Você está na página 1de 13

„ Consulta prévia sobre „ Racismo de Estado „ Entrevista:

barragens em terras indígenas contra os índios J. J. Gomes Canotilho

Nº 24
Julho de 2008

C&D Constituição & Democracia

Raposa Serra do Sol:


demarcação em perigo
02 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 UnB – SindjusDF | 03

Comitê Nacional em Defesa da


Comitê Nacional em Defesa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
EDITORIAL Carolina de Martins Pinheiro - Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília, assessora jurídica do
Instituto Sócioambiental – ISA e pesquisadora do grupo O Direito Achado na Rua
José Geraldo de Sousa Júnior - Professor da Faculdade de Direito da UnB, coordenador dos grupos de
Observatório da Constituição e da Democracia pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, da UnB e vice-presidente da Comissão
Nacional de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB 03
ltimamente poucos assuntos têm mobilizado tanto debate na sociedade quanto a ques-

U tão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Com frequência o assunto emerge em edito-
riais e reportagens jornalísticas que primam pela parcialidade, preconceito e distorção dos
fatos. A preocupação com os rumos do caso no Supremo Tribunal Federal fez com que a dis-
OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO
O Estado brasileiro e o racismo contra os povos indígenas
Ela Wiecko V.de Castilho - Professora dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da
Universidade de Brasília – UnB, Subprocuradora-Geral da República e membro da 6.ª Câmara de
Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal 04
Terra Indígena Raposa Serra do Sol
cussão - antes restrita ao indigenismo - passasse a mobilizar outros setores, como a Ordem dos
Carolina de Martins Pinheiro e to de Pesquisa Econômica Aplicada
Advogados do Brasil e estudantes e professores universitários. Seminários e atos públicos sobre Integridade territorial e diversidade social José Geraldo de Sousa Júnior (IPEA), ao Instituto Brasileiro de Ge-
a questão têm sido organizados em diversos locais, como a Faculdade de Direito da USP, a Pon- Ana Paula Souto Maior - Advogada, assessora jurídica do Instituto Sócioambiental – ISA. 06
ografia e Estatística (IBGE) e ao Con-
tifícia Universidade Católica de São Paulo, e a Universidade Federal do Maranhão.

A
Raposa Serra do Sol e o debate atual no STF sociedade civil organizada selho Nacional de Pesquisa (CNPq).
O “Observatório C&D”, fiel ao seu compromisso de posicionamento concreto sobre te- sempre é protagonista, seja O Comitê também é responsável
Deborah Duprat - Subprocuradora-Geral da República, Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e
mas constitucionais de relevância para uma democracia plural e participativa, foi o primeiro seg- Revisão do Ministério Público Federal 08 qual for a cena social de luta pelo Acampamento Nossa Terra, Nos-
mento entre as universidades brasileiras a pautar o assunto. Assim realizou no auditório “Dois por reconhecimento de direitos sa Mãe que deverá ser realizado
Candangos”, da Universidade de Brasília, em 28 de maio, e em parceria com o Fórum em De- Os povos indígenas e os mecanismos internacionais de proteção dos Direitos Humanos entre 25 e 27 de agosto de 2008, na
(campo, terra indígena, gênero, op-
Carlos Eduardo da Cunha Oliveira - Diplomata da Divisão de Direitos Humanos do Ministério
fesa dos Direitos Indígenas (FDDI), o Seminário “Povos Indígenas, Estado e Soberania Nacional”. das Relações Exteriores – MRE 10 ção sexual, entre outros). Protagonis- semana do julgamento do caso pelo
A realização desse seminário contou desde o início com o inestimável apoio do professor Boa- tas diferentes, por vezes, se unem em STF. Além de informações, a propos-
ventura de Sousa Santos. Assíduo colaborador do “C&D”, não só cedeu gentilmente para divul- ENTREVISTA palcos comuns para reforçar vozes ta do acampamento é permitir vi-
J. J. Gomes Canotilho - constitucionalista português, autor mais influente do campo em Portugal e no Brasil. historicamente silenciadas. Esse é o vências, que estimulem o movimen-
gação o seu artigo “Bifurcação na Justiça” - depois publicado no C&D nº 22 - como elaborou
Formulador da tese da “constituição dirigente” to de abrir-se cultural e juridicamen-
um abaixo-assinado virtual em prol da integridade da terra e dos povos da “Raposa”. Lido para caso do Comitê Nacional em Defesa
Pela necessidade de o sujeito de direito se aproximar dos "sujeitos densos" da vida real
o público do seminário, o abaixo-assinado contou com a adesão imediata dos presentes que lo- José Geraldo de Sousa Junior - Professor da Faculdade de Direito da UnB, membro dos grupos de da Terra Indígena Raposa Serra Sol te ao diferente mundo dos povos da
pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, da UnB e da Comissão de (veja o quadro), criado para apoiar a Raposa Serra do Sol. Danças e cantos
taram o Auditório Dois Candangos, sendo em seguida lançado na internet, com adesões no Bra-
Defesa da República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB 12 demarcação da Terra Indígena Rapo- indígenas se revezarão com debates
sil e em diversos países.
sa Serra do Sol, cujo destino está nas sobre a Terra de Makunaími e con-
Nesta edição especial o “Observatório C&D” resgata para os seus leitores a quase totali- A Terra Indígena Raposa Serra do Sol e a questão da soberania nacional
mãos de onze importantes contrace- versas com outros movimentos soci-
dade das contribuições dos participantes do Seminário “Povos Indígenas, Estado e Soberania Na- Stephen G. Baines - Professor asssociado, DAN/UnB; pesquisador 1B, CNPq 14
nantes, a saber, os ministros do Su- ais urbanos e rurais. Numa quadra
cional”, assim como os termos do abaixo-assinado acima referido. Tendo como foco os direitos premo Tribunal Federal. de novas transformações nas lutas
Territórios Indígenas e Soberania Nacional: O caso Raposa Serra do Sol
indígenas e, em específico a questão da Raposa Serra do Sol, os artigos aqui publicados guar- Paulo Machado Guimarães - Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário - CIMI 16 Os direitos indígenas foram con- por direitos, a entrada em cena do
dam profunda sintonia com o contexto dos 20 anos da Constituição Federal de 1988, na medida solidados em capítulo especial da Comitê Nacional em Defesa da Terra
em que compõem um quadro avaliativo da importância de diversos princípios constitucionais pa- NOTA DO CORRESPONDENTE Indígena Raposa Serra Sol deve ser
Constituição brasileira graças à mo-
10 Anos do Tribunal Penal Internacional
ra os povos indígenas, e do modo como vêm sendo considerados ou não no momento atual. Giovanna Frisso - Doutoranda Na Universidade de Nottingham 18 bilização de lideranças indígenas e recebida como um fator importante
entidades indigenistas. Era preciso para a compreensão de que não é
Grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito A OIT e a proteção internacional dos direitos indígenas sensibilizar os constituintes e os in- possível lutar por igualdade e justiça
Rosane Lacerda - Advogada indigenista, mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante dos dígenas se fizeram presentes para sem lutar também pelo reconheci-
Faculdade de Direito – Universidade de Brasília
grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado Na Rua, e professora universitária 19 que a lei dos “brancos” fosse escrita mento das diferenças que determi-
OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO levando-se em consideração sua nam identidades sociais e históricas.
EXPEDIENTE Douglas Locateli
Eneida Vinhaes Bello Dutra
Contato
observatorio@unb.br O direito à consulta prévia particular visão sobre a história de ra subsidiar tanto a opinião pública aos legítimos direitos dos povos indí-
Fabiana Gorenstein www.fd.unb.br Luciana Souza Ramos - Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Salvador, apoiadora do sucessivas violações a seus direitos quanto os próprios ministros do STF, genas Wapichana, Ingarikó, Taure- Composição e apoiadores do Comitê:
Fabio Costa Sá e Silva Comitê em Defesa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e pesquisadora dos grupos Controle Penal
Giovanna Maria Frisso
originários. Uma vez escrita, era pre- o Comitê elaborou cartas com dife- pang e Patamona.
Guilherme Scotti
e O Direito Achado na Rua 20 ciso cumpri-la. A Funai e a União, rentes perguntas endereçadas a vá- O foco das perguntas dirigidas ao ‹ Fórum de Defesa das Organizações
Jean Keiji Uema
Caderno mensal concebido, preparado e Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS apegadas ao velho modelo assimila- rios órgãos governamentais, entre MMA reside na quantificação e qua- Indígenas (FDDI)
elaborado pelo Grupo de Pesquisa Judith Karine Povos Indígenas: maneiras diferentes de se ver o mundo cionista, foram instigadas por gru- eles o Ministério Público Federal lificação das infrações, crimes e da- ‹ Coordenação das Organizações Indígenas
Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade Juliano Zaiden Benvindo José Carlos Moreira da Silva Filho - Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR, mestre em pos organizados a usar as novas refe- (MPF), a Advocacia Geral da União nos ambientais constatados pelos da Amazônia Brasileira (COIAB)
de Direito da UnB – Plataforma Lattes Leonardo Augusto Andrade Barbosa
do CNPq). Lúcia Maria Brito de Oliveira
Teoria e Filosofia do Direito pela UFSC, bacharel em Direito pela UnB. Professor do Programa de Pós- rências do direito à diferença. Atual- (AGU), o Ministério do Meio Ambi- órgãos ambientais ao ministério su- ‹ Conselho Indígena de Roraima (CIR)
Mariana Cirne Graduação em Direito da UNISINOS-RS e Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça 22 mente, é o Poder Judiciário o coadju- ente (MMA) e o Conselho Nacional bordinados. Já da Advocacia Geral da ‹ Instituto Socioambiental (ISA)
Coordenação
Alexandre Bernardino Costa
Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira
Marthius Sávio Cavalcante Lobato
Sindicato dos Bancários OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO vante de uma luta, que parece não de Justiça (CNJ). União, o Comitê aguarda resposta ‹ Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAI)
Cristiano Paixão Paulo Henrique Blair de Oliveira de Brasília “Espetacularização” de operações policiais e abuso de autoridade: Lições da Operação Satiagraha ter fim, mas reinícios. Em carta endereçada ao presi- sobre o cruzamento da titularidade ‹ Grito dos Excluídos
José Geraldo de Sousa Junior Ramiro Nóbrega Sant´Ana Eugênio José Guilherme de Aragão - Subprocurador-geral da República, professor da Faculdade de Direito Uma das principais preocupa- dente do CNJ, também presidente das terras em nome de arrozeiros e a ‹ Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
Menelick de Carvalho Netto Raphael Augusto Pinheiro
Renato Bigliazzi
da UnB, Doutor em Direito Internacional Público, pela Ruhr-Universität Bochum, Alemanha, e mestre em ções do Comitê é a reunião de infor- do STF, Gilmar Ferreira Mendes, o confirmação da prática de grilagem ‹ Central Única dos Trabalhadoras (CUT)
Comissão executiva Rosane Lacerda Direito Internacional dos Direitos Humanos pela University of Essex, Inglaterra 23 mações e a elaboração de esclareci- Comitê solicita que o órgão se mani- de terra pública. O Comitê encami- ‹ Movimento de Mulheres Camponesas
Janaina Lima Penalva da Silva
Paulo Rená da Silva Santarém Projeto editorial ABAIXO ASSINADO - Raposa Serra do Sol – Brasil mentos que servem de subsídios pa- feste acerca das irregularidades da nhou ainda solicitações de pesquisa do Brasil (MMC)
Ricardo Machado Lourenço Filho R&R Consultoria e Comunicação Ltda Demarcação de território Indígena em perigo ra avaliação do caso. Têm sido recor- perícia judicial que contrapôs o rela- e sistematização de dados ao Institu- ‹ Movimento dos Sem-Terra (MST)
Silvia Regina Pontes Lopes
Boaventura Sousa Santos - Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra 24 rentes afirmações errôneas e até tório da Funai de identificação da
Sven Peterke Editor responsável
Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS) mentirosas sobre a relação da terra Terra Indígena. Em mensagens ao

