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1. Introdução
Prezado(a) aluno(a), seja bem-vindo(a)!

Para iniciar os estudos de História e Crítica Musical: Música Brasileira, ouça as


músicas que selecionamos para sua apreciação. Para isso, basta clicar no play.

00:00 00:00

Fonte: músicas referenciadas na Bibliogra�a.

No que você reparou? Provavelmente se deu conta de que você conhecia algumas
dessas músicas; de que algumas eram instrumentais, outras tinham letras (eram
canções) em português e outras línguas; de que tinham ritmos diversos, instru-
mentação variada, algumas sonoridades que estranhamos e outras que nos são
bem confortáveis; de que há gravações produzidas, bem gravadas, editadas e até
"bem maquiadas" e outras rústicas, sem edição e até ruidosas; de que há músicas
antigas, atuais e outras que não saberíamos situar historicamente, músicas que po-
demos dar um palpite sobre de onde sejam ou a quais culturas se relacionam.

Vivemos em um país de dimensões continentais, "Gigante pela própria natureza"


como, em 1831, versou Joaquim Osório Duque Estrada, letrista do nosso hino nacio-
nal.  Para ilustrar essa grandeza, pensemos: o estado do Piauí é maior que o Reino
Unido; Minas Gerais é comparável à Espanha; Mato Grosso à Venezuela; Maranhão
à Itália; Rio Grande do Sul ao Equador, e assim por diante. Já em termos de popula-
ção, São Paulo (o estado mais populoso) é comparável à Espanha; Rio de Janeiro ao
Equador, Goiás à Dinamarca, e assim sucessivamente. Em termos de extensão ter-
ritorial, atualmente o Brasil é o quinto maior país do mundo e em termos de popu-
lação, o sexto.  Com tanta grandeza, é natural que tenhamos uma grande riqueza
cultural, com inúmeras manifestações típicas, tais como: samba, frevo, cho-
ro, Bossa Nova, xaxado, coco, carimbó, congada, catira, toada, moda de viola, mo-
çambique, chula, vanerão, pagode de viola, folia de reis, jongo, ciranda, aboio, mara-
catu, afoxé, xote, axé, funk, MPB, música armorial, boi, entre outros. A lista conti-
nua e vai longe!

Em Querelas do Brasil, os compositores Maurício Tapajós e Aldir Blanc escreveram


que "O Brazil não conhece o Brasil / O Brasil nunca foi ao Brazil". Quanto conhece-
mos do nosso Brasil, de nossos mestres da cultura popular, cinema nacional, litera-
tura, compositores(as), musicistas? Fazendo uma referência direta à  Aquarela do
Brasil, um samba-exaltação de 1939, de Ary Barroso, na música Querelas do Brasil,
os compositores criticam o desconhecimento do Brasil pelos próprios brasileiros,
que talvez estejam mais voltados a culturas europeias e estadunidenses. Vamos
escutá-la?

Veja parte da análise de Túlio Ceci Villaça:

[...] ao conceito de Brasil estendido se contrapõe um conceito de Brazil que também resis-
te a estereótipos: não se trata de uma ameaça externa, mas de uma visão (ou falta de vi-
são) interna. A crítica pela falta de valoração do nacional não corresponde a uma desva-
loração do estrangeiro, e sim pelo não reconhecimento do que se é. Brazil e Brasil são, na
verdade, o mesmo, as duas faces da moeda, ali, alaúde, aqui, ataúde, aquarela/querela,
tentando se reconhecerem mutuamente. No último verso da canção explicita-se: só há o
Brasil, só o Brasil pode socorrer o Brasil contra si mesmo. Se conhecer, se merecer
(VILLAÇA, 2012, n. p.).

 Pronto(a) para saber mais?

Para compreender a relevância da música Querelas do Brasil, faça a lei-


tura da análise da letra apresentada no artigo cientí�co de autoria de
Jussara Dalla Lucca, intitulado   Querelas do Brasil clicando aqui.
(https://www.academia.edu/37367014/QUERELAS_DO_BRASIL)

É tarefa impossível, portanto, delimitar a música brasileira, mas, para valorizá-la, é


preciso conhecê-la. Sabe-se que não é possível dar conta de tamanha diversidade
existente hoje, tampouco historicamente. Faremos o possível para apresentar uma
história da música brasileira (dentre incontáveis possíveis histórias da música
brasileira), conscientes que esta tarefa será incompleta, mas permitirá relacionar
melhor algumas obras e manifestações musicais a alguns movimentos artísticos,
gêneros musicais, manifestações culturais, regiões do nosso país, situando-os ao
longo da história.

O que é "Brasil"?
Certamente você já ouviu que o nome "Brasil" foi dado a partir do pau-brasil, uma
árvore de grande porte, de cor avermelhada (cor de brasa). Ela fez parte da primeira
atividade comercial de exploração pelos colonizadores no século 16 e, hoje, a árvore
continua ameaçada de extinção. Antes de Brasil, este território teve outros nomes,
como Ilha de Vera Cruz e Terra de Vera Cruz (dado pelos exploradores) e
Pindorama (por povos indígenas costeiros que falavam tupi) e estima-se que, no �-
nal do século 15, viviam entre 4 e 10 milhões de pessoas de 1.400 povos distintos,
falando 1.200 línguas diferentes.

Portanto, não se trata da união de povos indígenas com outros povos, mas das rela-
ções que foram sendo estabelecidas nos séculos seguintes com portugueses, espa-
nhóis, holandeses, angolanos, moçambicanos, e assim por diante. Sabemos, entre-
tanto, que tais relações não se deram de maneira harmoniosa. Tal consideração é
importante, pois tais dominações, para além do aspecto físico (morte, tortura, es-
cravidão etc.) também são acompanhadas de dominações culturais (aculturação,
hierarquização etc.) e, portanto, geram re�exos nas relações com música e educa-
ção musical.

Reforçamos que o povo brasileiro é múltiplo e fruto de um complexo e desigual en-


contro de culturas. Portugueses, indígenas e africanos são matrizes amplas e im-
portantes das culturas brasileiras.

O que é música brasileira?


Apesar de considerarmos que música brasileira abarca toda música criada por
pessoas deste território, nesta disciplina, tivemos que fazer escolhas, deixando
muito de fora, seja por falta de registro, desconhecimento (já que o Brasil é tão di-
verso), ou pelos limites do semestre.

Guga Stroeter e Elisa Mori (2020) �zeram uma árvore da música brasileira que
apresenta, de forma grá�ca, uma parte dessa história. Ao longo da vida, podemos
observar cada "raiz", de cada "galho", de perto e descobrir novos mundos musicais
que compõem esta grande árvore.
Figura 1 Uma árvore da música brasileira (https://www.sescsp.org.br/online/edicoes-

sesc/930_UMA+ARVORE+DA+MUSICA+BRASILEIRA#/tagcloud=lista).

Desa�os histórico-musicais!
Uma das di�culdades ao propor um material de estudo de história da música é a
escolha dos registros. Tanto os audiovisuais (LPs/CDs/Streaming, entrevistas, �l-
mes, documentários, vídeos) quanto os literários (jornais, livros, artigos cientí�cos)
existentes não conseguem abarcar a diversidade musical que há no Brasil. Em
contrapartida, há muitos registros e isso exige que façamos uma seleção.

Nesse sentido, as indústrias culturais e grandes mídias exercem um papel contra-


ditório em relação à história da música: por um lado, registram e elegem pessoas,
"ampli�cam" suas vidas e seus fazeres musicais, antes desconhecidos; por outro, as
escolhas podem ter como pano de fundo o que mais dará audiência, o que seria
mais consumido pelo povo, assim, gerando mais lucro, resultando em uma homo-
geneização da cultura, com o ofuscamento de outras culturas.

De forma parecida, também antropólogos e pesquisadores documentaram (e docu-


mentam) algumas práticas, contribuindo para seu registro, porém ainda é necessá-
rio certo cuidado, pois, dependendo de como é conduzido, o olhar "de fora" pode re-
plicar uma visão distorcida (ou enviesada) da prática, divergindo do que é compar-
tilhado por quem vive aquela cultura.  Tudo isso pode acontecer com comunidades
tradicionais, povos indígenas, comunidades rurais ou socialmente marginalizadas.

Cada vez mais há uma intenção de cada cultura contar sua própria história. Quem
vive o  rap  falando do  rap, quem nasceu na aldeia contando sobre ela, quilombolas
contando sobre si, e assim por diante. O  rapper, professor e arte-educador Renan
Inquérito, na música  Poucas Palavras (https://farofafa.cartacapital.com.br/2011/11
/16/em-poucaspalavras-se-a-historia-e-nossa-deixa-que-nois-escreve/), a�rmou:
"Se a história é nossa deixa que nóis escreve" (INQUÉRITO, 2010). Outras iniciativas,
como Vídeo nas Aldeias e pesquisadores(as) interessados(as) em escutar e fazer a
pesquisa com (e não sobre) as pessoas, contribuem para um registro mais legítimo
dessas práticas.

Lembre-se de que gostar ou não das músicas aqui apresentadas não está em questão neste momento. Como futu-
ros(as) (e atuais) professores(as) de música, é importante estar aberto(a) para conhecer a história de cada gênero
musical, conhecer seus(suas) representantes, entender os porquês das músicas, e estudar seu contexto - ciente de
que esta disciplina não dará conta de tudo e que você deverá fazer o trabalho de casa, lendo livros especializados
em uma ou outra cultura ou momento da música brasileira. Assim, em nossas futuras atuações como educado-
res(as) musicais, poderemos transitar entre diferentes culturas musicais, sendo educadores(as) mais versáteis,
melhor preparados(as) para ajudar os(as) estudantes a aprender cada vez mais, e tendo o respeito como base fun-
damental das nossas relações.

2. Informações da Disciplina
Ementa
A disciplina História e Crítica Musical: Música Brasileira contempla a música po-
pular brasileira desde a chegada de D. João VI, em 1808, até os dias atuais. A disci-
plina tem por objetivo elencar principais movimentos, características, artistas e
transformações que abarcam o conceito de música popular ao longo de sua histó-
ria, elucidando como o conceito de música popular foi tratado no meio acadêmico.
Além disso, considera-se importante estabelecer o elo entre a história da música
popular e a história social, política, econômica e ideológica do Brasil. Nesse senti-
do, tem-se a história da música popular dividida em subcategorias como: Brasil
Imperial/República, história do choro, surgimento do fonograma, Época de Ouro,
difusão da música nordestina, Bossa Nova, Era dos Festivais, Tropicalismo, Clube
da Esquina, rock nacional dos anos 80 e 90, Movimento Manguebeat.

Objetivo Geral
Os alunos da disciplina História e Crítica Musical: Música Brasileira, na modalida-
de EaD do Claretiano, dado o Sistema Gerenciador de Aprendizagem e suas ferra-
mentas, serão capazes de compreender como se formaram as primeiras manifesta-
ções da música urbana no Brasil e identi�car as principais tendências e movimen-
tos que construíram a história da música popular e suas principais in�uências en-
tre si e sobre o que os sucedeu.

Ao �nal desta disciplina, de acordo com a proposta orientada pelo professor res-
ponsável e pelo tutor a distância, terão condições de articular os conteúdos com a
prática docente do educador musical.  Para esse �m, levarão em consideração as
ideias debatidas na Sala de Aula Virtual, por meio de suas ferramentas, bem como
o que produziram durante o estudo.
Objetivos Especí�cos
• Compreender as relações entre momento histórico e o fazer musical.
• Conhecer o período em que a música popular brasileira teve um molde, uma
de�nição ou, até mesmo, um rompimento em relação aos paradigmas da épo-
ca.
• Conhecer novas sonoridades e movimentos que marcaram o Brasil.
• Investigar composições musicais atuais no sentido de possíveis "sinais" da
nossa história.
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Ciclo 1 – Músicas indígenas: diversidade e atualidade

Objetivos
• Conhecer dados populacionais e linguísticos relacionados aos indígenas
no Brasil na atualidade.
• Compreender as relações de poder desiguais entre europeus, africanos e
indígenas no processo de colonização do Brasil.
• Conhecer o nome de alguns povos indígenas.
• Entender a diversidade de suas culturas a partir de suas diferentes lín-
guas, histórias, contextos, formas de se vestir, adornar, dançar, cantar.
• Compreender a constante transformação das culturas.

Conteúdos
• Excertos musicais dos povos Tuyuka, Kaingang, Krenak, Guarani,
Kaingang e Xavante e breves contextualizações.
• Troncos etnolinguísticos no Brasil.
• Culturas com gêneros contemporâneos, como o rap e o heavy metal.

Problematização
Atualmente existem indígenas no Brasil? De quantos povos se trata? Suas
culturas permanecem idênticas ao que eram há 500 anos? O que aconteceu
desde então? Onde vivem? Quão diversas são as práticas musicais dos povos
indígenas no Brasil?

Orientação para o estudo


Durante o estudo deste ciclo, você vai se deparar com a indicação de artigos,
músicas e vídeos disponíveis na internet e que o ajudarão na compreensão
do conteúdo. Além disso, encontrará algumas questões que foram propostas
para veri�car sua aprendizagem. É essencial que você dedique um tempo a
ouvir as músicas e, se possível, assistir aos vídeos e realizar as leituras, as
quais contribuirão de forma signi�cativa para a sua formação.

Vamos lá?! Bons estudos!

1. Introdução
Na sua vida escolar, você provavelmente já participou de comemorações do
chamado "Dia do Índio". Você se recorda de como foram essas ocasiões? Quais
músicas foram tocadas? O que foi falado sobre "os índios"?

As datas comemorativas servem exatamente para o que o nome propõe: "co-


memorar", memorar coletivamente eventos importantes, homenagear pessoas
ou celebrar conquistas político-sociais. O dia 19 de abril foi escolhido por lide-
ranças indígenas para ser o "Dia do Índio", pois, nessa data, em 1940, aconte-
ceu o primeiro Congresso Indigenista Interamericano, no México. Torna-se,
portanto, um símbolo para busca de re�exão, valorização e respeito aos povos
indígenas. Daniel Munduruku (da etnia Munduruku), professor e autor de
mais de 54 livros publicados por diversas editoras do Brasil e do mundo, a�r-
ma que:

Da mesma forma que a data pode trazer a oportunidade para o aprendizado lúdico
sobre a diversidade indígena do nosso país, alguns educadores ainda seguem es-
tagnados em práticas que apenas reproduzem estereótipos que não re�etem a rea-
lidade dos povos indígenas na atualidade. As sociedades se atualizam e não há
mais espaço para "brincar de índio". As palavras de ordem agora são conhecimento
e respeito (MUNDURUKU, 2018, n. p.).

É por esse caminho do conhecimento e respeito aos indígenas que damos iní-
cio a este ciclo. Se você ama música, sabemos que irá gostar de conhecer mais
sobre a música de alguns povos indígenas. Para tanto, buscamos selecionar
exemplos que representem uma variedade de musicalidades, ora distantes e
ora mais próximas ao que costumamos ouvir em nosso cotidiano. Esperamos
que se sinta motivado(a) a conhecer mais sobre os povos originários do Brasil,
que, diferentemente do que se costuma a�rmar, são contemporâneos e cultu-
ralmente diversos.

Bons estudos!

2. Povos indígenas hoje


Comecemos com música! Trata-se de Pénkrig Fi Tynh Kãme (diz-se "penkri
�tancam"), do povo Kaingang, cuja "[...] letra conta a felicidade da formiga ao
ver a moça socando milho, pois poderá comer os farelos que caem do pilão"
(PUCCI; ALMEIDA, 2017, n. p.). Perceba como é a pronúncia da língua
Kaingang já que alguns fonemas não existem na língua portuguesa.

Segundo Pucci e Almeida (2017), o povo Kaingang tem uma população de mais
de 45 mil pessoas vivendo em 30 terras indígenas nos estados de São Paulo,
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A língua Kaingang pertence à fa-
mília linguística Jê e é falada por aproximadamente 60% desse povo (PUCCI;
ALMEIDA, 2017).

A música que você ouviu anteriormente é uma cantiga do tipo canto de gufã,
que está relacionada "[...] às narrativas míticas que incluem cantigas de bichos
cantadas para as crianças. Geralmente, são curtas e falam sobre os hábitos
dos animais" (PUCCI; ALMEIDA, 2017, n. p.).

Neste ciclo, conheceremos um pouco de alguns povos indígenas no Brasil.


Atualmente, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), são aproximada-
mente 252 povos e 160 línguas distintas, totalizando quase 1 milhão de pesso-
as. A complexidade desse estudo está na singularidade da cultura e história
de cada um desses povos.
A cantora, compositora e pesquisadora Marlui Miranda, nascida em 1949, é re-
conhecida por interpretar, difundir e valorizar a cultura e a música indígena
do Brasil. Em uma entrevista, ao ser questionada sobre como conceituar a mú-
sica indígena, ela respondeu:

É impossível [conceituar]. Cada comunidade, cada povo, tem o próprio modo de se


exprimir musicalmente. A gente não consegue descrever a música indígena. Agora,
do ponto de vista dessa sociedade daqui, essa sociedade �ca querendo enquadrar
dentro de um campo determinado da música que já existe. A meu ver, a gente só
pode descrever a música como música indígena. Não é folclore, não é word music.
Sempre batalhei para não colocar a música indígena como música popular, ou mú-
sica indígena brasileira. Não é música brasileira. É música tikuna, mundurucu, ya-
nomami. São povos, temos que respeitar essas fronteiras. E aceitar a realidade.
Chegou a hora de aceitar que existe indígena no Brasil, que está no mercado, os in-
dígenas fazem com sua própria música (FARIAS, 2017, n. p.).

Essa pesquisadora, que se dedica a estudar esse tema há aproximadamente 50


anos, nos adverte sobre a impossibilidade de conceituar a música indígena,
tamanha sua diversidade. Acrescenta que não é possível caracterizá-la ape-
nas como música indígena, muito menos como música brasileira, por serem
termos genéricos demais, mas sim como música tikuna, música mundurucu,
música yanomami, música kaingang e assim por diante.

Observe a imagem a seguir. Quantos nomes de povos indígenas você reconhe-


ceu? Quais povos indígenas vivem no mesmo estado que você? Quantos são?
Que línguas falam? Como mencionamos, não são diversos?
Fonte: elaborado pelo autor.

Figura 1 Nomes dos povos indígenas no Brasil.

Para que possamos conhecer mais nomes de povos indígenas, vamos ouvir a
canção Chegança, de Antônio Nóbrega e Wilson Freire, musicalizada em ritmo
de Cavalo Marinho, uma festa popular típica dos estados de Paraíba e
Pernambuco. Acompanhe, a seguir, a letra da música, juntamente com a can-
ção. Para isso, clique no slide para ampliá-lo e no play para ouvir a música.

A letra possui duas estrofes contando a visão dos portugueses ao lançarem-se


ao mar em busca de novas terras; outras duas estrofes dedicadas à perspecti-
va indígena, pontuando a dominação e o futuro trágico desse encontro; e o re-
frão, que se alterna com os versos a�rmando nosso pertencimento a raízes in-
dígenas.

É bem provável que, ao buscar mais informações sobre determinado povo, vo-
cê descubra que ele costuma ter mais de um nome. Isso acontece porque além
de suas autodenominações, muitos foram nomeados por outros povos com ba-
se em características, rivalidade ou por desentendimentos de linguagem. Veja
um exemplo:

O etnônimo Juruna (Yuruna, Jurúna, Juruûna, Juruhuna, Geruna) é de origem es-


trangeira e parece signi�car "boca preta" em Língua Geral; teria sido motivado por
uma tatuagem que, segundo consta em registros do século XVII, este povo usava
quando o seu território no baixo Xingu foi invadido, alguns anos depois da funda-
ção de Belém (1615). Sua autodenominação é Yudjá [Yudya; em escrita fonêmica:
Iuja], entretanto Yuruna não apenas é usado como auto-referência como prevalecia
antes da introdução de escolas nas aldeias, em meados dos anos 1990, quando vem
passando a ser considerado incorreto (LIMA; MACEDO, 2001, n. p.).

Assista ao vídeo a seguir, para conhecer a explicação do indígena xavante


Cristian Wariu para alguns termos, como "indígenas" e "aldeias".

Nosso sangue indígena


A pesquisadora e cantora Marlui Miranda contou, em entrevista, sobre uma
vaia que recebeu em 1979, no Teatro Amazonas. Na ocasião, ela era convidada
de Egberto Gismonti, outro grande musicista brasileiro, e interpretou uma can-
ção na língua da etnia Suruí, de Rondônia. Veja parte da matéria:
Cantei uma canção Suruí com o jeito Suruí de cantar. E foi um negócio bem violen-
to, foi xingação, palavrão. Bastante agressivo. Mas eu parei no meio da música e fa-
lei assim: 'Quero que levante o primeiro que não tenha sangue indígena'. Ficou um
silêncio. Aí parou um pouco", disse Marlui, contando que após o silêncio, reagiu
com lágrimas nos olhos.

"Depois que falei isso, chorei. Entrei num palco que só recebia ópera e músicos co-
nhecidos. Era um lugar proibido para a música indígena", disse a artista sobre o te-
atro amazonense, construído no século 19 no apogeu do Ciclo da Borracha.

Marlui Miranda, que vive em São Paulo, é natural de Fortaleza (CE). Morou no Rio
de Janeiro, onde aprendeu violão clássico com professores renomados, entre eles,
Turíbio Santos, e estudou no Conservatório Villa-Lobos, e também em Brasília. A
artista compôs trilhas para cinema e teatro. Além de Egberto Gismonti, fez parceri-
as com Hermeto Paschoal, Taiguara, Milton Nascimento e Jards Macalé (FARIAS,
2017, n. p.).

Agora que sabemos um pouco mais sobre a diversidade e os nomes dos povos
indígenas, vamos continuar nosso estudo a respeito da história da música no
Brasil, apreciando, no vídeo a seguir, algumas práticas musicais dos Tuyuka,
Krenak, Guarani, Yudjá e Xavante.

3. Povo Tuyuka e o Cariço (Cariçu)


Antes de iniciar os estudos desse tópico, aprecie as músicas a seguir. Você ou-
virá as �autas Cariço (Cariçu), um tipo de �auta muito usado na região do Rio
Negro e, também, o nome de uma dança. Em outras culturas, ela é conhecida
como �auta de pã. Uma das belezas dessa música é que a melodia é intercala-
da entre os tocadores, ou seja, é feita de modo alternado.
 Pronto(a) para ouvir?

Comunidade Bayaroá (Rio Negro - AM)   Cariço (�auta de pã)


(https://www.youtube.com/watch?v=pZsgxK4-Xnc)

Povo indígena Tuyuka -   Dança Cariço (https://www.youtube.com/wat-


ch?v=mUux_Pt1AeI)

Assista, também, a um breve vídeo no qual é possível perceber a divisão dessa


melodia.

O Rio Negro tem sua nascente na Colômbia, onde é chamado de Rio Guaiania.
Trata-se do sétimo maior rio do mundo em volume de água e um dos maiores
a�uentes do Rio Amazonas. Em seu longo percurso, que começa na Colômbia,
demarca uma parte da fronteira com a Venezuela e adentra o Brasil pelo esta-
do de Amazonas, há grande diversidade:  27 etnias habitam a região, sendo 22
no território brasileiro. Estas, habitantes da região do Noroeste Amazônico, po-
dem ser divididas em quatro conjuntos de acordo com sua distribuição geo-
grá�ca, línguas faladas e organização social: Etnias do Rio Uaupés (da qual
Tuyuka e Barasana fazem parte); Etnias Maku; Etnias do Içana; e Etnias do
Rio Xié e do Alto Rio Negro.

Os Tuyuka se autodenominam Dokapuara ou Utapinõmakãphõná. No senso


de 2014,  de acordo com o Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena
(Siasi) e com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), eram compostos
por 1050 pessoas, multilíngues, falando mais comumente as línguas Tuyuka,
Tukano e portuguesa. O multilinguísmo é recorrente nos povos dessa região
do Rio Negro. Para conhecer a pronúncia dessa língua, assista ao vídeo a se-
guir e ouça algumas palavras em Tuyuka:
Temos 160 línguas indígenas que estão divididas em dois grandes troncos lin-
guísticos:

• Macro-Jê, que possuí 9 famílias linguísticas: Boróro, Krenak, Guató, Jê,


Karajá, Maxakali, Ofayé, Rikbaktsá, Yatê.
• Tupí, que possui 10 famílias linguísticas: Tupí-Guaraní, Arikén, Aweti,
Juruna, Mawê, Mondê, Puroborá, Mundurukú, Ramarama, Tuparí.

Há, também, outras 20 famílias linguísticas que não estão associadas a esses
dois troncos. Nesses casos, podemos encontrar também as "línguas isoladas",
que, por não se revelarem parecidas com nenhuma outra língua, estão em fa-
mílias únicas. Entenda um pouco melhor sobre isso no vídeo a seguir:

A seguir, disponibilizamos algumas fotos referente aos Tuyuka. Para visuali-


zar todas as imagens, clique na seta à direita.
4. Canto dos Krenak: resistência há mais de
200 anos
Vamos iniciar nosso estudo com a música de saudação do povo Krenak, en-
toada por crianças e jovens durante o ritual do Taru Andek. A letra traduzi-
da do Borum (tronco linguístico Macro-Jê) diz: "Vamos todos cantar juntos,
cantar bonito, bater palmas" e é acompanhada de batidas de mãos e pés.

