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Filozofická fakulta
Gilberto Gil
(závěrečná magisterská práce z Portugalského jazyka a literatury)
Jana Zrníková
2
A baianidade nas letras de Caetano Veloso e
Gilberto Gil
Augusto de Campos
3
Índice
1. Introdução..................................................................................5
2. A cultura baiana na perspectiva histórica...................................8
3. A baianidade.............................................................................16
4. A Bahia na MPB......................................................................22
5. As biografias............................................................................25
5.1. A biografia de Caetano Veloso.............................................25
5.2. A biografia de Gilberto Gil...................................................28
6. O tropicalismo..........................................................................31
7. A baianidade de Caetano Veloso e Gilberto Gil......................39
7.1. Alegria...................................................................................40
7.2. Festas.....................................................................................42
7.3. Religiosidade.........................................................................46
7.4. Sensualidade..........................................................................54
7.5. Saudade da Bahia..................................................................56
7.6. Primazia.................................................................................57
7.7. Os lugares da Bahia e de Salvador........................................61
7.8. As personalidades baianas.....................................................63
7.9. Os lados negativos dos baianos.............................................65
8. Considerações finais.................................................................69
Bibliografia..................................................................................71
Anexo...........................................................................................74
4
1. Introdução
musical. São raras, por exemplo, as pessoas que não sabem que o samba provém do
Brasil. Outro estilo tipicamente brasileiro é a bossa nova. A bossa nova conquistou o
mundo na primeira metade dos anos 60 do século passado, com sua leveza e a batida
típica, mas não foi a última contribuição do país tropical para a variedade musical. Os
“ismo” tipicamente brasileiro”1, não se limitou apenas à música, mas foi essa que
superou as outras manifestações tropicalistas e que com suas letras acendeu também o
grande interesse por parte dos críticos literários ou dos próprios poetas. O distinguido
poeta, tradutor e crítico literário Augusto de Campos afirmou, em fins dos anos 60, que
o que melhor estava se fazendo em poesia no Brasil estava sendo produzido por
1
Assim é chamado por Sylvia Helena Cyntrão no prefácio do livro A forma da festa – tropicalismo: a
explosão e seus estilhaço. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2000, p. 6.
5
deixou vestígios em sua obra poética. Vamos tentar identificar alguns dos principais
assuntos e idéias baianos propostos pelos compositores ao longo de sua criação artística,
sem usar nenhum limite periódico, esforçando-se tanto por identificar o sentido das
letras das canções em sua totalidade quanto por a analisar detalhamente cada fragmento
É, porém, preciso destacar que a obra dos dois artistas não é a poesia em stricto
senso. Antes pode ser designada como a poesia da canção. A designação “poesia“ tem
aqui seu fundamento porque a presença dos elementos literários na linguagem da canção
muitas afinidades, mas não são exatamente iguais. A avaliação literária das letras da
letra é a parte de um todo (a canção) e deve estar em sincronia com o código musical,
parte. Feita para compor a unidade com o elemento musical, os dois se influenciam
origem, texto e música são inseparáveis.2 Portanto é claro que a análise trazida nesse
trabalho tem certos limites e não pode exprimir toda a riqueza da canção, a irrepetível
Apesar de ser muito ampla a literatura sobre Caetano Veloso e Gilberto Gil,
dedica-se quase toda a outros aspectos. A única fonte, que se aproxima do problema
determinado por este trabalho, é a tese de Anes Francine de Carvalho Mariano com o
título A arte de ser baiano: segundo as letras das canções da música popular 3, mas a
2
Para saber mais sobre as especifidades da análise da letra ver: Perrone, Charles A. Letras e letras da
música popular brasileira. Rio de Janeiro, Elo Editora, 1988, p. 11-22 e Goés, Fred de. Gilbeto Gil.
Literatura comentada. São Paulo, Abril Educação, 1982, p. 15.
3
Mariano, Agnes Francine de Carvalho. A arte de ser baiano: segundo as letras das canções da música
popular. Tese de doutorado da UFBA, Salvador, 2001.
6
tese, abrangendo um período do inteiro século XX, só traz percepções básicas ao tema
sem grande profundidade. Outra obra, com o título prometedor A presença da Bahia na
música popular brasileira de Luiz Américo Lisboa4, limita a sua pesquisa só ao ano de
1964, quando os músicos por nós analisados ainda não lançaram nenhum disco LP.
Somente uma breve menção ao nosso tema é trazida por Felix Ayoh’omidire em sua
que tentar fazer o mosaico dos estilhaços encontrados nos depoimentos de Caetano
Veloso e Gilberto Gil e na literatura secundária sobre eles. Não podemos esqueçer,
porém, as próprias letras, que se tornam a fonte fundamental e o objeto deste trabalho.
brevemente a cultura baiana porque ela tem muitas especifidades e sem esse
seguir, vamos questionar o conceito da baianidade de vários ângulos – o que esse termo
significa para os baianos, para outros brasileiros e, para completar, queremos também
trazer „o olhar de fora“. Antes de começar com o núcleo do trabalho, com a análise dos
mencionar como se a baianidade refletiu nas letras dos compositores mais antigos, com
4
Lisboa Júnior, Luiz Américo. A presença da Bahia na música popular brasileira. Brasília,
MusiMedLinha Gráfica Editora,1990.
5
Felix Ayoh’omidire. Yorubanidade mundializada: o reinado da oralitura em textos yorubá – nigerianos
e afro-baianos contemporâneos. Tese de doutoramento da UFBA Salvador, 2005.
7
2. A cultura baiana na perspectiva histórica
Tratando da cultura baiana, o mais importante é salientar o fato que ela não é
diferente do interior, por exemplo, da região do rio São Francisco. Até para um
estrangeiro que visita esta zona, as diferenças entre as regiões visitadas na Bahia são
nítidas. A culinária de cada lugar na Bahia tem seu sabor próprio, o sotaque dos baianos
difere de um lugar para outro, assim como a música tocada nas ruas tem seus ritmos
variáveis.
Portanto falar sobre uma cultura baiana é impossível. Mas o que então entender
cultura baiana é, para este texto, entendida, conforme a definição de Antonio Risério,
Bahia, que tem como principal núcleo urbano a tradicional Cidade do Salvador da
vamos falar sobre a contribuição de várias nações para a constituição da cultura baiana.
século XVI, apesar de exercer a política da dizimação, não conseguiram extirpar toda a
bastante notável. Além de Caymmi, também Caetano Veloso notou essa herança do tupi
6
Risério, António. Bahia com „H“. In: Reis, José João (org.). Escravidão e invenção da Liberdade. São
Paulo, Ed. Brasiliense, 1988, p. 146.
8
e compôs a melodia “Two Naira fifty Kobo” com letra sequinte: “a força vem dessa
marcas de sua cultura (por exemplo, o centro de Salvador com seus sobrados pode-se
única língua oficial do Brasil inteiro. Em 1549 fundaram Salvador. A cidade já foi
planejada pelo governo português com fins transnacionais e não evoluiu, como era
Mattos, que “bebeu o mel dos engenhos nos lábios grassos das negras”.7 Nos séculos
XVI e XVII, Salvador era a maior cidade europeia fora da Europa, mas também o maior
Nos séculos XVI e XVII (depois da proclamação da lei de 1570 que proibira a
escravatura dos índios), por conta do tráfico de escravos, apontaram na Bahia os povos
obra deles ficou imprescindível para a indústria açucareira. A partir dos fins do século
Pelourinho, que se mantém até o presente e que, além da função religiosa e social,
7
Risério, António. Avant-garde na Bahia. São Paulo, 1995, p. 157.
9
contribui à divulgação da cultura negra. As línguas bantos têm presença marcante nos
falares populares ─ foram eles que deixaram no léxico baiano as palavras como dendê,
no carnaval de fins do século XIX, com entidades como os Pândegos da África; foram
O fluxo dos bantos para a Bahia pára nos fins do século XVIII, quando teve
Benin, identificados como jêjes, e dos iorubás, conhecidos também como nagôs. Por
terem vindo em grande número e pelo intercâmbio constante com a costa ocidental
central entre as culturas africanas. Já naquela época a Cidade da Bahia era o caldo
misturados pelos senhores de engenho, para que não houvesse a concentração das
pessoas da mesma nação, a fim de evitar uma revolta organizada. Então, misturaram-se
várias nações e a cultura deles com culturas diferents. Com a superioridade numerosa
institucionais religiosas, animadas por uma recente memória”.8 Mas entende-se que a
demográfica da região. A Bahia ficou quase inatingida por aquilo que, da perspectiva da
10
imigração iberiana, que não mudou seriamente a distribuição das nações e cultura
instalada na Bahia).
Até a proclamação de lei que proibiu o tráfico dos negros, em 1851, chegaram à
Bahia negros de várias nações para que trabalhassem como escravos nos engenhos
baianos e nos campos de tabaco. Mas os grandes dias do açúcar acabaram com o
Europa e com o incremento dos engenhos de açúcar no Caribe. E chegou mais um golpe
– a descoberta do ouro nas Minas Gerais, no último decênio do século XVII. Mesmo ao
longo da primeira metade do século XVIII, em favor de suas funções de porto comercial
e centro político, Salvador era ainda a mais importante, rica e populosa cidade do
Império português, depois de Lisboa.9 O que mais humilhou a vaidosa Cidade da Bahia
foi a mudança da capital para o Rio de Janeiro, que ofereceu as melhores possibilidades
para o comércio do ouro, em 1763. Esta mudança, bem como a instalação da sede da
isolamento mantém a arcaica trama produtiva que não foi muito atingida pela alteração
revolucionária nas relações trabalhistas com a “Lei Áurea” de 1888 o que acelera seu
Salvador até deixa de ser o centro regional, com Recife assumindo o comando das
9
Risério, António (1988), op. cit., p. 147.
10
Ibidem, p. 151.
11
A este propósito, fala-se às vezes de “enigma baiano”. A Bahia não teve lugar na
elementos que teve influência nessa alteração mais acentuada nos modelos relacionais
tropicália. Até podemos dizer que se criou uma atmosfera de efervescência cultural
Glauber Rocha.
Federal da Bahia, em 1946, que foi dirigida pelo reitor Edgar Santos. Ele foi uma peça-
Esta afirmação pode ser ilustrada pelas palavras de Gilberto Freyre, o importante
antropólogo brasileiro: “Encontrei, o ano passado, a Bahia ainda mais cheia que nos
anos anteiores do espírito universitário que vai comunicando à sua vida e à sua cultura
magnífico não se vem limitando a dar novo ânimo ao sistema universitário baiano,
Mas, como fica claro da citação de Gilberto Freyre, a Universidade não ficou encerrada
em si; Egdard Santos planejava grande difusão da Universidade rumo à Cidade. Por
11
Apud: Risério, António (1995), op. cit., p. 78.