Assine C&D
Integrantes do Observatório indígena e o desenvolvimento regio- Procurador-Geral da República e ao
Adriana Andrade Miranda
Aline Lisboa Naves Guimarães
Editor assistente
Rozane Oliveira
nal, bem como a limitação e insufici- Diretor-Geral do Departamento de A sociedade civil or ganizada sempr e é
Beatriz Vargas ência de dados oficiais sobre a vio- Polícia Federal, o Comitê chama a
Damião Alves de Azevedo
Daniel Augusto Vila-Nova Gomes
Diagramação
Gustavo Di Angellis
lência perpetrada por ocupantes ile- atenção para a histórica impunidade protagonista, seja qual for a cena social
gais contra as comunidades indíge- que acoberta violências e práticas de
Daniela Diniz
Daniele Maranhão Costa Ilustrações
Preço avulso: R$ 2,00
assinecd@gmail.com nas da Terra Raposa Serra do Sol. Pa- corrupção por aqueles que se opõem de luta por r econhecimento de dir eitos
Douglas Antônio Rocha Pinheiro Flávio Macedo Fernandes
22 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 UnB – SindjusDF | 23
OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Povos indígenas: maneiras “Espetacularização” de operações policiais e abuso de autoridade:

Lições da Operação Satiagraha


diferentes de se ver o mundo Eugênio José Guilherme de Aragão muitas vezes, envolvem a privacida-
de de terceiros inocentes que sequer

H
José Carlos Moreira da Silva Filho tariamente, a floresta é preservada, á palavras que entram no são destinatários do esforço investi-
o conhecimento é cultivado e aca- vernáculo a partir de opi- gatório. No entanto, o apelo mediáti-

