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Masarykova univerzita

Filozofická fakulta

A baianidade nas letras de Caetano Veloso e

Gilberto Gil
(závěrečná magisterská práce z Portugalského jazyka a literatury)

Jana Zrníková

Vedoucí práce: PhDr.Zuzana Burianová, PhD. Brno 2007


Prohlašuji, že tuto diplomovou práci jsem vypracovala sama za použití uvedené

literatury a internetových zdrojů.

Chtěla bych poděkovat paní doktorce Zuzaně Burianové za vedení mé práce,

ochotu vést konzultace i na dálku a samozřejmě za všechny cenné připomínky.

2
A baianidade nas letras de Caetano Veloso e

Gilberto Gil

Estou pensando / no mistério das letras de música


tão frágeis quando escritas / tão fortes quando cantadas
a palavra cantada não é a palavra falada / nem a palavra escrita
a altura a intensidade a duração a posição
da palavra no espaço musical / a voz e o mood mudam tanto
a palavra canto / é outra coisa

Augusto de Campos

3
Índice

1. Introdução..................................................................................5
2. A cultura baiana na perspectiva histórica...................................8
3. A baianidade.............................................................................16
4. A Bahia na MPB......................................................................22
5. As biografias............................................................................25
5.1. A biografia de Caetano Veloso.............................................25
5.2. A biografia de Gilberto Gil...................................................28
6. O tropicalismo..........................................................................31
7. A baianidade de Caetano Veloso e Gilberto Gil......................39
7.1. Alegria...................................................................................40
7.2. Festas.....................................................................................42
7.3. Religiosidade.........................................................................46
7.4. Sensualidade..........................................................................54
7.5. Saudade da Bahia..................................................................56
7.6. Primazia.................................................................................57
7.7. Os lugares da Bahia e de Salvador........................................61
7.8. As personalidades baianas.....................................................63
7.9. Os lados negativos dos baianos.............................................65
8. Considerações finais.................................................................69
Bibliografia..................................................................................71
Anexo...........................................................................................74

4
1. Introdução

A música brasileira sempre teve e continua a ter um grande renome no mundo

musical. São raras, por exemplo, as pessoas que não sabem que o samba provém do

Brasil. Outro estilo tipicamente brasileiro é a bossa nova. A bossa nova conquistou o

mundo na primeira metade dos anos 60 do século passado, com sua leveza e a batida

típica, mas não foi a última contribuição do país tropical para a variedade musical. Os

ritmos e danças brasileiros, surgidos durante a folia carnavalesca, causaram enormes

ondas do sucesso nos anos 80 e 90 (mencionemos a lambada ou axé-music).

A riqueza e a diversidade dos gêneros musicais brasileiros é incrível. O que teve

um grande impacto na música popular brasileira (MPB) e seguiu-se ao sucesso da bossa

nova foi a produção musical do movimento tropicalista. O tropicalismo, “o único

“ismo” tipicamente brasileiro”1, não se limitou apenas à música, mas foi essa que

superou as outras manifestações tropicalistas e que com suas letras acendeu também o

grande interesse por parte dos críticos literários ou dos próprios poetas. O distinguido

poeta, tradutor e crítico literário Augusto de Campos afirmou, em fins dos anos 60, que

o que melhor estava se fazendo em poesia no Brasil estava sendo produzido por

compositores da MPB que foi influenciada pelo tropicalismo. O mesmo considerou

Caetano Veloso o maior poeta da sua geração.

Assim, Caetano Veloso, o “pai-fundador” do movimento tropicalista, e seu

“irmão-gêmeo”, Gilberto Gil, entraram no centro do interesse deste trabalho, cujo

objetivo é pesquisar de que maneira a origem baiana, ou a chamada “baianidade”,

1
Assim é chamado por Sylvia Helena Cyntrão no prefácio do livro A forma da festa – tropicalismo: a
explosão e seus estilhaço. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2000, p. 6.

5
deixou vestígios em sua obra poética. Vamos tentar identificar alguns dos principais

assuntos e idéias baianos propostos pelos compositores ao longo de sua criação artística,

sem usar nenhum limite periódico, esforçando-se tanto por identificar o sentido das

letras das canções em sua totalidade quanto por a analisar detalhamente cada fragmento

do enunciado referente à Bahia.

É, porém, preciso destacar que a obra dos dois artistas não é a poesia em stricto

senso. Antes pode ser designada como a poesia da canção. A designação “poesia“ tem

aqui seu fundamento porque a presença dos elementos literários na linguagem da canção

brasileira contemporânea é inegável e merece consideração. É verdade que a poesia da

canção e a poesia destinada à leitura possuem a mesma origem histórica e mantêm

muitas afinidades, mas não são exatamente iguais. A avaliação literária das letras da

música, sem tomar em consideração também a parte musical, é sempre incompleta. A

letra é a parte de um todo (a canção) e deve estar em sincronia com o código musical,

obedecendo a uma métrica, a uma sonoridade e a um tamanho correspondentes a essa

parte. Feita para compor a unidade com o elemento musical, os dois se influenciam

mutuamente, tanto ao nível da seleção temática, quanto ao nível estrutural: em sua

origem, texto e música são inseparáveis.2 Portanto é claro que a análise trazida nesse

trabalho tem certos limites e não pode exprimir toda a riqueza da canção, a irrepetível

junção da palavra e do tom.

Apesar de ser muito ampla a literatura sobre Caetano Veloso e Gilberto Gil,

dedica-se quase toda a outros aspectos. A única fonte, que se aproxima do problema

determinado por este trabalho, é a tese de Anes Francine de Carvalho Mariano com o

título A arte de ser baiano: segundo as letras das canções da música popular 3, mas a

2
Para saber mais sobre as especifidades da análise da letra ver: Perrone, Charles A. Letras e letras da
música popular brasileira. Rio de Janeiro, Elo Editora, 1988, p. 11-22 e Goés, Fred de. Gilbeto Gil.
Literatura comentada. São Paulo, Abril Educação, 1982, p. 15.
3
Mariano, Agnes Francine de Carvalho. A arte de ser baiano: segundo as letras das canções da música
popular. Tese de doutorado da UFBA, Salvador, 2001.

6
tese, abrangendo um período do inteiro século XX, só traz percepções básicas ao tema

sem grande profundidade. Outra obra, com o título prometedor A presença da Bahia na

música popular brasileira de Luiz Américo Lisboa4, limita a sua pesquisa só ao ano de

1964, quando os músicos por nós analisados ainda não lançaram nenhum disco LP.

Somente uma breve menção ao nosso tema é trazida por Felix Ayoh’omidire em sua

tese de doutoramento intitulada Yorubanidade mundializada: o reinado da oralitura em

textos yorubá – nigerianos e afro-baianos contemporâneos5. Então, não restava nada do

que tentar fazer o mosaico dos estilhaços encontrados nos depoimentos de Caetano

Veloso e Gilberto Gil e na literatura secundária sobre eles. Não podemos esqueçer,

porém, as próprias letras, que se tornam a fonte fundamental e o objeto deste trabalho.

No que diz respeito à estrutura deste trabalho, primeiro, queremos aproximar

brevemente a cultura baiana porque ela tem muitas especifidades e sem esse

conhecimento fundamental não podemos desdobrar o discurso sobre a baianidade. A

seguir, vamos questionar o conceito da baianidade de vários ângulos – o que esse termo

significa para os baianos, para outros brasileiros e, para completar, queremos também

trazer „o olhar de fora“. Antes de começar com o núcleo do trabalho, com a análise dos

elementos baianos na obra de Caetano Veloso e Gilberto Gil, queremos também

mencionar como se a baianidade refletiu nas letras dos compositores mais antigos, com

a maior atenção prestada a Dorival Caymmi.

4
Lisboa Júnior, Luiz Américo. A presença da Bahia na música popular brasileira. Brasília,
MusiMedLinha Gráfica Editora,1990.
5
Felix Ayoh’omidire. Yorubanidade mundializada: o reinado da oralitura em textos yorubá – nigerianos
e afro-baianos contemporâneos. Tese de doutoramento da UFBA Salvador, 2005.

7
2. A cultura baiana na perspectiva histórica

Tratando da cultura baiana, o mais importante é salientar o fato que ela não é

homogênea. A cultura do litoral extremo-sul da Bahia, da região cacaueira, é muito

diferente do interior, por exemplo, da região do rio São Francisco. Até para um

estrangeiro que visita esta zona, as diferenças entre as regiões visitadas na Bahia são

nítidas. A culinária de cada lugar na Bahia tem seu sabor próprio, o sotaque dos baianos

difere de um lugar para outro, assim como a música tocada nas ruas tem seus ritmos

variáveis.

Portanto falar sobre uma cultura baiana é impossível. Mas o que então entender

sob a designação da “cultura baiana”? Para a maioria dos brasileiros, a Bahia é

intimamente ligada à cidade de Salvador, às vezes chamada a Cidade da Bahia. Assim, a

cultura baiana é, para este texto, entendida, conforme a definição de Antonio Risério,

como “a cultura predominantemente litorânea do recôncavo agrário e mercantil da

Bahia, que tem como principal núcleo urbano a tradicional Cidade do Salvador da

Bahia de Todos os Santos”6. Essa cultura, ganhando ao longo do tempo influências de

várias nações, pode ser hoje simplificadamente caracterizada como luso-banto-iorubana

com traços tupis. Tomando em consideração também os aspetos econômicos e políticos,

vamos falar sobre a contribuição de várias nações para a constituição da cultura baiana.

Os índios tupinambás, do grupo língüístico tupi, foram os primeiros habitantes

da baía de Todos os Santos. Os colonizadores portugueses, que chegaram no início do

século XVI, apesar de exercer a política da dizimação, não conseguiram extirpar toda a

herança indígena. Ela permanece no vocabulário baiano, principalmente nos topônimos

e no léxico pesquiero e, por exemplo em Itapuã, o bairro ligado a Dorival Caymmi, é

bastante notável. Além de Caymmi, também Caetano Veloso notou essa herança do tupi

6
Risério, António. Bahia com „H“. In: Reis, José João (org.). Escravidão e invenção da Liberdade. São
Paulo, Ed. Brasiliense, 1988, p. 146.

8
e compôs a melodia “Two Naira fifty Kobo” com letra sequinte: “a força vem dessa

pedra, que canta Itapuã, fala tupi, fala iorubá”.

A influência portuguesa é omnipresente e não é necessário abordar amplamente

esta questão. Com a força dos colonizadores, os portugueses imprimiram na Bahia as

marcas de sua cultura (por exemplo, o centro de Salvador com seus sobrados pode-se

facilmente confundir com as cidades portuguesas da época) e o português tornou-se a

única língua oficial do Brasil inteiro. Em 1549 fundaram Salvador. A cidade já foi

planejada pelo governo português com fins transnacionais e não evoluiu, como era

comum, de um agrupamento, que se transforma em vila e posteriormente em cidade. A

Cidade da Bahia tornou-se a capital da nova colônia e seu centro comercial e

administrativo que se aproveitou do comércio açucareiro. Esse período da história de

Salvador é bem caraterizado nos poemas do famoso “Boca do Inferno”, Gregório de

Mattos, que “bebeu o mel dos engenhos nos lábios grassos das negras”.7 Nos séculos

XVI e XVII, Salvador era a maior cidade europeia fora da Europa, mas também o maior

agrupamento africano fora da África.

Nos séculos XVI e XVII (depois da proclamação da lei de 1570 que proibira a

escravatura dos índios), por conta do tráfico de escravos, apontaram na Bahia os povos

do grupo lingüístico banto, vindos de Angola e do antigo reino do Congo. A mão-de-

obra deles ficou imprescindível para a indústria açucareira. A partir dos fins do século

XVIII perderam a hegemonia, quando o comércio de escravos se mudou para a África

superequatorial (região da Costa da Mina e Golfo do Benin – lugares com as primeiras

feitorias portuguesas na África). Entretanto, esses negros bantos, apesar de contínuo

processo de aculturação, deixaram marcas profundas na sociedade baiana. Por exemplo,

eles criaram já no século XVI a importante irmandade do Rosário dos Pretos do

Pelourinho, que se mantém até o presente e que, além da função religiosa e social,
7
Risério, António. Avant-garde na Bahia. São Paulo, 1995, p. 157.

9
contribui à divulgação da cultura negra. As línguas bantos têm presença marcante nos

falares populares ─ foram eles que deixaram no léxico baiano as palavras como dendê,

bunda, samba, candomblé, quiabo, macumba e umbanda. Os bantos estavam presentes

no carnaval de fins do século XIX, com entidades como os Pândegos da África; foram

responsáveis pela introdução da capoeira e do samba na Bahia (e no Brasil em geral);

mantiveram suas tradicionais religiões através dos candomblés congo e angola.

O fluxo dos bantos para a Bahia pára nos fins do século XVIII, quando teve

início um período de influência marcadamente sudanesa, com a chegada dos fons do

Benin, identificados como jêjes, e dos iorubás, conhecidos também como nagôs. Por

terem vindo em grande número e pelo intercâmbio constante com a costa ocidental

africana, exercem considerável supremacia no século XIX e passam a ocupar o lugar

central entre as culturas africanas. Já naquela época a Cidade da Bahia era o caldo

cultural, porque quando os escravos chegaram para a Bahia, foram estrategicamente

misturados pelos senhores de engenho, para que não houvesse a concentração das

pessoas da mesma nação, a fim de evitar uma revolta organizada. Então, misturaram-se

várias nações e a cultura deles com culturas diferents. Com a superioridade numerosa

dos negros, Salvador tornou-se, literalmente, uma cidade africanizada, “pautada em um

florescimento cultural jêje-nâgo, com grande ênfase na preservação de formas

institucionais religiosas, animadas por uma recente memória”.8 Mas entende-se que a

camada portuguesa com a religião católica não desapareceu e portanto a Cidade da

Bahia permaneceu portuguesa-banto-jêje-nagô e o sincretismo e a diversidade cultural

se torna uma das características marcantes da Bahia.

Aqui é conveniente sublinhar a estabilidade que caracterizou a história

demográfica da região. A Bahia ficou quase inatingida por aquilo que, da perspectiva da

história geral do Brasil, é chamado de “migrações secundárias” (com a exceção da


8
Bacelar, Jeferson. A hierarquia das raças. Negros e brancos em Salvador. Rio de Janeiro, Pallas, 2001.

10
imigração iberiana, que não mudou seriamente a distribuição das nações e cultura

instalada na Bahia).

Até a proclamação de lei que proibiu o tráfico dos negros, em 1851, chegaram à

Bahia negros de várias nações para que trabalhassem como escravos nos engenhos

baianos e nos campos de tabaco. Mas os grandes dias do açúcar acabaram com o

desenvolvimento da tecnologia do uso da beterraba para a produção açucareira na

Europa e com o incremento dos engenhos de açúcar no Caribe. E chegou mais um golpe

– a descoberta do ouro nas Minas Gerais, no último decênio do século XVII. Mesmo ao

longo da primeira metade do século XVIII, em favor de suas funções de porto comercial

e centro político, Salvador era ainda a mais importante, rica e populosa cidade do

Império português, depois de Lisboa.9 O que mais humilhou a vaidosa Cidade da Bahia

foi a mudança da capital para o Rio de Janeiro, que ofereceu as melhores possibilidades

para o comércio do ouro, em 1763. Esta mudança, bem como a instalação da sede da

monarquia lusitana, em 1810, e, posteriormente, da sede do império brasileiro atestam a

significância secundária da “velha mulata”, reduzida de centro do Brasil Colônia a uma

função meramente regional. A Bahia vai se encerrando em si mesma e em seu

isolamento mantém a arcaica trama produtiva que não foi muito atingida pela alteração

revolucionária nas relações trabalhistas com a “Lei Áurea” de 1888 o que acelera seu

declínio. O certo isolamento intesificou as relações pessoais e, assim, promoveu o

desenvolvimento de costumes locais. Na passagem do século XIX para o século XX,

Salvador até deixa de ser o centro regional, com Recife assumindo o comando das

operações nordestinas e a expansão dos cacauais no eixo Ilhés-Itabuna.10

Até a década de 50 do século passado, Salvador continua a ser uma cidade

ancorada nas tradições, hierarquizada sócio-racialmente, conservadora e pré-industrial.

9
Risério, António (1988), op. cit., p. 147.
10
Ibidem, p. 151.

11
A este propósito, fala-se às vezes de “enigma baiano”. A Bahia não teve lugar na

primeira onda de modernização urbano-social, que se armou no país após a revolução de

1930 e a estrutura económica da província permanece essencialmente agro-mercantil.

Só nos anos 50, com o desenvolvimento industrial provocado pela descoberta do

petróleo e com a vinda da Petrobrás para o Recôncavo, podemos observar mudanças

sérias na sociedade e na cultura baiana. Vamos dedicar mais espaço ao conjunto de

elementos que teve influência nessa alteração mais acentuada nos modelos relacionais

dos habitantes desta região e no campo da cultura e que possibilitou o nascimento da

tropicália. Até podemos dizer que se criou uma atmosfera de efervescência cultural

propícia ao aparecimento, à formação e ao desenvolvimento de uma personalidade

cultural criativa que se encarnou em artistas-pensadores como Caetano Veloso ou

Glauber Rocha.

De boa parte responsável por esta situação foi a implantação da Universidade

Federal da Bahia, em 1946, que foi dirigida pelo reitor Edgar Santos. Ele foi uma peça-

chave, personagem fundamental no processo do desenvolvimento cultural de Salvador.

