NEM SE VÊ

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Marco Antonio Gonçalves

QUE NEM SE SORRI


SE BEIJA E SE ABRAÇA
E SAI CAMINHANDO
DANÇANDO E CANTANDO CANTIGAS DE AMOR

E NO ENTANTO É PRECISO CANTAR


MAIS QUE NUNCA É PRECISO CANTAR
É PRECISO CANTAR E ALEGRAR A CIDADE

A TRISTEZA QUE A GENTE TEM


QUALQUER DIA VAI SE ACABAR
TODOS VÃO SORRIR
VOLTOU A ESPERANÇA
É O POVO QUE DANÇA
CONTENTE DA VIDA, FELIZ A CANTAR
PORQUE SÃO TANTAS COISAS AZUIS
E HÁ TÃO GRANDES PROMESSAS DE LUZ
TANTO AMOR PARA AMAR DE QUE A GENTE NEM SABE

QUEM ME DERA VIVER PRA VER


E BRINCAR OUTROS CARNAVAIS
COM A BELEZA DOS VELHOS CARNAVAIS
QUE MARCHAS TÃO LINDAS
E O POVO CANTANDO SEU CANTO DE PAZ
SEU CANTO DE PAZ

O sucesso que a bossa nova fazia nos Estados Unidos dava a


dimensão contrária do que ela representava, naquele momento,
no Brasil. Era o inverso. Quanto mais sucesso a bossa nova fazia
em terras estadunidenses, mais desprezo ela recebia da elite
intelectual que ficara aqui no Brasil. Nara Leão era agora a
“musa da oposição”, embora rejeitasse com toda força o título

56
Caminhando e Cantando

de musa de qualquer coisa. Ela fazia agora o espetáculo


“Opinião”, um dos marcos do teatro de esquerda, junto com
João do Valle e Zé Ketti, dois de seus compositores no LP. Ao
sair do “Opinião”, Nara procurou uma substituta para seu lugar.
Em uma viagem à Bahia conheceu uma jovem de Santo Amaro
da Purificação. Dona Cano e seu Zeca, pais da cantora só
deixariam a menina seguir para o sudeste se ela fosse
acompanhada do irmão mais velho, foi assim que Maria
Bethânia e Caetano Veloso, saíram da Bahia rumo ao estrelato.
Em “Noites Tropicais” Nelson Motta diz que “poucos
souberam e muito poucos celebraram os quatros Grammies
ganhos por João Gilberto, Tom Jobim e Astrud com “Garota de
Ipanema”, derrotando os Beatles e Elvis Presley. Nos bares de
Ipanema, muitos já os (ou)viam como artistas politicamente
alienados, produzindo música americanizada. O Vinicius de
“Garota de Ipanema” era falso e inútil: o verdadeiro e engajado
era o da “Marcha da quarta-feira de cinzas”.
O Brasil precisava de alguma coisa mais forte, mais
politicamente engajada e ideologicamente de esquerda, que ia
contra o regime, que ainda não demonstrava sinais de sua força
e de sua dureza.

A Jovem Guarda

Roberto Carlos em 1965 era um dos cantores mais ouvidos


do país. Estourara cantando “Parei na Contramão”, sua música
com seu parceiro inseparável Erasmo Carlos. Eles vinham
embalados com o sucesso do rock americano no fim dos anos 50
e com a explosão do quarteto de Liverpool. Eles queriam
mostrar que no Brasil também se fazia rock, mas aqui eles
chamavam de Iê-Iê-Iê, por causa do filme “A Hard Day’s

57
Marco Antonio Gonçalves

Night”, dos Beatles, que no Brasil se chamou “Os reis do Iê-Iê-


Iê”. Era o prenúncio do rock brasileiro, embora vá se falar de
rock Brasil só nos anos 80. Roberto e Erasmo foram contratados
pela TV Record, para apresentar um programa nas tarde de
domingo no horário do futebol. Eles queriam um trio para
apresentar. Um trio jovem, que se identificasse com os jovens.
A mulher escolhida para fazer companhia a Roberto e
Erasmo foi Celly Campello, a primeira a cantar rock no Brasil.
A cantora recusou. Era recém-casada e se retrirara da vida
artística e voltara a morar em Taubaté, sua terra natal. A
emissora escolheu então Vanderléa, uma jovem cantora.
Contratos com salários excelentes foram assinados. Roberto
ganharia mais que os companheiros. Mas ele disse só aceitaria
se os salários fossem iguais. Paulo Machado de Carvalho
aceitou. O programa ia ao ar às cinco da tarde de domingo e se
chamava Jovem Guarda. O nome fora tirado de um discurso do
ditador russo Lênin que dizia: “O futuro pertence a jovem
guarda porque a velha está ultrapassada”.
O programa reunia o pessoal da música jovem:
Vanusa, Eduardo Araújo, Silvinha, Martinha, Ronnie
Cord, Ronnie Von, Paulo Sérgio, Wanderley Cardoso, Jerry
Adriani, Rosemary, Leno e Lilian, Demétrius, Os
Vips, Waldirene, Sérgio Reis, Ed Wilson, e as bandas, Os
Incríveis, Renato e Seus Blue Caps, Golden Boys e The Fevers,
entre outros artistas que cantavam uma música alegre e pra
cima. Eles não queriam nem saber de política, por isso eram
execrados pela esquerda brasileira que queria artistas engajados
na causa da democracia, contra a ditadura.
No início do programa e como carro chefe do LP de Roberto
denominado “Jovem Guarda, ele e Erasmo compuseram uma
música que foi, sem querer, usada como um desabafo para os
jovens brasileiros. A música, lançada em compacto simples de

58
Caminhando e Cantando

1945, tratava de um homem saudoso de sua amada e que


examina a sua vida e nada mais importa, se ele não a tiver do
lado. Seria uma música romântica de sucesso como qualquer
outra da dupla, mas essa tinha na parte final do refrão o seu
ponto chave: “... “E que tudo o mais vá pro inferno”.

DE QUE VALE O CÉU AZUL E O SOL SEMPRE A BRILHAR


SE VOCÊ NÃO VEM E EU ESTOU A LHE ESPERAR
SÓ TENHO VOCÊ NO MEU PENSAMENTO
E A SUA AUSÊNCIA É TODO O MEU TORMENTO
QUERO QUE VOCÊ ME AQUEÇA NESSE INVERNO
E QUE TUDO MAIS VÁ PRO INFERNO

DE QUE VALE A MINHA BOA VIDA DE PLAYBOY


SE ENTRO NO MEU CARRO E A SOLIDÃO ME DÓI
ONDE QUER QUE EU ANDE TUDO É TÃO TRISTE
NÃO ME INTERESSA O QUE DE MAIS EXISTE
QUERO QUE VOCÊ ME AQUEÇA NESSE INVERNO
E QUE TUDO MAIS VÁ PRO INFERNO

NÃO SUPORTO MAIS VOCÊ LONGE DE MIM


QUERO ATÉ MORRER DO QUE VIVER ASSIM
SÓ QUERO QUE VOCÊ ME AQUEÇA NESSE INVERNO
E QUE TUDO MAIS VÁ PRO INFERNO

As pessoas cantavam “e que tudo mais vá pro inferno” com


vontade, se referindo à política no Brasil. As pessoas não
queriam saber de ditadura e mandavam com toda a força, tudo
aquilo que não queriam no Brasil para o “inferno”, dito na
música cantado por Roberto.

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Marco Antonio Gonçalves

Essa música marca o início da Jovem Guarda, que levaria


Roberto ao posto de um dos maiores cantores da América Latina
e um dos maiores vendedores de discos do mundo.
Em “A Era dos Festivais – Uma Parábola”, o escritor e
historiador Zuza Homem de Mello escreve: “A garotada
iconoclasta superlotava o Teatro Record nas tardes de domingo,
identificando-se com os cabeludos de roupas extravagantes,
acolhendo o alheamento como forma de revolta contra as
preocupações e formalidades, adotando as novas gírias como a
linguagem de sua preferência e entregando-se à espontaneidade
ingênua das letras e à alegria do ritmo para cantar e dançar
livremente. O iê-iê-iê começava a dominar a bossa”.

- Início da MPB - Era dos Festivais

Antes de 1965, Elis Regina, não era conhecida no sudeste do


Brasil. Era conhecida só pelos ouvintes de rádio gaúchos. Zuza
Homem de Mello, um dos maiores especialistas em música
brasileira, conta no livro “Era dos Festivais” como foi o início
de carreira da cantora:
"Há uma estrela no céu, há uma estrela na terra, e esta brilha
na constelação do cast da Rádio Gaúcha! Vem aí, Elis Regina!",
anunciava empolgado o animador Maurício Sobrinho antes de
cada apresentação da mais aguardada atração de seu
popularíssimo programa, aos domingos de manhã, transmitido
do cinema Castelo, bairro da Azenha, em Porto Alegre. A garota
assinara seu primeiro contrato profissional com a Rádio Gaúcha
em 1960, ao completar 16 anos, já tendo participado durante
meses do Clube do Guri, da Rádio Farroupilha, com Ari Rego.
“Foi o começo da carreira de Elis Regina em Porto Alegre, com

60
Caminhando e Cantando

sua voz juvenil e afinada, como se ouve nos seus dois primeiros
discos”.
Talvez por ironia do destino, um dos maiores compositores
da Bossa Nova comporia a música que marcou o “fim” do
predomínio do gênero e início do que se rotularia de MPB. Em
1965, no Guarujá, acontecia o I Festival de Música Popular
Brasileira, da TV Excelsior. Uma cantora gaúcha, filha de uma
lavadeira, com um nome que poucos pronunciavam
corretamente interpretaria a canção vencedora daquele festival.
A “Pimentinha” (nome pelo qual Elis Regina ficara
conhecida) venceu o festival interpretando a música “Arrastão”
de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. A partir desse festival a
MPB nascia com a função de também protestar contra o regime
militar no Brasil. Talvez os artistas não quisessem realmente
protestar contra regime ou governo algum, mas as circunstâncias
levaram a se acreditar que várias músicas tinham conotação
contra o governo militar, como dezenas de canções de Chico
Buarque que pouco tinha a ver com política, mas que com a
fama de engajado do compositor, foram interpretadas dessa
maneira.
A televisão que chegara 15 anos antes começava a descobrir
o tamanho de seu poder e com a música deu pra se ter a
dimensão exata do poder que esse meio de comunicação tinha
sobre o povo. Os festivais transformaram a música e o povo teve
vontade de reagir contra tudo que estava acontecendo no cenário
político brasileiro. Nessa época começaram a destacar nomes
como o já citado Chico Buarque de Hollanda, Geraldo Vandré,
Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento,
entre outros importantes cantores e compositores.
Arrastão é a música que marca o início de anos gloriosos
para a música brasileira.

61
Marco Antonio Gonçalves

EH! TEM JANGADA NO MAR


EH! EH! EH! HOJE TEM ARRASTÃO
EH! TODO MUNDO PESCAR
CHEGA DE SOMBRA E JOÃO JÔ VIU

OLHA O ARRASTÃO ENTRANDO NO MAR SEM FIM


É MEU IRMÃO ME TRAZ IEMANJÁ PRÁ MIM
OLHA O ARRASTÃO ENTRANDO NO MAR SEM FIM
É MEU IRMÃO ME TRAZ IEMANJÁ PRÁ MIM

MINHA SANTA BÁRBARA ME ABENÇOAI


QUERO ME CASAR COM JANAÍNA
EH! PUXA BEM DEVAGAR
EH! EH! EH! JÁ VEM VINDO O ARRASTÃO
EH! É A RAINHA DO MAR
VEM, VEM NA REDE JOÃO PRÁ MIM

VALHA-ME MEU NOSSO SENHOR DO BONFIM


NUNCA, JAMAIS SE VIU TANTO PEIXE ASSIM
VALHA-ME MEU NOSSO SENHOR DO BONFIM
NUNCA, JAMAIS SE VIU TANTO PEIXE ASSIM

Com música de Edu e letra de Vinicius, Arrastão venceu


com méritos o primeiro festival da chamada “Era dos Festivais”.
A letra da canção não tinha a ver com a política do país. Por
que, mesmo como diplomata, Vinicius não falava de política nas
suas letras de música. Edu Lobo vinha de uma nova geração da
bossa nova. A geração que, claro, idolatrava João Gilberto, mas
que achava que a época para se falar de peixinhos e beijinhos já
se passara. Era a geração que via a bossa nova como algo muito
americanizado e que queria voltar às raízes do samba ou
regionalizar mais ainda a música. É o caso de Arrastão com

62
Caminhando e Cantando

forte influência da música nordestina, mas claro, com influência


total de bossa nova. Foi essa mistura feita por artistas nos
Festivais da Canção no fim dos anos 60, que se iniciou a música
que se convencionou em chamar de Música Popular Brasileira, a
MPB, o que muitos estudiosos e escritores consideram errônea,
mas que caiu no gosto popular.
Eduardo de Góes Lobo nasceu é carioca nascido em 29 de
agosto de 1943. Filho de um Fernando Lobo, radialista e
compositor, Edu Lobo formou um trio com Marcos Valle e Dori
Caymmi para cantar e tocar bossa nova, como todos na época.
Instumentista de mão cheia, ele começou a compor aos 19 anos
e percebeu que queria fazer algo diferente de bossa nova: “Tinha
vontade de fazer algo diferente do que se fazia na época. Não
dava para concorrer com os compositores de bossa nova”, disse
ele em entrevista ao Jornal do Brasil em 7 de novembro de
1994. Edu passava as férias no Recife e lá começou a compor
frevos e outros ritmos nordestinos, mas com a sofisticação
harmônica de João Gilberto.
Sem saber, ele criava, ao mesmo tempo que outros artistas,
em outras partes do Brasil, o que viria a ser chamada de música
de festival, depois MPB. Edu Lobo é considerado uma dos
maiores músicos da fase pós-bossa nova. Ele era fortemente
influenciado por Villa-Lobos e por Tom Jobim. Fez sucesso
como cantor durante a década de 1960, depois dos festivais, mas
foi como compositor e instrumentista que conquistou maior
prestígio. Longe de ser um artista extremamente popular, foi
para os Estados Unidos aprimorar seus conhecimentos em
música e voltou na década de 1970, já esquecido do grande
público. Na década de 1980 voltou a cena como parceiro de
Chico Buarque e de outros famosos artistas. No final do século
teve seu trabalho reconhecido e criou trilhas sonoras para

63
Marco Antonio Gonçalves

diversos filmes e é cultuado pela geração surgida no início do


século XXI.

Música popular brasileira, ao pé da letra, pode englobar


muitos gêneros e estilos e pode ser qualquer canção feita no
Brasil. Mas aquela que nascia ali nos festivais significava um
movimento específico. Tinha também função de protestar contra
o regime militar que há pouco se instalara no país. Eram jovens
cultos e politizados que sabiam muito bem o que queriam.
Todos fãs de boa música e que tinham real veneração a João
Gilberto, mas que achavam que era hora de mudar.
Em abril de 1966, a TV Excelsior apresentava o seu segundo
festival. Sem a repercussão do primeiro, este festival foi vencido
por Gelado Vandré com a música “Porta-Estandarte”. Essa era
uma música sem maiores pretensões. A importância deste
festival se resume em um garoto que fazia a sua estreias em
competições: Caetano Veloso ficou em quinto lugar com a
música “Boa palavra”.
A TV record passou a investir pesado em música. Ramo que
Paulo Machado de Carvalho percebeu que traria bons frutos e
que renderia muita audiência e propaganda para a emissora.
“O Fino da Bossa” de Elis Regina e Jair Rodrigues fazia um
tremendo sucesso. O programa estreou em 1965, depois do
festival que consagrou Arrastão. Era um programa mais culto e
politizado que a “Jovem Guarda”, aonde iam cantores com
algum engajamento ou dito nacionalistas. Elis Regina detestava
estrangeirismos e, por consequência o rock.
Participavam do seu programa cantores da nova e da antiga
geração como Edu Lobo, Nara Leão, Maria Bethânia e Baden
Powell, Orlando Silva, Claudete Soares, Nelson Gonçalves e
vários outros. Até João Gilberto tocou lá uma vez (embora Elis
detestasse bossa nova). João veio de Nova Iorque só para se

64
Caminhando e Cantando

apresentar no programa. Veio, cantou, tocou e foi embora.


Quase ser falar uma palavra, além das canções.
Quem participasse da “Jovem Guarda” não podia tocar no
programa de Elis e Jair, por conta da apresentadora. Jorge Ben,
amigos de longa data de Roberto e Erasmo, foi um dos únicos a
tocar nos dois programas e quando começou a ficar freqüente no
programa do “trio ternurinha”, Elis o baniu de seu programa. A
Record ainda contava com o “Show em Si...monal”, apresentado
pelo cantor carioca que fazia um imenso sucesso na época.
Os musicais eram o carro-chefe da emissora. Em 1966, com
o sucesso do festival da TV Excelsior, Paulo Machado de
Carvalho decidiu voltar com o Festival da TV Record. O
primeiro havia acontecido em 60 sem grande repercussão.

- A grande Batalha

Em 1966, foi realizado o II Festival da Música Popular


Brasileira, da TV Record. Quando foram apresentadas as
músicas selecionadas, duas despontaram como grandes favoritas
ao título. Chico Buarque apresentava “A banda”, uma lírica
marchinha de ritmo cadenciado e harmonia simplória, mas com
uma letra marcante. A música seria interpretada pela ex-
bossanovista Nara Leão.

ESTAVA À TOA NA VIDA


O MEU AMOR ME CHAMOU
PRA VER A BANDA PASSAR
CANTANDO COISAS DE AMOR

A MINHA GENTE SOFRIDA


DESPEDIU-SE DA DOR

65
Marco Antonio Gonçalves

PRA VER A BANDA PASSAR


CANTANDO COISAS DE AMOR

A MOÇA TRISTE QUE VIVIA CALADA SORRIU


A ROSA TRISTE QUE VIVIA FECHADA SE ABRIU
E A MENINADA TODA SE ASSANHOU
PRA VER A BANDA PASSAR
CANTANDO COISAS DE AMOR

O HOMEM SÉRIO QUE CONTAVA DINHEIRO PAROU


O FAROLEIRO QUE CONTAVA VANTAGEM PAROU
A NAMORADA QUE CONTAVA AS ESTRELAS PAROU
PARA VER, OUVIR E DAR PASSAGEM

O VELHO FRACO SE ESQUECEU DO CANSAÇO E PENSOU


QUE AINDA ERA MOÇO PRA SAIR NO TERRAÇO E DANÇOU
A MOÇA FEIA DEBRUÇOU NA JANELA
PENSANDO QUE A BANDA TOCAVA PRA ELA

A MARCHA ALEGRE SE ESPALHOU NA AVENIDA E INSISTIU


A LUA CHEIA QUE VIVIA ESCONDIDA SURGIU
MINHA CIDADE TODA SE ENFEITOU
PRA VER A BANDA PASSAR CANTANDO COISAS DE AMOR

MAS PARA MEU DESENCANTO


O QUE ERA DOCE ACABOU
TUDO TOMOU SEU LUGAR
DEPOIS QUE A BANDA PASSOU

E CADA QUAL NO SEU CANTO


EM CADA CANTO UMA DOR
DEPOIS DA BANDA PASSAR

66
Caminhando e Cantando

CANTANDO COISAS DE AMOR


DEPOIS DA BANDA PASSAR
CANTANDO COISAS DE AMOR...

Por sua vez, Geraldo Vandré, com seu parceiro Théo de Barros,
apresentava “Disparada”. Uma canção sertaneja, com forte tom
de protesto social, desenvolvida na forma de moda de viola.
Vandré e Théo traziam o apresentador do “Fino” Jair Rodrigues
para cantar a canção sertaneja.

PREPARE O SEU CORAÇÃO


PRÁS COISAS
QUE EU VOU CONTAR
EU VENHO LÁ DO SERTÃO
EU VENHO LÁ DO SERTÃO
EU VENHO LÁ DO SERTÃO
E POSSO NÃO LHE AGRADAR...

APRENDI A DIZER NÃO


VER A MORTE SEM CHORAR
E A MORTE, O DESTINO, TUDO
A MORTE E O DESTINO, TUDO
ESTAVA FORA DO LUGAR
EU VIVO PRÁ CONSERTAR...
NA BOIADA JÁ FUI BOI
MAS UM DIA ME MONTEI
NÃO POR UM MOTIVO MEU
OU DE QUEM COMIGO HOUVESSE
QUE QUALQUER QUERER TIVESSE
PORÉM POR NECESSIDADE
DO DONO DE UMA BOIADA
CUJO VAQUEIRO MORREU...

67
Marco Antonio Gonçalves

BOIADEIRO MUITO TEMPO


LAÇO FIRME E BRAÇO FORTE
MUITO GADO, MUITA GENTE
PELA VIDA SEGUREI
SEGUIA COMO NUM SONHO
E BOIADEIRO ERA UM REI...

MAS O MUNDO FOI RODANDO


NAS PATAS DO MEU CAVALO
E NOS SONHOS
QUE FUI SONHANDO
AS VISÕES SE CLAREANDO
AS VISÕES SE CLAREANDO
ATÉ QUE UM DIA ACORDEI...

ENTÃO NÃO PUDE SEGUIR


VALENTE EM LUGAR TENENTE
E DONO DE GADO E GENTE
PORQUE GADO A GENTE MARCA
TANGE, FERRA, ENGORDA E MATA
MAS COM GENTE É DIFERENTE...