E
stamos sempre tão mergulha- lentado em sua tradição. niões expressas por autori- co dessas operações espelha a frus-
dos em nossa própria manei- Ali a soberania não é ameaçada, dades, periódicos e comentaristas tração pública com a cultura de im-
ra de ver o mundo que acaba- ela é protegida. Historicamente os televisivos. Uma destas é “espetacu- punidade que viceja no Brasil e que
mos por nos esquecer de quem so- índios brasileiros que vivem nas larização”, para significar a busca de beneficia sempre os mesmos, aque-
mos: seres humanos finitos, tempo- fronteiras contribuíram para prote- apelo mediático na atuação da re- les acusados de manipularem gran-
rários, condicionados ao seu tem- gê-las. Nunca se teve notícia de um pressão penal, que desde o iluminis- des somas de dinheiro público, de
po, contextualizados historicamen- caso sequer de imperialismo indí- mo prefere ser discreta, quase enver- corromperem o aparato estatal e de
te e, ao mesmo tempo, sequiosos do gena ou estrangeiro através dos in- gonhada. Repetem-se, entretanto, fraudarem instituições financeiras
universal, do ponto neutro, do lugar dígenas no Brasil. Cerca de oitenta no Brasil, as operações policiais ar- em detrimento de grandes e peque-
onde todos são os mesmos, do eter- por cento do contingente militar madas sob os holofotes da mídia, co- nos investidores.
no e do divino. Quando notamos que está na fronteira amazônica é mo o foi a Operação Satiagraha, rea- A sociedade se vê como vítima de No Brasil, há claro déficit de im- co atuando, levando a sério sua mis-
que o humano é temperado por es- formado por indígenas. lizada para “desbaratar” suposta ati- pessoas e de grupos sem escrúpulos plementação da lei penal para aque- são de realização de processo con-
ses dois tons, conseguimos nos tor- Afinal, se empresas multinacio- vidade criminosa atribuída a Daniel em sua ganância criminosa e de- les que dispõem de meios para se traditório, como mister educativo
nar capazes não de sermos toleran- nais podem ser proprietárias de ter- Dantas e a pessoas de sua relação. manda ação do Estado. Há, pois, defenderem bem. Como se costuma até o instante do julgamento, que,
tes com as diferenças, mas de ser- ras na fronteira brasileira, por que Os críticos desse tipo de ação re- uma legítima expectativa de atuação dizer, quem tem bom advogado difi- sendo justo, produzirá juízo definiti-
mos com elas hospitaleiros. os índios não podem ter a posse e o pressiva atribuem à polícia, ao Mi- repressiva e o Poder Público, queren- cilmente vai para a cadeia. As estatís- vo da culpabilidade.
O padrão laico, racional, oci- usufruto dessas terras? Não são nistério Público e ao Judiciário - in- do ou não, passa a se ver obrigado a ticas confirmam a assertiva. Mas, Nessa mesma linha, não é im-
dental, em sua formação clássica e também humanos? distintamente - abuso de autorida- se justificar, a demonstrar capacida- aceitá-la como verdadeira implica, próprio afastar um delegado de po-
estruturante de nossa sociedade Faço votos que nossa jovem de- de, apontando para o uso indevido de de reação e a afastar a fama de ser também, admitir que o Estado for- lícia que “espetacularizou” sua mis-
presente não é o ponto de vista mocracia e nosso Judiciário, na bus- de algemas, a decretação desneces- leniente com os ricos e poderosos. ma mal seus agentes persecutórios e são legal - delegados não são ina-
universal. É apenas mais uma ma- ca constante de superação de suas sária da prisão preventiva, a escuta O direito penal moderno é aves- que o trabalho destes não resiste a movíveis e nem o devem ser, por-
neira particular de ver o mundo: a raízes estamentais e elitizantes pos- telefônica sem critérios e a exposi- so ao apelo social por solidarieda- um bom argumento nos tribunais. que não lhes deve assistir o direito à
ocidental. sa fazer jus à lucidez tão esperada ção ilegal de investigados e de infor- de para com a vítima (sozialisiertes Casos como o da Operação Satia- independência. Órgão armado in-
Por que nos é tão custoso perce- de um país que, como o nosso, é tão mações sigilosas da investigação à Opferinteresse, como diria o pro- graha devem servir de lição. A discri- dependente é e sempre será um ris-
ber que é possível, por exemplo, plural em suas fontes mas tão retra- curiosidade pública. Passam a exigir fessor alemão Winfried Hassemer). ção de agentes da repressão é uma co para a democracia e para o Esta-
uma outra forma de se relacionar ído em reconhecê-las. o afastamento de delegados, de pro- Sua neutralização é um pressupos- exigência de profissionalismo. Atuar do de Direito. Polícia deve ser con-
com a terra, diferente daquela que Está nas mãos e nas mentes de motores ou de juízes que atuaram to de justiça e de eficiência da ju- com “espetáculo” compromete a troladíssima - quanto mais controle
John Locke sacramentou em seus nossos magistrados do Supremo sem discrição, supostamente embe- risdição penal. Do contrário, esta- qualidade do trabalho e expõe o Es- melhor. Mas, como ato administra-
“Dois tratados sobre o governo”? Tribunal Federal a oportunidade de vecidos pela fama. De outra parte, os ria, o Estado, a legitimar demandas tado à crítica pública. Por outro lado, tivo que é, o afastamento de um de-
Por que a utilidade da terra só pode não deflagrar um retrocesso dos Di- defensores da postura mais “proati- por linchamento e por penas cru- não se deve esperar das autoridades legado deve estar motivado, para
ser medida com a régua rígida do reitos Humanos no ano em que sua va” do Estado na repressão da “crimi- éis. Mas, também na contempora- leniência no trato com os poderosos. que não se desvie de sua finalidade.
lucro capitalista? Será que é útil a declaração completa 60 anos. nalidade dos ricos” desqualificam a neidade, há posições entre doutri- A vis compulsiva, porém, pressupõe A transparência é necessária para
terra que ostenta um modelo de vi- Em respeito à diversidade étnica crítica como interesseira e parcial, nadores que, em atitude aparente- ponderação, parcimônia, atenta aos evitar os rumores do favorecimento.
da pautado na solidariedade comu- do Brasil e ao anseio de uma demo- porque se limita a defender os abas- mente oposta, demandam o inte- direitos do argüido e de terceiros, in- Ninguém melhor do que o Ministé-
nitária, na surpreendente sobrevi- cracia forte e consolidada, cultivo a tados, que têm meios de contratar resse estatal pela vítima (victim dependente de sua condição social. rio Público e o juízo para assumi-
vência das nossas raízes étnicas e na los retos (demarcação em “ilhas”), à um modelo diverso no trato com a esperança de que nossa Suprema bons advogados e de atrair a empa- oriented approach, na linha de Na- Nada há de ilegal no uso de algemas rem o controle dos atos da polícia,
preservação do meio-ambiente? qual se quer submeter a Terra Indí- terra, produzem toneladas de ali- Corte não ceda a receios preconcei- tia dos tribunais superiores. omi Roth-Arriaza), já que, para na execução de ordem de prisão ou para garantir a intangibilidade polí-
Estamos tão acostumados a gena Raposa Serra do Sol é uma ex- mentos, priorizam o consumo de tuosos e falsamente racionais ou Parece que o meio jurídico está neutralizá-la, o Estado deve fazê-la na coleta de prova por escuta telefô- tica da persecução penal.
pensar pela lógica única do racio- crescência jurídica, forjada na mais sua gente e do próprio Estado de comedidos. dividido. Há vozes que são implacá- sentir que a leva a sério, pois, do nica, desde que os atos sejam produ- A lição é esta: pode-se compatibi-
nalismo ocidental, que não perce- olímpica insensibilidade à alterida- Roraima. Que o Supremo e garanta o direi- veis na crítica à operação e há outras contrário, estaria a estimular ações zidos no silêncio obsequioso da in- lizar a persecução penal de podero-
bemos que ela, invariavelmente e, de que nos é fundadora. Defender Na Raposa Serra do Sol a expor- to dos indígenas brasileiros da Ra- que a defendem arduamente. Onde de lustration - perseguição politi- vestigação. Nada há de abusivo na sos com as demandas do Estado de
em que pese sua importância, nos esse modelo para a demarcação da tação não é prioridade, os agrotóxi- posa Serra do Sol às suas terras tra- está a verdade? zada de pessoas supostamente vin- decretação da prisão preventiva de Direito. Respeitados os limites do
conduz à destruição da natureza, à terra indígena é ignorar o que diz a cos não são utilizados, as decisões dicionais, segundo seus usos, costu- Há uma legítima preocupação culadas a crimes, em detrimento quem ostensivamente atenta contra profissionalismo discreto e transpa-
segregação de parcelas inteiras da Constituição no seu art. 231: “o di- são debatidas e formadas comuni- mes e tradições. com o abuso de autoridade. É, de fa- do devido processo legal. Em resu- a atuação persecutória do Estado, rente, a repressão penal dos ricos se-
humanidade e à tristeza egoísta da reito originário às terras que ocu- to, intolerável que a polícia chame a mo: o Estado tem o dever e a prer- buscando corromper agentes da re- rá mais eficiente e menos sujeita a
auto-satisfação. pam segundo os seus usos, costu- mídia para acompanhar suas opera- rogativa de “desapropriar” a dor de pressão e, assim, manipular a prova críticas interessadas. Ao mesmo
Por que não podemos ser mais
plurais e dar uma chance a outro
mes e tradições”.
As etnias que vivem na Raposa
Por que a utilidade da terr a só pode ções, expondo a imagem de pessoas
que gozam ainda da presunção de
vítimas e de excluí-las da iniciativa
de aplicação da lei penal, con-
em seu favor, desde que a execução
da ordem se faça com respeito à dig-
tempo, poderá, o Estado, demons-
trar seriedade no trato persecutório,
modelo de vida, constantemente
abalrroado pela truculência da uni-
Serra do Sol se relacionam entre si,
cultivam um modo de viver livre, se
ser medida com a régua rígida inocência; que autoridades entre-
guem a jornalistas peças processuais
quanto leve o crime a sério e lhes
garanta satisfação. Só assim pode-
nidade e à imagem do investigado.
Uma vez iniciada a ação penal, que é
aplacando a demanda social por pu-
nição dos envolvidos na prática cri-
formidade de ganas desérticas?
A divisão compassiva, de ângu-
deslocam pelas terras comuns,
preservam seus recursos, trazem
do lucro capitalista? protegidas pelo sigilo, tais como re-
latórios de escuta telefônica que,
rá legitimar seu monopólio de uso
da força.
pública, - e não antes - tem a popu-
lação o direito de ver o poder públi-
minal de grande impacto econômi-
co e político.
04 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 UnB – SindjusDF | 05
OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO
O sistema judicial r eproduz e
r eforça a injustiça contr a os
po vos indígenas
vieram atualizá-lo para atender os A Convenção 169 da OIT, incor-
interesses difusos e coletivos, não porada ao direito interno brasileiro,
respondem de forma adequada às estabelece aos Estados-partes a
características da organização soci- obrigação de “adotar medidas para
al das centenas de grupos étnicos garantir que os membros desses po-
existentes no Brasil. vos (indígenas e tribais) possam
Para atuar com alguma eficiên- compreender e se fazer compreen-
cia em juízo e até para serem bene- der em procedimentos legais, facili-
ficiados com políticas sociais os tando para eles, se for necessário,
grupos são compelidos, na prática, intérpretes ou outros meios efica-
a utilizar modelos de organização zes” (art. 12).
que, não raro, dão origem a proble- Mais recentemente (setembro de
mas internos e externos. Refiro-me 2007), a Declaração das Nações Uni-
aqui às associações de povos indí- das sobre os Direitos dos Povos In-
genas e de comunidades quilombo- dígenas, que conta com a assinatura
las constituídas conforme as regras brasileira, além de reiterar essa
do Código Civil, e não conforme os obrigação, afirma no art. 34 o direi-
seus costumes. to daqueles povos de “promover, colonização portuguesa, segundo o territórios de sobrevivência mate-
No caso da Raposa Serra do Sol, a desenvolver e manter suas estrutu- qual os povos indígenas iriam se rial e imaterial são objeto de cobiça
conseqüência é perversa. O noticiá- ras institucionais e seus próprios aculturar e progressivamente desa- e de apropriação. Suas culturas são
rio da imprensa vem se referindo ao costumes, espiritualidade, tradi- parecer integrados numa única so- desqualificadas e propositadamen-
CIR, associação que congrega os ções, procedimentos, práticas e ciedade nacional. te invisibilizadas. O seu direito a
povos indígenas de Roraima, como quando existam, costumes ou siste- Nesse sentido, a falta de um novo uma identidade étnica é entendido
sendo uma associação exógena, que mas jurídicos, em conformidade Estatuto Indígena em consonância como um congelamento cultural
incita os índios a promover por con- com a normativa internacional de com a perspectiva da proteção da no tempo. As modificações co-
ta própria a desocupação dos arro- direitos humanos”. Em conseqüên- diversidade étnica e cultural tem di- muns em todas as culturas são vis-