Para isso, acesse o site Cantos da Floresta (https://www.cantosda�ores-


ta.com.br/audios/po-hamek/), ouça a música, observe a transcrição de sua
partitura, bem como sua tradução. O áudio da música está disponível na
parte inferior do site.

Os Krenak se autodenominam Borum. Antigamente conhecidos como


Botocudos, usavam botoques nos lábios e orelhas; também eram chamados de
Aymorés pelos povos Tupi, grupo que era composto por diversos povos que
habitavam a costa brasileira. De acordo com Siasi/Sesai, no censo de 2014, os
Krenak eram compostos por 434 pessoas.

Você sabe o que quer dizer botoque?


Os botoques ou batoques são ornamentos feitos de um objeto circular, geralmente de madeira, introduzidos
nas orelhas, narinas ou lábio inferior por alguns povos.

Atualmente, os Krenak estão na margem do Rio Doce, o mesmo que foi devas-
tado em 2015 pelo rompimento da barragem de Mariana, Minas Gerais, afetan-
do a vida de milhares de indígenas, não indígenas e outros seres (fauna e �o-
ra). Mas, a história de resistência desse povo, assim como a de muitos outros, é
mais antiga

Na busca por encontrar ouro e dominar o trajeto de seu transporte, em 13 de


Maio de 1808, o Rei Dom João VI declarou guerra aos índios botocudos em
Carta Régia (documento o�cial assinado por um monarca que tem peso de lei
imediata):

[...] ordenar-vos, em primeiro logar: Que desde o momento, em que receberdes esta
minha Carta Regia, deveis considerar como principiada contra estes Indios antro-
pophagos uma guerra offensiva que continuareis sempre em todos os annos nas
estações seccas e que não terá �m, senão quando tiverdes a felicidade de vos se-
nhorear de suas habitações e de os capacitar da superioridade das minhas reaes
armas de maneira tal que movidos do justo terror das mesmas, peçam a paz
(BRASIL, 1808, n. p.).

Para justi�car essa guerra, o argumento utilizado contra os botocudos era de


que eles eram selvagens e, por isso, os portugueses deveriam levar a "civilida-
de" a esses povos.

 Quer saber mais?

Caso tenha mais interesse em estudar sobre a guerra declarada aos boto-
cudos, leia um interessante texto sobre o assunto, A Guerra de D. João
contra os índios Botocudos: contexto e motivações (https://historiaemre-
de.medium.com/a-guerra-de-d-jo%C3%A3o-contra-os-%C3%ADndios-
botocudos-contexto-e-motiva%C3%A7%C3%B5es-52df072e1f71).

Mesmo depois de tantos anos, tais ideias continuam permeando a socieda-


de. Veja parte de uma matéria de 2012, três anos antes do rompimento de
uma das barragens em Minas Gerais:

"Acontece que nós tivemos de nos adaptar à realidade imposta. Um exemplo é a


caça. Na época dos meus pais, os índios se alimentavam do que era retirado das
matas. Hoje, com o desmatamento, a poluição e nosso território reduzido, quem
for viver da caça morre de fome", disse Geovane Krenak, de 27 anos, que ao lado
do irmão, Douglas, de 29, produz um documentário que pretende fortalecer e res-
gatar a língua krenak dentro da aldeia. "Não quer dizer que deixamos de ser ín-
dios. Pelo contrário, a nossa cultura, crença e tradições estão mais vivas do que
nunca", ressaltou Douglas (ANTUNES, 2012, n. p.).

Por �m, sugerimos que assista ao vídeo a seguir, no qual é possível conhe-
cer a participação do líder indígena e escritor brasileiro Ailton Krenak na
elaboração da Constituição Federal de 1988.

5. Rap Guarani: culturas vivas


Você já deve ter percebido que os indígenas não deixam de ser indígenas,
caso se distanciem de sua cultura originária. Assim como uma pessoa que é
descendente de chilenos, ao mudar-se para o Brasil, continua chilena, mes-
mo que seus costumes se modi�quem bastante, ela mantém alguns traços
de sua cultura originária, assim também um indivíduo Krenak que sai de
sua aldeia e vai para a cidade, ou usa celular, não deixa de ser Krenak.
Pessoas e suas culturas estão em constante movimento e isso inclui resga-
tar (recuperar, reassumir) elementos da cultura originária, assim como fa-
zemos com cantigas de roda; preservar (proteger e reforçar) a cultura que
temos, quando reproduzimos músicas de outras gerações; e perceber que
transformamos (ressigni�car, recompor, mudar) nossas culturas de acordo
com aquilo com que nos relacionamos de novo ou diferente.

Veja, por exemplo, o caso do Oz Guarani, um grupo de rap cujos integrantes


(Je�nho Xondaro MC, Gizeli Para Mirim e Mano Glowers) são da aldeia
Tekoa Pyau, no Jaraguá, Zona Oeste de São Paulo, capital. Barba (2017, n. p.)
assim descreve o grupo:

Na ponta de uma �echa, rimas rápidas são misturadas em versos e transforma-


das em relatos do cotidiano indígena. No comando deste arco, índios guarani
utilizam o rap para expor as desigualdades que enxergam em sua comunidade e
aproveitam para chamar a atenção da sociedade na luta por direitos e igualdade
entre os povos.

Je�nho Xondaro MC, um dos integrantes, comenta "[...] Nosso sonho pro fu-
turo é que o grupo possa um dia cantar sobre outros temas, como letras on-
de crianças brincam com sarabatana, arco e �echa, pescam nos rios ou so-
bre nossa cultura e identidade indígena" (BARBA, 2017, n. p.).

Agora assista ao clipe do rap criado pelo grupo Oz Guarani.

 Você conhece Wera MC?

Da mesma aldeia Tekoa Pyau, Wera MC é um músico que também faz


suas rimas em Guarani e Português. Para conhecer um pouco mais sobre
sua música, ouça o rap "Retomada de Terra (https://www.youtube.com
/watch?v=lczH-Uykz94&ab_channel=WeraMC)" na sequência.

Devemos compreender que a complexidade das questões indígenas está liga-


da à grande diversidade de povos e a suas histórias particulares. Com isso, de-
vemos tratar as culturas em sua singularidade, cada qual com sua experiên-
cia. Sua música está no presente e é resgatada, preservada e transformada a
cada momento.

 Quer saber mais?

Caso tenha interesse em conhecer essa diversidade da música contem-


porânea dos povos indígenas, acesse a Rádio Yandê. Para acessá-la, bas-
ta clicar aqui (https://radioyande.com/).

6. Yudjá e o timbre metalizado do taratararu


O próximo registro musical indígena que você ouvirá será surpreendente.
Trata-se de um instrumento chamado taratararu tocado pelos Yudjá (Juruna,
Yuruna, entre outros nomes) e que possui uma palheta (interna), assim como o
clarinete. O instrumento também é genericamente conhecido por "taquara"
após os irmãos Villas-Boas, em 1970, terem nomeado e registrado a prática
musical desse povo.

A música que ouviremos na sequência é tocada por quatro instrumentistas,


com cada um tocando uma nota da melodia, ou seja, alternadamente, assim
como já vimos com os Tuyuka e cariços (instrumento musical). Como analisa
Magda Pucci e Berenice de Almeida, essa música exige "grande entrosamento
e sintonia entre os músicos para que a melodia soe orgânica, como se tocada
por uma única pessoa" (PUCCI; ALMEIDA, 2017, n. p.).
Sugerimos que ouça a música e aprecie o timbre das taratararu (primeiro dos
slides a seguir), perceba as quatro alturas diferentes e, sem observar a partitu-
ra, busque compreender seus motivos melódicos e suas repetições. Considere
também a complexidade ao executar uma melodia alternadamente.  Depois,
avance, clicando no segundo slide e ouça novamente a música, acompanhan-
do a partitura.

Devemos perceber que a própria palavra "música", como usamos cotidiana-


mente, pode não representar inteiramente o que todos os povos fazem. Em
muitas etnias indígenas, essa palavra inexiste. Existem palavras para canto,
instrumentos e dança, que estão relacionados ao que conhecemos como "mú-
sica", porém a palavra em si pode não existir. Isso nos sugere que a música es-
tá entrelaçada, nesse contexto, a outros saberes, mais conectada aos rituais e
ritos do cotidiano.

Por �m, reforçamos a ideia de que não existe uma cultura indígena, mas mui-
tas culturas indígenas. Cada qual se distingue por diferentes aspectos: lín-
guas, organização social, rituais, hábitos, cultura material (cerâmicas, pinturas
corporais, gra�smos, cestarias, vestimenta, forma de adornar) e, obviamente, a
cultura imaterial (formas de cantar, dançar, espiritualidade, brincadeiras etc.).
Enquanto educadores(as) musicais, devemos nos opor ao processo de redução
preconceituosa dos povos indígenas.

7. Heavy Metal e os Xavante


A seguir você ouvirá dois cantos do povo Xavante: Dú Nhõre e Darö Wihã.
Mas, antes, conheça o que esses termos signi�cam:

• Dú Nhõre: prática em que homens, pintados, cantam e dançam em círcu-


lo no pátio central da aldeia, chamando sorte e fartura para a caçada.
• Darö Wihã: canto para a cerimônia de iniciação dos wapté, os adolescen-
tes, que acontece quando os meninos que estão entre 12 e 13 anos são se-
parados das famílias e vão viver juntos na casa dos adolescentes (Hö), on-
de recebem orientação e ensinamentos dos padrinhos.

Agora ouça o canto Dú Nhõre.

Já o canto Darö Wihã, de acordo com Pucci e Almeida (2021, n. p.),

[...] apresenta alguns elementos musicais bem característicos da música xa-


vante, como a batida dos maracás, a pisada marcando o pulso, os timbres vo-
cais guturais e aspirados de forte vitalidade, a dinâmica de crescendos e des-
crescendos dentro das próprias frases musicais.

Observe a transcrição da partitura do canto Darö Wihã, clicando aqui


(https://www.cantosda�oresta.com.br/audios/daro-wiha/), e na sequência, ou-
ça o canto. Lembre-se de que o áudio da música está disponível na parte infe-
rior do site.
Após conhecer a música, apresentamos algumas informações relevantes que
caracterizam os povos Xavante.

Povo Xavante: "Os Xavante - autodenominados A´uwe ("gente") - formam com os


Xerente (autodenominados Akwe) do Estado do Tocantins, um conjunto etnolin-
guístico conhecido na literatura antropológica como Acuen, pertencente à família
lingüística Jê, do tronco Macro-Jê".
[...]
População: "Os Xavante somavam, em 2020, cerca de 22.256 pessoas abrigadas em
diversas Terras Indígenas que constituem parte do seu antigo território de ocupa-
ção tradicional há pelo menos 180 anos, na região compreendida pela Serra do
Roncador e pelos vales dos rios das Mortes, Kuluene, Couto de Magalhães, Batovi e
Garças, no leste matogrossense".
[...]
Distribuição: "Atualmente são cerca de 165 aldeias Xavante espalhadas de maneira
bastante desigual por cada uma das nove terras Xavante: Parabubure, por exemplo,
tinha no ano de 2003 cerca de 60 aldeias e uma população de 4.502 pessoas, en-
quanto Pimentel Barbosa tinha 6 aldeias e 1.570 pessoas (GRAHAM, 2008, n. p., gri-
fo nosso).

Veremos, a seguir, um mapa com diversas Terras Indígenas do povo Xavante.


Segundo o órgão indigenista o�cial do Estado Brasileiro, a Fundação Nacional
do Índio (Funai), Terra Indígena (TI) é:

[...] é uma porção do território nacional, a qual após regular processo administrativo
de demarcação, conforme os preceitos legais instituídos, passa, após a homologa-
ção por Decreto Presidencial para a propriedade da União, habitada por um ou mais
comunidades indígenas, utilizada por estes em suas atividades produtivas, cultu-
rais, bem-estar e reprodução física. Assim sendo, se trata de um bem da União, e
como tal é inalienável e indisponível, e os direitos sobre ela são imprescritíveis
(FUNAI, 2014, n. p.).

 Quer saber mais?

Para saber mais sobre a situação atual das Terras Indígenas, acesse o si-
te Terras Indígenas do Brasil (https://terrasindigenas.org.br/). Você pode-
rá ampliar seus conhecimentos pesquisando esta que é a maior base de
dados sobre esse assunto.

Observe, no mapa a seguir, a demarcação das aldeias. É relevante destacar


que, nessas terras indígenas, há cerca de 165 aldeias Xavante, com cerca de
22 mil pessoas.

Figura 10 Terras Indígenas (TI) do povo Xavante no leste mato-grossense (https://mirim.org/pt-br/como-

vivem/casas).

Agora que você conheceu um pouquinho dos povos Xavante, apresentare-


mos algo novo: as parcerias entre diferentes povos indígenas e musicistas
não indígenas. A banda de Heavy Metal brasileira Sepultura, criada em
1984, em Belo Horizonte, Minas Gerais, gravou, em seu disco Roots (1996),
duas músicas com o povo Xavante. A música que você ouvirá a seguir foi
gravada na Aldeia Pimentel Barbosa em 1995, às margens do Rio das Mortes
no estado de Mato Grosso.

Além das já citadas Marlui Miranda, Magda Pucci e Berenice de Almeida,


há grupos como Mawaca e Uakti, que pesquisam e fazem releituras de mú-
sicas ou práticas musicais de diferentes povos indígenas. Aprecie Pamé
Daworo, uma releitura de música dos Djeoromitxí/Jaboti (Rondônia), por
Marlui Miranda com participação especial de Gilberto Gil. Aprecie, além
desse canto, o CD completo IHU Todos os Sons (https://www.youtube.com
/watch?v=3dS2fUcHhzg&t=208s) (1995).

 Pronto(a) para saber mais?

Caso tenha curiosidade em conhecer mais a fundo o povo Djeoromitxí-


Jaboti, acesse o site Socioambiental. Para isso, basta clicar aqui.
(https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Djeoromitx%C3%AD)

Por �m, vamos ouvir o que Cristian Wariu tem a nos dizer sobre a tecnolo-
gia como ferramenta de luta dos povos indígenas? Para isso, assista ao ví-
deo indicado a seguir:
Esperamos que este ciclo tenha ampliado seus conhecimentos sobre alguns
povos indígenas e suas músicas, gerando curiosidade para saber cada vez
mais. Aproveite as referências que foram utilizadas tanto para conhecer
mais sobre essas pessoas, como para re�etir sobre a maneira de abordar o
assunto em sala de aula. Enquanto educadores(as) musicais, sabemos que
as datas comemorativas acabam tendo grande impacto nas disciplinas, es-
pecialmente nas de Artes (o que deve ser objeto de estudo, re�exão e deba-
te). Entretanto, o fazer musical desses povos não precisa �car restrito a es-
sas datas, já que há tanta diversidade e possíveis relações tanto pelos as-
pectos técnico-musicais quanto via outras culturas e gêneros musicais.

Agora que você concluiu o estudo deste primeiro Ciclo de Aprendizagem,


sugerimos que avalie como foi sua aprendizagem a respeito dos conceitos
apresentados. Para isso, responda às questões a seguir.

8. Considerações
Provavelmente, chegamos ao �nal deste ciclo com o sentimento de que não
conhecíamos tão bem o Brasil. De fato: considerando a enorme diversidade
que abordamos, esperamos que este ciclo seja uma introdução ou uma con-
tinuação relevante desse tema para você, ajudando a desfazer preconceitos
que nos foram passados desde a infância, seja por músicas, �lmes ou por
desenhos animados em relação aos indígenas no Brasil.

Alguns cuidados nos ajudam a estudar a música e culturas dos povos indí-
genas: não homogeneizar as culturas indígenas como se fossem todas
iguais; tomar cuidado para não ter uma visão romantizada dos indígenas
como pací�cos e passivos, sempre em contato com a natureza e mantendo a
mesma cultura desde a chegada (invasão) dos europeus. A partir de excer-
tos musicais dos povos Tuyuka, Kaingang, Krenak, Guarani e Xavante, vi-
mos que há muitas diferenças entre essas culturas e algumas semelhanças.
É importante ressaltar que ouvimos apenas uma música de cada povo, sen-
do que, assim como em outras culturas, músicas, cantos e danças podem
estar presentes em vários momentos do dia e em diferentes rituais (dos ani-
versários à passagem da infância à vida adulta), de forma que, mesmo den-
tro de uma aldeia ou comunidade, o fazer musical é bastante diverso.
Também observamos que as pessoas resgatam, reforçam e recriam suas
culturas, pois estão em constante movimento, sempre em contato com ou-
tras pessoas. Assim, o estudo de culturas torna-se um desa�o, pois, como
numa fotogra�a, nunca temos uma representação exata da realidade atual.
Vimos, por exemplo, o rap feito por indígenas Guarani e heavy metal a par-
tir da música dos Xavante. Nos próximos ciclos, veremos a transculturação
de elementos musicais (ritmos e ideias harmônicas) e instrumentos musi-
cais no Lundu, Maxixe, Choro, Jazz e Bossa Nova, por exemplo.

Ao estudar a música associada à origem do nosso país, percebemos os efei-


tos da colonização, que foi feita, via de regra, sob o uso da violência. As pes-
soas escravizadas deveriam deixar de falar sua língua e de praticar sua cul-
tura, recebendo outros nomes. Vemos essa violência também expressa no
campo musical, ao criminalizar alguns ritmos e manifestações religiosas,
por exemplo.

Saímos da atualidade deste ciclo e voltaremos, agora, aos séculos 18 e 19 pa-


ra continuar nossa jornada de estudos no segundo Ciclo de Aprendizagem.

Vamos lá?
(https://md.claretiano.edu.br

/hiscrimusmusbra-g01495-dez-2021-grad-ead/)

Ciclo 2 – Manifestações da Música Urbana no Brasil

Objetivos
• Compreender o princípio da organização social/musical a partir do
Brasil Imperial.
• Conhecer alguns nomes que marcaram a História da Música Popular no
Brasil Imperial.
• Conhecer o que é tido como principal pro�ssional da música popular an-
tes da chegada da Corte portuguesa (1808) e a função social dessa arte.
• Entender por que tomamos a chegada da Corte portuguesa ao Rio de
Janeiro, em 1808, como marco determinante do princípio da formação
da música popular no Brasil.
• Conhecer ritmos e gêneros das primeiras formações urbanas no Rio de
Janeiro.
• Conhecer os nomes mais in�uentes na formação da música popular no
período imperial e na República.
• Estudar quem e qual a função social daquele que construía a música po-
pular durante esse período.

Conteúdos
• Música de barbeiros.
• Lundu, modinha e polca.
• Joaquim Callado, Pixinguinha, Anacleto de Medeiros, Chiquinha
Gonzaga.

Problematização
O que é música popular? Como lidar com o conceito acadêmico de música
popular em nossos estudos sobre o assunto? O que estudaremos e por que es-
tudaremos determinados conteúdos e deixaremos de estudar outros?

Orientação para o estudo


Com as leituras propostas neste ciclo, você poderá aprender mais sobre o
processo histórico dos estudos em música popular no Brasil e se aprofundar,
também, no conceito de música popular, além de ouvir, na íntegra, algumas
gravações de um artista que estudaremos a seguir. Você descobrirá de quem
estamos falando!

Ótimos estudos!

1. Introdução
Vamos iniciar nosso segundo Ciclo de Aprendizagem, reapresentando a ideia
das três grandes matrizes que constituem o Brasil: indígena, africana e euro-
peia. De fato, são três matrizes que fazem parte de nossa história, porém, mui-
tas vezes, há uma visão como se nossa cultura fosse uma simples mistura
dessas matrizes, na qual, em uma relação amistosa, tais grupos paci�camente
promoveram a miscigenação. Iniciaremos nossos estudos, entendendo por
que essa ideia não representa muito bem a nossa história.

No ciclo anterior, você deve ter conhecido melhor alguns (poucos) povos indí-
genas no Brasil: Krenak, Yudjá, Mbya-Guarani, Xavante, Kaingang e Tuyuka.
A partir da riqueza cultural de alguns povos, esperamos que tenha sido possí-
vel compreender que há grande diversidade - para conhecê-la, basta buscar-
mos mais conhecimento, por meio de livros, vídeos e dos próprios indígenas
que guardam e transformam suas culturas.

Vimos, também, que as relações entre os povos, em geral, se deram a partir da


exploração, seja de riquezas, como pau-brasil, cana-de-açúcar, ouro, borracha,
algodão e café, seja até de pessoas, que eram tratadas como mercadorias-
objetos, com a escravidão massiva de africanos. Para justi�car e manter tais
práticas desumanas por séculos, recorreu-se à propagação das seguintes idei-
as pejorativas:
• "Não são gente, são selvagens, animais", caracterizando a animalização
de povos.
• "Não têm alma", "deixaram as almas no país de origem" ou "precisamos
levar a salvação", referindo-se a questões religiosas.
• "Precisam de civilização" ou "precisam dos avanços da modernidade", re-
�etindo sobre as questões morais.

Basta vermos relatos da escravidão transatlântica para entender que aos afri-
canos também era negado o direito de exercer sua própria cultura.
Inicialmente, eram separados e isolados de seus povos. Antes de embarcar, re-
cebiam novos nomes, e eram proibidos de falar sua língua ou manifestar sua
cultura. Sua história era apagada. Estima-se que foram, aproximadamente, 22
milhões de indivíduos exportados da África negra em direção ao resto do
mundo, entre 1500 e 1890.

 Quer saber mais?

Para conhecer qual foi a dimensão da Diáspora Africana, acesse o site


Slave Voyages para acompanhar, por meio de uma linha do tempo, o
translado de escravos em 31.166 mil navios negreiros durante os anos em
que houve a comercialização de escravos. Para ter acesso ao site, basta
clicar aqui (https://www.slavevoyages.org/voyage/database#timelapse).

O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão, em 1888. Aos liber-
tos não foram oferecidos reconhecimento, integração ou reparação pelo que
haviam vivido de forma que, quando libertos (já que não foi processo ins-
tantâneo), �caram à deriva para buscar vida digna. A busca por moradia,
trabalhos remunerados, e assim por diante, sujeitou a maioria a migrar,
aceitar subempregos e até mesmo o retorno a situações análogas à escravi-
dão. Além disso, também haviam leis que criminalizavam esta nova condi-
ção (Lei de Vadiagem, que punia pessoas que não possuíam trabalho ou mo-
radia) e também criminalizavam as culturas africanas e afro-brasileiras
("capoeiragem" incluída na Lei da Vadiagem, religiões tomadas generica-
mente como magia, entre outras). Vale destacar o tratamento oposto ofere-
cido a imigrantes europeus como, por exemplo, o pagamento de viagens pa-
ra que vivessem ao Brasil, na mesma época, com a �nalidade de branquea-
mento da população por meio da miscigenação.

Observamos, portanto, uma imposição e hierarquização das culturas ao lon-


go da história do nosso país e isso também se expressa na formação dos
centros urbanos, criação das leis, escolhas econômicas, políticas e culturais.

De forma correlata, aos indígenas tal dominação e imposição culturais tam-


bém se deu. Sobre o aspecto das leis, o historiador Paulo Castagna comenta,
no programa Notas de Rodapé, da rádio Antena Zero, que:

Em São Paulo, no séc. XVI, uma das primeiras leis que a câmara menciona mú-
sica é proibindo que os índios cantassem suas músicas no centro da cidade. A
segunda que aparece era proibindo que os brancos fossem ouvir a música dos
índios nas aldeias. Esse tipo de legislação demonstra que os poderes daquela
época impunham um certo apartheid cultural, ou seja, diferenciar os grupos ét-
nicos e impedir as misturas. Ao longo de toda a história do Brasil essa talvez se-
ja a maior característica da legislação: ela tenta impedir a mistura de culturas
entre as distintas classes (CASTAGNA, 2019 apud "MÚSICA, 2019, transcrição
nossa).

Assim, vemos que nossa nação é fruto de uma relação desigual entre povos
e suas culturas. Genealogicamente, pouco sabemos sobre as origens de nos-
sos antepassados indígenas e africanos. Musicalmente, pouco se sabe sobre
a in�uência dos povos indígenas na construção da cultura popular brasilei-
ra. Ao longo deste ciclo, você poderá observar esses con�itos em muitos
momentos (com em relação a lundu, maxixe, choro). Disponibilizaremos al-
guns materiais que podem contribuir para você expandir seus conhecimen-
tos conforme desejar.

Para isso, visitaremos o Brasil Imperial e a chegada da Corte portuguesa ao


Brasil, em 1808. Veremos por que tomamos esse marco como ponto de parti-
da nos estudos de música popular e como esse fato determinou alguns as-
pectos da cultura brasileira e, consequentemente, sua música.
Tomando como ponto de partida a música popular brasileira, cujos primei-
ros registros datam da presença da Corte portuguesa no Brasil, em 1808, é
importante, antes de tudo, frisar que não se tem registro de uma História da
Música Popular "brasileira" nesse período, mas, sim, fragmentos de uma
História da Música Popular da cidade do Rio de Janeiro.