Esta afirmação pode ser ilustrada pelas palavras de Gilberto Freyre, o importante

antropólogo brasileiro: “Encontrei, o ano passado, a Bahia ainda mais cheia que nos

anos anteiores do espírito universitário que vai comunicando à sua vida e à sua cultura

o reitor Edgard Santos...Pois, a ação renovadora desse reitor verdadeiramente

magnífico não se vem limitando a dar novo ânimo ao sistema universitário baiano,

considerado apenas nos seus limites convencionais. Ao contrário: ele vem se

especializando em associar, de modo mais vivo, a Cidade à Universidade”.11 O reitor

concentrou-se na instituição universitária, fazendo dela o centro da agitação cultural.

Mas, como fica claro da citação de Gilberto Freyre, a Universidade não ficou encerrada

em si; Egdard Santos planejava grande difusão da Universidade rumo à Cidade. Por
11
Apud: Risério, António (1995), op. cit., p. 78.

12
exemplo, na abertura dos Seminários Internacionais de Música, realizados em 1958, o

reitor acentua a importância dos músicos “na vida espiritual da cidade”. 12 A

Universidade foi muito inovadora – em 1956, por exemplo, abriram ali o único curso de

dança de nível superior no país.

Entre as décadas de 1950-1960, a isolada e tradicional Cidade da Bahia achou-se

de repente sob um forte influxo de informações internacionais. Foi porque Edgard

Santos deixou-se cercar por colaboradores estrangeiros. A Escola da Dança recebeu a

polonesa Yanka Rudzka, uma das pioneiras da dança moderna no Brasil, o convite do

reitor foi aceitado pelo músico alemão Hans Koellreutter, que tornou o Seminário da

Música em um centro de liberdade criativa e experimentação artístico-musical. Sob a

proposta do pensador português Agostinho da Silva, foi pela UFBA criado o Centro dos

Estudos Afro-Orientais (CEAO), o núcleo do conhecimento brasileiro acerca das

realidades africanas e asiáticas. Outras pessoas com idéias vanguardistas

desembarcaram na Bahia. Por exemplo, o compositor experimental Walter Smetak, foi

uma das fontes da inspiração para Caetano Veloso e Gilberto Gil e os dois elogiam-no

em sua obra.13 Além da Universidade, outras instituções formaram o “avant-garde”

baiano. Na cidade foi estabelecido o Cineclube baiano, decisivo para a divulgação dos

filmes não-comercias e para a criação do Cinema Novo no país, representado por

Glauber Rocha.14 Sob o comando de outra estrangeira, arquiteta italiana Lina Bo Bardi,

foi construída outra instituição extrauniversitária, o Museu da Arte Moderna, que é uma

peça fundamental no desenvolvimento cultural da cidade.

Para a ilustração da importância dos acontecimentos culturais em Salvador na

década de 50 e 60, para o grupo dos artistas como Glauber Rocha, Gilberto Gil ou

12
Ibidem, p. 41.
13
Como aponta o nome do músico, ele é da origem tcheca.
14
Mais uma alusão ao ambiente tcheco: o filme Barravento de Glauber Rocha foi agraciado, em 1962,
com o prêmo de melhor filme de diretor estreante no festival de Karlovy Vary.

13
Maria Bethânia, ouçamos as palavras de Caetano Veloso: “Todos dessa geração

devemos muito ao reitor Edgard Santos, devemos enormemente a dona Lina [Bo

Bardi]...Lina é responsável pela civilização de uma geração”.15 Os protagonistas e

consumidores dessa fase do florescimento cultural, chamado também de o “avant-

garde” baiano, eram preponderantemente os brancos 16, a minoria da população de

Salvador. Mas os negros não ficaram fora da agitação cultural da época, apesar de não

pertencerem ao “avant-garde” baiano. Sobre grande avaliação da cultura negra vamos

falar a seguir.

Seria injusto não mencionar outras personalidades que não pertenceram ao

“avant-garde”, mas que também contribuíram com seu trabalho ao desenvolvimento

cultural da Bahia. Como já foi o caso dos artistas e pensadores citados, muitas delas

eram estrangeiros. Inspirado pela leitura do romance Jubiabá, de Jorge Amado, e em

busca de uma cultura vital, de raiz negroafricana, o francês Pierre Verger decidiu morar

na Bahia. Impressionado pela beleza e profundidade do culto do candomblé, passou a

freqüentar este mundo e em suas fotografias apanhava a vida dos negros baianos. Sem a

formação acadêmica, tornou-se um antropólogo respeitado e um especialista na área das

relaçãoes Bahia-África. Também o pintor de origem argentina, conhecido pelo apelido

Carybé, achou a fonte da inspiração no mundo dos rituais afro-brasileiros, nos orixás e

no folclore dos baianos. Ele também veio de longe por causa das referências da Bahia

nos livros de Jorge Amado e, apesar de não ser baiano, ele é considerado o maior

retratista da chamada baianidade. A todos acima referidos, aos artistas vanguardistas,

assim como a Verger e a Carybé, dedica as palavras de homenagem o escritor Jorge

Amado, que não pode faltar, juntamente com Dorival Caymmi, na lista dos nomes que

contribuíram ao florescimento da cultura baiana nas décadas de 50 e 60.

15
Apud: Risério, António (1995), op. cit., p. 137.
16
Uma das exceções é justamente Gilberto Gil.

14
Graças ao trabalho das personalidades como Verger ou Carybé, na década de 70

desenvolve-se a propagação da cultura negra junto com a criação dos blocos afro,

organizações comunitárias dos negros, como Ilê Aiyê e Olodum. A cultura negra já não

é marginalizada e, junto com aquela cultura “superior”, criada sob a influência

vandguardista nos anos 60, constrói a cultura baiana contemporânea, talvez a mais

significativa expressão cultural do Brasil inteiro.

3. A baianidade

A própria análise dos elementos baianos na obra de Caetano Veloso e Gilberto

Gil não pode ser feita sem o esclarecimento do conceito de „baianidade“ que pode ser

chamado, segundo vários autores, também de „identidade baiana“, „idéia da Bahia“ ou

„o que faz ser baiano“. Mas novamente queremos sublinhar que essa baianidade diz

15
respeito apenas à cidade de Salvador e ao Recôncavo da Baia de Todos os Santos com

as cidades históricas como Santo Amaro da Purificação, Cachoeira, São Felix e outras.

O conceito de baianidade tornou-se tão frequente que mereceu até um verbete

num dos dicionários da língua portuguesa, no Aurélio. Lá podemos ler: “1. Maneiras,

atitudes, sentimento, próprios de baiano. 2. Amor intenso à Bahia, à sua gente, aos seus

costumes”. O sociólogo baiano Milton Moura, doutor na UFBA, tentou definir a

baianidade mais complexamente: “A baianidade é entendida como um texto identitário,

ou seja, que realiza a asserção direta de um perfil numa dinâmica de identificação. É

compreendida como um ethos baseado em três pilares: a familiaridade, que supõe a

ambivalência numa sociedade tão desigual, a sensualidade associada à naturalização

de papéis e posturas e a religiosidade que costuma acontecer como mistificação numa

sociedade tão tradicional”.17

Então, Moura propôs aqui os três pilares básicos da baianidade, a familiaridade,

a sensualidade e a religiosidade. Nessas categorias podem caber ainda outras que

parecem mais explícitas e vêm à cabeça de muitas pessoas logo quando pensam na

Bahia a nas características do baiano típico. Mais acertado nos parece a alegria que é a

essência das festas de Salvador e do Recôncavo. Acrescentaríamos ainda a

hospitalidade e a cordialidade, mas essas talvez caibam na categoria da familiaridade

do sociólogo Milton Moura.

A sensualidade dos baianos poderia ser às vezes trocada até pela sexualidade, e o

sexo não pode estar fora da pauta da baianidade. O assunto sempre esteve associado à

Bahia, e principalmente às mulheres baianas, e muitas vezes foi abordado na literatura,

chega lembrar a Rita Baiana, mulata assanhada do romance de Alúzio Azevedo ou as

numerosas personagens do escritor Jorge Amado. A imagem dos baianos como

sexualmente disponíveis, assecíveis, até lascivos é muito espalhada entre os brasileiros


17
Moura, Milton. Carnaval e Baianidade. Tese de doutorado da UFBA, Salvador, 2001, p. 63.

16
do Sul e também entre os estrangeiros. Muitos deles escolhem a Bahia só por causa

dessa fama e vêm lá como turistas sexuais.

Falta ainda um aspecto da baianidade que é muito imporante. Podemo-lo chamar

a primazia. Os baianos se sentem muito orgulhos de sua maior cidade que é cheia de

antiguidade histórica. São bem conscientes da importância de Salvador como a primeira

capital do Brasil, „a primogênita de Cabral“ 18. Stefan Zweig, com seu olhar europeu, foi

enfático: „A Bahia é para o Novo Mundo o que para nós são as metrópoles

milenárias“.19 A Bahia apresenta uma identidade cultural específica, orgulhosa de seu

passado, costumes e tradições. Nenhum outro estado brasileiro aprecia tanto as tradições

e a originalidade. Desse fato também provém a auto-estima dos baianos e a certa

sensação de diferença. Milton Moura disse o seguinte: „Parece que um dos itens da

baianidade é justamente sentirmo-nos diferentes. Claro, toda a identidade é

contrástica, etc, etc. Mas a própria diferença, como módulo, é um valor para os

baianos…não?“20

Os conceitos da baianidade referidos (a alegria, a familiaridade, a cordialidade, a

hospitalidade, a sensualidade/a sexualidade, a religiosidade, a primazia) são atribuídos a

todos os baianos e passam a ser algo como a marca registrada da Bahia. Essas

construções são muitas vezes utilizadas, por exemplo, pela Bahiatursa (principal órgão

responsável pelo turismo na Bahia), como atração para turistas (e eles mesmo vêm a

Salvador para ver a primeira capital do Brasil, curtir as festas, admirar as belas baianas

ou viver uma experiência religiosa extraordinária no terreiro do candomblé), e já são tão

enraizadas no pensamento dos brasileiros, assim como dos estrangeiros, que se afinal

tornaram para muitas pessoas a verdade incontestável.

18
Risério, António. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo, Perspectiva, 1993, p. 113.
19
Apud: Risério, António (1993), op.cit., p. 113.
20
Moura, Milton op. cit., p. 68.

17
Todas as características atribuídas aos baianos nos parágrafos anteriores são

positivas. Será que o baiano é sem jaça? Claro que não. A visão brasileira da Bahia e

dos baianos é carimbada por uma certa ambivalência. A Bahia com seus habitantes não

é só a terra prometida, sedutora, idealizada. Há também a opinião oposta em que a

expressão „baiano“ ganhou a conotação pejorativa. É associada às grandes massas

migratórias dos nordestinos para São Paulo, que foram recebidas na metrópole sulista

com muito receio. Naquela época, na década de 40 do século passado, chegavam só os

nordestinos sem qualificação, ameaçando assim as classes populares. Os paulistas

reagiram desse jeito: começaram a inventar piadas sobre o baiano porque o

representante mais visível dos nordestinos foi o baiano. Até surgiu a nova palavra com

sentido despreciativo, “baianada“. Significa, segundo o dicionário Aurélio, “ação

desleal, suja; sujeira, patifaria“. Essa visão do baiano permanece nos Estados do Sul até

hoje e os baianos lá têm que enfrentar muitos preconceitos. O baiano é a um só tempo

idealizado e depreciado, amado e hostilizado. Além de considerado “burro“, ele é

também preguiçoso. O mito da preguiça baiana é um traço do preconceito contra os

imigrantes, mas pode significar também o preconceito racial porque o baiano tem

sangue negro na veia. E justamente o rótulo que mais irrita os baianos é a fama de

preguisoso. É verdade que os próprios músicos baianos forneceram os ingredientes para

esta atribuição. Eles muitas vezes mostraram as características diferenciadas em relação

àquelas associadas normalmente às maiores cidades brasileiras, como por exemplo,

diligência, empenho, indústria e celeridade com que tudo se faz. 21 Mas a visão

idealizada também não desapareceu.

Tudo que foi dito acima é a imagem da Bahia mais aceita entre os brasileiros a

também os estrangeiros e é necessário dizer que se trata de uma imagem criada, fala-se

21
Especialmente Dorival Caymmi, além de suas músicas, que refletem um ritmo lento e motivos da vida
sossegada da Bahia, com sua fala lenta e muitos depoimentos sobre sua pregiça, ajudou a construir esse
mito.

18
até do mito da Bahia. Mesmo nesse sentido pronunciou-se sobre a Bahia Caetano

Veloso e deixemos soar o pensamento dele. A citação é longa, mas preciosa:

“Olha, vou começar falando da Bahia porque é o que mais sei, eu sou de lá...Tem o
seguinte: há um número muito grande de bons artistas, na música ou nas outras
áreas, que são baianos. Por outro lado, a Bahia foi a primeira capital e tem ainda
hoje vários bairros onde a arquitetura é interessantíssima, e é uma cidade com
maioria dos negros no Brasil, é uma cidade basicamente negra, a gente pode dizer.
Então, é uma cidade que desperta sempre...por exemplo, no tempo do teatro de
revista todo show tinha que terminar com uma homenagem à Bahia. As escolas de
samba volta e meia desfilam com um enredo sendo Bahia, e há milhões de músicas
feitas sobre a Bahia, e há todo um mistério, um mito e um folclore em torno da
Bahia, porque a Bahia ficou sendo como uma raiz, como sendo um lugar...onde o
Brasil é mais profundo, essa coisa toda. Por causa desses elementos e da
mitificação que esses elementos receberam, não é? Então, num país basicamente
sem raízes, se você for comparar qualquer país da América com os países europeus
ou com países africanos, você vai notar que a América toda é uma cafonada de
cima e baixo, ou seja, é um continente sem passado, né? O passado americano
resume-se no aniquilamento das nações indígenas, né? Claro que também no que
veio depois disso, ou seja, na colonização europeia, inglesa, espanhola, francesa,
holandesa ou portuguesa, e na importação de escravos e este detalhe é da maior
importância neste nosso continente. Então, você...eu tô falando como se soubesse,
meio professoralmente, mas não é isso...são coisas que passam na minha cabeça e
eu vou falando...Você tem permanência de uma língua européia, uma continuação,
mas já em outras condições que as de uma cultura européia, entendeu? Então isso
dá uma bagunça danada, você tem ao mesmo tempo fossas, o americano tem
fossas, o americano todo ele, do Canadá a Patagônia, fossas por falta de raízes,
fossas de importação, necessidade de afirmar o caráter nacional artificialmente,
coisa que não acontece na Europa, tá entendendo? Quer dizer, isso é uma visão que
eu tenho. Sei pouco de história, mas é o que sinto nas coisas de agora, talvez nem
seja isso historicamente, mas é uma maneira de dizer o que vejo atualmente. Então,
a Bahia, no Brasil, tem feito um pouco esse papel de mito de raiz, tá entendendo?
Eu não quero desmentir não, acho que a Bahia tem força, é um lugar incrível...o
reconcavo baiano é um negócio maravilhoso, mas tenho uma distorção muito
grande pra falar porque sou de lá. Por um lado tô mais apto a falar porque vivi todo
o tempo lá, mas por outro sei que é uma visão distorcida, profundamente ligada ao
lugar. Mas tenho maturidade bastante pra saber que não interessa pra

19
gente...ultimamente vem se falando muito aqui no Sul que a Bahia tem tudo
concentrado, que a Bahia é que vai dizer as coisas, que da Bahia que sai tudo, não
sei o quê.”22
Muitos baianos dizem que a baianidade é uma identidade construída para

satisfazer interesses como os da indústria do turismo, por exemplo. E é criada pela

mídia que resolveu investir fundo nessa idéia de uma Bahia exótica e embarcou na

supervalorização do que acha que é cultura afrobrasileira porque esta agrada muito e

também vende por causa do exotismo. E a mídia encontra-se nas mãos dos brancos,

portanto podemos dizer que a identidade baiana não é criada pelos próprios baianos

(preponderamente negros), mas pela minoria branca que utiliza o mito do exotismo

ligado ao negro.23 Nesse aspecto podemos unir a baianidade com a identidade afro-

baiana. Mas aqui é necessário mais uma vez salientar que não existe uma marca e não

existe uma identidade; só existe a tendência de generalizar, padronizar e querer tipificar.

Exitem duas teorias de construção da baianidade. Uma diz que existe uma Bahia

“endógena” e a baianidade emerge de baixo para cima. Existe o ethos baiano, uma alma

da cidade que se constituiu depois de 400 anos de sincretismo, da mistura afro-luso-tupi.

Nos últimos 20 anos vem se constituindo outra teoria, dizendo que isso é um mito

constitutivo da identidade, mas não passa de um mito. Segundo essa teoria, a Bahia foi

construída de fora para dentro porque, em primeiro lugar, ela é uma imagem opositiva

daquilo que foi o Rio de Janeiro no século antepassado. O Rio tornou-se a metrópole,

capital do Brasil, e a Bahia tentou se construir por oposição. Portanto, diferentemente

do Rio de Janeiro, vai representar a tradição, o passado, as raízes e também a negritude.

Na primeira metade do século XX a metrópole cultural e industrial brasileira desloca-se

para São Paulo e nesse momento também São Paulo vai produzir uma forte imagem da

baianidade, colocando em oposição a crescente megalópole, que representa a

22
Veloso, Caetano. Alegria, alegria. Rio de Janeiro, Pedra Q Ronca, 1977, p. 124-125.
23
Ver: http://www.sbpccultural.ufba.br/index.html

20
civilização, o trabalho, a modernidade, a civilidade e a razão, e a Bahia com seu

anacronismo, preguiça, passado, exuberância e mística.24

É claro que nos encontramos aqui com uma mera estereotipização da Bahia. O

antropólogo da UFBA Roberto Albergaria vê isso assim: “O que o baiano é?