O Estado brasileiro e o racismo zeiros da terra homologada.


Ora, o CIR são os índios da referi-
da Terra Indígena organizados em
cia o artigo seguinte enuncia o di-
reito de “determinar as responsabi-
lidades dos indivíduos para com as
ficultado a incorporação dessa
perspectiva na legislação infracons-
titucional, por meio de novas nor-
tas, para os povos indígenas, como
descaracterização, como perda da
identidade.

contra os povos indígenas


conformidade com o modelo do di- suas comunidades.” mas ou simplesmente pela reinter- E o sistema judicial, espaço no
reito estatal. Ou seja, a imprensa Vislumbro, em segundo lugar, o pretação das normas existentes. A qual por princípio se distribui justi-
contesta a legitimidade dos indíge- que em verdade é a premissa básica: urgência da compatibilização au- ça, e que poderia ser o locus da res-
nas porque se adaptaram às regras a negação persistente dos estratos menta diante da Declaração Uni- tauração, reproduz e reforça a injus-
do direito estatal. dominantes da sociedade brasileira versal que reprova a privação dos tiça. Sua organização, que não con-
Entre outras regras do processo em reconhecer o direito à identida- povos e das pessoas indígenas “de templa presença indígena, e as re-
Ela Wiecko V.de Castilho No que diz respeito aos povos in- los existentes no próprio Direito de respeito aos costumes indígenas civil ressalto, em razão dos limites de cultural de minorias étnicas. Esse sua integridade como povos dife- gras processuais, que não valorizam
dígenas a própria ordem jurídica Constitucional, no Direito Adminis- (arts. 56 e 57), tais regras são olvida- impostos a este artigo, aquela que direito reconhecido na Constituição rentes, ou de seus valores culturais, especificidades culturais, boicotam