12
exemplo, na abertura dos Seminários Internacionais de Música, realizados em 1958, o
Universidade foi muito inovadora – em 1956, por exemplo, abriram ali o único curso de
polonesa Yanka Rudzka, uma das pioneiras da dança moderna no Brasil, o convite do
reitor foi aceitado pelo músico alemão Hans Koellreutter, que tornou o Seminário da
proposta do pensador português Agostinho da Silva, foi pela UFBA criado o Centro dos
uma das fontes da inspiração para Caetano Veloso e Gilberto Gil e os dois elogiam-no
baiano. Na cidade foi estabelecido o Cineclube baiano, decisivo para a divulgação dos
Glauber Rocha.14 Sob o comando de outra estrangeira, arquiteta italiana Lina Bo Bardi,
foi construída outra instituição extrauniversitária, o Museu da Arte Moderna, que é uma
década de 50 e 60, para o grupo dos artistas como Glauber Rocha, Gilberto Gil ou
12
Ibidem, p. 41.
13
Como aponta o nome do músico, ele é da origem tcheca.
14
Mais uma alusão ao ambiente tcheco: o filme Barravento de Glauber Rocha foi agraciado, em 1962,
com o prêmo de melhor filme de diretor estreante no festival de Karlovy Vary.
13
Maria Bethânia, ouçamos as palavras de Caetano Veloso: “Todos dessa geração
devemos muito ao reitor Edgard Santos, devemos enormemente a dona Lina [Bo
Salvador. Mas os negros não ficaram fora da agitação cultural da época, apesar de não
falar a seguir.
cultural da Bahia. Como já foi o caso dos artistas e pensadores citados, muitas delas
busca de uma cultura vital, de raiz negroafricana, o francês Pierre Verger decidiu morar
freqüentar este mundo e em suas fotografias apanhava a vida dos negros baianos. Sem a
Carybé, achou a fonte da inspiração no mundo dos rituais afro-brasileiros, nos orixás e
no folclore dos baianos. Ele também veio de longe por causa das referências da Bahia
nos livros de Jorge Amado e, apesar de não ser baiano, ele é considerado o maior
Amado, que não pode faltar, juntamente com Dorival Caymmi, na lista dos nomes que
15
Apud: Risério, António (1995), op. cit., p. 137.
16
Uma das exceções é justamente Gilberto Gil.
14
Graças ao trabalho das personalidades como Verger ou Carybé, na década de 70
desenvolve-se a propagação da cultura negra junto com a criação dos blocos afro,
organizações comunitárias dos negros, como Ilê Aiyê e Olodum. A cultura negra já não
vandguardista nos anos 60, constrói a cultura baiana contemporânea, talvez a mais
3. A baianidade
Gil não pode ser feita sem o esclarecimento do conceito de „baianidade“ que pode ser
„o que faz ser baiano“. Mas novamente queremos sublinhar que essa baianidade diz
15
respeito apenas à cidade de Salvador e ao Recôncavo da Baia de Todos os Santos com
as cidades históricas como Santo Amaro da Purificação, Cachoeira, São Felix e outras.
num dos dicionários da língua portuguesa, no Aurélio. Lá podemos ler: “1. Maneiras,
atitudes, sentimento, próprios de baiano. 2. Amor intenso à Bahia, à sua gente, aos seus
parecem mais explícitas e vêm à cabeça de muitas pessoas logo quando pensam na
Bahia a nas características do baiano típico. Mais acertado nos parece a alegria que é a
A sensualidade dos baianos poderia ser às vezes trocada até pela sexualidade, e o
sexo não pode estar fora da pauta da baianidade. O assunto sempre esteve associado à
16
do Sul e também entre os estrangeiros. Muitos deles escolhem a Bahia só por causa
a primazia. Os baianos se sentem muito orgulhos de sua maior cidade que é cheia de
capital do Brasil, „a primogênita de Cabral“ 18. Stefan Zweig, com seu olhar europeu, foi
enfático: „A Bahia é para o Novo Mundo o que para nós são as metrópoles
passado, costumes e tradições. Nenhum outro estado brasileiro aprecia tanto as tradições
sensação de diferença. Milton Moura disse o seguinte: „Parece que um dos itens da
contrástica, etc, etc. Mas a própria diferença, como módulo, é um valor para os
baianos…não?“20
todos os baianos e passam a ser algo como a marca registrada da Bahia. Essas
construções são muitas vezes utilizadas, por exemplo, pela Bahiatursa (principal órgão
responsável pelo turismo na Bahia), como atração para turistas (e eles mesmo vêm a
Salvador para ver a primeira capital do Brasil, curtir as festas, admirar as belas baianas
enraizadas no pensamento dos brasileiros, assim como dos estrangeiros, que se afinal
18
Risério, António. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo, Perspectiva, 1993, p. 113.
19
Apud: Risério, António (1993), op.cit., p. 113.
20
Moura, Milton op. cit., p. 68.
17
Todas as características atribuídas aos baianos nos parágrafos anteriores são
positivas. Será que o baiano é sem jaça? Claro que não. A visão brasileira da Bahia e
dos baianos é carimbada por uma certa ambivalência. A Bahia com seus habitantes não
migratórias dos nordestinos para São Paulo, que foram recebidas na metrópole sulista
representante mais visível dos nordestinos foi o baiano. Até surgiu a nova palavra com
desleal, suja; sujeira, patifaria“. Essa visão do baiano permanece nos Estados do Sul até
imigrantes, mas pode significar também o preconceito racial porque o baiano tem
sangue negro na veia. E justamente o rótulo que mais irrita os baianos é a fama de
diligência, empenho, indústria e celeridade com que tudo se faz. 21 Mas a visão
Tudo que foi dito acima é a imagem da Bahia mais aceita entre os brasileiros a
também os estrangeiros e é necessário dizer que se trata de uma imagem criada, fala-se
21
Especialmente Dorival Caymmi, além de suas músicas, que refletem um ritmo lento e motivos da vida
sossegada da Bahia, com sua fala lenta e muitos depoimentos sobre sua pregiça, ajudou a construir esse
mito.
18
até do mito da Bahia. Mesmo nesse sentido pronunciou-se sobre a Bahia Caetano
“Olha, vou começar falando da Bahia porque é o que mais sei, eu sou de lá...Tem o
seguinte: há um número muito grande de bons artistas, na música ou nas outras
áreas, que são baianos. Por outro lado, a Bahia foi a primeira capital e tem ainda
hoje vários bairros onde a arquitetura é interessantíssima, e é uma cidade com
maioria dos negros no Brasil, é uma cidade basicamente negra, a gente pode dizer.
Então, é uma cidade que desperta sempre...por exemplo, no tempo do teatro de
revista todo show tinha que terminar com uma homenagem à Bahia. As escolas de
samba volta e meia desfilam com um enredo sendo Bahia, e há milhões de músicas
feitas sobre a Bahia, e há todo um mistério, um mito e um folclore em torno da
Bahia, porque a Bahia ficou sendo como uma raiz, como sendo um lugar...onde o
Brasil é mais profundo, essa coisa toda. Por causa desses elementos e da
mitificação que esses elementos receberam, não é? Então, num país basicamente
sem raízes, se você for comparar qualquer país da América com os países europeus
ou com países africanos, você vai notar que a América toda é uma cafonada de
cima e baixo, ou seja, é um continente sem passado, né? O passado americano
resume-se no aniquilamento das nações indígenas, né? Claro que também no que
veio depois disso, ou seja, na colonização europeia, inglesa, espanhola, francesa,
holandesa ou portuguesa, e na importação de escravos e este detalhe é da maior
importância neste nosso continente. Então, você...eu tô falando como se soubesse,
meio professoralmente, mas não é isso...são coisas que passam na minha cabeça e
eu vou falando...Você tem permanência de uma língua européia, uma continuação,
mas já em outras condições que as de uma cultura européia, entendeu? Então isso
dá uma bagunça danada, você tem ao mesmo tempo fossas, o americano tem
fossas, o americano todo ele, do Canadá a Patagônia, fossas por falta de raízes,
fossas de importação, necessidade de afirmar o caráter nacional artificialmente,
coisa que não acontece na Europa, tá entendendo? Quer dizer, isso é uma visão que
eu tenho. Sei pouco de história, mas é o que sinto nas coisas de agora, talvez nem
seja isso historicamente, mas é uma maneira de dizer o que vejo atualmente. Então,
a Bahia, no Brasil, tem feito um pouco esse papel de mito de raiz, tá entendendo?
Eu não quero desmentir não, acho que a Bahia tem força, é um lugar incrível...o
reconcavo baiano é um negócio maravilhoso, mas tenho uma distorção muito
grande pra falar porque sou de lá. Por um lado tô mais apto a falar porque vivi todo
o tempo lá, mas por outro sei que é uma visão distorcida, profundamente ligada ao
lugar. Mas tenho maturidade bastante pra saber que não interessa pra
19
gente...ultimamente vem se falando muito aqui no Sul que a Bahia tem tudo
concentrado, que a Bahia é que vai dizer as coisas, que da Bahia que sai tudo, não
sei o quê.”22
Muitos baianos dizem que a baianidade é uma identidade construída para
mídia que resolveu investir fundo nessa idéia de uma Bahia exótica e embarcou na
supervalorização do que acha que é cultura afrobrasileira porque esta agrada muito e
também vende por causa do exotismo. E a mídia encontra-se nas mãos dos brancos,
portanto podemos dizer que a identidade baiana não é criada pelos próprios baianos
(preponderamente negros), mas pela minoria branca que utiliza o mito do exotismo
ligado ao negro.23 Nesse aspecto podemos unir a baianidade com a identidade afro-
baiana. Mas aqui é necessário mais uma vez salientar que não existe uma marca e não
Exitem duas teorias de construção da baianidade. Uma diz que existe uma Bahia
“endógena” e a baianidade emerge de baixo para cima. Existe o ethos baiano, uma alma
Nos últimos 20 anos vem se constituindo outra teoria, dizendo que isso é um mito
constitutivo da identidade, mas não passa de um mito. Segundo essa teoria, a Bahia foi
construída de fora para dentro porque, em primeiro lugar, ela é uma imagem opositiva
daquilo que foi o Rio de Janeiro no século antepassado. O Rio tornou-se a metrópole,
para São Paulo e nesse momento também São Paulo vai produzir uma forte imagem da
22
Veloso, Caetano. Alegria, alegria. Rio de Janeiro, Pedra Q Ronca, 1977, p. 124-125.
23
Ver: http://www.sbpccultural.ufba.br/index.html
20
civilização, o trabalho, a modernidade, a civilidade e a razão, e a Bahia com seu
É claro que nos encontramos aqui com uma mera estereotipização da Bahia. O
botar sandalinha no pé? Não, é botar tênis Nike. Mas não interessa dizer isso, por que
mística.”25 Parece que o baiano hoje em dia, segundo Albergaria, não é nem católico,
nem segue as religiões afro-brasileiras; não gosta da culinária baiana e de outras coisas
Bahia, que vão se acrescentando e se intensificando pela força da mídia e por isso o
mito da Bahia hoje é tão forte. Aquela baianidade tradicional, aquela cidade praieira,
festeira, que Caymmi canta, que Jorge Amado descreve, que Vergé fotografa e etniciza,
não existe mais. Encontramo-nos na época, quando por causa da globalização muita
gente sente a crise da identidade. Provavelmente por causa disso, muitos baianos
insistem em manter a baianidade viva. Acabamos este capítulo com uma certa
No trabalho a seguir, porém, vamos continuar a usar o termo porque está estreitamente
4. A Bahia na MPB
21
como diz uma canção famosíssima, é também o berço do gênero mais brasileiro: “o
A verdadeira explosão dos temas baianos na música brasileira chega nos anos 30 com o
compositor mineiro Ary Barroso. Ele não visitou a Bahia até 1937, quando já tinha
escrito várias canções com temas baianos, mas isso não lhe impediu imortalizar esta
culinária baiana. Foi ele quem elevou o crédito da Bahia no Brasil inteiro. Clássicas se
tornaram as canções como “Bahia“, o samba “Na Baixa dos Sapateiros“ ou “No
tabuleiro da baiana“.