Contudo, é válido o nosso esforço para uma melhor compreensão dos fatos e
da história de que se tem algum conhecimento, pois, dessa forma, podere-
mos alcançar o �o condutor que liga o passado ao presente, com o objetivo
de compreender a música que estudamos, vivenciamos, compomos etc.

Muitas vezes, a história desse período, principalmente levando-se em conta


as relações de poder explícitas entre exploradores, colonizadores, pesquisa-
dores, historiadores, indígenas e escravizados, pode ser vaga e tendenciosa.

Assim, as pesquisas acadêmicas relativamente recentes, ao passo que bus-


cam desmiti�car e evidenciar essas relações de poder, apontam suas di�-
culdades em descrever fatos históricos precisos sobre alguns aspectos da
música popular dos séculos 18 e 19. O Brasil foi colônia de Portugal até 1822,
sem permissão de ter imprensa livre, o que também di�culta registros es-
critos.

Como exemplo dessas di�culdades, podemos citar o lundu. Apesar de ser


palavra indispensável a quem deseja estudar a História da Música Popular
desse período e até mesmo a consolidação de gêneros subsequentes, não há
gravações, partituras ou mesmo descrições consistentes, em nível acadêmi-
co, das propriedades estruturais e sonoras desse gênero musical, provenien-
te das comunidades negras do século 17, como temos de determinados gê-
neros bem mais antigos.

A maioria da população brasileira não era alfabetizada e muitas culturas de


tradição oral foram submetidas a aculturação, proibidas de falar suas lín-
guas, contar suas histórias e praticar seus ritos. Mesmo assim, muito conti-
nuou sendo passado de geração a geração por meio de cantos e histórias.

Por �m, veremos como o choro se consolidou como gênero musical.


Passaremos por alguns dos principais nomes da história do gênero, como
Joaquim Callado, Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros e Pixinguinha.
É importante saber que os "chorões" não se esgotam nesses nomes, sendo
inúmeros aqueles que contribuíram e ainda contribuem com o choro no
Brasil. Certamente o assunto não se esgota nesta pequena amostra que visa
instigar o leitor à pesquisa.

Vamos lá?

2. A "música urbana" no Brasil Império e


República até o �nal do século 19
Neste ciclo, passaremos por alguns momentos históricos, por meio dos
quais poderemos contextualizar a música popular, urbana ou das camadas
chamadas populares em seu viés social, conscientes de que suas proprieda-
des sonoras não são precisas, considerando a pouca importância dada ao
assunto e a falta de recursos tecnológicos na época em que os processos re-
feridos se passaram.

Os primeiros passos na formação da música urbana no


Brasil
Neste subtópico, apontaremos os indícios que o pesquisador e jornalista
José Ramos Tinhorão nos fornece em relação à formação das primeiras
manifestações de música popular no Brasil, algo que ocorre concomitante-
mente às primeiras formações urbanas no nosso país.

Segundo Tinhorão (1998), foi em meados do século 18 que ocorreram os pri-


meiros passos do que o autor entende ser "música popular". Com os primei-
ros adensamentos populacionais no Rio de Janeiro (cerca de quarenta e três
mil pessoas no ano de 1763) e em Salvador (pouco mais de trinta e sete mil e
quinhentas pessoas em 1755), houve necessidade de uma música própria
para festejos. Assim, surgiu uma espécie de pro�ssional indicado para tal �-
nalidade - o barbeiro:
O barbeiro, pela brevidade mesma do serviço (fazer barba ou aparar cabelos era
questão de minutos), sempre acumulara outras atividades compatíveis com sua
necessária habilidade manual, e que era representada pela função de arrancar
dentes e aplicar bichas (sanguessugas). Essas especialidades, sempre praticadas
em público, situavam os barbeiros numa posição toda especial em relação às
pro�ssões mecânicas ou demais atividades de caráter puramente artesanal. E
como seus serviços em tal atividade liberal lhe permitiam tempo vago entre um
freguês e outro, os barbeiros puderam aproveitar esse lazer para o acrescenta-
mento de outra arte não-mecânica ao quadro de suas habilidades: a atividade
musical (TINHORÃO, 1998, p. 157).

Podemos compreender, por meio das palavras de Tinhorão (1998), que os


barbeiros utilizavam seu tempo hábil para aprender instrumentos musicais.
Não precisando exercer o duro trabalho em lavouras ou outros serviços de
maior desgaste físico, suas mãos eram capazes de manusear instrumentos
tecnologicamente mais aprimorados, como trombetas e rabecas. Além dis-
so, ao se reunirem em conjunto, poderiam tocar pelo simples prazer, sem
compromisso com cerimoniais ou qualquer exigência externa, ou seja, em
função de sua própria criatividade e deleite estético (TINHORÃO, 1998).

A in�uência da chegada da Corte real portuguesa em


1808
Neste momento, teremos como foco as transformações ocorridas no Rio de
Janeiro a partir da chegada da Corte portuguesa, em 1808, no que toca, por
exemplo, costumes, objetos, vestimentas, alimentação e outros aspectos da
cultura local, pois, naturalmente, a família real não abriria mão das "benes-
ses que desfrutava na Europa" (DINIZ, 2008, p. 42).

Com isso, os serviços prestados à Coroa tiveram também de ser reformula-


dos. Nos 13 anos que seguiram, o Rio de Janeiro se transformou não apenas
na capital do Brasil, mas também na capital de todo o Império Português,
com o aparato de Estado que veio transferido de Lisboa: poderes, justiça, bi-
blioteca etc. É exatamente por conta desse evento que a música popular lo-
cal sofreu suas principais transformações:
Com a chegada da Família Real portuguesa, em 1808, a vida musical da corte (e
da colônia como um todo) se diversi�ca, com a entrada da música clássica ger-
mânica (sobretudo a partir da obra de Haydn) e da ópera napolitana. Na verdade,
Haydn já era conhecido no Brasil antes da chegada do seu principal discípulo, o
maestro Sigismund Neukomm, sendo uma das principais in�uências do padre e
compositor carioca José Maurício Nunes Garcia (NAPOLITANO, 2002, p. 42).

Dessa forma, a música popular na Colônia real no Rio de Janeiro foi se


transformando à medida que a Corte �nanciava músicos europeus ou mes-
mo escolas que capacitassem negros ou mestiços a atender, musicalmente,
ao gosto e ao apreço pela, até então, música erudita que estava em voga na
Europa. Com isso, trabalhadores subalternos tinham nova referência musi-
cal, com músicos e repertórios diversi�cados, ocasionando os primeiros hí-
bridos entre a in�uência africana e europeia no Brasil.

De acordo com Napolitano (2002), a Real Fazenda Santa Cruz é tida como
verdadeiro conservatório musical para negros cujo objetivo era divertir a
Corte. Com isso, podemos observar a forte in�uência da Corte portuguesa
na música popular.

Se os negros divertiam a Corte com a música erudita europeia, seriam esses


mesmos músicos os responsáveis por animar festas, folguedos, rodas e os
demais eventos pertencentes às tradições populares da época. Negros
divertiam-se, agora incorporando a linguagem musical exigida pela Corte
em sua musicalidade:

Criou-se, entre negros e mestiços da corte e das principais vilas e cidades, escra-
vos e libertos, uma tradição musical complexa plural, que trazia elementos di-
versos enraizados do século XVII e início do XIX (música sacra, danças profa-
nas, modinhas e lundus), reminiscências de danças e cantos dramáticos (jongo,
por exemplo), estilos e modas musicais européias "sérias" (neste campo, o barro-
co foi dominante) e ligeiras, como a polca e a valsa (NAPOLITANO, 2002, p. 30).

3. Lundus, modinhas e polcas


Na sequência, teceremos algumas considerações e descrições sobre três gê-
neros que in�uenciaram a música popular no Brasil Colonial.
Evidentemente, há outros gêneros, como o maxixe, chulas, cocos, caxambus
e tiranas, mas, neste ciclo, iremos nos ater a esses três gêneros por sua forte
presença naquele momento histórico e sua importância na formação de gê-
neros subsequentes.

Lundu
O termo "lundu" e suas variações - lundum, landu, landum, londu, londum,
loudum - provavelmente são derivados de "calundu", um aportuguesamento
da palavra Kilundu. Na língua Quimbundo, quer dizer "Espírito, ser do mun-
do invisível, magnetismo" (MONTEIRO, 2021, n. p.). Segundo Tinhorão (2013),
a referência mais antiga usando esse nome é de 1780. O termo "batuque"
também aparece nos registros como uma manifestação mais genérica, indi-
cando uma dança acompanhada de percussão realizada por escravizados.
Ouça a seguir o lundu, por Mário de Andrade.

É importante salientar que o termo "lundu" foi utilizado ao longo de suas


transformações, ou seja, inicialmente, lundu se referia a uma dança feita
pelas pessoas escravizadas. Em roda, dançavam ao som de tambores, ba-
tendo os pés descalços no chão, gestos que se assemelhavam ao fandango
(dança espanhola), como o estalo dos dedos, e com movimentos de umbiga-
das, sendo tratada como uma dança erotizada. Tal dança/música, provavel-
mente apresentada por pessoas de Angola e Congo e acompanhada por ins-
trumento de corda (viola/violão), passou a se manifestar no meio dos bran-
cos. Observe a abrangência que o lundu alcançava, de acordo com esta ima-
gem pintada por Johann Rugendas em 1835:
Figura 1 Ilustração (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lundu)Danse Lundum (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lundu), de

Rugendas (1835). (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lundu)

Apesar de não termos disponíveis fontes que apontem para características


estruturais do lundu como forma, padrões rítmicos, melodias etc., ele é con-
cebido de forma unânime  como um ritmo muito importante como manifes-
tação popular e presente na identidade popular, principalmente a negra:

Sobre o lundu, os autores, de uma forma unânime, precisam a origem negro/afri-


cana e o posterior abrasileiramento, ainda no período colonial. Mário de
Andrade, no �nal dos anos 20, chegou a considerá-lo como "canto e dança popu-
lares" no Brasil durante o século XVIII. Teria sido marcado pela síncopa e umbi-
gadas, observando-se uma certa in�uência espanhola (ANDRADE, 1989, apud
ABREU, 2001, n. p.).

O lundu conquistou também as cortes portuguesas, alcançando projeção


para além do Brasil, e sofrendo um processo de erudição e distanciamento
em relação ao lundu-dança. O lundu ganhou outros contornos, conforme
nos explica Tinhorão (2013, p. 66):
O lundu-dança continuou a ser cultivado pelos negros e mestiços (e até por
brancos das camadas mais baixas), apoiado apenas por estribilhos curtos, ou in-
cluindo eventualmente a intercalação de uma ou outra chula. O lundu-canção,
graças ao exotismo de sua origem popular, passou a interessar, de um lado, aos
compositores cultos - que acabariam por des�gurá-lo a ponto de poder ser con-
fundido nos �ns do século XVIII com a modinha de sabor erudito -, e, de outro,
aos músicos de teatro, que viam no casamento de um texto engraçado com a
malícia da dança uma boa atração para o público de brancos amantes das emo-
ções eróticas.

Já o lundu-canção, no �nal do século 18, tinha como características princi-


pais a aceitação pessoal ou indireta do caráter negro e a preocupação hu-
morística dos temas tratados, sendo levado aos teatros e circos espalhados
pelo Brasil. Segundo Castagna (2020), um dos primeiros exemplos publica-
dos no Rio de Janeiro foi o lundu "Graças aos céus" de Gabriel Fernandes da
Trindade (CASTAGNA, 2020, p. 81), cujo texto satiriza, do ponto de vista da
elite, a mendicância e a vadiagem nas ruas cariocas. Agora, assista à apre-
sentação do coral Canarinhos de Petrópolis cantando a Graças aos céus  e
perceba a síncopa na parte cantada, acompanhando a letra da música.

 
Entre 1817 e 1820, os alemães Johann Spix e Carl Martius �zeram uma expe-
dição ao Brasil e recolheram a seguinte melodia (Figura 2) que é, hoje, o re-
gistro mais antigo que se conhece do lundu. Observe:

Figura 2 Landum (https://it.wikipedia.org/wiki/Lundu), melodia coletada por Martius e Spix (https://it.wikipe-

dia.org/wiki/Lundu).

 Vamos ouvir uma interpretação dessa partitura?

Landum (https://youtu.be/HYTsm3KNzHQ) - interpretada por Guilherme


de Camargo, Ricardo Kanji e Dalga Larrondo (https://youtu.be
/HYTsm3KNzHQ)
Mais tarde, o lundu viria a formar o maxixe, que se chamou de "tango brasilei-
ro" para esquivar-se da discriminação. Trata-se de uma música de caracterís-
ticas que se incorporariam ao complexo de ritmos do choro:

O lundu, por exemplo, teria sido a reunião dos cantos e sambas das toadas e dos ba-
tuques africanos. Da mistura com o indígena, o lundu teria propiciado o surgimento
de um novo sentimento musical e, ao propagar-se entre os mestiços, "identi�cou-se
com o sentimento pátrio", produzindo a "nossa chula e o nosso tango ou o nosso
lundu propriamente dito" (MELLO, 1908 apud ABREU, 2001, n. p.).

E, em termos de discriminação, vale dizer que a dança chegou a ser proibida


no Brasil pelo rei Dom Manuel. Por outro lado, por sua popularidade, foi justa-
mente um lundu a primeira música gravada no Brasil: Isto é bom, de Xisto
Bahia, gravado em 1902 por Manuel Pedro dos Santos "Bahiano".

 Vamos ouvi-la?

Isto é bom (https://www.youtube.com/watch?v=GIhrPVqw1Pc) - interpre-


tada por Manuel Pedro dos Santos (https://www.youtube.com/wat-
ch?v=GIhrPVqw1Pc)

 Quer saber mais?

Conheça uma  partitura que remete à discriminação da igreja católica


com o lundu, clicando aqui (http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_di-
gital/div_musica/mas195187/mas195187.pdf).

Modinha
Na segunda metade do século 18, foi comum na Europa um tipo genérico de
canção séria de salão. Em Portugal, popularizou-se de tal forma que, no reina-
do de D. Maria I, havia um dito que na corte dessa rainha "era moda cantar a
moda" (MARCONDES, 1998). Em outros países, havia gêneros correlatos, como
canzonetta na Itália, seguidilla na Espanha, ariette na França e Lied na
Alemanha.

Mas, com a chegada do escritor afro-brasileiro Domingos Caldas Barbosa a


Lisboa, no ano de 1770, a cultura musical da moda ganhou outros rumos. O po-
eta e violeiro Caldas Barbosa nasceu em por volta de 1740 na colônia brasilei-
ra, sendo �lho de pai branco e mãe negra de Angola, chegada no Rio de
Janeiro já grávida. Enquanto esteve no Brasil, seu contato foi predominante-
mente com "mestiços, negros, pândegos em geral e tocadores de viola, e nunca
com mestres de música eruditos (que, por sinal, nessa época quase não existi-
am no Brasil)" (TINHORÃO, 2013, p. 19).

Domingos Caldas Barbosa trocou o piano-forte pela viola de arame, fazendo


muito sucesso em Portugal a partir de 1775 na Corte de D. Maria I. A modinha
se enraizou no Brasil, por sua vez, por meio da obra de Padre José Maurício e
Cândido Ignácio da Silva (NAPOLITANO, 2002).

No Brasil, no início do século 19, o pesquisador Carl Martius esteve no Rio de


Janeiro e a�rmou que a viola era o instrumento preferido das pessoas, ao pas-
so que o piano era uma peça rara, que se encontrava apenas em casas ricas.

Ao ir a Lisboa, Caldas Barbosa apresentou sua "moda brasileira", cuja denomi-


nação "modinha" também foi uma criação atribuída a ele. Veja o registro do
poeta português Nicolau Tolentino de Almeida em 1779:
 

A modinha possuía essência europeia e, diferentemente do lundu, era voltada


ao lirismo e ao amor devotado a "musas" quase sempre intangíveis (SILVA
JUNIROR, 2005).

A modinha trazia a marca da melancolia e uma certa pretensão erudita na in-


terpretação e nas letras, sobretudo na sua forma clássica, adquirida ao longo
do Segundo Império. Tratava-se de quase uma ária operística, com inclina-
ções para o lírico e o melancólico.
Como mencionado, a modinha surgiu em �ns do século 18, derivada da moda
portuguesa (NAPOLITANO, 2002, p. 40). Podemos perceber, porém, que havia
uma diferença no conteúdo textual tratado nas modinhas. Estas abordavam
assuntos amorosos, com ousadia e permissividade (CASTAGNA, 2020, p. 55) e
por isso também foram criticadas e malvistas.

 Vamos ouvir, a seguir, dois exemplos de modinhas?

Os me deixas que tu dás - anônimo, atribuído à Domingos Caldas Barbosa


(https://www.youtube.com/watch?v=AtMesJkMdts)

Você trata amor em brinco (https://www.youtube.com/wat-


ch?v=pe5d_CmOPfQ) - Domingos Caldas Barbosa (https://www.youtu-
be.com/watch?v=pe5d_CmOPfQ)

Posteriormente, vemos a modinha alcançando grande popularidade e, entre


1792 e 1795, sendo divulgada por meio dos Jornais de Modinha, os quais agre-
gavam diferentes ritmos e formações instrumentais, mantendo-se, no geral, o
gênero canção.

Polca
No Brasil, a polca foi apresentada pela primeira vez em 1845, no Teatro São
Pedro do Rio de Janeiro, evidenciando o nível social mais ou menos elevado
do público a que se dirigia (TINHORÃO, 2013, p. 71). A partir de então, a polca se
tornou uma febre nos salões (NAPOLITANO, 2002). Enquanto a modinha tinha
características líricas e melancólicas, a polca era mais ritmada e saltitante,
signi�cando a oportunidade que se tinha de dançar mais próximo do que em
outras danças de par unido, como a valsa. Como dança de salão, as polcas
eram bem aceitas pela elite (apesar de certa resistência), e bastante diferentes
do lundu, com seus movimentos de umbigada. Em ritmo binário e andamento
allegretto - equivalente a quase 120 BPMs (batidas por minuto), indicando ca-
ráter animado, com energia -, a polca apresentava uma vivacidade inédita e
embalou os salões europeus (principalmente parisienses) e depois os brasilei-
ros.
Aqui a polca foi se misturando a outros gêneros e à musicalidade afro-
brasileira. Em termos mais práticos, essa mistura se deu quando a polca pas-
sou a alcançar as classes mais baixas, ou seja, quem não fazia parte da elite
econômica, social e política dos centros urbanos. Parte dessas pessoas eram
os músicos populares chamados "chorões". Os resultados dessas trocas cultu-
rais foi a formação de outros gêneros musicais, outros ritmos e outras culturas
musicais.

Antes de falarmos do choro, é interessante notar que a itinerância das pesso-


as, ou seja, a mudança de localidade de indivíduos, seja por comércio, passeio,
trabalho, imposição ou melhores condições de vida, sempre gerou trocas cul-
turais. Poderíamos até nos perguntar: qual cultura não é resultado de intera-
ções entre pessoas?

Aproveitamos o tema para apresentar, no vídeo a seguir, um breve relato sobre


o frevo, que também tem a polca como uma de suas raízes, por isso, não deixe
de assisti-lo.

No tópico seguinte, vamos nos deter, principalmente, no gênero choro. A pala-


vra "gênero" aqui indica que não se tratava de um ritmo especí�co ou determi-
nada forma de compor, mas de um grupo variado de músicas (polca, maxixe,
tango, valsa, lundu etc.) e instrumentação, originando uma nova forma de to-
car. Da mesma forma que, atualmente, musicistas transitam entre bailes de
gala, barzinhos, estúdio, casas de show, igrejas, terreiros, ruas, confraterniza-
ções com amigos e família, entre outros, antigamente, as pessoas transitavam
entre múltiplos espaços e, para cada um desses contextos, o repertório, a for-
ma de tocar era adequada e readequada, levando e trazendo in�uências de um
lugar a outro. Portanto, no próximo tópico não deixaremos de falar dessas mú-
sicas, já que falar de choro é também falar de polca, maxixe, tango, entre ou-
tros.
4. A consolidação do choro como manifestação
da música popular
Neste tópico, buscaremos compreender como o choro se consolidou como gê-
nero e identidade musical brasileira. Passaremos por alguns dos principais
nomes da história do gênero, que certamente não se esgotam nesta pequena
amostra, que visa instigar o leitor à pesquisa. Além disso, poderemos investi-
gar qual é a in�uência do gênero nos dias atuais.

Os primeiros "chorões"
Entende-se como "chorão" todo aquele praticante do gênero choro. Já a pala-
vra "choro" traz a primeira discussão dentro do gênero. Qual seria a origem ou
o que determinaria que o gênero seria chamado "choro"?

Da maneira como sintetiza Diniz (2008), o maestro Baptista Siqueira parte do


princípio de que teria vindo da "'colisão cultural' entre 'choro' (de chorar) e
chorus (em latim, 'coro', pequeno grupo)" (DINIZ, 2008, p. 29).

Já o folclorista Luís da Câmara Cascudo (2002) acredita que seria proveniente


da palavra "xolo" - festa realizada por negros nas fazendas do período colonial
- e que teria chegado aos centros urbanos como "choro".

O pesquisador Ary Vasconcelos (1977) atribui a origem do termo aos "chara-


meleiros" - grupo musical com instrumentistas de sopro (que tocavam, inclu-
sive, a "charamela") -, que passaram, posteriormente, a ser chamados "chora-
meleiros", dando assim nome popular a qualquer grupo que tenha instrumen-
to de sopro.

Na visão de José Ramos Tinhorão, a nomenclatura teria surgido das "baixari-


as", ou seja, linhas de baixo executadas no violão tidas como praticamente um
choro (DINIZ, 2008).
Na segunda metade do século 19, na cidade do Rio de Janeiro, o telégrafo, as
primeiras tentativas de industrialização, as melhorias na capital do Império
advindas das riquezas proporcionadas pelo café, estradas de ferro, gasômetro
(para iluminação a gás), obras de canalização de esgoto e a primeira experiên-
cia com a luz elétrica proporcionaram transformações na conjuntura urbana
do Rio de Janeiro, dentre as quais está o desaparecimento dos conjuntos de
barbeiros:

[...] essa multiplicação de obras e negócios [...], ao implicar na divisão de trabalho,


iria alterar a simplicidade do quadro social herdado da colônia e do primeiro reina-
do, e isso se traduziria no aparecimento, ao lado da �gura do moderno operário in-
dustrial (as velhas fábricas de chapéus e calçados vinham somar-se a outras, como
a primeira fábrica de chocolate em 1864 e a de fumo e cigarros em 1874), das cama-
das algo difusas dos pequenos funcionários de serviços públicos - repartições civis
e militares, Correios e Telégrafos, Alfândega, Casa da Moeda, Arsenal da Marinha,
Estrada de Ferro Central do Brasil, e de pequenas empresas particulares (inglesas,
belgas e norte-americanas) da área dos transportes urbanos, da produção de gás e
da iluminação pública (TINHORÃO, 1998, p. 194).

Com o rearranjo do sistema de serviços e empregos, são os funcionários públi-


cos e de alguns setores de empresas particulares aqueles com o privilégio de
gozar da convivência por meio da música. Logo, há também uma reformula-
ção de camadas sociais, deixando-se para trás a antiga divisão entre senhores
e escravos.

Assim, enquanto os melhores situados na distribuição dos empregos procuravam


equiparar-se à burguesia europeia [...], a camada mais ampla dos pequenos buro-
cratas passava a cultivar a diversão familiar das reuniões e bailes nas salas de vi-
sita, ao som da música agora mais comodamente posta ao seu alcance: a dos toca-
dores de valsas, polcas, schottisches e mazurcas à base de �auta, violão e cavaqui-
nho (TINHORÃO, 1998, p. 195).

Note-se que Tinhorão expõe, ao mesmo tempo, duas vertentes da formação do


choro: ritmos/estilos/gêneros e a instrumentação. Teremos como base, nesse
momento da história, a formação de �auta, cavaquinho e violão. Contudo, com
o decorrer do tempo, iremos nos deparar com outros instrumentos que com-
põem a roda de choro: bandolim, clarinete, escaleta, acordeom, trombone etc.

Antes de explicarmos as estruturas rítmicas dos gêneros que compõem o cho-


ro, falaremos sobre os primeiros nomes que marcaram a história do gênero.

Antônio Gonçalves Pinto, conhecido como "Animal", registrou, em seu livro


Reminiscências de um Chorão Antigo (1936), alguns acontecimentos da vida
de Callado que o deixaram famoso. Entre eles, destacamos o duelo que travou
com um músico - um tanto trapaceiro - que, sem que Callado percebesse, de-
satarraxou algumas chaves de sua �auta. Mas, o "infeliz" não contava que se-
ria "derrubado" por Callado que, mesmo sem poder fazer algumas notas, se so-
bressaiu a seu oponente (PINTO, 1936).
Figura 3 Joaquim Callado (https://radiobatuta.com.br/programa/joaquim-callado-170-anos/).