SE VOCÊ NÃO CONCORDAR


NÃO POSSO ME DESCULPAR
NÃO CANTO PRÁ ENGANAR
VOU PEGAR MINHA VIOLA
VOU DEIXAR VOCÊ DE LADO
VOU CANTAR NOUTRO LUGAR

NA BOIADA JÁ FUI BOI

68
Caminhando e Cantando

BOIADEIRO JÁ FUI REI


NÃO POR MIM NEM POR NINGUÉM
QUE JUNTO COMIGO HOUVESSE
QUE QUISESSE OU QUE PUDESSE
POR QUALQUER COISA DE SEU
POR QUALQUER COISA DE SEU
QUERER IR MAIS LONGE
DO QUE EU...

Parecia uma luta de boxe valendo cinturão, não por parte dos
artistas, mas por parte da platéia, que encarnou e muito o
espírito competitivo. “A banda” versus “Disparada” parecia
Atlético e Cruzeiro em final de campeonato e o teatro Record
era o Mineirão.
Nara, com seu fiapo de voz não se faria ouvir diante daquela
ensurdecedora plateia. Manoel Carlos, produtor do festival
sugeriu que Chico também cantasse. “Na reapresentação de "A
Banda" nessa noite da terceira eliminatória houve uma
novidade: a fim de resolver o problema de som que prejudicara
a primeira apresentação, o produtor Manoel Carlos sugeriu que
Chico Buarque, mesmo a contragosto, entrasse no palco com
seu violão para cantar a música inteira, antes de Nara repeti-la
com a bandinha atrás, pouco importando se continuasse sendo
mal ouvida, pois Chico já teria dado o recado. A manobra deu
certo e agradou em cheio, ampliando a torcida de "A Banda",
pois Chico e Nara, além de muito queridos, formavam um par
jovial.”, conta Homem de Mello.
O Brasil estava dividido entre “A banda” e “Disparada”,
nunca se viu nada parecido na música brasileira. A rivalidade
entre as duas músicas era tamanha que se temia pancadaria
quando fosse anunciado o resultado. Vandré, Chico, Nara e Jair
eram amigos e também achavam aquele espetáculo circense

69
Marco Antonio Gonçalves

demais. Graças à internet é possível ver o vídeo da música


defendida por Nara e Chico com Jair Rodrigues acompanhando
com palmas ao lado num clima amistoso em uma das
eliminatórias.
Chico Buarque, então com apenas 21 anos, considerava a
música de Vandré muito melhor que a dele e ameaçava não
receber o prêmio caso “A banda” vencesse. Ao final das
apresentações pairava sobre o público, a apreensão e a
ansiedade.
Chico Buarque de Hollanda era filho de Sérgio Buarque de
Hollanda, historiador e um dos mais importantes intelectuais do
Brasil. Ele já havia gravado um compacto simples, com “Pedro
Pedreiro”, uma de suas músicas mais geniais, de um lado, e
“Sonho de Carnaval” de outro. Já fazia pequeno shows e fora
contratado pela Record para participar de musicais.
Alcançou reconhecimento quando foi gravado por Nara Leão
(ela de novo). A cantora gravou em seu LP “Nara pede
passagem” três músicas de Chico. “Ser gravado por Nara era o
passaporte para o Olimpo da música popular brasileira, e assim
Chico passou a ser mais conhecido como compositor do que
como cantor”, diz Homem de Mello.
Como o disco de Nara cantando suas músicas não parava de
tocar nas rádios, Chico Buarque, um joão ninguém no I Festival
da Excelsior, começava a ficar conhecido e sua música a levar
vantagem com a intensa divulgação nos dez dias que
antecederam a final do musical, marcado para 10 de outubro.
Em Noites Tropicais, Nelson Motta escreve: “Torcedor ou
não de uma das duas, quem quer que fosse tinha que se definir e
defender a sua preferida”. Aproximava-se o dia da final, cercado
da ansiedade que transformou a peleja num acontecimento único
na história da arte brasileira: "A Banda" versus "Disparada".

70
Caminhando e Cantando

O Jornal O Estado de São Paulo escreveu: “Desde o finzinho


de setembro, só duas torcidas contam: a da Associação Atlética
Dispara e da Banda Futebol Clube”.
Havia chegado o dia: segunda-feira, 10 de outubro de 1966.
A expectativa era tamanha que alguns teatros e cinemas
suspenderam suas sessões no dia da apresentação final. O
auditório do Teatro Record, na Rua da Consolação, estava
lotado. Pessoas gritavam, traziam suas faixas e gritos de guerra.
O clima nos bastidores também estava pesado. Os ânimos
exaltados. No dia da final a gritaria era tanta, que as outras
músicas classificadas foram extremamente vaiadas. O povo só
queria ouvir as duas favoritas.
Com razão, o dono da emissora, Paulo Machado de Carvalho
tinha medo de anunciar o resultado, por duas razões: A iminente
pancadaria que poderia acontecer na plateia e a ameaça de Chico
de não receber o prêmio caso “A banda” vencesse.
O manda-chuva da Record, conhecido como “Marechal da
Vitória” pela sua atuação como chefe da delegação brasileira na
Copa de 1958, decidiu dobrar o prêmio para o primeiro lugar e
decretou que houve um empate. O resultado dos votos dos
jurados ficou, por muitos anos, guardado a sete chaves, até que
Zuza Homem de Mello, em seu livro já citado, revelou que a
música de Chico venceu por sete votos a cinco. Todos felizes e
sem confusão. A transmissão da final do festival registrou um
dos maiores índices de audiência, em porcentagem de
televisores ligados no canal, da história da televisão brasileira.
Destaque também para o terceiro (quarto) lugar para
Paulinho da Viola e Capinam com “Canção para Maria” e para o
quinto lugar (sexto) para Gilberto Gil, com “Ensaio Geral”.
Depois do festival, “A banda” vendeu mais de 100 mil
discos, tanto com Chico quanto com Nara, em menos de uma
semana. A canção se tornou uma das maiores canções brasileiras

71
Marco Antonio Gonçalves

de todos os tempos e alçou Chico Buarque a condição de maior


astro nacional. Segundo Nelson Motta ele virou “uma paixão
nacional, uma unanimidade. Quase uma obsessão. Jovem,
bonito, culto e carismático, Chico reunia todas as qualidades
certas, na pessoa certa e no momento certo: sua poesia ágil e
moderna, com sólidas raízes no Brasil, unia o popular e o
sofisticado em suas harmonias e melodias”.
“A banda” renderia a Chico a sua primeira rusga com a
ditadura militar, quando o governo resolveu usar a canção em
uma campanha de alistamento militar. Chico, claro, foi contra e
o governo teve de retirar a propaganda do ar.
Embora, a música não trate de nenhuma questão política
(Chico sempre deixou bem claro que era apenas uma marchinha
simples composta para o festival), a canção gerou reações de
pessoas que enxergavam nela alguma forma de protesto e
daqueles que a achavam alienada demais.
O grande poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu em
uma crônica publicada no jornal “Correio da Manhã”: “O jeito
mesmo é ver a banda passar, cantando coisas de amor. Pois de
amor andamos todos precisados, em dose tal que nos alegre, nos
reumanize, nos corrija, nos dê paciência e esperança, força,
capacidade de entender, perdoar, ir para a frente. (...) Pois a
banda não vem entoando marchas militares, dobrados de guerra.
Esta banda é de amor, prefere rasgar corações (...) Meu partido
está tomado, não a Arena ou o MDB, sou desse partido
congregacional e superior às classificações de emergência, que
encontra na banda o remédio, a angra, o roteiro, a solução.”
O não menos importante escritor Nelson Rodrigues escreveu
em sua coluna no Jornal do Brasil: “(...) eu próprio ouvi a
marchinha genial e a minha vontade foi de sair de casa, sentar
no meio-fio e começar a chorar. Com “A banda”, começa uma
nova época para a música popular no Brasil”.

72
Caminhando e Cantando

Mas apesar de elogios de pessoas tão notáveis, Chico não foi


aclamado por todos. Os patrulheiros ideológicos, principalmente
de esquerda, que logo teriam em Chico seu baluarte, acharam
aquela canção lírica demais, alienada demais, um verdadeiro
retrocesso. O próprio compositor em entrevista à Rádio do
Centro Cultural São Paulo disse: “Quando compus “A banda”
eu me lembro que havia uma discreta condenação por parte da
esquerda que ainda insistia em ouvir o grito do Opinião, o grito
de um “Carcará” e tal. A Nara Leão, aliás, me acompanhou
nesse movimento, porque ela também já estava um pouco
cansada dessa tal música de protesto que se fazia então, que não
passava das portas do teatro e que, no fim das contas, era
ineficaz. “A banda” era uma retomada do lirismo, proposital
mesmo, porque eu não era tão inocente assim quanto parecia. Eu
tinha um passado, mesmo que discreto, de luta estudantil.”
“A banda” fez muito mais sucesso do que a canção de
Vandré e Theo de Barros depois do festival, embora
“Disparada” também tenha feito um sucesso retumbante. Aquele
era o momento de Chico. Vandré explodiria com uma canção
poucos festivais depois.
Com o sucesso do Festival da TV Record, a TV Rio, futura
Globo, também decidiu investir neste tipo de programa e pôs no
ar duas semanas depois do festival que consagrou Chico
Buarque, o I Festival Internacional da Canção (FIC) que dava o
direito do vencedor brasileiro disputar o “Galo de Ouro” com 26
músicas estrangeiras, além de um bom prêmio em dinheiro.
A final aconteceu no Maracanãzinho e consagrou uma dupla
novata como campeã: Dori Caymmi, filho de Dorival, e Nelson
Motta eram os compositores de “Saveiros”, música interpretada
pela irmã de Dori, Nana. Mesmo sem o sucesso do festival da
Record, a plateia carioca também agia com entusiasmo e chegou

73
Marco Antonio Gonçalves

até a assustar a veterana Maysa, que ficou com o terceiro lugar


do Festival, com “Dia de Rosas”, de Luís Bonfá.
Em um curto espaço de tempo, de setembro a novembro de
1967, se realizaram o terceiro festival da Record e o II FIC, já
na Globo. De acordo com o escritor Jairo Severiano, “pela
qualidade das músicas e dos participantes, pelos acontecimentos
no palco e na plateia e pelo excepcional interesse despertado, o
III Festival da Record marcou o apogeu da Era dos Festivais”.
Nesta edição se reuniram pela primeira e única vez, quatros dos
maiores compositores revelados nos festivais: Edu Lobo, Chico
Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
As músicas apresentadas eram de qualidade inquestionável e
os jurados tiveram dificuldade em escolher a melhor. Edu Lobo
se consagrou de vez neste festival com a música “Ponteio”, que
tinha letra de José Carlos Capinam e melodia de Edu e foi
intepretada por ele e por Marília Medalha. Ponteio (Quem me
dera agora/Eu tivesse a viola/Pra cantar) tinha fortes influências
da musica nordestina e da música de Villa-Lobos, que Edu havia
estudado e se aprofundado. A letra de Capinam, embora não seja
uma crítica ao “sistema”, agradou a plateia politizada e venceu
com méritos a edição deste concorrido festival.
Entretanto, mesmo vencendo e se tornando célebre, as outras
canções que se classificaram em posições subseqüentes tiveram
um sucesso tão grande ou até maior do que a canção de Edu e
ainda hoje são consideradas com grandes clássicos da Música
Brasileira. A segunda posição ficou com a vanguardista e já
tropicalista “Domingo no Parque” de Gilberto Gil (O rei da
brincadeira/Êh José!/O rei da confusão/Êh João! Um trabalhava
na feira/ Êh José!/Outro na construção/Êh João!…). A música,
que assim como “Ponteio”, tem com uma forte influência
nordestina e é um canto de capoeira, narra a história de dois
amigos: José, o rei da brincadeira e João, o rei da confusão. Em

74
Caminhando e Cantando

um domingo quando José foi ao parque viu João com Juliana, a


mulher que ele amava. Tomado de ciúme, José mata o amigo e a
amada em um crime passional que dá o clímax final na canção.
Embora, tenha uma letra forte e marcante, a música causou
impacto por seu ritmo, por sua mistura de instrumentos, que vão
da guitarra elétrica ao berimbau, por sua “confusão” de
harmonia, pelos recursos usados por Gilberto Gil, que ia de
barulho de realejos e outros sons de parque, e por apresentar o
que iria chocar a ditadura: a inovação tropicalista. “Domingo no
Parque” projetou para a fama o grupo de rock Os Mutantes, dos
irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista e da cantora e futura
mulher de Arnaldo, Rita Lee, que acompanharam Gil na
interpretação.
Chico Buarque desta vez ficou com a terceira posição com a
canção Roda-Viva. A música conta a história de um artista que
era engolido pelo show business, como havia acontecido com
Chico desde o sucesso de “A banda”.

TEM DIAS QUE A GENTE SE SENTE


COMO QUEM PARTIU OU MORREU
A GENTE ESTANCOU DE REPENTE
OU FOI O MUNDO ENTÃO QUE CRESCEU...

A GENTE QUER TER VOZ ATIVA


NO NOSSO DESTINO MANDAR
MAS EIS QUE CHEGA A RODA VIVA
E CARREGA O DESTINO PRÁ LÁ ...

RODA MUNDO, RODA GIGANTE


RODA MOINHO, RODA PIÃO
O TEMPO RODOU NUM INSTANTE
NAS VOLTAS DO MEU CORAÇÃO...

75
Marco Antonio Gonçalves

A GENTE VAI CONTRA A CORRENTE


ATÉ NÃO PODER RESISTIR
NA VOLTA DO BARCO É QUE SENTE
O QUANTO DEIXOU DE CUMPRIR
FAZ TEMPO QUE A GENTE CULTIVA
A MAIS LINDA ROSEIRA QUE HÁ
MAS EIS QUE CHEGA A RODA VIVA
E CARREGA A ROSEIRA PRÁ LÁ...

RODA MUNDO, RODA GIGANTE


RODA MOINHO, RODA PIÃO
O TEMPO RODOU NUM INSTANTE
NAS VOLTAS DO MEU CORAÇÃO...

A RODA DA SAIA MULATA


NÃO QUER MAIS RODAR NÃO SENHOR
NÃO POSSO FAZER SERENATA
A RODA DE SAMBA ACABOU...

A GENTE TOMA A INICIATIVA


VIOLA NA RUA A CANTAR
MAS EIS QUE CHEGA A RODA VIVA
E CARREGA A VIOLA PRÁ LÁ...

RODA MUNDO, RODA GIGANTE


RODA MOINHO, RODA PIÃO
O TEMPO RODOU NUM INSTANTE
NAS VOLTAS DO MEU CORAÇÃO...

O SAMBA, A VIOLA, A ROSEIRA


QUE UM DIA A FOGUEIRA QUEIMOU

76
Caminhando e Cantando

FOI TUDO ILUSÃO PASSAGEIRA


QUE A BRISA PRIMEIRA LEVOU...

NO PEITO A SAUDADE CATIVA


FAZ FORÇA PRO TEMPO PARAR
MAS EIS QUE CHEGA A RODA VIVA
E CARREGA A SAUDADE PRÁ LÁ ...

Ela acabou virando tema de uma peça que foi dirigida por
José Celso Martinez Correa e estreou no Teatro Princesa Isabel,
no Rio de Janeiro, no dia 15 de março de 1968. Com muitos
palavrões e cenas violentas a peça criou polêmica e chocou a
sociedade, como queria o diretor. Ela também serviu para
afastar a fama de bom moço de Chico, exatamente como ele
queria. "Antes que brigassem com o Chico, já briguei com ele",
disse ele mais tarde, numa entrevista do início dos anos 70.
A peça não tinha nada a ver com política. Apenas contava a
história do cantor popular Benedito Silva e sua entrada no
mundo já conhecido pelo autor, sua ascensão como artista e sua
morte, envolvido em um esquema de televisão. A tal roda-viva
nada mais era do que o showbiz.
Fernando de Barros e Silva escreve no livro “Chico
Buarque”: “Com um grão de sal, pode-se afirmar que Roda Viva
é o momento tropicalista na carreira de Chico Buarque.”
Tropicalista porque José Celso mudou cenas e a transformou em
uma peça anarquista, polêmica e que tinha a intenção de
incomodar o público e recebeu a chancela de Chico.
No dia 17 de julho, em São Paulo, a organização de extrema-
direita CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiu o
teatro Galpão, onde a peça estava sendo encenada, depredou o
prédio, destruiu os cenários e espancou violentamente o elenco.

77
Marco Antonio Gonçalves

A tese mais correta era de que o grupo queria bater no elenco


do espetáculo Feira Paulista de Opinião, de Augusto Boal,
encenada em outra sala do mesmo teatro. Como os atores dessa
peça já não estavam mais no local, eles descontaram no elenco
de “Roda-Viva”.
Depois de um mês, em Porto Alegre, agentes da repressão
voltaram a bater nos atores da peça e José Celso e Chico
encerraram a curta, mas conturbada, carreira do espetáculo.
A música, tanto quanto o espetáculo teatral, não tinha
absolutamente nada relativo à política, embora muita gente
insistisse e insiste até hoje que a roda-viva era o governo, que
levava embora toda a liberdade e a democracia. Chico nega
veementemente essa versão. A canção foi composta apenas para
o festival da Record. Era a chamada música de festival.
Em uma entrevista durante o intervalo daquele festival,
Chico Buarque ainda tímido e desacostumado com as câmeras
diz: “Com a seqüência de festivais, um após o outro, vai se
criando uma forma que agrada. Certos ritmos que agradam mais.
Igual à música de carnaval há um tempo, que tinha que ser curta
e bla-bla-bla. Hoje já se que quebrou essa regra. E a música de
Festival vai repetindo um esquemazinho, o que torna a música
‘festivalesca’”.
Roda-Viva era uma dessas músicas de festival como
descreveu Chico. Mas passou a ser muito mais do que uma
música criada para uma competição entre compositores. Roda-
Viva passou a ser um marco, dentre tantos outros, na carreira de
Chico. A música entrou para o imaginário popular e até hoje
pode ser ouvida entoado por filhos e netos da geração que fazia
música em 67.
O quarto lugar ficou para a música mais politizada do
festival. “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso contava a
história de um cidadão comum brasileiro que sofria a opressão

78
Caminhando e Cantando

vigente na época. Opressão das ruas, da mídia e denuncia o


abuso de poder e a falta de liberdade do povo como se lê nos
primeiros e mais famosos versos.

CAMINHANDO CONTRA O VENTO


SEM LENÇO E SEM DOCUMENTO
NO SOL DE QUASE DEZEMBRO,
EU VOU.

O SOL SE REPARTE EM CRIMES


ESPAÇONAVES, GUERRILHAS
EM CARDINALES BONITAS,
EU VOU.

EM CARAS DE PRESIDENTE,
EM GRANDES BEIJOS DE AMOR,
EM DENTES, PERNAS, BANDEIRAS,
BOMBA E BRIGITTE BARDOT.

O SOL NAS BANCAS DE REVISTA


ME ENCHE DE ALEGRIA E PREGUIÇA.
QUEM LÊ TANTA NOTÍCIA?

EU VOU
POR ENTRE FOTOS E NOMES
OS OLHOS CHEIOS DE CORES
O PEITO CHEIO DE AMORES VÃOS.

EU VOU
POR QUE NÃO? E POR QUE NÃO?

ELA PENSA EM CASAMENTO

79
Marco Antonio Gonçalves

E EU NUNCA MAIS FUI À ESCOLA


SEM LENÇO E SEM DOCUMENTO
EU VOU.

EU TOMO UMA COCA-COLA


ELA PENSA EM CASAMENTO
UMA CANÇÃO ME CONSOLA
EU VOU.

POR ENTRE FOTOS E NOMES


SEM LIVROS E SEM FUZIL
SEM FOME, SEM TELEFONE,
NO CORAÇÃO DO BRASIL.

ELA NEM SABE ATÉ PENSEI


EM CANTAR NA TELEVISÃO
O SOL É TÃO BONITO

EU VOU
SEM LENÇO, SEM DOCUMENTO
NADA NO BOLSO OU NAS MÃOS
EU QUERO SEGUIR VIVENDO AMOR.

EU VOU
POR QUE NÃO? E POR QUE NÃO?