Predominante evangélico. O que o baiano quer? É comer McDonald´s, não acarajé. É

botar sandalinha no pé? Não, é botar tênis Nike. Mas não interessa dizer isso, por que

a imagem da Bahia que vigora é a imagem da Bahia negra, tradicional, da natureza, da

mística.”25 Parece que o baiano hoje em dia, segundo Albergaria, não é nem católico,

nem segue as religiões afro-brasileiras; não gosta da culinária baiana e de outras coisas

tradicionais. Apesar disso, temos várias camadas superpostas de imagens tradicionais da

Bahia, que vão se acrescentando e se intensificando pela força da mídia e por isso o

mito da Bahia hoje é tão forte. Aquela baianidade tradicional, aquela cidade praieira,

festeira, que Caymmi canta, que Jorge Amado descreve, que Vergé fotografa e etniciza,

não existe mais. Encontramo-nos na época, quando por causa da globalização muita

gente sente a crise da identidade. Provavelmente por causa disso, muitos baianos

insistem em manter a baianidade viva. Acabamos este capítulo com uma certa

desconstrução do termo da baianidade, mostrando que ele já não corresponde

plenamente à sua característica (maneiras, atitudes, sentimento, próprios de baiano).

No trabalho a seguir, porém, vamos continuar a usar o termo porque está estreitamente

ligado ao imaginário das canções analisadas.

4. A Bahia na MPB

A posição da Bahia na história da música brasileira era sempre excepcional. A

Bahia é às vezes considerada como o estado principal da musicalidade brasileira e,


24
Ver: http://www.sbpccultural.ufba.br/index.html
25
Da entrevista com Prof. Dr. Roberto Albergaria. Publicado na Internet: WWW
http://www.sbpccultural.ufba.br/index.html

21
como diz uma canção famosíssima, é também o berço do gênero mais brasileiro: “o

samba nasceu lá na Bahia“. É bem notável a importância creditada à música e aos

músicos na construção do discurso da baianidade porque são estes a quem é atribuído o

papel de representantes oficiais, embaixadores ou, digamos, porta-vozes da Bahia.

Os vestígios da presença da Bahia na música popular brasileira podemos

encontrar com muita facilidade desde a introdução da indústria fonográfica ao Brasil. 26

A verdadeira explosão dos temas baianos na música brasileira chega nos anos 30 com o

compositor mineiro Ary Barroso. Ele não visitou a Bahia até 1937, quando já tinha

escrito várias canções com temas baianos, mas isso não lhe impediu imortalizar esta

região em sua obra, cantando as belezas das mulheres e da cidade ou os sabores da

culinária baiana. Foi ele quem elevou o crédito da Bahia no Brasil inteiro. Clássicas se

tornaram as canções como “Bahia“, o samba “Na Baixa dos Sapateiros“ ou “No

tabuleiro da baiana“.

Ary Barroso fala do ponto de vista de quem visita a Bahia, mas o mais famoso

compositor dos temas baianos é um “verdadeiro baiano”, porque provém da cidade

baiana de Nazaré. Falamos do “querido moço Caymmi”, como foi chamado pelo grande

amigo, o escritor famoso Jorge Amado. Dorival Caymmi nasceu em 1914 e já seu

primeiro sucesso, aos 25 anos, é dedicado à temática baiana. É a música “O que é que a

baiana tem?” que foi gravada por ele juntamente com a maior estrela brasileira daquela

época, Carmen Miranda.27 Desde esse sucesso Caymmi tomou gosto em encantar sua

terra e tornou se assim o maior promotor da Bahia. A prova deste fato pode ser a
26
Nesse respeito, não fica para nós sem interesse o fato que a pessoa que divulgou o invento de Thomas
Alva Edison no Brasil foi o tcheco de origem judaica, nascido em Milevsko u Tábora, Frederico Figner.
Em 1902, ele gravou o primeiro disco brasileiro. E neste disco saíu a gravação da música com o título
„Isto é bom“, da autoria de Xisto Bahia, interpretada pelo artista conhecido pela alcunha Baiano. São
duas referências à Bahia já com a primeira gravação brasileira. Essas, porém, ainda não se ligam à
tematica baiana
27
„O que é que a baiana tem?“ foi incluída no filme da produção americana de Walt Disney, „Banana da
Terra“. Carmen recebeu as instruções de Dorival para dançar a música e dessa maneira surgiu a imagem
baiana de grande artista brasileira. Com essa imagem Carmen levou seu nome à gloria nos Estados
Unidos e depois conquistou o resto do mundo. Para mais informações sobre Carmen Miranda e a vida de
Dorival Caymmi ver: http//:www.dicionariompb.com.br

22
afirmação dos órgãos responsáveis pelo turismo da Bahia, a Bahiatursa, afirmando que

já nos anos 60 Caymmi era campeão em matéria de vender a Bahia para turistas

potenciais. Fazia isso através das canções como “Você já foi à Bahia”, “Saudade da

Bahia”, “A lenda do Abaeté”, “Lá vem a baiana”, “Vatapá”, “Acontece que eu sou

baiano”, músicas que falam da saudade do compositor, elogiam a beleza dos

patrimônios físicos e culturais da Bahia, como as igrejas e a gastronomia baiana, com

sua predileção em uso do típico azeite de dendê. As letras de Caymmi cantam ainda a

sensualidade das baianas, com as elegantes rendas, colares e balangandãs que lhes

vieram de suas ancestrais nagôs e não esquecem de falar também de Itapuã, o bairro

soteropolitano, que Caymmi optou por sua morada para longos anos. Lá deparou com a

cultura dos pescadores e essa se tornou um dos temas centrais de sua poesia. Sendo

mulato, mantinha sempre a intimidade com os valores da “baianidade nagô” e isso

também o levou ao terreiro da Mãe Menininha do Gantois, espelhando-se nos versos

que falam do mundo do candomblé. Mas qual é, afinal, a concepção da Bahia de

Dorival Caymmi? A Bahia dele encontra-se ainda no estádio pré-industrial, ancorada

nas tradições, até podemos dizer que é semiparalisada. Na poética caymmiana há lugar

só para a celebração da Bahia, a obra dele é plena de uma Bahia ideal, sedutora, cheia

de alegria, com a gotinha de nostalgia amorosa, livre de atributos incômodos e

indesejáveis.

O pesquisador na área da música Luíz Américo Lisboa Júnior 28 juntou as letras

de 272 músicas em que se fala da Bahia, entre 1904 e 1964. Analisando essas canções,

chegamos à conclusão que a maioria se refere aos mesmos aspectos da Bahia como

Caymmi. São os seguintes:

28
Lisboa Júnior, Luiz Américo. A presença da Bahia na música popular brasileira. Brasília,
MusiMedLinha Gráfica Editora,1990.

23
· A sensualidade dos baianos, mulheres ou homens. Ressalta-se o traje típico da baiana

(o exemplo insuperável deste tema ficará “O que é que a baiana tem?”) e as

características como a faceirice, a brejeirice, o dengo. Às vezes se sublinha a

malandragem do baiano.

· A sensualidade transformada em dança – o samba. A vida do baiano significa cantar e

sambar.

· A culinária que leva dendê, sobretudo acarajé, vatapá ou caruru.

· A religiosidade; o mais citado é o Senhor do Bonfim e, mais tarde, com a aceitação do

candomblé, surgem muitas referências aos orixás, especialmente a Iemanjá e Xangô.

· O enigma loci de Salvador, com os lugares da arquitetura nobre como a Praça da Sé, o

Bonfim, ou os cantos misteriosos como Itapuã ou a Baixa dos Sapateiros.

Resumido, as letras da música do período de 1904-1964 representam aquele lado

ideal da baianidade (a sensualidade, a primazia e originalidade), da mesma maneira

como fazia Dorival Caymmi. Apareceram apenas raras exceções das letras, na maioria

dos autores sulistas, que ressaltam a preguiça dos baianos (dizendo que estes não

trabalham, vivem apenas cantando e dançando e são malandros).

5. As biografias

Não queremos abranger muito amplamente a vida destes músicos baianos, mas

alguns fatos biográficos básicos serão necessários para a compreensão de sua obra.

5.1. A biografia de Caetano Veloso


Caetano Emmanuel Vianna Telles Veloso29 nasceu a 7 de agosto de 1942 em

Santo Amaro da Purificação, cidade pequena no Recôncavo baiano, conhecida pela

29
A biografia completa de Caetano, do Dicionário Cravo Albin da MPB, é acessível na Internet: WWW
http://www.dicionariompb.com.br/detalhe.asp?nome =Caetano+Veloso.

24
tradicional produção de açúcar. É filho de Claudionor Veloso – “Dona Canô”, uma

mulher muito admirada em Santo Amaro, e de José Veloso que trabalhou como

funcionário dos Correios e Telégrafos. Tinha sete irmãos, dos quais se destacou também

no campo da música a irmã mais nova, Maria Bethânia. Aos catorze anos, muda-se para

o Rio de Janeiro, onde pôde usufruir desde cedo de seus programas favoritos, como a

música e o cinema.

Após um ano passado no Rio regressa a Santo Amaro e, em 1959, conhece o

trabalho de João Gilberto através do LP “Chega de saudade”. Este seria o músico que

mais influência sua trajetória artística, como Caetano afirma: “No João, parece que é

tudo mais justo, necessário: melodia, as vogais, as consoantes, os sentimentos, o

respeito por aquela forma, que ele reconheceu ali, o jeito daquelas coisas se

expressarem esteticamente. João traduz a canção”.30 Em 1960 passa a morar em

Salvador, onde mais tarde ingressa na Faculdade de Letras da UFBA. Lá conhece e

torna-se amigo do ídolo que já conhecia pela TV, Gilberto Gil, e, em 1964, juntamente

com ele e com Maria Bethânia, Gal Costa e Tom Zé, fazem o show “Nós, por exemplo”

na ocasião da inauguração do teatro Vila Velha, em Salvador, que foi dirigida por

Caetano e que inaugura a carreira dos artistas. Esse show representa um marco

histórico, reunindo pela primeira vez o núcleo que futuramente será conhecido como

Doces Bárbaros. O mesmo grupo apresenta ainda o show “Nova bossa velha e velha

bossa nova”.

Caetano e Gil mudam logo depois ao Sul do Brasil que oferece melhores

oportunidades para os músicos, Caetano ao Rio de Janeiro, abandonando a Faculdade e

acompanhando Maria Bethânia chamada para substituir Nara Leão no show “Opinião”.

E segue o período dos festivais da música. Em 1966, Caetano recebe o prêmio pela

melhor letra da “Um Dia” no II Festival de MPB da TV Record. Grava seu primeiro
30
Dicionário Albin Cravo da MPB. Acessível na Internet: WWW http://www.dicionariompb.com.br.

25
disco “Domingo”, em 1967, no qual inclui a canção “Alegria, alegria”, que é

classificada no quarto lugar no III Festival da Record. Esse Festival foi o ponto de

partida para o movimento tropicalista, movimento que reuniu Gilberto Gil, Torquato

Neto, José Carlos Capinam, Gal Costa ou Tom Zé, às vezes chamado grupo baiano.

Este movimento vai ser analisado mais adiante. Também é nesse festival onde Caetano

chama a atenção dos poetas concretos Augusto e Haraldo de Campos e Décio Pignatari,

que o familiarizam com sua obra e crítica literária de Ezra Pound, James Joyce e

Oswald de Andrade, o que terá de grande importância na fase tropicalista.

A situação política vai se agravando naquele tempo. O governo militar precisava

de poderes excepcionais, que não constavam na Constituição. Assim, os Atos

Institucionais, que oprimiram a oposição ao governo, foram lançados. Isso tem grandes

conseqüências para Caetano Veloso. Primeiro, seu samba “A voz do morto” foi

censurado e o disco com a música foi recolhido das lojas. Mas isso é só começo. Dentre

os Atos Institucionais editados, o AI nº5 é tido como mais repressivo e é visto pela

maioria dos jovens como o fechamento dos meios de resistência pacífica ao regime. AI

nº5 cerceou completamente a liberdade de expressão. No dia 27 de dezembro de 1968,

aplicando este AI, Caetano foi preso juntamente com Gilberto Gil sob o pretexto de

desrespeito ao hino e à bandeira do Brasil. Foram levados para o quartel do exército de

Marechal Deodoro, no Rio de Janeiro, permanecendo detidos por dois meses. A

situação torna-se insustentável e após o último show de despedida, realizada em

Salvador nos dias 20 e 21 de julho, Caetano Veloso e Gilberto Gil embarcam junto com

suas mulheres, as irmãs Dedé e Sandra Gadelha, para o exílio na Inglaterra. Mesmo no

exílio, produção de Caetano não pára e ele lança pelo selo inglês dois discos.

Em janeiro de 1972, volta definitivamente ao Brasil e continua em seu trabalho

musical, colaborando com vários compositores e cantores, com Chico Buarque ou

26
Milton Nascimento, entre outros. No dia 24 de junho de 1974, 10 anos depois do show

“Nós, por exemplo”, Caetano reencontra Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia no

elenco do espetáculo “Doces Bárbaros” e a mesma situação acontece ainda em 1994, no

show “Doces Bárbaros na Mangueira”.

No início de 1977, participa, ao lado de Gilberto Gil, do 2º Festival Mundial de

Arte e Cultura Negra, em Lagos (Nigéria) e o encontro com a original cultura africana

fornece vários motivos para seu trabalho. Em abril desse ano, lança seu primeiro livro,

“Alegria, alegria”, uma compilação de artigos, manifestos e poemas, além de entrevistas

concedidas ao amigo e poeta Waly Salomão. A tentativa de se exprimir não só através

da música e das letras continua e Caetano Veloso torna-se o autor de vários livros, dos

quais mais importante é o livro “Verdade tropical”, um relato pessoal sobre sua visão do

mundo, lançado em 1997.

Após mais de 40 anos da carreira, Caetano Veloso continua a ser uma das

pessoas mais respeitáveis no mundo da música brasileira e continua a compor novas

músicas. Seu trabalho foi apreciado até no estrangeiro; em 2000, pelo CD “Livro”,

recebeu na categoria World Music o Prêmio Grammy Awards.

5.2. A biografia de Gilberto Gil

Os caminhos do destino de Gilberto Gil são muito parecidos com aqueles de

Caetano Veloso, como já pudemos ver no capítulo anterior.

Gilberto Passos Gil Moreira31 nasceu a 26 de junho de 1942 em Salvador. Até os

nove anos de idade viveu com o pai, médico José Gil Moreira, e a mãe, professora

primária Claudina, na cidade de Ituaçu, no interior da Bahia, para onde foi com vinte

dias de nascido. Lá começa a interessar-se pela música das bandas da cidade e pelo que
31
A biografia completa de Gilberto Gil, do Dicionário Cravo Albin da MPB, é acessível na Internet:
WWW http://www.dicionariompb.com.br/detalhe.asp?nome=Gilberto+Gil.

27
ouvia no rádio, como Orlando Silva, Dorival Caymmi e Luiz Gonzaga, cuja influência é

notável em vários discos de Gil Gilberto. De volta a Salvador, em 1951, foi morar na

casa da tia Margarida no bairro de Santo Antônio no centro histórico da cidade e lá

começa a aprender, provavelmente sob a impressão da música do já mencionado Luiz

Gonzaga, a tocar acordeom. Na juventude outro nordestino (baiano) famoso, João

Gilberto, com sua bossa nova se torna uma influência importante para ele e Gil passa a

tocar violão: “Quando o João Gilberto apareceu, eu disse: 'Taí o que eu queria'. E

entrei na bossa nova com ele.”32 Depois de terminar o colégio, inscreve-se no curso de

Administração de Empresas na UFBA, onde se formou em 1964. No início da carreira

artística, ainda em Salvador, apresentou-se em programas de rádio e televisão. Foi

através desses programas que ganhou a admiração de Caetano Veloso, que mais tarde se

tornou seu parceiro e grande amigo. No início da grande colaboração dos artistas há

dois espetáculos “Nós, por exemplo” e “Nova bossa velha e velha bossa nova”,

realizados no teatro Vila Velha, em Salvador.

Cedo após a formatura, assim como Caetano, também Gilberto Gil muda ao Sul

do país e reside em São Paulo, onde trabalha na multinacional Gessy-Lever. Em 1967,

abandona seu emprego e nos anos seguintes dedica-se apenas à música e participa dos

festivais da música popular, compondo novas e novas canções e também grava, neste

ano, seu primeiro LP “Louvação”. O festival mais importante para sua carreira é o III

Festival da Record, em 1967, onde Gilberto toca “Domingo no parque”, acompanhando

pelos Mutantes, uma das músicas mais impactantes do festival, classificada em segundo

lugar. “Alegria, alegria”, de Caetano, classificada em quarto lugar, formaria junto com

“Domingo no parque” o embrião do movimento tropicalista, em boa parte por causa da

inserção de guitarras elétricas em uma música que não era rock. Em 1968, com uma

proposta de antropofagia de valores culturais estrangeiros baseada em idéias de Oswald


32
Encarte do disco „Gilberto Gil“, da série „História da MPB - grandes compositores“.

28
de Andrade, o tropicalismo se concretizou com “Tropicália ou panis et circensis”, disco

conceitual que contou, além de Caetano e Gil, com os Mutantes, Torquato Neto,

Capinam, Tom Zé, Nara Leão e arranjos do maestro Rogério Duprat. A faixa “Geléia

geral”, música composta por Gilberto Gil em parceria com Torquato Neto, teve especial

destaque por representar “uma síntese dos cânones do próprio movimento tropicalista,

além de ser um modelo de seu contorno poético”.33

Como já vimos na biografia de Caetano Veloso, em 1969, depois de serem

presos pela ditadura, partem os dois músicos baianos com suas esposas para o exílio

político na Inglaterra. Antes de partir, Gilberto Gil lança a irônica “Aquele abraço”, uma

de suas músicas famosas. Do exílio regressa juntamente com Caetano ao Brasil em

1972 e juntam se novamente com Gal e Bethânia, formando o grupo baiano Doces

Bárbaros. Os sentimentos depois da volta a terra natal descreve a canção “Back in

Bahia”. Volta a descobrir a cultura nordestina sertaneja, que faz parte de sua infância, e

revitaliza-a no LP “Espresso 2222”.