Ary Barroso fala do ponto de vista de quem visita a Bahia, mas o mais famoso
baiana de Nazaré. Falamos do “querido moço Caymmi”, como foi chamado pelo grande
amigo, o escritor famoso Jorge Amado. Dorival Caymmi nasceu em 1914 e já seu
primeiro sucesso, aos 25 anos, é dedicado à temática baiana. É a música “O que é que a
baiana tem?” que foi gravada por ele juntamente com a maior estrela brasileira daquela
época, Carmen Miranda.27 Desde esse sucesso Caymmi tomou gosto em encantar sua
terra e tornou se assim o maior promotor da Bahia. A prova deste fato pode ser a
26
Nesse respeito, não fica para nós sem interesse o fato que a pessoa que divulgou o invento de Thomas
Alva Edison no Brasil foi o tcheco de origem judaica, nascido em Milevsko u Tábora, Frederico Figner.
Em 1902, ele gravou o primeiro disco brasileiro. E neste disco saíu a gravação da música com o título
„Isto é bom“, da autoria de Xisto Bahia, interpretada pelo artista conhecido pela alcunha Baiano. São
duas referências à Bahia já com a primeira gravação brasileira. Essas, porém, ainda não se ligam à
tematica baiana
27
„O que é que a baiana tem?“ foi incluída no filme da produção americana de Walt Disney, „Banana da
Terra“. Carmen recebeu as instruções de Dorival para dançar a música e dessa maneira surgiu a imagem
baiana de grande artista brasileira. Com essa imagem Carmen levou seu nome à gloria nos Estados
Unidos e depois conquistou o resto do mundo. Para mais informações sobre Carmen Miranda e a vida de
Dorival Caymmi ver: http//:www.dicionariompb.com.br
22
afirmação dos órgãos responsáveis pelo turismo da Bahia, a Bahiatursa, afirmando que
já nos anos 60 Caymmi era campeão em matéria de vender a Bahia para turistas
potenciais. Fazia isso através das canções como “Você já foi à Bahia”, “Saudade da
Bahia”, “A lenda do Abaeté”, “Lá vem a baiana”, “Vatapá”, “Acontece que eu sou
sua predileção em uso do típico azeite de dendê. As letras de Caymmi cantam ainda a
sensualidade das baianas, com as elegantes rendas, colares e balangandãs que lhes
vieram de suas ancestrais nagôs e não esquecem de falar também de Itapuã, o bairro
soteropolitano, que Caymmi optou por sua morada para longos anos. Lá deparou com a
cultura dos pescadores e essa se tornou um dos temas centrais de sua poesia. Sendo
nas tradições, até podemos dizer que é semiparalisada. Na poética caymmiana há lugar
só para a celebração da Bahia, a obra dele é plena de uma Bahia ideal, sedutora, cheia
indesejáveis.
de 272 músicas em que se fala da Bahia, entre 1904 e 1964. Analisando essas canções,
chegamos à conclusão que a maioria se refere aos mesmos aspectos da Bahia como
28
Lisboa Júnior, Luiz Américo. A presença da Bahia na música popular brasileira. Brasília,
MusiMedLinha Gráfica Editora,1990.
23
· A sensualidade dos baianos, mulheres ou homens. Ressalta-se o traje típico da baiana
malandragem do baiano.
sambar.
· O enigma loci de Salvador, com os lugares da arquitetura nobre como a Praça da Sé, o
como fazia Dorival Caymmi. Apareceram apenas raras exceções das letras, na maioria
dos autores sulistas, que ressaltam a preguiça dos baianos (dizendo que estes não
5. As biografias
Não queremos abranger muito amplamente a vida destes músicos baianos, mas
alguns fatos biográficos básicos serão necessários para a compreensão de sua obra.
29
A biografia completa de Caetano, do Dicionário Cravo Albin da MPB, é acessível na Internet: WWW
http://www.dicionariompb.com.br/detalhe.asp?nome =Caetano+Veloso.
24
tradicional produção de açúcar. É filho de Claudionor Veloso – “Dona Canô”, uma
mulher muito admirada em Santo Amaro, e de José Veloso que trabalhou como
funcionário dos Correios e Telégrafos. Tinha sete irmãos, dos quais se destacou também
no campo da música a irmã mais nova, Maria Bethânia. Aos catorze anos, muda-se para
o Rio de Janeiro, onde pôde usufruir desde cedo de seus programas favoritos, como a
música e o cinema.
trabalho de João Gilberto através do LP “Chega de saudade”. Este seria o músico que
mais influência sua trajetória artística, como Caetano afirma: “No João, parece que é
respeito por aquela forma, que ele reconheceu ali, o jeito daquelas coisas se
torna-se amigo do ídolo que já conhecia pela TV, Gilberto Gil, e, em 1964, juntamente
com ele e com Maria Bethânia, Gal Costa e Tom Zé, fazem o show “Nós, por exemplo”
na ocasião da inauguração do teatro Vila Velha, em Salvador, que foi dirigida por
Caetano e que inaugura a carreira dos artistas. Esse show representa um marco
histórico, reunindo pela primeira vez o núcleo que futuramente será conhecido como
Doces Bárbaros. O mesmo grupo apresenta ainda o show “Nova bossa velha e velha
bossa nova”.
Caetano e Gil mudam logo depois ao Sul do Brasil que oferece melhores
acompanhando Maria Bethânia chamada para substituir Nara Leão no show “Opinião”.
E segue o período dos festivais da música. Em 1966, Caetano recebe o prêmio pela
melhor letra da “Um Dia” no II Festival de MPB da TV Record. Grava seu primeiro
30
Dicionário Albin Cravo da MPB. Acessível na Internet: WWW http://www.dicionariompb.com.br.
25
disco “Domingo”, em 1967, no qual inclui a canção “Alegria, alegria”, que é
classificada no quarto lugar no III Festival da Record. Esse Festival foi o ponto de
partida para o movimento tropicalista, movimento que reuniu Gilberto Gil, Torquato
Neto, José Carlos Capinam, Gal Costa ou Tom Zé, às vezes chamado grupo baiano.
Este movimento vai ser analisado mais adiante. Também é nesse festival onde Caetano
chama a atenção dos poetas concretos Augusto e Haraldo de Campos e Décio Pignatari,
que o familiarizam com sua obra e crítica literária de Ezra Pound, James Joyce e
Institucionais, que oprimiram a oposição ao governo, foram lançados. Isso tem grandes
conseqüências para Caetano Veloso. Primeiro, seu samba “A voz do morto” foi
censurado e o disco com a música foi recolhido das lojas. Mas isso é só começo. Dentre
os Atos Institucionais editados, o AI nº5 é tido como mais repressivo e é visto pela
maioria dos jovens como o fechamento dos meios de resistência pacífica ao regime. AI
aplicando este AI, Caetano foi preso juntamente com Gilberto Gil sob o pretexto de
Salvador nos dias 20 e 21 de julho, Caetano Veloso e Gilberto Gil embarcam junto com
suas mulheres, as irmãs Dedé e Sandra Gadelha, para o exílio na Inglaterra. Mesmo no
exílio, produção de Caetano não pára e ele lança pelo selo inglês dois discos.
26
Milton Nascimento, entre outros. No dia 24 de junho de 1974, 10 anos depois do show
“Nós, por exemplo”, Caetano reencontra Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia no
Arte e Cultura Negra, em Lagos (Nigéria) e o encontro com a original cultura africana
fornece vários motivos para seu trabalho. Em abril desse ano, lança seu primeiro livro,
da música e das letras continua e Caetano Veloso torna-se o autor de vários livros, dos
quais mais importante é o livro “Verdade tropical”, um relato pessoal sobre sua visão do
Após mais de 40 anos da carreira, Caetano Veloso continua a ser uma das
músicas. Seu trabalho foi apreciado até no estrangeiro; em 2000, pelo CD “Livro”,
nove anos de idade viveu com o pai, médico José Gil Moreira, e a mãe, professora
primária Claudina, na cidade de Ituaçu, no interior da Bahia, para onde foi com vinte
dias de nascido. Lá começa a interessar-se pela música das bandas da cidade e pelo que
31
A biografia completa de Gilberto Gil, do Dicionário Cravo Albin da MPB, é acessível na Internet:
WWW http://www.dicionariompb.com.br/detalhe.asp?nome=Gilberto+Gil.
27
ouvia no rádio, como Orlando Silva, Dorival Caymmi e Luiz Gonzaga, cuja influência é
notável em vários discos de Gil Gilberto. De volta a Salvador, em 1951, foi morar na
Gilberto, com sua bossa nova se torna uma influência importante para ele e Gil passa a
tocar violão: “Quando o João Gilberto apareceu, eu disse: 'Taí o que eu queria'. E
entrei na bossa nova com ele.”32 Depois de terminar o colégio, inscreve-se no curso de
através desses programas que ganhou a admiração de Caetano Veloso, que mais tarde se
tornou seu parceiro e grande amigo. No início da grande colaboração dos artistas há
dois espetáculos “Nós, por exemplo” e “Nova bossa velha e velha bossa nova”,
Cedo após a formatura, assim como Caetano, também Gilberto Gil muda ao Sul
abandona seu emprego e nos anos seguintes dedica-se apenas à música e participa dos
festivais da música popular, compondo novas e novas canções e também grava, neste
ano, seu primeiro LP “Louvação”. O festival mais importante para sua carreira é o III
pelos Mutantes, uma das músicas mais impactantes do festival, classificada em segundo
lugar. “Alegria, alegria”, de Caetano, classificada em quarto lugar, formaria junto com
inserção de guitarras elétricas em uma música que não era rock. Em 1968, com uma
28
de Andrade, o tropicalismo se concretizou com “Tropicália ou panis et circensis”, disco
conceitual que contou, além de Caetano e Gil, com os Mutantes, Torquato Neto,
Capinam, Tom Zé, Nara Leão e arranjos do maestro Rogério Duprat. A faixa “Geléia
geral”, música composta por Gilberto Gil em parceria com Torquato Neto, teve especial
destaque por representar “uma síntese dos cânones do próprio movimento tropicalista,
presos pela ditadura, partem os dois músicos baianos com suas esposas para o exílio
político na Inglaterra. Antes de partir, Gilberto Gil lança a irônica “Aquele abraço”, uma
1972 e juntam se novamente com Gal e Bethânia, formando o grupo baiano Doces
Bahia”. Volta a descobrir a cultura nordestina sertaneja, que faz parte de sua infância, e
Na década de 70, viaja Gilberto Gil várias vezes à África com a intenção de
natural que essa experiência se reflete depois com maior intensidade na obra dele, como
Mas Caetano Veloso e Gilberto Gil não se restringem apenas à música. Os dois
costumam expressar a sua opinião a todos os problemas que afligem o Brasil. Gilberto
Gil foi o primeiro negro a integrar o Conselho de Cultura da Bahia e exerceu o cargo do
33
Severiano, Jairo, Homen de Mello, Zuza. Canção no tempo. São Paulo, Editora 34, p. 125.