Neste livro de memória musical - O choro: reminiscências dos chorões antigos -


destaca-se o papel de Joaquim Callado nos bailes e salienta-se que "Callado foi um
�autista de primeira grandeza, e ainda hoje é lembrado e chorado pelos músicos
desta época (...). Festa sem ele era uma tristeza, pois tinha se tornado um Deus para
todos que tinham a felicidade de ouvi-lo" (PINTO, 1936, p. 11 apud DINIZ, 2008, p. 26).

De acordo com Diniz (2008), a polca foi a grande novidade no ano de 1845. Com
ela, moços e moças podiam dançar juntinhos, ao contrário das danças anteri-
ores, como minuetos e quadrilhas. A polca chegou para transformar as festas
da sociedade, com melodias saltitantes e compassos binários, sendo um ritmo
que não apenas empolgou e transformou, mas se tornou estrutura básica para
consagrar nomes como Joaquim Callado (1848-1880), Chiquinha Gonzaga
(1847-1935) e Ernesto Nazareth (1863-1934).

De maneira geral, em uma adaptação à música popular carioca, o ritmo da


polca é tido, em seu acompanhamento, pelo ostinato, como podemos notar na
peça de Ernesto Nazareth intitulada Nenê. Observe:

Figura 4 Trecho da peça Nenê de Ernesto Nazareth - Compassos de 2 a 5 (https://ernestonazareth150anos.com.br/�les

/uploads/work_elements/work_128/nene_piano.pdf).

Vamos entender de forma prática a polca e o lundu? Então, assista ao nosso


próximo vídeo.

Assim, a peça composta em 1895 é um exemplo da inserção da polca na con-


solidação do choro como gênero e na identidade musical nos últimos anos do
século 19. Contudo, uma leitura mais atenta da Figura 4 fará com que notemos
a palavra "tango" no lugar no qual se descreve o ritmo da música.

O tango, de origem mexicana e cubana, chegou ao Brasil também em meados


do século 19. Porém, difere do tango que conhecemos atualmente (inclusive
este que estudamos no choro passou a se chamar "tango brasileiro" após a di-
fusão do tango argentino). A incorporação da nomenclatura do tango no �nal
do século 19 será explicada a seguir.

Se havia, no choro, a fusão entre polca e lundu, denominada maxixe, ele mes-
mo era severamente criticado e banido da alta sociedade, sendo a palavra
"maxixe" tida até como palavra de baixo calão e inaceitável pela sociedade
mais elitista. Contudo, dessa mesma sociedade partiam aqueles que compra-
vam e consumiam partituras das composições dos chorões. Conta-se que, em
1885, o ator Correia Vasques dançou a música Chô Araúna no palco como a po-
pulação dançava nos bailes. A música, antes considerada um tango, foi cha-
mada de maxixe. O maxixe também fez sucesso na França e sofreu alterações
na forma de dançar, especialmente numa tentativa de "moralizá-la".

Logo, a polca-lundu (ou maxixe) perdeu força nos títulos (apenas nos títulos)
das partituras. Era possível até intitular obras como polcas, mas o nome do
tango estava mais em voga e contribuía com as vendagens. A citação a seguir
demonstra como o maxixe se inseriu como uma espécie de disfarce no reper-
tório popular carioca - uma vez considerada a "indecência" da dança:

Em 1883, porém, o ator Francisco Correia Vasques mencionou e fez executar em pú-
blico a dança proibida, assim na peça cômica de sua autoria encenada no teatro
Santana e intitulada Aí, caradura, o maxixe foi dançado para o público de classe
média que comparecera ao teatro para este �m. Mas a partitura do referido maxixe
indicava polca-tango, o que provava que o maxixe já era divulgado através do título
tango, o que era bem aceito, executado e com penetração nos salões da elite
(TINHORÃO, 1986, p. 69).

Nota-se que o tango brasileiro funcionava, portanto, como nomenclatura que


se a�nava com as elites, ao passo que facilitava a circulação e o comércio de
partituras dos compositores. Na composição Só no Choro, de Chiquinha
Gonzaga, podemos observar, na parte A, a presença da célula rítmica básica do
lundu e, na parte C, a rítmica da polca, o que demonstra já em Chiquinha
Gonzaga a hibridez dos gêneros populares da segunda metade do século 19,
compondo um único gênero, chamado "choro".

Figura 5 Parte A da peça Só no Choro de Chiquinha Gonzaga (https://chiquinhagonzaga.com/acervo/partituras/so-no-

choro_piano.pdf).
Figura 6 Parte C da peça Só no Choro de Chiquinha Gonzaga. (https://chiquinhagonzaga.com/acervo/partituras/so-

no-choro_piano.pdf)

Note que a célula do ritmo melódico do lundu  aparece com frequência na for-
ma característica . Ainda assim, o lundu, em sua base rítmica, se apresentava
também pelo ostinato.

Já na obra de Chiquinha Gonzaga, a peça intitulada Atraente (por atrair a


atenção de muitos nas salas de choro) tem a polca como estrutura básica para
sua composição.

Figura 7 Chiquinha Gonzaga (https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Brasileiros).

Note que o acompanhamento do piano em compasso binário apresenta um os-


tinato de colcheia - pausa de semicolcheia - e semicolcheia (no �nal do pri-
meiro tempo), seguido de duas colcheias no segundo tempo:

Figura 8 Trecho da polca Atraente, de Chiquinha Gonzaga (https://chiquinhagonzaga.com/acervo/partituras

/atraente_alma-brasileira_piano.pdf).
 Quer saber mais?

Para aprofundar ainda mais seu conhecimento, ouça duas interpretações


da música  Atraente, de Chiquinha Gonzaga (1887), uma realizada pelo
Grupo Chiquinha Gonzaga e outra, executada pelo pianista Hercules
Gomes e pelo �autista Rodrigo Y Castro.

Atraente - interpretada pelo Grupo Chiquinha Gonzaga (1887)


(https://www.youtube.com/watch?v=G9D-Gvq5rbs)

Atraente - tocada pelo pianista Hercules Gomes e pelo �autista Rodrigo Y


Castro (2018) (https://www.youtube.com/watch?v=6wpt0Mk4FnE)

Apesar de não termos datas mais precisas, os registros históricos apontam


para um início do choro no Rio de Janeiro na segunda metade do século 19.
Veremos, mais à frente, alguns documentos que marcaram os primeiros pas-
sos do choro, como a primeira partitura de que se tem conhecimento e a pri-
meira gravação.

Agora assista ao vídeo sobre os aspectos mais relevantes da vida e obra de


Chiquinha Gonzaga.

Anacleto de Medeiros e a primeira gravação de um choro


A primeira gravação de um choro de que se tem conhecimento foi realizada
em 1902. Brejeiro, composta por Ernesto Nazareth, foi arranjada para banda
marcial pelo maestro Anacleto de Medeiros, que regia a Banda do Corpo de
Bombeiros do Rio de Janeiro. Essa gravação de 1902 foi realizada pelo técnico
de áudio Frederico Figner, que era húngaro e vivia no Rio de Janeiro.

Figura 9 Anacleto de Medeiros em destaque junto a Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro (https://www.no-

vacultura.info/post/2020/08/04/choro-as-bandas-militares-e-anacleto-de-medeiros).

 Vamos ouvir o primeiro choro gravado?

Para isso, basta clicar aqui (https://www.youtube.com/wat-


ch?v=xMZjZ6fZZbA) para ouvir Brejeiro. Observe que é difícil compreen-
der as palavras do anúncio da música, assim como a gravação, pois não
são tão nítidas, devido à tecnologia da época.

A tecnologia da época permitia apenas sonoridades maiores, como as de uma


banda marcial. É importante notarmos que o recurso da gravação determinou,
desde então, algumas condições da música popular. Veremos, em outro tópico,
que, nos anos 1940, moldou-se um padrão de cantores que possuíam conside-
rável potência vocal. Esse fato se dá devido à compatibilidade daquele tipo de
voz com a tecnologia de gravação.

Pixinguinha
Nascido em 23 de abril de 1897, Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha,
é sem dúvida um dos maiores nomes do choro. Quando gravou sua primeira
música em 1915, o tango Dominante, Pixinguinha já �gurava entre os músicos
de destaque por sua destreza e domínio da �auta.
Figura 10 Pixinguinha tocando sax tenor. (http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa12197/pixinguinha)

Em 1917, ele gravou duas de suas composições que marcaram a história do


choro: Rosa e Sofres porque Queres. Nos exemplos de áudio a seguir, podemos
conferir a transformação do gênero em duas gravações cronologicamente dis-
tantes, mostrando como Pixinguinha ainda perdura não apenas no choro, mas
na concepção atual de música popular.

Vamos ouvir, agora, duas interpretações da música Rosa de


 Pixinguinha além de outras canções?

Em uma delas apresentamos a primeira gravação da música, interpreta-


da pelo grupo Pixinguinha, em 1917, e a outra, interpretada por Marisa
Monte no álbum Barulhinho Bom (1996).

• Rosa, interpretada pelo grupo Pixinguinha (1917). (http://www.you-


tube.com/watch?v=13G-ClOhLPI)
• Rosa, interpretada por Marisa Monte (1996). (https://www.youtu-
be.com/watch?v=JZ7CjvayFss)

A composição Rosa - conhecida também pelo título "Evocação" - recebe-


ria letra posteriormente de Otávio de Souza. Ouça, a seguir, a primeira
gravação da versão cantada de Rosa, executada por Orlando Silva em
1937.

• Rosa, interpretada por Orlando Silva (1937). (https://www.youtu-


be.com/watch?v=BQnW6SpBz3E)

Outro choro que se transformou em canção, e que perdura na música po-


pular além do âmbito das rodas de choro, é a composição Carinhoso, que
foi letrada por João de Barro. Vamos ouvi-la?

• Carinhoso, letrada por João de Barro. (https://www.youtube.com


/watch?v=88tBivTeHyw&ab_channel=affeno)

Pelo caráter inovador, a composição de 1929 recebeu duras críticas de Cruz


Cordeiro, crítico da revista Phonoarte:

Parece que nosso compositor anda muito in�uenciado pelos ritmos e melodias da
música de jazz. É o que temos notado desde algum tempo e, mais uma vez, neste
seu Choro cuja introdução é um verdadeiro foxtrote, que, neste seu decorrer apre-
senta combinações de pura música popular ianque. Não nos agradou (CORDEIRO,
1929 apud CAZES, 1998, p. 70).

As críticas se referem ao movimento harmônico cromático que altera o quinto


grau do acorde para quinta aumentada e, posteriormente, sexta do mesmo
acorde de tônica da composição, retornando da sexta, cromaticamente, de vol-
ta à quinta justa do acorde.

Observe, no vídeo a seguir, a indicação dos acordes e perceba o movimento de


quintas, conforme citado anteriormente (G G5+ G6).

Pautado pelo conservadorismo nacionalista, Cruz Cordeiro mal sabia que �ca-
ria famoso por seu equívoco devido às tantas citações que sua crítica ganharia
em livros e/ou estudos que tratam dessa composição. Mal sabia também que a
fusão entre jazz e choro ocorreria em diversos capítulos e tempos de nossa
história, destacando compositores e intérpretes como K-Ximbinho, Radamés
Gnattali e Paulo Moura.

Carinhoso é um marco na história do choro, sendo rememorado nos anos 1980


(após ter novamente ganhado força nos anos 1970) e adquirindo dimensões
ainda maiores quando foi usado por propagandas de TV.

 Vamos ouvi-lo?

Con�ra, a seguir, o registro de uma propaganda e de uma versão musical


dessa canção. Cabe a você a pesquisa e escolha da favorita entre as inú-
meras gravações que essa música possui.

Publicidade do Chambinho utilizando (https://www.youtube.com/wat-


ch?v=z5yiIo41e_k) Carinhoso   (1984). (https://www.youtube.com/wat-
ch?v=z5yiIo41e_k)

Uma versão de (https://www.youtube.com/wat-


ch?v=mGG3Di84wp8)Carinhoso de Pixinguinha, pela cantora Elis Regina
e o violonista Paulinho Nogueira (https://www.youtube.com/wat-
ch?v=mGG3Di84wp8)

Além da in�nidade de composições e interpretações dos tantos chorões no de-


correr da história, é importante frisar que, em 1917, já se tem uma forma musi-
cal consolidada no universo do choro.

Vamos conhecer a vida e a obra de Pixinguinha, um importante


 músico desse período?

Para ter acesso aos documentários sobre sua trajetória e a cronologia de


suas composições, clique aqui (https://pixinguinha.com.br/).

São herdadas da música europeia diversas harmonias e frases melódicas


dos períodos barroco, clássico e romântico europeu, bem como a forma mu-
sical. Assim, a composição Sofres Porque Queres, composta em 1917, apre-
senta uma forma musical A-B-A-C-A, muito recorrente nos chorões. Essa
forma é modulante. Percebemos, nessa composição, a parte A em Dó Maior;
B, em Sol Maior; e C em Fá Maior - ou seja, modulações para tons vizinhos,
alterando-se apenas uma ou outra nota na armadura de clave.

Já em Naquele Tempo, composta em 1934, temos a parte A em Ré menor; B,


em Fá Maior; e C, em Ré Maior. Essas duas formas de modular (uma para
tom maior e outra para menor, respectivamente) irão aparecer com mais
frequência nas principais obras de Pixinguinha.

Nascido negro num país racista, ele não tinha receio em utilizar e transfor-
mar para o choro os elementos da música europeia, sejam harmonias, for-
mas encontradas em J. S. Bach ou mesmo do jazz norte-americano que ti-
nha escutado em Paris.

Agora que você estudou mais profundamente as manifestações da música


urbana no Brasil, com destaque para a música de barbeiros, lundu, modi-
nha, polca e choro, e seus principais compositores e intérpretes (Joaquim
Callado, Pixinguinha, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga), respon-
da às questões a seguir e veri�que se realmente entendeu tudo sobre esses
temas.

5. Considerações
Consideremos que esta foi apenas uma brevíssima introdução ao que pode
ser o choro, visto que, como será recorrente, mostraremos apenas o surgi-
mento do gênero e os principais mentores que o originaram e contribuíram
com sua consolidação.

Com certeza, a história do choro e as questões �losó�cas, antropológicas,


políticas e históricas que a permeiam podem ser de grande interesse aos
que valorizam a música popular e seu processo histórico.

Nomes como K-Ximbinho, Jacob do Bandolim, Joel Nascimento, Abel


Ferreira, Altamiro Carrilho, Luciana Rabello, Hamilton de Holanda, entre ou-
tros, �cam a cargo das pesquisas que você poderá fazer em busca dos �os
da meada da história do gênero.
Bons estudos e até o próximo ciclo!
(https://md.claretiano.edu.br

/hiscrimusmusbra-g01495-dez-2021-grad-ead/)

Ciclo 3 – Época de Ouro, Difusão da Música


Nordestina e Bossa Nova

Objetivos
• Conhecer o primeiro samba gravado no Rio de Janeiro.
• Conhecer alguns dos ritmos e gêneros do período entre o início do sécu-
lo 20 e o começo da década de 1960.
• Estudar o papel da difusão radiofônica, seu apogeu e declínio.
• Conhecer alguns dos nomes da música popular no mesmo período.
• Estudar quem construía a música popular durante esse período e qual a
função social desse artista.

Conteúdos
• Samba, choro, Bossa Nova, baião, música nordestina.
• Época de Ouro.
• In�uência do jazz no Brasil.
• Obras de Luiz Gonzaga, Noel Rosa, João de Barro, Lamartine Babo.

Problematização
Qual foi o primeiro samba gravado? Quais relações podem ser feitas com
sambas que você conhece? A origem do fonograma alterou a maneira de se
fazer e pensar música? O que foi a época de ouro? Quais seus principais mú-
sicos? O que representou a difusão da música nordestina para a música po-
pular brasileira como um todo? O que a Bossa Nova trouxe de novo para a
música brasileira?

Orientação para o estudo


Neste ciclo, procure compreender as características que de�nem a época de
ouro, a Bossa Nova e a música nordestina, bem como alguns estilos ligados
ao contexto histórico estudado. É sempre importante que você estude todos
os conteúdos, ouça com atenção os vídeos e os áudios disponibilizados. Por
�m, você também vai encontrar questões sobre o assunto em estudo;
responda-as para veri�car sua aprendizagem. Siga �rme na sua jornada pelo
conhecimento!

Vamos lá! Bons estudos!

1. Introdução
Vamos iniciar os estudos do Ciclo 3 do nosso material. Você está preparado?
Então, vamos em frente!

Nesta unidade, veremos como o desenvolvimento dos gêneros populares, o


samba e o choro, está envolvido nas políticas de progresso pós-primeira guer-
ra mundial (1914-1918), culminando no que chamamos de Época de Ouro.

Veremos, também, como se deu a primeira gravação do gênero samba, bem di-
ferente do ritmo de samba que há no imaginário popular atual.

Abordaremos, ainda, a difusão da música nordestina pelo Brasil, que se deu


graças à utilização do rádio, responsável por transformar o pensamento sobre
a música e seu alcance.

Estudaremos, por �m o período do �nal dos anos 1950, que experimentou uma
transformação de conceitos e paradigmas, na qual vemos, de uma nova ma-
neira, a utilização das concepções estilísticas e conceituais do jazz: a Bossa
Nova.

É fundamental frisar que todas as questões abordadas não se esgotam neste


texto. Pelo contrário, ele é apenas uma introdução. Devemos, sim, nos apoiar
nas leituras complementares, bem como em pesquisas individuais para nos
aprofundar no assunto.
2. Pelo telefone: o primeiro samba gravado
Como vimos anteriormente, a partir de 1902, temos diversas gravações no
Brasil, destacando-se a primeira gravação, Isto é bom, de Xisto Bahia; e
Brejeiro, com a banda do corpo de bombeiros, sob a batuta de Anacleto de
Medeiros. Outro considerável fato envolvendo a tecnologia do fonograma para
a música popular foi a gravação da música Pelo telefone, considerado um dos
primeiros sambas gravados no Brasil, envolvendo a polêmica da autoria de
Donga, em 1916.

O foco neste momento, porém, é o registro fonográ�co da música das camadas


populares, como podemos conferir no link a seguir:

 
De fato, a canção Pelo telefone descreve a situação real e inusitada ocorrida no
Rio de Janeiro, quando o então chefe da polícia mandou avisar antecipada-
mente pelo telefone a todos os infratores de jogos de azar que haveria uma
apreensão dos materiais utilizados ilegalmente nos cassinos, encobertando a
jogatina. Logo, as rodas de música das camadas subalternas do Rio de Janeiro
já davam o tom para o quão cômico foi o fato.

Ao acompanhar a letra original da música mostrada anteriormente, o leitor


pode perceber que ela não coincide com a gravação. Nessas rodas de samba,
das quais veio esse "samba amaxixado", as letras eram improvisadas, as estro-
fes, criadas por diversas pessoas. De fato, Donga foi um dos primeiros que se
apropriou de uma criação coletiva de samba e fez o registro o�cial, �cando na
história como o único detentor da autoria.

Assim, �camos com a letra da primeira gravação da seguinte forma:


3. A Época de Ouro
No período de 1917 a 1928, a música brasileira começou a receber suas primei-
ras in�uências da música americana. Assim, teve início uma diminuição do
interesse das empresas fonográ�cas pelos grupos de choro e, consequente-
mente, suas gravações também foram reduzidas, dando-se preferência às cha-
madas jazz-bands.
Isso levaria Pixinguinha, por exemplo, a fazer sucesso com a formação Oito
Batutas (1919-1923). A foto a seguir é da formação inicial, de como se apresen-
taram na estreia, ainda segundo a onda nordestina, quando o Cinema Palais
reabriu após o surto da gripe espanhola, em 1919.

Antes de darmos continuidade aos seus estudos, assista ao vídeo Gripe espa-
nhola: gripezinha ou �lme de terror? e conheça um pouco mais a respeito da
gripe espanhola e como ela afetou a sociedade brasileira em 1918.

Observe que �guram na foto, em pé, da esquerda para direita: Pixinguinha


(�auta), Donga (violão), Raul Palmieri (violão), China (voz e violão), Jacob
Palmieri (ganzá); sentados, da esquerda para direita: Nelson Alves (cavaqui-
nho), João Pernambuco (violão), Luis de Oliveira (bandola).

Figura 2 Oito Batutas (https://www.bn.gov.br/es/node/6496).


Esse grupo foi o primeiro a atingir projeção internacional, excursionando em
países como França e Argentina, enfrentando também o racismo exercido até
por intelectuais nos jornais da época. Na temporada na França, em 1923, um
dos integrantes não pôde comparecer de forma, que foram apresentados como
"Os Batutas". O grupo se apresentou em pelo menos três casas noturnas de
Paris, tocando com músicos de jazz e se apresentando para integrantes da fa-
mília real brasileira que estava exilada em Paris após a queda da monarquia
no Brasil, em 1889. Na volta, trouxeram instrumentos - no caso de
Pixinguinha, um saxofone.

Figura 3 Os Batutas (http://kalamu.com/neogriot/2014/07/05/culture-afro-brazilian-musicians-in-the-early-

twentieth-century/).

Na viagem à Argentina, a formação já estava diferente: Pixinguinha (�auta e


saxofone), Donga (violão e banjo), China (violão e voz), Nelson Alves (cavaqui-
nho e cavaquinho-banjo), José Alves (bandolim e ganzá), J. Tomás (bateria), J.
Ribas (piano) e Josué de Barros (violão). Além das apresentações, lá também
�zeram o único registro fonográ�co do grupo (20 músicas em 10 discos de 78
rpm). O grupo se separou ainda na viagem e voltou com proposta diferente ao
Brasil, no mesmo ano, numa formação de jazz-band, tocando um repertório
mais internacional, sem deixar de tocar o choro.
Ouça, agora, uma gravação de 1922 dos Oito Batutas, da música Urubú.

Temos, portanto, uma nova formatação sendo padronizada pela recém-


nascida indústria fonográ�ca. Para citar alguns exemplos, a Casa Edison
(principal empresa fonográ�ca da época) gravou obras de grupos como: Jazz-
Band do Batalhão Naval, Orquestra Ideal Jazz-Band e Jazz-Band Sul-
Americana de Romeu Silva (SEVERIANO; MELLO, 1997, p. 29).

Com o início das emissoras de rádio no Brasil, em 1922, e do cinema falado, em


1929, o país se viu diante de novidades tecnológicas que começariam a trans-
formar a cultura e a música popular brasileiras. Canções como Branca, de
Zequinha de Abreu, e Tristeza do Jeca, de Angelino de Oliveira (composta em
1918 e gravada em 1924), ganhariam projeção nacional.

Ao terminar o ano de 1928, termina também este período de transição em que as


novidades do século XX passam a ditar os rumos de nossa música popular.
Estávamos prontos para entrar em nossa primeira grande fase, a chamada Época
de Ouro (SEVERIANO; MELLO, 1997, p. 47).

O que concebemos como "Época de Ouro" é tido como um conceito que abarca
o apogeu do rádio no Brasil, nos anos 1930 e 1940, até seu declínio diante do
advento da televisão, nos anos 1950. A partir de 1922, o rádio foi ganhando ca-
da vez mais espaço entre a população e a cultura como um todo. Além de notí-
cias, divulgação, radionovelas etc., o rádio seria também instrumento de uma
transformação nos costumes da época.

É importante destacar que esse período da música popular brasileira se inici-


ou no pós-Primeira Guerra Mundial e acompanhou os ideais de progresso da
Era Vargas.
Entre 1917 e 1928, a música popular brasileira vive um período de transição e mo-
dernização ao qual se seguiria sua primeira grande fase. Marcado pela onda de re-
novação de costumes que impera no pós-guerra, é um período de formação de no-
vos gêneros musicais e implantação de inventos tecnológicos relacionados com a
área do lazer (SEVERIANO; MELLO, 1997, p. 48).

O termo "Época de Ouro" foi cunhado por jornalistas da Revista da Música


Popular, em sua primeira edição de 1954. Na ocasião, em meio a uma sensação
de crise, classi�cava-se como "Época de Ouro" os anos 1930, em um "resgate"
da boa música e da velha guarda.

Podemos citar, ainda sobre essa época, o sucesso do radialista e sambista


Almirante ao contar a História da Música Popular nos anos 1930, e o nome de
Cartola sendo redescoberto para a vida artística (WASSERMAN, 2008).

Alguns nomes desse período


Segundo Severiano e Mello (1997), o que foi posteriormente reconhecido como
"Época de Ouro" cunhou padrões que vigorariam pelos anos subsequentes do
século 20.

Severiano e Mello (1997) atribuem três fatores à consolidação desse período:

1. a renovação musical desenvolvida no período antecedente aos anos 1930,


com o princípio da formatação urbana do samba, da marchinha e de ou-
tros gêneros;
2. a chegada das novas tecnologias (gravação, radiodifusão e cinema fala-
do);
3. principalmente, o número considerável de músicos talentosos reunidos
em uma única geração.

Entre as gravações registradas nesse período, dentro da música popular, as


que mais se destacam pertencem ao samba, com 32,45% das gravações, e à
marchinha, com 18,6% das gravações.