Foi a primeira canção que criticava abertamente a ditadura a ter


sucesso no Brasil. Caetano usa de metáforas para mostrar a
situação do país e do mundo naquele momento da década como
na segunda estrofe: “O sol se reparte em crimes/ Espaçonaves,
guerrilhas/ Em Cardinales bonitas/ Eu vou”. Também nos
mostra a alienação sofrida pela população através dos meios de

80
Caminhando e Cantando

comunicação e propaganda usando termos como as beldades do


cinema Claudia Cardinale e Brigitte Bardot e a principal
imposição midiática mundial, a coca-cola. Caetano também
não deixa de falar da violência no Brasil: “Sem livros e sem
fuzil/ Sem fome, sem telefone/ no coração do Brasil”. A
educação brasileira e a alienação do povo também foi escrita por
Caetano na canção: “O sol nas bancas de revista /me enche de
alegria e preguiça/quem lê tanta notícia?”.
Caetano conseguiu usar diversas formas, palavras e
conceitos para criticar o mundo em que vivia. Com “Alegria,
Alegria” Caetano conseguiu o que queria. Transformou-se em
ícone de uma época que se mostrava extremamente conturbada
para a política brasileira, mas extremamente rica em termos
estilísticos, musicais na história da canção nacional. A partir de
1968, com a promulgação do Ato Institucional Número 5, todos
os artistas do Brasil teriam que “caminhar contra o vento, sem
lenço e sem documento”. Neste festival Caetano com “Alegria,
Alegria” e Gil, com “Domingo no Parque” mostraram ao Brasil
a “Tropicália”.
A plateia agia cada vez mais como em um campo de futebol
ou em um ringue de luta e vaiava absurdamente as músicas que
não queriam ouvir. Sérgio Ricardo ficou célebre por um ato de
descontrole neste festival. Durante a apresentação de “Beto Bom
de Bola”, sua música finalista, ele não conseguiu se fazer ouvir,
tamanha era a vaia da plateia. Ele, durante algum tempo, tentou
em vão cantar a música, acompanhado de um violão.
Os gritos eram ensurdecedores. Ele só não desistiu de cantar
como ainda quebrou o instrumento e o jogou no público aos
gritos de “vocês ganharam”. “Beto Bom de Bola” foi
desclassificada e o resultado final foi aceito de bom grado pela
plateia, ao contrário da vencedora “Saveiros” no primeiro FIC,

81
Marco Antonio Gonçalves

onde a música de Nelson Motta e Dory Caymmi foi


extremamente vaiada quando foi anunciado o resultado.
Antes mesmo do fim do Festival da Record, o II FIC já tinha
início na Rede Globo. A única grande surpresa e o maior nome
deste festival foi a aparição de um compositor mineiro que trazia
três das mais importantes canções desta competição: “Morro
Velho”, “Maria minha fé” e “Travessia”, esta em parceria com
Fernando Brant. Ele era Milton Nascimento, um dos principais
nomes surgidos na época de ouro dos festivais da canção, muito
embora “Travessia” tenha ficado em segundo lugar no FIC,
perdendo para “Margarida”, canção de Gutemberg Guarabira.
Canção esta que teve apenas quinze minutos de fama e caiu no
esquecimento geral, enquanto “Travessia” se consagrou com
uma de nossas maiores músicas, alcançando reconhecimento
internacional com inúmeras regravações no Brasil e no exterior,
inclusive da renomada cantora islandesa Bjork.
Nelson Motta conta que quando ouviu Milton neste festival
ficou maravilhado, assim como todos. “Desde Elis não se ouvia
um cantor tão bom. Sua música parecia com a de Tom, Chico ou
Caetano, Vandré ou Gilberto Gil. Era muito original e pessoal.
Mais parecida com o que faziam Edu e Dory Caymmi, mas
também de John Coltrane e Mile Davis, com suas
harmonizações compexas e seu fraseado sinuoso. O cara era um
monstro. Mais um.”
O III FIC que aconteceu entre 12 de setembro e 6 de outubro
de 1968 ficou marcado como o último grande festival, que
contou com os maiores nomes surgidos nos Festivais. Também
foi o que teve maior repercussão política. As torcidas, mais do
que nunca, manifestavam sua insatisfação com o regime na
torcida por determinadas candidatas no que se deu como o mais
conturbado festival já realizado.

82
Caminhando e Cantando

Já na eliminatória paulista do Festival, Caetano Veloso


defendia ao lado dos Mutantes a música “É proibido proibir” e
recebido por uma chuva de vaias, ovos e tomates, ele
interrompeu a canção no meio, quando não era mais possível
ouvir som algum, além dos gritos ensurdecedores da plateia. O
compositor começou a gritar furioso para o público: “Mas é isso
que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm
coragem de aplaudir esta ano uma música teriam coragem de
aplaudir no ano passado! Vocês são a mesma juventude que vai
sempre, sempre, matar o velhote que morreu ontem! Vocês não
estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada! Eu hoje
vim dizer aqui, que quem tem a coragem de assumir a estrutura
de festival e faze-la explodir foi o Gilberto Gil e fui eu. Não foi
ninguém. Foi Gilberto Gil e fui eu. Vocês estão por fora! Vocês
não entendem nada. Mas que juventude é essa? Que juventude é
essa?”
Esse desabafo furioso e nada modesto de Caetano já fazia
parte do que eles chamariam de Tropicália.
A plateia que vaiava absurdamente Caetano era contra a
música do compositor por que, segundo eles, ele havia se
afastado da militância política, suas músicas não eram de
protesto como se pedia a época e se implorava o gosto da plateia
presente nos festivais. Por isso Caetano protestou aclamando
que ele, juntamente com Gil, era o responsável pelo padrão
imposto pelo festival. Essa anarquia. Essa mudança de
comportamento já era sinal do tropicalismo que, até então, não
agradava muita gente e desagradava ainda mais o governo
militar.
Curiosamente o refrão de “É proibido proibir” poderia ser
usado como um hino contra a ditadura, que censurava e impedia
manifestações maiores. Entretanto, ainda faltava três meses, na
época do festival em que essa canção concorreu, para o governo

83
Marco Antonio Gonçalves

fechar o congresso e instalar a censura e aumentar a repressão,


que se daria com o decreto do Ato Institucional 5.

E EU DIGO SIM
E EU DIGO NÃO AO NÃO
E EU DIGO: É!
PROIBIDO PROIBIR
É PROIBIDO PROIBIR
É PROIBIDO PROIBIR
É PROIBIDO PROIBIR
É PROIBIDO PROIBIR...

O público daquele festival já tinha sua preferida. Aliás, já


tinha seu hino. Hino esse que ficaria para sempre ligado ao
nome do seu compositor e também vinculado aos tempos
sombrios da república. Geraldo Vandré apresentava a música
“Pra não dizer que não falei das flores” ou “Caminhando”. Uma
forte canção de protesto, com um imenso apelo revolucionário.

CAMINHANDO E CANTANDO
E SEGUINDO A CANÇÃO
SOMOS TODOS IGUAIS
BRAÇOS DADOS OU NÃO
NAS ESCOLAS, NAS RUAS
CAMPOS, CONSTRUÇÕES
CAMINHANDO E CANTANDO
E SEGUINDO A CANÇÃO

VEM, VAMOS EMBORA


QUE ESPERAR NÃO É SABER
QUEM SABE FAZ A HORA
NÃO ESPERA ACONTECER

84
Caminhando e Cantando

PELOS CAMPOS HÁ FOME


EM GRANDES PLANTAÇÕES
PELAS RUAS MARCHANDO
INDECISOS CORDÕES
AINDA FAZEM DA FLOR
SEU MAIS FORTE REFRÃO
E ACREDITAM NAS FLORES
VENCENDO O CANHÃO
HÁ SOLDADOS ARMADOS
AMADOS OU NÃO
QUASE TODOS PERDIDOS
DE ARMAS NA MÃO
NOS QUARTÉIS LHES ENSINAM
UMA ANTIGA LIÇÃO:
DE MORRER PELA PÁTRIA
E VIVER SEM RAZÃO

NAS ESCOLAS, NAS RUAS


CAMPOS, CONSTRUÇÕES
SOMOS TODOS SOLDADOS
ARMADOS OU NÃO
CAMINHANDO E CANTANDO
E SEGUINDO A CANÇÃO
SOMOS TODOS IGUAIS
BRAÇOS DADOS OU NÃO

OS AMORES NA MENTE
AS FLORES NO CHÃO
A CERTEZA NA FRENTE
A HISTÓRIA NA MÃO
CAMINHANDO E CANTANDO

85
Marco Antonio Gonçalves

E SEGUINDO A CANÇÃO
APRENDENDO E ENSINANDO
UMA NOVA LIÇÃO

VEM, VAMOS EMBORA


QUE ESPERAR NÃO É SABER
QUEM SABE FAZ A HORA
NÃO ESPERA ACONTECER

A letra da música de Vandré claramente provocava o


exército como no na parte: “Há soldados armados, amados ou
não / Quase todos perdidos de armas na mão / Nos quartéis lhes
ensinam uma antiga lição / de morrer pela pátria e viver sem
razão".
A canção, uma marcha em tom de hino militar incitava às
pessoas à resistência. Ela se tornou uma das músicas mais
onhecidas de todos os tempos no Brasil. Seu refrão é entoado até
hoje e sempre lembrado pelos professores de história pelo Brasil
afora quando o assunto é a ditadura militar brasileira. Segundo
alguns críticos, um dos estopins da decretação do AI-5.
Obviamente, a canção foi censurada. A primeira artista que
gravou a canção foi Simone, em 1979, já depois da anistia
concedida pelo governo federal. O compositor se tornou um
mito da música brasileira e vários boatos e lendas são
conhecidos pelos quatro cantos do país sobre o que de veras
aconteceu com Vandré depois daquele estrondoso sucesso.
Dizem que ele fora preso, torturado e enlouqueceu. Outros
dizem que depois que foi embora do Brasil, fez um acordo com
o governo para voltar ao país, com a condição que não fizesse
mais músicas contra o regime. Boato alimentado, quando foi
lançado o disco Fabiana, em homenagem a FAB (Força Aérea
Brasileira), o último de sua carreira.

86
Caminhando e Cantando

A versão oficial, contada pelo próprio compositor, e que


certamente é a verdadeira, é que depois do festival, ele se auto-
exilou no Chile e depois rumou para a Europa, devido a sua
insatisfação com a política e que voltara ao país em 1973,
também por vontade própria.
Vandré hoje mora em São Paulo, exerce a função de
advogado (formou-se em direito em 1959) e vive recluso do
mundo, principalmente do mundo da música. Não vê televisão
ou ouve rádio. Compõe músicas, diz que não conhece nada da
atual MPB e só ouve músicas clássicas. Mora sozinho e somente
recebe a visita de alguns poucos amigos e raramente concede
entrevistas. Em 2000, em uma de suas raras entrevisas ao site
Clique Music, rechaçou todas as teorias em torno de sua figura:
"Caminhando não era uma canção política. Era um aviso aos
militares: ‘Olha gente, desse jeito não dá mais’. Eles (militares)
nunca tocaram um dedo em mim".
Em 2010, apareceu no programa “Dossiê GloboNews”, do
canal a cabo da GloboSat, em entrevista concedida a Geneton
Moraes Neto. Fazia mais de quatro décadas que não aparecia na
televisão. Nesta entrevista disse que preparava um disco de
canções populares em espanhol para ser lançado no Uruguai.
Quando perguntado sobre “Caminhando”. Disse que não fazia
canções de protesto, “apenas fazia música brasileira”. Segundo
suas palavras “protesto é coisas de quem não tem o poder”.
Embora todo o estardalhaço no III FIC tenha ficado em torno
das duas músicas – “É proibido proibir” e “Caminhando” – a
vencedora foi uma belíssima música de Antonio Carlos Jobim,
com letra de Chico Buarque, “Sabiá”, com “Pra não dizer que
não falei das flores (Caminhando)” em segundo.
Quando foi anunciado o resultado se ouviu uma estrondosa
vaia para Tom (Chico Buarque estava viajando e não estava
presente na final do festival), que foi receber o prêmio. O

87
Marco Antonio Gonçalves

público não se conformava com a derrota de “Caminhando”. O


grande mestre Tom Jobim nunca ouviu tamanha vaia dirigida a
sua pessoa. Vandré saiu em defesa de Tom e Chico dizendo ao
público: “Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda
merecem o nosso respeito. A nossa função é fazer canções. A
função de julgar é do júri que ali está”. As vaias aumentaram,
juntamente com os gritos de “marmelada”.
“Vem, vamos embora que esperar não é saber. Quem sabe
faz a hora, não espera acontecer”, seria dali em diante o grito de
guerra de toda manifestação contra o regime político vigente no
Brasil e que estava perto de apertar ainda mais o cerco contra a
liberdade.

- Uma década de revoluções

A década de 1960 foi uma das décadas mais movimentadas


da história da humanidade. Com o fantasma da Segunda Guerra
um pouco mais longe, o mundo estava preparado para mudanças
drásticas que mudariam o rumo dos acontecimento nas próximas
décadas, e por que não dizer nas próximas gerações.
Um dos principais acontecimentos desse período foi a
explosão dos Beatles em 1962, que se arrastou durante toda a
década, com eles ainda em atividade. Dizem que depois que
surgiram nunca, em parte alguma do globo, se deixou de tocar
uma canção da banda.
O mundo estava em plena mudança e efervescência cultural.
O contexto da Guerra Fria deixou tudo mais livre, e ao mesmo
tempo, a repressão aumentou. Algo paradoxal já que a juventude
nascida nos anos da Grande Guerra chegava então ao seu tempo,
à sua época e não queria saber de cerceamento de qualquer tipo
de coisa. Era a juventude da liberdade, do amor livre.

88
Caminhando e Cantando

A segunda metade da década foi no Brasil e no mundo


inteiro uma época de vários movimentos culturais e políticos
que marcam nosso tempo. 1968 foi o ano que marcou esse
período. Foi o ano em que se eclodiram por diversas partes do
mundo várias manifestações que culminaram nos mais
importantes avanços culturais e sociais do século XX.
Em maio de 1968, uma greve geral se instala na França, a
partir de manifestações estudantis nas universidades Sorbonne e
Nanterre, reprimido pelo governo de Charles de Gaulle. A partir
desse ato dos jovens franceses uma reação em cadeia se
espalhou pelo ocidente e várias manifestações estudantis
ocorreram em diversos países da Europa e América. 1968 é
tratado por muitos como o ano que não terminou, como diz o
título do best-seller de Zuenir Ventura.
O mês de maio de 1968 representou o auge de um momento
histórico de intensas transformações políticas, culturais e
comportamentais que marcaram a segunda metade do século 20.
No Brasil não foi diferente. As primeiras grandes
manifestações contra a ditadura também surgiram nessa época.
“A Passeata dos Cem Mil” foi um marco no combate à
repressão do regime militar. A manifestação aconteceu em 28 de
junho de 1968 nas ruas do Rio de Janeiro, depois que o
estudante Edson Luis de Lima Souto, de 17 anos fora morto
durante uma invasão de militares no Restaurante Calabouço, que
funcionava na escola em que Edson Luis estudava. Os
estudantes estavam protestando contra o preço das refeições.
A morte do estudante comoveu o país inteiro e todos os
setores da sociedade civil se revoltaram contra o ato. O velório e
o enterro do rapaz foram acontecimentos colossais em que uma
multidão de pessoas participou protestando e bradando contra a
violência dos militares.

89
Marco Antonio Gonçalves

No dia 4 de junho foi realizada uma missa na igreja da


Candelária, no centro do Rio, para milhares de pessoas. A
cavalaria da polícia interveio e dezenas de pessoas ficaram
feridas.
Então foi organizada pelos colegas de Edson Luis uma
passeata, nela estavam presentes mais de cem mil pessoas, que
bradavam gritos de guerra contra o governo e à violência e
tendo a frente uma faixa dizendo: “Abaixo a ditadura, o povo no
poder”. Na linha de frente da passeata vinham artistas e
intelectuais que davam apoio total a causa. Entre os músicos
presentes estavam Chico Buarque de Hollanda, Edu Lobo,
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Nana
Caymmi, Nara Leão, Zé Rodrix, Jards Macalé e Vinicius de
Moraes. Ainda estavam estrelas do teatro como Tônia Carrero,
Grande Otelo e Paulo Autran. Escritores como Zuenir Ventura e
Clarice Lispector. Ainda havia duas pessoas que algumas
décadas à frente seriam eleitas para o posto máximo de poder no
país: Tancredo Neves e Dilma Rousseff.
Esse movimento ocasionou diversas insurreições contra a
ditadura em vários lugares do país. Essas manifestações
espalhadas pelo território nacional obrigaram o governo a
aumentar a repressão. Começavam os “Anos de Chumbo” no
Brasil.
Em 13 de dezembro de 1968 a liberdade no Brasil sofreu o
seu mais duro golpe com o decreto do Ato Institucional número
5. O AI-5 dava poderes absolutos ao presidente da república,
que então era o Marechal Arthur da Costa e Silva. O presidente
cassou direitos políticos, apertou a censura, proibiu qualquer
tipo de manifestação política e fechou o congresso nacional.
Grandes transformações musicais também ocorreram nesse
curto período de tempo, por isso os anos 60, principalmente os
últimos anos dessa década são importantíssimos para se

90
Caminhando e Cantando

entender o cenário musical brasileiro e mundial de hoje em dia.


Foi naquele período que surgiram conceitos que moldaram as
gerações que ainda viriam. Nesses anos surgiram ou estavam no
auge grupos musicais e cantores que hoje são considerados
sinônimos de música.
Aqui no nosso país, tendo o contexto da ditadura como pano
de fundo, ocorreram grandes transformações na nossa música. O
declínio da bossa nona em território brasileiro e o sucesso dela
na América do Norte, foi um dos motivos que levaram a
rotulada MPB (aquela nascida nos festivais) a ganhar espaço e
cada vez mais adeptos e fãs, como já foi dito.
Tropicalismo
Junto com os festivais televisivos, músicos que fizeram
sucesso nessa época também fizeram movimentos musicais
paralelos às competições. O mais notório deles, e o que mais
teve efeito popular, sem dúvida, foi o Tropicalismo de Gilberto
Gil e Caetano Veloso.
Embora já tenha aparecido vários expoentes da Tropicália
anteriormente, somente em 1968, esse movimento ganhou um
disco e uma cara definitiva, se é que possamos dar uma cara a
“confusão” que criaram Caetano e Gil na música brasileira.
Eles achavam que a música brasileira entrava numa onda de
caretice tremenda, com suas músicas padronizadas pelos
festivais e pelo imenso nacionalismo que tomou conta desse
universo.
Eles misturaram em suas músicas diversos ritmos, além de
MPB e bossa nova, também o rock, com as guitarras elétricas, o
pop, o folk, e ritmos latinos, criando sua própria identidade.
Caetano durante o festival em que “Alegria Alegria” ficou
em quarto lugar, disse o que era música pop para ele. “Não sei
se o que a gente está fazendo é pop. Isso é uma coisa que eu
admito como termo porque de alguma forma a gente está fadado

91
Marco Antonio Gonçalves

para um tipo de cultura pop, quer dizer de assumir todas as


formas de cultura massificada. Por exemplo, revistas em
quadrinhos, que é uma coisa pop. Utilizamos todos os
elementos, das coisas que tem sucesso de massa, de
comunicação direta com a massa.”
Naquele momento no Brasil, havia uma dualidade na
música. De um lado, a elite intelectual que prezava pelo
conservadorismo e o nacionalismo da MPB e de outro lado a
adesão dos jovens à música de Roberto Carlos e da Jovem
Guarda e o rock internacional.
Caetano e Gil viram uma oportunidade de criar uma terceira
opção, adotando essas tendências e misturando com outras
jamais testadas. “Alegria Alegria” e “Domingo no Parque”
foram as bases do movimento tropicalista, que não teve apenas
adeptos na música. Também repercutiu no cinema com Glauber
Rocha, que fez “Terra em Transe” na época, nas artes com Hélio
Oiticica e no teatro com José Celso Martinez Corrêa, diretor
anárquico de “Roda-Viva”.
O disco marco desse movimento só sai em 1968, quase um
ano após o festival da Record. Os artistas entraram no estúdio e
só saíram de lá com o disco finalizado. Caetano cuidou do
repertório, que contou com composições inéditas dele, de Gil, de
Tom Zé e de Torquato Neto, além de outras três canções antigas
adaptadas à versão tropicalista.
O disco manifesto teve a participação de diversos artistas. Os
baianos Gil, Caetano, Tom Zé e Gal Costa. Além dos Mutantes
e de Nara Leão, musa da bossa nova, musa da MPB e agora
musa da Tropicália.
Caetano disse à escritora argentina Violeta Weinschelbaun,
no livro “Estação Brasil”, que naquela época o mundo passava
por grandes mudanças e que no Brasil essas mudanças eram
muito fortes. “O que eu fiz com os colegas próximos na segunda

92
Caminhando e Cantando

metade dos anos sessenta estava carregado dessas forças de


transformação e teve muita influência no futuro da Música
Popular Brasileira. Tudo o que fazemos hoje, e os que vieram
depois, devem algo a essa mudança.”
Caetano vai mais longe. “Pode-se dizer que àqueles que
trabalharam com o rock no Brasil depois de 1967, não teriam
alcançado a amplitude que conseguiram se não fosse o
Tropicalismo. Milton Nascimento não teria coragem e a
naturalidade de mostrar sua admiração pelos Beatles, senão
fosse o tropicalismo”, disse o compositor.
Em “Verdade Tropical” ele diz que a música tropicalista se
parecia muito mais com a de Roberto Carlos do que com a MPB
de Elis Regina, maior defensora do que Caetano chama de
“Frente Única da Música Popular Brasileira contra o Iê-iê-iê”.
“Tínhamos e ainda temos, como limites, os discos de João
arranjado por Jobim. Elis e Roberto apresentavam exemplos
opostos de profissionalismo. E os resultados obtidos por ele nos
interessava mais dos que os atingidos por ela”, escreveu
Caetano.
Nesse mesmo ano houve, a “Passeata em favor da música
brasileira”, conhecida como “Passeata contra a guitarra
elétrica”, pois esse era o real motivo da manifestação: o uso de
elementos estrangeiros na música feita em nosso país, como a
guitarra. A passeata foi liderada por Elis Regina e Ronaldo
Bôscoli e teve na linha de frente Wilson Simonal, Jair
Rodrigues, Geraldo Vandré e pasmem Gilberto Gil. Justo ele
que era um dos que mais usava o instrumento. Caetano explica a
participação de Gil naquele momento. “Era para Gil aproveitar a
oportunidade para lançar as bases da grande virada que
tramávamos”, escreveu ele. “Mas nunca apoiei essa ida dele a
essa passeata”.