29
presidente da Fundação Gregório de Mattos. Seu interesse pela política sempre foi
grande, tendo sido eleito vereador em Salvador em 1988, ano em que lançou o livro “O
poético e o político”, escrito em parceria com Antônio Risério. Como uma pessoa
cargo de Ministro da Cultura no governo do atual Presidente Luis Inácio Lula da Silva.
6. O tropicalismo
grande parte deles são da Bahia (às vezes o núcleo dos tropicalistas é chamado grupo
baiano), apesar de não fazer da Bahia um de seus temas. Este fato é ilustrado pelas
assunto...”34.
34
Veloso, Caetano (1977), op. cit., p 97.
30
Como já insinuamos nas biografias dos dois músicos, o movimento tropicalista
surgiu em São Paulo após III Festival da Record, onde Caetano Veloso apresentou a
música “Alegria, alegria” e Gilberto Gil “Domingo no parque”. Mas essas canções
vozes do qualquer grupo. Antes eles tentaram explicar de várias formas a novidade das
vezes repetida afirmação do próprio líder do tropicalismo, a inovação teria que ser feita
impulso foi quebrar o antagonismo música de protesto/jovem guarda, como foi, segundo
inserção das guitarras elétricas nas canções de Caetano e Gil, o que ocorreu justamente
no III Festival da Record. Esse fato não foi bem visto pela ala nacionalista da bossa
nova. Portanto, o primeiro impulso tropicalista foi, com a inspiração de arte pop, abrir
urbana, usando muitas citações do mundo externo, de um outro, com fim de questionar
adoção da linguagem universal do rock e esse fato pode ser ilustrado mais uma vez por
35
Apud: Tinhorão, José Ramos. Pequena história da música popular: da modinha à lambada. São Paulo,
Art Edirora, 1991, p. 248.
36
Favaretto, Celso. Tropicália – alegoria, alegria. São Paulo, Ateliê Editorial, 1996, p. 27-45.
31
dificuldades técnicas”.37 Mal aceita por uma parte do público e pela ala nacionalista do
baianos recebeu o apoio decisivo dos grupos mais fechados da música e, o que também
Já foi dito que os poetas, que com maior intensidade mostraram o interesse pela
produção da tropicália, eram os concretistas de São Paulo. Eles descobriram desde logo
realmente um movimento, apesar de, segundo Gilberto Gil: “Tropicalismo surgiu mais
37
Apud: Favaretto, Celso, op. cit., p. 27.
38
Paiano, Enor. Tropicalismo: Bananas ao vento no coração do Brasil. São Paulo, Scipione 1996, p. 44-
48
39
Favaretto, Celso, op. cit., p. 49.
32
de uma preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamente como
um movimento organizado”.40
pop e da música internacional à base de rock. Mas a enumeração das manifestações que
brasileira, dos quais participaram Caetano Veloso e Gilberto Gil, teve a oportunidade de
ver ratificadas as influências que eles sofreram dos espetáculos realizados para o
O filme, que causou maior impacto no ambiente dos tropicalistas, foi o exemplo
da produção do Cinema Novo no Brasil “Terra em transe”, de 1967, dirigido pelo amigo
de Oswald de Andrade “O rei da vela”, encenada pela primeira vez em 1967 em São
Paulo. Essa farsa também contém a questão política, mas com cinismo dedica-se ao
40
Apud: Cyntrão, Sylvia Helena (org.), op. cit., p. 42.
33
sabe, eu compus Tropicália uma semana antes de ver “O rei da vela”, a primeira coisa
Moderna em São Paulo, ele apresentou com seu trabalho intitulado “Tropicália” as
que é frequentemente usada pelos tropicalistas. Pela retomada crítica do kitsch, definido
participação no programa do Chacrinha, rejeitado pela maioria dos músicos sérios, onde
virada do século XIX para XX – é um disco. Com a participação dos baianos Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Rogério Duprat, Torquato Neto, Capinam e
de Nara Leão, musa da bossa nova, e do grupo Os Mutantes foi lançado, em maio de
41
Ibidem, p. 41.
42
Ibidem, p. 43.
43
Ibidem, p. 61.
44
Mais sobre o assunto em: Paiano, Enor, op. cit., p. 44-48.
34
1968, “Tropicália ou panis et circensis”, que exprime, em forma que exige a decifração,
pede uma decifração, concretamente a parte em latim. Essa deve remeter ao tempo do
pão e circo romano, mas a palavra circencis não existe em latim. 45 O título do disco
mostra que tudo começa com humor, no entanto, surge uma questão: é a função da arte
desviar o povo dos seus problemas reais, como acontecia na época romana?
Caetano Veloso. Segundo ele, a canção não tinha nome, mas justificava para ele a
existência do disco, do movimento e também de sua profissão do músico, que ainda lhe
parecia provisória. O nome foi proposto pelo fotógrafo Luís Carlos Barreto que tinha
Oiticica.46
carta de Pero Vaz Caminha, acompanhada pelos sons e ruídos, que imitam os cantos de
pássaros e o rumor da selva.47 Esta introdução antecipa toda a canção que é construída
35
Caetano usa na canção muitas citações, que, como já vimos, é uma das características
carnavalização e descarnavalização.48
A letra da música é composta de cinco estrofes, intercaladas por refrões que dão
“vivas” a elementos nacionais, que também são destacados pela contradição. Nos
refrões temos então as oposições como “bossa” e “palhoça”, onde bossa aponta para o
bairro carioca da classe média e o centro da Bossa Nova “Ipanema” com “Iracema”, a
também algo, que se encontra no estado puro, intato pela civilização. Como a
contradição para a “Bahia”, serviu a Caetano “Maria”, fazendo assim alução ao filme de
Louis Malle com o mesmo título, que faz a referência às mulheres na América Latina.
pronunciação das últimas duas sílabas destacadada, há que se ressaltar a voz dos negros
centro das decisões do país, onde se passa da ação séria e transformadora (eu organizo o
movimento) à ação lúdica (eu oriento o carnaval) e, afinal, à ação oficial e conservadora
48
Esta denominação é usada, por exemplo, por Girlene Lima Portela. Da Tropicália à Marginália: O
intertexto („a que será que se destina“) na produção de Caetano Veloso. Feira de Santana, Universidade
Estadual de Feira de Santana, 1999, p. 78.
49
Morães da Silva, Márcia, op. cit.
36
intercambiáveis por usar exatamente a mesma quantidade de sílabas, com o acento forte
significados diferentes – torna-se antes uma brincadeira carnavalesca. Mas logo depois
o monumento revela o lado repugnante e, neste momento, Caetano Veloso ousa usar
uma contradição mesmo chocante: “e no joelho uma criança sorridente feia e morta /
uma piscina / com água azul da Amaralina / Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis”.
como a imagem da esquerda é vista no Brasil. Há uma alusão à guerrilha, na qual estava
comentário sobre o cenário musical brasileiro: encontramo-nos aqui com duas alusões
grandes cantores Elis Regina e Jair Rodrigues e O Fino da Fossa), e com a citação
da música brasileira e representante da Jovem Guarda: “que tudo mais vá pro inferno”.52
típicos para o tropicalismo. Ele usa-se da ironia, das metáforas e da polissemia como
50
Paiano, Enor, op. cit., p. 34.
51
Franchetti, Paulo Elias, Pecora, Alcyr Bernardes. Caetano Veloso. Literatura comentada. São Paulo,
Abril Educação, 1981.
52
Paiano, Enor, op. cit., p 38.
37
e, ao mesmo tempo, desmontar mitos do nacionalismo ufanista e do Brasil como país
onde tudo acaba em carnaval”.53 Seria possível dedicar ainda muito mais espaço às
nossa questão. Vamos proseguir para a análise dos vários aspectos da baianidade não
centenas das letras de Caetano Veloso e Gilberto Gil, sendo a fonte principal a
Internet.54 Há muitas canções nas quais os dois mencionam explicitamente seu Estado
nas letras dos compositores baianos utilizamos como critério da seleção o interesse por
detalhes. Assim, aos invés de dedicar uma atenção minuciosa a cada fragmento do
enunciado, vamos tentar identificar alguns dos principais assuntos e idéias propostos
38
conjunto das letras. Escolhemos, no entanto, sessenta e oito canções, das quais citamos
são mais visíveis, “aquilo sobre o que se fala” e, de outro lado, os conceitos subjacentes,
os pressupostos que são defendidos, ou seja, “o que se fala” sobre esses temas baianos e
“como se fala”. O objectivo é perceber, além dos temas pautados, quais são as
características com que eles são definidos e que traços positivos entram na
vão merecer uma exploração mais cuidadosa, pela recorrência e atenção com que
força que a manifestação da adesão, a expressão palpável e muitas vezes pública dessa
obediência a essa tradição, já que seguir ou entregar-se a uma tradição é uma forma de
7.1. Alegria
Ser alegre, ou seja, sentir-se bem, satisfeito, expressar esse prazer de viver e
também ser capaz de contagiar os outros com um estado do espírito animado, otimista é,
56
Mariano, Agnes Francine de Carvalho, op.cit., p. 15.