Na década de 70, viaja Gilberto Gil várias vezes à África com a intenção de

conhecer uma das raízes fundamentais da baianidade, a contribuição africana, e é

natural que essa experiência se reflete depois com maior intensidade na obra dele, como

por exemplo no álbum “Realce”, de 1979, ou no “Raça Humana”.

Em 1993, vinte cinco anos depois do disco tropicalista “Tropicália ou panis et

circensis”, Caetano e Gil retomam a idéia do Tropicalismo e lançam junto “Tropicália

2”. Também a obra de Gil é reconhecida internacionalmente, quando o disco “Quanta”,

lançado em 1997, foi premiado com o Grammy na categoria World Music.

Mas Caetano Veloso e Gilberto Gil não se restringem apenas à música. Os dois

costumam expressar a sua opinião a todos os problemas que afligem o Brasil. Gilberto

Gil foi o primeiro negro a integrar o Conselho de Cultura da Bahia e exerceu o cargo do
33
Severiano, Jairo, Homen de Mello, Zuza. Canção no tempo. São Paulo, Editora 34, p. 125.

29
presidente da Fundação Gregório de Mattos. Seu interesse pela política sempre foi

grande, tendo sido eleito vereador em Salvador em 1988, ano em que lançou o livro “O

poético e o político”, escrito em parceria com Antônio Risério. Como uma pessoa

politicamente muita ativa, depois da queda da ditadura, no Partido Verde, recebeu o

cargo de Ministro da Cultura no governo do atual Presidente Luis Inácio Lula da Silva.

6. O tropicalismo

O movimento denominado tropicalismo ou tropicália é considerado o único

movimento vanguardista originalmente brasileiro. Como esse movimento surgiu a partir

das idéias de Caetano Veloso e Gilberto Gil, achamos indispensável caraterizar em

breve as principais fontes inspiradoras, as manifestações e as atividades do tropicalismo.

O tropicalismo conecta-se ao tema da baianidade através de seus protagonistas porque

grande parte deles são da Bahia (às vezes o núcleo dos tropicalistas é chamado grupo

baiano), apesar de não fazer da Bahia um de seus temas. Este fato é ilustrado pelas

palavras de Caetano Veloso: “...A existência da Bahia – o tropicalismo mal tratou de

assunto...”34.

34
Veloso, Caetano (1977), op. cit., p 97.

30
Como já insinuamos nas biografias dos dois músicos, o movimento tropicalista

surgiu em São Paulo após III Festival da Record, onde Caetano Veloso apresentou a

música “Alegria, alegria” e Gilberto Gil “Domingo no parque”. Mas essas canções

ainda não integraram um movimento e os cantores não se apresentaram como porta-

vozes do qualquer grupo. Antes eles tentaram explicar de várias formas a novidade das

composições, mostrando as principais influências que sofriam. Como vemos na tantas

vezes repetida afirmação do próprio líder do tropicalismo, a inovação teria que ser feita

através da “retomada da linha evolutiva da tradição da música brasileira na medida em

que João Gilberto fez".35

Então, como quiseram Caetano e seus companheiros evoluir a MPB? O primeiro

impulso foi quebrar o antagonismo música de protesto/jovem guarda, como foi, segundo

um programa na TV Record, designado o suave rock brasileiro comercial criado sob a

influência de Elvis Presley e, posteriormente, dos Beatles. O primeiro passo foi a

inserção das guitarras elétricas nas canções de Caetano e Gil, o que ocorreu justamente

no III Festival da Record. Esse fato não foi bem visto pela ala nacionalista da bossa

nova. Portanto, o primeiro impulso tropicalista foi, com a inspiração de arte pop, abrir

as portas para o produto estrangeiro, combatendo a xenofobia que impedia o diálogo da

produção nacional com internacional. Essa abertura significava trabalhar as questões do

universo pop como a inevitabilidade do consumo, o imediatismo da propaganda, a vida

urbana, usando muitas citações do mundo externo, de um outro, com fim de questionar

o problema.36 Os futuros tropicalistas viam aquela retomada da linha evolutiva na

adoção da linguagem universal do rock e esse fato pode ser ilustrado mais uma vez por

próprio Caetano: “Nego-me folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as

35
Apud: Tinhorão, José Ramos. Pequena história da música popular: da modinha à lambada. São Paulo,
Art Edirora, 1991, p. 248.
36
Favaretto, Celso. Tropicália – alegoria, alegria. São Paulo, Ateliê Editorial, 1996, p. 27-45.

31
dificuldades técnicas”.37 Mal aceita por uma parte do público e pela ala nacionalista do

mundo musical, no entanto, desde o primeiro momento a atitude dos tropicalistas

baianos recebeu o apoio decisivo dos grupos mais fechados da música e, o que também

era muito importante, da poesia de vanguarda. Estes viam no novo movimento um

reforço na luta contra o subdesenvolvimento do país, contra o tradicional, e a

possibilidade da abertura para o internacional e o universal.38

Já foi dito que os poetas, que com maior intensidade mostraram o interesse pela

produção da tropicália, eram os concretistas de São Paulo. Eles descobriram desde logo

as afinidades entre a linguagem do grupo baiano e o concretismo, além de parantesco de

comportamento deles com as propostas antropofágicas de Oswald de Andrade.

Antropofagismo, a corrente literária liderada por Oswald de Andrade, que surgiu em

1928 como uma importante tendência do modernismo brasileiro, é baseada na idéia da

devoração cultural e teve algumas idéias incorporadas pelos tropicalistas. Celso

Favaretto acha as seguintes afinidades: “O que o tropicalismo retém do primitivismo

antropofágico é mais a concepção cultural sincrética, o aspecto de pesquisa de técnicas

de expressão, o humor corrosivo, a atitude anárquica com relação aos valores

burgueses, do que a sua dimensão demográfica e a tendência em conciliar as culturas

em conflito. Constrói um painel em que o universo sincrético se apresenta sob a forma

de um presente contraditório, grotescamente monumentalizado, como uma hiperbóle

distanciada de qualquer origem”.39 Com a contribuição dos concretistas, principalmente

de Augusto de Campos, as apresentações do grupo baiano passaram a configurar

realmente um movimento, apesar de, segundo Gilberto Gil: “Tropicalismo surgiu mais

37
Apud: Favaretto, Celso, op. cit., p. 27.
38
Paiano, Enor. Tropicalismo: Bananas ao vento no coração do Brasil. São Paulo, Scipione 1996, p. 44-
48
39
Favaretto, Celso, op. cit., p. 49.

32
de uma preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamente como

um movimento organizado”.40

Então, o movimento do tropicalismo assumiu as construções da bossa nova, as

idéias da poesia vanguardista, os conceitos da contracultura em que se inscrevia a arte

pop e da música internacional à base de rock. Mas a enumeração das manifestações que

subjazem o tropicalismo ainda não é completa. Quem teve em vista as atividades do

movimento desde o início e acompanhou as entrevistas e os debates a respeito da cultura

brasileira, dos quais participaram Caetano Veloso e Gilberto Gil, teve a oportunidade de

ver ratificadas as influências que eles sofreram dos espetáculos realizados para o

cinema, para o teatro e para a galeria.

O filme, que causou maior impacto no ambiente dos tropicalistas, foi o exemplo

da produção do Cinema Novo no Brasil “Terra em transe”, de 1967, dirigido pelo amigo

de Caetano e Gil, conhecido desde os tempos universitários em Salvador, Glauber

Rocha. Além da inovação formal e da busca radical de uma linguagem inovadora, o

filme trouxe o questionamento da política e da identidade nacional, mas não de forma

didática e militante, e sim como um problema.

A manifestação do teatro que se aproximou das práticas tropicalistas foi a peça

de Oswald de Andrade “O rei da vela”, encenada pela primeira vez em 1967 em São

Paulo. Essa farsa também contém a questão política, mas com cinismo dedica-se ao

desenvolvimento mental e artístico do Brasil com o propósito de chocar a platéia. A

respeito do filme “Terra em transe” e da peça “O rei da vela”, confirmando assim a

importância dessas manifestaçãoes artísticas, Caetano Veloso confessou: “Toda aquela

coisa de Tropicália se formou diante de mim no dia em que vi “Terra em transe”...você

40
Apud: Cyntrão, Sylvia Helena (org.), op. cit., p. 42.

33
sabe, eu compus Tropicália uma semana antes de ver “O rei da vela”, a primeira coisa

que eu conheci de Oswald”.41

De todas as experiências que, em 1966-1967, se aproximavam melhor do

procedimento tropicalista, quem o primeiro melhor expressou a tendência foi o artista

plático Hélio Oiticica. Na exposição “Nova objetividade brasileira”, no Museu de Arte

Moderna em São Paulo, ele apresentou com seu trabalho intitulado “Tropicália” as

principais tendências artísticas da época: vontade construtiva geral, tendência para o

objeto, participação corporal, tátil, visual, semântica, do espectador, tomada de posição

em relação a problemas políticos, sociais, éticos, tendência a uma arte coletiva e

reformulação do conceito antiarte.42 Do conceito antiarte aproxima-se a tendência kitsch

que é frequentemente usada pelos tropicalistas. Pela retomada crítica do kitsch, definido

como “todo material arístico-literário considerado popularmente como de má

qualidade, em geral de cunho sentimentalista ou sensacionista, mas produzido com o

intuito de apelar para o gosto popular”43, os tropicalistas conseguiram abalar os

padrões do bom gosto estabelecido na sociedade brasileira e, ao mesmo tempo,

provocar e criar um sentido crítico. A permabilidade ao kitsch revela-se também na

participação no programa do Chacrinha, rejeitado pela maioria dos músicos sérios, onde

os protagonistas do tropicalismo apresentaram os verdadeiros happenings.44

Os movimentos da vanguarda lançaram seu ideário de ruptura em manifestos. O

tropicalismo também tem um manifesto, mas este é da natureza diferente daqueles da

virada do século XIX para XX – é um disco. Com a participação dos baianos Caetano

Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Rogério Duprat, Torquato Neto, Capinam e

de Nara Leão, musa da bossa nova, e do grupo Os Mutantes foi lançado, em maio de

41
Ibidem, p. 41.
42
Ibidem, p. 43.
43
Ibidem, p. 61.
44
Mais sobre o assunto em: Paiano, Enor, op. cit., p. 44-48.

34
1968, “Tropicália ou panis et circensis”, que exprime, em forma que exige a decifração,

as idéias do movimento. Música, letra, fotografia da capa e texto da contracapa

combinam-se num signo complexo, compreensível apenas para quém já está

familiarizado com o pensamento dos protagonistas do movimento. Até o título do disco

pede uma decifração, concretamente a parte em latim. Essa deve remeter ao tempo do

pão e circo romano, mas a palavra circencis não existe em latim. 45 O título do disco

mostra que tudo começa com humor, no entanto, surge uma questão: é a função da arte

desviar o povo dos seus problemas reais, como acontecia na época romana?

A cançaõ mais importante do disco “Tropicália ou panis et circensis”, ou até

podemos dizer do movimento tropicalista, é “Tropicália”, composta em 1967 por

Caetano Veloso. Segundo ele, a canção não tinha nome, mas justificava para ele a

existência do disco, do movimento e também de sua profissão do músico, que ainda lhe

parecia provisória. O nome foi proposto pelo fotógrafo Luís Carlos Barreto que tinha

encontrado as afinidades entre a música de Caetano e a obra “Tropicália” de Hélio

Oiticica.46

“Tropicália” surpeende já em seu início com a citação paródica de um trecho da

carta de Pero Vaz Caminha, acompanhada pelos sons e ruídos, que imitam os cantos de

pássaros e o rumor da selva.47 Esta introdução antecipa toda a canção que é construída

através de justaposição e superimposição de frases, citações e fragmentos sonoros, dos

quais deve ser erguida a imagem do Brasil contemporâneo. O texto é estruturado em

torno da oposição dos elementos nacionais, dos fragmentos arcaicos e modernos.


45
Ibidem, p. 40.
46
Morães da Silva, Márcia. A polifonia nas letras das canções de Caetano Veloso. Acessícel:
WWW<http://www.unipinhal.edu.br/ojs/falladospinhaes/include/getdoc.php?
id=73&article=23&mode=pdf>
47
Aliás, essa citação surgiu esponâneamente durante a gravação, quando o baterista Dirceu, ouvindo a
introdução da canção, lembrou-se do paraíso tropical descrito por Vaz de Caminha. Pau Brasil de Oswald
de Andrade começa também com uma montagem dos textos de Caminha e uma das razão para incluir a
citação na música pode ser vista em sua relevância.

35
Caetano usa na canção muitas citações, que, como já vimos, é uma das características

do movimento tropicalista, e essas frases ditas por um outro sujeito coloca em

contradição. Então, a imagem do país é construída e ao mesmo tempo desmontada,

oscilando entre o jocoso e o sério. Alguns pesquisadores denominam esta alternância

carnavalização e descarnavalização.48

A letra da música é composta de cinco estrofes, intercaladas por refrões que dão

“vivas” a elementos nacionais, que também são destacados pela contradição. Nos

refrões temos então as oposições como “bossa” e “palhoça”, onde bossa aponta para o

moderno, o que agrada a juventude urbana de classe média, enquanto as classes

populares e o arcaico representa a palhoça. No outro refrão são dadas em oposição o

bairro carioca da classe média e o centro da Bossa Nova “Ipanema” com “Iracema”, a

índia de José de Alencar, um dos mais importantes símbolos da brasilidade, mas

também algo, que se encontra no estado puro, intato pela civilização. Como a

contradição para a “Bahia”, serviu a Caetano “Maria”, fazendo assim alução ao filme de

Louis Malle com o mesmo título, que faz a referência às mulheres na América Latina.

Segundo a observação de Márcia Morães de Silva, na palavra Bahia, com a

pronunciação das últimas duas sílabas destacadada, há que se ressaltar a voz dos negros

baianos, os quais chamam a patroa, a senhora a quem servem de “iá-iá”.49

Na primeira estrofe Caetano situa a si memo como narrador em Brasília, no

centro das decisões do país, onde se passa da ação séria e transformadora (eu organizo o

movimento) à ação lúdica (eu oriento o carnaval) e, afinal, à ação oficial e conservadora

(eu inauguro o monumento). Mas apesar de verbos terem os sentidos bastante

diferentes, Caetano tenta sugerir a sensação de que os elementos são equivalentes e

48
Esta denominação é usada, por exemplo, por Girlene Lima Portela. Da Tropicália à Marginália: O
intertexto („a que será que se destina“) na produção de Caetano Veloso. Feira de Santana, Universidade
Estadual de Feira de Santana, 1999, p. 78.
49
Morães da Silva, Márcia, op. cit.

36
intercambiáveis por usar exatamente a mesma quantidade de sílabas, com o acento forte

colocado na mesma posição, e entoados com a mesma melodia. 50 A segunda estrofe

descreve aquele monumento, inaugurado na estrofe anterior, e ele ganha aqui

significados diferentes – torna-se antes uma brincadeira carnavalesca. Mas logo depois

o monumento revela o lado repugnante e, neste momento, Caetano Veloso ousa usar

uma contradição mesmo chocante: “e no joelho uma criança sorridente feia e morta /

estende a mão”. Na terceira estrofe, novamente deparamo-nos com a contraposição de

felicidade burguesa, modernidade e elementos de beleza natural: “No pátio interno há

uma piscina / com água azul da Amaralina / Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis”.

Amaralina, coqueiro, brisa, fala nordestina e faróis, além de remontar à origem de

Caetano, são elementos típicos da paisagem da Bahia, mas também signos do

subdesenvolvimento dentro do desenvolvimento. Na penúltima estrofe o autor apresenta

como a imagem da esquerda é vista no Brasil. Há uma alusão à guerrilha, na qual estava

empenhada uma parte da esquerda estudantil, mas também é referido um símbolo

brasileiro, aqui representando o nacionalismo, um samba. 51 A canção termina com um

comentário sobre o cenário musical brasileiro: encontramo-nos aqui com duas alusões

aos programas da televisão dedicadas à MPB (O Fino da Bossa, comandado pelos

grandes cantores Elis Regina e Jair Rodrigues e O Fino da Fossa), e com a citação

explícita de uma canção de Roberto Carlos, um dos protagonistas da internacionalização

da música brasileira e representante da Jovem Guarda: “que tudo mais vá pro inferno”.52

Vimos que Caetano mistura na canção “Tropicália” muitos dos ingredientes

típicos para o tropicalismo. Ele usa-se da ironia, das metáforas e da polissemia como

formas da heterogeneidade, além de “justapor vozes para construir a imagem do Brasil

50
Paiano, Enor, op. cit., p. 34.
51
Franchetti, Paulo Elias, Pecora, Alcyr Bernardes. Caetano Veloso. Literatura comentada. São Paulo,
Abril Educação, 1981.
52
Paiano, Enor, op. cit., p 38.

37
e, ao mesmo tempo, desmontar mitos do nacionalismo ufanista e do Brasil como país

onde tudo acaba em carnaval”.53 Seria possível dedicar ainda muito mais espaço às

manifestaçãoes do tropicalismo de Caetano Veloso, mas isso não é fundamental para a

nossa questão. Vamos proseguir para a análise dos vários aspectos da baianidade não

somente na obra de Caetano, mas também de Gilberto Gil.