93
Marco Antonio Gonçalves

O show de Caetano e Gil nesse período chocou muita gente.


Era um espetáculo provocador, como nunca havia sido feito no
Brasil. Em uma das performances, Caetano cantava “É proibido
proibir” deitado, depois viriam vários sons de guitarras
distorcidos feitos por Gil e um hippie americano urrava
descontroladamente como um bicho em cima de Caetano que
voltava a cantar a canção. Muitos saíam do local antes mesmo
da metade da apresentação.
Segundo Caetano, ao escrever em seu livro sobre o show, ele
foi o espetáculo mais bem sucedido do tropicalismo. “Pelo
menos era o que melhor expunha nosso interesse estático e
nossa capacidade de realização”.
Segundo Gil, os tropicalistas continuaram esse trabalho,
mesmo depois daquele disco. “Nós tropicalistas sempre vamos
ser de vanguarda, sempre vamos lançar novas coisas. Os
tropicalistas sempre serão tropicalistas”, afirmou o cantor.
Caetano resume a tropicália. “Foi a retomada de linha
evolutiva da música popular brasileira”, escreveu.

- Clube da Esquina

Milton Nascimento também surgiu nos festivais.


Impressionou muita gente com seu timbre e com suas
composições. “Bituca”, como é conhecido, nasceu no Rio de
Janeiro, em 1942 (mesmo ano que outros grandes de nossa
música: Caetano, Jorge Mautner, Tim Maia, Paulinho da Viola,
Gilberto Gil e Jorge Ben). Queria o destino que ele se torne o
maior nome da música de Minas Gerais, para onde foi ainda
bebê com sua família adotiva, que se instalara em Três Pontas,
cidade no sul do Estado.

94
Caminhando e Cantando

Em 1963, mudou-se para Belo Horizonte, onde conheceu


jovens compositores como ele. Morava no mesmo prédio da
família Borges, que tinha nada menos que 11 irmãos com raro
talento musical. Entrou em um grupo com o irmão mais velho
Marilton. Ficou encantado com o talento do caçula, Salomão, o
Lô, e ficou o melhor amigo de Márcio. Em BH começou as ter
aulas de harmonia com Toninho Horta e formou com Beto
Guedes o duo “The Beavers”, depois de passar dias inteiros
ouvindo os Beatles sem se cansar ou parar. Os garotos de
Liverpool, que tanto influenciaram o Tropicalismo, mexeriam
ainda mais com a turma de Minas Gerais.
Em um bar de BH, Lô Borges mostrou a Milton alguns
acordes soltos. Milton pegou seu violão e começou a compor
uma música em cima desses acordes, ao mesmo tempo Márcio
Borges escreveu a letra para a música. Nascia ali, a canção
“Clube da Esquina”, que daria nome ao movimento liderado por
Milton, que surgiu nas Gerais e se espalhou pelo mundo.
Clube da esquina pode ser qualquer reunião de pessoas em
uma esquina de qualquer cidade do planeta, mas se esse
cruzamento for o da Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis
(nome de duas cidades mineiras) em Belo Horizonte no bairro
de Santa Teresa, certamente deverá ser o grupo de músicos que
fizeram dessa esquina um lugar utópico que entrou para a
história de nossa música.
Milton, pouco tempo depois de chegar à capital, conheceu o
cantor Agostinho dos Santos, que, por sua vez, inscreveu três de
suas músicas no FIC, sem o conhecimento do compositor:
“Maria minha fé” “Morro Velho” e “Travessia”. Quando ficou
sabendo, Milton já tinha as três músicas classificadas para as
finais do festival.
O disco com esse título “Clube da Esquina” só viria a ser
lançado em 72, mas bem antes disto artistas mineiros estavam

95
Marco Antonio Gonçalves

espalhando os acordes desse movimento pelo Brasil e pelo


mundo.
Depois do disco “Travessia” de 1967, na esteira do sucesso
no Festival Internacional, Milton chamou a atenção de uma
gravadora estadunidense que o convidou para gravar um LP, que
saiu em 1968 sob o nome de “Courage”. Ele foi o representante
pós-bossa nova do Brasil no mundo.
Juntaram-se a Milton nesse movimento, além de Lô e
Márcio Borges, os músicos Fernando Brant, Beto Guedes,
Ronaldo Bastos, o pianista três-pontano Wagner Tiso, Toninho
Horta e Flávio Venturini, que viria a formar o 14-bis. Eles
combinavam música pop, folclore mineiro, Beatles, pitadas
jazzísticas e bossa-novistas, definitivamente algo estava
acontecendo em Minas.
Em “Estação Brasil”, Milton diz que não gostava que os
chamassem “grupo mineiro”. Eu não gostava desse negócio de
grupo e além do mais, não éramos todos mineiros, mas de
qualquer maneira aquilo tudo acabou virando um movimento.
Teve uma época que teve o Clube da Esquina e a Tropicália,
mas falávamos mais ou menos as mesmas coisas, só que de
maneiras diferentes.”
Com os discos e as músicas desse pessoal, o “Clube da
Esquina” saiu de Belo Horizonte e firmou seu nome junto aos
grandes da música brasileira. Como já foi dito, uma das maiores
influê influências para o Clube da Esquina e para a Tropicália e
também para muitas coisas que aconteceram no histórico ano de
1968 foram os Beatles, principalmente depois do lançamento em
1967 do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, o mais
psicodélico e considerado o melhor disco da Fab Four.
Também em 1967, morria na Bolívia o médico e
guerrilheiro argentino Ernesto “Che” Guevara. Um dos líderes
da revolução cubana, ele foi executado por tropas do exército

96
Caminhando e Cantando

boliviano na aldeia de La Higuera. A morte de Che inspirou a


música de Gilberto Gil “Soy loco por tí América”.
A utópica pretensão do homem de chegar à Lua se tornou
realidade nos pés do astronauta americano Neil Armstrong. O
mundo viu a Apollo 11 pousar na superfície lunar e seus três
passageiros caminharem sobre o satélite da terra no dia 20 de
julho de 1969.
Para a música o último ano da década de 60 também foi
bastante especial, como que para fechar esplendorosamente a
década que revolucionou a música mundial, aconteceu na
pequena cidade de Bethel, no Estado americano de Nova Iorque,
o Festival de Woodstock, reunindo astros do rock internacional
como Jimi Hendrix, Creedence Clearwater Revival, Janis Joplin
e The Who.
No Brasil, nascia O Pasquim, lançado por Jaguar, Sergio
Cabral e Tarso de Castro, o jornal que seria um dos maiores
opositores da ditadura, de maneira irreverente e sempre
provocadora, inclusive com entrevistas memoráveis de grande
nomes de nossa música. Quando os anos 70 já batiam à porta, o
governo militar dá seu mais duro golpe, até então, na música
brasileira: Caetano Veloso e Gilberto Gil têm de sair do país e
seguem em exílio rumo a Europa.
Antes disso, os tropicalistas foram presos por que, entre
outros motivos, cantaram a música “Boas Festas” (Já faz tempo
que eu pedi, mas o meu papai Noel não vem. Com certeza já
morreu, ou felicidade é brinquedo que não tem) com uma arma
apontada para a cabeça nas vésperas do natal de 1968, dias
depois do decreto do AI-5. Presos tiveram seus cabelões
raspados. Foram soltos em março do ano seguinte, sendo
mantidos em prisão domiciliar, sem poder falar publicamente.
Em julho, embarcaram para a Inglaterra.

97
Marco Antonio Gonçalves

Chico Buarque foi retirado à força de casa, no Rio, para


prestar depoimento em dezembro de 68, ficou horas no Dops
(Departamento de Ordem Política e Social) e não podia sair da
cidade sem comunicar as Forças Armadas. No ano seguinte foi
para Paris e de lá, seguiu, para Roma, também em exílio, mas
espontâneo, pois não agüentava mais a pressão que sofria no
Brasil.

98
Caminhando e Cantando

Capítulo 4
- Afirmação e renovação
AMANHÃ VAI SER OUTRO DIA
HOJE VOCÊ É QUEM MANDA
FALOU, TÁ FALADO
NÃO TEM DISCUSSÃO, NÃO
A MINHA GENTE HOJE ANDA
FALANDO DE LADO E OLHANDO PRO CHÃO
VIU?

VOCÊ QUE INVENTOU ESSE ESTADO


INVENTOU DE INVENTAR
TODA ESCURIDÃO
VOCÊ QUE INVENTOU O PECADO
ESQUECEU-SE DE INVENTAR O PERDÃO

APESAR DE VOCÊ
AMANHÃ HÁ DE SER OUTRO DIA
EU PERGUNTO A VOCÊ ONDE VAI SE ESCONDER
DA ENORME EUFORIA?
COMO VAI PROIBIR
QUANDO O GALO INSISTIR EM CANTAR?
ÁGUA NOVA BROTANDO
E A GENTE SE AMANDO SEM PARAR

QUANDO CHEGAR O MOMENTO


ESSE MEU SOFRIMENTO
VOU COBRAR COM JUROS. JURO!
TODO ESSE AMOR REPRIMIDO

99
Marco Antonio Gonçalves

ESSE GRITO CONTIDO


ESSE SAMBA NO ESCURO

VOCÊ QUE INVENTOU A TRISTEZA


ORA TENHA A FINEZA
DE "DESINVENTAR"
VOCÊ VAI PAGAR, E É DOBRADO
CADA LÁGRIMA ROLADA
NESSE MEU PENAR

APESAR DE VOCÊ
AMANHÃ HÁ DE SER OUTRO DIA
AINDA PAGO PRA VER
O JARDIM FLORESCER
QUAL VOCÊ NÃO QUERIA
VOCÊ VAI SE AMARGAR
VENDO O DIA RAIAR
SEM LHE PEDIR LICENÇA
E EU VOU MORRER DE RIR
E ESSE DIA HÁ DE VIR
ANTES DO QUE VOCÊ PENSA

APESAR DE VOCÊ
APESAR DE VOCÊ
AMANHÃ HÁ DE SER OUTRO DIA
VOCÊ VAI TER QUE VER
A MANHÃ RENASCER
E ESBANJAR POESIA
COMO VAI SE EXPLICAR
VENDO O CÉU CLAREAR, DE REPENTE
IMPUNEMENTE?
COMO VAI ABAFAR

100
Caminhando e Cantando

NOSSO CORO A CANTAR


NA SUA FRENTE

APESAR DE VOCÊ
APESAR DE VOCÊ
AMANHÃ HÁ DE SER OUTRO DIA
VOCÊ VAI SE DAR MAL, ETC E TAL
LA, LAIÁ, LA LAIÁ, LA LAIÁ

Chico Buarque estava em auto-exílio na Itália, onde chegou


até a passar dificuldades financeiras, com a mulher, a atriz
Marieta Severo grávida. Voltou de lá em março de 1970, porque
André Midani havia lhe dito que “as coisas estavam melhorando
no Brasil”. Quando voltou percebeu que o amigo estava
completamente equivocado. Nunca as coisas estiveram tão ruins
no Brasil, principalmente para um artista com fama de rebelde,
como era Chico.
Todas as artes eram obrigadas a passar antes pelos agentes
da censura. As redações de jornal não viviam sem a presença de
censores, as manifestações eram cada vez mais reprimidas e
havia denúncias de tortura a presos políticos. A liberdade no
Brasil estava em seu pior momento nas mãos do general Emilio
Garrastazu Médici, que assumira o poder em outubro de 1969.
“Apesar de Você” é a música mais marcante dessa época
chamada de “Anos de Chumbo”.
A letra é clara e não deixa dúvidas para quem ela era
dirigida, se a pessoa souber ler nas entrelinhas, o que não era o
caso do censor federal que liberou a música, lançada em 1970
em um compacto, vendendo rapidamente mais de 100 mil
cópias. Somente depois do sucesso enorme e da música tocar em
todas as rádios que o governo percebeu que o “você” da música
se referia ao presidente Médici. A polícia recolheu todos os

101
Marco Antonio Gonçalves

discos das lojas, proibiu sua execução pública e invadiu a


fábrica e destruiu o estoque. A música foi caçada como um
bicho. Mas da memória do povo, o governo não conseguiu tirar
a canção. “Apesar de Você” é uma das únicas músicas que
Chico admite ser de protesto contra a ditadura.
Os anos 70 representaram para a música brasileira um
período de afirmação dos nomes que se consagraram na década
anterior, foi nessa década que alguns dos principais músicos do
país compuseram obras que se tornaram obras primas do
cancioneiro popular. Também nessa época surgiram artistas que
também se destacaram em meio a tantos talentos que o Brasil já
tinha na MPB e no rock.
Em 1970, o Brasil buscava o tri campeonato mundial de
futebol no México, depois do vexame em 66. O Brasil foi
tomado por uma onda de ufanismo geral com as canções “Eu te
amo, meu Brasil”, de Dom e Ravel e “Pra Frente Brasil”, de
Miguel Gustavo, essas canções foram usadas pelo governo em
inúmeras atrações cívicas e junto com o slogan, “Brasil: Ame-o
ou Deixe-o”, eram os carros-chefes da propaganda governista.
Depois da excelente campanha da Seleção, o sentimento
ufanista tomou conta do país e era só o que se ouvia:

EU TE AMO MEU BRASIL, EU TE AMO


MEU CORAÇÃO É VERDE, AMARELO, BRANCO, AZUL ANIL
EU TE AMO MEU BRASIL, EU TE AMO
NINGUÉM SEGURA A JUVENTUDE DO BRASIL

Chico Buarque disse em entrevista ao programa Ensaio da


TV Cultura, em 1988, que “era espantoso ver que as mesmas
pessoas que cantavam entusiasticamente Apesar de Você eram
as mesmas que cantavam Eu te amo meu Brasil”, que foi
sucesso com o grupo Os Incríveis.

102
Caminhando e Cantando

As coisas estavam feias para todos os artistas no Brasil. Os


únicos a manter o imenso sucesso eram Roberto Carlos e Wilson
Simonal, os dois cantores mais populares do Brasil na época.
Roberto Carlos é considerado pelos entusiastas mais xiitas
da MPB como um cantor alienado. É visto como a cara da
ditadura. Obviamente, qualquer comentário que se faça nesse
sentido será uma tremenda injustiça com o artista mais popular
que o Brasil já conheceu. O “Rei” não tem culpa de a ditadura
ter começado quando ele já fazia tremendo sucesso cantando
música jovem. Ele não tem culpa de outros artistas partirem para
outros rumos e ele querer ficar naquilo que gostava e que estava
dando mais que certo.
Tanto é assim, que é admirado, por expoentes da luta contra
o governo militar, como Chico Buarque e Caetano Veloso, seus
amigos pessoais. Ele e Erasmo mantiveram sua linha de
composições coerentemente na época do governo militar e por
não mudar sua linha fizeram por merecer em alguns momentos
os títulos de cantores da ditadura, mas isso não quer dizer que
ele apoiava o regime.
O jornalista Pedro Alexandre Sanches afirma: “Roberto
Carlos é grande (mesmo que seja de direita), também porque, do
outro lado do espelho, a maioria absoluta dos brasileiros que o
inventaram, fermentaram e fizeram vicejar ignora solenemente a
luta maniqueísta do “bem” contra o “mal” que a MPB inventou
para si. Esses preferem dar de ombros ao falatório estéril e
seguir assoviando pela taba “Detalhes”, “Cavalgada”, “Eu Sou
Terrível”, “Emoções”, “Quero Que Vá Tudo pro Inferno”.
O Rei foi em 1970 a Londres, onde visitou os amigos
exilados Gilberto Gil e Caetano Veloso. Escreveu então uma
música para Caetano, que depois retribuiu com “Força
Estranha”. É a única música de Roberto que tem alguma ligação
direta contra a ditadura.

103
Marco Antonio Gonçalves

UM DIA A AREIA BRANCA


TEUS PÉS IRÃO TOCAR
E VAI MOLHAR SEUS CABELOS
A ÁGUA AZUL DO MAR

JANELAS E PORTAS VÃO SE ABRIR


PRA VER VOCÊ CHEGAR
E AO SE SENTIR EM CASA
SORRINDO VAI CHORAR

DEBAIXO DOS CARACÓIS DOS SEUS CABELOS


UMA HISTÓRIA PRA CONTAR
DE UM MUNDO TÃO DISTANTE
DEBAIXO DOS CARACÓIS DOS SEUS CABELOS
UM SOLUÇO E A VONTADE
DE FICAR MAIS UM INSTANTE

AS LUZES E O COLORIDO
QUE VOCÊ VÊ AGORA
NAS RUAS POR ONDE ANDA
NA CASA ONDE MORA
VOCÊ OLHA TUDO E NADA
LHE FAZ FICAR CONTENTE
VOCÊ SÓ DESEJA AGORA
VOLTAR PRA SUA GENTE

DEBAIXO DOS CARACÓIS DOS SEUS CABELOS


UMA HISTÓRIA PRA CONTAR
DE UM MUNDO TÃO DISTANTE
DEBAIXO DOS CARACÓIS DOS SEUS CABELOS
UM SOLUÇO E A VONTADE

104
Caminhando e Cantando

DE FICAR MAIS UM INSTANTE

VOCÊ ANDA PELA TARDE


E O SEU OLHAR TRISTONHO
DEIXA SANGRAR NO PEITO
UMA SAUDADE, UM SONHO
UM DIA VOU VER VOCÊ
CHEGANDO NUM SORRISO
PISANDO A AREIA BRANCA
QUE É SEU PARAÍSO

Roberto Carlos disse certa vez: "Eu sou o que sou e acho que
tenho o direito de ser assim. Existem aqueles que se propõem a
ser líderes, a fazer uma série de coisas, a tomar um monte de
atitudes; eu resolvi exatamente tomar um outro tipo de atitude e
que talvez conduza a resultados que esses críticos não
conseguiram apreender em meu trabalho."
O escritor Paulo César de Araújo, biógrafo proibido do
cantor afirma: “Roberto Carlos surgiu em um tempo de guerra e
em que todos tinham de tomar posições claras sobre todos os
assuntos: da política à arte, da cibernética à chegada do homem
na Lua, de Roberto Campos a Marshall. Os cantores de
formação universitária como Caetano Veloso, Gilberto Gil e
Chico Buarque tiravam isso de letra. Já os cantores suburbanos,
de pouca escolaridade e sem hábito de leitura, como Roberto, o
que iam dizer sobre esses temas?”
Caetano escreve em seu livro: “Nós sentíamos nele a
presença simbólica do Brasil. Como um rei de fato, ele
claramente falava e agia em nome do Brasil com mais
autoridade e propriedade do que os milicos que nos tinham
expulsado, do que a embaixada brasileira em Londres que me
considerava persona non grata, e muito mais do que os

105
Marco Antonio Gonçalves

intelectuais, artistas e jornalistas de esquerda que a princípio não


nos entenderam e, agora, queriam nos mitificar: Roberto era o
Brasil profundo.”
Wilson Simonal, o outro cantor que lotava estádios pra ver
suas apresentações, teve um destino totalmente diferente do de
Roberto Carlos. Simonal estourara no final da década de 1960,
vendeu milhões de cópias e rivalizava com Roberto no posto de
artista mais popular do país. Tinha um estilo malandro e se dizia
do estilo “pilantragem”, com o sucesso, veio o dinheiro e os
problemas. Cercou-se de pessoas que não eram dignas de
confiança e também esnobava o seu sucesso com carrões e
mulheres. Nelson Motta escreveu em Noites Tropicais: “Quanto
mais sucesso fazia, mais arrogante se tornava, mais vaidoso,
mais autosuficiente, e mais gente tinha a sua volta. No palco era
divertidíssimo, mas na vida real cada vez mais gente o detestava
pelas costas”.
Quando voltou ao Brasil de uma viagem, percebeu que havia
uma discrepância muito grande nas contas de sua empresa, que
administrava todos os seus bens. Demitiu seu contador e
chamou dois amigos militares para arrancar a confissão do
contador e saber onde havia ido parar o dinheiro. O contador de
Simonal foi espancado nas dependências do Dops e confessou o
desfalque. Ele prestou queixa contra o cantor por espancamento.
O caso veio a público. Um dos oficiais do exército testemunhou
a favor do cantou dizendo que estecolaborava com o Dops.
Ser acusado de dedo-duro nessa época era a pior coisa que
podia acontecer a algum artista. Simonal foi condenado a cinco
anos de prisão, que cumpriu em liberdade, mas já era tarde.
Estava acabado. Não tinha amigos, dinheiro e agora a fama
era de ser delator, em uma época que muitos eram torturados e
não entregavam seus companheiros e amigos.

106
Caminhando e Cantando

Nelson Motta diz: “Se era (delator) ou não, nunca se soube


ao certo. Mas por todos os motivos, não fazia o menor sentido
ser. Simonal era uma estrela, uma figura pública, não tinha
exatamente o perfil de alguém que fosse espionar seus colegas”.
O compositor Paulo Vanzolini, no entanto, afirma, em
entrevista ao Caderno 2 do Estadão, que Simonal era, de fato,
"dedo duro" do regime militar e complementa: "Essa
recuperação que estão fazendo do Simonal é falsa. Ele era dedo-
duro mesmo. Ele se gabava de ser dedoduro da ditadura' (...) na
frente de muitos amigos ele dizia 'eu entreguei muita gente
boa'”. Nunca ficou nada provado e Simonal sempre tentou
provar quer era inocente das acusações de delação. Ficou
relegado ao esquecimento, morreu em 2000, alcoólatra, pobre e
se dizendo inocente.
Na década de 1970, também surgiram novos nomes na MPB,
vindos de várias partes do país.Provenientes do MAU
(Movimento Artístico Universitário) vieram Ivan Lins, Luiz
Gonzaga Júnior e Aldir Blanc. Gonzaguinha, filho adotivo do
rei do baião, começou a carreira nos festivais, já em declínio no
início da década. Suas letras eram extremamente críticas ao
governo e à situação social no Brasil. Certa vez, entregou 70,
músicas à censura, 54 foram vetadas. Seu primeiro sucesso,
“Comportamento Geral”, de 1973, era uma dura crítica a
situação que o povo brasileiro vivia nos anos do governo
Médici.

