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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Giulia Oliveira

Antes tarde do que nunca:


Descobrindo Rosinha de Valença

Porto Alegre, novembro de 2020.


Introdução

A decisão de pesquisar sobre Rosinha de Valença foi tomada a partir de um


sentimento de surpresa que tive ao ouvir Rosinha tocando tão maravilhosamente. Senti um
desconforto por estar tão surpresa por ser uma mulher a tocar daquela maneira… Estamos
mais habituados na música, em ouvir e conhecer exemplos de grandes cantoras e intérpretes,
muitas delas expoentes importantes para a cultura popular brasileira, como Elis Regina,
Maria Bethânia, Gal Costa, Rita Lee, Elza Soares, Alcione, Cássia Eller, Marisa Monte,
Maria Rita, entre muitas outras tanto de anos passados quanto da atualidade… No entanto,
mulheres instrumentistas, tocando instrumentos dos mais usuais aos menos conhecidos pelo
grande público, ainda nos surpreende.
Além disso, quando precisamos lembrar e citar nomes de expoentes em algum âmbito
da vida, normalmente lembramos primeiramente de nomes de homens. Não porque não
existam mulheres de destaque em cada uma das áreas da vida, mas sim, porque
historicamente é dado mais valor e visibilidade aos homens, aos seus talentos e as suas
conquistas. Além disso, as construções de gênero tradicionais ditam desde a infância os
comportamentos que são próprios para cada sexo, dentro de uma lógica binária, associando a
isso o incentivo ao desenvolvimento de habilidades específicas para cada gênero. Nesta
lógica, constrói-se atividades “de homens” e “de mulheres”, resultando na internalização
dessas ideias por parte das crianças e adultos, limitando a expressão de suas potencialidades.
Em pleno século XXI, ainda que existam muitos preconceitos e desigualdades, os
papéis de gênero estão mais desconstruídos, e as pessoas cada vez mais tem referências
contemporâneas de mulheres como expoentes em muitas áreas da vida - como no campo
científico, no intelectual, nos esportes, na cultura, etc -, e conseguem desde mais cedo que as
gerações passadas, irem construindo suas identidades e pensamentos mais livres de
aprisionamentos conservadores. Tudo isso, cabe ressaltar, foi sendo conquistado através de
enfrentamentos e contestação por parte das mulheres e dos movimentos feministas à
sociedade conservadora e patriarcal.
Então, com o intuito de contribuir com o movimento de construções de referências de
mulheres para as mulheres, e também para todas as pessoas, optei por pesquisar e trazer a
tona a história e obra de uma musicista, uma violonista, cantora, compositora e produtora que
foi expoente para a música popular brasileira nos anos 60 e 70: Maria Rosa Canellas, a
Rosinha de Valença.
Minha formação não é na música, sou apenas uma jovem apreciadora e curiosa de
música no geral. Este artigo visa muito mais materializar em palavras a descoberta desta
musicista do que focar no detalhamento de sua biografia ou aprofundamentos de uma análise
musical. Por isso trago uma brevíssima biografia, com o objetivo de trazer um panorama
geral da vida de Rosinha, para visando entendermos a grandeza de seu talento e o alcance e
importância que ela conquistou. Sentir as sensações é muito mais fácil do que escrever sobre
elas… também não sou poeta (salvo raros momentos de inspiração), por isso a parte final
deste trabalho compreende um compilado de canções para o deleite do leitor.