7. A baianidade de Caetano Veloso e Gilberto Gil

Para o núcleo deste trabalho juntamos o máximo possível, aproxidamente nove

centenas das letras de Caetano Veloso e Gilberto Gil, sendo a fonte principal a

Internet.54 Há muitas canções nas quais os dois mencionam explicitamente seu Estado

natal, em outras as referências à Bahia são mais implícitas. 55 Na análise da baianidade

nas letras dos compositores baianos utilizamos como critério da seleção o interesse por

um abrangente do modo como o tema Bahia é retratado e não a preocupação com os

detalhes. Assim, aos invés de dedicar uma atenção minuciosa a cada fragmento do

enunciado, vamos tentar identificar alguns dos principais assuntos e idéias propostos

pelos poetas, privilegiando o sentido captado na letra da canção em sua totalidade e no


53
Morães da Silva, Márcia, op. cit.
54
WWW http://www.lyrics-songs.com
55
É interessante que a baianidade de Caetano éum traço tão significativo de sua obra que uma revista,
entrevistando Caetano Veloso, até utilizou a parafrâse da canção caymmiana para a manchete, destacando
a origem de Veloso: Acontece que ele é baiano.

38
conjunto das letras. Escolhemos, no entanto, sessenta e oito canções, das quais citamos

no texto e que, inteiras, fazem parte deste trabalho no anexo.

Identificamos dois aspectos centrais nesse discurso – de um lado, os temas que

são mais visíveis, “aquilo sobre o que se fala” e, de outro lado, os conceitos subjacentes,

os pressupostos que são defendidos, ou seja, “o que se fala” sobre esses temas baianos e

“como se fala”. O objectivo é perceber, além dos temas pautados, quais são as

características com que eles são definidos e que traços positivos entram na

argumentação para valorizá-los. Alguns temas relacionados ao modo baiano de viver

vão merecer uma exploração mais cuidadosa, pela recorrência e atenção com que

aparecem nas letras das canções.

É possível identificar rapidamente a importância dos ritos coletivos na

construção desse discurso, como as formas típicas de expressar religiosidade, de

divertir-se, de celebrar. Essa referência especial aos rituais deriva possivelmente da

força que a manifestação da adesão, a expressão palpável e muitas vezes pública dessa

adessão possui para solidificar a cumplicidade grupal – ao mesmo tempo em que se

demonstra a adesão, o fazer parte, subentende-se também o respeito, a confiança e a

obediência a essa tradição, já que seguir ou entregar-se a uma tradição é uma forma de

manifestação de fé.56 Encontramos também abundantes referências a elementos mais

idiossincráticos, que comporiam uma espécie de personalidade tipicamente baiana,

como estados de espírito, formas de agir, sentimentos, desenvoltura física.

7.1. Alegria

Ser alegre, ou seja, sentir-se bem, satisfeito, expressar esse prazer de viver e

também ser capaz de contagiar os outros com um estado do espírito animado, otimista é,

56
Mariano, Agnes Francine de Carvalho, op.cit., p. 15.

39
possivelmente, reivindicado como a principal característica do “jeito baiano” nas

composições da segunda metade do século XX. Também um tema bastante frequente na

poesia de Gil e Veloso é a alegria – um pilar da baianidade, por este trabalho

considerado o mais importante. A alegria é mencionada, em várias formas, em

numerosas músicas. A mais significante das todas que falam de alegria e bom espírito

baiano nos parece a música “Odara”, de Caetano, sem que essa nem uma vez mencione

a palavra “alegre” ou “feliz”: “Deixe eu dançar / Pro meu corpo ficar odara / Minha

cara minha cuca ficar odara / Deixe eu cantar / Que é pro mundo ficar odara / Pra

ficar tudo jóia rara / Qualquer coisa que se sonhara / Canto e danço que dará”. Toda a

letra, ainda mais na junção com a parte musical, exprime a sensação de bem-estar, mas a

chave para interpretar essa canção se encontra na palavra “odara”. O termo “odara” não

tem qualquer sentido definido por um emprego usual em português. O que significa

então? Segundo o próprio Caetano, ele deparou com esse termo durante sua estadia em

Nigéria, no II Festival Mundial das Artes e Culturas Negras em Lagos, em 1977.

“Odara” é uma expressão iorubana, formada pelo pronome pessoal “ó” no qual vem

embutido o verbo “ser” (ele é), mais o adjetivo “dára” que significa “lindo”. 57 É

empregada, originariamente, com o sentido de estar bem ou sentir-se feliz e assim

também funciona na canção de Caetano. O resgate do conceito de “odara” por Caetano

Veloso teve grande repercussão nos meios artísticos baianos e tornou-se quase uma

moda. Outra gíria que Caetano ganhou durante sua visita a Nigéria é “Two Naira fifty

Kobo”, referente ao preço invariável da corrida de táxi em que se deslocavam com Gil

na metrópole de Lagos. Essa expressão mais tarde virará o título de uma composição

homônima, em que é também sublinhada, da mesma maneira como já reparamos na

canção “Odara”, a alegria exprimida através da música: “O certo é ser gente linda e

cantar, cantar, cantar / O certo é fazendo música”.


57
O conceito Odara é amplamente analisado pelo nigeriano Felix Ayoh’omidire, op. cit., p. 187-190

40
Com a rapidez e a ambigüidade própria da poesia, em que se passa de um

assunto a outro, Gilberto Gil começa tratando da importância da fé para se conviver

com a pobreza e segue esboçando um tratado da filosofia da vida baiana onde a alegria

ocupa o ponto central: “Onde a gente não tem pra comer / Mas de fome não morre /

Porque na Bahia tem mãe Iemanjá / De outro lado o Senhor do Bonfim / Que ajuda o

baiano a viver / Pra cantar, pra sambar, pra valer pra morrer de alegria / Na festa de

rua, no samba de roda / Na noite de lua, no canto do mar” (“Eu vim da Bahia”). Mais

outro exemplo da onipresente alegria na vida dos baianos da caneta de Gil é a canção

“Tradição” onde o autor descreve a Cidade de Salvador no tempo que Lessa era goleiro

do Bahia e encerra com seguintes versos: “Sempre lindo e sempre sempre / Sempre

rindo e sempre cantando”. Aqui e no exemplo anterior, Gil associa, assim como

Caetano, a alegria com a dança e o canto.

7.2. Festas

O tema da alegria e dança é intimamente ligado com as festas. Festa é uma forte

expressão do espírito baiano, mas a maioria das festas, tendo a origem religiosa, é

também ligada com outro pilar da baianidade, com a religiosidade. 58 Essa ligação
5856
Acho que esta ligação merece pouco mais espaço. Um fenômeno muito interessante em Salvador e no
Recôncavo são as festas de largo – uma conjunção do sagrado (missa, procissão) e profano (festa
popular), dos campos opostos, embora complementares. A expressão “festa de largo“ já dirige nossa
atenção para o espaço onde tudo deve ocorrer: o fronteiro à igreja, a praça, o largo; mas sem o templo e o
que se passa dentro – aquela parte sagrada, a festa do largo não seria completa. É verdade que, nos dias de
hoje, o número cada vez maior de pessoas participa só da segunda parte da festa do largo, que segue ao
rito - da festa popular com as oportunidades de dançar e beber em abundância em público com a
consagração da sociedade. O ciclo das festas de largo tem o início no último dia de novembro quando
começa a festa de Nossa Senhora da Conceição da Praia (dura até oito de dezembro – o dia da Santa), em
Cachoeira tem no dia 4 de dezembro festa de Santa Bárbara, que no seu sincretismo mistura o cristanismo
e o candomblé e onde, além da missa à Santa, podemos assistir à cerimônia dedicada à Iansã. O ciclo
continua no primeiro dia do ano com a festa de Nosso Senhor dos Navegantes, vem a famosíssima
Lavagem do Bonfim e tudo desemboca na festa maior do ano, no Carnaval. O Carnaval tem o caráter
diferente das festas do largo. As igrejas ficam nesse período fechadas e os foliões ocupam as ruas e praças
para se divertir, sem pensar no conteúdo religioso desse acontecimento – a última ocasião de se divertir e
comer bem antes do jejum e da contemplação nos 40 dias da quaresma. O carnaval se tornou uma festa
secular, já nem podemos atribuir-lhe as características duma festa profana em sensu estrito. As grandes
festividades públicas voltam a ocorrer na Semana Santa, mas essas são bastante diferentes. Passam-se só
no campo sagrado (a igreja ou a procissão) e não contêm o lado profano. Podemos então dividir as festas
baianas em três categorias: 1. festas cujo transtorno se dá tanto dentro quanto fora das igrejas (Lavagem
do Bonfim, festas juninas); 2. as igrejas ficam fechadas e a festividade cinge-se à folia da rua; 3. o evento
tem lugar apenas no interior do templo.

41
podemos observar já na letra anterior de Gil onde ele menciona a Iemanjá, a divindade

afro-brasileira, e Senhor do Bonfim dos católicos.

Com maior freqüência, Caetano e Gilberto encantam a maior e a mais caótica de

todas as festas: o carnaval. O carnaval de Salvador é um dos maiores no Brasil e por

muitos é considerado o carnaval mais tradicional e o mais democrático onde celebram

pessoas de todas as classes sem restrições. Um específico de Salvador é a procissão dos

trios elétricos pela cidade. Cada trio tem seu grupo de músicos ou um cantor de

destaque e considera-se grande prestígio cantar para a multidão de milhões de pessoas.

Caetano Veloso e Gilberto Gil participavam do evento desde os anos 60 e em sua obra

dedicaram muitas músicas ao carnaval de Salvador; Caetano Veloso até gravou um

disco inteiro com as músicas carnavalescas. Sobre elas ele diz: “Eu ainda não fiz um

samba que fosse muito legal pra carnaval, porque as marchas-frevo são mais

constantes e importantes no carnaval da Bahia do que o samba. Eu faço mais é no

estilo do trio elétrico. Fiz “Atrás de Trio Elétrico”, “Deixa sangrar”, “Chuva, suor e

cerveja”, “La barca”, com Moacir, e “Qual é a baiana?”. “Você não entende nada”

também fiz para o carnaval.”59 Por exemplo, numa letra dele chamada “Muitos

carnavais”, o carnaval deixa de ser um simples substantivo, para tornar-se uma

expressão com um sentido mais amplo, assumindo as funções de adjetivo, advérbio e

verbo, anunciando um modo de ser e agir: “Somos muitos carnavais / Nossos clarins /

Sempre a soar / Na noite, no dia / Bahia / Vamos viver / Vamos ver / Vamos ter / Vamos

ser / Vamos desentender / Do que não / Carnavalizar a vida coração”.

Para os baianos a festa precisa ter a qualidade, mas o folião também é avaliado

em sua capacidade de entrega a esta celebração coletiva ou talvez em sua coragem de

deixar-se contagiar. Assim, como na argumentação dos compositores mais antigos, onde

os críticos do samba eram taxados de “ruim da cabeça ou doente do pé”, quem não
59
Veloso, Caetano, op.cit, p. 96.

42
participa do carnaval hoje em dia recebe qualificativos também pouco elogiosos, como

os de Veloso: “Atrás do trio elétrico / Só não vai quem já morreu” (“Atrás do trio

elétrico”).

O trio elétrico da Bahia é mesmo tão auténtico que se tornou o tema principal de

muitas músicas. No início, apenas a fonte de som, depois também gerador de luz, o trio

chega a ser definido como sol, elemento central da festa, ao redor do qual tudo orbita:

“Nem quero saber se o diabo nasceu / Foi na Bahia, foi na Bahia / O trio eletro-sol

rompeu no meio-dia / No meio-dia“(Veloso). O mesmo autor continua celebrando o trio

elétrico e, usando as repetições dos finais das palavras, faz os jogos da palavra que

ainda aumentam a sensação da riqueza e da alegria da festa baiana: “No trio elétrico

rico / Rico, rico, rico, rico, rico deseendoidecer / De alegria, ria, ria, ria, ria / Que a

luz se irradia dia, dia, dia, dia / Dia de sol na Bahia” (“Cara a cara”). Como num

cortejo ou procissão, os foliões definem sua participação na festividade freqüentemente

em função do modo de relacionar-se com o trio. Seguir, correr ou dançar atrás dele é a

opção preferida pelos seus fiéis adoradores. Assim faz, como já vimos, Caetano Veloso

e faz também Gilberto Gil: “Tou atrás do trio / Tou atrás do fio pra ligar” (“Atrás do

trio”). Em outra canção intitulada “Iniciática” ele refere-se a um enorme sucesso da

autoria de Caetano, da música “Chuva, suor e cerveja”: “Quando toda aquela gente /

Reparou que de repente chovia / Trio elétrico tocando Chuva, suor e cerveja / Bahia”.

O trio elétrico é mesmo um fenômeno do carnaval baiano e seu poder é mais uma vez

afirmado nos versos seguintes: “Toda a eletricidade / Trio elétrico é o seu gerador /

Toda energia que magnetiza a cidade” (Veloso – “O bater do tambor”).

Os compositores baianos costumam definir como pioneiro, inventivo e de uma

relevância perene o trabalho de Dodô e Osmar, indissociavelmente ligado ao carnaval

da Bahia. Dodô e Osmar são considerados os pais ou inventores do trio elétrico e até os

43
dias de hoje um dos trios traz o nome deles. Caetano presta sua homenagem a esses

músicos, nomeando-os entre outras personagens da cultura baiana na canção “Bahia,

minha preta”: “Te chamo Menininha do Gantois / Candolina, Marta, Didi, Dodô e

Osmar”.

Todas as características do carnaval – a alegria, a euforia, o caos estão presentes

nas lembranças de Gilberto Gil: “A primeira vez que pai me trouxe / Pra que eu fosse

batizado / Na religião pagã do carnaval... Eu tive uma febre aquele dia / De alegria, de

euforia, de prazer de viver...Nunca mais perdi o bloco que desce do Candeal / Fui

batizado com doce / Doce no lugar do sal / Papapai cedo me trouxe / Pra brincar o

carnaval”. Estas lembranças musicadas são com propriedade intituladas “Doce

carnaval” e Gil cita nelas a cidade do interior onde passou alguns anos de sua infância, o

Candeal.

Numerosas são na obra de Veloso e Gil as referências a “Filhos de Gandhi” o

que é o nome de um dos mais famosos grupos de afoxé do carnaval baiano. O afoxé é

um cortejo que sai pelas ruas de Salvador, celebrando os orixás, sendo por isso

conhecido como candomblé de rua. Aqui temos mais um exemplo de ligação das festas

com a religiosidade baiana. Gil chega até ao sincretismo, chamando não só os orixás,

mais também Senhor do Bonfim: “Filhos de Obá / Manda descer / Pra ver Filhos de

Gandhi / Senhor do Bonfim / Faz um favor pra mi / Chama o pessoal / Manda descer /

Pra ver Filhos de Gandhi / Oh! Meu Deus do céu / Na terra é carnaval”.

O Senhor do Bonfim e a festa em sua louvação – Lavagem, organizada em

Salvador cada ano em meados de janeiro, é uma referência frequente na obra de

Gilberto Gil. Ele até dedicou uma música a esse evento importante e na letra faz quase

uma reportagem jornalística da Lavagem, descrevendo o caminho do cortejo, a comida

servida durante a festa ou a típica roupa branca num dia quente do verão baiano:

44
“Lavagem do Bonfim, quinta-feira / Sai da Conceição da Praia a primeira / Talagada

de batida na Praça Cairu / Levanta a pista ao alto o Lacerda ”.

Dia 2 de fevereiro, todos os anos, milhares de baianos e turistas lotam as praias

do bairro soteropolitano Rio Vermelho para reverenciar Iemanjá, a Mãe D´Água.

Também esta festa não passou sem que ficasse adaptada nas letras dos compositores

baianos. Gilberto Gil canta: “Aqui estamos reunidos / À beira-mar / Nesta noite de ano-

novo / Nesta festa de Iemanjá / Pra prestar nossa homenagem / De coração” (“De ouro

e marfim”). Na canção “Onde o Rio é mais baiano” Caetano faz certa comparação da

Bahia e do Rio de Janeiro (isso podemos ver já no trocadilho no título da canção) e

lembra a festa famosa do bairro do Rio Vermelho, da qual não pode estar presente:

”Pensando em Jamelão no Rio Vermelho / Todo ano, todo ano / Na festa de Iemanjá /

Presente no dois de fevereiro / Nós aqui e ele lá / Isso é a confirmação de que a

Mangueira / É onde o Rio é mais baiano”.

7.3. Religiosidade

A religiosidade continua sendo um tema pautado na música baiana da segunda

metade do século XX. Mas, ao contrário da situação no período anterior, já não nos

encontramos com tanta importância dos santos cristãos. Nasce um novo panteão com vigor

nas letras dos dois poetas. São os orixás da tradição afro-baiana. Como já mencionamos, na

primeira metade do século o candomblé ainda era mal visto, mas, mais tarde, a

familiaridade com os rituais e com os fundamentos da religião torna-se um signo de bom

gosto e erudição. A significativa substituição da referência aos deuses católicos pelas

divindades nagô-iorubás retrata a lenta e progressiva conquista de espaço e respeito pelas

expressões culturais negras na Bahia, que até as primeiras décadas do século a elite local

tentava insistentemente banir. Agora, os orixás transformam-se em uma presença

45
constante, com a qual os baianos parecem manter um intercâmbio permanente. Um

exemplo do grau de atenção que os intelectuais e os artistas passam a dedicar à religião

afro-baiana é dado pela expressiva remissão nas canções aos nomes de casas religiosas,

terreiros, seus sacerdotes, palavras litúrgicas, etnias africanas e arrisca-se até definições de

princípios básicos da religião. A língua iorubá vai ganhando o espaço além dos muros dos

terreiros em palavras como axé, orixá, Afonjá, Olorum.