VOCÊ DEVE NOTAR QUE NÃO TEM MAIS TUTU


E DIZER QUE NÃO ESTÁ PREOCUPADO
VOCÊ DEVE LUTAR PELA XEPA DA FEIRA
E DIZER QUE ESTÁ RECOMPENSADO
VOCÊ DEVE ESTAMPAR SEMPRE UM AR DE ALEGRIA
E DIZER: TUDO TEM MELHORADO

107
Marco Antonio Gonçalves

VOCÊ DEVE REZAR PELO BEM DO PATRÃO


E ESQUECER QUE ESTÁ DESEMPREGADO
VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE
TUDO VAI BEM, TUDO LEGAL
CERVEJA, SAMBA, E AMANHÃ, SEU ZÉ
SE ACABAREM COM O TEU CARNAVAL?
VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE
TUDO VAI BEM, TUDO LEGAL
CERVEJA, SAMBA, E AMANHÃ, SEU ZÉ
SE ACABAREM COM O TEU CARNAVAL?
VOCÊ DEVE APRENDER A BAIXAR A CABEÇA
E DIZER SEMPRE: "MUITO OBRIGADO"
SÃO PALAVRAS QUE AINDA TE DEIXAM DIZER
POR SER HOMEM BEM DISCIPLINADO
DEVE POIS SÓ FAZER PELO BEM DA NAÇÃO
TUDO AQUILO QUE FOR ORDENADO
PRA GANHAR UM FUSCÃO NO JUÍZO FINAL
E DIPLOMA DE BEM COMPORTADO
VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE
TUDO VAI BEM, TUDO LEGAL
CERVEJA, SAMBA, E AMANHÃ, SEU ZÉ
SE ACABAREM COM O TEU CARNAVAL?
VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE
TUDO VAI BEM, TUDO LEGAL
CERVEJA, SAMBA, E AMANHÃ, SEU ZÉ
SE ACABAREM COM O TEU CARNAVAL?
VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE
TUDO VAI BEM, TUDO LEGAL
E UM FUSCÃO NO JUÍZO FINAL
VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE
E DIPLOMA DE BEM COMPORTADO
VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE

108
Caminhando e Cantando

ESQUEÇA QUE ESTÁ DESEMPREGADO


VOCÊ MERECE, VOCÊ MERECE
TUDO VAI BEM, TUDO LEGAL

Uma das mais contundentes músicas dos anos 70, compostas


por um dos principais compositores da década, “Comportamento
Geral”, foi censurada. Mostrava a verdadeira situação em que
vivia o povo. Contava a história de um homem sem dinheiro,
quase sem comida, sem emprego, sem dignidade, que tinha que
sempre demonstrar estar contente com a situação em que se
encontrava. Só lhe restava, o carnaval. E se lhe tirassem isso
também?, Indagava Gonzaguinha. Médici deixou escapar em
uma entrevista: “O Brasil vai bem, mas o povo vai mal”. A
música, totalmente engajada com a situação social do Brasil
mostra exatamente o que quer dizer a frase do presidente.
Mesmo que as coisas estivessem indo mal, não se podia falar,
não se podia criticar, não se podia, ao menos, saber disso, pois
as notícias eram também censuradas.
Julinho da Adelaide Chico Buarque chegou quase à
unanimidade com “Construção” em 1971, foi censurado em
“Calabar – O Elogio da Traição”, de 1972, peça escrita em
parceria com Ruy Guerra, que tinha clara intenção de relacionar
o personagem título ao Capitão Carlos Lamarca, que deixou o
exército para entrar na guerrilha e lutar contra os militares. A
imprensa foi proibida de citar o nome da peça e o disco “Chico
canta Calabar” foi trocado somente para “Chico canta”.
Também foi vetado em “Cálice”, parceria com Gil. A música
havia sido feita para o “Phono 73”, que reuniria a fina flor da
MPB. No dia do show, souberam que não poderiam cantá-la.
Mesmo assim mantiveram a música e iriam dizer versos
desconexos com a música ao fundo.

109
Marco Antonio Gonçalves

Quando os dois autores começaram a cantar, o microfone de


Chico foi desligado. Diziam que o trecho “de tão gorda a porca
já não anda” se referia a Delfim Neto, então ministro da
Fazenda, do governo Médici.
Todas as músicas que Chico mandava para a censura eram
censuradas ou cortadas. Entretanto, o compositor arrumou uma
maneira simples de fazer com que suas músicas fossem
aprovadas pelos censores. Mandava as músicas com outros
nomes. Nascia ali o genial Julinho da Adelaide.
Ele apareceu no disco “Sinal Fechado”, que Chico atuava
como intérprete e não parecia como autor de nenhuma canção.
O Grande sucesso do disco foi “Acorda Amor”, justamente de
Julinho da Adelaide.

ACORDA AMOR
EU TIVE UM PESADELO AGORA
SONHEI QUE TINHA GENTE LÁ FORA
BATENDO NO PORTÃO, QUE AFLIÇÃO
ERA A DURA, NUMA MUITO ESCURA VIATURA
MINHA NOSSA SANTA CRIATURA
CHAME, CHAME, CHAME LÁ
CHAME, CHAME O LADRÃO, CHAME O LADRÃO
ACORDA AMOR
NÃO É MAIS PESADELO NADA
TEM GENTE JÁ NO VÃO DE ESCADA
FAZENDO CONFUSÃO, QUE AFLIÇÃO
SÃO OS HOMENS
E EU AQUI PARADO DE PIJAMA
EU NÃO GOSTO DE PASSAR VEXAME
CHAME, CHAME, CHAME
CHAME O LADRÃO, CHAME O LADRÃO
SE EU DEMORAR UNS MESES

110
Caminhando e Cantando

CONVÉM, ÀS VEZES, VOCÊ SOFRER


MAS DEPOIS DE UM ANO EU NÃO VINDO
PONHA A ROUPA DE DOMINGO
E PODE ME ESQUECER
ACORDA AMOR
QUE O BICHO É BRABO E NÃO SOSSEGA
SE VOCÊ CORRE O BICHO PEGA
SE FICA NÃO SEI NÃO
ATENÇÃO
NÃO DEMORA
DIA DESSES CHEGA A SUA HORA
NÃO DISCUTA À TOA NÃO RECLAME
CLAME, CHAME LÁ, CHAME, CHAME
CHAME O LADRÃO, CHAME O LADRÃO, CHAME O LADRÃO
(NÃO ESQUEÇA A ESCOVA, O SABONETE E O VIOLÃO)

Se essa canção chegasse ao censor com o nome de seu autor


real, certamente seria expressamente proibida e Chico ainda
tomaria uma dura do governo, mas como Julinho da Adelaide
era desconhecido e não tinha antecedentes rebeldes, ela foi
liberada e se tornou sucesso. A música retrata o que Chico
passou quando foi retirado à força de casa para depor, sem a
certeza de que iria voltar. Ainda troca de posição, ladrão e
polícia. Afinal, quem era o bandido e quem era o mocinho?
Julinho ainda iria aprontar mais. Deu entrevista ao Pasquim
contando que sua inspiração era sua mãe, Adelaide. Elogiou a
censura e disse sentir ciúmes de Chico Buarque. Na canção
“Jorge Maravilha”, ele dizia, “Você não gosta de mim, mas sua
filha gosta”. É claro, que todos imaginaram de quem se tratava.
A filha do presidente Ernesto Geisel, que assumira o poder em
1974, Amália Lucy, disse em entrevista que gostava de Chico.
Você não gosta de mim,

111
Marco Antonio Gonçalves

MAS SUA FILHA GOSTA


VOCÊ NÃO GOSTA DE MIM,
MAS SUA FILHA GOSTA
(...)
E COMO JÁ DIZIA JORGE MARAVILHA
CHEIO DE RAZÃO
MAIS VALE UMA FILHA NA MÃO
DO QUE DOIS PAIS VOANDO

Chico sempre refutou essa teoria. Dizia que a música não


fora feito para a filha de Geisel. "Aconteceu de eu ser detido por
agentes de segurança (do Dops), e no elevador o cara pedir
autógrafo para a filha dele. Claro que não era o delegado, mas
aquele contínuo de delegado", disse ele em entrevista a Folha de
São Paulo.
Em 2007, em entrevista a Revista Almanaque Chico
afirmou: “Nunca fiz música pensando na filha do Geisel, mas
essas histórias colam, há invencionices que nem adianta mais
negar. Durante a ditadura, de um lado ou de outro, as pessoas
gostavam de atribuir aos artistas intenções que nunca lhe
passaram pela cabeça. Achavam que a maioria dos artistas só
fazia música pensando em derrubar o governo. Depois da
ditadura, falam que o artista só faz música para pegar mulher.
Mas aí geralmente acontece o contrário, o artista inventa uma
mulher para pegar a música.”
Julinho também escreveu “Milagre Brasileiro”, inspirado
pelo crescimento econômico tão alardeado pelo governo, mas
que fazia o pobre ficar cada vez mais pobre.

CADÊ O MEU?
CADÊ O MEU, Ó MEU?
DIZEM QUE VOCÊ SE DEFENDEU

112
Caminhando e Cantando

É O MILAGRE BRASILEIRO
QUANTO MAIS TRABALHO
MENOS VEJO DINHEIRO
É O VERDADEIRO BOOM
TU TÁ NO BEM BOM
MAS EU VIVO SEM NENHUM
CADÊ O MEU?
CADÊ O MEU, Ó MEU?
EU NÃO FALO POR DESPEITO
MAS, TAMBÉM, SE EU FOSSE EU
QUEBRAVA O TEU
COBRAVA O MEU
DIREITO

Mesmo sendo assinada por Julinho, a música desta vez não


passou pelos censores e só chegou aos discos em 1980. Logo
descobriram que Julinho da Adelaide era Chico, e acabou aí a
carreira do jovem talento. O governo passou a exigir cópia do
CPF e RG dos compositores que apresentassem uma música aos
censores.

- O Rock Setentista

Com Roberto Carlos investindo mais na música romântica e


com a expulsão de Rita Lee dos Mutantes, o rock brasileiro
parecia condenado ao esquecimento. Entretanto, em São Paulo,
surgia uma banda que iria transformar esse cenário, Os Secos &
Molhados, que tinha Ney Matogrosso nos vocais, e mais João
Ricardo e Gérson Conrad. Eles tocavam um rock progressivo e
apostavam em performances e caras pintadas no palco. Era um
assombro para a época. “Era uma loucura o que Ney

113
Marco Antonio Gonçalves

Matogrosso fazia. Naquela época, com a ditadura ainda em


vigor, o cara aparecia de sunga, rebolando. Ele virava a cabeça
das pessoas mesmo. Porque não tinha vergonha. Era rock’n roll
Brasilês, uma coisa bem brasileira”, disse Rita Lee, no livro
“Que rock é esse?”.
O grupo lançou apenas dois discos com a formação clássica,
o primeiro, em que a capa estampava a cabeça dos integrantes
sendo servida em uma bandeja, é considerado pela crítica como
um dos melhores discos de rock brasileiro. O cantor e
compositor Lobão, afirma que para ele esse é um disco de
referência. “Pra mim e pra minha música, o disco deles foi
fundamental, como o do Clube da Esquina”.
Em 74, o grupo lança seu segundo disco, também
aclamadíssimo pela crítica e pelo público.
Porém, a banda se dissolveu uma semana depois do
lançamento. Seus integrantes seguiram carreira solo, mas
Conrad continuou com o nome “Secos & Molhados” tocando e
lançando discos, mas sem sucesso. Ney Matogrosso se tornou a
partir dali uma das vozes mais conhecidas e admiradas do país, e
teria importante peso para o sucesso do Barão Vermelho, na
década seguinte.
Também nessa época surgiu um baiano que se tornaria um
mito da música e do rock. Raul Seixas sacudiu o Brasil e
começou a colecionar devotos com “Krig-há, Bandolo”, disco
de 1973, que tinha clássicos como “Mosca na sopa”,
“Metamorfose Ambulante” e “Ouro de Tolo”.
Nelson Motta diz que “Ouro de Tolo” era uma música
intensamente política. “Era um deboche sobre a ideia de um
Brasil grande, sonhos da classe média no governo Médici. Raul
esculhambou com tudo. A música era um folk sem-vergonha,
meio Bob Dylan, meio baladinha de Roberto Carlos, com letra
corrosiva”.

114
Caminhando e Cantando

EU DEVIA ESTAR CONTENTE


PORQUE EU TENHO UM EMPREGO
SOU UM DITO CIDADÃO RESPEITÁVEL
E GANHO QUATRO MIL CRUZEIROS
POR MÊS...
EU DEVIA AGRADECER AO SENHOR
POR TER TIDO SUCESSO
NA VIDA COMO ARTISTA
EU DEVIA ESTAR FELIZ
PORQUE CONSEGUI COMPRAR
UM CORCEL 73...

Raul começou a carreira na década de 1960, sem muito


sucesso. Quando conheceu Paulo Coelho, sua carreira se
transformou. Com ele, compôs seus maiores sucesso. A
combinação era perfeita, com letra de Paulo e Música de Raul, o
sucesso era certeiro. Dois doidões, malucos beleza, que juntos
compuseram músicas que são hoje clássicas e certamente ainda
embalam muita gente.
Criaram uma tal “Sociedade Alternativa”, que pregavam
com a canção de mesmo nome e que tinha como lema: “Fazes o
que tu queres, há de ser tudo da lei”. Tiveram que se explicar
aos censores. Os agentes do Dops prenderam Raul e Paulo,
pensando que a Sociedade Alternativa fosse um movimento
armado contra o governo. Depois de torturados, Raul (“Tomei
até choque no saco”, disse ele) e Paulo foram exilados para os
Estados Unidos. Lá veio uma de suas histórias mais
interessantes. Dissera que tinha se encontrado com John Lennon
no Edifício Dakota. Conversaram muito, tocaram violão.
“Quando me encontrei com Lennon nos EUA, conversamos
muito sobre figuras históricas do mundo. Num momento da

115
Marco Antonio Gonçalves

conversa, ele me perguntou: ‘E no Brasil? Quem é o tal?’ Fiquei


nervoso e falei a primeira coisa que me veio na cabeça: ‘um tal
de Café Filho’”, disse Raul posteriormente. Obviamente,
ninguém nunca soube se esse encontro realmente aconteceu ou
se era coisa da cabeça maluca, mas genial de Raul Seixas.
Raul continuou fazendo sucesso até sua morte, em 1989,
vítima do alcoolismo, que o acompanhou durante toda a sua
carreira. Paulo Coelho se tornou o escritor brasileiro mais lido e
mais vendido em todo o mundo e hoje é um imortal da
Academia Brasileira de Letras.
Os Novos Baianos, um grupo de hippies que cantavam rock
com pitadas de elementos nordestinos e moravam juntos em um
apartamento em Copacabana no Rio já faziam sucesso no início
da década. O grupo era formado por Moraes Moreira, Pepeu
Gomes, Baby Consuelo, Paulinho Boca de Cantor, Dadi e Luís
Galvão. Com “Acabou Chorare”, álbum de 1973, eles
alcançaram o sucesso, com as músicas “Preta Pretinha” e “Brasil
Pandeiro”, Em 2008, a Revista Rolling Stone elegeu o disco
como o melhor álbum da história da música brasileira.
Encerraram a carreira em 79, mas ainda tiveram vários retornos
aos palcos e aos discos nos anos seguintes.
Depois da saída conturbada dos Mutantes, Rita Lee lançou
uma nova banda, “Tutti Frutti”. Junto com a banda, conseguiu
sucesso de público ainda maior do que com Os Mutantes,
lançando clássicos como “Ovelha Negra” e “Agora só falta
você”.
O Clube da Esquina influenciou os grupos de rock de maior
sucesso no fim da década de 1970. O disco, como já foi dito,
lançado em 72, também inspirou o chamado Rock rural, que Sá,
Rodrix e Guarabira iniciaram. Destacam-se nesse período, as
bandas “O Terço”, de Flávio Venturini e Sagrado Coração da
Terra.

116
Caminhando e Cantando

O rock progressivo, principalmente inglês, deu sua


contribuição para a música brasileira. No Rio surgia no final da
década de 1970, o Vínama, banda que teve apenas um disco,
pouco sucesso, mas que lançou três importantes cantores e
compositores: Lulu Santos, Lobão e Ritchie. Enquanto em
Brasília, o Aborto Elétrico, de Renato Russo faz seus primeiros
shows e grava suas primeiras músicas.
Esse era um prenúncio do rock que viria nos anos 80, época
em que esse gênero floresceu expressivamente e se tornou o
símbolo da década.
Em meados da década, a música regional tomou conta do
país. Cantores vieram de várias partes do Brasil, principalmente
do Nordeste, e firmaram seus nomes na história da música.
Da Bahia, veio Simone; Pernambuco revelou Alceu Valença,
Geraldo Azevedo, Nana Vasconcelos e o Quinteto Violado; A
Paraíba trouxe para o cenário nacional Elba Ramalho, Zé
Ramalho.
Os artistas cearenses também tiveram destaque nos anos 70,
como é o caso de Ednardo, Belchior, gravado por diversos
artistas e autor de clássicos como “Apenas um rapaz latino
americano”, e “Como nossos pais”, um dos maiores sucessos na
voz de Elis Regina. Da cidade de Orós, veio Fagner, descoberto
por Nara Leão, assim como Maria Bethânia. Fagner foi um dos
cantores de MPB mais executados e mais respeitados da década
e continuou assim nos anos seguintes. Ele é autor de várias
canções clássicas como “Mucuripe”, em parceria com Belchior,
“Borbulhas de Amor”, parceria com o poeta Ferreira Gullar, e
“De volta ao Cariri”.
Um dos cantores de maior sucesso revelado nos anos 70 é o
alagoano Djavan. Ele lançou o primeiro LP em 76, com sucesso
de crítica e de público. Ao longo dos anos, ele colecionou hits e

117
Marco Antonio Gonçalves

foi um dos artistas que mais emplacou sucessos. Fez parcerias


com a fina flor da MPB e também com artistas do rock.
Porém, foi Tim Maia, o antigo amigo de Roberto, Erasmo e
Jorge Bem, o maior hitmaker da década emplacando um disco
de sucesso atrás do outro. Em 1975, Tim Maia lançou o
primeiro disco da série “Tim Maia-Racional”. O disco foi um
retumbante fracasso de vendas, deixando o artista em más
condições financeiras, mas pela crítica é considerado o melhor
disco do artista e um dos melhores da música brasileira.
Já perto do fim da década, estoura nos Estados Unidos a
Disco Music, com Donna Summer fazendo o papel de rainha. O
ritmo também foi embalado pelo sucesso do longa “Embalos de
Sábado à Noite”, com John Travolta e Olívia Newton-John.
No Brasil, essa onda chegou fortíssima. As discotecas
lotavam e as cores tomavam conta do cenário. A música de Tim
Maia se encaixou perfeitamente nesse ritmo e ele emplacou
mais sucessos, como “Sossego”.
Ainda no embalo de Travolta e Newton-John, Nelson Motta
abriu a danceteria Dancin’Days, Ainda se destacaram nesta
década, Fafá de Belém, do Norte e Kleiton e Kledir, dupla de
pop rock e MPB gaúcho.
Em 1976, a política nacional perde dois ex-presidentes de
maneiras jamais esclarecidas, Juscelino Kubtschek, morto em
um acidente de carro na Via Dutra, em Resende e João Goulart,
morto oficialmente por um ataque cardíaco. Posteriormente a
família, amigos e outras pessoas suspeitaram que ele houvesse
sido morto pela Chamada Operação Condor,que teria matado
também JK e políticos argentinos, além de colaborar com a
instalação da ditadura militar de Pinochet no Chile, com a
deposição e morte do presidente Salvador Allende, tudo isso em
menos de seis meses de diferença.

118
Caminhando e Cantando

No mesmo ano, Chico Buarque lança o disco “Meus Caros


Amigos”. Neste ano, manteve-se afastado do público, dedicou-
se à família e à filha recém-nascida Luísa. Ele não ficava à
vontade em apresentações em público e também não queria ficar
conhecido como símbolo da luta contra a ditadura.
Paradoxalmente, com o disco ele se tornou ainda mais popular e
a música título fez um sucesso tremendo. Era um recado ao
teatrólogo Augusto Boal, composta em parceria com Francis
Hime, seu mais novo parceiro.