Desenvolvimento

Maria Rosa Canellas nasceu na cidade de Valença, interior do Rio de Janeiro em 30


de janeiro de 1941. Foi desenvolvendo seu interesse pelo violão de ouvir os ensaios de seu
irmão, Roberto, que tocava em um atuante concerto regional em Valença. Além disso, seu
tio, conhecido por “Fio da Mulata” era um dos instrumentista reconhecido na “Época de Ouro
do Rádio”, sendo assim, já estava inserida em um ambiente musical desde cedo e com
incentivo por parte de seu tio. Aprendia e desenvolvia suas habilidades de forma autodidata, e
já aos 12 anos tocava em bailes da região e na Rádios Clube de Valença. Aos 19 decidiu
largar os estudos para se dedicar a música e em 1963 foi para a capital em busca de novas e
melhores oportunidades para a sua carreira.
No Rio de Janeiro, conquistou a atenção do cronista e jornalista Sérgio Porto,
Stanislaw Ponte Preta, importante personagem para a inserção de Rosinha no mundo da
música. Além disso, ele apresentou Rosinha ao dono da Elenco, que se tornou a gravadora de
seu primeiro álbum, “Apresentando Rosinha de Valença”, lançado em 1964.
(capa e contracapa de seu álbum de estréia)

Gostaria de ressaltar aspectos da contracapa do álbum, primeiramente o texto de


Sérgio Porto em que conta a origem do nome artístico de Maria Rosa Canellas: “Elogiar
Rosinha eu não posso. Sou padrinho da moça. Quando ela chegou ao Rio, vinda de Valença,
fui eu quem a levou, pela primeira vez, para se apresentar em público. O sucesso foi enorme.
Escolhi nesse dia o seu nome, ‘Rosinha de Valença’, porque achei que ela toca por uma
cidade inteira”.
Outro aspecto que me chamou a atenção são as ilustrações, onde temos Rosinha
tocando e ao redor dela um público praticamente todo masculino. Isto reflete muito a
ocupação do espaço da música composto majoritariamente por homens, sejam como
consumidores ou como produtores de música. Para ilustrar essa situação temos um trecho de
uma entrevista de Rosinha em 1972 para o Jornal do Brasil:

“Eu era uma mulher que precisava de sorte, porque era a única contra um número enorme de
violonistas, um bando de homens que não estava a fim de me ceder um lugar. Precisava quase
arrancar as cordas do violão para que as pessoas compreendessem que eu sabia tocar. Quantas vezes
fazia acordes fortíssimos para acordar as pessoas, para que calassem um pouco a boca e prestassem
atenção: quando um artista toca, ele tem que ser ouvido. Não importa que esteja de saia ou de
cuecas”.¹

A partir de seu álbum de estréia Rosinha se inseriu com sucesso no mundo da música,
fazendo parcerias e trabalhando - seja como produtora, diretora musical, compositora e/ou
violonista - com nomes importantes do cenário musical, como Nara Leão, Maria Bethania,
Leci Brandão, Martinho da Vila (parceria por oito anos), Zizi Possi, Ney Matogrosso entre
tantos outros. Participou também de programas de Tv de sucesso como o Fino da Bossa
(1964), da Record com apresentação de Elis Regina e Jair Rodrigues e tendo Baden Powell
tocando ao seu lado e em um programa especial da Rede Globo nos anos 70. Seu talento a
levou para muitos lugares do mundo, começando pelos Estados Unidos já em 1965 em uma
turnê de 8 meses, seguida de outra que passou por 24 países da Europa e em seguida para o
Japão. Em 1968 se apresentou novamente em países da Europa, na Rússia, em Israel e em
países do sul da África. Ao longo de sua carreira lançou 8 discos solo. As temáticas mais
recorrentes de suas composições evidenciavam as raízes populares do Brasil, com temáticas
interioranas e caipiras, como em “Usina de Prata”, “Interior” e “Os Grilos São Astros”,
indígenas, como em “Uirapuru”, e afro-brasileiras, como em “Cana Caiana”.
Rosinha, ao lado de Baden Powell se constituíram como expoentes para os rumos da
bossa nova no país. Neste contexto, a bossa nova se constituía como uma mercado crescente
de consumo principalmente nos Estados Unidos e muitos artistas brasileiros estavam
impulsionando suas carreiras a partir deste mercado, se tornando “fenômenos mundiais nos
anos 1960 e 1970 [competindo] nas paradas com os Beatles e com o rock”(MACHADO 2008
p.155-156). O jornalista Luís Nassif, destacou a importância do surgimento de Rosinha no
cenário musical: “Os novos rumos do violão brasileiro seriam definidos por Baden e
Rosinha”². Devido a suas proximidades de técnica e sonoridade, comparações eram feitas
entre eles o que mais uma vez tornava evidente a mentalidade daquela época, como podemos
perceber no trecho abaixo:

“Com Roberto Menescal, a surpresa foi a mesma. Violonista consagrado, Menescal havia sido
convidado para assistir Rosinha tocar na casa de um amigo. Era o início da década de 60 e nenhuma
mulher tinha despontado no País, até então, como uma virtuose do violão. “Quando vi aquela moça
tímida, com um vestidinho de interior, achei que tinha entrado numa roubada”, lembra Menescal, que
logo mudou de opinião. “Ela mandou um violão no melhor estilo Baden Powell.” A comparação com
o autor de “Berimbau” também foi lembrada por Turíbio Santos. “Ela era o Baden Powel de saias.”

Durante meu processo de descoberta de Rosinha de Valença, me ative também para a


leitura dos comentários que se seguiam as reproduções das canções, ali, pode ter conhecer
uma pequena amostra das reações despertadas nos dias de hoje pela sua música. Observei
alguns tipos de comentários, a saber: os de pessoas que ainda não conheciam o trabalho de
Rosinha de Valença, e que sentiam surpresa e desconforto com isso mas também sentiam-se
agradecidos por finalmente estarem ali, ouvindo sua música. Esta situação aconteceu tanto
com brasileiros quanto com ouvintes de outros países. Outros tipos de comentários, percebe-
se de pessoas que já conheciam a musicalidade da artista, frequentemente fazem comparações
de dois tipos: com outro ícone do violão, Baden Powell, muitas vezes também com
comparações que acabam por inferiorizar a grandeza de Rosinha, e outras colocando-os lado
a lado como os maiores violonistas da música popular brasileira. Outra comparação
recorrente, é a de sua música com a música produzida na atualidade, a qual se referem como
de pouca qualidade. Também aparecem muitos comentários em outra linha: destacam e
lamentam o esquecimento sofrido por Rosinha, tanto pelos meios de comunicação quanto
pelo grande público, além de muitos outros de estrangeiros e de brasileiros saudando Rosinha
e seu talento sem igual. Para maior ilustração reproduzo aqui alguns destes comentários que
me chamaram a atenção:

Considerações Finais

No violão, com sua sonoridade muito ritmada e vigorosa, articulada com momentos
de diminuição melódica, Rosinha de Valença nos leva a viagens profundas com sua música,
despertando sensações de grande admiração e satisfação ao ouvir. Como compositora
escreveu belos poemas que retratam a cultura popular do país e, apesar de não ser
amplamente conhecida pelas gerações mais jovens foi uma pessoa de grande relevância para
a música brasileira, seja pelo trabalho em conjunto com diversos outros musicistas ou por sua
produção própria. Sobre sua consolidação no cenário da música temos a fala do
instrumentista Hermeto Paschoal:
“Pelos músicos da minha geração, a mulher era desprezada pelos homens quando era
vista tocando ou dirigindo carro. Quando o pessoal via que Rosinha esquentava tudo, acabava
esse papo boboca.”3