Especialmente na obra de Gilberto Gil, a religiosidade é muito ligada com a

etnicidade.60 Gil, consciente de sua origem da vertente nagô, aborda os diferentes aspectos

da cultura afro-brasileira. Ora retrata as citações vividas pelo homem negro na grande

cidade, ora busca inspiração nos ancestrais africanos, nos deuses mitológicos. Portanto nas

canções com a temática religiosa, que são no caso de Gil muitíssimas 61, encontramo-nos

nomeadamente no mundo do candomblé cheio de expressões iorubanas. São as músicas

com os nomes estranhos como “Axé, Babá”, “Sarará Miolo”, “Emoriô”, “Iansã”,

“Iemanjá”, “Logunedé”, “Opachorô” etc.. Conforme o autor, algumas destas músicas

surgiam numa espécie de transe: “...como se a santo fosse rodopiar. E quando ela vem

assim “ô, ô, ô, Axé, Babá”, é como se já estivéssemos num terreiro e estivéssemos todos

incorporados...”62 Na música “Babá Alapá”, que é o pai de santo ancestral africano, ele

trata da perda de suas referências ancestrais, chamando Egum, o espírito dos ancestrais

mortos: “O filho perguntou pro pai / Onde é que tá o meu avô? / O meu avô / Onde é que

tá?...Pai Xangô, Aganju / Viva Egum / Babá Alapá”. Vamos ainda esclarecer o sentido das

outras palavras da canção: Xangô é um grande e poderoso orixá, deus do trovão, retratado

sempre com o machado alado, e Aganju é outro nome para Xangô. Gilberto Gil admite
60
Gil trabalha a temática negra tanto a nível de linguagem, quanto a nível de construção melódica, ou
seja, há casos onde a letra não revela explicitamente a presença dos elementos culturais negros.
61
Gilberto Gil é uma pessoa extramamente ligada à fé. Foi criado na religião católica. Durante o período
de sua prisão e estadia em Londres começou a interessar-se pelas filosofias orientais e, afinal, aderiu ao
candomblé. Um grande número das canções tem um denominar comum: as inquietações existencias do
autor. Em Gil, o estar no mundo, a razão do viver, a morte o momento presente e o porvir são constantes
fontes de inspiração e questionamento e ele busca as respostas com a ajuda das diferentes religiões.
62
Fonteles, Bené. Giluminoso: a po.ética do Ser. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 206.

46
diretamente a sua inspiração no léxico da origem nagô quando canta: “Emoriô deve ser

uma palavra nagô / uma palavra de amor, um paladar / Emoriô deve ser alguma coisa de

lá / o Sol, a Lua, o céu pra Oxalá”. “Emoriô” é uma palavra que funciona como um

mantra, uma espécie de evocação sonora, de inspiração nagô, para saudar a natureza

através de Oxalá, o deus que governa a Terra.63

Entre as sacerdotisas e as casas religiosas da Bahia o destaque especial mereciam

Mãe Senhora do Ilê Axé Opô Afonjá, no São Gonçalo do Retiro, e Mãe Menininha do

Gantois, do terreiro na Federação. A primeira, considerada por muitos a mãe-de-santo mais

influente que a Bahia já teve, era procurada por chefes do estado, brasileiros e africanos,

artistas e intelectuais os quais ela sabiamente buscou aproximar de sua casa religiosa,

conferindo-lhes cargos e títulos religiosos. Se muito foi escrito sobre o Opô Afonjá, é

provável que ainda mais se tenha cantado o Gantois e sua Mãe Menininha, retratada

sempre como uma mulher muito doce e possivelmente a mãe-de-santo mais querida pelo

povo. As duas são cantadas por Caetano em “Bahia, minha preta” e aparecem como

elementos de exaltação da Bahia: “Ê ô Bahia, fonte mítica encantada / Ê ô expande teu

axé, não esconde nada...Te chamo de Senhora Opô Afonjá / Eros, Dona Lina, Agostinho e

Edgar / Te chamo Menininha do Gantois”. Sob o comando da Mãe Menininha, o Gantois

foi o terreiro especialmente próximo dos artistas. A prova disso pode ser a canção-oração

feita exclusivamente para ela por Dorival Caymmi e, o que nos interessa ainda mais, a

canção “Réquiem pra Mãe Menininha do Gantois” composta por Gilberto Gil após a morte

da mãe-de-santo onde o autor revela a sua relação íntima à finada: “Minha mãe se foi / Sem

deixar de ser - ora, iêiê, ô / Dói / Minha alma ainda dói.... Minha mãe se foi / Sem deixar

de ser a Rainha do Trono Dourado de Oxum / Sem deixar de ser / Mãe de cada um / Dos

filhos pra quem eternamente sempre haverá / Mãe Menininha”.

63
Fred de Goés, op. cit., p. 59.

47
A canção “Logunedé”, que é também o nome de um dos orixás, é muito apreciada

por Gilberto Gil. Como ele afirma: “Eu acho a canção mais especial daquele disco, o

“Realce”. Por tudo, pela canção em si, pelo arranjo, pelo modo como ela foi tratada

musicalmente”. Uma das razões desta importância da “Logunedé” para o próprio autor

pode ser vista no seguinte depoimento, que ao mesmo tempo pode também substituir para

nós a análise da letra e revelar o processo da criação artística de Gil. Tomamos a liberdade

de fazer aqui uma citação longa, porque só esta pode nos mostrar o pensamento do autor e

aproximar nos do mundo do candomblé dele:

“Mãe Menininha do Gantois descobriu e identificou Logunedé na minha


linhagem, entre meus santos, quando ela jogou os búzios. Porque chegei lá e
disse: “Olha, Mãe, eu sei que sou de Xangô – contei para ela a história do
terrreiro de Egum, que tinha ido lá – e ela disse: “Tá! Mas eu vou jogar pra você,
pra ver...” Aí jogou.......e disse: ”Ah! Pois é, eu tô vendo aqui, tem uma Logunedé
aí”. Me explicou quem era Logunedé. Depois, fiz uma música baseada exatamente
na narrativa dela, com as qualidades de Logunedé. Ela dizia: “Logunedé é você!
Logunedé é aquele menino esperto que gosta de estar sempre no colo da mãe
Oxum. Oxum é louca por ele, faz tudo quanto é mimo, tudo quanto é dengo, tudo
quanto é vontade. Ele é cheio de vontade. E ele é uma moça também, ele vira uma
moça”. Aí contou vários mitos, as lendas sobre o orixá. E eu que me identificava
com Xangô...Caetano, por exemplo, achava muitas características de Xangô em
mim: nos modos da personalidade, nos vários casamentos, em tudo. Mas eu
achava que tinha um lado assim muito doce, muito semelhante ao que ela dizia de
Logunedé. Então, eu fiquei muito contente quando soube que era de Logunedé.
Ficou como meu santo preferido durante muito tempo...Logunedé, um dos donos
da minha cabeça. Queria tributar isso, fazer uma canção para Ele e pensava:
“Tenho que dizer que é charmoso, que é jovem; ele é esperto e é um rapaz vivaz.
Ao mesmo tempo ele é o filho de Oxum e Oxóssi”. Fui organizando essas idéias
todas e imaginando por onde é que devia começar, escolhendo um jeito de falar
tudo isso por um caminho qualquer. Fui juntando a beleza com a riqueza, imaginei
que essas duas coisas rimam...Ele é bonito e, ao mesmo tempo, é rico, é todo ouro
de Oxum. Ele gosta dessas coisas; então, já tem o mimo, porque isso era uma
coisa em que Mãe Menininha insistia muito. Ela usava essa palavra o tempo todo:
“Ele é o mimo d´Oxum! Ele é o mimo d´Oxum!” E eu perguntava: “Mas o que é

48
mimo d´Oxum, Mãe? “ Ela dizia: “É o mimo , é mimado, é figura mimada, é o
filho predileto dela”. Eu achava que tinha de ter essa frase, tinha que ter “mimo d
´Oxum”. E aí me lembrava de Moreno 64, pois estava passando uns dias na casa do
Caetano, quando comecei a pensar na música. Sabia que Moreno era de Logunedé
também e me lembrava muito dele. Ele era muito presente para mim como
imagem, quase como se ele fosse o símbolo da entidade. Ele era ainda menino,
travessozinho e, ao mesmo tempo, muito calmo e muito suave. Então, a música é
feita para ele. E ele veio trazando as idéias, porque Moreno também é filho de
Logunedé. Caetano é de Oxóssi. Tudo isso vinha na minha cabeça. E Caetano é
muito meu irmão. A Dedé, que era mulher de Caetano e mãe de Moreno, também
está presente na música. “....Logunedé é dé, é dé, é dé...” É um pouco Dedé
também ali. Tinha várias coisas nessa música. As músicas nascem assim: com uma
vontade de revelar, de vestir, encontrar uma indumentária correta, as vestes certas
para aquela emanação do mistério. Seja em forma de uma emoção muito grande
ou de uma comoção, um sentimento compassivo, de uma compaixão, um
alumbramento, de um enlevo muito grande provocado por alguma coisa ou mesmo
de uma tristeza, de um pesar...Sejam quais forem esses elementos que motivem a
chegada da poesia, a gente fica dando voltas, cercando as palavras, as
referências, pra poder achar um modo, uma fresta, uma brecha por onde se
começar a dizer...As palavras começam a vir à luz. Para poder, então, as palavras
começarem a caber na fôrma, terem formato. Porque aí tem a fôrma da música, a
fôrma do ritmo. Tem essas coisas todas que vão comprometendo, que são como
aquele buraco que você cava na areia da praia, para dali fazer um rego e
construir a ponte. Aquelas artes que a gente faz na areia da praia. Fazer música é
a mesma coisa. Você vai conformando, vai-se trazendo, vão aí aparecer
surpresas...aquelas palavras surpeendentes que, de repente, já no meio do
processo, batem e determinam tudo. Às vezes, reconduzem, refazem o caminho,
fazem você voltar, dar uma volta completa e começat a trilhar a canção por um
outro caminho. Enfim, é muito misterioso o processo de criação.”65

Gilberto Gil expressa de forma muito clara a relação que a religião afro-baiana

estabelece entre seus deuses e os elementos naturais, de onde vem a sua alcunha de

“religião da natureza”: “Pra cada canto uma conta / Pra cada Santo uma mata / Uma

estrela, um rio, um mar” (“Bahia de todas as contas”). Em outro trecho da mesma


64
Moreno é filho mais velho de Caetano Veloso com Dedé.
65
Fonteles, Bené, op.cit., p. 126-129.

49
canção, aparece a proximidade sincrética que foi estabelecida entre a religião dos orixás

e o cristianismo: “É assim porque Deus quis / Olorum se mexeu / Rompeu-se a guia”, já

que o Olorum dos africanos para muitos equivale ao Deus dos cristãos.

O sincretismo religioso é mesmo muito comum entre os baianos e, assim, não

pôde ficar sem maior reflexão. A habilidade baiana para fundir, misturar, sincretizar não

é um tema novo, já foi cantado na primeira metáde do século XX. O que ocorre, porém,

nas canções Gilberto Gil e Caetano Veloso é, possivelmente, um enriquecimento na

forma de retratá-la. Um exemplo pode ser a associação até com a religiosidade oriental,

nunca arriscado na época enterior: “Buda sorrindo calado / Admirando o machado /

Empunhado por Xangô (Gil – “Um carro de boi dourado“) ou, do mesmo autor:

„Dorival é um Buda nagô / Filho da casa re-al da inspiração / Como príncipe,

principiou / A nova idade de ouro da canção / Mas um dia Xan-gô / Deu-lhe a i-lumina-

ção“ (“Buda nagô“). Apesar desses exemplos, na maioria das canções comenta-se o

convívio entre santos e liturgias católicas e negras. Principalmente Gilberto Gil sente a

necessidade de se exprimir a esse tema e defende o sincretismo baiano: „Quando os

povos d'África chegaram aqui / Não tinham liberdade de religião / Adotaram Senhor do

Bonfim: / Tanto resistência, quanto rendição / Quando, hoje, alguns preferem condenar

/ O sincretismo e a miscigenação” (“De Bob Dylan a Bob Marley - um samba-

provocaçăo”). Ou, em outra canção com o nome “Extra”, sublinha a importância da fé

para o baiano, não importando qual for: “Cristo ou Oxalá / Baixa / Santo ou orixá”.

Dos santos católicos o mais citado é, como já vimos, o Senhor do Bonfim. Ele é

considerado o protetor dos pobres e fracos. Isso podemos ver nos versos seguintes:

“Pobre não tem valor / Pobre é sofredor / E quem ajuda / É Senhor do Bonfim” (Gil).

Senhor do Bonfim é convocado por Gilberto Gil na letra recente “Balé de Berlim”,

surgida na ocasião da Copa mundial em futebol na Alemanha, em 2006: “Nossa seleção

50
chega a Berlim / Traz um protetor / Senhor do Bonfim”. Afirma assim a importância

dele não somente para os baianos, mas também para todos os brasileiros.

Consciente da forte influência da nação iorubana para criação da cultura baiana,

seja na área do léxico (“fala tupí, fala iorubá”) ou na religiosidade, também Caetano

Veloso afirma: “Mamãe eu quero amar / A ilha de Xangô e de Yemanjá / Yorubá igual

a Bahia”. O sincretismo é presente em outros versos dele, quando convoca um orixá e

menciona um dos santos mais respeitados dos católicos: “Quero ser sempre o menino,

Xangô / Da foguiera de Saõ João”. Caetano Veloso, apesar de não ter descendentes

africanos, canta em toda sua obra o mundo do candomblé porque esse oferece um amplo

repertório dos símbolos, tão preciosos na poesia: “Com a espada de Ogum / E a benção

de Olorum / Como um raio de Iansã / Rasgamos a manhã vermelha” (“Os mais doces

bárbaros”). Ogum, que é o orixá do ferro e da guerra, é associado com a espada. Na

música com o título “Iansã” descreve o orixá feminino, deusa dos ventos, raios,

relâmpagos e tempestade e através ela mostra seu estado emocional interno: “Senhora

das nuvens de chumbo / Senhora do mundo dentro de mim...Deusa pagã dos

relâmpagos / Das chuvas de todo ano / Dentro de mim, dentro de mim”.

Um grande panteão dos orixás é apresentado por Caetano na canção “Milagres

do povo”. Além de Xangô, Iansã e Iemanjá, ele fala de Oxum, deusa do amor e ouro, de

Obatalá, que é outo nome para Oxalá e de Ojuobá. A cançaõ deve funcionar como a

defesa da fé afro-brasileira e dos próprios negros no Brasil e, de forma um pouco

escondida, insinua a importância da Bahia como o centro da religiosidade dos negros do

Brasil: “Xangô manda chamar Obatalá guia / Mamãe Oxum chora lagrimalegria /

Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia /.../ Quem descobriu o Brasil? / Foi o negro que viu a

crueldade bem de frente / E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente /

Ojuobá ia lá e via / Ojuobahia”.

51
Muito interessantes são as letras surgidas sob a influência da poesia concreta. 66

A poesia concreta, representada no Brasil principalmente pelos irmãos Augusto e

Haroldo de Campos, tem grande reflexo especialmente na obra de Caetano Veloso. Nela

também podemos achar a expressão da baianidade. De parceria de Gil e Caetano surgiu

uma canção não–usual que foi lançada no disco “Tropicália”. Representa uma fusão da

poesia concreta e a deglutinação artística segundo Oswald de Andrade e chama-se

“Batmacumba”. Com a sua temática inserimo-la neste capítulo dedicado à religiosidade,

ao candomblé. Achamos necessário transcrever o poema inteiro:

batmacumbaiéié batmacumbaobá
batmacumbaiéié batmacumbao
batmacumbaiéié batmacumba
batmacumbaiéié batmacum
batmacumbaiéié batman
batmacumbaiéié bat
batmacumbaiéié ba
batmacumbaié
batmacumba
batmacum
batman
bat

bat
batman
batmacum
batmacumba
batmacumbaié
batmacumbaiéié
batmacumbaiéié ba
batmacumbaiéié bat
batmacumbaiéié batman
batmacumbaiéié batmacum
batmacumbaiéié batmacumbao
batmacumbaiéié batmacumbaobá

Já a primeira olhada consegue distinguir a base da letra que consiste em combinações

estranhas dos fonemas. Referências aos valores da cultura de massa americana

(“batman”) se misturam com o vocabulário das religiões afro-brasileiras, típicas da

Bahia. A palavra “macumba” é bastante conhecida, mas o poema está cheio de outras

alusões: bem no centro se encontra “bá” que significa “pai de santo”. No final da
66
Mais sobre a relação da poesia concreta e a obra dos dois compositores em: Santaella, Lúcia.
Convergências: Poesia concreta e tropicalismo. São Paulo, Nobel, 1986; Perrone, Charles. Poesia
Concreta e Tropicalismo. Acessível: WWW
<http://www.plataforma.uchile.cl/fg/semestre2/_2003/musica/modulo4/clase2/doc/tropical_02.doc>

52
primeira e da última linha vemos ”obá” que é um dos ministros do orixá Xangô. 67 Mais,

o “baobá” é uma árvore sagrada para os candomblistas. A evocação dos rituais da

macumba é aprofundada pela parte musical por que a palavra “bat” é acompanhada pela

batida dos tambores. Além de “batman” – homem-morcego, a figura famosa dos

desenhos americanos, temos ainda uma alusão aos elementos estrangeiros. É termo “ié-

ié” que designa a música pop internacional dos anos 60. 68 Interessante é também a

utilização da linha melódica repetitiva que é diminuída ou aumentada de acordo com o

formato visual do texto que pode ser concebido também como a capa do batman voante.

Acabamos de abordar o mundo do candomblé e o modo como este se refletiu na

obra de Veloso e Gil. Mas os “velhos” deuses católicos não desaparecem e continuam a ser

a referência frequente nas músicas dos dois autores, da mesma maneira como continuam

sendo presentes na vida religiosa dos baianos.