39
possivelmente, reivindicado como a principal característica do “jeito baiano” nas
numerosas músicas. A mais significante das todas que falam de alegria e bom espírito
baiano nos parece a música “Odara”, de Caetano, sem que essa nem uma vez mencione
a palavra “alegre” ou “feliz”: “Deixe eu dançar / Pro meu corpo ficar odara / Minha
cara minha cuca ficar odara / Deixe eu cantar / Que é pro mundo ficar odara / Pra
ficar tudo jóia rara / Qualquer coisa que se sonhara / Canto e danço que dará”. Toda a
letra, ainda mais na junção com a parte musical, exprime a sensação de bem-estar, mas a
chave para interpretar essa canção se encontra na palavra “odara”. O termo “odara” não
tem qualquer sentido definido por um emprego usual em português. O que significa
então? Segundo o próprio Caetano, ele deparou com esse termo durante sua estadia em
“Odara” é uma expressão iorubana, formada pelo pronome pessoal “ó” no qual vem
embutido o verbo “ser” (ele é), mais o adjetivo “dára” que significa “lindo”. 57 É
Veloso teve grande repercussão nos meios artísticos baianos e tornou-se quase uma
moda. Outra gíria que Caetano ganhou durante sua visita a Nigéria é “Two Naira fifty
Kobo”, referente ao preço invariável da corrida de táxi em que se deslocavam com Gil
na metrópole de Lagos. Essa expressão mais tarde virará o título de uma composição
canção “Odara”, a alegria exprimida através da música: “O certo é ser gente linda e
40
Com a rapidez e a ambigüidade própria da poesia, em que se passa de um
com a pobreza e segue esboçando um tratado da filosofia da vida baiana onde a alegria
ocupa o ponto central: “Onde a gente não tem pra comer / Mas de fome não morre /
Porque na Bahia tem mãe Iemanjá / De outro lado o Senhor do Bonfim / Que ajuda o
baiano a viver / Pra cantar, pra sambar, pra valer pra morrer de alegria / Na festa de
rua, no samba de roda / Na noite de lua, no canto do mar” (“Eu vim da Bahia”). Mais
outro exemplo da onipresente alegria na vida dos baianos da caneta de Gil é a canção
“Tradição” onde o autor descreve a Cidade de Salvador no tempo que Lessa era goleiro
do Bahia e encerra com seguintes versos: “Sempre lindo e sempre sempre / Sempre
rindo e sempre cantando”. Aqui e no exemplo anterior, Gil associa, assim como
7.2. Festas
O tema da alegria e dança é intimamente ligado com as festas. Festa é uma forte
expressão do espírito baiano, mas a maioria das festas, tendo a origem religiosa, é
também ligada com outro pilar da baianidade, com a religiosidade. 58 Essa ligação
5856
Acho que esta ligação merece pouco mais espaço. Um fenômeno muito interessante em Salvador e no
Recôncavo são as festas de largo – uma conjunção do sagrado (missa, procissão) e profano (festa
popular), dos campos opostos, embora complementares. A expressão “festa de largo“ já dirige nossa
atenção para o espaço onde tudo deve ocorrer: o fronteiro à igreja, a praça, o largo; mas sem o templo e o
que se passa dentro – aquela parte sagrada, a festa do largo não seria completa. É verdade que, nos dias de
hoje, o número cada vez maior de pessoas participa só da segunda parte da festa do largo, que segue ao
rito - da festa popular com as oportunidades de dançar e beber em abundância em público com a
consagração da sociedade. O ciclo das festas de largo tem o início no último dia de novembro quando
começa a festa de Nossa Senhora da Conceição da Praia (dura até oito de dezembro – o dia da Santa), em
Cachoeira tem no dia 4 de dezembro festa de Santa Bárbara, que no seu sincretismo mistura o cristanismo
e o candomblé e onde, além da missa à Santa, podemos assistir à cerimônia dedicada à Iansã. O ciclo
continua no primeiro dia do ano com a festa de Nosso Senhor dos Navegantes, vem a famosíssima
Lavagem do Bonfim e tudo desemboca na festa maior do ano, no Carnaval. O Carnaval tem o caráter
diferente das festas do largo. As igrejas ficam nesse período fechadas e os foliões ocupam as ruas e praças
para se divertir, sem pensar no conteúdo religioso desse acontecimento – a última ocasião de se divertir e
comer bem antes do jejum e da contemplação nos 40 dias da quaresma. O carnaval se tornou uma festa
secular, já nem podemos atribuir-lhe as características duma festa profana em sensu estrito. As grandes
festividades públicas voltam a ocorrer na Semana Santa, mas essas são bastante diferentes. Passam-se só
no campo sagrado (a igreja ou a procissão) e não contêm o lado profano. Podemos então dividir as festas
baianas em três categorias: 1. festas cujo transtorno se dá tanto dentro quanto fora das igrejas (Lavagem
do Bonfim, festas juninas); 2. as igrejas ficam fechadas e a festividade cinge-se à folia da rua; 3. o evento
tem lugar apenas no interior do templo.
41
podemos observar já na letra anterior de Gil onde ele menciona a Iemanjá, a divindade
trios elétricos pela cidade. Cada trio tem seu grupo de músicos ou um cantor de
Caetano Veloso e Gilberto Gil participavam do evento desde os anos 60 e em sua obra
disco inteiro com as músicas carnavalescas. Sobre elas ele diz: “Eu ainda não fiz um
samba que fosse muito legal pra carnaval, porque as marchas-frevo são mais
estilo do trio elétrico. Fiz “Atrás de Trio Elétrico”, “Deixa sangrar”, “Chuva, suor e
cerveja”, “La barca”, com Moacir, e “Qual é a baiana?”. “Você não entende nada”
também fiz para o carnaval.”59 Por exemplo, numa letra dele chamada “Muitos
verbo, anunciando um modo de ser e agir: “Somos muitos carnavais / Nossos clarins /
Sempre a soar / Na noite, no dia / Bahia / Vamos viver / Vamos ver / Vamos ter / Vamos
Para os baianos a festa precisa ter a qualidade, mas o folião também é avaliado
deixar-se contagiar. Assim, como na argumentação dos compositores mais antigos, onde
os críticos do samba eram taxados de “ruim da cabeça ou doente do pé”, quem não
59
Veloso, Caetano, op.cit, p. 96.
42
participa do carnaval hoje em dia recebe qualificativos também pouco elogiosos, como
os de Veloso: “Atrás do trio elétrico / Só não vai quem já morreu” (“Atrás do trio
elétrico”).
O trio elétrico da Bahia é mesmo tão auténtico que se tornou o tema principal de
muitas músicas. No início, apenas a fonte de som, depois também gerador de luz, o trio
chega a ser definido como sol, elemento central da festa, ao redor do qual tudo orbita:
“Nem quero saber se o diabo nasceu / Foi na Bahia, foi na Bahia / O trio eletro-sol
elétrico e, usando as repetições dos finais das palavras, faz os jogos da palavra que
ainda aumentam a sensação da riqueza e da alegria da festa baiana: “No trio elétrico
rico / Rico, rico, rico, rico, rico deseendoidecer / De alegria, ria, ria, ria, ria / Que a
luz se irradia dia, dia, dia, dia / Dia de sol na Bahia” (“Cara a cara”). Como num
em função do modo de relacionar-se com o trio. Seguir, correr ou dançar atrás dele é a
opção preferida pelos seus fiéis adoradores. Assim faz, como já vimos, Caetano Veloso
e faz também Gilberto Gil: “Tou atrás do trio / Tou atrás do fio pra ligar” (“Atrás do
autoria de Caetano, da música “Chuva, suor e cerveja”: “Quando toda aquela gente /
Reparou que de repente chovia / Trio elétrico tocando Chuva, suor e cerveja / Bahia”.
O trio elétrico é mesmo um fenômeno do carnaval baiano e seu poder é mais uma vez
afirmado nos versos seguintes: “Toda a eletricidade / Trio elétrico é o seu gerador /
da Bahia. Dodô e Osmar são considerados os pais ou inventores do trio elétrico e até os
43
dias de hoje um dos trios traz o nome deles. Caetano presta sua homenagem a esses
minha preta”: “Te chamo Menininha do Gantois / Candolina, Marta, Didi, Dodô e
Osmar”.
nas lembranças de Gilberto Gil: “A primeira vez que pai me trouxe / Pra que eu fosse
batizado / Na religião pagã do carnaval... Eu tive uma febre aquele dia / De alegria, de
euforia, de prazer de viver...Nunca mais perdi o bloco que desce do Candeal / Fui
batizado com doce / Doce no lugar do sal / Papapai cedo me trouxe / Pra brincar o
carnaval” e Gil cita nelas a cidade do interior onde passou alguns anos de sua infância, o
Candeal.
que é o nome de um dos mais famosos grupos de afoxé do carnaval baiano. O afoxé é
um cortejo que sai pelas ruas de Salvador, celebrando os orixás, sendo por isso
conhecido como candomblé de rua. Aqui temos mais um exemplo de ligação das festas
com a religiosidade baiana. Gil chega até ao sincretismo, chamando não só os orixás,
mais também Senhor do Bonfim: “Filhos de Obá / Manda descer / Pra ver Filhos de
Gandhi / Senhor do Bonfim / Faz um favor pra mi / Chama o pessoal / Manda descer /
Pra ver Filhos de Gandhi / Oh! Meu Deus do céu / Na terra é carnaval”.
Gilberto Gil. Ele até dedicou uma música a esse evento importante e na letra faz quase
servida durante a festa ou a típica roupa branca num dia quente do verão baiano:
44
“Lavagem do Bonfim, quinta-feira / Sai da Conceição da Praia a primeira / Talagada
Também esta festa não passou sem que ficasse adaptada nas letras dos compositores
baianos. Gilberto Gil canta: “Aqui estamos reunidos / À beira-mar / Nesta noite de ano-
novo / Nesta festa de Iemanjá / Pra prestar nossa homenagem / De coração” (“De ouro
e marfim”). Na canção “Onde o Rio é mais baiano” Caetano faz certa comparação da
lembra a festa famosa do bairro do Rio Vermelho, da qual não pode estar presente:
”Pensando em Jamelão no Rio Vermelho / Todo ano, todo ano / Na festa de Iemanjá /
7.3. Religiosidade
metade do século XX. Mas, ao contrário da situação no período anterior, já não nos
encontramos com tanta importância dos santos cristãos. Nasce um novo panteão com vigor
nas letras dos dois poetas. São os orixás da tradição afro-baiana. Como já mencionamos, na
primeira metade do século o candomblé ainda era mal visto, mas, mais tarde, a
expressões culturais negras na Bahia, que até as primeiras décadas do século a elite local
45
constante, com a qual os baianos parecem manter um intercâmbio permanente. Um
afro-baiana é dado pela expressiva remissão nas canções aos nomes de casas religiosas,
terreiros, seus sacerdotes, palavras litúrgicas, etnias africanas e arrisca-se até definições de
princípios básicos da religião. A língua iorubá vai ganhando o espaço além dos muros dos
etnicidade.60 Gil, consciente de sua origem da vertente nagô, aborda os diferentes aspectos
da cultura afro-brasileira. Ora retrata as citações vividas pelo homem negro na grande
cidade, ora busca inspiração nos ancestrais africanos, nos deuses mitológicos. Portanto nas
canções com a temática religiosa, que são no caso de Gil muitíssimas 61, encontramo-nos
com os nomes estranhos como “Axé, Babá”, “Sarará Miolo”, “Emoriô”, “Iansã”,
surgiam numa espécie de transe: “...como se a santo fosse rodopiar. E quando ela vem
assim “ô, ô, ô, Axé, Babá”, é como se já estivéssemos num terreiro e estivéssemos todos
incorporados...”62 Na música “Babá Alapá”, que é o pai de santo ancestral africano, ele
trata da perda de suas referências ancestrais, chamando Egum, o espírito dos ancestrais
mortos: “O filho perguntou pro pai / Onde é que tá o meu avô? / O meu avô / Onde é que
tá?...Pai Xangô, Aganju / Viva Egum / Babá Alapá”. Vamos ainda esclarecer o sentido das
outras palavras da canção: Xangô é um grande e poderoso orixá, deus do trovão, retratado
sempre com o machado alado, e Aganju é outro nome para Xangô. Gilberto Gil admite
60
Gil trabalha a temática negra tanto a nível de linguagem, quanto a nível de construção melódica, ou
seja, há casos onde a letra não revela explicitamente a presença dos elementos culturais negros.
61
Gilberto Gil é uma pessoa extramamente ligada à fé. Foi criado na religião católica. Durante o período
de sua prisão e estadia em Londres começou a interessar-se pelas filosofias orientais e, afinal, aderiu ao
candomblé. Um grande número das canções tem um denominar comum: as inquietações existencias do
autor. Em Gil, o estar no mundo, a razão do viver, a morte o momento presente e o porvir são constantes
fontes de inspiração e questionamento e ele busca as respostas com a ajuda das diferentes religiões.
62
Fonteles, Bené. Giluminoso: a po.ética do Ser. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 206.