O
Estado brasileiro é racista. A peca pela falta de atenção às especi- trativo, no Direito do Trabalho, no das ou descaradamente desrespei- define a língua portuguesa como de 1988 e, em plano internacional ou de sua identidade étnica”. de forma silente e eficaz, as possibi-
afirmação é forte, mas se im- ficidades e necessidades deles, de Direito Ambiental, no Direito Penal tadas principalmente pela justifica- língua oficial. Em lugares onde há na Convenção 169, refuta o paradig- No Brasil os povos indígenas es- lidades de se fazerem valer os direi-
põe a partir de uma avalia- tal forma que erige obstáculos à e no Processo Penal. tiva da “aculturação” comprovada forte presença indígena, como em ma assimilacionista vigente desde a tão sempre em desvantagem. Seus tos políticos, econômicos, sociais e
ção da realidade frente ao conceito igualdade étnico-racial. Esses obstá- Vislumbro, em primeiro lugar a pelo uso da língua portuguesa, pela São Gabriel da Cachoeira (AM) ou culturais dos povos indígenas.
de “racismo institucional”, conside- culos jurídicos estão disseminados negação das ordens normativas ela- vestimenta, ou pela carteira de mo- em Dourados (MS), os atos pro- Alterações legislativas para com-
rado como o “fracasso coletivo de por todos os ramos de direito, das boradas pelas sociedades indígenas. torista. cessuais deveriam ser realizados patibilizar formalmente as normas
uma organização em prover um ser-
viço profissional e adequado às pes-
leis aos regulamentos, instruções e
portarias. São obstáculos normati-
Essas ordens normativas, não por
acaso chamadas de “costumes” no
O pluralismo jurídico, conse-
qüência lógica do reconhecimento
também na língua indígena para Em lugar es de forte pr esença aos ditames da Constituição de
possibilitar de forma efetiva o 1988, da Convenção 169 da OIT e da
soas por sua cor, cultura ou origem
étnica.” De acordo com esse concei-
vos que produzem e reproduzem
uma desigualdade material, há mais
texto constitucional são, em regra,
desconsideradas pelos órgãos do
constitucional do direito dos povos
indígenas à sua organização social e
acesso à Justiça.
Sequer providências menos com-
indígena, os atos processuais Declaração Universal dos Povos In-
dígenas são bem-vindas. Entretan-
to, o racismo institucional pode ser de 500 anos. Estado brasileiro, inclusive pelo Ju- seus costumes, é negado pelas prá- plexas são asseguradas, como intér- to, o que mais precisamos para des-
visto ou detectado em processos, Em publicação patrocinada pela diciário que, teoricamente, deveria ticas administrativas e judiciais e pretes qualificados e peritos que es- deveriam ser r ealizados também na construir o racismo do Estado brasi-
atitudes ou comportamentos que Secretaria de Políticas para a Igual- assegurar os direitos das minorias pela ausência de regras especiais clareçam o juízo sobre as especifici- leiro são alterações no modo de
denotam discriminação resultante
de preconceito inconsciente, de ig-
dade Racial (SEPPIR) tive oportuni-
dade de apontar uma série de regras
étnicas, violados por particulares e
pela administração pública.
para as minorias étnicas.
O processo civil, por exemplo,
dades culturais dos povos indígenas
a que pertencem integrantes ou co-
língua indígena par a possibilitar de pensar. Trata-se de um exercício di-
uturno e constante, em todos os ní-
norância, de falta de atenção, ou de do processo civil que prejudicam as Mesmo no caso da aplicação e da cuja construção teórica se funda
estereótipos que coloquem minori- minorias étnicas. Outros autores e execução da pena, em que o Estatu- nas relações individuais, e mesmo
munidades envolvidos como auto-
res ou réus em ações civis ou autores for ma efetiva o acesso à Justiça veis e espaços, de seguir o conselho
de Saramago: “Se podes olhar, vê. Se
as étnicas em desvantagem. autoras se ocuparam dos obstácu- to do Índio prevê regras específicas as regras da Ação Civil Pública, que e vítimas em ações penais. podes ver, repara”.
20 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 UnB – SindjusDF | 21

Congresso Nacional faz parte de um e permite a liberdade de ser diferen-


paradigma ultrapassado, no qual o te destes povos originários e de todos
índio era visto como objeto e não co- os demais povos tradicionais.
A lei não vem sendo r espeitada e o mo sujeito.
A história vem demonstrando que
As contradições, do que hoje se
pratica como consulta prévia, preci-
go ver no passa por cima do dispositivo raras são as consultas feitas aos povos
indígenas e, quando feitas, não dis-
sam ser revistas e novos parâmetros
devem ser traçados, visto que pelo
legal que impõe a consulta põem dos meios adequados para a
efetiva participação. Não é concebí-
próprio caput do art. 231, pelo art. 6º
da Convenção 169, torna-se incon-
vel o desrespeito ao preceito consti- cebível pensar numa consulta não
tucional de consultar previamente os deliberativa, não independente e
povos indígenas, visto que a aplica- que não respeita a organização e o
as populações tradicionais e indíge- disponibilizados para que os povos ção da lei não pode sobrepor o inte- tecido social dos povos que serão
nas. Diante de tantos projetos “cres- participem da formulação e avalia- resse de uma elite em detrimento do atingidos. Ademais, a interpretação
cimentistas” e de risco aos povos in- ção dos planos e programas de de- tecido social restante, privilegiar o da lei deve ter caráter deontológico e
dígenas, até que ponto o art. 6º da senvolvimento nacional - espaço de particular em detrimento do público. não axiológico, para que tente conci-
Convenção 169 da OIT e o art. 231 da participação democrática. A lei não O desenvolvimento econômico liar todos os interesses. Reconhecer a
Constituição Federal estão sendo vem sendo interpretada de forma a pode caminhar pari passo com o de- pluralidade étnica e cultural é reco-
cumpridos? Os meios utilizados per- garantir o respeito aos povos indíge- senvolvimento social, desde que di- nhecer nos povos indígenas sua ca-
mitem a participação efetiva dos po- nas de deliberarem sobre projetos reitos fundamentais não sejam atin- pacidade de sujeitos, de protagonis-
vos atingidos? O artigo 231, §3º da econômicos e desenvolvimentistas gidos ou relegados à letra fria da tas. A realização do Estado democrá-
Constituição Federal dispõe que to- que afetarão suas terras. Constituição. Imperiosa a mudança tico não se concretiza só com espa-
do aproveitamento dos recursos hí- Ao contrário, a lei não vem sendo do paradigma do estado providên- ços de cidadania, mas tão-somente
dricos, inclusive o potencial energé- respeitada e o governo passa por ci- cia-tutor e monocultural para um quando o povo efetivamente influen-
tico em terras indígenas só poderá ma do dispositivo legal que impõe a Estado que reconhece a diversidade cia e participa da sua construção.
ser efetivado mediante autorização consulta. As audiências públicas es-
do Congresso Nacional, ouvidas as tão sendo utilizadas como meio de
comunidades indígenas. consulta, contudo não têm sido um
A Convenção 169 da OIT de 1989 espaço de deliberação com os povos
(revisou a Convenção 107 de 1957) indígenas, primeiramente, porque
visa à proteção dos direitos dos po- não raras vezes esses são excluídos;
vos indígenas e tribais nos países in- segundo, porque, por mais que seja
dependentes e a garantia ao respeito garantido o direito de fala à popula-
a sua integridade. Tramitou por 11 ção, o que é raro, suas reivindicações
anos no Congresso Nacional, sendo e sugestões não são deliberativas,
aprovada em 19 de abril de 2004 pe- não influenciam na realização ou
lo Decreto 5.051. O art. 6º da Con- não do empreendimento.
venção 169 vai além da Constituição O § 3º do art. 231 determina que a
Federal, na medida em que não se li- consulta deva ser feita aos povos in-
mita a mera consulta aos povos indí- dígenas e autorizada pelo Congresso
genas. Dispõe que quando previstas Nacional. Em 2005, o Congresso Na-
OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO Luciana de Souza Ramos assim, a construção de vinte e sete bar- medidas legislativas ou administrati- cional autorizou a construção da
ragens até 2015, sendo que dez já estão vas suscetíveis de afetar os povos ori- barragem Belo Monte (TO), por