Segundo reportagem publicada na edição de janeiro/fevereiro de 2018 da Revista


Vale do Café Rosinha de Valença contou: “Acredito que se me casasse e tivesse um filho,
deixaria de tocar violão, e a falha não seria exclusivamente minha, mas sim, da estrutura que
vivemos”. Estrutura que até então impunha diversas dificuldades para a possibilidade de uma
conciliação saudável entre carreira profissional e família, como por exemplo a
responsabilidade atribuída unilateralmente as mulheres para o cuidado dos filhos e do lar.
Rosinha construiu o seu caminho de sucessos, que infelizmente foi interrompido por
uma parada respiratória sofrida em abril de 1992, quando retornou ao Brasil. Rosina
permaneceu 12 anos em estado vegetativo, sendo cuidada por seus familiares e também com
algum apoio financeiro de outros colegas músicos, como Maria Bethânia, Alcione, Miúcha e
Martinho da Vila. Após sua morte, foram feitas diversas homenagens e apresentações tributos
para Rosinha, à exemplo do disco tributo organizado por Maria Bethânia o “Namorando a
Rosa”, que conta com a participação de muitos outros cantores que compreendiam a grandeza
de Rosinha.
Esta breve compilação de dados e reflexões trazem uma visão ampla da trajetória de
Rosinha, e contemplaram uma busca pessoal de descobertas e conhecimentos. Esta busca vai
ser continuada, visando também tornar mais conhecida a obra de Rosinha de Valença para as
novas gerações, se constituindo assim como uma musicista referência para mais pessoas.

Indicações para ouvir, ver e sentir


Parte importante desta pesquisa inclui entrar em contato com a obra de Rosinha e com
as sensações despertadas por ela. Para isso, abaixo vai um selecionado de canções onde
podemos conhecer pela experiência sensorial o trabalho desta musicista.

Versão da música “Summertime” por Rosinha de Valença. A música que me impulsionou a


pesquisar sobre Rosinha de Valença.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vzpArFXi9uI
Música “Consolação” (Baden Powell). Por Rosinha de Valença no show alemão “Folklore
Der Welt - Bossa Nova do Brasil”, 1966.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hxi_qliU3DE

Álbum completo “Apresentando Rosinha de Valença” de 1964, seu álbum de estréia.


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WoiSKv8c6Z0

Concerto na Alemanha, 1966. Sylvia Telles e Rosinha de Valença.


Conjunto musical: Piano - Don Salvador; Flauta - J.T. Meirelles (João Theodoro Meirelles);
Bateria - Chico Batera; Pandeiro - Rubens Bassini; Contrabaixo - Sérgio Barroso
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4ByHT3U_2DY

Rosinha de Valença Ao vivo, 1966, álbum completo:


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XGpnJdFAyKQ

Repertório Popular, Tv Cultura, SP, 1977.


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=C3xvIUOz5Ss&t=829s

Referências

1. PERRONE, Andrea. A Herança Musical de Rosinha de Valença. Matéria em Violão e


Ponto - O clube do violão solo. Disponível em: https://violaoeponto.com.br/a-heranca-
musical-de-rosinha-de-valenca/ Acesso em 25/11/20.

2. BARAÚNA, Mara L. Em: Uma homenagem a Rosinha de Valença. GNN - O Jornal


de todos os Brasis. Disponível em: https://jornalggn.com.br/musica/uma-homenagem-a-
rosinha-de-valenca/ Acesso em 25/11/20

3. SANCHES, Pedro Alexandre. Tributo de Bethânia redimensiona Rosinha de Valença .


Folha de S.Paulo, São Paulo, 22 dez. 2004. Disponível em: <
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2212200417.htm >. Acesso em: 27/11/2020.
LOPES, Sergio Gustavo Lopes. Rosinha de Valença – Liberdade e Destino. Revista Vale do
Café. Disponível em: revistavaledocafe.com.br/2020/04/08/rosinha-de-valenca-liberdade-e-
destino/ Acesso em: 28/11/20

MACHADO, Cristina Gomes. Zimbo Trio e o Fino da Bossa: uma perspectiva histórica e sua
repercussão na moderna música popular brasileira. Dissertação (Mestrado em Música) –
Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista (Unesp), São Paulo, 2008.

PINHEIRO, Marcelo. O violão soberano de Rosinha de Valença. Disponível em:


https://artebrasileiros.com.br/cultura/o-violao-soberano-de-rosinha-de-valenca/ Acesso em:
28/11/20

ROSINHA de Valença. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São
Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa208954/rosinha-de-valenca>. Acesso em:
28/11/20

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