7.4. Sensualidade

Quase onipresente na obra dos nossos autores é o tema do amor e a descrição da

beleza feminina, mas não sempre podemos os objetos do amor, as mulheres cantadas,

identificar com as baianas. Apesar disso, a sensualidade das mulheres da Bahia é para

Gilberto Gil e Caetano Veloso um fato indiscutível, como podemos ver em algumas

músicas. Gilberto Gil faz uma generalização da beleza das baianas: “Toda menina baiana

tem um santo / Que Deus dá / Toda menina baiana tem encanto / Que Deus dá / Toda

menina baiana tem um jeito / Que Deus dá” (“Toda menina baiana”). Uma atitude

semelhante podemos ver na canção “Beleza pura” de Caetano quando cita vários bairros de

Salvador e as belas moças que lá residem: “Moça preta do Curuzu / Beleza pura /

Federação / Beleza pura / Boca do Rio / Beleza pura”.

67
Gilberto Gil é um dos obás, com nome Aré Onikoyi, no terreiro Ilê Aié Opô Afonjá.
68
Perrone, Charles A. (1988), op. cit., p. 77.

53
A conversa com uma linda menina, que deve representar a típica habitante preta do

centro de Salvador, do Pelourinho, chamado familiarmente Pelô, é o tema da canção

“Pretinha”: “Eu queria te encontrar em Salvador, ô, ô / Eu queria te falar desse calor, ô,

ô / Minha preta gostosinha do Pelô / Me diga que você é meu amor” (Gil). A refência ao

sexo muitas vezes é feita através da gíria, expressões comuns no linguajar popular da rua,

como o adjetivo gostosa, usado para designar uma mulher muito atraente e sensual.

À primeira vista não fica muito claro, mas a canção “Tradição“ pode ser percebida

também como o elogio à beleza da mulher baiana. Veja-se: “Conheci uma garota que era

do Barbalho / Uma garota do barulho”(Gil). Barbalho é um bairro de Salvador.

Observamos, no entanto, que além de funcionar como adjunto adverbial de lugar,

“barbalho” pode também ser tomado como um adjunto adverbial de intensidade. 69 Nessa

letra podemo-nos deparar com o grande número de referências a Salvador: clube

desportivo e social dos mais tradicionais – Baiano, goleiro Lessa do Esporte Clube Bahia,

lotação da Liberdade, Largo do Terreiro, Antônio Balbino – governador de 1955 a 1955.

Sabendo que desde seus oito anos até entrar na UFBA Gilberto Gil viveu na casa de sua tia

em Salvador (então, foi no tempo do governador Balbino), podemos ver nessa letra os

traços autobiográficos: “Pro Largo do Terreiro / Pra onde todo mundo ia / Todo dia, todo

dia / Todo santo dia / Eu, minha irmã e minha tia”.

Na canção “A verdadeira baiana” Caetano Veloso menciona várias qualidades dela:

é matriarca, supralusitana ou transafricana. Além da mestiçagem do branco português com

o negro da África, muito típica na sociedade baiana, o autor nesta letra lembra a posição

importante da mulher, que pode ser provada, por exemplo, pela hierarquia do candomblé

onde a mulher ocupa o lugar de destaque. Mas, o que nos importa mais, no capítulo

dedicado à sensualidade da mulher baiana, é o seguinte trecho: “A verdadeira baiana sabe

ser falsa / Salsa, valsa e samba quando quer... A verdadeira é baiana, a verdadeira é
69
Fred de Goés, op. cit., p. 83.

54
baiana, é / A verdadeira é baiana, a verdadeira é baiana, é”. Mais um exemplo da

sensualidade das baianas encontramos na canção “Qual é, baiana”: “Essa menina é só de

brincadeira / Só dá bandeira, só dá bandeira / Seja na Amaralina ou na Ribeira...Ela

sempre agrada ao gosto e ao olhar” (Veloso).

7.5. Saudade da Bahia

Um capítulo próprio das músicas conectadas à baianidade é criado por aquelas

que exprimem a saudade da Bahia. Muitas delas surgiram durante o exílio na Inglaterra.

É natural que essas exprimem com maior veemência do que as outras a saudade da terra

natal. Tão simples, mas belos, são esses versos escritos por Gilberto Gil no exílio: “Um

pouco da minha grana / Gasto em saudade baiana / Ponho sempre por semana / Cinco

cartas no correio” (“Fechado pra balanço“). Na canção “Back in Bahia”, escrita, como

diz o próprio título, de volta à Bahia, faz a reminiscência à famosa “Canção de Exílio”,

do poeta romântico Gonçalves Dias, justapondo “cá“ e “lá“ 70: “Mar da Bahia, cujo

verde vez em quando me fazia bem relembrar / Tão diferente do verde também tão lindo

dos gramados campos de lá / Ilha do Norte, onde não sei se por sorte ou por castigo dei

de parar / Por algum tempo que afinal passou depressa como tudo tem de passar / Hoje

eu me sinto como se ter ido fosse necessário para voltar / Tanto mais vivo de vida mais

vivida, divida pra lá e pra cá”. Há aqui uma semelhança de atitude de Caetano e Gil em

relação ao exílio nos seguintes versos da canção „Um Dia“: „Eu não estou indo-me

embora / Estou só preparando a hora de voltar“. Caetano ainda canta nesta canção: „No

Raso da Catarina / Nas águas de Amaralina / Na calma da calmaria / Longe do mar da

Bahia / Limite da minha vida / Vou voltando pra você”.

70
Essa observação é de Fred de Goés, op. cit., p. 40.

55
Mas não só em Londres foram compostas as canções de saudade. Gilberto Gil e

Caetano deixaram a Bahia já em 1966 e portanto não há surpresa que algumas músicas

surgidas no Rio de Janeiro em São Paulo contenham algumas gotas de saudade. Na

canção “Quem me dera” de Caetano, a saudade torna-se a substância principal: “Ai,

quem me dera o dia / Voltar, quem me dera o dia / De ter de novo a Bahia / Todinha no

coração / Ai, água clara que não tem fim / Não há outra canção em mim / Que

saudade!”.

De saudade e nostalgia estão cheias também as músicas de Caetano onde se fala

da cidade onde ele nasceu e passou a infância, Santo Amaro da Purificação. Na letra

“Acrílico” ele chama-a, fusionando as expressções de “adolescência“ e “cidade“, de

“adolescidade”. Também faz vários trocadilhos que nos devem aproximar de seu

pensamento nostálgico, como, por exemplo: “Acre e lírico sorvete / Acrílico Santo

Amargo da PUTRIFICAÇÃO”. Em várias músicas ele nomeia-a explicitamente, como

em “Trilhos urbanos” ou “Adeus, meu Santo Amaro”: “Adeus, meu Santo Amaro / Que

eu dessa terra vou me ausentar / Eu vou pra Bahia....Adeus, minha cidade / Adeus,

felicidade / Adeus, tristeza de ter paz / Adeus, não volto nunca mais”. Vemos que

Caetano com a licença poética rebatiza sua cidade em Santo Amargo e esta proximidade

das palavras “Amaro“ e “amargo“ é utilizada muitas vezes. Outra brincadeira frequente

de Caeatano é justapor a amargura contida no nome da cidade e a cana-de-açúcar, o

produto típico do Recôncavo e de Santo Amaro especialmente: “Cana doce Santo

Amaro, gosto muito raro / Trago em mim por ti, e uma estrela sempre a luzir”. A

mesma coisa ele faz em “Sugar cane fields forever”, cujo título é uma clara alusão à

música dos Beatles “Strawberry fields forever” 71 e onde só a referência a Santo Amaro

no final da letra justifica o título.

71
Gilberto Gil também faz uma paródia de “Strawberry fields forever“ com a música “ChuckBerry fields
forever“, uma homenagem ao músico americano Chuck Berry, um dos mais expressivos precursores do
rock nos anos 50.

56
7.6. Primazia

A Bahia é retratada muitas vezes como lugar onde as coisas aconteceram e

acontecem primeiro, onde começam, nascem, surgem. Evidentemente, este discurso

tenta retomar a história do Brasil – a Bahia é mencionada como local onde os

descobridores portugueses aportaram pela primeira vez e Salvador como a primeira

capital do país. Desse começo do Brasil, passa-se a várias derivações – local onde se

aprende a fazer certas coisas, onde certos sentimentos e hábitos nascem. Com o passar

do tempo, o tema da Bahia como a fonte do tudo não perde sua força – muito pelo

contrário. Na virada do século XX, com as comemorações dos quinhentos anos do

Brasil, o governo da Bahia relembra isso através de um slogan publicitário de circulação

nacional “Bahia – o Brasil nasceu aqui”. 72 A idéia da primazia significa para muitos ao

mesmo tempo prioridade, superioridade e respeito, o que pode ser entendido como uma

conseqüencia, um resultado do pioneirismo. No discurso da baianidade, então, o

pioneirismo não é reivindicado aleatoriamente porque ele frequentemente serve como

um dos importantes argumentos para justificar a superioridade baiana.

Gilberto Gil e Caetano Veloso referem-se com muito prazer a esta primazia da

Bahia, usando as palavras “primeiro“, “nascer“ ou mesmo “primazia“. A canção

“Iniciática” de Gilberto sugere já com seu título que algo se inicia, nasce: “O que veio e

ser você / Nasceu aqui / Neste lugar do Plano / Inclinado a dar início / A um movimento

regular / De descida e subida / Dos homens da cidade / Adormecida / Do Salvador”.

Temos aqui um curioso jogo das palavras para referir-se ao plano inclinado do Pilar,

que está situado no lugar onde a cidade começou a ser edificada, na área ao redor da

Praça da Sé.

72
Mariano, Agnes Francine de Carvalho, op. cit., p. 124.

57
Em outra canção, Gil enumera vários pioneirismos baianos. A Bahia tem

algumas primazias, mas não todas são de bem. Foi primeira na colonização, no

desbravamento e também na crueldade, pois a formação da sociedade brasileira se deu

através do trabalho forçado: “Que Deus entendeu de dar a primazia / Pro bem, pro

mal / Primeira mão na Bahia / Primeira missa / Primeiro índio abatido / Também que

Deus deu / Que Deus entendeu de dar toda magia / Pro bem, pro mal / Primeiro chão

da Bahia / Primeiro carnaval / Primeiro pelourinho / Também que Deus deu”. Caetano

Veloso continua no mesmo estilo: “Viva a princesa menina, uma estrela / Riqueza

primeira de Salvador“. Também aprecia a tradição que ainda influencia a vida dos

baianos em Salvador: “Nas sacadas dos sobrados / Da velha São Salvador / Há

lembranças de donzelas / Do tempo do imperador / Tudo, tudo na Bahia / Faz a gente

querer bem / A Bahia tem um jeito”.

Outro pioneirismo baiano, que é muitas vezes lembrado já em várias canções da

primeira metade do século XX, diz respeito ao lugar onde surgiu o mais conhecido

estilo musical brasileiro, o samba. Há uma velha disputa sobre essa questão: para

alguns, por exemplo Vinícius de Moraes, “o samba nasceu lá na Bahia”, enquanto

outros juram que foi no Rio de Janeiro. Com muita elegância, Caetano Veloso entra na

disputa, creditando, é claro, o papel de pioneira à Bahia, sem deixar de render

homenagem ao Rio, que é o continuador da tradição. Uma das mais conhecidas escolas

cariocas de samba é também chamada Estação Primeira da Mangueira e para Caetano a

Bahia é então a “Estação primeira do Brasil”. A Bahia e o Rio aparecem como

semelhantes, por exemplo no samba, na arte, inclusive porque eram baianas as primeiras

mulheres que promoveram em suas casas batuques, dos quais se desenvolveu o samba:

“A Bahia / Estação primeira do Brasil / Ao ver a Mangueira nela inteira se viu / Exibiu-

58
se sua face verdadeira / Que alegria / Não ter sido em vão que ela expediu / As Ciatas

pra trazerem o samba pra o Rio / (Pois o mito surgiu dessa maneira)”.

Quando se fala tanto em pioneirosmo, primazia, tradição, é difícil escapar de

noções como autenticidade, pureza, forma, verdadeira, certa: “Rompeu-se a guia de

todos os santos / Foi Bahia pra todos os cantos / Foi Bahia / Pra cada canto, uma

conta...Daquela terra provinha / Tudo que esse povo tinha / De mais puro e de mais

seu” (Gil).

No discurso da baianidade há vozes que defendem a proveniência baiana como

uma característica melhor e portanto também Caetano Veloso e Gilberto Gil revelam em

sua obra a altivez, o orgulho de ser baiano, com maior tradição etc.: “É moda dizer que

o baiano está por cima“ (Gil– “Ninguém segura este país”). Em várias músicas

podemos observar o orgulho com que eles confessam sua origem baiana: „Barra-

Barris-Barroquinha / Ó, Maria / Faz tempo que você sabe / Que eu também sou da

Bahia” (Gil – “O, Maria”) ou “Eu sou da Bahia / Marinheiro só / De São Salvador /

Marinheiro só” (Veloso – “Marinheiro só”).

Não sempre a afirmação da proveniência é feita com altivez, mas, apesar disso,

não fica velada e é exprimida com muita clareza, como algo sem que a personalidade do

autor não fique completa. Assim faz Caetano em outra canção intitulada “Branquinha”:

“Eu sou apenas um velho baiano / Um fulano, um caetano, um mano qualquer”. Temos

aqui ainda um depoimento de Ceatano Veloso que nos pode esclarecer sua atitude à

Bahia, como e porque ela espalha-se em seu trabalho. Quando foi indagado se “entende

as suas coisas sem a Bahia, sem a sua existência, a sua formação baiana”, ele respondeu:

“Não, de jeito nenhum. Mas isso é muito complicado, porque tenho nenhum interesse

em regionalismo, tá entendendo? Eu tô ligado com a Bahia concretamente e só sai no

meu trabalho essa ligação na medida em que ela é efetiva...não como um compromisso

59
de representar uma região...Era preciso que fosse uma descentralização conjugada

com uma desprovincianização. Agora, você tá querendo que eu fale mais da

imporância de eu ter nascido na Bahia no negócio do meu trabalho, né? Só é difícil

falar porque não há outra experiência pra comparar, o que aconteceu comigo, tá

entendendo? Há coisas que são assim necessariamente porque eu sou baiano, mas você

pode transar altíssimo a partir de qualquer coisa, eu acho. Por isso eu tava falando que

me sinto um pouco mal quando se fala em ser baiano como privilégio, isso colocaria

uma nova centralização desagradável, entendeu? A idéia de privilégio é uma coisa que

não me interessa. Privilégio de ter nascido na Bahia, ter vivido tais e tais coisas. Eu

não vejo muito isso”.73

Até quando Gil defende sua independência, como faz na música “Aquele

abraço”, ele reserva um verso para homenagear sua herança cultural, como início de

tudo, influência constante e a fonte de conhecimento: “Meu caminho pelo mundo eu

mesmo traço / A Bahia só me deu régua e compasso / Quem sabe de mim sou eu –

aquele abraço!”.

7.7. Os lugares da Bahia e de Salvador

Na segunda metáde do século XX a própria Cidade da Bahia continua um grande

tema no mundo musical. Diferentemente da época anterior, quando foram mencionados

especialmente os lugares como Praça da Sé ou Baixa dos Sapateiros, os compositores

cantam muito mais seus bairros e locais de encontro, caracterizando-os como

emblemáticos. No caso de Caetano Veloso mais referido é o bairro de Amaralina. A

palavra „amaralina“ tem um som muito poético, escondindo em si o verbo amar e o

nome mar e oferecendo assim um amplo repertório dos jogos de palavra. Vimos que

73
Veloso, Caetano, op. cit., p. 128.

60
Caetano citou esse bairro na „Tropicália“, na „Qual é, baiana“ e as referências a

Amaralina não param aqui. No poema surgido sob a influência da poesia concreta “De

palavra em palavra” ele brinca com as palavras, com o som nas combinações incomuns.

Usa a descrição de paisagem, diretamente através da palavra “mar”, e pouco

escondidamente na fusão do “amarelo” (representa o sol) com “anil” (o céu). 74 Com

certeza descreve um de seus lugares preferidos de Salvador porque numa

conglomeração lexical central podemos descobrir o nome da praia e do bairro

Amaralina, onde Caetano morou com sua primeira mulher. Com a enumeração dos

outros bairros soteropolitanos deparamo-nos em várias músicas de Caetano, por

exemplo na „Beleza pura“.

Poeticamente muito sonora é a justaposição dos três bairros que começam com

“barr” feita por Gilberto Gil: “Barra-Barris-Barroquinha / Ó, Maria / Faz tempo que

você sabe / Que eu também sou da Bahia”. Até na música “Domingo no parque”, que

com a “Alegria, alegria” são consideradas canções de estréia do movimento

tropicalista75, podemos encontrar os elementos baianos. Estes são mais explícitos

quando Gil localiza a ação para Salvador, nomeando os bairros de Ribeira e Boca do

Rio. Outro elemento baiano é a referência à capoeira, mas temos também a parte sonora

da canção que com o acompanhamento de berimbau remete à roda da capoeira, tão

frequente nas ruas de Salvador. Com muito amor canta Gil os lugares tradicionais da

cidade, como a feira popular Água de Meninos, que foi destruída por um incêndio

proposital. Inicia com a confissão da influência poética da cidade: “Na minha terra, a

Bahia / Entre o mar e a poesia / Tem o porto Salvador”.

74
Perrone, Charles A. (1988), op. cit., p. 109.
75
O texto da canção carateriza-se por sua construção cinematográfica, típica para os futuros tropicalistas,
em que, após situar as personagens e descrever o cenário onde a ação se desenrolará, o compositor passa a
narrar os fatos, empregando a técnica de montagem em pequenos flashes. Além de letra e melodia,
Gilberto junta os ruídos, palavras e gritos sincronizados às cenas descritas, evocando realisticamente um
parque de diversões.