Nesse cenário, os compositores de maior destaque são Lamartine Babo, João


de Barro e Noel Rosa. Vamos conhecer cada um deles?

Noel Rosa (1910-1937) (Figura 4) possuía incrível capacidade criativa, sendo o


samba seu gênero de maior expressão. Em sete anos de atividade, Noel com-
pôs mais de 250 canções. Teve inúmeros parceiros. Trabalhando na Rádio
Mineira, era famoso entre os compositores, que sempre o procuravam para
que ajudasse na composição da parte B da música.

Figura 4 Noel Rosa (https://cantodampb.com/com-que-roupa-noel-rosa/).

Assim, Noel assinou boa quantidade de canções com diversos parceiros. Seu
talento �cou registrado em canções que se tornariam clássicos em rodas do
que hoje é chamado "samba de raiz". Para citar três exemplos, temos: Três
Apitos, Com que Roupa e Gago Apaixonado.

Três Apitos mostra o romantismo e a nostalgia que vigorou não só na música,


mas também no universo literário brasileiro nos anos 1920-1930.

 Vamos nos aprofundar um pouco mais?

Os vídeos indicados a seguir re�etem a in�uência de Noel Rosa sobre os


movimentos musicais seguintes à Época de Ouro, como a Bossa Nova, e o
recorte que recebe a nomenclatura de MPB.

Três Apitos foi gravada por Aracy de Almeida (uma das cantoras predile-
tas de Noel Rosa, com gravações importantes da Época de Ouro), apenas
13 anos após a morte de Noel.
Essa canção apresenta variações em seus versos - o que particularmente
nos dá maiores possibilidades interpretativas ao apreciar diferentes ver-
sões da música. Vamos ouvi-las?

• Três Apitos -   interpretada por Araci de Almeida (1951).


(https://www.youtube.com/watch?v=IKrTHrTcVf4)
• Três Apitos - interpretada por Maria Betânia (1965). (https://youtu.be
/0KR5Lz8LPMA)
• Três Apitos - interpretada por Tom Jobim. (https://youtu.be
/69KDjSMq1qE)
• Três Apitos - interpretada por Ney Matogrosso e
Raphael Rabello (1990). (https://youtu.be/rjwB2nJVl9k)

Já na composição Com que Roupa, tem-se a presença do humor frente


aos fatos que o levaram à morte. Já com saúde debilitada, Noel não abria
mão da boemia, que envolvia o consumo de álcool e a vida noturna. Já
sem recursos, sua esposa teria escondido as roupas do compositor para
que ele não pudesse sair de casa. Não só não resolveu o problema, como a
música popular ganhou um de seus sambas mais aclamados. Clique nos
links a seguir e ouça duas versões da música Com que roupa.

• Com que Roupa -   interpretada por Noel Rosa (1930)


(https://www.youtube.com/watch?v=rETSGoLBjjk)
• Com que Roupa - interpretada por Caetano Veloso e Zeca Pagodinho
(2010) (https://www.youtube.com/watch?v=3voTaU1Cl8I)

Em Gago Apaixonado, gravada em 1931, Noel demonstra sua habilidade


criativa em trabalhar melodia e verso com o humor das rodas de samba
da boemia carioca. Ouça a música a seguir.

• Gago Apaixonado - interpretada por Noel Rosa (1930)


(https://www.youtube.com/watch?v=WqTqHFmMzKs)

Depois de comentarmos essas famosas canções, cabe fazer observações de


outra natureza, mas de suma importância. Assista ao vídeo a seguir, por meio
do qual você entenderá qual foi a in�uencia do racismo e da homofobia na
música popular.

Lamartine Babo (Figura 5) também foi um dos compositores da Época de Ouro


que deixou sua marca na história, com sambas e marchinhas.

(https://mdm.claretiano.edu.br/hiscrimusmusbra-g01495-2021-02-grad-
ead/wp-content/uploads/sites/1295/2019/12/C3-F5.jpg)Figura 5 Lamartine Babo
(https://boni.wordpress.com/2017/01/10/072/).

Além de marchinhas, como Linda Morena e O Teu Cabelo Não Nega,


Lamartine compôs hinos para os principais times de futebol do Rio de Janeiro,
como América, Fluminense, Flamengo, Vasco, Bangu etc.

João de Barro (Figura 6), conhecido também como Braguinha, escreveu uma
quantidade considerável de composições, muitas delas sambas e marchas.

Figura 6 João de Barro (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Braguinha_ou_Jo%C3%A3o_de_Barro,_1957.tif).


Braguinha também se destacou com canções infantis que hoje �guram no
imaginário popular brasileiro, como Lobo Mau ("Eu sou o lobo mau/ Lobo mau,
lobo mau/ Eu pego as criancinhas/ Pra fazer mingau"), Pirata da Perna de Pau,
Chiquita Bacana, Capelinha de Melão, Pirulito, Pela Estrada Afora
(Chapeuzinho Vermelho), Tem Gato na Tuba.

Compôs a letra de Cochichando e Carinhoso, de Pixinguinha, e


Pastorinhas com Noel Rosa, para citar algumas parcerias.

Entre os intérpretes, temos como principais nomes do início dessa fase Mário
Reis, Sílvio Caldas, Carlos Galhardo, Aurora e Carmen Miranda.

Posteriormente, já por volta de 1937, surgiram os compositores Dorival


Caymmi, Wilson Baptista, Herivelto Martins, Mário Lago e Lupicínio
Rodrigues.

Para citar alguns intérpretes que surgem nesse mesmo período, temos: Ciro
Monteiro, Aracy de Almeida, Dalva de Oliveira (Figura 7), Nelson Gonçalves e
Orlando Silva, sendo este último tido como primeiro grande ídolo de massa da
música popular brasileira.

Figura 7 Dalva de Oliveira (https://disney.fandom.com/pt-br/wiki/Dalva_de_Oliveira).

Se, por um lado, tivemos, nos primeiros anos da Época de Ouro, a voz de Mário
Reis como um divisor de águas, por outro, Orlando Silva perpassou diversos
estilos, chamando atenção do grande público com sua voz a�nada, com tim-
bre e tessitura peculiares (SEVERIANO; MELLO, 1997).
A �gura feminina mais importante da Época de Ouro, sem dúvida, é Carmem
Miranda, que, em parceria com o compositor Dorival Caymmi, alcançou su-
cesso internacional, tendo como carro-chefe a canção O que é que a Baiana
tem?.

O auge da Época de Ouro é representado pela composição de Ary Barroso


Aquarela do Brasil. Ela demonstra a "so�sticação" do samba. Exaltando as be-
lezas do Brasil, agradou os o�ciais que defendiam o Estado Novo. Assim, a
canção chegou a dar origem a um novo tipo de samba: o "samba de exaltação".

No início de seus estudos, você ouviu Querelas do Brasil (https://www.youtube.com/wat-


ch?v=B4J1cM�Afg) cantada por Elis Regina, lembra-se? Quais paralelos podemos fazer en-
tre as músicas Aquarela do Brasil (https://www.youtube.com/watch?v=i1Hjns9Zwg4)   e
"Querelas do Brasil?" Em que medida ambas exaltam o Brasil?

Desse ponto em diante, a Época de Ouro viu, pouco a pouco, seu declínio, por
conta da saída de cena dos artistas da década de 1930, não havendo artistas da
música que os substituíssem à altura.

Temos, então, o ano de 1945 como o que encerra a Época de Ouro. A partir de
então, veremos uma pré-Bossa Nova e a difusão da música nordestina pelo
Brasil, ou a "Era do Baião", como Severiano e Mello preferem chamar (1997).

4. Difusão da música nordestina


A difusão da música nordestina se deu, essencialmente, por um pilar chama-
do Luiz Gonzaga (1912-1989). Foi por meio dele que a radiodifusão da música
nordestina se tornou via de mão dupla e outros nomes da música nordestina
surgiram no cenário da música popular.

Com Luiz Gonzaga (Figura 8), a música nordestina foi levada ao Brasil e o
Nordeste teve seu primeiro grande representante dentro da música popular.

Partindo do princípio de que não havia ainda a ideia de música nordestina,


nem ao menos a aceitação de suas variações como gênero, Luiz Gonzaga ten-
tou ganhar a vida na região do porto do Rio de Janeiro tocando fados, polcas e
outros ritmos vigentes naquela época. Participou de alguns concursos no rá-
dio sem sucesso, até que lhe foi recomendado que tocasse a música original
de sua terra. Luiz Gonzaga acatou a sugestão e começou a ser reconhecido.

Figura 8 Luiz Gonzaga (https://www.cartacapital.com.br/cultura/gonzagao-uma-historia-de-raca-da-lagrima-e-do-

suor/).

Em 1941, Gonzaga gravou, pela RCA Victor, a composição instrumental de sua


autoria intitulada Vira e Mexe, com o ritmo denominado "xamêgo" na des-
crição do disco.

A partir de então, Luiz Gonzaga gravou diversas músicas de sua autoria e de


outros compositores - polcas, valsas, mazurcas, choros (entre os quais o famo-
so Apanhei-te, Cavaquinho e Escorregando) e chamegos.

Apenas em 1947, Luiz Gonzaga gravou umas de suas músicas letradas e inter-
pretada por ele mesmo: o xote No meu Pé de Serra (https://www.letras.mus.br
/luiz-gonzaga/47092/), uma parceria com o letrista Humberto Teixeira.

Figura 9 Luiz Gonzaga com trajes nordestinos (https://www.�ickr.com/photos/arquivonacionalbrasil/35960096120).

Nesse mesmo ano, também em uma parceria com Humberto Teixeira, Luiz
Gonzaga gravou Asa Branca. Nessa canção - retirada da tradição popular -,
Luiz Gonzaga retratou a realidade do nordestino, ilustrando as condições da
região Nordeste diante da seca e as consequências para sua população.

Em 1951, Luiz Gonzaga já era considerado o "Rei do Baião", e seu chapéu de


cangaceiro foi aceito como �gurino marcante de sua identidade. Tinha, em
seu repertório, além das composições já citadas, Juazeiro, Légua Tirana, Baião,
Que nem Jiló, Dança da Moda, Vem, Morena, Cintura Fina, A Volta da Asa
Branca, Estrada de Canindé, Olha pro Céu, Assum Preto, Sabiá e outros suces-
sos.

A carreira e o sucesso de Luiz Gonzaga tiveram oscilações no decorrer das dé-


cadas subsequentes. Porém, é inegável que o compositor reina dentro do gêne-
ro musical que passou a ser conhecido como forró - termo que engloba ritmos
e o próprio evento no qual eles são tocados (assim como a nomenclatura do
samba). Dentre os ritmos do forró, temos, por exemplo, baião, xaxado, arrasta-
pé e xote.

Luiz Gonzaga, pelo pioneirismo e pela capacidade de adaptar a música regio-


nal do Nordeste aos processos urbanos em que a música popular se encontra-
va naquele momento, passou a representar aqueles anônimos das pequenas
cidades do interior do Nordeste, ao passo que in�uenciou as gerações subse-
quentes.

Além disso, Luiz Gonzaga teria trazido ao mercado fonográ�co nomes nacio-
nalmente conhecidos, como Raimundo Fagner, Elba Ramalho e
Dominguinhos (Figuras 10 e 11).

 
Figura 10 À esquerda, Luiz Gonzaga e, à direita, com o acordeom, Dominguinhos (https://epoca.globo.com/vida/noticia

/2013/07/dominguinhos-morre-aos-72-anos-em-sao-paulo.html).

Figura 11 Da esquerda para direita: Luiz Gonzaga, Oswaldinho, Dominguinhos e Sivuca. (http://blogs.jornaldaparai-

ba.com.br/silvioosias/2018/06/25/luiz-gonzaga-dominguinhos-sivuca/)

Já na década de 1970, uma vertente da música brasileira ganhou ascensão no


país por meio das portas abertas por Gonzaga. Além dos já citados, é impor-
tante destcar também Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, Alceu Valença, entre ou-
tros, tendo então as matrizes do forró se desdobrado em novas vertentes da
música urbana.

Veremos, mais adiante em nossos estudos, que, indiretamente, o Tropicalismo


e o movimento Manguebeat são in�uenciados pela rítmica, pelo estilo e pela
valorização regional característicos à personalidade pessoal e musical de Luiz
Gonzaga (RAMALHO, 2004).

Quanto aos desdobramentos da música nordestina - para cujos registros fono-


grá�cos e urbanização Luiz Gonzaga abriu caminho -, o exemplo da canção
Princípio do Prazer  mostra como Geraldo Azevedo desenvolve a matriz nor-
destina sob in�uência da música internacional dos anos 1960 (Beatles) e dos
possíveis desdobramentos harmônicos desse estilo musical. Observe no vídeo
a seguir:
5. Bossa Nova
Para alguns autores, compositores, críticos e produtores, a Bossa Nova é, in-
discutivelmente, um divisor de águas na música brasileira.

O re�namento da harmonia, as transformações rítmicas e as inovações esti-


lísticas, diante do contraste com os boleros e "sambas de fossa" que vigoravam
até o �nal dos anos 1950, tornam a Bossa Nova um estilo único, ganhando pal-
cos do mundo todo. Inclusive, conquista nomes de peso da História da Música
Popular ocidental, como Frank Sinatra e Dizzy Gillespie.

Os primeiros passos da Bossa Nova, ou melhor, o que seria uma Pré-História


da Bossa Nova, foram dados por Johnny Alf, Dick Farney, pelo grupo Os
Cariocas, Agostinho dos Santos e Lúcio Alves.

Antes de prosseguirmos, ouça as músicas apresentadas na sequência e re�ita


a respeito da seguinte questão.
Em 1949, uma vertente do jazz denominada bebop é incorporada à música po-
pular brasileira tanto em sua estrutura quanto na maneira de interpretar
(CAMPOS, 1974). Porém, o cool jazz é o estilo que ganha mais notoriedade en-
tre aqueles que tiravam desse estilo as características que deram origem à
Bossa Nova. Campos (1974) descreve as semelhanças que podemos observar
entre ele e a Bossa Nova:

O cool jazz é elaborado, contido, anticontrastante. Não procura pontos de máximos


e mínimos emocionais. O canto usa a voz da maneira como normalmente fala. Não
há sussurros alternados com gritos (CAMPOS, 1974, p. 18).

Assim, podemos considerar que a incorporação do estilo jazzístico à música


popular realizada pelos artistas mencionados - e reconhecidos por Antônio
Carlos Jobim, principal articulador da Bossa Nova, que atribui a Johnny Alf a
paternidade do movimento - abriu caminho para as inovações que se consoli-
dariam como Bossa Nova a partir de 1958 e, de maneira de�nitiva, em 1959,
com a versão de Chega de Saudade cantada por João Gilberto, música de Tom
Jobim, letrada por Vinicius de Moraes.
Figura 12 LP Chega de Saudade de João Gilberto (1958) (https://www.musicontherun.net/2016/09/discos-para-

historia-chega-de-saudade-joao-gilberto-1959.html).

 Vamos fazer uma pausa para ouvir essa música?

Começaremos ouvindo a versão que marcou a Bossa Nova, em 1959, in-


terpretada por João Gilberto. E, na sequência, ouviremos a mesma músi-
ca, gravada em 1958, um ano antes, pela cantora Elizeth Cardoso com
João Gilberto ao violão. Ouça essas duas interpretações!

Chega de Saudade -   interpretada por João Gilberto (1959)


(https://www.youtube.com/watch?v=yUuJrpP0Mak)

Chega de Saudade - interpretada por Elizeth Cardoso com João Gilberto


ao violão (https://www.youtube.com/watch?v=ZQGbzNuqYWE)

Segundo Gomes (2010), no arranjo para Elizeth Cardoso, percebe-se o tipo de


instrumentação e estética ainda ligado à tradição da rádio e seus grandes ar-
ranjadores, como Radamés Gnatalli, que inclusive "fora professor de Tom"
(SÁNCHEZ, 1995).
Figura 13 Cantora Elizeth Cardoso (http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI20992-15220,00.html).

Por �m, vamos ouvir Johnny Alf (1929-2010). Em 1952, ele compôs e gravou
Rapaz de Bem.

 Pronto(a) para ouvir?

Rapaz de Bem - interpretada por Johnny Alf (1959) (https://www.youtu-


be.com/watch?v=FkOiG5SUFmk)

Johnny Alf foi uma grande referência para João Gilberto e também Tom
Jobim, que o chamava de "Genialf". Também inspirado pela música Rapaz de
Bem, Tom Jobim (junto a Newton Mendonça) compôs outra música que mar-
cou não apenas a Bossa Nova e o Brasil, mas in�uenciou boa parte do mundo:
Desa�nado.

Você consegue perceber proximidades entre Rapaz de Bem (https://www.youtube.com


/watch?v=FkOiG5SUFmk) e Chega de Saudade (https://www.youtube.com/wat-
ch?v=yUuJrpP0Mak)?

De fato, podemos observar que, no repertório da Bossa Nova, não encontramos


maiores nuances ligadas ao virtuosismo vocal, instrumental, mudança de
densidade ou valorização exacerbada de um ou outro instrumento. Em poucas
palavras, a ideia "menos é mais" re�ete um pouco da busca na Bossa Nova, fa-
zendo soar o que não aparecia tanto.
Esse estilo, portanto, vem acompanhado de uma concepção estilística e estéti-
ca embasada em novas visões e valores atribuídos às �guras do que agora sig-
ni�ca um movimento artístico na música popular. Seja o artista em questão
compositor, letrista ou intérprete, ele ganha novos signi�cados no movimento
que se consolidava como Bossa Nova.

Agora, "o cantor não mais se opõe em contraste como solista na orquestra"
(CAMPOS, 1974, p. 22), o intérprete se coloca de igual para igual no conjunto,
na formação instrumental. Além disso, "O intérprete igualmente se integrará
na obra como um todo, seguindo o conceito de que ele existe em função da
obra e não apesar dela" (CAMPOS, 1974, p. 22).

O cantor passa a se valorizar pela coparticipação no produto �nal e não pela


sobreposição de si na obra. O espírito de participação dilui a ideia de estrelis-
mo, personalismo e egocentrismo que vigorava anteriormente.

Fato que ilustra essa mudança de paradigma encontra-se nas primeiras vezes
em que, " [...] perante um auditório e câmeras de televisão, comparecia o cantor
João Gilberto, tão-somente para acompanhar ao violão um número musical
interpretado pela cantora Sylvia Telles" (CAMPOS, 1974, p. 22).

Da mesma forma, já não se evidenciam mais os contrastes de naipes de efeito


instrumental característico. O contraponto é mais discreto, não se sobressai e
não é gritante frente aos demais recursos instrumentais enquanto é realizado.

É importante destacar também, dentre as características do novo formato es-


trutural em voga, que o instrumento harmônico acompanhador é, pela primei-
ra vez, rítmico e harmônico ao mesmo tempo:
Obras para instrumentos como o piano e o violão (solistas ou acompanhantes) po-
dem apresentar uma estruturação harmônica realizada por acordes (ou melhor,
complexos sonoros), que desempenham duas funções: a) função harmônica, acor-
des como sustentação harmônica da composição. b) função "percutiva", acordes
para sublinhar as batidas (beats) rítmicas. Estas duas funções ocorriam em acor-
des empregados na harmonização de obras do populário tradicional; entretanto, ja-
mais de maneira coexistente. A bossa-nova concilia ambas as funções, fazendo
com que se integrem numa mesma entidade-acorde (CAMPOS, 1974, p. 23).

A maneira de Augusto de Campos signi�car a harmonia e o ritmo como


"entidade-acorde" ou "complexo sonoro" chama nossa atenção também para
mais um parâmetro estrutural dentre as características da Bossa Nova.

Por conta da incorporação do jazz de New Orleans, no padrão composicional,


as progressões harmônicas modais não se sobressaem na harmonia tonal tra-
dicional. Em vez disso, é adotada a adição da sexta maior nas tríades maiores
ou menores, formando tétrades que exercem a mesma função na harmonia
tradicional (CAMPOS, 1974).

Se a música nordestina, radicada no Rio de Janeiro com Luiz Gonzaga, a partir


de meados dos anos 1940, tem, em uma sétima menor (e por essa razão é asso-
ciada ao blues norte-americano), uma constante busca pelo repouso harmôni-
co em uma tônica, é notável na Bossa Nova o uso da sexta e também da séti-
ma maior no acorde, o que pode ser visto como um marco da Bossa Nova, ao
menos no que diz respeito à maneira de harmonizar uma melodia.

O grande marco da Bossa Nova foi a gravação da canção Chega de Saudade,


interpretada por João Gilberto em 1959. Nessa gravação, podemos notar a pre-
sença das marcas da Bossa Nova descritas anteriormente: impostação vocal
de baixa potência, sem o teor da voz de peito, característico das referências
anteriores, como Orlando Silva e Nelson Gonçalves; ritmo característico do vi-
olão; e harmonias jazzísticas, entre outras características estéticas da Bossa
Nova já mencionadas.

Ouça, se preferir, a versão que João Gilberto lançou, em 1959, da música Chega
de Saudade, acompanhando a melodia cifrada a seguir. Para ouvir a música,
basta clicar no botão de play.

O que podemos observar analisando o áudio e a transcrição da melodia cifra-


da? Entre outros aspectos, podemos compreender que, pela in�uência do jazz,
vemos, em quase todos os acordes, o acréscimo de extensões (7ª, 9ª, 11ª, 13ª...).
Acordes de tônica aparecem adicionadas de sextas ou sétimas, por vezes al-
ternadas, dando movimento contrapontístico subentendido.

Já nas progressões harmônicas, notamos dominantes individuais, progres-


sões de II-V-I, bII.... En�m, uma análise harmônica extensa e aprofundada é
cabível em uma peça tão rica em progressões harmônicas. Falaremos um
pouco mais sobre esse assunto no vídeo a seguir.

A temática da letra da música retrata também uma mudança de paradigma


trazida pela Bossa Nova. Não que a Bossa Nova nunca apresente também o
ponto de vista triste e até, às vezes, pessimista do amor. Mas a mimese, a com-
paração e o reconhecimento do belo na natureza, bem como comparações e
analogias com a mulher amada, serão frequentes, como aparece após a modu-
lação para tom maior em Chega de Saudade.

Por sintetizar em si, de certa forma repentinamente, tantas características da


Bossa Nova, essa composição ganhou importante valor na História da Música
Popular.

Podemos dizer que essa renovação do samba, com in�uência do jazz, chama-
da Bossa Nova, alcançou projeção internacional e certamente é uma das res-
ponsáveis por colocar o Brasil no mapa musical de outros países até hoje.

Partimos de um dos marcos da Bossa Nova para compreender melhor a in-


�uência do jazz, porém encorajamos que busque conhecer ainda mais a histó-
ria e a grande variedade de subgêneros do samba, tais como: samba-choro,
samba de breque, samba chulado, samba de enredo, samba-canção, partido-
alto, pagode, samba rock, samba funk, e assim por diante.

Para encerrar o estudo deste ciclo, sugerimos, agora, que você responda às
questões a seguir e avalie seu aprendizado até o momento.

6. Considerações
Neste ciclo, pudemos caminhar pelos principais fatos e transformações estéti-
cas ocorridos na Época de Ouro, na primeira difusão da música nordestina, e
na Bossa Nova. Pudemos notar quão diversi�cados são esses três momentos
em seus aspectos estilísticos, rítmicos, harmônicos e ideológicos.

É importante frisar que citamos apenas alguns nomes de cada movimento, os


mais visados dentre os artistas. A Bossa Nova, por exemplo, abarca diversos
outros compositores de real importância para sua história, como Roberto
Menescal e Carlos Lyra. Jackson do Pandeiro, por sua vez, é nome de destaque
em relação à difusão de músicas nordestinas. Radamés Gnattalli é �gura-
chave nos arranjos da Era de Ouro. E isso apenas para citar um ou outro nome.
Além disso, temos também anônimos de grande importância, aquelas pessoas
dos bastidores, como produtores, agentes, gravadoras e outros, que deram su-
porte e apostaram nas transformações que estavam por vir.

Nos ciclos seguintes, veremos que Noel Rosa e a Época de Ouro exerceram in-
�uência sobre os compositores (falaremos especialmente de Chico Buarque,
mas também há outros) que participaram ativamente da história dos Festivais
da MPB e contribuíram com a formação do próprio conceito de MPB.

Por sua vez, a música nordestina e a Bossa Nova, pelo respeito que receberam
da vanguarda artística, têm in�uência direta na formação do movimento tro-
picalista - servindo a Bossa Nova até mesmo como motivador do movimento
pela retomada da "linha evolutiva" da MPB.

Portanto, esta obra não conta a história, propriamente dita, da música popular
no Brasil, mas, sim, busca traçar um �o condutor que ilustre o desenvolvimen-
to e as relações na rica diversidade da música brasileira.
(https://md.claretiano.edu.br

/hiscrimusmusbra-g01495-dez-2021-grad-ead/)

Ciclo 4 – Música Caipira-Sertaneja, a Era do Festivais


e a Tropicália

Objetivos
• Compreender os sentidos das palavras "caipira" e "sertanejo" e conhecer
suas origens.
• Conhecer, re�etir e discutir o que a Era dos Festivais representa para a
História da Música Popular brasileira.
• Entender o contexto do movimento artístico chamado Tropicália.
• Compreender como o conceito de MPB se transformou no decorrer dos
anos 1960 e como é visto pelo viés histórico.