MEU CARO AMIGO ME PERDOE, POR FAVOR


SE EU NÃO LHE FAÇO UMA VISITA
MAS COMO AGORA APARECEU UM PORTADOR
MANDO NOTÍCIAS NESSA FITA

AQUI NA TERRA TÃO JOGANDO FUTEBOL


TEM MUITO SAMBA, MUITO CHORO E ROCK'N'ROLL
UNS DIAS CHOVE, NOUTROS DIAS BATE SOL
MAS O QUE EU QUERO É LHE DIZER QUE A COISA AQUI TÁ PRETA

MUITA MUTRETA PRA LEVAR A SITUAÇÃO


QUE A GENTE VAI LEVANDO DE TEIMOSO E DE PIRRAÇA
E A GENTE VAI TOMANDO E TAMBÉM SEM A CACHAÇA
NINGUÉM SEGURA ESSE ROJÃO

MEU CARO AMIGO EU NÃO PRETENDO PROVOCAR


NEM ATIÇAR SUAS SAUDADES
MAS ACONTECE QUE NÃO POSSO ME FURTAR
A LHE CONTAR AS NOVIDADES

AQUI NA TERRA TÃO JOGANDO FUTEBOL


TEM MUITO SAMBA, MUITO CHORO E ROCK'N'ROLL

119
Marco Antonio Gonçalves

UNS DIAS CHOVE, NOUTROS DIAS BATE SOL


MAS O QUE EU QUERO É LHE DIZER QUE A COISA AQUI TÁ PRETA

É PIRUETA PRA CAVAR O GANHA-PÃO


QUE A GENTE VAI CAVANDO SÓ DE BIRRA, SÓ DE SARRO
E A GENTE VAI FUMANDO QUE, TAMBÉM, SEM UM CIGARRO
NINGUÉM SEGURA ESSE ROJÃO

MEU CARO AMIGO EU QUIS ATÉ TELEFONAR


MAS A TARIFA NÃO TEM GRAÇA
EU ANDO AFLITO PRA FAZER VOCÊ FICAR
A PAR DE TUDO QUE SE PASSA

MUITA CARETA PRA ENGOLIR A TRANSAÇÃO


E A GENTE TÁ ENGOLINDO CADA SAPO NO CAMINHO
E A GENTE VAI SE AMANDO QUE, TAMBÉM, SEM UM CARINHO
NINGUÉM SEGURA ESSE ROJÃO
MEU CARO AMIGO EU BEM QUERIA LHE ESCREVER
MAS O CORREIO ANDOU ARISCO
SE ME PERMITEM, VOU TENTAR LHE REMETER
NOTÍCIAS FRESCAS NESSE DISCO

A MARIETA MANDA UM BEIJO PARA OS SEUS


UM BEIJO NA FAMÍLIA, NA CECÍLIA E NAS CRIANÇAS
O FRANCIS APROVEITA PRA TAMBÉM MANDAR LEMBRANÇAS
A TODO O PESSOAL
ADEUS

O amigo de Chico era Augusto Boal, famoso teatrólogo,


exilado em Portugal. Ele sempre reclamava que os amigos não
lhe mandavam notícias. Chico pediu a Hime que fizesse um
chorinho para que ele fizesse a letra. Mandou a Portugal uma

120
Caminhando e Cantando

fita com a música-carta. Na letra ele explica como as coisas


estavam no Brasil: “a coisa aqui ta preta”.
Essa era uma época um momento de transição entre os
“Anos de Chumbo” no governo Médici, para um momento mais
estável, do governo Geisel. O ar estava mais respirável, mas o
disco ainda assim sofreu cortes da censura.
Apesar da faixa-título ser um grande sucesso, a música mais
emblemática é a faixa composta em parceria com Milton
Nascimento e uma das mais famosas de ambos: “O que será (à
flor da terra)

O QUE SERÁ QUE SERÁ


QUE ANDAM SUSPIRANDO
PELAS ALCOVAS?
QUE ANDAM SUSSURRANDO
EM VERSOS E TROVAS?
QUE ANDAM COMBINANDO
NO BREU DAS TOCAS?
QUE ANDA NAS CABEÇAS?
ANDA NAS BOCAS?
QUE ANDAM ACENDENDO
VELAS NOS BECOS?
ESTÃO FALANDO ALTO
PELOS BOTECOS
E GRITAM NOS MERCADOS
QUE COM CERTEZA
ESTÁ NA NATUREZA
SERÁ, QUE SERÁ?
O QUE NÃO TEM CERTEZA
NEM NUNCA TERÁ!
O QUE NÃO TEM CONCERTO
NEM NUNCA TERÁ!

121
Marco Antonio Gonçalves

O QUE NÃO TEM TAMANHO...


O QUE SERÁ? QUE SERÁ?
QUE VIVE NAS IDÉIAS
DESSES AMANTES
QUE CANTAM OS POETAS
MAIS DELIRANTES
QUE JURAM OS PROFETAS
EMBRIAGADOS
ESTÁ NA ROMARIA
DOS MUTILADOS
ESTÁ NAS FANTASIAS
DOS INFELIZES
ESTÁ NO DIA A DIA
DAS MERETRIZES
NO PLANO DOS BANDIDOS
DOS DESVALIDOS
EM TODOS OS SENTIDOS
SERÁ, QUE SERÁ?
O QUE NÃO TEM DECÊNCIA
NEM NUNCA TERÁ!
O QUE NÃO TEM CENSURA
NEM NUNCA TERÁ!
O QUE NÃO FAZ SENTIDO...
O QUE SERÁ? QUE SERÁ?
QUE TODOS OS AVISOS
NÃO VÃO EVITAR
PORQUE TODOS OS RISOS
VÃO DESAFIAR
PORQUE TODOS OS SINOS
IRÃO REPICAR
PORQUE TODOS OS HINOS
IRÃO CONSAGRAR

122
Caminhando e Cantando

E TODOS OS MENINOS
VÃO DESEMBESTAR
E TODOS OS DESTINOS
IRÃO SE ENCONTRAR
E MESMO PADRE ETERNO
QUE NUNCA FOI LÁ
OLHANDO AQUELE INFERNO
VAI ABENÇOAR!
O QUE NÃO TEM GOVERNO
NEM NUNCA TERÁ!
O QUE NÃO TEM VERGONHA
NEM NUNCA TERÁ!
O QUE NÃO TEM JUÍZO...

A música se transformou em senha para que as pessoas


pudessem voltar a lutar pela volta das liberdades democráticas.
“O que será” mostrou o descontentamento e o desejo de
mudanças que começava a tomar conta dos brasileiros.
A distenção, prometida por Geisel, seria “lenta, gradual e
segura”. Em agosto de 1979, veio a tão esperada lei da anistia (o
AI-5 já havia sido abolido em janeiro do mesmo ano)
promulgada pelo governo João Baptista Figueiredo, que assumiu
o poder no mesmo ano. Com ela vários exilados puderam voltar
ao Brasil e assim retomar suas carreiras.
Antes da promulgação dessa lei, o compositor mineiro João
Bosco escreveu uma das mais bonitas letras e música sobre a
ditadura militar, que ganhou o mundo na interpretação de Elis
Regina e se tornou seu maior sucesso.

CAÍA A TARDE FEITO UM VIADUTO


E UM BÊBADO TRAJANDO LUTO
ME LEMBROU CARLITOS...

123
Marco Antonio Gonçalves

A LUA
TAL QUAL A DONA DO BORDEL
PEDIA A CADA ESTRELA FRIA
UM BRILHO DE ALUGUEL
E NUVENS!
LÁ NO MATA-BORRÃO DO CÉU
CHUPAVAM MANCHAS TORTURADAS
QUE SUFOCO!
LOUCO!
O BÊBADO COM CHAPÉU-COCO
FAZIA IRREVERÊNCIAS MIL
PRÁ NOITE DO BRASIL.
MEU BRASIL!...
QUE SONHA COM A VOLTA
DO IRMÃO DO HENFIL.
COM TANTA GENTE QUE PARTIU
NUM RABO DE FOGUETE
CHORA!
A NOSSA PÁTRIA
MÃE GENTIL
CHORAM MARIAS
E CLARISSES
NO SOLO DO BRASIL...
MAS SEI, QUE UMA DOR
ASSIM PUNGENTE
NÃO HÁ DE SER INUTILMENTE
A ESPERANÇA...
DANÇA NA CORDA BAMBA
DE SOMBRINHA
E EM CADA PASSO
DESSA LINHA
PODE SE MACHUCAR...

124
Caminhando e Cantando

AZAR!
A ESPERANÇA EQUILIBRISTA
SABE QUE O SHOW
DE TODO ARTISTA
TEM QUE CONTINUAR...

O Henfil de que fala a letra era o cartunista, jornalista e


escritor Henrique Filho, e seu irmão era Herbert de Souza,
sociólogo e ativista dos direitos humanos. Herbert foi um dos
exilados, como tantos outros que partiram. Tanto ele e o irmão
eram hemofílicos e morreram em decorrência da Aids, na
década de 1999, depois de pegarem a doença em uma transfusão
de sangue.
Já Clarice era esposa do jornalista Vladimir Herzog, que
fazia parte do movimento de resistência contra o regime e que
morreu nas dependências do DOI-CODI, por um suposto
suicídio, coisa que todos sabem não é verdade.
Maria, por sua vez, era esposa do metalúrgico Manuel Fiel
Filho, torturado até a morte sob a acusação de fazer parte do
Partido Comunista Brasileiro, embora seu real crime tenha sido
ler o jornal A Voz Operária. No plural, “Marias e Clarisses” são
todas as mulheres, sejam mães, filhas ou esposas, que sofreram
por alguém que fora torturado ou exilado.

125
Marco Antonio Gonçalves

Capítulo 5
- A década do rock
A penúltima década do século começa com o Brasil
acreditando que a democracia não demoraria a retornar. O
general João Batista Figueiredo que assumiu o poder em 1979,
prometia manter a “distenção lenta, gradual e segura”, iniciada
pelo seu antecessor. Os anistiados estavam de volta. O irmão do
Henfil já estava no Brasil, a censura era mais branda. A
juventude que cresceu dentro da ditadura começaria a dar seus
gritos em busca de liberdade. Partidos políticos nasciam. As
greves no ABC paulista lideradas por Lula e o surgimento de
partidos políticos como o PT, o PDT e o PMDB, demonstravam
que o povo já tinha opção. Que a ditadura não tardaria a ser
vencida.
No mundo, o socialismo também dava sinais de fraqueza. A
União Soviética não era mais tão poderosa quanto nas décadas
anteriores e os Estados Unidos cada vez mais iam tomando seu
lugar como única superpotência do planeta.
O mundo da música vivia agitado com as transformações,
afirmações e revoluções que os anos 70 mostraram. Os jovens
buscavam algo novo. Aquela velha música de festival já parecia
algo distante. Os adolescentes e os jovens adultos brasileiros não
queriam muito saber de Chico Buarque e sua turma. Queriam
fazer algo novo, muito inspirado pelo punk rock inglês ou pelo
new wave americano. Queriam mostrar que no Brasil também se
podia fazer esse tipo de rock, um rock diferente daquele feito
por Celly Campelo e depois por Roberto, Erasmo e toda a turma
da Jovem Guarda. Também não queriam imitar Rita Lee e os
Mutantes ou Raul Seixas e Os Secos & Molhados. Aos poucos,

126
Caminhando e Cantando

no início da década mágica de 1980, um período de mudanças


extraordinárias no mundo inteiro, essa geração nascida entre o
surgimento da bossa nova e a euforia dos festivais, mostraria ao
Brasil a que veio. Muitos deles já faziam música no final dos
anos 70, sem o devido sucesso, mas chegaria a hora dessa turma
toda começar uma revolução que mexeria com a música
brasileira.
Entretanto, em dezembro de 1980, a música mundial perde
seu maior ídolo, três anos depois do rei do rock, morria John
Lennon, o garoto de Liverpool. Mark Chapman deu três tiros
nas costas do artista enquanto ele entrava no edifício Dakota,
sua residência em Nova Iorque. O mundo inteiro se comoveu
com a morte de Lennon. As pessoas pararam ao redor do mundo
para lembrar as músicas dos Beatles e da carreira solo do cantor.
Ninguém queria acreditar. John Lennon estava morto.
Em 1980, o papa João Paulo II visita o Brasil. É o primeiro
pontífice da igreja católica a pisar o solo brasileiro. Visitou 13
cidades em 12 dias. Foi de Porto Alegre à Manaus, passando por
Brasília, recepcionado pelo presidente Figueiredo. Falou à
multidões de fiéis em todos os lugares. Em 1981, na Praça de
São Pedro, no Vaticano, sofreu um atentado a tiros. Foi alvejado
à queima-roupa pelo turco Mehmet Ali Agca. Anos depois a
banda Engenheiros do Hawaii faria sucesso com uma música
retratando o episódio. “O Papa é Pop” dizia: “O papa é pop. O
pop não poupa ninguém. Levou um tiro à queima-roupa. O pop
não poupa ninguém.” No final da letra, trocava papa por John
Lennon: “John Lennon levou um tiro à queima-roupa. O pop
não poupa ninguém”.
O mundo é sacudido em 1982, por sucessos dos dois
maiores artistas pop da história. Michael Jackson lança
“Thriller” e Madonna lança seu primeiro single, “Everybody”.

127
Marco Antonio Gonçalves

No Brasil, a violência de extremistas de direita também


aumentou nos primeiros anos da década. Foram registrados
ataques à bomba na sede da OAB (Ordem dos Advogados do
Brasil), Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e no centro de
eventos Riocentro. Enquanto isso, a pressão para se realizar
eleições democráticas para presidente crescia.

- Um circo, uma rádio, um grupo de teatro.

As bandas de rock surgidas no início dos anos 80 e fim dos


70 não tinham oportunidade de mostrar seu trabalho para um
público mais amplo. As rádios não ofereciam espaço para esse
tipo de música e os shows ficavam restritos a pequenos espaços
undergrounds e circuitos universitários. O público era pequeno e
o som era amador. Apenas pequenos grupos conheciam aquilo
que estava sendo feito em garagens, apartamento e
universidades pelo Brasil afora.
Em janeiro de 1982, se instalou na praia do Arpoador, no
Rio de Janeiro, o Circo Voador, uma casa de espetáculos, onde
se apresentavam grupos teatrais e músicos para um público
majoritariamente jovem. Um dos primeiros grupos a se
apresentar no espaço foi o “Asdrúbal Trouxe o Trombone”, que
revelou talentos do teatro e do humor, como Regina Casé,
Patrícia Travassos, Luis Fernando Guimarães e Patrícia Pillar.
Um desses artistas era Evandro Mesquita, que também cantava e
tocava e era diretor artístico do Circo. O grupo se apresentava
antes dos shows de Marina Lima. Evandro fazia uma jam
session entre os dois espetáculos. Com isso ele chamou dois
músicos que tocavam com Marina para acompanhá-lo nas
apresentações: Lobão, ex-Vínama, e Ricardo Barreto.
Aos poucos essas apresentações foram crescendo e tomaram
conta do horário principal, acrescentando o coro feminino de

128
Caminhando e Cantando

Márcia Bulcão e Fernanda Abreu. Nesse mesmo ano se


apresentaram a um executivo da Odeon, que achou que poderia
dar certo e resolveu apostar na banda. Então, a Blitz, nome dado
por Lobão, foi a primeira banda de rock a assinar o contrato com
uma gravadora. A Rádio Fluminense FM de Niterói tocava rock
internacional além do rock setentista brasileiro, de Raul Seixas.
A partir dali, ela também começou a tocar o rock da Blitz, com
“Você não Soube me Amar”, que estava no compacto da banda,
antes mesmo do lançamento do disco.
“As aventuras da Blitz” teve censuradas as duas últimas
faixas. A gravadora então fez uma jogada de mestre. Não
gravaram outras faixas e aí riscaram o lugar das faixas
censuradas. Para deixar mais claro ainda que houvera censura.
Em três meses, vendeu mais de 100 mil cópias e a Blitz virou
mania nacional, com um repertório escrachado e totalmente
rock’n roll. As crianças adoravam. Os pais também. . "Bateu na
veia. Do Oiapoque ao Chuí. A gente teve a felicidade de entrar
em várias camadas sociais. A empregada curtia, a madame
curtia, a filha da madame e a netinha também curtiam", afirmou
Evandro em esntrevista ao Estado de São Paulo em fevereiro de
2011. Lobão se desentendeu com os outros integrantes e saiu da
banda antes mesmo do lançamento do disco.
Para Roger Moreira, líder da banda paulistana Ultraje a
Rigor a música de maior sucesso da Blitz é o maior símbolo da
década. “Pra mim “Você não soube me amar do Evandro
Mesquita é a cara dos anos 80”, afirmou. O rock dos anos 80
começava a mostrar a sua cara e começava a dominar a década.
Outro grupo precursor do rock nos anos 80 foi a Gang 90 e
as Absurdettes, liderado por Júlio Barroso. Em 81, eles
participaram do Festival MPB-Shell e fizeram sucesso com o hit
“Perdidos na Selva”. Depois do festival, Júlio foi fazer música
nos Estados Unidos, fracassou e quando voltou a Blitz já havia

129
Marco Antonio Gonçalves

estourado. Lançou um LP, fez sucesso, mas devido aos


problemas com drogas e álcool, não conseguiu mantê-lo. Júlio
se matou em 84, aos 31 anos. Com as portas abertas para o rock,
Lulu Santos começou a emplacar um sucesso atrás do outro,
desde 1983 e é assim até hoje.
A Rádio Fluminense foi de extrema importância para que o
rock brasileiro se desenvolvesse na década. Ela recebia fitas
demo de bandas iniciantes e colocava no ar. Sem jabá. Se
chamava a atenção do público, as músicas eram repetidas e logo
chamavam a atenção dos empresários e agentes das gravadoras.
Era uma época que gravar um disco de MPB era caro,
porque os artistas queriam arranjos especiais e, na maioria das
vezes, gravar em um estúdio fora do Brasil. Os grupos de rock
só queriam ser ouvidos. Entrar num estúdio, seja de Niterói ou
da Baixada fluminense, já era uma vitória. Com o sucesso da
Blitz, do Circo Voador e da Rádio Fluminense, os olhos das
gravadoras estavam voltados para essa nova geração de artistas.
Gente que nasceu no começo dos anos 60 e não tinham
influência de bossa nova ou da MPB dos festivais. Assim foram
nascendo as principais bandas do BRock, o rock brasileiro dos
anos 80.
Na primeira metade da década apareceram Léo Jaime,
Eduardo Dusek, João Penca e seus Miquinhos Amestrados e Dr.
Silvana e Cia. Algumas bandas teriam sucesso mais duradouro
como os cariocas Biquíni Cavadão, de Bruno Gouveia, Kid
Abelha e os Abóboras Selvagens, de Paula Toller e Leoni, Os
Paralamas do Sucesso, de Herbert Vianna e Barão Vermelho, de
Frejat e Cazuza.
Depois que os meios de comunicação começaram a prestar
atenção nessa gente toda e foi feito o projeto Rock Voador.
Feito no Circo, reunia toda essa onda de novos artistas cariocas
e foi se espalhando pelo Brasil inteiro. Logo, bandas de outras

130
Caminhando e Cantando

partes também fariam sucesso nacional como os paulistas Titãs,


Ira!, de Nasi e Edgar Scandurra, Ultraje a Rigor, de Roger. De
Brasília, viera Legião Urbana, de Renato Russo, Pelbe Rude, de
Philippe Seabra e Capital Inicial, de Dinho Ouro Preto.
O único artista, sem ser do rock ou da nova geração, a
realmente fazer sucesso com os mais novos, era Tim Maia.
Uma banda paulista logo ia fazer sucesso e mostrar uma das
principais canções do Brock. O Ultraje a Rigor, de Roger e
Edgar Scandurra, (que depois foi para o Ira!) fez sucesso com
duas canções em 1984 “Mim quer tocar” e “Inútil”, esta última
tinha uma veia cômica, que falava a realidade que o Brasil
precisava ouvir naquela época, era uma chamado de atenção ao
povo. André Midani, então executivo da Warner, ficou
impressionado com a música: “Eu adorava a esplêndida sátira “a
gente somos inútil”, do Ultraje a Rigor, tão adequada na época e
tão adequada ainda hoje e carregava uma fita cassete com a
música pra todo lugar”, escreveu Midani em sua autobiografia.

A GENTE NÃO SABEMOS ESCOLHER PRESIDENTE


A GENTE NÃO SABEMOS TOMAR CONTA DA GENTE
A GENTE NÃO SABEMOS NEM ESCOVAR OS DENTE
TEM GRINGO PENSANDO QUE NÓIS É INDIGENTE

INÚTIL
A GENTE SOMOS INÚTIL
INÚTIL
A GENTE SOMOS INÚTIL
INÚTIL
A GENTE SOMOS INÚTIL
INÚTIL
A GENTE SOMOS INÚTIL

131
Marco Antonio Gonçalves

A GENTE FAZ CARRO E NÃO SABE GUIAR


A GENTE FAZ TRILHO E NÃO TEM TREM PRÁ BOTAR
A GENTE FAZ FILHO E NÃO CONSEGUE CRIAR
A GENTE PEDE GRANA E NÃO CONSEGUE PAGAR

A GENTE FAZ MÚSICA E NÃO CONSEGUE GRAVAR


A GENTE ESCREVE LIVRO E NÃO CONSEGUE PUBLICAR
A GENTE ESCREVE PEÇA E NÃO CONSEGUE ENCENAR
A GENTE JOGA BOLA E NÃO CONSEGUE GANHAR

Esta música tinha tudo para virar o hino de uma época e foi o
que aconteceu. André Midani conta: “O Washington (Olivetto)
me pediu uma cópia e entregou ao radialista Osmar Santos, que
dirigia o comício das Diretas Já, em 1984. Osmar entregou a fita
ao Ulysses Guimarães (deputado do PMDB) e ele percebeu a
importância do discurso de Roger. Ulysses tocou a fita em pleno
congresso nacional e fez dela um de seus mais virulentos
discursos contra a dos políticos e do sistema. Afinal, todos
entenderam”.