61
Um lugar, tanto cantado por Dorival Caymmi, Itapuã, torna-se também o centro

da atenção de Caetano Veloso que compôs a canção com o mesmo título, confiando-nos

o que Itapuã significava para ele na juventude: “Tudo esteve em Itapuã / Itapuã, tuas

luas cheias, tuas casas feias / Viram tudo, tudo, o inteiro de nós / Itapuã, tuas lamas,

algas, almas que amalgamas / Guardam todo, todo, o cheiro de nós”.

A Cidade de Salvador como um tudo é o tema da canção “Cidade do Salvador”

de Gil. Ele brinca nela com a oposição da dor e a felicidade, acrescentando ainda outra

caraterística típica da cidade, a fé: “A fé / A felicidade / Cidade do Salvador / dor / dor”.

A partir dos anos 60, quando mais e mais pessoas começam a reconhecer a

beleza natural da cidade e do estado como algo importante e singular, é possível

também encontrar uma canção como essa: “E a Bahia só tem uma / Costa clara,

litoral… É por isso que é o azul / Cor de minha devoção / Não qualquer azul, azul…É o

azul que a gente fita / No azul do mar da Bahia / É a cor que lá principia / E que habita

em meu coração“ (Gil e Veloso – “Beira mar“). Mais uma letra de Gil, generalizando as

belezas da Bahia: “Eu vim da Bahia cantar / Eu vim da Bahia contar / Tanta coisa

bonita que tem / Na Bahia, que é meu lugar“.

7.8. As personalidades baianas

Muitas são referências às personalidades baianas, principalmente aos artistas.

Encontramo-nos já com duas sacerdotisas, Mãe Meniniha de Gantois e Mãe Senhora do

Opô Afonjá. Também mencionamos os pais do tio elétrico, Dodô e Osmar. Mas a

enumeração não se limita a essas pessoas.

Como músicos, Caetano e Gilberto prestam homenagem a outros músicos

baianos, a aqueles que influenciaram sua obra. Os destaques são Dorival Caymmi e

João Gilberto. O último, pelos dois compositores considerado o agente decisivo para

62
eles entrarem no mundo da música, é a referência freqüente na obra de Caetano. Por

exemplo, menciona-o na canção “Gente”, onde ele enumera várias pessoas do ambiente

musical ou da própria família: “Quer durar, quer crescer / Gente quer luzir / Rodrigo,

Roberto, Caetano / Moreno, Francisco / Gilberto, João”. Ou em “Saudodismo”, cita as

músicas mais conhecidas do rei da bossa nova e confirma assim a importância no ensino

musical dele: “Mas chega de saudade / A realidade / É que aprendemos com João / Pra

sempre ser desafinados”. Dorival é cantado por Gilberto na “Buda Nagô”, Caetano

menciona-o na canção dedicada ao bairro de Itapuã: “Itapuã, quando tu me faltas, tuas

palmas altas / Mandam um vento a mim, assim: Caymmi” ou na canção juanina: “Viva

São João / Gal canta Caymmi”.

Entre os cantores homenageados não faltam os mais próximos amigos

(observamos já a referência a Gal Costa, que gravou o disco “Gal canta Caymmi”),

frequentes são também as confissões de Caetano rumo a sua irmã Maria Bethânia.

Interessantes são os versos com os quais ambos se elogiam. Gilberto Gil fica nesse

quadro mais íntimo e situa Caetano no ambiente familiar: “Cacau (=Caetano) já deve

estar voando para o Rio / Moreno está tão bonitinho”, enquanto Veloso em suas

canções menciona seu amigo como um cantor excelente, compara-o com o rouxinol e

aprecia também, junto com outros músicos – João Gilberto e Jorge Benhor, seus

capacidades do poeta: “Quase João, Gil, Ben, muito bem mas barroco como eu /

Cérebro, máquina, palavras, sentidos, corações” ou faz um jogo das palavras,

construindo assim a banda Doces Bárbaros: “Se alguém pudesse erguer o seu Gilgal em

Bethania...”. Esses versos podemos perceber também como uma certa autopromoção.

Na canção “Bahia, minha preta”, Caetano mencionou muitas personalidades do

ambiente cultural baiano. Entre elas não podiam faltar os promotores da vanguarda

baiana, dos quais já falamos: “Te chamo de Senhora Opô Afonjá / Eros, Dona Lina,

63
Agostinho e Edgar / Te chamo Menininha do Gantois”. Estes, segundo a mencionada

citação do próprio autor, tinham um grande papel na formação artística de Caetano

Veloso e Gilberto Gil.

7.9. Os lados negativos dos baianos

Assim como muitos compositores da primeira metade do século XX, também

Caetano Veloso e Gilberto Gil admitem uma das qualidades negativas, tão

freqüentemente atribuída aos bainos – a preguiça. Apesar de a preguiça não poder ser

considerada algum elogio, eles, porém conseguem transformá-la àz vezes em primor,

em algo necessário para que o resultado do trabalho, do empenho renda os frutos: “Sem

correr, bem devagar / A felicidade voltou pra mim” (Gil – “Bem devagar”) ou “Agora

deve estar chegando a hora de ir descansar / Um velho sábio na Baha recomendou:

Devagar” (“Cada tempo em seu lugar”). Também da autoria de Gilberto Gil é a canção

“Ladeira da Preguiça” em que, cantando sobre uma das ruelas de Salvador, confessa sua

preguiça: “Essa ladeira / Que ladeira é essa? / Essa é a ladeira da preguiça / Preguiça

que eu tive sempre “. Claro que ninguém suspeita que Gil ou Caetano sofressem da

preguiça, porque a obra tão ampla não podia surgir sem grande empenho dos autores,

mas a declaração da preguiça nas canções pode servir, então, como a recepção, feita

com exagero, do preconceito aos baianos.

Entre compositores da primeira metade do século XX o tema da pobreza baiana

não é muito freqüente. Quando a pobreza é referida, em geral, é suavizada pela alegria,

fé ou otimismo. Assim fez também Gilberto Gil: “Onde a gente não tem pra comer /

Mas de fome não morre” ou: “Pobre não tem valor / Pobre é sofredor / E quem ajuda é

Senhor do Bonfim” (“Madalena“). Mas Gilberto não foi só eufemístico. Nos anos 80,

com Caetano Veloso foram vozes um pouco destoantes e abordaram alguns dos mais

ardentes problemas baianos. Gil novamente falou da pobreza, descrevendo a

64
personagem principal do livro de Jorge Amado por excelência baiano nomeado Jubiabá,

Antônio Balduino: “Trava com o destino uma batalha cega / Pega da navalha e retalha

a barriga / Fofa, tão inchada e cheia de lombriga / Da mostra miséria da Bahia”. A

cidade Salvador tem muitos problemas. Um deles é o fato, que desde o fim da

escravidão, a maior parte da população descendente dos escravos ainda não encontrou

os efetivos meios da sustentação. Também permanece limitado e deficiente o acesso à

educação, ao mercado formal de trabalho ou à assistência de saúde.

Exemplos de abordagem desse quadro podem ser encontrados em várias

canções, como nas letras de Caetano Veloso, que além de citar os problemas referidos,

fez protesto contra a sujeira de Salvador, que durante muito tempo foi considerada uma

marca da cidade: “Estou de pé em cima do monte de imundo lixo baiano“ (“Neide

Candolina”). Ou, ainda com maior veemência se queixa de Salvador: ”Salvador, isso é

só Salvador / Sua suja Salvador../..A cidade, a baía da cidade / A porcaria da cidade”.

Veloso, consciente do desequilíbrio na distribuição de renda na sociedade

baiana, se aproximou muito da poesia do poeta barroco Gregório de Mattos, que

também falou desse tema, e até musicou os versos do chamado Boca do inferno 76:

“Triste Bahia, oh, quão dessemelhante estás / E estou do nosso antigo estado / Pobre te

vejo a ti, tu a mim empenhado / Rico te vejo eu já, tu a mim abundante / Triste Bahia,

oh, quão dessemelhante”. A canção foi gravada em 1972 no disco “Transa”, após o

músico deixar definitivamente o exílio. Caetano Veloso aproveitou dois quartetos do

soneto do Boca do inferno e acrescentou-lhes versos da própria lavra. Na primeira

76
Em 1968, na edição da obra gregoriana, o editor no prefácio escreveu: “O Boca do Inferno está em São
Paulo…Está muito jovem e permanece poeta popular. Pouco mudou no vestido: a cabeleira postiça
quando desembarcou na Bahia…Em vez da viola de cabaça ele empunha uma guitarra elétrica…Seu
verso é quase o mesmo e ele repete em voz desentoada que ainda e sempre é proibido proibir a vida…Do
alto do seu roko, a sagrada gameleira em Opô Afonjá, Gregório de Mattos, pequeno orixá baiano,
observa, sorridente, suas próprias travessuras de Exu cavalgando o menino Caetano Veloso“. Apud:
Risério, António (1995), op. cit., p. 151. Desde aquele tempo, a comparação de Veloso e Gregório de
Mattos já se tornou até rotineira no ambiente intelectual brasileiro e oferece-se muito facilmente: os dois
poetas são baianos, ambos falam a mesma linguagem tropical e desmistificadora. Caetano Veloso até
encarnou o Boca de Inferno no filme Sermões, de Julio Brassane.

65
estrofe da “Triste Bahia”, quarto verso, Caetano troca o verbo “ver” no pretérito perfeito

do indicativo (vi) de Gregório pelo verbo no presente do indicativo (vejo) e faz ainda

outras mudanças, principalmente do tempo verbal. 77 Essas, além de trazerem o

enunciado para o presente da enunciação, sugerem que a degradação político-existencial

afeta o autor, exilado pela ditadura militar, como a realidade brasileira, ambos tocados

pelas ordens extremamente impositivas dos atos institucionais e do fechamento político

do país.78 As alterarações dos versos acentuam a contradição, porque tanto Caetano

Veloso como a Bahia estão em estado pobre.

Outro aspecto típico para o contexto baiano, que é bastante abordado por

Gilberto Gil e Caetano Veloso, é o abuso do poder político. Quando se fala do poder, é

quase sempre em suas formas negativas, ou seja, autoritarismo, nepotismo, clientelismo,

demagogia ou populismo. Como já dissemos, a Bahia é ancorada em tradições e a certa

percepção tradicional, aristocrática do exercício de poder influencia a Bahia.

Após a queda da ditadura, Caetano e Gil comentam essas “manchas” com

muita freqüência: “Ninguém / Ninguém é cidadão “. Que ninguém é cidadão fica

comprovado nos métodos truculentos usados pelo poder público para a manutenção da

ordem: “Quando você for convidado pra subir no adro / Da Fundação Casa de Jorge

Amado / Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos / Dando porrada na

nuca de malandros pretos / De ladrões mulatos / E outros quase brancos / Tratados

como pretos“ (Veloso e Gil – “Haiti”). Caetano exprime um certo otimismo: chega a

escolher nas eleições a pessoa certa: “A mim me bastava que um prefeito desse um

jeito / Na cidade da Bahia / Esse feito afetaria toda a gente da terra / E nós veríamos

nascer uma paz quente” (”Vamos comer”).

77
Rodrigues, Nelson António Dutra. Os estilhos literários e letras da música popular brasileira. São
Paulo, Arte&Ciência, 2003, p. 58. Além dos elementos barrocos na canção “Triste Bahia”, no livro está
analisada ainda a letra “Fora da ordem” de Caetano Veloso.
78
Ibidem, p. 59.

66
A pessoa certa podia ser Gilberto Gil que até queria candidatar em fins da

década de 80 para o cargo de prefeito da cidade de Salvador. Mas o governador da

Bahia de época, Waldir Pires não aprovou a candidatura de Gilberto para o prefeito e ele

podia candidatar só para vereador. O poeta fez uma canção que pode servir como a

polêmica com seu rival - governador, mas também como a crítica dos eleitores que se

interessam mais em títulos, riqueza dos candidatos e relações tradicionais do poder,

antes de preferir o próprio programa político: “Pra prefeito, não / E pra vereador: /

Pode, Waldir? Pode, Waldir? Pode, Waldir? / Prefeito ainda não pode porque é cargo

de chefia / E na cidade da Bahia / Chefe!, chefe tem que ser dos tais / Senhores

professores, magistrados / Abastados, ilustrados, delegados / Ou apenas senhores

feudais / Para um poeta ainda é cedo, ele tem medo / Que o poeta venha pôr mais lenha

/ Na fogueira de São João / Se é poeta, veta! / Se é poeta, corta! / Se é poeta, fora! / Se

é poeta, nunca! / Se é poeta, não!” Dessa primeira experiência política, não plenamente

bem sucedida para Gilberto Gil, surgiu um livro escrito em parceria com o antropólogo

e amigo Antonio Risério, intitulado O poético e o político e outros escritos.

67
8. Considerações finais

Neste trabalho tentamos identificar como a origem baiana se espelha nas letras

de Caetano Veloso e Gilberto Gil, compositores considerados umas das maiores

autoridades do mundo da MPB, não somente por suas habilidades musicais, mas

também por causa da extraordinária qualidade da poesia deles.

Apresentamos alguns traços básicos da cultura baiana, explicamos os conceitos

básicos da baianidade e mencionamos brevemente a posição da Bahia na MPB. Sem

tudo isso seria difícil desdobrar o discurso sobre a baianidade na obra dos dois músicos.

Também os acontecimentos principais na vida de Caetano Veloso e Gilberto Gil

mereceram a nossa atenção. Por causa de sua originalidade e uma grande repercurssão

não somente no mundo musical, mas também entre os poetas brasileiros, não omitimos

falar sobre o movimento tropicalista, do qual os dois compositors eram representantes

de destaque.

No centro do trabalho analisamos as próprias letras. Seria possível abordar ainda

mais aspectos da baianidade na obra de Caetano Veloso e Gilberto e os temas

trabalhados poderíamos analisar ainda com maior profundidade. Os assuntos

questionados, porém, são suficientes para sabermos como o fato, de eles serem da

Bahia, se reflete em sua poesia. Com certa generalização, podemos dizer que a

baianidade transparece em toda obra e é um dos lados fortes dos dois autores.

Eles continuam a tratar as temáticas típicas para a primeira metade do século

XX, como a alegria, expressão exemplar das festas baianas, especialmente do carnaval,

ou a familiaridade do povo baiano. Não se esquecem de cantar a sensualidade das

mulheres baianas, como fazia com muito sucesso já Dorival Caymmi. O terceiro pilar

68
da baianidade, a religiosidade, se concentra principalmente na descrição dos rituais dos

cultos afro-baianos, o que não foi muito comum na época anterior, por causa da certa

marginalidade dessas religiões. Nas letras de Caetano e Gil, vemos também a celebração

da cidade de Salvador e da originalidade da Bahia em geral.

Gilberto Gil às vezes diz que “a Bahia faz brotar nele um lado frágil, de

menino”.79 Isto não significa, porém, que ele, da mesma maneira como Caetano, feche

os olhos em frente de muitos problemas baianos. A Bahia não é só Salvador cheio de

primazias, não é só a mística do carnaval ou a terra do candomblé. Os dois poetas

acrescentam ao temas baianos alguns novos que já não falam da Bahia em superlativos e

apresentam-nos aquele lado escuro desse estado. Este novo tema é, por exemplo, a

crítica social, principalmente da pobreza. Veloso e Gil não temem explicitar também os

problemas relacionados ao poder como o populismo, clientelismo e autoritarismo.

Tendo contribuindo para o discurso da baianidade com essa temática, Caetano Veloso e

Gilberto Gil ajudaram a complementar a imagem da Bahia que não permanece intacta e

sedutora, mas torna-se mais verdadeira.

79
Fred de Goés, op. cit., p. 82.

69
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<http://www.dicionariompb.com.br>

72
Anexo
Letras de Caetano Veloso 31. Two Naira fifty Kobo
1. A Verdadeira Baiana 32. Um Dia
2. Acrilírico 33. "Vamo" comer
3. Adeus, Meu Santo Amaro Letras de Gilberto Gil
4. Atrás do trio elétrico 1. Atrás do trio
5. Bahia, Minha Preta 2. Axé, Babá

6. Beira Mar 3. Babá Alapalá


4. Back in Bahia
7. Beleza pura
5. Bahia de todas as contas
8. Branquinha
6. Balé de Berlim
9. Cara a Cara
7. Bem Devagar
10. De Palavra em Palavra
8. Buda Nagô
11. Este Amor 9. Cada Tempo Em Seu Lugar
12. Itapuã 10. Cantiga de Ninar Moreno
13. Marinheiro Só 11. Cidade do Salvador
14. Milagres do povo 12. De Bob Dylan a Bob Marley
15. Muitos carnavais 13. Doce carnaval (Candy all)
16. Neide Candolina 14. Domingo no Parque

17. O bater do tambor 15. Emoriô


16. Eu Vim da Bahia
18. Odara
17. Extra
19. Onde O Rio É Mais Baiano
18. Fechado pra balanço
20. Os Mais Doces Bárbaros
19. Filhos de Gandhi
21. Outras Palavras
20. Iniciática
22. Qual é, baiana? 21. Jubiabá
23. Quem me dera 22. Ladeira da Preguiça
24. Quero ir à Cuba 23. Lavagem do Bonfim
25. São João, Xangô Menino 24. Logunedé
26. Sim/Não 25. Madalena

27. Sugar Cane Fields Forever 26. Ningém Segura Este País

28. Terra Trilhos Urbanos 27. Ó, Maria


28. Pode, Waldir?
29. Triste Bahia -com Gregório de Mattos
29. Pretinha
30. Tropicália

73
30. Réquiem pra Măe Menininha do 32. Tradição
Gantois 33. Um carro de boi dourado
31. Toda Menina Baiana 34. Haiti - com Cateano Veloso

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