Conteúdos
• Viola de arame: seus tipos e usos na música caipira.
• Músicas tradicionais e a música caipira-sertaneja.
• Contexto histórico e político dos anos de 1960: a ditadura militar no
Brasil.
• História dos festivais de canção de 1965 a 1969.
• Conceito de MPB na década de 1960.
• Tropicalismo ou Tropicália.

Problematização
Quando e qual foi a primeira música caipira gravada? O que é música serta-
neja? O que é música caipira e quais são suas origens? Qual a importância
dos festivais de canção? Qual foi o contexto político da época? O que é
Música Popular Brasileira? O que foi o Tropicalismo e qual sua relação com o
Modernismo brasileiro?
Orientação para o estudo
Neste ciclo, reserve um tempo para assistir aos documentários indicados e
para dedicar-se a ouvir as músicas, prestando atenção aos elementos musi-
cais e poéticos. Busque compreender os exemplos dados (por meio de áudios
e fotos) de eventos, músicas e pessoas representativos do movimento musi-
cal da época, pois são de grande importância para o aprofundamento deste
estudo.

Vamos lá? Bons estudos!

1. Introdução
Neste ciclo, nossos estudos focarão quatro conceitos essenciais para o enten-
dimento da música popular brasileira, especialmente nos anos 1960: a Música
Caipira-Sertaneja, a Era dos Festivais, o movimento  da Tropicália e o conceito
de MPB.

Iniciaremos com um breve panorama da música caipira-sertaneja, suas in-


�uências nas músicas mais tradicionais e a mistura com outras culturas do
Brasil e do exterior. Veremos, depois, que a Era dos Festivais é caracterizada
pelos concursos de canções populares televisionados que ganharam cada vez
mais espaço nas mídias, chegando a haver uma espécie de "modelo" de can-
ção destinada a esse tipo de evento.

Além disso, os encontros artísticos direcionados aos festivais abriram portas


a novos paradigmas e à reformulação da ideia de MPB, fazendo com que
Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros artistas inaugurassem um movimento
denominado Tropicália (nome inspirado na obra plástica homônima de Hélio
Oiticica).

Veremos, por �m, como o contexto político interferiu nas composições, nos
agrupamentos artísticos e na cultura musical brasileira.

É fundamental lembrar que todas as questões abordadas neste estudo não es-
gotam o assunto. Pelo contrário, aqui você tem apenas uma introdução. É im-
portante que você realize pesquisas individuais para se aprofundar no assun-
to.

Este é um interessante ciclo a ser estudado: denso, com eclosões artísticas e


contexto que marcaram a História do Brasil. Boa leitura!

2. Música Caipira
Comecemos com música! O vídeo a seguir se inicia com Inezita Barroso
(1925-2015), uma importante referência da música caipira, anunciando a músi-
ca História de um Prego, de João Pací�co (1909-1998), acompanhado na voz e
na viola por Adauto Santos (1940-1999). Nela há um elemento central da músi-
ca caipira: a narrativa, ou melhor, os causos e as histórias.

Também é possível perceber nessa toada histórica (história, primeiro, falada e,


depois, cantada) a valorização do contexto rural. Agora ouça a música nova-
mente, acompanhando a letra e observe essa característica.
Por meio da leitura dos ciclos anteriores, você já deve ter percebido que as pa-
lavras têm história e adquirem diferentes signi�cados de acordo com o con-
texto em que são empregadas. Não haveria de ser diferente com as palavras
"caipira" e "sertanejo". Um de seus signi�cados está relacionado às pessoas
que vivem na roça ou em ambientes rurais, distantes dos núcleos urbanos, no
chamado "interior". Em outro momento, ao caipira foi associada uma imagem
pejorativa: preguiçoso, atrasado e ignorante, conforme Monteiro Lobato sinte-
tizou no personagem Jeca Tatu no início do século 20. Ao sertanejo se atribui
o signi�cado de vaqueiro do sertão nordestino, bem como, mais recentemente,
de gênero mediado pela indústria cultural, agregando diversos ritmos e in-
�uências, como guaranias paraguaias, canções rancheiras mexicanas, arro-
cha, reggae, rock, pop, country estadunidense, entre outros.

Neste tópico, abordaremos um pouco as origens dessas músicas. Vale lembrar


que não se trata de buscar um purismo na música, mas de buscar as in�uênci-
as, e, certamente, se olhadas de perto, também perceberemos que elas são re-
sultado dos encontros com outras culturas, de pessoas de outros tempos e ou-
tros lugares.

Para Corrêa (2000, p. 64), música caipira é

[...] a música produzida na região Centro-Sul do País e que preserva a essência do


meio rural. É a música que, de algum modo, tem sua origem nas manifestações tra-
dicionais típicas do povo desta região. Assim, a música caipira compreende desde
a música das famosas duplas, com seus ritmos característicos, até músicas moder-
nas e complexas, desde que essa essência ali esteja preservada.

O que chamo de "essência da música caipira" é algo extremamente sutil; é um elo


com a tradição, com o meio rural e seus códigos subjetivos. […] é um estado d'alma.
Esta essência, presente nas manifestações tradicionais, envolve amor e reverência
ao sertão.

Tomando inicialmente essa de�nição, podemos extrair dela alguns elementos


especí�cos:

1. Uma delimitação regional (Centro-Sul), diferenciada das produções serta-


nejas (de vaqueiros nordestinos).
2. Manifestações tradicionais típicas.
3. Diversidade da música caipira (das famosas duplas às músicas modernas
e complexas).
4. Algo subjetivo que Corrêa chamou de "essência da música caipira", relaci-
onado à tradição com o meio rural e suas culturas.

As manifestações tradicionais são aquelas raízes mais profundas (as que con-
seguimos acessar e sabemos que continuam se modi�cando). Ou seja, ao falar
de música caipira, nos referimos a grupos autênticos, ou seja, cuja prática mu-
sical está vinculada a sua função ritual, espiritual ou não.

Uma das importantes in�uências para música caipira é a "Folia de Reis".


Assista, a seguir, ao vídeo O Mistério de Santo Reis sobre a Folia de Reis de
Araxá no estado de Minas Gerais. Esse documentário retrata a história da
Folia de Reis, suas in�uências, os instrumentos musicais e suas característi-
cas (como a abertura das vozes).
Nas Folias de Reis, portanto, além da parte sagrada, de cortejo, visitas, devoção
aos santos, pagamento de promessas, anúncio do nascimento de Jesus, litur-
gia etc., há a parte profana, ou seja, das brincadeiras, lundu, dança do quatro,
os ponteados de viola, os causos, os desa�os de viola e assim por diante.
Focamos na Folia de Reis, porém há outras manifestações dessa natureza, co-
mo a Folia do Divino, Folia de São Sebastião, Dança de São Gonçalo, entre tan-
tas outras.

Essas manifestações populares trazem dentro de si a profundeza do sertão, a vida


da criação, o tempo de seca, o tempo das águas, os bichos, os mistérios da viola e
dos violeiros - tudo está presente nas harmonias, melodias, ritmos e entoações dos
cantadores. É por isso que a música caipira-sertaneja retrata tão �elmente a alma
brasileira (FREIRE, 2020, p. 119).

Vamos fazer, agora, uma pausa para re�etir sobre a riqueza dessas manifesta-
ções mais tradicionais. Diferentemente de alguns gêneros musicais, a história
delas foi, por muito tempo, passada entre gerações de forma oral, de modo que
os guardiões e as guardiãs desses saberes e conhecimentos, reconhecidos hoje
como mestres e mestras da cultura popular, foram as vias de acesso mais �éis
às histórias dessas manifestações. Podemos citar, por exemplo, a (r)existência
de inúmeros(as) mestres(as) de frevo (PE), jongo do Sudeste (SP, RJ, ES, MG),
tambor de crioula (MA), matrizes do samba (RJ) - partido alto, samba de terrei-
ro e samba-enredo -, capoeira, bumba meu boi (MA), tambor de crioula (MA),
fandango caiçara (PR e SP), carimbó (PA), maracatu nação (PE), maracatu de
baque solto (PE), cavalo-marinho (PE), caboclinho (PE) apenas para citar aque-
les reconhecidos como bens culturais pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) até 2019.

A maioria dessas manifestações é apresentada em ótimos materiais audiovi-


suais que ajudam a compreender melhor do que se tratam, mas é preciso sa-
ber que há uma grande distância entre conhecê-las por meio desses materiais
(ou ler sobre elas) e vivenciá-las intensamente (e, ainda assim, talvez não in-
teiramente, como muitas das pessoas que delas fazem parte), mesmo que ape-
nas por alguns dias.

Vamos nos aprofundar um pouco mais no conhecimento de alguns ritmos da


música caipira? Para isso, assista ao vídeo a seguir.

Voltando à música caipira, uma outra manifestação de cultura caipira é a cati-


ra ou cateretê, em que, acompanhadas da viola, são realizadas coreogra�as rit-
madas com as palmas e passos. No vídeo a seguir você poderá ver como a ca-
tira é dançada.

A viola é algo comum nas diversas manifestações caipiras. Esse instrumento


foi introduzido logo no início da colonização, trazida por colonos e jesuítas.
Segundo Corrêa (2000, p. 21), "No século XV e, sobretudo, no século XVI, era
largamente difundida em Portugal, sendo considerada o principal instrumen-
to dos jograis e cantares trovadorescos, como revelam alguns relatos desta
época". O autor denomina uma variedade de nomenclaturas ou tipos do ins-
trumento, também chamado de "viola de arame": viola de dez cordas, viola de
pinho, viola caipira, viola nordestina, viola de fandango, viola sertaneja, viola
de feira, viola brasileira, viola branca, viola pantaneira, viola campeira, viola
cabocla, entre outros. Além deles, há outros instrumentos derivados da viola
de arame, como a viola de cocho, viola de buriti, viola de cabaça e de viola de
bambu, conforme podemos observe na Figura 1.

Figura 1 Diversos tipos de viola, com destaque para a viola de buriti (1ª à esquerda) e viola de cocho (2ª superior, da es-

querda para direita) (https://www.recantocaipira.com.br/eventos/voa_viola/voa_viola.html).

A seguir, ouça a música Viola, de Levi Ramiro e João Arruda, e perceba, além
da letra, que a "viola de cabaça" tocada por João é feita do fruto com o qual se
faz o verso da viola - por isso, seu formato é bastante distinto do tradicional
violão.

 Quer saber mais?

Para aprofundar seus conhecimentos a respeito desse assunto, assista ao


documentário Violas - O fazer e o tocar em Minas Gerais (https://youtu.be
/y-4l_02DyDg) sobre os fazedores e tocadores de violas em Minas Gerais.
A partir de agora, faremos uma rápida passagem por alguns nomes marcantes
da música caipira. Começamos com Cornélio Pires (1884-1958), que fundou o
primeiro selo de música caipira, produzido e distribuído de forma independen-
te.

Cornélio levou a dupla Mandi e Sorocabinha (Figura 2) a realizar a primeira


gravação de música caipira no Rio de Janeiro, em 1929.

Figura 2 A dupla Mandi e Sorocabinha (http://www.joaovilarim.com.br/blog/curiosidades-de-duplas-compositores-

e-interpretes/alguns-detalhes-do-pioneiro-cornelio-pires.html).

Angelino Oliveira (1888-1964) compôs Tristeza do Jeca, que retrata a realidade


do caipira, tema que não fazia parte dos mais bem-sucedidos da época. Apesar
de ter sido apresentada pela primeira vez em 1918, a canção só se tornou popu-
lar em 1937, quando gravada pelo cantor Paraguassu (1890-1976). A canção re-
trata a realidade de vida do caipira que, apesar das suas tristezas, sente sauda-
des da terra após migrar para os grandes centros (FREIRE, 2020). A seguir,
acompanhe, juntamente com o vídeo, a letra dessa música.
 

Já ouvimos, no início deste ciclo, uma música cantada por João Pací�co, em
que Inezita Barroso faz uma participação. Você se recorda?

Inezita era profunda pesquisadora e conhecedora das manifestações culturais


brasileiras, tendo ampla experiência em apresentações de programas musi-
cais.

Figura 3 Inezita Barroso compondo (http://artenocaos.com/feminismo/inezita-barroso-a-folclorista-do-brasil/).


Figura 4 Inezita Barroso cantando (https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/viver/2015/03/aos-90-anos-

morre-a-cantora-caipira-inezita-barroso.html).

Ouviremos agora Pingo d'água, música escrita por João Pací�co e interpretada
por Inezita Barroso.

Assim como Inezita Barroso, Rolando Boldrin (1936-) é uma importante refe-
rência na divulgação e pesquisa da música caipira-sertaneja. Som Brasil,
Empório Brasileiro, Empório Brasil e Sr. Brasil são alguns importantes progra-
mas televisivos conduzidos por ele.

Para representar a in�uência de países latino-americanos como Paraguai e


México, com seus boleros, guarânias, polcas, chamamés, ouça a música Índia,
de José Asunción Flores e Manuel Ortiz Guerrero, composta no ano de 1952.
Trata-se de uma guarânia paraguaia, interpretada por Cascatinha e Inhana.
Essas in�uências também se re�etiram na utilização de outros instrumentos
musicais, tais como harpas paraguaias, trompetes e violinos, bem como em
certo abandono da viola caipira.

Para representar o sucesso das duplas sertanejas nas últimas décadas, ouça a
música   Fio de Cabelo, que foi responsável por alavancar a carreira de
Chitãozinho e Xororó e faz parte do oitavo álbum da dupla, lançado em 1982.

Além de retomarem músicas mais tradicionais do universo rural do Brasil, es-


ta dupla (que foi e continua sendo referência para muitas outras) também
trouxe fortes in�uências estadunidenses seja pelos ritmos, letras, instrumen-
tação, vestimenta, relações com as gravações e shows.

Sabemos que, até aqui, deixamos para trás muitos nomes marcantes da músi-
ca caipira-sertaneja. Esperamos, entretanto, que este material possa mostrar
um pouco mais da riqueza da nossa música que está viva e se transforma a
cada dia a partir dos encontros e desencontros de pessoas e suas culturas. Já
que costuramos nosso estudo apresentando músicas tocadas na viola, em
nossa "amarração �nal", mostraremos as abrangências desse instrumento na
música Viola Cósmica, de Gildo Guedes e Pereira da Viola.
 

Antes de seguir para o próximo tópico, ouça o que o violeiro, pesquisador e


professor Ivan Vilela fala sobre música regional, Quarteto Novo, Clube da
Esquina, Tropicália, e a manutenção e transformação da cultura caipira, liga-
da à viola. Trata-se de uma fala que constitui ótimo fechamento para este tó-
pico e de abertura para o que virá, dedicado à Era dos Festivais e Tropicália.

3. A Era dos Festivais


Antes de iniciarmos nossos estudos sobre a Era dos Festivais, assista ao vídeo
O que é o "popular?", apresentado a seguir:

Contextualização histórica
Para compreendermos o que se chamou Festivais da Canção, é importante
contextualizarmos o conceito no tocante à situação política brasileira nos
anos em que foram realizados, ou seja, entre 1964 e 1968.

A partir de 1964, o Brasil viveria o mais extenso período ditatorial de sua his-
tória. Segundo Silva (2021), não era a intenção de todos os participantes do gol-
pe que a ditadura durasse tanto e tomasse as medidas e proporções que to-
mou. A intenção era que o golpe tivesse um efeito "saneador". Ou seja,
pretendia-se eliminar, com uma breve intervenção militar na política, quatro
elementos entendidos como problemas que vinham comprometendo a ordem
e a estabilidade política (SILVA, 2021):

[...] a forte mobilização política induzida pela demagogia populista; o amplo espec-
tro de organizações, movimentos e mecanismos sob os quais atuava a subversão
comunista; a corrupção e o comportamento predatório na gestão política e
administrativa do Estado [...]; e, por �m, a estatização intoleravelmente crescente a
que se havia submetido o conjunto da economia (SILVA, 2021, n. p.).

Em verdade, estes eram os argumentos que atraíram mais adeptos a apoiar


uma medida radical e, em princípio, provisória para sanar os problemas por
que o Brasil vinha passando. Em suma, como motivos do golpe, temos a queda
de braço entre direita e esquerda, na qual estavam em jogo a crescente in�a-
ção e instabilidade �nanceira devido à má administração - as medidas econô-
micas só pioravam a situação -, e os movimentos estudantis em defesa de ide-
ologias de esquerda.
Se, por um lado, tínhamos no poder, em 1961, Jânio Quadros, com intenções
como as de criar uma nova Constituição e dobrar o salário mínimo (e, posteri-
ormente, João Goulart, com o imposto sobre grandes fortunas), tínhamos, por
outro, os interesses da aliança entre empresários, industriais e a própria Igreja
Católica (com a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade"):

Assim, massivo �nanciamento e apoio dos meios de comunicação tornaram


possível a desestabilização e transformação da opinião pública, o que deu
abertura ao golpe civil-militar de 1964.

Dentro desse conturbado período, o posicionamento ideológico sobre a música


popular nacional se vê em inevitável transformação: "Para os envolvidos nes-
te debate tratava-se de rede�nir não só o lugar da música popular, mas tam-
bém o seu papel político e ideológico e o seu estatuto e identidade" (FORTES
FILHO, 2008, p. 27).

Nesse contexto, então, quais teriam sido as contribuições dos Festivais da


Canção para as transformações ideológicas que permearam a ideia de música
popular nos primeiros anos de ditadura? Para respondermos a essa questão, é
preciso compreender, primeiramente, o que foram os Festivais da Canção e a
sua contribuição para a música em si.

Os festivais
O período que �cou conhecido como Época ou Era dos Festivais teve seu iní-
cio em 1960 e seu ponto �nal, em 1972 (MELLO, 2003). Promovido pela Rádio e
TV Record, o festival denominado "As Dez Mais Lindas Canções de Amor" foi o
primeiro concurso a abarcar compositores de outros estados - que não os do
eixo São Paulo-Rio de Janeiro - e teve como vencedor Ary Barroso com a
Canção em Tom Maior.

 Vamos ouvi-la?

Canção em Tom Maior - (https://www.youtube.com/wat-


ch?v=nyygdNEI6jk) defendida por Ted Moreno (https://www.youtu-
be.com/watch?v=nyygdNEI6jk)

Embora não fosse de tanta expressão, não tivesse nome de festival nem con-
curso, a "I Festa da Música Popular Brasileira" entrou para a História por ser o
primeiro evento de âmbito nacional e pela própria produção da Rádio e TV
Record, a qual mais tarde organizaria eventos de proporções maiores (MELLO,
2003).

Já em 1963, mais um festival acontecia, agora com o nome "Um Milhão Por
Uma Canção", com o compositor Luís Antônio alcançando a primeira coloca-
ção com Uma Canção por Um Milhão, seguido de Ary Barroso e Luís Peixoto
com a canção Longe de Você. Em 1965, foi a vez de Jacobina e Murilo Latini le-
varem o primeiro prêmio, com a canção A lei do mais forte. Apesar de tantos
festivais nesse período, os Festivais da Canção tiveram seu momento áureo
entre 1965 e 1968.

Tenha em mente que as apresentações atraíam mais interesse e audiência do


que o futebol. A �nal do terceiro Festival de Música Popular Brasileira da TV
Record, em 1967, atingiu inacreditáveis 97% de audiência do Ibope (RIBEIRO,
2020). Também durante esse período, tivemos dois programas musicais de TV
que reforçaram ou ajudaram a criar um movimento cultural, são eles: O Fino
da Bossa e Jovem Guarda.

O programa O Fino da Bossa, na TV Record, era apresentado por Elis Regina e


Jair Rodrigues e foi ao ar entre 1965 e 1967.

Figura 5 Elis Regina e Jair Rodrigues (https://rollingstone.uol.com.br/noticia/jair-rodrigues-foi-um-grande-parceiro-

musical-de-elis-regina-nos-viviamos-num-mar-de-rosas/).
A maior parte das edições teve o acompanhamento do Zimbo Trio (Amilton
Godoy, Luís Chaves e Rubinho Barsotti) e convidados como Tom Jobim,
Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi e Os Cariocas. No vídeo a seguir, você po-
derá apreciar um trecho desse programa. Vamos assistir a ele?

Já o programa Jovem Guarda, que pode ser assistido a seguir, foi criado para
substituir a transmissão de futebol aos domingos que, por ser ao vivo, havia
sido proibida. Exibido entre 1965 e 1968, com apresentação de Roberto Carlos,
Erasmo Carlos e Wanderleia, criou um movimento cultural, lançou moda e gí-
rias, extrapolando o âmbito musical. Cabe lembrar a in�uência do rock and
roll como uma fonte principal de inspiração para a música e a estética da
Jovem Guarda. Inicialmente, muitas canções eram versões em português das
músicas britânicas ou estadunidenses e, após o término do programa, cada ar-
tista tomou rumos distintos musicalmente (música romântica, sertaneja, rock
etc.).

Vamos, então, conhecer mais de perto os festivais ano a ano? O primeiro festi-
val que conheceremos ocorreu no ano de 1965.

Festival de 1965
Nesse ano, a TV Excelsior realizou o "I Festival da Canção". Na edição, despon-
tavam os primeiros nomes que um festival lançaria ao Brasil: Edu Lobo e Elis
Regina. A composição Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, venceu es-
se festival da TV Excelsior, revelando, de uma só vez, Edu Lobo como compo-
sitor e Elis Regina como intérprete (COELHO, 1998). Logo, a composição estaria
entre as primeiras nas paradas de sucesso e listas de vendagem. Vamos ouvir
essa canção?

Ao longo da História, Arrastão ganhou mais de 50 regravações, virou tema de


�lme e sua intérprete, Elis Regina, na época com 21 anos, passou a �gurar en-
tre os grandes nomes da MPB" (COELHO, 1998, p. 64). Diante de tamanho su-
cesso, nomes como Chico Buarque de Holanda e Geraldo Vandré - classi�ca-
dos entre os doze �nalistas - continuaram no anonimato.

Festivais de 1966
A canção que introduz os Festivais de 1966 foi a Banda, interpretada por Chico
Buarque. Aprecie a seguir.

Nesse ano, mais de um evento ganhou importância na Era dos Festivais:  


Festival Nacional de Música Popular Brasileira, Festival Internacional da
Canção e Festival da Música Popular Brasileira. O "II Festival de Música
Popular Brasileira" - transmitido por TV Record, TV Paulista e TV Globo, reali-
zado no Teatro Record em setembro/outubro de 1966 - teve um empate na pri-
meira colocação entre A Banda de Chico Buarque (interpretada por Nara Leão
e o próprio compositor que você escutou no vídeo acima) e   Disparada, de
Geraldo Vandré e Théo de Barros, interpretada por Jair Rodrigues.
Acompanhe!

Em segundo lugar, �cou De Amor ou Paz, de Luiz Carlos Paraná e Adauto


Santos, interpretada por Elza Soares. Vamos ouvi-la?

Festival de 1967
O "II Festival Internacional da Canção Popular" teve como vencedora
Margarida, de Gutemberg Guarabyra, interpretada pelo compositor e também
pelo Grupo Manifesto. Em segundo lugar, estava o até então anônimo Milton
Nascimento, que participou como intérprete e compositor, ao lado de Fernando
Brant, com a canção Travessia (música que ouviremos na sequência). E, em
terceiro lugar, �cou Chico Buarque, com Carolina, interpretada por Cynara e
Cybele.

Porém, o marco do ano de 1967 (e por que não dizer de todos os festivais?) �-
cou por conta "III Festival de Música Popular Brasileira", promovido pela TV
Record. Veremos a importância dele mais adiante. Esse festival permeia toda
a discussão e os tópicos levantados para organizar a discussão sobre os festi-
vais. Por isso, recomendamos que assista, a seguir, a um trecho do documen-
tário Uma Noite em 67 (2010), de Ricardo Calil e Renato Terra.

A classi�cação das músicas vencedoras foi a seguinte:

• 1º lugar: Ponteio, de Edu Lobo e Capinam, com os intérpretes Marília


Medalha, Momentoquatro, Quarteto Novo e também o próprio compositor.
• 2º lugar: Domingo no Parque, de Gilberto Gil, com os intérpretes Os
Mutantes e também o próprio compositor.
• 3º lugar: Roda Viva, de Chico Buarque, com os intérpretes MPB4 e tam-
bém o próprio compositor.
• 4º lugar: Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, com os intérpretes Beat Boys
e também o próprio compositor.
• 5º lugar: Maria, Carnaval e Cinzas de Luiz Carlos Paraná, com o intérprete
Roberto Carlos.

Ouça a música Domingo no Parque, de Gilberto Gil e analise a letra, que narra
uma história entre José, João e Juliana. Perceba como os elementos da histó-
ria são amparados por elementos musicais.
 