- Diretas já

O deputado Dante de Oliveira entregou ao congresso uma


proposta que propunha o voto direto para presidente da
república, que poria fim ao sistema interno de escolha e
restabelecia a democracia no Brasil. A partir de então, o Brasil
se mobilizou em campanha a favor da emenda. Em vários
lugares do Brasil, as pessoas se reuniam para dizer que queriam
votar para presidente. Mas dois comícios marcaram a campanha,
dias antes de ser votada a emenda Dante de Oliveira. Um no Rio
de Janeiro, no dia 10 de abril de 1984 e outro no dia 16 de abril,

132
Caminhando e Cantando

em São Paulo. Aos gritos de “Diretas Já!” mais de um milhão de


pessoas lotaram a Praça da Sé, na capital paulista.
O movimento foi liderado por diversos políticos de renome
como Tancredo Neves, Leonel Brizola,Miguel Arraes, Ulysses
Guimarães, André Franco Montoro, Mário Covas, Luiz Inácio
Lula da Silva, Eduardo Suplicy, Roberto Freire e Fernando
Henrique Cardoso. Muitos artistas também participaram
ativamente do movimento: Chico Buarque de Hollanda, Milton
Nascimento, Fafá de Belém, que ficou conhecida como “musa
das Diretas” entre tantos outros artistas. Várias músicas ficaram
com a cara das Diretas. Além da já citada “Inútil”, uma das
músicas que mais foram executadas nesses comícios era
“Coração de Estudante”, de Milton Nascimento e Wagner Tiso.

QUERO FALAR DE UMA COISA


ADIVINHA ONDE ELA ANDA
DEVE ESTAR DENTRO DO PEITO
OU CAMINHA PELO AR
PODE ESTAR AQUI DO LADO
BEM MAIS PERTO QUE PENSAMOS
A FOLHA DA JUVENTUDE
É O NOME CERTO DESSE AMOR

JÁ PODARAM SEUS MOMENTOS


DESVIARAM SEU DESTINO
SEU SORRISO DE MENINO
TANTAS VEZES SE ESCONDEU
MAS RENOVA-SE A ESPERANÇA
NOVA AURORA A CADA DIA
E HÁ QUE SE CUIDAR DO BROTO
PRA QUE A VIDA NOS DÊ FLOR E FRUTO

133
Marco Antonio Gonçalves

CORAÇÃO DE ESTUDANTE
HÁ QUE SE CUIDAR DA VIDA
HÁ QUE SE CUIDAR DO MUNDO
TOMAR CONTA DA AMIZADE
ALEGRIA E MUITO SONHO
ESPALHADOS NO CAMINHO
VERDES, PLANTAS, SENTIMENTO
FOLHA, CORAÇÃO, JUVENTUDE E FÉ

Essa canção, na voz de Milton Nascimento, faz qualquer um


que tenha participado daquele movimento rememorar aqueles
dias históricos e que marcaram para sempre a história do Brasil.
Outra canção que estourou neste ano contava um pouco da
história dessa geração de jovens que nasceram sobre as sombras
da ditadura, que agora protestavam pela democracia, sem ter
medo de serem presos, torturados ou exilados, eram os filhos da
revolução, eram a Geração Coca-Cola, tão bem expressa na
canção de Renato Russo e Dado Villa-Lobos.

QUANDO NASCEMOS FOMOS PROGRAMADOS


A RECEBER O QUE VOCÊS NOS EMPURRARAM
COM OS ENLATADOS DOS USA, DE 9 ÀS 6.

DESDE PEQUENOS NÓS COMEMOS LIXO


COMERCIAL E INDUSTRIAL
MAS AGORA CHEGOU NOSSA VEZ
VAMOS CUSPIR DE VOLTA O LIXO EM CIMA DE VOCÊS.

SOMOS OS FILHOS DA REVOLUÇÃO


SOMOS BURGUESES SEM RELIGIÃO
NÓS SOMOS O FUTURO DA NAÇÃO
GERAÇÃO COCA-COLA.

134
Caminhando e Cantando

DEPOIS DE VINTE ANOS NA ESCOLA


NÃO É DIFÍCIL APRENDER
TODAS AS MANHAS DO SEU JOGO SUJO
NÃO É ASSIM QUE TEM QUE SER?

VAMOS FAZER NOSSO DEVER DE CASA


E AÍ ENTÃO, VOCÊS VÃO VER
SUAS CRIANÇAS DERRUBANDO REIS
FAZER COMÉDIA NO CINEMA COM AS SUAS LEIS.

SOMOS OS FILHOS DA REVOLUÇÃO


SOMOS BURGUESES SEM RELIGIÃO
NÓS SOMOS O FUTURO DA NAÇÃO
GERAÇÃO COCA-COLA
GERAÇÃO COCA-COLA
GERAÇÃO COCA-COLA
GERAÇÃO COCA-COLA.

DEPOIS DE VINTE ANOS NA ESCOLA


NÃO É DIFÍCIL APRENDER
TODAS AS MANHAS DO SEU JOGO SUJO
NÃO É ASSIM QUE TEM QUE SER?

VAMOS FAZER NOSSO DEVER DE CASA


E AÍ ENTÃO, VOCÊS VÃO VER
SUAS CRIANÇAS DERRUBANDO REIS
FAZER COMÉDIA NO CINEMA COM AS SUAS LEIS.

SOMOS OS FILHOS DA REVOLUÇÃO


SOMOS BURGUESES SEM RELIGIÃO
NÓS SOMOS O FUTURO DA NAÇÃO

135
Marco Antonio Gonçalves

GERAÇÃO COCA-COLA
GERAÇÃO COCA-COLA

Embora composta no final dos anos 70, na época do Aborto


Elétrico, essa música se encaixou perfeitamente paras o ano em
que foi lançada pela Legião Urbana, 1984. Ela expressa tudo o
que havia passado a geração de Renato, que viveu toda a
juventude sobre os olhares da ditadura.
A Legião Urbana, formada por Renato e Dado, mais o
baterista Marcelo Bonfá foi a banda de rock brasileira de maior
expressão da história. Foram os que mais venderam disco e
ainda hoje, mais de 15 anos depois da dissolução da banda,
ainda sempre figuram na lista dos mais vendidos.
Vinda de Brasília, assim como Capital e Plebe Rude, a banda
começou a fazer sucesso depois que Herbert Vianna, vocalista
dos Paralamas do Sucesso, e amigo de Ranato dos tempos de
Brasília apresento uma fita com a música “Geração Coca-Cola”
a sua gravadora e a Rádio Fluminense começou a tocar
incansavelmente.
Renato Russo foi o maior letrista de sua geração compondo
obras-primas que ficaram na memória de muitos brasileiros e
que foi sucesso total nos anos 80, como “Eduardo e Mônica” e
“Faroeste Caboclo”.
A emenda Dante de Oliveira foi rejeitada no congresso
nacional, e eleições diretas não iriam acontecer no Brasil, mas
os reis de farda já estavam postos. Figueiredo comandou o país
até a redemocratização, que ocorreria por meio de eleições
indiretas, em 1985.
De um lado estava Tancredo Neves, governador mineiro, e
de outro Paulo Maluf, ex-prefeito paulistano. Tancredo venceu a
eleição, o Brasil ficou em festa, todos comemoraram a volta de
um civil ao poder depois de 24 anos. Era o fim da ditadura.

136
Caminhando e Cantando

A posse estava marcada paro o dia 15 de março, porém na


véspera, ele fora internado com fortes dores abdominais. O
maranhense José Sarney, vice de Tancredo, assumiu o poder
provisoriamente. Entretanto no dia 21 de abril, o presidente
morre em São Paulo e Sarney assume de maneira definitiva.
O rock fazia sucesso no Brasil de então, e o país ganhou um
dos maiores festivais já realizados no mundo, o Rock in Rio,
realizado de 11 a 20 de janeiro de 1985. O país estava eufórico
com a eleição de Tancredo para presidente e viu os maiores
astros do rock internacional e nacional se apresentar para um
público de mais de um milhão e meio de pessoas.
Estiveram na primeira edição do evento a banda inglesa
Queen, Rod Stewart, Whitesnake, Iron Maden, AC/DC,
Scorpions entre outros famosos artistas e grupos internacionais.
Para a música brasileira foi um marco divisório. Antes
destinados a apenas algumas partes do país, os artistas que
tocaram no festival, tiveram grande destaque na mídia e
alavancaram suas carreiras. Destaque para Os Paralamas do
Sucesso, que com o hit “Óculos” foi o maior sucesso do evento,
ultrapassando até alguns consagrados artistas internacionais. O
Barão Vermelho, ainda com Cazuza, também fez ferver a
Cidade do Rock. O Rock in Rio consolidou o rock brasileiro de
vez no cenário musical mundial.
Em 1985, o Brasil conheceu a banda que mais vendeu
discos, em menos tempo. Era o fenômeno RPM, com Paulo
Ricardo. A banda vendeu mais de dois milhões de discos em
menos de um ano. Um recorde.
De Porto Alegre vieram duas bandas de sucesso a partir da
segunda metade da década, Engenheiros do Hawaii e Nenhum
de Nós.

137
Marco Antonio Gonçalves

Os “Engenheiros”, liderados por Humberto Gessinger


conseguiram emplacar vários sucessos como “Infinita Highway”
e “Toda Forma de Poder””.

EU PRESTO ATENÇÃO NO QUE ELES DIZEM


MAS ELES NÃO DIZEM NADA
FIDEL E PINOCHET TIRAM SARRO DE VOCÊ QUE NÃO FAZ NADA
E EU COMEÇO A ACHAR NORMAL QUE ALGUM BOÇAL ATIRE BOMBAS NA
EMBAIXADA

SE TUDO PASSA TALVEZ VOCÊ PASSE POR AQUI


E ME FAÇA ESQUECER TUDO QUE EU FIZ

TODA FORMA DE PODER É UMA FORMA DE MORRER POR NADA


TODA FORMA DE CONDUTA SE TRANSFORMA NUMA LUTA ARMADA
A HISTÓRIA SE REPETE, MAS A FORÇA DEIXA A HISTÓRIA MAL-CONTADA

SE TUDO PASSA TALVEZ VOCÊ PASSE POR AQUI


E ME FAÇA ESQUECER TUDO QUE EU FIZ

O FASCISMO É FASCINANTE, DEIXA A GENTE IGNORANTE E FASCINADA


É TÃO FÁCIL IR ADIANTE E ESQUECER QUE A COISA TODA TÁ ERRADA
EU PRESTO ATENÇÃO NO QUE ELES DIZEM, MAS ELES NÃO DIZEM NADA

SE TUDO PASSA TALVEZ VOCÊ PASSE POR AQUI


E ME FAÇA ESQUECER TUDO QUE EU FIZ

Humberto Gessinger prega um descrédito nas formas de


governo. Em seguida critica os combates armados. Era o final da
guerra fria, o mundo ainda estava sob tensa, vários atentados
aconteciam pelo mundo. Era a história se repetindo sem deixar
explicações.

138
Caminhando e Cantando

O governo Sarney ia mal, a inflação chega a níveis


inimagináveis, a economia é uma lástima, o desemprego
altíssimo. Neste cenário, fez sucesso uma música da Legião
Urbana, uma de suas mais famosas e que segue fazendo sucesso
até os dias atuais, tendo inúmeras regravações.

NAS FAVELAS, NO SENADO


SUJEIRA PRA TODO LADO
NINGUÉM RESPEITA A CONSTITUIÇÃO
MAS TODOS ACREDITAM NO FUTURO DA NAÇÃO

QUE PAÍS É ESSE?


QUE PAÍS É ESSE?
QUE PAÍS É ESSE?
QUE PAIS É ESSE?

NO AMAZONAS, NO ARAGUAIA, NA BAIXADA FLUMINENSE


NO MATO GROSSO, MINAS GERAIS E NO NORDESTE TUDO EM PAZ
NA MORTE EU DESCANSO MAS O SANGUE ANDA SOLTO
MANCHANDO OS PAPÉIS, DOCUMENTOS FIÉIS
AO DESCANSO DO PATRÃO

QUE PAÍS É ESSE?


QUE PAÍS É ESSE?
QUE PAÍS É ESSE?
QUE PAÍS É ESSE?

TERCEIRO MUNDO SE FOR


PIADA NO EXTERIOR
MAS O BRASIL VAI FICAR RICO
VAMOS FATURAR UM MILHÃO

139
Marco Antonio Gonçalves

QUANDO VENDERMOS TODAS AS ALMAS


DOS NOSSOS ÍNDIOS NUM LEILÃO.

Renato Russo indagava várias vezes “Que país é esse?”. Este


não era o país que todos queriam quando acabasse a ditadura. O
Brasil que estavam vendo não era o que todos esperavam.
Infelizmente, a música da Legião continua sempre atual e
parecer ser mesmo atemporal.
No final da década, algumas bandas já não faziam tanto
sucesso como no início. Somente a Legião Urbana, Os
Engenheiros do Hawaii se mantiveram no auge. O rock
internacional tomou conta de boa parte do mercado brasileiro no
fim da década. Com a economia de mal a pior, não dava mesmo
para se inventar muito.
Cazuza, que deixou o Barão Vermelho, por divergências
musicais (queria cantar outros estilos) ainda fazia muito sucesso.
Aproximou-se da bossa nova. Até compôs uma: “Faz parte do
meu show”. Também começou a cantar samba (“O mundo é um
moinho, de Cartola”). Com isso renovou seu público e se
manteve no ápice. O que não ia bem era sua saúde. Portador do
vírus HIV, a doença da década, era levado constantemente a
Boston, para fazer tratamento. Cada vez mais debilitado pela
doença, fazia show, programas de televisão e chegou a gravar
discos. O último de sua carreira, “Burguesia” já estava
totalmente doente, magro e respirando com dificuldade. O
resultado é um disco perfeito, com músicas mais intimistas e
cheios de obras-primas, como a faixa-título onde xinga a
burguesia.

A BURGUESIA FEDE
A BURGUESIA QUER FICAR RICA

140
Caminhando e Cantando

ENQUANTO HOUVER BURGUESIA


NÃO VAI HAVER POESIA

A BURGUESIA NÃO TEM CHARME NEM É DISCRETA


COM SUAS PERUCAS DE CABELOS DE BONECA
A BURGUESIA QUER SER SÓCIA DO COUNTRY
A BURGUESIA QUER IR A NEW YORK FAZER COMPRAS

POBRE DE MIM QUE VIM DO SEIO DA BURGUESIA


SOU RICO MAS NÃO SOU MESQUINHO
EU TAMBÉM CHEIRO MAL

No seu disco mais vendido e mais aclamado, ele conta a


própria história em “Ideologia”, uma de suas músicas de maior
sucesso.

(...)
QUE AQUELE GAROTO
QUE IA MUDAR O MUNDO
MUDAR O MUNDO
FREQUENTA AGORA
AS FESTAS DO "GRAND MONDE"...

MEUS HERÓIS
MORRERAM DE OVERDOSE
MEUS INIMIGOS
ESTÃO NO PODER
IDEOLOGIA!
EU QUERO UMA PRA VIVER
IDEOLOGIA!

141
Marco Antonio Gonçalves

O MEU PRAZER
AGORA É RISCO DE VIDA
MEU SEX AND DRUGS
NÃO TEM NENHUM ROCK 'N' ROLL
EU VOU PAGAR
A CONTA DO ANALISTA
PRA NUNCA MAIS
TER QUE SABER
QUEM EU SOU

Em 1989, Cazuza morre no Rio de Janeiro. Também


morreram duas grandes estrelas de nossa música: Nara Leão,
vítima de um câncer que a afetou durante 10 anos e Raul Seixas,
vítima de uma cirrose, provocada pelo alcoolismo.
Grandes mudanças ocorrem em 1989, as Alemanhas estão
juntas novamente. Com a derrubada do Muro de Berlim, tem
fim um período trágico na história daquela nação. Agora era
questão de tempo para que a União Soviética também seja
dissolvida.
No Brasil, ocorrem as primeiras eleições diretas para
presidente desde 1960. 22 candidatos concorrem ao cargo, entre
eles Fernando Collor, Lula, Leonel Brizola, Ulysses Guimarães,
Paulo Maluf e Mário Covas. Collor vence o primeiro turno e
encara Lula no segundo turno.
Inúmeros artistas participaram da campanha de Lula,
Gilberto Gil, Chico Buarque e Djavan gravam o jingle da
campanha “Lula lá”. Depois de debates acalorados e uma
disputa acirradíssima, o Brasil já tinha seu novo presidente. O
primeiro eleito pelo povo em 30 anos: Fernando Collor de
Mello.

142
Caminhando e Cantando

Capítulo 6

- Fim de uma era


O presidente Fernando Collor de Mello toma posse e já no
primeiro dia de governo põe em prática o plano que confisca a
poupança dos brasileiros, elaborado pela ministra Zélia Cardoso
de Mello.
No início dos anos 90, o mercado fonográfico brasileiro
estava totalmente desaquecido. As gravadoras sem dinheiro e os
músicos impossibilitados de gravar. A economia fracassava com
o plano Collor. O povo desacreditado. Legião, com “As quatro
Estações” e Engenheiros, com “O papa é pop” emplacam
sucessos. As outras bandas amargaram fracassos em seus
últimos discos.
Entretanto, a banda que mais fez sucesso no início da década
foi o Sepultura. A banda de heavy metal mineira cantava em
inglês e fez sucesso principalmente no exterior. Porém, os anos
90 começam com um estouro de duplas sertanejas. No rádio,
não havia mais espaço para MPB ou rock, os sertanejos haviam
dominado as estações e o dinheiro das gravadoras. Vendiam
milhões de discos.
Para Nelson Motta, foi uma tragédia: A música sertaneja
dominou as ruas e a classe média, foi a trilha sonora das festas
do poder em Brasília e em São Paulo. As peruas da “república
de Alagoas” dançavam ao som de Chitãozinho e Xororó e
Leandro e Leonardo. Uma foto emblemática do governo Collor
mostra o presidente e a primeira-dama Rosane, alegres e
sorridentes ao lado de 60 duplas sertanejas na Casa da Dinda.
Para um garoto de classe média de Copacabana dos anos 50 não

143
Marco Antonio Gonçalves

poderia haver coisa pior do que ouvir 60 duplas caipiras


cantando em terças ao mesmo tempo. Para um jovem libertário
de 68, não haveria maior horror do que ver o Brasil sob o estilo,
a ideologia e a rapinagem de Collor”, desabafa ele em Noites
Tropicais.
Com as denúncias de corrupção do governo Collor
explodindo na mídia, o povo brasileiro começou a se unir para
derrubar o presidente. Quando, já em 92, ele foi a televisão e
pediu que todos vestissem verde e amarelo para apóia-lo, todos
saíram de preto. Com as caras pintadas, foram às ruas do país
pedir pela saída de Collor.
Os cara pintadas saíam às ruas cantando antigas canções de
protesto como “Alegria, Alegria” e “Caminhando”, mas também
uma nova, da banda Biquíni Cavadão, “Zé Ninguém”

QUEM FOI QUE DISSE QUE AMAR É SOFRER?


QUEM FOI QUE DISSE QUE DEUS É BRASILEIRO,
QUE EXISTE ORDEM E PROGRESSO,
ENQUANTO A ZONA CORRE SOLTA NO CONGRESSO?
QUEM FOI QUE DISSE QUE A JUSTIÇA TARDA MAS NÃO FALHA?
QUE SE EU NÃO FOR UM BOM MENINO, DEUS VAI CASTIGAR!

OS DIAS PASSAM LENTOS


AOS MESES SEGUEM OS AUMENTOS
CADA DIA EU LEVO UM TIRO
QUE SAI PELA CULATRA
EU NÃO SOU MINISTRO, EU NÃO SOU MAGNATA

EU SOU DO POVO, EU SOU UM ZÉ NINGUÉM


AQUI EMBAIXO, AS LEIS SÃO DIFERENTES
EU SOU DO POVO, EU SOU UM ZÉ NINGUÉM
AQUI EMBAIXO, AS LEIS SÃO DIFERENTES

144
Caminhando e Cantando

QUEM FOI QUE DISSE QUE OS HOMENS NASCEM IGUAIS?


QUEM FOI QUE DISSE QUE DINHEIRO NÃO TRAZ FELICIDADE?
SE TUDO AQUI ACABA EM SAMBA,
NO PAÍS DA CORDA BAMBA, QUEREM ME DERRUBAR!!
QUEM FOI QUE DISSE QUE OS HOMENS NÃO PODEM CHORAR?
QUEM FOI QUE DISSE QUE A VIDA COMEÇA AOS QUARENTA?
A MINHA ACABOU FAZ TEMPO, AGORA ENTENDO POR QUE ....

CADA DIA EU LEVO UM TIRO


QUE SAI PELA CULATRA
EU NÃO SOU MINISTRO, EU NÃO SOU MAGNATA
EU SOU DO POVO, EU SOU UM ZÉ NINGUÉM
AQUI EMBAIXO, AS LEIS SÃO DIFERENTES

A canção sintetiza muito bem o que o povo brasileiro sentia


em relação ao governo Collor de Mello. A banda conseguiu
traduzir na música todo o rancor que o brasileiro sentia em
relação ao presidente. Demonstra todo o descontentamento com
o sistema político, com a corrupção.
No início da década surgem no país diversos grupos e
cantores de hip hop, rap e funk. Gabriel O Pensador é o
principal e o mais artista que apareceu na onda do hip hop nos
anos 90. Com uma canção extremamente agressiva ele dá as
caras, dizendo que “matou o presidente” e mostra que a
honestidade na política poderia ser a mesma de anos atrás, mas a
liberdade de expressão era a mais absoluta vitória do povo
brasileiro pós-ditadura. Ele desabafa em “To Feliz (matei o
presidente)”.