O direito à A
consulta prévia é um instru-
mento de consulta pública aos
povos indígenas que pode ser
usado para deliberar sobre grandes
previstas no Programa de Aceleração
de Crescimento (PAC), para serem
construídas até 2010.
Alguns desses projetos já estão em
ginários diretamente, ou mesmo na
adoção de decisões referente a políti-
cas e programas que lhes sejam refe-
rentes, os povos indígenas devem ser
meio do Decreto Legislativo 788/05,
sem ouvir nenhum dos povos que
seriam afetados, bem como autori-
zou a construção antes mesmo de

consulta prévia:
projetos nacionais e regionais, que ve- andamento e afetarão direta e indireta- consultados, mediante procedimen- realizado o licenciamento ambien-
nham afetar terras tradicionais, como a mente diversos povos indígenas, como to apropriado e com meios de livre tal. Diante de tão grave ameaça e vio-
construção de barragens e a explora- a barragem de Estreito (TO), que atin- participação. lação de direito, o Tribunal Regional
ção de minérios. Está previsto na Cons- girá os Apinajés, Kraô, Krikati, Gavião e O art. 7º versa que os povos indí- Federal da 1ª Região reconheceu a
tituição Federal, bem como na Con- mais oito etnias, somando oito mil in- genas deverão participar da formu- nulidade do decreto, estabelecendo

a construção de venção 169 da Organização Internacio-


nal do Trabalho (OIT).
O Brasil possui um dos maiores po-
tenciais hidrelétricos do mundo, cerca
dígenas atingidos. Em Rondônia, a
construção das barragens de Santo An-
tonio e Jirau afetarão, principalmente,
os povos isolados do Madeirinha e da
lação, aplicação e avaliação dos pla-
nos e programas de desenvolvimen-
to nacional e regional suscetíveis de
afetá-los diretamente.
que o Congresso efetivasse a consul-
ta aos povos indígenas afetados.
O Congresso não pode ir além da
sua função legislativa e se substituir

barragens em de 260 GW, sendo que apenas 72 GW


são utilizados. A Região Norte é a que
detém o maior potencial hidrelétrico
do país, contudo pouco explorada. O
Bolívia, bem como os Mura, Kaxarari,
Pacas Novas e todo povo do Guaporé.
O crescimento na exploração do
potencial hídrico das bacias da Região
A Convenção 169 trabalha não só
sob um patamar jurídico contempo-
râneo de reconhecimento e de liber-
dade dos povos indígenas, como sob
aos povos indígenas. Isso, por si só,
fere os parâmetros jurídicos contem-
porâneos dos direitos indígenas,
pois o reconhecimento dos povos

terras indígenas
Plano Decenal de Energia Elétrica do Norte, sem o respeito e o desenvolvi- a concepção de autonomia desses. pressupõe o reconhecimento en-
governo federal pretende aumentar a mento exponencial das populações Não basta que os povos sejam ouvi- quanto sujeito ativo, protagonista e
exploração desse potencial, principal- atingidas, cujas terras e história serão dos - espaço de exercício cidadão - capaz. A visão do indígena tutelado,
mente na região norte do país, planeja, alagadas, trará grandes prejuízos para mas que meios adequados sejam assistido, seja pela Funai, seja pelo
06 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 UnB – SindjusDF | 07

Sol e a Terra indígena Yanomami ao direito dos índios que nela habi-
abrigam as cabeceiras dos rios e iga- tam de escolher que tipo de apro-
É a diversidade social br asileir a que está rapés que formam o rio Branco e veitamento eles próprios querem
mais de 5 milhões de hectares de flo- desenvolver.
em risco, não o território nacional restas no estado.
É antagônica e anacrônica a for- A distorção dos fatos
ma como os seis arrozeiros exercem O falso discurso do risco à inte-
a Inglaterra. No início do século Produto Interno Bruto do Estado a ocupação na terra indígena, como gridade do território nacional brasi-
passado a solução da disputa entre (www.seplan.rr.gov.br). Se a alega- um direito patrimonial, individual, leiro vem sendo utilizado como jus-
os dois países, arbitrada pela Itália, ção é correta e os arrozeiros contri- absoluto, defendido pelo uso da for- tificativa para não se respeitar a inte-
levou principalmente em conside- buem com 6% da economia, porque ça, versus o direito originário dos ín- gridade do território indígena. O
ração o argumento de Joaquim Na- ignorar a contribuição dos índios - dios sobre as terras, um direito cole- verdadeiro risco no caso da demar-
buco de que as terras em disputa metade da população rural - à eco- tivo, exercido de forma social e am- cação da terra indígena Raposa Ser-
eram brasileiras porque ocupadas nomia do Estado? bientalmente responsável por cerca ra do Sol está em não se respeitar os
por índios brasileiros. Foram os ín- O Governo de Roraima omite a de 20 mil indígenas. direitos garantidos na Constituição,
dios de Raposa Serra do Sol que ga- contribuição dos professores indíge- A utilização de terras indígenas em se negar igualdade de direitos
rantiram ao Brasil que estas terras nas, dos agentes indígenas de saúde, para a plantação de arroz desviando entre cidadãos indígenas de viver
que habitam fossem brasileiras. da criação - pelos índios - de gado e e assoreando o curso de igarapés, em terras de fronteiras.
O medo de que os índios queiram animais de pequeno porte, bem co- destruindo matas ciliares, poluindo A sonegação de direitos, a su-
se tornar independentes e para isso mo da fabricação de farinha, e da as águas, sem nenhuma observação pressão de garantias constitucio-
reclamem o apoio de países estran- produção agrícola indígena para a das normas ambientais é o oposto nais, a desqualificação de um proce-
geiros ou organizações internacio- economia do Estado. da utilização da terra e de seus re- dimento administrativo que durou
nais como a Organização das Na- É importante ainda considerar o cursos de uma forma sustentável trinta anos para assegurar dignidade
ções Unidas (ONU), usando como papel da população indígena de Ro- que permita às próximas gerações aos índios de Roraima pode isto sim,
suporte a Declaração dos Povos In- raima na prestação de serviços am- continuarem a dispor desses recur- interromper um processo de justiça
dígenas também não procede. O do- bientais como a manutenção da sos naturais. A opção por um tipo de social. É a diversidade social brasi-
cumento, exaustivamente discutido qualidade da água e a não-emissão utilização econômica dentro da ter- leira que está em risco, não o territó-
durante 20 anos, resguardou esse re- de carbono. A Terra Raposa Serra do ra indígena vai de encontro ainda rio nacional.
ceio hipotético dos países ao dizer
que nada em seu conteúdo “se en-
tenderá no sentido de que autoriza
ou fomenta qualquer ação direcio-