Segundo Ribeiro (2020), nesta edição do festival:

[...] aconteceu o ponto mais alto desse processo artístico, a�rmação de todo o traba-
lho iniciado no Teatro de Arena e seu 150 lugares - com a introdução das guitarras
e instrumentos eletrônicos, até então proibidos, e a nova estética sonora proposta
por Rogério Duprat no arranjo de "Domingo no parque", no que foi rotulado como
"som universal", precursor do tropicalismo. Um momento de emocionante confron-
tação política e estética, que mudaria de�nitivamente os rumos da MPB. Mais adi-
ante, em uma noite de 1968, Tom Zé, com sua "São, São Paulo, meu amor", abriria
caminho de�nitivamente para o tropicalismo, trazendo à tona explosivas contradi-
ções que eclodiram no III Festival Internacional da Canção da Globo (RIBEIRO, 2020,
p. 210).

Festival de 1968
O ano de 1968 encerra o momento áureo dos festivais. Outros aconteceriam
nos anos subsequentes, contudo, com as tendências culturais e políticas da
época, como o Tropicalismo e a implementação do AI-5, os festivais perderam
força.

Em 1972, Jorge Ben, hoje conhecido como Jorge Ben Jor, venceu com Fio
Maravilha. Dominguinhos participou em 1979, vencendo com a canção Quem
me levará sou eu, com a interpretação de Fagner. Nesse mesmo ano, também
participam Walter Franco, com Canalha e Oswaldo Montenegro, com a canção
Bandolins. Ainda há o "MPB-Shell" em 1982 e o "Festival dos Festivais" em
1985, com destaque para a interpretação de Tetê Espíndola, vencedora com
Escrito nas Estrelas.

Retornando ao ano de 1968, o "III Festival Internacional da Canção Popular"


tem maior destaque entre os realizados. O primeiro prêmio foi para Sabiá
(Chico Buarque e Tom Jobim), com as intérpretes Cynara e Cybele. O segundo
lugar �cou para Pra não dizer que não falei das �ores (Geraldo Vandré), inter-
pretada pelo próprio compositor. Já o terceiro lugar foi para Andança (Danilo
Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós), interpretada por Beth Carvalho
e Golden Boys.  Vale lembrar que a música de Geraldo Vandré havia se tornado
um hino contra a ditadura:

Na �nal daquele festival, com o Maracanãzinho lotado, os militares impuseram a


canção vencedora à já então maior rede de televisão do país. Geraldo Vandré, cami-
nhando e cantando "Pra não dizer que não falei das �ores", estava proibido de ven-
cer Tom Jobim e Chico Buarque. O resultado provocou uma das maiores e mais in-
justas vaias da história dos festivais. O que se viu a seguir foram momentos pouco
musicais, que deixaram sequelas até hoje não superadas. Os festivais foram inter-
rompidos por razões econômicas e principalmente políticas (RIBEIRO, 2020, p. 210).

No documentário apresentado na sequência, você conhecerá um pouco mais


de Geraldo Vandré, que também foi compositor da música Disparada, vence-
dora do festival em 1966, com interpretação de Jair Rodrigues. Podemos dizer
que Geraldo também teve participação na criação do Quarteto Novo (Hermeto
Pascoal, Theo de Barros, Heraldo do Monte e Airto Moreira).
Figura 6 Quarteto Novo (Theo de Barros, Hermeto Pascoal, Airto Moreira e Heraldo do Monte) (https://www.youtu-

be.com/watch?v=Up3ip6Vk5oE&ab_channel=Brunovisk).

O Quarteto Novo também acompanhou Edu Lobo e Marília Medalha, defen-


dendo a música Ponteio no festival de 1967, recebendo o 1º lugar. O quarteto é
referência até os dias atuais de música instrumental, tendo gravado um único
disco, pela gravadora Odeon (1967). Suas músicas são apresentadas a seguir.
Para ouvi-las clique nos ícones.
 

Por �m, ouça o que têm a dizer alguns dos integrantes do Quarteto Novo sobre
a música:

Considerações sobre o re�exo dos festivais sobre a música


popular brasileira
Dentre diversos elementos da Era dos Festivais que contribuíram com trans-
formações na música popular, destacam-se três aspectos marcantes:

1. Aparecimento de um considerável número de artistas que permanecem,


de uma ou outra forma, no cenário e/ou nas audições dos espectadores da
música popular.
2. A instituição da sigla MPB como "rótulo", padrão, demarcação de territó-
rio musical e processo composicional.
3. O ponto de encontro entre músicos de diferentes ideais de musicalidade,
segmentos e in�uências musicais, gerando a efervescência que culminou
no Movimento Tropicalista a partir de 1968.

Os festivais e o surgimento de "nomes de peso"


Entre os artistas participantes dos festivais, temos aqueles que tiveram suas
carreiras projetadas (do anonimato ao estrelato, em alguns casos) e aqueles, já
conhecidos, que tiveram ainda mais sucesso após a participação nos festivais.
No Quadro 1 a seguir, são elencados alguns dos compositores e intérpretes que
tiveram suas carreiras projetadas pelos festivais.

Note que não são citados aqueles que já tinham carreiras de sucesso, como
Nara Leão, Elza Soares e Roberto Carlos, este último reformulando o estilo de
seu repertório para se enquadrar no padrão dos festivais. Também não são
mencionados aqueles que participaram, mas continuaram sem maiores reper-
cussões no meio musical.

Atente para o caso especial de Geraldo Vandré, que teve sua carreira alavanca-
da pelos festivais, continuando relativamente conhecido até hoje, mas que
saiu de cena justamente pelo forte impacto causado por sua música. Para
compreender o que isso quer dizer, não deixe de assistir ao documentário O
que sou nunca escondi, indicado anteriormente. Se você se atentou a ele, viu
que Geraldo Vandré foi um símbolo da música de protesto e suas consequênci-
as perante o AI-5.

Quadro 1 Artistas projetados pelos festivais.

COMPOSITORES INTÉRPRETES
Edu Lobo
Geraldo Vandré
Nana Caymmi
Chico Buarque de Hollanda Jair Rodrigues

Milton Nascimento Milton Nascimento

Capinam Os Mutantes

Gilberto Gil Beth Carvalho

Caetano Veloso

Fonte:  elaborado pelos autores.

Assim, este aspecto dos festivais, a criação de "nomes de peso", ligado aos ou-
tros dois listados, constitui uma das razões para os festivais ganharem desta-
que na História da Música Popular.

Os festivais como ponto de encontro entre os artistas


Veremos que os festivais, além de lançarem para o mercado compositores e
intérpretes para formar o que chamamos de MPB, foram também ponto de en-
contro entre artistas, fazendo eclodir novas tendências, opiniões e estéticas.
Se, por um lado, temos uma moldagem entre compositores e intérpretes, te-
mos, por outro, as interações entre grupos de gêneros diversos, como no caso
dos Beat Boys com Caetano Veloso, Gilberto Gil com Os Mutantes e Beth
Carvalho com os Golden Boys. Veremos, mais à frente, que essas "misturas" no
palco deram início a novos paradigmas dentro da música popular.

Os festivais e a "institucionalização" do conceito de MPB


Como vimos no início deste Ciclo 4, o Brasil viveu um golpe militar em 1964. A
partir de então, as políticas, sejam elas governamentais ou culturais, passa-
ram a ser discutidas em todos os âmbitos, inclusive no da música: "Para os en-
volvidos neste debate, tratava-se de rede�nir não só o lugar da música popu-
lar, mas também o seu papel político e ideológico e o seu estatuto de identida-
de" (NAPOLITANO, 1998, p. 93).

Mas qual a relação entre os festivais e o conceito de MPB?

José Miguel Wisnik aponta para uma pista: "Entre os Festivais de 65 e 68, a expres-
são MPB originou-se e vigorou como senha por intermédio da qual uma cultura
cancional 'universitária' então efervescendo distinguia-se da cultura de massa no
sentido estrito" (NAPOLITANO, 1998 p. 93).

Se já eram calorosas as discussões idealistas sobre nacionalismo, jazz e Bossa


Nova, nessa nova temática, a música popular é ainda mais discutida, e seu pa-
pel como identidade, ainda mais reforçado.

Nesse contexto, o conceito de MPB começa a se formar a partir do pensamen-


to da classe média que participava da mídia, dos processos de gravação e pro-
gramas de TV. Embora já tivéssemos O Fino da Bossa e Jovem Guarda, os fes-
tivais se faziam os mais representativos para tal �nalidade: "Os festivais de-
sempenharam um papel capital no processo que analisamos, proporcional ao
seu grande impacto social, como catalizador de um debate que extrapolava o
campo musical" (NAPOLITANO, 1998, p. 98).

Ao longo deste ciclo, surgiu e se consagrou a expressão Música Popular Brasileira


(MPB), sigla que sintetizava a busca por uma nova canção que expressasse o Brasil
como projeto de nação idealizado por uma cultura política in�uenciada pela ideolo-
gia nacional-popular e pelo ciclo de desenvolvimento industrial, a partir dos anos
50 (NAPOLITANO, 2002, p. 1).

Nesse ponto, é importante ressaltar a "faca de dois gumes" do papel da televi-


são. Se, por um lado, ela deu visibilidade aos artistas, fazendo-os chegar ao pú-
blico, por outro, via como necessidade um padrão como produto de vendagem,
criando, assim, "rótulos" em que se enquadrariam os artistas (NAPOLITANO,
1998).

Antes do Festival da Record de 1967,


[...] o critério básico para de�nir se a canção era "genuinamente" MPB consistia em
alguns requisitos básicos: não utilizar instrumentos eletri�cados (identi�cados
com o "iê-iê-iê" de Roberto Carlos e com o Rock anglo-americano); incorporar al-
guma citação, na interpretação e no arranjo, da "tradição" rítmico-melódica do
samba ("rasgado" ou de "meio de ano") ou de algum outro ritmo da "raiz" (como os
ritmos nordestinos); e, obviamente, ser cantada em português (NAPOLITANO, 1998,
p. 99).

Estando os festivais representados como o mais forte meio de chegar ao su-


cesso, o modelo de MPB estava, na mesma proporção, sendo respeitado pelos
artistas. Perceba que até o "rei" Roberto Carlos acaba deixando seu iê-iê-iê pa-
ra participar dos festivais com Maria, Carnaval e Cinzas, canção que fala de
uma pessoa pobre, que nasce e morre no samba e no carnaval, tema bem dife-
rente dos calhambeques e brotos dos temas da Jovem Guarda.

Contudo, as apresentações tanto de Gilberto Gil e Os Mutantes quanto de


Caetano Veloso e os Beat Boys dividiram opiniões no Festival da Record de
1967. A implementação da instrumentação de bandas de rock em Alegria,
Alegria (Caetano Veloso) e a desconstrução da ideia "mocinho e bandido" ou o
povo como herói de Domingo no Parque (Gilberto Gil), enfatizados com a boa
classi�cação no Festival, quebraram o protocolo do modelo MPB. Contudo, não
inauguraram um conceito novo, mas, sim, redirecionaram a ideia de MPB pa-
ra um novo ambiente. Esse feito se concretizou no Tropicalismo, assunto de
nosso próximo tópico.

Tropicália
Como vimos, o Tropicalismo, ou a Tropicália, surgiu por meio de Caetano
Veloso e Gilberto Gil. A sede por uma nova concepção de música que agregas-
se a diversidade brasileira e internacional começou a ganhar forma no
Festival de 67, com o sucesso das canções inovadoras nos âmbitos composici-
onal e instrumental.
O Movimento denominado tropicalismo ou tropicália, surgido em São Paulo no �m
da década de 60 por iniciativa de compositores baianos herdeiros da bossa nova
carioca nos meios universitários de Salvador, constituiu a tentativa de - como de�-
niria o próprio líder do grupo, Caetano Veloso - obter "a retomada da linha evolutiva
da tradição da música brasileira na medida em que João Gilberto fez". [...] Tal reto-
mada da "linha evolutiva" aparecia como a tentativa de criação a partir do rock
americano e de seu instrumental eletri�cado, de um sucedâneo musical brasileiro
semelhante ao obtido dez anos antes em relação ao jazz, através da bossa-nova
(TINHORÃO, 1998, p. 323).

Porém, diferentemente da Bossa Nova, o Tropicalismo se fazia um ideal antro-


pofágico que remodelava as ideias modernistas de Oswald de Andrade. Agora,
o movimento Tropicália se valia de outras linguagens artísticas para compor
seus ideais.

Do Cinema Novo, o �lme Terra em Transe, de Glauber Rocha, inspirou e foi


contemplado como umas das principais in�uências do movimento por seus
idealizadores. Nas artes visual, Hélio Oiticica foi a referência, com a obra
Tropicália (Figura 7). Caetano Veloso, ao saber da obra do artista plástico, deu
nome a uma de suas composições e adotou o termo como nome do movimen-
to.

Figura 7 De Helio Oiticica (1937-1980), obra Tropicália, apresentada pela primeira vez em 1967 (https://www.acriti-

ca.com/blogs/bem-viver-blog/posts/autora-dos-poemas-da-obra-tropicalia-de-helio-oiticica-lanca-livro-em-ma-

naus).
Dentro da própria música, o velho e o novo, o requintado e o brega, o interiora-
no e o internacional conviviam, a �m de formar a sonoridade pretendida por
eles, segundo a ideologia e a estética desse grupo.

Além disso, as dinâmicas no palco e nos shows tinham performances total-


mente diferentes daquilo que se via até então. Por exemplo, a participação de
Hélio Oiticica no movimento ocorreu quando Caetano Veloso e Gilberto Gil fo-
ram presos, em 27 de dezembro de 1968, e os motivos da prisão foram uma
"deturpação do Hino Nacional" e o uso da bandeira "seja marginal, seja herói"
criada por Hélio Oiticica. Vamos assistir ao vídeo apresentado na sequência
para compreender um pouco mais a esse respeito.

 Quer saber mais?

Para ilustrar ainda mais as concepções do Tropicalismo, aprecie, a se-


guir, a audição da canção denominada por Caetano Veloso como
Tropicália (https://www.youtube.com/watch?v=1Z1qNsm-NUk&
feature=youtu.be).

Logo na introdução dessa música, percebemos o uso da já desenvolvida músi-


ca concreta e eletroacústica criada por Pierre Schaeffer.

O som da �oresta nos remete aos ancestrais que aqui existiam antes da chega-
da de Cabral. Enquanto isso, a percussão nos remete à matriz africana da cul-
tura brasileira. A menção à Carta de Pero Vaz de Caminha indica ainda mais a
origem mais remota da cultura brasileira.
O que isso tem de tropicalista? Remeter-nos à origem pode signi�car tudo que
há no Brasil, o mesmo berço de todos os ritmos, estilos e gêneros. Outro aspec-
to seria a fertilidade da música brasileira (ou da cultura como um todo), com-
parada às terras mencionadas por Caminha. Porém, qual seria o signi�cado
dramático e suspenso que a instrumentação aplica junto à voz?

A letra da música remete às belezas naturais e àquilo que remete o nosso ima-
ginário a elas: chapadões, verdes matas, luar do sertão, coqueiro, brisa, faróis,
praias como a de Iracema (CE) e Ipanema (RJ).

Ao mesmo tempo (e por vezes, com as mesmas palavras), a cultura brasileira


aparece com canções (Luar do Sertão, A Banda, Que Tudo Mais Vá Pro
Inferno), programas de tevê (O Fino da Bossa), a própria Bossa Nova, a literatu-
ra (Iracema, de José de Alencar), Carmem Miranda, o cinema, com o "bangue-
bangue". Além disso, há o Brasil da "criança feia e morta", incluindo a estética
do feio à música.

Figura 8 Capa do álbum Tropicália ou Panis et Circensis (https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2018/08

/07/tropicalia-ou-panis-et-circencis-completa-50-anos-conheca-os-bastidores-do-disco.ghtml).

En�m, tudo isto em uma só "panela" é o que dá o tom do Tropicalismo: desde


in�uências da Época de Ouro, como Luar do Sertão e Carmem Miranda, até às
mais recentes, como Roberto Carlos e Chico Buarque. Isso faz transparecer que
Caetano Veloso quer agregar todos em um mesmo espaço, no movimento que
ele inaugura.

No mais representativo álbum do Tropicalismo, denominado Tropicália ou


Panis et Circensis, temos a participação dos principais nomes do
Tropicalismo: Rogério Duprat, Os Mutantes, Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Capinam, Torquato Neto, Gal Costa, Nara Leão e Tom Zé.

 Quer saber mais?

Assista ao programa O Som do Vinil, "Parte (https://youtu.be


/tLuzTt0V928) 1" (https://youtu.be/tLuzTt0V928) e "Par (https://youtu.be
/RVizUr6WtS0)te (https://youtu.be/RVizUr6WtS0) 2 (https://youtu.be
/RVizUr6WtS0)" dedicado a esse disco, e conheça um pouco mais sobre
as histórias que envolvem sua concepção.

Nesse disco de 1968, agrega-se variada sonoridade, dsde música concreta/ele-


troacústica e in�uência dos Beatles contida nos trompetes da canção Panis et
Circencis  (nitidamente incorporados a partir da canção  Penny Lane), passan-
do pelo brega em Coração Materno, até a mistura entre percussão afro, solos e
poesia concreta em Bat Macumba.

 Vamos ouvir um pouco mais?

Ouça os exemplos das canções mencionadas a seguir:

Panis et Circensis -   interpretada pelo grupo Os Mutantes (1968)


(https://www.youtube.com/watch?v=wVPOJDI7z8g)

Coração Materno - interpretada por Caetano Veloso (1968)


(https://www.youtube.com/watch?v=y0ySUT0yTzo)

Bat Macumba - interpretada por Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e
Os Mutantes (1968) (https://youtu.be/uxCs7OkfpVI)

Segundo Naves (2000, p. 42), "No movimento tropicalista, a tradição musical é


valorizada, embora se faça um recorte diferente dos elementos culturais a se-
rem utilizados". Em 1968, temos o endurecimento do regime militar no país,
especialmente com o Ato Institucional nº 5. Apenas 14 dias após o AI-5, Gil e
Caetano foram presos, con�rmando, assim, o �m (previamente anunciado) do
movimento tropicalista. A Tropicália, apesar de breve, deixou uma marca pro-
funda na música brasileira, in�uenciando gerações de compositores(as) e in-
térpretes.

Após a apresentação dos conceitos estudados neste ciclo, vamos realizar al-
guns exercícios para avaliar sua aprendizagem? Agora, é com você!

4. Considerações
Concluímos aqui um pequeno esboço do que se deu na música Caipira-
Sertaneja e na música Popular Brasileira dos anos 1960; ainda assim, não tra-
tamos de todos os artistas, músicos, compositores, opiniões etc. Esta é apenas
uma pequena fatia (aquela de mais visibilidade) do período em questão.

Recomendamos que você não esgote seus estudos sobre os temas discutidos
aqui, mas que use esta obra como de ponto de partida para seu aprofundamen-
to na vastidão da música popular brasileira dos anos 1960.
(https://md.claretiano.edu.br

/hiscrimusmusbra-g01495-dez-2021-grad-ead/)

Ciclo 5 – Clube da Esquina, Rock e Manguebeat

Objetivos
• Conhecer o contexto cultural, social e político do que se chamou Clube
da Esquina, Rock Nacional e Manguebeat.
• Identi�car alguns dos ritmos e gêneros das denominações em questão.
• Conhecer alguns nomes da música popular do período estudado.
• Reconhecer os grupos que construíram a música popular nesse período
e identi�car qual sua função social.

Conteúdos
• Clube da Esquina.
• Rock
• Manguebeat.

Problematização
O que foi o Clube da Esquina? O que esse grupo de pessoas apresentou de no-
vo na música brasileira? Como surgiu o rock nacional? Quais foram as ban-
das e personagens do rock até os anos 1980? O que é o Manguebeat? Quais
suas in�uências e características?

Orientação para o estudo


Além dos assuntos abordados neste ciclo, disponibilizamos também docu-
mentários e entrevistas que podem ajudá-lo a compreender o Manguebeat, o
rock e o movimento punk. Por isso, é essencial que você se concentre ao es-
cutar as músicas e assistir aos vídeos. Por �m, não deixe de anotar suas idei-
as e percepções durante a apreciação do material audiovisual, visto que fo-
ram propostos para facilitar sua compreensão dos assuntos aqui estudados.
Vamos lá? Bons estudos!

1. Introdução
Neste ciclo, compreenderemos os acontecimentos e vertentes musicais que
mais movimentaram a música nos anos 1980. Integrado por Lô Borges, Beto
Guedes, Milton Nascimento, entre outros, o Clube da Esquina transformou
concepções musicais e in�uenciou músicos brasileiros e estrangeiros.
Também trataremos brevemente da origem do rock, punk e heavy metal, ven-
do como tais gêneros foram assimilados por pessoas e seus grupos no Brasil
até a década de 1980.

Outro movimento que poderemos analisar é o Manguebeat, que emplacou no


cenário musical nos anos 1990 em Recife, e tomou proporções inesperadas, �-
cando nacionalmente conhecido. A mistura entre rock,  punk e ritmos e ins-
trumentos do folclore pernambucano serviu para ilustrar a dicotomia entre
elementos urbanos e rurais, modernos e tradicionais, amalgamados na cidade
de Recife nos anos 1990. Além disso, o movimento também era visto como um
protesto que retratava as condições sociais do cidadão urbano.

Desejamos que você faça uma boa leitura!

2. Clube da Esquina
Comecemos com música, ouvindo Milton Nascimento e Seu Jorge, cantando a
composição chamada Clube da Esquina, de autoria de Milton Nascimento, Lô
Borges e Márcio Borges, e presente no disco intitulado Milton, de 1970.
 

O que se chamou Clube da Esquina foi um movimento ocorrido na capital mi-


neira que, segundo o Instituto Cultural Cravo Albin (2016), foi

[...] integrado por Milton Nascimento, Lô Borges, Toninho Horta, Beto Guedes,
Marcio Borges, Túlio Mourão, Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Wagner Tiso, entre
outros, em sua maioria músicos mineiros, que se tornou conhecido a partir do
lançamento, em 1972, do LP "Clube da Esquina", liderado por Milton Nascimento e
Lô Borges. O disco projetou a carreira individual de muitos dos músicos participan-
tes, como Toninho Horta, Wagner Tiso e Beto Guedes, entre outros (INSTITUTO
CULTURAL CRAVO ALBIN, 2021, n. p.).
Figura 1 Alguns representantes do Clube da Esquina (https://fernandorozzo.blogspot.com/2016/07/clube-da-

esquina.html).

Teria o Clube da Esquina sido um movimento, tal como o


 Tropicalismo e a Bossa Nova? 

Há, na academia, diferentes visões sobre o assunto. Mas, antes de re�e-


tirmos sobre esse assunto, ouça mais uma canção do Clube da Esquina.
Conforme você poderá observar, a melodia apresenta momentos distin-
tos.

Um Girassol da Cor do Seu Cabelo - composta por Lô Borges (1972)


(https://youtu.be/_Q6Str9aDmw)

O consenso é que o Clube da Esquina reuniu artistas de características peculi-


ares e habilidades diversas, trazendo uma nova musicalidade e sonoridade e
transmutando mais uma vez o conceito de MPB (VILELA, 2010). A sonoridade
do grupo era inovadora, na medida em que recursos ainda não trabalhados na
música popular ganhavam força nesse grupo.

Segundo Vilela (2010), a partir de 1970, no disco Milton, começa-se a usar uma
instrumentação pesada, "com guitarra, baixo, bateria, pandeiro meia-lua, pia-
no e teclado; instrumentação típica das bandas de rock e nada usual no som
que ele fazia até então" (VILELA, 2010, p. 20-21). Em verdade, essa nova sonori-
dade rompe com o trabalho que estava sendo feito por Milton Nascimento em
parceria com outros membros do Clube da Esquina, ou seja, padrões de uma
MPB pré-Tropicália (VILELA, 2010).

Figura 2 Capa do álbum Milton de 1970 (https://discogra�a.discosdobrasil.com.br/discos/milton-1970).

Para Oliveira (2014, p. 64), outras características são:

[...] so�sticação harmônica, combinação de compassos incomuns, nova forma de


timbrar os instrumentos e a presença de sobreposição de camadas musicais - uso
de massas sonoras -, recurso utilizado até então somente pela música erudita.
Ademais, há ainda o uso da voz como um instrumento e do falsete como recurso
sonoro.

Nunes (2004) discorre com mais detalhes sobre instrumentação, recursos de


timbre e densidade:

A voz é explorada, no disco, de diversas maneiras: realizando dobramentos, contra-


cantos, vocais homofônicos e de sustentação harmônica. A superposição de instru-
mentos provocando densidade também é uma característica representativa. [...] ou-
tro fator limitante diz respeito ao timbre. Violão, guitarra, viola caipira, órgão, pia-
no, baixo, bateria, voz, vocais, percussão, orquestra criam cores e combinações que,
somadas a superposições instrumentais, resultam em uma grande densidade so-
nora misturando o tradicional com o moderno, o rural com o urbano, o local com o
global (NUNES, 2004, p. 5-6).