46
diretamente a sua inspiração no léxico da origem nagô quando canta: “Emoriô deve ser
uma palavra nagô / uma palavra de amor, um paladar / Emoriô deve ser alguma coisa de
lá / o Sol, a Lua, o céu pra Oxalá”. “Emoriô” é uma palavra que funciona como um
mantra, uma espécie de evocação sonora, de inspiração nagô, para saudar a natureza
Mãe Senhora do Ilê Axé Opô Afonjá, no São Gonçalo do Retiro, e Mãe Menininha do
influente que a Bahia já teve, era procurada por chefes do estado, brasileiros e africanos,
artistas e intelectuais os quais ela sabiamente buscou aproximar de sua casa religiosa,
conferindo-lhes cargos e títulos religiosos. Se muito foi escrito sobre o Opô Afonjá, é
provável que ainda mais se tenha cantado o Gantois e sua Mãe Menininha, retratada
sempre como uma mulher muito doce e possivelmente a mãe-de-santo mais querida pelo
povo. As duas são cantadas por Caetano em “Bahia, minha preta” e aparecem como
axé, não esconde nada...Te chamo de Senhora Opô Afonjá / Eros, Dona Lina, Agostinho e
foi o terreiro especialmente próximo dos artistas. A prova disso pode ser a canção-oração
feita exclusivamente para ela por Dorival Caymmi e, o que nos interessa ainda mais, a
canção “Réquiem pra Mãe Menininha do Gantois” composta por Gilberto Gil após a morte
da mãe-de-santo onde o autor revela a sua relação íntima à finada: “Minha mãe se foi / Sem
deixar de ser - ora, iêiê, ô / Dói / Minha alma ainda dói.... Minha mãe se foi / Sem deixar
de ser a Rainha do Trono Dourado de Oxum / Sem deixar de ser / Mãe de cada um / Dos
63
Fred de Goés, op. cit., p. 59.
47
A canção “Logunedé”, que é também o nome de um dos orixás, é muito apreciada
por Gilberto Gil. Como ele afirma: “Eu acho a canção mais especial daquele disco, o
“Realce”. Por tudo, pela canção em si, pelo arranjo, pelo modo como ela foi tratada
musicalmente”. Uma das razões desta importância da “Logunedé” para o próprio autor
pode ser vista no seguinte depoimento, que ao mesmo tempo pode também substituir para
nós a análise da letra e revelar o processo da criação artística de Gil. Tomamos a liberdade
de fazer aqui uma citação longa, porque só esta pode nos mostrar o pensamento do autor e
48
mimo d´Oxum, Mãe? “ Ela dizia: “É o mimo , é mimado, é figura mimada, é o
filho predileto dela”. Eu achava que tinha de ter essa frase, tinha que ter “mimo d
´Oxum”. E aí me lembrava de Moreno 64, pois estava passando uns dias na casa do
Caetano, quando comecei a pensar na música. Sabia que Moreno era de Logunedé
também e me lembrava muito dele. Ele era muito presente para mim como
imagem, quase como se ele fosse o símbolo da entidade. Ele era ainda menino,
travessozinho e, ao mesmo tempo, muito calmo e muito suave. Então, a música é
feita para ele. E ele veio trazando as idéias, porque Moreno também é filho de
Logunedé. Caetano é de Oxóssi. Tudo isso vinha na minha cabeça. E Caetano é
muito meu irmão. A Dedé, que era mulher de Caetano e mãe de Moreno, também
está presente na música. “....Logunedé é dé, é dé, é dé...” É um pouco Dedé
também ali. Tinha várias coisas nessa música. As músicas nascem assim: com uma
vontade de revelar, de vestir, encontrar uma indumentária correta, as vestes certas
para aquela emanação do mistério. Seja em forma de uma emoção muito grande
ou de uma comoção, um sentimento compassivo, de uma compaixão, um
alumbramento, de um enlevo muito grande provocado por alguma coisa ou mesmo
de uma tristeza, de um pesar...Sejam quais forem esses elementos que motivem a
chegada da poesia, a gente fica dando voltas, cercando as palavras, as
referências, pra poder achar um modo, uma fresta, uma brecha por onde se
começar a dizer...As palavras começam a vir à luz. Para poder, então, as palavras
começarem a caber na fôrma, terem formato. Porque aí tem a fôrma da música, a
fôrma do ritmo. Tem essas coisas todas que vão comprometendo, que são como
aquele buraco que você cava na areia da praia, para dali fazer um rego e
construir a ponte. Aquelas artes que a gente faz na areia da praia. Fazer música é
a mesma coisa. Você vai conformando, vai-se trazendo, vão aí aparecer
surpresas...aquelas palavras surpeendentes que, de repente, já no meio do
processo, batem e determinam tudo. Às vezes, reconduzem, refazem o caminho,
fazem você voltar, dar uma volta completa e começat a trilhar a canção por um
outro caminho. Enfim, é muito misterioso o processo de criação.”65
Gilberto Gil expressa de forma muito clara a relação que a religião afro-baiana
estabelece entre seus deuses e os elementos naturais, de onde vem a sua alcunha de
“religião da natureza”: “Pra cada canto uma conta / Pra cada Santo uma mata / Uma
49
canção, aparece a proximidade sincrética que foi estabelecida entre a religião dos orixás
que o Olorum dos africanos para muitos equivale ao Deus dos cristãos.
pôde ficar sem maior reflexão. A habilidade baiana para fundir, misturar, sincretizar não
é um tema novo, já foi cantado na primeira metáde do século XX. O que ocorre, porém,
forma de retratá-la. Um exemplo pode ser a associação até com a religiosidade oriental,
Empunhado por Xangô (Gil – “Um carro de boi dourado“) ou, do mesmo autor:
principiou / A nova idade de ouro da canção / Mas um dia Xan-gô / Deu-lhe a i-lumina-
ção“ (“Buda nagô“). Apesar desses exemplos, na maioria das canções comenta-se o
convívio entre santos e liturgias católicas e negras. Principalmente Gilberto Gil sente a
povos d'África chegaram aqui / Não tinham liberdade de religião / Adotaram Senhor do
Bonfim: / Tanto resistência, quanto rendição / Quando, hoje, alguns preferem condenar
para o baiano, não importando qual for: “Cristo ou Oxalá / Baixa / Santo ou orixá”.
Dos santos católicos o mais citado é, como já vimos, o Senhor do Bonfim. Ele é
considerado o protetor dos pobres e fracos. Isso podemos ver nos versos seguintes:
“Pobre não tem valor / Pobre é sofredor / E quem ajuda / É Senhor do Bonfim” (Gil).
Senhor do Bonfim é convocado por Gilberto Gil na letra recente “Balé de Berlim”,
50
chega a Berlim / Traz um protetor / Senhor do Bonfim”. Afirma assim a importância
dele não somente para os baianos, mas também para todos os brasileiros.
seja na área do léxico (“fala tupí, fala iorubá”) ou na religiosidade, também Caetano
Veloso afirma: “Mamãe eu quero amar / A ilha de Xangô e de Yemanjá / Yorubá igual
menciona um dos santos mais respeitados dos católicos: “Quero ser sempre o menino,
Xangô / Da foguiera de Saõ João”. Caetano Veloso, apesar de não ter descendentes
africanos, canta em toda sua obra o mundo do candomblé porque esse oferece um amplo
repertório dos símbolos, tão preciosos na poesia: “Com a espada de Ogum / E a benção
de Olorum / Como um raio de Iansã / Rasgamos a manhã vermelha” (“Os mais doces
música com o título “Iansã” descreve o orixá feminino, deusa dos ventos, raios,
relâmpagos e tempestade e através ela mostra seu estado emocional interno: “Senhora
do povo”. Além de Xangô, Iansã e Iemanjá, ele fala de Oxum, deusa do amor e ouro, de
Obatalá, que é outo nome para Oxalá e de Ojuobá. A cançaõ deve funcionar como a
Brasil: “Xangô manda chamar Obatalá guia / Mamãe Oxum chora lagrimalegria /
Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia /.../ Quem descobriu o Brasil? / Foi o negro que viu a
51
Muito interessantes são as letras surgidas sob a influência da poesia concreta. 66
Haroldo de Campos, tem grande reflexo especialmente na obra de Caetano Veloso. Nela
uma canção não–usual que foi lançada no disco “Tropicália”. Representa uma fusão da
batmacumbaiéié batmacumbaobá
batmacumbaiéié batmacumbao
batmacumbaiéié batmacumba
batmacumbaiéié batmacum
batmacumbaiéié batman
batmacumbaiéié bat
batmacumbaiéié ba
batmacumbaié
batmacumba
batmacum
batman
bat
bá
bat
batman
batmacum
batmacumba
batmacumbaié
batmacumbaiéié
batmacumbaiéié ba
batmacumbaiéié bat
batmacumbaiéié batman
batmacumbaiéié batmacum
batmacumbaiéié batmacumbao
batmacumbaiéié batmacumbaobá
Bahia. A palavra “macumba” é bastante conhecida, mas o poema está cheio de outras
alusões: bem no centro se encontra “bá” que significa “pai de santo”. No final da
66
Mais sobre a relação da poesia concreta e a obra dos dois compositores em: Santaella, Lúcia.
Convergências: Poesia concreta e tropicalismo. São Paulo, Nobel, 1986; Perrone, Charles. Poesia
Concreta e Tropicalismo. Acessível: WWW
<http://www.plataforma.uchile.cl/fg/semestre2/_2003/musica/modulo4/clase2/doc/tropical_02.doc>
52
primeira e da última linha vemos ”obá” que é um dos ministros do orixá Xangô. 67 Mais,
macumba é aprofundada pela parte musical por que a palavra “bat” é acompanhada pela
desenhos americanos, temos ainda uma alusão aos elementos estrangeiros. É termo “ié-
ié” que designa a música pop internacional dos anos 60. 68 Interessante é também a
formato visual do texto que pode ser concebido também como a capa do batman voante.
obra de Veloso e Gil. Mas os “velhos” deuses católicos não desaparecem e continuam a ser
a referência frequente nas músicas dos dois autores, da mesma maneira como continuam
7.4. Sensualidade
beleza feminina, mas não sempre podemos os objetos do amor, as mulheres cantadas,
identificar com as baianas. Apesar disso, a sensualidade das mulheres da Bahia é para
Gilberto Gil e Caetano Veloso um fato indiscutível, como podemos ver em algumas
músicas. Gilberto Gil faz uma generalização da beleza das baianas: “Toda menina baiana
tem um santo / Que Deus dá / Toda menina baiana tem encanto / Que Deus dá / Toda
menina baiana tem um jeito / Que Deus dá” (“Toda menina baiana”). Uma atitude
semelhante podemos ver na canção “Beleza pura” de Caetano quando cita vários bairros de
Salvador e as belas moças que lá residem: “Moça preta do Curuzu / Beleza pura /
67
Gilberto Gil é um dos obás, com nome Aré Onikoyi, no terreiro Ilê Aié Opô Afonjá.
68
Perrone, Charles A. (1988), op. cit., p. 77.