Integridade territorial
nada a desmembrar ou afetar, no to-
do ou em parte, a integridade terri-
torial ou a unidade política de Esta-
dos soberanos e independentes”
(Artigo 46).
A Declaração dos Povos Indíge-

e diversidade social
nas da ONU, aprovada por 143 paí-
ses em setembro do ano passado,
garante aos índios autonomia inter-
na, que corresponde ao direito de
decidir sobre o seu desenvolvimento
econômico, a gestão dos seus terri-
Ana Paula Souto Maior A mudança de convencimento comprometer a integridade territo- antiga e vem expressa no parecer do tórios, como realizar a educação dos
do STF preocupa por retomar pon- rial em Roraima. O Exército não par- Estado Maior das Forças Armadas seus filhos, cuidar da sua saúde, pro-

E
m abril de 2008, o Supremo tos que se acreditavam superados. ticipou da Operação Upatakon III e, (EMFA) que integra o processo de jetar o seu futuro de acordo com os
Tribunal Federal (STF) trou- Preocupa também por permitir que segundo manifestação na imprensa, demarcação, juntamente com pare- seus costumes, línguas, tradições e
xe inquietações a respeito argumentos ideológicos sobre segu- a ela se opõe por achar que o Brasil ceres no sentido contrário do Minis- cosmovisão.
dos direitos fundamentais dos ín- rança nacional, ocupação de fron- pode perder uma parte de Roraima. tério Público Federal e da Advocacia Esta autonomia está consagrada
dios na Constituição, entre eles o teiras, integração nacional e dados Tal discussão, que ocorreu em Geral da União, para quem a presen- na nossa Constituição no artigo 231
direito originário sobre suas ter- econômicos, se sobreponham a um meados dos anos 90 e pensava-se ça dos índios não compromete a que dispõe que são reconhecidos
ras tradicionais. processo histórico de reconheci- superada, ressurge no discurso de atuação das Forças Armadas. aos índios sua organização social,
Ao julgar ação cautelar promovi- mento de direitos coletivos e de plu- um arrozeiro que, com táticas de São dois mandamentos constitu- costumes, línguas, crenças e tradi-
da pelo Estado de Roraima, o STF ralidade cultural, inseridos na Cons- guerrilha – como a construção de cionais - a obrigação de demarcar e ções. A autonomia interna em nada
suspendeu a operação da Polícia tituição de 1988. trincheiras, a confecção de bombas proteger as terras de ocupação tradi- se compara à soberania dos países
Federal de retirada dos arrozeiros caseiras, o bloqueio de estradas, a cional indígena, e a obrigação de de- sobre o seu território.
ocupantes ilegais da Terra Indígena A alegação de risco à integridade queima de pontes e a destruição de fender a soberania nacional - que
Raposa Serra do Sol. A decisão sur- territorial patrimônio público –, consegue o podem perfeitamente se harmoni- O falso comprometimento da
preendeu por contrariar entendi- Os arrozeiros alegam que estão a apoio do Exército e simpatia de par- zar em faixa de fronteira. economia do Estado de Roraima For am os índios da Terr a Indígena Raposa Serr a do
mento anterior do próprio tribunal, defender não os seus interesses par- te da imprensa, para manter-se ile- A argumentação dos militares de Roraima depende para a sua sus-
de que a retirada era uma conse- ticulares, mas a segurança nacional, galmente na terra indígena. risco à integridade territorial brasi- tentação dos recursos enviados pelo Sol que gar antir am ao Br asil que estas terr as
qüência legal ao procedimento de pois com a demarcação haveria o A posição dos militares, contrária leira também é inconsistente com a Governo Federal. A administração
demarcação. risco de interferência estrangeira a à demarcação da terra indígena, é definição da fronteira do Brasil com pública é responsável por 56,1% do que habitam fossem br asileir as
18 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 UnB – SindjusDF | 19

A OIT e a proteção internacional


NOTA DO CORRESPONDENTE

dos direitos indígenas


Rosane Lacerda indígenas e do Grupo de Trabalho
da ONU sobre populações indíge-

S
egmentos contrários às de- nas, criado em 1982.
marcações de terras indígenas Por fim a OIT adotou a Conven-
em faixa de fronteira têm criti- ção n.º 169, de 1989, ou "Convenção
cado seguidamente a adoção, pelo sobre os Povos Indígenas e Tribais",
governo brasileiro, de uma política que reconheceu o direito desses po-
indigenista não-integracionista, ge- vos à manutenção de suas identida-
ralmente vinculada a uma suposta des étnico-culturais próprias, ado-
pressão de interesses estrangeiros tou o princípio do respeito ao con-
em tudo o que diga respeito à prote- trole indígena de suas próprias ins-
ção dos direitos indígenas na região tituições, formas de vida e desen-
amazônica. São críticas que des- volvimento econômico, e o respeito
consideram, entre outras coisas, o ao seu direito de serem sempre con-
histórico papel da Organização In- sultados "através de suas institui-
ternacional do Trabalho (OIT) no ções representativas", e a garantia à
desenvolvimento de novos paradig- sua livre participação em todas as

10 Anos do Tribunal
mas em relação à questão indígena. instâncias decisórias em políticas e
Criada em 1919 inicialmente programas que lhes digam respeito.
vinculada à Sociedade das Nações, Após treze anos de discussão no
a OIT é o mais antigo dos organis- Congresso Nacional, a Convenção
mos especializados da Organiza- foi finalmente promulgada no Brasil

Penal Internacional
ção das Nações Unidas (ONU). Já em abril de 2005.
em 1921, a OIT constatava que as O envolvimento da OIT com a
"populações nativas" das colônias proteção dos direitos indígenas re-
européias viviam sob condições vela o processo de amadurecimento
desumanas de trabalho, obrigadas que levou à ruptura com a concep-
a abandonar suas terras "para con- ção integracionista dos povos indí-
Giovanna Frisso devido ao falecimento do acusado. A dificuldade de se coletar evidências cesso penal na ausência do acusado. verter-se em trabalhadores sazo- genas. Querer fazer retornar tal
fase processual do caso Promotor in locu e na impossibilidade de o Estes aspectos não são vistos de for- nais, migrantes, em condições de tou o primeiro tratado internacio- cional, e da reserva ao Estado de perspectiva, já definida como obso-
servidão ou a domicilio e, por con- nal específico sobre a questão indí- todo o poder decisório em maté- leta e prejudicial, equivale a se dese-