O Clube da Esquina fez parte do contexto histórico brasileiro do �nal da dita-


dura, e seus membros dialogaram com compositores de canções de protesto
latino-americanos, como a argentina Mercedes Sosa. Assim, algumas letras,
como a da canção Clube da Esquina 2, podem, sim, remeter o imaginário do
ouvinte a manifestações, entre outras atitudes que buscassem tomar de volta
a liberdade perdida desde 1964 com a ditadura e ainda mais cerceada pelo
AI-5 a partir de 1968 (OLIVEIRA, 2014):

Em suas produções, a relação com o contexto cultural, social e político aparece nas
letras em alguns momentos de forma esperançosa, criando uma contraposição à
repressão vigente e, em outros, uma relação com os valores da contracultura. Outro
tipo de ligação que o Clube faz com o momento histórico ocorre com a alusão ape-
nas ao sentimento de opressão com denotação de sentimento de angústia e preocu-
pação, sem citar diretamente uma referência ditatorial nem mencionar outros as-
pectos históricos. No entanto, mesmo que certo engajamento não estivesse coloca-
do de forma direta, a preferência era por "assuntos culturais e políticos", privilegi-
ando temas sociais (OLIVEIRA, 2014, p. 69).

Figura 3 Capa do álbum Clube da Esquina, de 1972. (https://discogra�a.discosdobrasil.com.br/discos/clube-da-esqui-

na)

 Vamos ouvir um pouco mais?

Para encerrarmos este tópico, ouça duas músicas: uma é a versão acústi-
ca de Clube da Esquina Nº 2, produzida em 2018 e composta por Milton
Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges; e a outra é a primeira versão
dessa música, produzida em 1972 e incluída no álbum Clube da Esquina
Nº 2. Esta versão não possuía letra. Para acessá-las, basta clicar nos
links a seguir.

Clube da Esquina Nº 2 (https://youtu.be/V5Qq9rA2Hio)(Versão acústica


de 2018) (https://youtu.be/V5Qq9rA2Hio)

Clube da Esquina Nº 2 (https://youtu.be/Lexd2xvMpxY) (Versão de 1972)


(https://youtu.be/Lexd2xvMpxY)

3. Rock Nacional
Vamos retomar um pouco do que falamos sobre rock até aqui? No ciclo anteri-
or, falamos sobre o programa televisivo Jovem Guarda, de meados da década
de 1960, que apresentou, além de outros estilos musicais, o rock.

O rock é um gênero musical criado nos Estados Unidos, decorrente principal-


mente de blues, rythmn and blues, country e spiritual. Sob colonização euro-
peia (espanhóis, franceses, holandeses e ingleses), o país também foi marcado
pelo genocídio dos povos indígenas (atualmente, são mais de 5,2 milhões e
574 grupos formalmente reconhecidos pela federação) e pela escravização
transatlântica de africanos, principalmente de duas regiões, a saber:
Senegâmbia, atual Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau e Mali; e centro-oeste afri-
cano, atual Angola, Congo, República Democrática do Congo e Gabão. Como re-
ferência marcante do blues, destacamos, especialmente, os cantos de trabalho
dos negros escravizados nas plantações de algodão, principalmente no sul dos
Estados Unidos.

Na década de 1920 e 1930 surgiu a guitarra elétrica, e a origem do rock and roll
está associada à década de 1940. Vamos assistir, no vídeo a seguir, a Rosetta
Tharpe, considerada a mãe do rock, tendo in�uenciado outros grandes nomes,
como Little Richard, Johnny Cash, Carl Perkins, Chuck Berry, Elvis Presley e
Jerry Lee Lewis.
 Vamos nos aprofundar um pouco mais?

No Brasil, temos, em 1955, o que foi considerado a primeira gravação de


rock no Brasil, uma versão de "Rock around the clock", composta por
Max Freedman e James Myers em 1952 e trilha do �lme Blackboard
Jungle de 1955, que atingiu grande sucesso. Vamos ouvir, na sequência, a
interpretação dessa música por Nora Ney; perceba que, apesar do nome
da versão estar em português, Nora canta em inglês.

• Rock around the clock (Ronda das horas) - interpretada por Nora
Ney (1955) (https://www.youtube.com/watch?v=D8MTPwbU-OM)

Agora ouça a canção Stupid Cupid que foi composta por Howard
Green�eld e Neil Sedaka e interpretada por Connie Francis em 1958, e sua
versão cantada em português por Celly Campello, em 1959, trata-se do
single mais vendido de todos os tempos no país.

• Stupid Cupid -   interpretada por Connie Francis (1958)


(https://www.youtube.com/watch?v=tNGl42cvpUM)
• Estúpido Cupido - interpretada por Celly Campello (https://youtu.be
/fsOdgcgZbyI)

Como vimos no ciclo anterior, o programa televisivo Jovem Guarda (1965-1968)


era apresentado por Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Wanderleia, que recebi-
am convidados(as) para números musicais. Antes de falarmos sobre alguns
desses convidados, é importante ressaltar dois fatores:

1. Nesta época, as in�uências não eram apenas musicais, mas originavam-


se também a partir de comportamento, estilo de vida, moda, dança e,
também, �lmes.
2. Os Beatles alcançaram grande projeção no Reino Unido a partir de 1963. A
Hard Days Night é o nome de um �lme, de um álbum e de uma canção
(você pode ouvi-la, clicando aqui (https://www.youtube.com/wat-
ch?v=zx2TFk0vh1I&
list=OLAK5uy_nMqp7mAgZ_A_Lx6aLe1329rrTNzemZkT4)), todos produ-
zidos e lançados pelos Beatles em 1964. Nesse mesmo ano, a banda deu
início a turnês mundiais que geraram intenso frenesi dos fãs, um fenô-
meno que �cou conhecido como "Beatlemania". O termo "iê-iê-iê", atribuí-
do ao rock brasileiro dos anos 1960, é uma referência direta à in�uência
dos Beatles que cantavam em diversas músicas o "yeah yeah yeah".

Figura 4 Segundo álbum dos Beatles, lançado em 1963 (https://portalbeatlesbrasil.wordpress.com/2016/10/28/the-

beatles-with-the-beatles-1963/).

Um dos grupos que acompanhava a turma do iê-iê-iê como parte do programa


Jovem Guarda foi Raulzito e os Panteras (Figuras 5 e 6).
Figura 5 Primeiro e único álbum do Raulzito e os Panteras (1968) (https://pt.wikipedia.org/wi-

ki/Raulzito_e_os_Panteras).

Figura 6 Raulzito e seus Panteras em 1964, em Juazeiro. (https://letrasweb.com.br/raulzito-os-panteras/)

 Vamos ouvir?

Ouça a versão da música Lucy in the Sky with Diamonds, de John


Lennon e Paul McCartney (Beatles), cantada em português pelo grupo
Raulzito e os Panteras.

Lucy in the Sky with Diamonds, adaptada para Você Ainda Pode Sonhar
(1967) (https://www.youtube.com/watch?v=-AburnHHE60)

Raulzito, mais conhecido como Raul Seixas (1945-1989), nasceu em Salvador e


se mudou para o Rio de Janeiro, onde também se tornou produtor da CBS,
compondo e produzindo músicas, especialmente para artistas ligados à
Jovem Guarda. Em entrevista à revista Intervalo, antes de lançar o disco
Raulzito e os Panteras, disse:
Nós não pretendemos comparar-nos aos Beatles, nem fazer no Brasil a revolução
que eles �zeram lá na Inglaterra, mas que trazemos na nossa música um novo con-
ceito em matéria de música jovem brasileira, lá isso é verdade (SOUZA, 2016, 103.)

Havia, portanto, essa in�uência dos Beatles, Elvis, entre outros, e um direcio-
namento da música para juventude e o caráter crítico nas letras e estilo de vi-
da. A seguir, listamos três exemplos musicais, buscando evidenciar as mistu-
ras do rock com a música brasileira.

 Pronto(a) para ouvir?

De início, ouça o próprio Raul Seixas, explicando parte de sua história e,


ao �nal, uma das músicas que foi responsável por sua projeção nacional,
Let me sing, let me sing. Na sequência, você conhecerá mais a fundo o
grupo Novos Baianos, com destaque para Moraes Moreira, Baby do Brasil
e Pepeu Gomes. E, por �m, apresentamos o grupo Secos e Molhados, com
destaque para a voz principal de Ney Matogrosso. O grupo Os Mutantes
também integra esse estilo musical, no entanto você já conheceu essa
banda no ciclo anterior - caso queria, retome o ciclo estudado.

• Let me sing, let me sing - Raul Seixas (1972) (https://www.youtu-


be.com/watch?v=DHx_3A68qMQ)
• Samba da Minha Terra - Novos Baianos (1973) (https://youtu.be
/uUyBkJfU6OI)
• O Vira - Secos e Molhados (1973) (https://www.youtube.com/wat-
ch?v=noX16UOg6yU)

Em 1968, também temos o nascimento de um rock mais pesado, com solos de


guitarra mais distorcidos, um som mais alto, e um ritmo mais marcado.
Bandas inglesas e estadunidenses, como Led Zeppelin, Deep Purple, Black
Sabbath, Alice Cooper, Van Halen chegavam ao Brasil, especialmente por meio
dos LPs. Nas décadas seguintes, sob a in�uência desses grupos, vemos uma
profusão de bandas brasileiras de rock. Ouça agora a banda Sepultura, que vo-
cê conheceu no início deste material, no Ciclo 1, por ocasião de uma incursão
da banda junto ao povo indígena Xavante. Por estar em inglês, acompanhe, a
seguir, a tradução da música Territory (Território).

Também nas décadas de 1970 temos o nascimento do punk no Estados Unidos


e no Reino Unido. Ao punk associam-se, de forma geral, algumas ideias, como:

• faça-você-mesmo (Do it Yourself ou DIY em inglês), ou seja, o importante


é fazer, independentemente do que se tem de equipamento ou conheci-
mento técnico-musical;
• seja um espelho dos problemas da sociedade;
• difunda ideais anarquistas, tais como autogestão e oposição radical às
dominações e hierarquias.

 Quer saber mais?

Para compreender um pouco mais a respeito desse estilo musical, ouça a


música Quanto vale a liberdade - Cólera (https://www.youtube.com
/watch?v=12l5EpB-erk).
Observe, a seguir, a letra Tom e Jerry, da banda Os Replicantes, formada em
1983, em Porto Alegre (RS):

Plebe Rude, Ratos de Porão, Inocentes e Cólera são alguns exemplos de bandas
brasileiras de punk rock surgidas no �nal dos anos 1970 e meados de 1980. É
desse contexto punk que surgem bandas relevantes cujos integrantes, posteri-
ormente, transitariam entre outros gêneros ligados ao rock, tais como Legião
Urbana, Capital Inicial, Titãs, Paralamas do Sucesso, Ira!, Engenheiros do
Hawaii, Barão Vermelho, Blitz e Ultraje a Rigor, que são alguns dos grupos que
surgiram na década de 1980 e alcançaram projeção nacional. Precisamos lem-
brar que tais bandas surgiram no �nal do período da ditadura civil-militar
aqui no Brasil (1964-1985).

 Quer saber mais?


Observe a música Veraneio Vascaína (https://www.youtube.com/wat-
ch?v=6CXIM4wfVA4), de Renato Russo e Flávio Lemos, considerando seu
contexto histórico (letra) e os elementos musicais (in�uência do punk).

Segundo Rochedo (2011, p. 139):

A análise da geração, diretamente afetada pelos anos de chumbo, revela uma série
de experiências vividas, possibilitando o entendimento dos sentidos que o grupo
atribui a sua realidade social, em determinado momento e lugar da História.
Durante a década de 1980, o estilo musical rock aumentou o debate de temas diver-
si�cados. O novo rock brasileiro, falado em português, imprimiu situações comuns
desta geração, como amor, sexo, política, ética, cotidiano e registrou o processo de
maturação destes jovens, no âmbito pessoal e pro�ssional. Abordou questões com
maior complexidade como a AIDS e a homossexualidade. Seus protagonistas foram
jovens de classe média alta, em sua maioria homens, �lhos de empresários, como
Cazuza; de militares, Hebert Vianna e Paulo Ricardo; políticas: Roberto Frejat e
Sérgio Britto; funcionários públicos: Renato Russo; diplomatas: Bi Ribeiro, Phillippe
Seabra e Dado Villa Lobos, dentre outros.

O gênero musical rock, como pudemos observar, recebeu in�uências de diver-


sos elementos, e de muitas deles pouco ou nada falamos, como o movimento
hippie, psicodelia, pop, disco e outros. Cabe destacar que esse gênero continua
se transculturando, ou seja, transitando entre culturas, carregando consigo
elementos diversi�cados, seja musicais, seja ideológicos. Como último tema
essencialmente musical, estudaremos o movimento Manguebeat.

4. Manguebeat
O Manguebeat foi um movimento artístico dos anos 1990, surgido na cidade de
Recife (PE). Tem como base a diversidade e o hibridismo entre a música global
e a local, ou seja, ritmos como o maracatu, coco, embolada, frevo são mescla-
dos ao pop rock, hip hop, punk, música eletrônica etc. Além disso, o punk e o
rock entram em cena, bem como os protestos contra a desigualdade em
Recife.
Figura 7 Manguezal (https://blog.manguez.al/recife-a-capital-da-rebeldia-digital-3c6ee2463937).

A exemplo do movimento antropofágico do Modernismo brasileiro (e por que


não dizer do próprio Tropicalismo?), o movimento Manguebeat teve como
princípio a remodelagem de gêneros e expressões musicais trazidos do exteri-
or e amalgamados a uma roupagem brasileira, agora adequando-os às novida-
des tecnológicas dos últimos anos do século 20.

O movimento Manguebeat é re�exo da situação cultural e econômica da cida-


de de Recife. A partir da superação das rendas de exportações de programas
de computador (softwares) sobre as exportações da tradicional produção de
cana-de-açúcar, pode-se perceber uma transformação cultural decorrente das
transformações econômicas locais. Contudo, na área rural, permanece inalte-
rado o cultivo arcaico da cana-de-açúcar, de onde se originaram tantas mani-
festações folclóricas (MARKMAN, 2007).

No que diz respeito ao aspecto geográ�co, a cidade de Recife constitui um


grande aterro sobre o mangue. Esse fator colabora na construção do imaginá-
rio dos integrantes do movimento, compondo a dualidade arcaico versus mo-
derno, a transformação do homem sobre a natureza. A simbiose musical do
movimento Manguebeat representa, portanto, a dialética entre a tradição e as
transformações causadas pelas inovações tecnológicas, pós-modernidade e
globalização (MARKMAN, 2007).
Figura 8 Dois importantes símbolos para o movimento: carangueijo e a antena parabólica no manguezal.

(https://br.pinterest.com/douglaspupim/fanzine-manguebeat/)

 Vamos conhecer algumas dessas manifestações?

Conheceremos, nos links a seguir, pelo menos duas dessas manifesta-


ções de Pernambuco: o Maracatu do Baque Solto e o Maracatu do Baque
Virado.

Maracatu do Baque Solto (https://www.youtube.com/watch?v=d-o_5-


KRgzQ)

Instrumentos do Maracatu do Baque Virado (https://youtu.be


/uppBVWp7s9Y)

O movimento abarca in�uências das manifestações músicais de Pernambuco


e globais (por exemplo, hip-hop), divulgadas por meio da produção de espetá-
culos musicais do movimento. O Manguebeat nos traz uma nova concepção
do tipo de apropriação e difusão desse recurso de composição musical.

O hibridismo entre a música popular mundial e do interior de Pernambuco é


evidente na música de dois dos principais grupos musicais do movimento:
Chico Science & Nação Zumbi e Mestre Ambrósio.

Como se dá a difusão musical pelo movimento Manguebeat nos últimos anos


do século 20 e quais seus re�exos na produção musical subsequente?

Antes de adentrarmos as propriedades sonoras, iremos nos valer de alguns


conceitos importantes na re�exão contemporânea sobre não apenas um mo-
vimento especí�co, mas sim sobre diversos aspectos para os estudos da músi-
ca popular. Para tal �nalidade, podemos nos embasar nos conceitos de etnia,
hibridismo, identidade nacional e globalização de autores como Stuart Hall e
Néstor Garcia Canclini.

Etnia, hibridismo e identidade nacional: alguns conceitos


para re�etir
Para Hall (2005, p. 62), "[...] a etnia é o termo que utilizamos para nos referir-
mos às características culturais - língua, religião, costume, tradições, senti-
mento de 'lugar' - que são partilhadas por um povo".

Não há, por exemplo, nos países da Europa Ocidental, uma única etnia: "As
nações modernas são, todas, híbridos culturais" (HALL, 2005, p. 62).

Hall (2005) busca desmiti�car a cultura nacional como plena, uni�cadora en-
tre as diferentes identidades culturais existentes em cada nação, colocando-a
como um ponto de convergência de histórias, lugares, políticas, símbolos, lu-
tas etc. Na verdade, as identidades nacionais não são capazes de ultrapassar
diferenças, divisões e contradições internas (HALL, 2005). Essas característi-
cas são afetadas pelo recente processo da globalização, que Hall descreve da
seguinte forma:

A globalização se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atra-
vessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organi-
zações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais
interconectado (HALL, 2005, p. 67).

São atribuídas à globalização as distorções nas relações espaço-tempo, bem


como na concepção de cultura nacional, provocando a homogeneização cultu-
ral (HALL, 2005).

Tais re�exos da globalização podem provocar o que Hall chama de "fortaleci-


mento das identidades locais" (HALL, 2005, p. 84), ou seja, uma reação contrá-
ria às consequências da globalização. Outro fator gerado em virtude da globa-
lização é a "produção de novas identidades" (HALL, 2005, p. 86), que consiste
em novos movimentos e tendências culturais de cunho político, social e ideo-
lógico que reagem de acordo com as transformações ocasionadas pela globali-
zação:

Parece então que a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identi-
dades centradas e fechadas de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizan-
te sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas po-
sições de identi�cação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas,
mais plurais e diversas; menos �xas, uni�cadas ou trans-históricas (HALL, 2005, p.
87).

Canclini (1997) explica como o hibridismo nos leva ao "descolecionamento" e à


"desterritorialização". O "descolecionamento", por exemplo, diz respeito ao
rompimento entre as fronteiras organizacionais entre bibliotecas, museus e
outras formas de organização histórica.

Para citar alguns nomes do movimento Manguebeat, destacamos: Chico


Science & Nação Zumbi, Mestre Ambrósio, Sheik Tosado, Mundo Livre S/A, DJ
Dolores e Devotos do Ódio. O movimento, porém, não possui sempre os hibri-
dismos com a música tradicional rural pernambucana em todos os grupos,
pois há uma característica fundamental da proposta desse movimento: a di-
versidade.

Além da disseminação da música étnica pernambucana, o movimento tam-


bém proporcionou uma divulgação do conhecimento de instrumentos como a
alfaia e a rabeca: "Desde 1992, a rabeca tem se tornado mais proeminente na
região, por meio dos esforços do grupo de música popular Mestre Ambrósio,
tocando um de seus líderes e vocalistas a rabeca" (MURPHY, 1997, p. 9, tra-
dução nossa).

Chico Science & Nação Zumbi: a música do Manguebeat


Embora não sejam os únicos representantes do Manguebeat, tomamos agora
Chico Science & Nação Zumbi como representantes do movimento para exem-
pli�car alguns aspectos já mencionados.
Vejamos alguns exemplos em vídeo que ilustram características do movimen-
to mencionado.

 Pronto(a) para ouvir?

Comecemos pela música A Cidade (https://www.youtube.com/wat-


ch?v=UVab41Zn7Yc), de Chico Science, com interpretação de Chico
Science & Nação Zumbi (1994).

A abertura do videoclipe faz menção à tradição popular, remetendo-nos ao cir-


co, ao artista de rua, aos folguedos e ao centro histórico de Recife.

A música A Cidade irá falar dos problemas sociais, econômicos, de saneamen-


to, do aterro e outros que o "progresso levou à cidade". Perceba o uso do ritmo
do maracatu de baque virado, uma das marcas do folclore pernambucano. O
ritmo e a estruturação melódica quase falada fazem alusão ao hip-hop, en-
quanto os instrumentos regionais - alfaias, caixa, gonguê, caracaxá - fazem
menção ao maracatu.

Já na música Pé-de-calçada, do grupo Mestre Ambrósio, há uma demons-


tração das in�uências que a música folclórica, a "música de rua" e dos folgue-
dos exercem sobre o movimento. Note, ao ouvir a música, a presença da rabe-
ca, como Murphy (1997) tem divulgado. Para ouvi-la, clique no play.
 

Em Se Zé Limeira Sambasse o Maracatu, interpretada por Mestre Ambrósio


(1997), podemos ver a apropriação do maracatu rural - ou maracatu de baque
solto -, misturado a instrumentação de banda de rock e guitarras distorcidas,
em meio aos versos improvisados do próprio maracatu.

 Vamos ouvi-la?

Se Zé Limeira Sambasse o Maracatu - interpretada por Mestre Ambrósio


(1997) (https://youtu.be/k53c8L0zs98)

Interpretada por Chico Science & Nação Zumbi (1996), Maracatu Atômico, de
Chico Science, apesar de sua letra - de autoria de Nelson Jacobina e Jorge
Mautner - desconstruir a ideia de discurso linear, também menciona a paisa-
gem natural do mangue e seu desabafo em forma de metáfora. A rítmica do
maracatu aparece no uso do gonguê e nas viradas de duas colcheias contra
uma tercina nos momentos antecedentes ao refrão. Assista ao vídeo a seguir
para compreender as características dessa canção.

Agora que você estudou mais profundamente as manifestações musicais do


Clube da Esquina, Rock e Manguebeat, responda às questões a seguir e veri�-
que se realmente entendeu tudo sobre elas.

5. Considerações
Quanto aos hibridismos encontrados no movimento Manguebeat, é importan-
te frisar que, de diversas formas, eles sempre estiveram presentes no decorrer
da história da nossa música popular. Segundo Ulhôa (2016), o hibridismo mu-
sical, como re�exo do hibridismo cultural, é manifestação presente na
História da Música Popular Brasileira do �m do século 19 ao século 20:

Os gêneros musicais "estrangeiros" são abrasileirados, se não na sua forma, no seu


conteúdo. Foi assim com a polca, com o fox, com o bolero, com o jazz, mesmo com
o rock, ou seja, se a�rma a identidade pela mistura e pela sutileza ao lidar com o
outro. Talvez por isso a música brasileira popular exerça um certo fascínio também
para ouvintes das mais diversas procedências culturais (ULHÔA, 2016, p. 125).

E podemos estender essa ideia de hibridismos culturais não apenas ao


Manguebeat mas a todas as culturas musicais estudadas até aqui. Algumas
in�uências são mais aparentes, tal como acontece com o rock nacional dos
anos 80 e 90 em relação ao rock estrangeiro e ao punk inglês; em outros casos,
isso é menos aparente, como com o "Clube da Esquina" e a música afro-
mineira, o rock progressivo. A questão que podemos nos perguntar é: há algu-
ma cultura pura? Ao estudar a história e o contexto de realização das culturas
musicais, percebemos que elas são fruto do encontro entre pessoas que tra-
zem experiências diversas e acabam transformando suas formas de viver e
fazer música.

6. Considerações Finais
Apresentamos, neste tópico, as considerações �nais dos nossos estudos.
Optamos por apresentá-las em texto e áudio para sua melhor apreciação. Caso
opte pelo áudio, clique no ícone a seguir:

Concluímos nossa disciplina sobre a música popular brasileira, sabendo que


aqui foi apresentada apenas uma pequena parte dela. É notável que inúmeros
nomes, gêneros, estilos, períodos, regiões etc. �caram de fora dos nossos estu-
dos - não por conta da relevância de um ou outro, mas, sim, pelo dimensiona-
mento da nossa obra.

É fato que nem mesmo um estudo durante os três anos de curso nos daria
uma história completa, com todos os seus personagens e gêneros musicais.
Nossos estudos, porém, situam-nos em uma possível linha do tempo, indican-
do pessoas, momentos e lugares nos quais podemos nos aprofundar em estu-
dos individuais.

Inevitavelmente, o formato desta obra, ou seja, o tempo dedicado a ela em


meio a outros estudos que são demandados, faz-nos manter o foco no mains-
tream (aquilo que está mais à mostra, geralmente na indústria cultural) da
História da Música Popular Brasileira.

Dessa forma, fatos, correntes e conceitos �caram de fora de nossos estudos.


Esta seria uma das "injustiças" da nossa obra diante da diversidade da música
popular brasileira. O que dizer, por exemplo, da contribuição de Tim Maia para
a música negra do país, com a inserção do soul no Brasil? E o ijexá, o rap, o hip
hop, o funk, a música de concerto, as incontáveis tradições musicais brasilei-
ras etc.?

Não haveria muito mais a dizer sobre Raul Seixas e suas contribuições sobre a
apropriação do rock 'n' roll, o protesto e transformações de paradigmas?

Não seria importante também mencionar as transformações que a internet e o


acesso às tecnologias trouxeram para os processos criativos na música popu-
lar, a produção e divulgação de novos artistas e seus meios de entrar no mer-
cado? Não é tema relevante também a entrada do CD e das tecnologias atuais
de streaming? E a música independente?

En�m, são inúmeras as linhas que podemos seguir para compreender a músi-
ca brasileira. Isso dependerá de nosso interesse e nossas decisões.

Boa continuação dos estudos. Sucesso!

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