53
A conversa com uma linda menina, que deve representar a típica habitante preta do
ô / Minha preta gostosinha do Pelô / Me diga que você é meu amor” (Gil). A refência ao
sexo muitas vezes é feita através da gíria, expressões comuns no linguajar popular da rua,
como o adjetivo gostosa, usado para designar uma mulher muito atraente e sensual.
À primeira vista não fica muito claro, mas a canção “Tradição“ pode ser percebida
também como o elogio à beleza da mulher baiana. Veja-se: “Conheci uma garota que era
“barbalho” pode também ser tomado como um adjunto adverbial de intensidade. 69 Nessa
desportivo e social dos mais tradicionais – Baiano, goleiro Lessa do Esporte Clube Bahia,
Sabendo que desde seus oito anos até entrar na UFBA Gilberto Gil viveu na casa de sua tia
em Salvador (então, foi no tempo do governador Balbino), podemos ver nessa letra os
traços autobiográficos: “Pro Largo do Terreiro / Pra onde todo mundo ia / Todo dia, todo
o negro da África, muito típica na sociedade baiana, o autor nesta letra lembra a posição
importante da mulher, que pode ser provada, por exemplo, pela hierarquia do candomblé
onde a mulher ocupa o lugar de destaque. Mas, o que nos importa mais, no capítulo
ser falsa / Salsa, valsa e samba quando quer... A verdadeira é baiana, a verdadeira é
69
Fred de Goés, op. cit., p. 83.
54
baiana, é / A verdadeira é baiana, a verdadeira é baiana, é”. Mais um exemplo da
que exprimem a saudade da Bahia. Muitas delas surgiram durante o exílio na Inglaterra.
É natural que essas exprimem com maior veemência do que as outras a saudade da terra
natal. Tão simples, mas belos, são esses versos escritos por Gilberto Gil no exílio: “Um
pouco da minha grana / Gasto em saudade baiana / Ponho sempre por semana / Cinco
cartas no correio” (“Fechado pra balanço“). Na canção “Back in Bahia”, escrita, como
diz o próprio título, de volta à Bahia, faz a reminiscência à famosa “Canção de Exílio”,
do poeta romântico Gonçalves Dias, justapondo “cá“ e “lá“ 70: “Mar da Bahia, cujo
verde vez em quando me fazia bem relembrar / Tão diferente do verde também tão lindo
dos gramados campos de lá / Ilha do Norte, onde não sei se por sorte ou por castigo dei
de parar / Por algum tempo que afinal passou depressa como tudo tem de passar / Hoje
eu me sinto como se ter ido fosse necessário para voltar / Tanto mais vivo de vida mais
vivida, divida pra lá e pra cá”. Há aqui uma semelhança de atitude de Caetano e Gil em
relação ao exílio nos seguintes versos da canção „Um Dia“: „Eu não estou indo-me
embora / Estou só preparando a hora de voltar“. Caetano ainda canta nesta canção: „No
70
Essa observação é de Fred de Goés, op. cit., p. 40.
55
Mas não só em Londres foram compostas as canções de saudade. Gilberto Gil e
Caetano deixaram a Bahia já em 1966 e portanto não há surpresa que algumas músicas
quem me dera o dia / Voltar, quem me dera o dia / De ter de novo a Bahia / Todinha no
coração / Ai, água clara que não tem fim / Não há outra canção em mim / Que
saudade!”.
da cidade onde ele nasceu e passou a infância, Santo Amaro da Purificação. Na letra
“adolescidade”. Também faz vários trocadilhos que nos devem aproximar de seu
pensamento nostálgico, como, por exemplo: “Acre e lírico sorvete / Acrílico Santo
em “Trilhos urbanos” ou “Adeus, meu Santo Amaro”: “Adeus, meu Santo Amaro / Que
eu dessa terra vou me ausentar / Eu vou pra Bahia....Adeus, minha cidade / Adeus,
felicidade / Adeus, tristeza de ter paz / Adeus, não volto nunca mais”. Vemos que
Caetano com a licença poética rebatiza sua cidade em Santo Amargo e esta proximidade
das palavras “Amaro“ e “amargo“ é utilizada muitas vezes. Outra brincadeira frequente
Amaro, gosto muito raro / Trago em mim por ti, e uma estrela sempre a luzir”. A
mesma coisa ele faz em “Sugar cane fields forever”, cujo título é uma clara alusão à
música dos Beatles “Strawberry fields forever” 71 e onde só a referência a Santo Amaro
71
Gilberto Gil também faz uma paródia de “Strawberry fields forever“ com a música “ChuckBerry fields
forever“, uma homenagem ao músico americano Chuck Berry, um dos mais expressivos precursores do
rock nos anos 50.
56
7.6. Primazia
capital do país. Desse começo do Brasil, passa-se a várias derivações – local onde se
aprende a fazer certas coisas, onde certos sentimentos e hábitos nascem. Com o passar
do tempo, o tema da Bahia como a fonte do tudo não perde sua força – muito pelo
nacional “Bahia – o Brasil nasceu aqui”. 72 A idéia da primazia significa para muitos ao
mesmo tempo prioridade, superioridade e respeito, o que pode ser entendido como uma
Gilberto Gil e Caetano Veloso referem-se com muito prazer a esta primazia da
“Iniciática” de Gilberto sugere já com seu título que algo se inicia, nasce: “O que veio e
ser você / Nasceu aqui / Neste lugar do Plano / Inclinado a dar início / A um movimento
Temos aqui um curioso jogo das palavras para referir-se ao plano inclinado do Pilar,
que está situado no lugar onde a cidade começou a ser edificada, na área ao redor da
Praça da Sé.
72
Mariano, Agnes Francine de Carvalho, op. cit., p. 124.
57
Em outra canção, Gil enumera vários pioneirismos baianos. A Bahia tem
algumas primazias, mas não todas são de bem. Foi primeira na colonização, no
através do trabalho forçado: “Que Deus entendeu de dar a primazia / Pro bem, pro
mal / Primeira mão na Bahia / Primeira missa / Primeiro índio abatido / Também que
Deus deu / Que Deus entendeu de dar toda magia / Pro bem, pro mal / Primeiro chão
da Bahia / Primeiro carnaval / Primeiro pelourinho / Também que Deus deu”. Caetano
Veloso continua no mesmo estilo: “Viva a princesa menina, uma estrela / Riqueza
primeira de Salvador“. Também aprecia a tradição que ainda influencia a vida dos
primeira metade do século XX, diz respeito ao lugar onde surgiu o mais conhecido
estilo musical brasileiro, o samba. Há uma velha disputa sobre essa questão: para
outros juram que foi no Rio de Janeiro. Com muita elegância, Caetano Veloso entra na
homenagem ao Rio, que é o continuador da tradição. Uma das mais conhecidas escolas
semelhantes, por exemplo no samba, na arte, inclusive porque eram baianas as primeiras
mulheres que promoveram em suas casas batuques, dos quais se desenvolveu o samba:
“A Bahia / Estação primeira do Brasil / Ao ver a Mangueira nela inteira se viu / Exibiu-
58
se sua face verdadeira / Que alegria / Não ter sido em vão que ela expediu / As Ciatas
pra trazerem o samba pra o Rio / (Pois o mito surgiu dessa maneira)”.
todos os santos / Foi Bahia pra todos os cantos / Foi Bahia / Pra cada canto, uma
conta...Daquela terra provinha / Tudo que esse povo tinha / De mais puro e de mais
seu” (Gil).
uma característica melhor e portanto também Caetano Veloso e Gilberto Gil revelam em
sua obra a altivez, o orgulho de ser baiano, com maior tradição etc.: “É moda dizer que
o baiano está por cima“ (Gil– “Ninguém segura este país”). Em várias músicas
podemos observar o orgulho com que eles confessam sua origem baiana: „Barra-
Barris-Barroquinha / Ó, Maria / Faz tempo que você sabe / Que eu também sou da
Bahia” (Gil – “O, Maria”) ou “Eu sou da Bahia / Marinheiro só / De São Salvador /
Não sempre a afirmação da proveniência é feita com altivez, mas, apesar disso,
não fica velada e é exprimida com muita clareza, como algo sem que a personalidade do
autor não fique completa. Assim faz Caetano em outra canção intitulada “Branquinha”:
“Eu sou apenas um velho baiano / Um fulano, um caetano, um mano qualquer”. Temos
aqui ainda um depoimento de Ceatano Veloso que nos pode esclarecer sua atitude à
Bahia, como e porque ela espalha-se em seu trabalho. Quando foi indagado se “entende
as suas coisas sem a Bahia, sem a sua existência, a sua formação baiana”, ele respondeu:
“Não, de jeito nenhum. Mas isso é muito complicado, porque tenho nenhum interesse
meu trabalho essa ligação na medida em que ela é efetiva...não como um compromisso
59
de representar uma região...Era preciso que fosse uma descentralização conjugada
falar porque não há outra experiência pra comparar, o que aconteceu comigo, tá
entendendo? Há coisas que são assim necessariamente porque eu sou baiano, mas você
pode transar altíssimo a partir de qualquer coisa, eu acho. Por isso eu tava falando que
me sinto um pouco mal quando se fala em ser baiano como privilégio, isso colocaria
uma nova centralização desagradável, entendeu? A idéia de privilégio é uma coisa que
não me interessa. Privilégio de ter nascido na Bahia, ter vivido tais e tais coisas. Eu
Até quando Gil defende sua independência, como faz na música “Aquele
abraço”, ele reserva um verso para homenagear sua herança cultural, como início de
mesmo traço / A Bahia só me deu régua e compasso / Quem sabe de mim sou eu –
aquele abraço!”.
nome mar e oferecendo assim um amplo repertório dos jogos de palavra. Vimos que
73
Veloso, Caetano, op. cit., p. 128.
60
Caetano citou esse bairro na „Tropicália“, na „Qual é, baiana“ e as referências a
Amaralina não param aqui. No poema surgido sob a influência da poesia concreta “De
palavra em palavra” ele brinca com as palavras, com o som nas combinações incomuns.
Amaralina, onde Caetano morou com sua primeira mulher. Com a enumeração dos
Poeticamente muito sonora é a justaposição dos três bairros que começam com
“barr” feita por Gilberto Gil: “Barra-Barris-Barroquinha / Ó, Maria / Faz tempo que
você sabe / Que eu também sou da Bahia”. Até na música “Domingo no parque”, que
quando Gil localiza a ação para Salvador, nomeando os bairros de Ribeira e Boca do
Rio. Outro elemento baiano é a referência à capoeira, mas temos também a parte sonora
frequente nas ruas de Salvador. Com muito amor canta Gil os lugares tradicionais da
cidade, como a feira popular Água de Meninos, que foi destruída por um incêndio
proposital. Inicia com a confissão da influência poética da cidade: “Na minha terra, a
74
Perrone, Charles A. (1988), op. cit., p. 109.
75
O texto da canção carateriza-se por sua construção cinematográfica, típica para os futuros tropicalistas,
em que, após situar as personagens e descrever o cenário onde a ação se desenrolará, o compositor passa a
narrar os fatos, empregando a técnica de montagem em pequenos flashes. Além de letra e melodia,
Gilberto junta os ruídos, palavras e gritos sincronizados às cenas descritas, evocando realisticamente um
parque de diversões.