TIREI O PAU NO RATO


MAS O RATO NÃO MORREU

145
Marco Antonio Gonçalves

DONA ROSANE, ADMIROU-SE DO FERRÃO


TRÊS-OITÃO QUE APARECEU
TODO MUNDO BATEU PALMA QUANDO O CORPO CAIU
EU ACABAVA DE MATAR O PRESIDENTE DO BRASIL
FÁCIL UM TIRO SÓ
BEM NO OLHO DO SAFADO
QUE MORREU ALI MESMO
TODO ENSANGUENTADO
QUÊ? SAÍ VOADO COM A POLÍCIA ATRÁS DE MIM
E ENQUANTO EU FUGIA EU PENSAVA BEM ASSIM:
"TINHA QUE TER TIRADO UMA FOTO NA HORA EM QUE O SANGUE ESPIRROU
PRA MOSTRAR PROS MEUS FILHOS
QUE LINDO, PÔ"
EU TAVA EMOCIONADO MAS CORRI PRA VALER
E CONSEGUI ESCAPAR
AH TÁ PENSANDO O QUÊ?
E QUANDO EU CHEGO EM CASA
O QUE EU VEJO NA TV?
PRIMEIRA DAMA CHORANDO PERGUNTANDO (POR QUÊ?)
AH! DONA ROSANE NUM FODE NUM ENCHE
NÃO É DE HOJE QUE SEU CHORO NÃO CONVENCE
MAS SE VOCÊ QUER SABER PORQUE EU MATEI O FERNANDINHO
PRESTA ATENÇÃO SUA PUTA ESCUTA DIREITINHO
ELE GANHOU A ELEIÇÃO E SE ESQUECEU DO POVÃO
E UMA COISA QUE EU NÃO ADMITO É TRAIÇÃO
PROMETEU, PROMETEU, PROMETEU E NÃO CUMPRIU
ENTÃO EU FUZILEI, VÁ PRA PUTA QUE O PARIU
É "PODRE SOBRE PODRE" ESSA NOVELA
É MAGRI, É ZÉLIA
É ALCENI COM BICICLETA E GUARDA-CHUVA
LBA PREVIDÊNCIA CHEGA DESSA INDECÊNCIA
EU APERTEI O GATILHO E AGORA VOCÊ É VIÚVA

146
Caminhando e Cantando

E NÃO ME ARREPENDO NEM UM POUCO DO QUE FIZ


TOMEI UMA PROVIDÊNCIA QUE ME FEZ MUITO FELIZ

HOJE EU TÔ FELIZ! (MINHA GENTE!)


HOJE EU TÔ FELIZ MATEI O PRESIDENTE

EU TÔ FELIZ DEMAIS ENTÃO FUI COMEMORAR


A MULTIDÃO ME VIU E COMEÇOU A FESTEJAR
(É PENSADOR, É PENSADOR, É GABRIEL O PENSADOR)
ME CARREGARAM NAS COSTAS
A GRITARIA NÃO PAROU
EU DISSE "EU SOU FUGITIVO GENTE NÃO GRITA O MEU NOME POR FAVOR!"
NINGUÉM ME ESCUTOU E A POLÍCIA ME ENCONTROU
TENTARAM ME PRENDER
MAS O POVO NÃO DEIXOU
(O POVO UNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO)
UMA FESTA DESSE TIPO NUNCA TINHA ACONTECIDO
TAVA BONITO DEMAIS
ALEGRIA E TUDO EM PAZ
E NINGUÉM VAI BLOQUEAR NOSSO DINHEIRO NUNCA MAIS
CORINTHIANO E PALMEIRENSE
FLAMENGUISTA E VASCAÍNO
TODOS JUNTOS COM A BANDEIRA NA MÃO CANTANDO O HINO
("OUVIRAM DO IPIRANGA ÀS MARGENS PLÁCIDAS
DE UM POVO HERÓICO O BRADO RETUMBANTE")
E COMEÇOU O FUNERAL E O POVO TODO NA MORAL
INVADIU O CEMITÉRIO NUMA FESTA EMOCIONANTE
ENTRAMOS NO CEMITÉRIO CANTANDO E DANÇANDO
E O PRESIDENTE ESTAVA LÁ JÁ DEITADO NOS ESPERANDO
TODOS VIRAM NO SEU OLHO A BALA DO MEU TRÊS-OITÃO
E EM CORO ELOGIAMOS NOSSO ATLETA NO CAIXÃO:
(BONITA CAMISA FERNADINHO

147
Marco Antonio Gonçalves

BONITA CAMISA FERNADINHO


VOCÊ NESSA ROUPA DE MADEIRA TÁ BONITINHO!)
E COMO SEMPRE LÁ TAMBÉM TINHA UM GRUPO MAIS EXALTADO
ENTÃO DEPOIS DE POUCO TEMPO O CAIXÃO FOI VIOLADO
O DEFUNTO FOI DEGOLADO, E O CORPO FOI QUEIMADO
MAS DEPOIS NÃO VI MAIS NADA PORQUE EU JÁ TAVA CERCADO DE MULHERES E
AQUILO ME OCUPOU
(AI DEIXA EU VER SEU REVÓLVER PENSADOR!)
ENTÃO EU VI UM PESSOAL NUMA PELADA DIFERENTE
JOGANDO FUTEBOL COM A CABEÇA DO PRESIDENTE
E A FESTA CONTINUOU NESSE CLIMA SENSACIONAL
FOI NO BRASIL INTEIRO UM VERDADEIRO CARNAVAL
TEVE UM TURISTA QUE ESTRANHOU TANTA ALEGRIA E EMOÇÃO
CHEGANDO NO BRASIL ME PEDIU INFORMAÇÃO:
(O BRASIL FOI CAMPEÃO? TÁ TODO MUNDO CONTENTE!)
NÃO AMIGÃO
É QUE EU MATEI O PRESIDENTE!

E O VELÓRIO VAI SER CHIQUE


SEM FALTA EU TÔ LÁ
OUVI DIZER QUE É O PC QUE VAI PAGAR

No final de dezembro de 1992, Collor renuncia para não ser


cassado e se tornar inelegível, e o mineiro Itamar Franco assume
a presidência da república, coma difícil tarefa de consertar os
estragos do governo de Collor.
Em Minas Gerais, surgem três bandas de pop rock com
sucesso. Em 1991, surgiu o Skank, liderada por Samuel Rosa
que misturva elementos de rock com reggae e ska. De lá pra cá,
não saíram por nenhum ano das paradas de sucesso. E são, sem
dúvida a cara do pop dos anos 90.

148
Caminhando e Cantando

O Pato Fu, de Fernanda Takai e John Ulhoa, também


apareceu em Belo Horizonte nessa época. Fazendo rock, com
misturas de elementos eletrônicos e sons experimentais, entrou
para a história quando a revista Time colocou a banda entre as
10 melhores do mundo foras dos Estados Unidos, ao lado de
Radiohead e U2.
A banda teve o nome inspirado em uma tira do quadrinho
“Garfield”, e tem se consagrado no cenário musical por transitar
entre os circuitos populares e alternativos experimentando novos
conceitos e sonoridades em seus trabalhos.
O Jota Quest surgiu em 1993 e a partir do single “As dores
do Mundo” se consolidou como uma das bandas de mais
sucesso do Brasil. Não saindo mais das rádios brasileiras.
Fernanda Takai conta porque Minas Gerais, ao contrário de
outros Estados, não teve bandas de sucesso nos anos 80. “A
cena roqueira em Minas era muito heavy metal, por causa
mesmo do Sepultura. Então o pop rock, das outras bandas não
tinha muito espaço. Mas nós mesmos, do Pato Fu, viemos de
outras bandas (John foi da banda Sexo Explícito) que já tocavam
no final dos anos 80, mas o mercado só se abriu nos anos 90. A
gente começou o trabalho como banda universitária mesmo.
Tocávamos para universitários e nosso trabalho ia se espalhando
boca-a-boca. Buscávamos sempre mostrar nosso trabalho com
qualidade”, afirmou a cantora.
Samuel Rosa também explicou essa falta de bandas mineiras
nos anos 80 em entrevista para o livro “Que rock é esse?”: “Isso
aconteceu talvez por esse distanciamento da capital mineira com
o restante do Brasil, talvez pela nossa pouca idade, a geração
dos anos 80 era a nossa, mas os caras eram um pouco mais
velhos, quatro, cinco anos. Ficamos no limiar da fama e do
profissionalismo para atingir esse objetivo na década seguinte,
mais maduros”.

149
Marco Antonio Gonçalves

Fernanda completa: “Creio que o boom do início dos anos


90 em Minas Gerais trouxe reflexos até os dias de hoje. Vejo o
Rio Grande do Sul sempre trazendo coisas novas, também a
influência do Chico Sciense, no nordeste, estimula o surgimento
de novas bandas por lá que trazem um som diferente e de
qualidade.”
A Legião Urbana continuou fazendo sucesso nos anos 90, e
continuou lançando música que mostrava todo o
descontentamento com o mundo. “Perfeição” talvez seja uma
das canções mais pesadas de Renato Russo, em que ele fala de
peito aberto tudo de ruim que acontece no Brasil e no mundo.
Lançada em 93, a música foi um sucesso enorme, se fosse dez
ou quinze anos antes seria motivo até de prisão para o
compositor.

VAMOS CELEBRAR A ESTUPIDEZ HUMANA


A ESTUPIDEZ DE TODAS AS NAÇÕES
O MEU PAÍS E SUA CORJA DE ASSASSINOS
COVARDES, ESTUPRADORES E LADRÕES
VAMOS CELEBRAR A ESTUPIDEZ DO POVO
NOSSA POLÍCIA E TELEVISÃO
VAMOS CELEBRAR NOSSO GOVERNO
E NOSSO ESTADO, QUE NÃO É NAÇÃO
CELEBRAR A JUVENTUDE SEM ESCOLA
AS CRIANÇAS MORTAS
CELEBRAR NOSSA DESUNIÃO
VAMOS CELEBRAR EROS E THANATOS
PERSEPHONE E HADES
VAMOS CELEBRAR NOSSA TRISTEZA
VAMOS CELEBRAR NOSSA VAIDADE.

150
Caminhando e Cantando

VAMOS COMEMORAR COMO IDIOTAS


A CADA FEVEREIRO E FERIADO
TODOS OS MORTOS NAS ESTRADAS
OS MORTOS POR FALTA DE HOSPITAIS
VAMOS CELEBRAR NOSSA JUSTIÇA
A GANÂNCIA E A DIFAMAÇÃO
VAMOS CELEBRAR OS PRECONCEITOS
O VOTO DOS ANALFABETOS
COMEMORAR A ÁGUA PODRE
E TODOS OS IMPOSTOS
QUEIMADAS, MENTIRAS E SEQÜESTROS
NOSSO CASTELO DE CARTAS MARCADAS
O TRABALHO ESCRAVO
NOSSO PEQUENO UNIVERSO
TODA HIPOCRISIA E TODA AFETAÇÃO
TODO ROUBO E TODA A INDIFERENÇA
VAMOS CELEBRAR EPIDEMIAS:
É A FESTA DA TORCIDA CAMPEÃ.

VAMOS CELEBRAR A FOME


NÃO TER A QUEM OUVIR
NÃO SE TER A QUEM AMAR
VAMOS ALIMENTAR O QUE É MALDADE
VAMOS MACHUCAR UM CORAÇÃO
VAMOS CELEBRAR NOSSA BANDEIRA
NOSSO PASSADO DE ABSURDOS GLORIOSOS
TUDO O QUE É GRATUITO E FEIO
TUDO QUE É NORMAL
VAMOS CANTAR JUNTOS O HINO NACIONAL
(A LÁGRIMA É VERDADEIRA)
VAMOS CELEBRAR NOSSA SAUDADE

151
Marco Antonio Gonçalves

E COMEMORAR A NOSSA SOLIDÃO.

VAMOS FESTEJAR A INVEJA


A INTOLERÂNCIA E A INCOMPREENSÃO
VAMOS FESTEJAR A VIOLÊNCIA
E ESQUECER A NOSSA GENTE
QUE TRABALHOU HONESTAMENTE A VIDA INTEIRA
E AGORA NÃO TEM MAIS DIREITO A NADA
VAMOS CELEBRAR A ABERRAÇÃO
DE TODA A NOSSA FALTA DE BOM SENSO
NOSSO DESCASO POR EDUCAÇÃO
VAMOS CELEBRAR O HORROR
DE TUDO ISSO - COM FESTA, VELÓRIO E CAIXÃO
ESTÁ TUDO MORTO E ENTERRADO AGORA
JÁ QUE TAMBÉM PODEMOS CELEBRAR
A ESTUPIDEZ DE QUEM CANTOU ESTA CANÇÃO.

VENHA, MEU CORAÇÃO ESTÁ COM PRESSA


QUANDO A ESPERANÇA ESTÁ DISPERSA
SÓ A VERDADE ME LIBERTA
CHEGA DE MALDADE E ILUSÃO.

VENHA, O AMOR TEM SEMPRE A PORTA ABERTA


E VEM CHEGANDO A PRIMAVERA -
NOSSO FUTURO RECOMEÇA:
VENHA, QUE O QUE VEM É PERFEIÇÃO

Do Nordeste, veio a única coisa realmente nova feita depois


da explosão do rock nos anos 80: a banda pernambucana Chico
Science & Nação Zumbi. O vocalista Chico Science criou o

152
Caminhando e Cantando

manguebueat: um estilo que misturava ritmos regionais, como o


maracatu com hip hop, funk e música eletrônica. O estilo tem
esse nome porque como o mangue é o ecossistema
biologicamente mais rico do planeta, o Manguebeat precisava
formar uma cena musical tão rica e diversificada como os
manguezais. Devido a principal bandeira do mangue ser a
diversidade, a agitação na música contaminou outras formas de
expressão culturais como o cinema, a moda e as artes plásticas.
Esse estilo influenciou bandas como Mundo Livre S/A e
artistas como Mestre Ambrósio e Otto. Chico Science lançou
dois discos, um deles “Da Lama ao Caos”, de 1994, sempre
figura na lista dos álbuns mais importantes da música brasileira.

Depois que assumiu a presidência, Itamar Franco botou em


prática o Plano Real, que mudava a moeda do país, controlava a
inflação e aquecia a economia. Amparado pelo Ministro da
Fazenda Fernando Henrique Cardoso, o Plano é um sucesso e
FHC vence a eleição em 1994 sobre Lula ainda no primeiro
turno. A partir deste momento o país vive um período de
estabilidade econômica e democrática.
Os anos 90 foram férteis em artistas que vieram inspirados
nos ritmos que já faziam sucesso nas décadas anteriores. Nada
surgiu de novo, além do manguebeat de Pernambuco. Surgiram
cantoras excepcionais como Cássia Eller e Adriana Calcanhotto.
Além das citadas bandas mineiras, apareceram Raimundos, de
Brasília, Los Hermanos, O Rappa e Planet Hemp do Rio e
Charlie Brown Júnior e Racionais Mcs, de São Paulo.
Em 1995, surgiu em Guarulhos, uma banda que marcaria
época no Brasil e ficaria presente no coração de toda uma
geração. Os “Mamonas Assassinas”, capitaneados pelo vocalista
Dinho, tiveram sucesso relâmpago. Banda de punk rock, tinha
em suas músicas elementos de vários ritmos populares do

153
Marco Antonio Gonçalves

pagode ao brega, do sertanejo ao baião. Com um único álbum,


em sete meses de carreira, eles venderam três milhões de discos.
Encantou e conquistou fãs de todas as idades, principalmente
crianças, com sucessos como “Pelados em Santos” “Vira Vira” e
“Robocop Gay”. Os "Mamonas" preparavam uma carreira
internacional, com partida para Portugal preparada para 3 de
Março de 1996. Porém em 2 de Março, enquanto voltavam de
um show em Brasília, o jatinho Learjet em que viajavam,
chocou-se contra a Serra da Cantareira, em São Paulo, numa
tentativa de arremeter vôo, matando todos os integrantes do
grupo. O enterro, no dia 4 de Março, fora acompanhado por
mais de 65 mil fãs.
Em 11 de outubro de 1996, Renato Russo morre no Rio de
Janeiro, em decorrência da Aids, que também vitimara Cazuza.
Renato era o maior dos poetas do rock e um de seus maiores
símbolos. Para alguns críticos, a morte de Renato simboliza o
fim de uma era, iniciada em 1982.

154
Caminhando e Cantando

Epílogo
- Século XXI

No final do século, o Brasil assistiu a ascensão do axé, do


pagode e do funk. Todos esses ritmos vendiam mais discos do
que qualquer disco de MPB, rock ou samba tradicional.
Para Roger Moreira, a década de 1990 e na de 2000 é
impossível contextualizá-la com a história do Brasil. “Tudo o
que foi feito de novo nesse período é de péssima qualidade,
diferente de outras épocas em que a música refletia o que
acontecia no Brasil”.
Lobão endossa o coro: “Tudo o que foi feito aqui, foi uma
porcaria, aliás há muito tempo não vejo uma coisa realmente
boa”, afirma o compositor.
A primeira década do milênio mostra-se, na música, como
uma continuação da década anterior, com os mesmos ritmos e
personagens fazendo sucesso. A indústria fonográfica fica cada
vez mais combalida com o advento dos meios digitais e as
formas de downloads pela internet, somado à pirataria deixam a
vendas de CDs praticamente nulas.
Os bons artistas continuam aí, expressando sua arte, contado
a história do povo, talvez não com tanto destaque, mas com
certeza com a criatividade, a inventividade e a capacidade de
criticar do brasileiro sempre vai ter alguém por aí fazendo
música boa e bem brasileira.
Os anos 2000 representaram para o Brasil uma época de
crescimento econômico, tranqüilidade democrática e liberdade
de expressão. Com a chegada de Lula ao poder, em 2003, o país

155
Marco Antonio Gonçalves

viu a pobreza diminuir e o Brasil se destacar como uma das


principais economias do mundo. O Brasil vai indo de vento em
popa. Que bons ventos também soprem a favor da música
brasileira.

156
Caminhando e Cantando

Letras de músicas
músicas citadas neste livro:

-Retrato do Velho – Haroldo Lobo e Marino Pinto


-Saudosa Maloca – Adoniran Barbosa
-Chega de Saudade – Vinicius de Moraes e Tom Jobim
-Presidente Bossa Nova – Juca Chaves
-Marcha da Quarta-Feira de Cinzas – Vinicius de Moraes
-Quero que Vá Tudo para o Inferno – Roberto e Erasmo
Carlos
-Arrastão – Vinicius de Moraes e Edu Lobo
- Alegria, Alegria – Caetano Veloso
- Pra não dizer que não falei das flores – Geraldo Vandré
- Apesar de Você – Chico Buarque
- Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos – Roberto e
Erasmo
-Comportamento Geral – Gonzaguinha
- Acorda, Amor – Julinho da Adelaide e Leonel Paiva
- O Bêbado e a Equilibrista – João Bosco
- Inútil – Roger Moreira
- Coração de Estudante – Milton Nascimento e Wagner Tiso
- Geração Coca-Cola – Renato Russo e Fê Lemos
- Toda Forma de Poder – Humberto Gessinger

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Marco Antonio Gonçalves

- Zé Ninguém – Álvaro, Bruno, Miguel, Sheik e Coelho


- Tô Feliz (Matei o Presidente) – Gabriel O Pensador
- Perfeição – Renato Russo

158
Caminhando e Cantando

-Bibliografia

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX.


Curitiba: Ed. Fundamento, 2009.

CABRAL, Sérgio. Nara Leão – Uma Biografia. São


Paulo: Lazuli Editora e Companhia Editora Nacional,
2008.

CASTRO, Rui. Chega de Saudade – A História e a


História da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.

DAPIEVE, Arthur. BRock – O Rock Brasileiro dos anos


80. São Paulo: Ed. 34, 1996.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora


da Universidade de São Paulo, 1995.

HOMEM DE MELLO, Zuza. A Era dos Festivais: Uma


Parábola. São Paulo: 34, 2003.

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HOMEM, Wagner. Chico Buarque – História de


Canções. São Paulo: Leya, 2009.

KIEFER, Bruno. História da Música Brasileira. Ed.


Movimento: Porto Alegre, 1976.

159
Marco Antonio Gonçalves

MIDANI, André. Música, Ídolos e Poder – Do Vinil ao


Download. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2008.

MOTTA, Nelson. Noites Tropicais – Solos, Improvisos


e Memórias Musicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

IDEM. Vale Tudo – O Som e a Fúria de Tim Maia. Rio


de Janeiro: Objetiva, 2008.

PICCOLI, Edgard. Que Rock é esse? - A História do


Rock Brasileiro Contada por Alguns de Seus Ícones. Rio
de Janeiro: Editora Globo, 2008.

SEVERIANO, Jairo. Uma História da Música Popular


Brasileira. São Paulo: Editora 34, 2009.

VÁRIOS AUTORES. Enciclopédia da Música


Brasileira: erudita, folclórica e popular. São Paulo: Art
Editora, 1977.

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. Rio de Janeiro:


Companhia de Bolso, 1997.

WERNECK, Humberto. Chico Buarque – Letra e


Música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

160

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