61
Um lugar, tanto cantado por Dorival Caymmi, Itapuã, torna-se também o centro
da atenção de Caetano Veloso que compôs a canção com o mesmo título, confiando-nos
o que Itapuã significava para ele na juventude: “Tudo esteve em Itapuã / Itapuã, tuas
luas cheias, tuas casas feias / Viram tudo, tudo, o inteiro de nós / Itapuã, tuas lamas,
de Gil. Ele brinca nela com a oposição da dor e a felicidade, acrescentando ainda outra
A partir dos anos 60, quando mais e mais pessoas começam a reconhecer a
também encontrar uma canção como essa: “E a Bahia só tem uma / Costa clara,
litoral… É por isso que é o azul / Cor de minha devoção / Não qualquer azul, azul…É o
azul que a gente fita / No azul do mar da Bahia / É a cor que lá principia / E que habita
em meu coração“ (Gil e Veloso – “Beira mar“). Mais uma letra de Gil, generalizando as
belezas da Bahia: “Eu vim da Bahia cantar / Eu vim da Bahia contar / Tanta coisa
Opô Afonjá. Também mencionamos os pais do tio elétrico, Dodô e Osmar. Mas a
baianos, a aqueles que influenciaram sua obra. Os destaques são Dorival Caymmi e
João Gilberto. O último, pelos dois compositores considerado o agente decisivo para
62
eles entrarem no mundo da música, é a referência freqüente na obra de Caetano. Por
exemplo, menciona-o na canção “Gente”, onde ele enumera várias pessoas do ambiente
musical ou da própria família: “Quer durar, quer crescer / Gente quer luzir / Rodrigo,
músicas mais conhecidas do rei da bossa nova e confirma assim a importância no ensino
musical dele: “Mas chega de saudade / A realidade / É que aprendemos com João / Pra
sempre ser desafinados”. Dorival é cantado por Gilberto na “Buda Nagô”, Caetano
palmas altas / Mandam um vento a mim, assim: Caymmi” ou na canção juanina: “Viva
(observamos já a referência a Gal Costa, que gravou o disco “Gal canta Caymmi”),
frequentes são também as confissões de Caetano rumo a sua irmã Maria Bethânia.
Interessantes são os versos com os quais ambos se elogiam. Gilberto Gil fica nesse
quadro mais íntimo e situa Caetano no ambiente familiar: “Cacau (=Caetano) já deve
estar voando para o Rio / Moreno está tão bonitinho”, enquanto Veloso em suas
canções menciona seu amigo como um cantor excelente, compara-o com o rouxinol e
aprecia também, junto com outros músicos – João Gilberto e Jorge Benhor, seus
capacidades do poeta: “Quase João, Gil, Ben, muito bem mas barroco como eu /
construindo assim a banda Doces Bárbaros: “Se alguém pudesse erguer o seu Gilgal em
Bethania...”. Esses versos podemos perceber também como uma certa autopromoção.
ambiente cultural baiano. Entre elas não podiam faltar os promotores da vanguarda
baiana, dos quais já falamos: “Te chamo de Senhora Opô Afonjá / Eros, Dona Lina,
63
Agostinho e Edgar / Te chamo Menininha do Gantois”. Estes, segundo a mencionada
Caetano Veloso e Gilberto Gil admitem uma das qualidades negativas, tão
freqüentemente atribuída aos bainos – a preguiça. Apesar de a preguiça não poder ser
em algo necessário para que o resultado do trabalho, do empenho renda os frutos: “Sem
correr, bem devagar / A felicidade voltou pra mim” (Gil – “Bem devagar”) ou “Agora
Devagar” (“Cada tempo em seu lugar”). Também da autoria de Gilberto Gil é a canção
“Ladeira da Preguiça” em que, cantando sobre uma das ruelas de Salvador, confessa sua
preguiça: “Essa ladeira / Que ladeira é essa? / Essa é a ladeira da preguiça / Preguiça
que eu tive sempre “. Claro que ninguém suspeita que Gil ou Caetano sofressem da
preguiça, porque a obra tão ampla não podia surgir sem grande empenho dos autores,
mas a declaração da preguiça nas canções pode servir, então, como a recepção, feita
não é muito freqüente. Quando a pobreza é referida, em geral, é suavizada pela alegria,
fé ou otimismo. Assim fez também Gilberto Gil: “Onde a gente não tem pra comer /
Mas de fome não morre” ou: “Pobre não tem valor / Pobre é sofredor / E quem ajuda é
Senhor do Bonfim” (“Madalena“). Mas Gilberto não foi só eufemístico. Nos anos 80,
com Caetano Veloso foram vozes um pouco destoantes e abordaram alguns dos mais
64
personagem principal do livro de Jorge Amado por excelência baiano nomeado Jubiabá,
Antônio Balduino: “Trava com o destino uma batalha cega / Pega da navalha e retalha
cidade Salvador tem muitos problemas. Um deles é o fato, que desde o fim da
escravidão, a maior parte da população descendente dos escravos ainda não encontrou
canções, como nas letras de Caetano Veloso, que além de citar os problemas referidos,
fez protesto contra a sujeira de Salvador, que durante muito tempo foi considerada uma
Candolina”). Ou, ainda com maior veemência se queixa de Salvador: ”Salvador, isso é
também falou desse tema, e até musicou os versos do chamado Boca do inferno 76:
“Triste Bahia, oh, quão dessemelhante estás / E estou do nosso antigo estado / Pobre te
vejo a ti, tu a mim empenhado / Rico te vejo eu já, tu a mim abundante / Triste Bahia,
oh, quão dessemelhante”. A canção foi gravada em 1972 no disco “Transa”, após o
76
Em 1968, na edição da obra gregoriana, o editor no prefácio escreveu: “O Boca do Inferno está em São
Paulo…Está muito jovem e permanece poeta popular. Pouco mudou no vestido: a cabeleira postiça
quando desembarcou na Bahia…Em vez da viola de cabaça ele empunha uma guitarra elétrica…Seu
verso é quase o mesmo e ele repete em voz desentoada que ainda e sempre é proibido proibir a vida…Do
alto do seu roko, a sagrada gameleira em Opô Afonjá, Gregório de Mattos, pequeno orixá baiano,
observa, sorridente, suas próprias travessuras de Exu cavalgando o menino Caetano Veloso“. Apud:
Risério, António (1995), op. cit., p. 151. Desde aquele tempo, a comparação de Veloso e Gregório de
Mattos já se tornou até rotineira no ambiente intelectual brasileiro e oferece-se muito facilmente: os dois
poetas são baianos, ambos falam a mesma linguagem tropical e desmistificadora. Caetano Veloso até
encarnou o Boca de Inferno no filme Sermões, de Julio Brassane.
65
estrofe da “Triste Bahia”, quarto verso, Caetano troca o verbo “ver” no pretérito perfeito
do indicativo (vi) de Gregório pelo verbo no presente do indicativo (vejo) e faz ainda
afeta o autor, exilado pela ditadura militar, como a realidade brasileira, ambos tocados
Outro aspecto típico para o contexto baiano, que é bastante abordado por
Gilberto Gil e Caetano Veloso, é o abuso do poder político. Quando se fala do poder, é
comprovado nos métodos truculentos usados pelo poder público para a manutenção da
ordem: “Quando você for convidado pra subir no adro / Da Fundação Casa de Jorge
Amado / Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos / Dando porrada na
como pretos“ (Veloso e Gil – “Haiti”). Caetano exprime um certo otimismo: chega a
escolher nas eleições a pessoa certa: “A mim me bastava que um prefeito desse um
jeito / Na cidade da Bahia / Esse feito afetaria toda a gente da terra / E nós veríamos
77
Rodrigues, Nelson António Dutra. Os estilhos literários e letras da música popular brasileira. São
Paulo, Arte&Ciência, 2003, p. 58. Além dos elementos barrocos na canção “Triste Bahia”, no livro está
analisada ainda a letra “Fora da ordem” de Caetano Veloso.
78
Ibidem, p. 59.
66
A pessoa certa podia ser Gilberto Gil que até queria candidatar em fins da
Bahia de época, Waldir Pires não aprovou a candidatura de Gilberto para o prefeito e ele
podia candidatar só para vereador. O poeta fez uma canção que pode servir como a
polêmica com seu rival - governador, mas também como a crítica dos eleitores que se
antes de preferir o próprio programa político: “Pra prefeito, não / E pra vereador: /
Pode, Waldir? Pode, Waldir? Pode, Waldir? / Prefeito ainda não pode porque é cargo
de chefia / E na cidade da Bahia / Chefe!, chefe tem que ser dos tais / Senhores
feudais / Para um poeta ainda é cedo, ele tem medo / Que o poeta venha pôr mais lenha
é poeta, nunca! / Se é poeta, não!” Dessa primeira experiência política, não plenamente
bem sucedida para Gilberto Gil, surgiu um livro escrito em parceria com o antropólogo
67
8. Considerações finais
Neste trabalho tentamos identificar como a origem baiana se espelha nas letras
autoridades do mundo da MPB, não somente por suas habilidades musicais, mas
tudo isso seria difícil desdobrar o discurso sobre a baianidade na obra dos dois músicos.
mereceram a nossa atenção. Por causa de sua originalidade e uma grande repercurssão
não somente no mundo musical, mas também entre os poetas brasileiros, não omitimos
de destaque.
questionados, porém, são suficientes para sabermos como o fato, de eles serem da
Bahia, se reflete em sua poesia. Com certa generalização, podemos dizer que a
baianidade transparece em toda obra e é um dos lados fortes dos dois autores.
XX, como a alegria, expressão exemplar das festas baianas, especialmente do carnaval,
mulheres baianas, como fazia com muito sucesso já Dorival Caymmi. O terceiro pilar
68
da baianidade, a religiosidade, se concentra principalmente na descrição dos rituais dos
cultos afro-baianos, o que não foi muito comum na época anterior, por causa da certa
marginalidade dessas religiões. Nas letras de Caetano e Gil, vemos também a celebração
Gilberto Gil às vezes diz que “a Bahia faz brotar nele um lado frágil, de
menino”.79 Isto não significa, porém, que ele, da mesma maneira como Caetano, feche
acrescentam ao temas baianos alguns novos que já não falam da Bahia em superlativos e
apresentam-nos aquele lado escuro desse estado. Este novo tema é, por exemplo, a
crítica social, principalmente da pobreza. Veloso e Gil não temem explicitar também os
Tendo contribuindo para o discurso da baianidade com essa temática, Caetano Veloso e
Gilberto Gil ajudaram a complementar a imagem da Bahia que não permanece intacta e
79
Fred de Goés, op. cit., p. 82.
69
Bibliografia
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70
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71
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<http://www.dicionariompb.com.br>
72
Anexo
Letras de Caetano Veloso 31. Two Naira fifty Kobo
1. A Verdadeira Baiana 32. Um Dia
2. Acrilírico 33. "Vamo" comer
3. Adeus, Meu Santo Amaro Letras de Gilberto Gil
4. Atrás do trio elétrico 1. Atrás do trio
5. Bahia, Minha Preta 2. Axé, Babá
27. Sugar Cane Fields Forever 26. Ningém Segura Este País
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30. Réquiem pra Măe Menininha do 32. Tradição
Gantois 33. Um carro de boi dourado
31. Toda Menina Baiana 34. Haiti - com Cateano Veloso
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