N
o mês passado, mais exta- versus Thomas Lubanga estava TPI implementar as ordens de pri- ma negativa, mas como a efetivação
mente no dia 19 de julho, o agendada para começar em junho são sem apoio doméstico. Aspectos de um processo penal internacional seguinte, expostos às formas de ex- gena: a Convenção n.º 107, de 1957. rias de interesse indígena. jar o retorno à política de aldea-
Estatuto do Tribunal Penal de 2008, mas foi adiada. que retardam significativamente o orientado por parâmetros de direi- ploração no trabalho". Diante da Esta sofreu influências da presença Mas os anos 60 e 70 trouxeram mentos do século XIX. Não por co-
Internacional (TPI) completou 10 Para muitos, estes dados ilus- andamento processual. tos humanos, os quais incluem o di- gravidade dos abusos encontrados indígena nas delegações sindicais duras críticas - do movimento indí- incidência, o texto da Constituição
anos. Voltou a ecoar, então, a famosa tram os riscos que as relações de Outros, todavia, veêm na atuação reito de o acusado ser julgado em a organização decidiu estender sua bolivianas e do prestígio do antro- gena, entidades de direitos huma- Federal de 1988 guarda estreita sin-
afirmação de Nuremberg: as normas poder apresentam para a legitimi- do Tribunal a possibilidade de reco- um prazo razoável. Já em relação às proteção aos trabalhadores indíge- pólogo Darcy Ribeiro em sua expe- nos e especialistas - ao enfoque in- tonia com os princípios da Conven-
de direito internacional exigem a dade do Tribunal. A exclusiva pre- nhecimento do indivíduo como su- vítimas, o TPI prevê a possibilidade nas, daí resultando, em 1930, a riência no Serviço de Proteção ao tegracionista da Convenção. Em ção 169 da OIT, sobretudo no tocan-
punição dos indivíduos que as vio- sença do Tribunal no continente jeito de direito em âmbito internaci- de as mesmas participarem em di- adoção da Convenção n.º 29 sobre Índio (SPI) - cuja política era consi- 1986 peritos convocados pela OIT te ao reconhecimento e ao respeito
lam. O Tribunal, esclarece o preâm- africano é entendida como reitera- onal. A demora em iniciar novos versas fases processuais, desenvolvi- Trabalho Forçoso, hoje ratificado derada progressista para os padrões concluíram tal enfoque como obso- à organização social, costumes,
bulo de seu Estatuto, busca comba- ção de uma história de dominação processos é relacionada, por exem- mento que reconhece, inclusive, o por 168 países, inclusive o Brasil. da época. leto, e a sua aplicação como preju- crenças e tradições dos povos indí-
ter a impunidade e, assim, contribu- ou, ao menos, como reflexo da atu- plo, à necessidade de a promotoria direito das vítimas à reparação. Mais tarde, como um organismo Sob a visão etnocêntrica predo- dicial às populações indígenas. Sua genas. Querer o sentido contrário é
ir para a prevenção dos crimes de al divisão de poder no contexto in- buscar índicios que excluam a res- Nestes primeiros anos, as ativida- vinculado à ONU, a OIT retomou os minante, a 107 regeu-se pelo binô- revisão foi objeto de discussão pela andar na contramão da história
maior gravidade que afetam a co- ternacional. As relações de poder ponsabilidade do acusado pelos cri- des do TPI foram objeto não apenas estudos sobre as condições de vida mio proteção / integração: de um Conferência Internacional do Tra- constitucional brasileira, da evolu-
munidade internacional. O preâm- em âmbito doméstico, por sua vez, mes investigados, bem como à im- da atenção de profissionais relacio- daqueles trabalhadores, sob um en- lado, protegia os indígenas da dis- balho em 1988 e 1989, contando ção do direito internacional e das
bulo afirma, ainda, tratar-se de um se fazem refletir, por exemplo, na possibilidade de se conduzir o pro- nados à área, mas também de vários foque mais voltado para a temática criminação no âmbito dos direitos com contribuições de organizações conquistas dos povos indígenas.
Tribunal independente e imparcial. setores da sociedade civil. Neste indígena. A partir de 1952, coorde- trabalhistas e afins. Do outro, pre-
O Tribunal exerce suas atividades contexto, independentemente da nou o "Programa Indigenista Andi- tendia integrá-los aos padrões só-
há 5 anos. Atualmente, quatro situa- posição que se adote no debate no" e publicou livro sobre as "Con- cio-culturais hegemônicos nas so-
ções estão sendo investigadas pelo A e xclusiva pr esença do Tribunal no acerca do sucesso ou fracasso do dições de Vida e de Trabalho das Po- ciedades ocidentais. Promulgada Quer er fazer r etor nar a tentativa de integ r ação
procurador: República Democrática TPI, ao menos um ponto positivo pulações Aborígines nos Paises In- no Brasil em 1966, a Convenção
do Congo, Uganda, República Cen- continente africano é entendida como parece ter sido alcançado: a discus- dependentes". norteou o "Estatuto do Índio" de dos índios é o mesmo que r etomar a política
tro-Africana e Darfur. No total, fo- são pública acerca dos objetivos do Com o apoio de outros organis- 1973, a exemplo do propósito de
ram ordenadas a prisão de doze acu- r eiter ação de uma história de dominação direito penal internacional e da me- mos das Nações Unidas, a OIT ado- integrar os índios à comunhão na-
dos aldeamentos do século XIX
sados, 4 delas cumpridas, 1 retirada lhor forma de alcançá-los.
08 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 UnB – SindjusDF | 09

cusa aos índios a condição de ho- mais próximos ou mais distantes.


Protesta-se contra o território contínuo, mem, ou se os tem por incapazes pa-
ra os fins daquele projeto. Qualquer
Homologar, na atualidade, o uso
dessa expressão, importaria em re-
como se a Raposa Serra do Sol fosse a uma das conclusões fala por si só.
Da mesma forma, em relação ao
torno ao monopólio de um único sa-
ber, de um único viver, de uma única
única a apresentar essa característica alegado comprometimento de Ro-
raima. A Terra Indígena Raposa Serra
forma de expressão, enfim, de uma
única cultura.
do Sol ocupa pouco mais de 7% da-
também eleito externamente, era se marcação de terras indígenas. quele Estado; do total da população Indefinição quanto ao
integrar à sociedade de grande forma- Quanto à Raposa Serra do Sol, o rural localizada nos municípios on- futuro indígena
to (a “comunhão nacional” brasileira). laudo antropológico revelou que os de a terra se situa, aproximadamente O que mais impressiona, no de-
Numa concepção bastante grupos localizados nessa área manti- 80% é composta de índios. O que sig- bate sobre a Raposa Serra do Sol, é
darwinista, acreditava-se que, à me- nham, entre si, relações de diversas nifica dizer que grande parte da pro- que há vinte anos, desde a Constitu-
dida que os índios fossem “se tor- ordens: econômicas, parentais, de dução de alimentos, nesse períme- ição de 88, o Judiciário vem tendo
nando” capazes, deixariam aquelas compadrio e amizade, cosmológicas. tro, está sob a responsabilidade dos importante papel na consolidação
terras, que ficariam portanto voca- Fragmentar essa terra indígena im- índios. Todavia, por razões óbvias, desses marcos teóricos.
cionadas ao desaparecimento. portaria em romper essas relações, persistem na velha ladainha de que Então, por que reavivar questões
Agora, enquanto expressão de vi- mediante instituição de espaços in- os índios são empecilho ao desen- tão velhas e aparentemente natimor-
da de um grupo, as áreas indígenas comunicáveis, e subverter o modo volvimento do estado. tas, uma vez que também o Judiciá-
definem-se internamente. Daí a ne- de vida daquelas comunidades. Ou então, o que vem ocorrendo rio está submetido à cláusula de pro-
cessidade da intermediação antropo- O laudo, exatamente pela sua so- mais amiúde, dizem que na Raposa ibição de retrocesso em matéria de
lógica, que irá traduzir essa ocupação lidez, foi aprovado pelo então minis- não há mais índios, porque acultura- direitos humanos? Não se sabe.
espacial. O antropólogo não “cria” tro da Justiça, Nelson Jobim. dos. Esquecem, que a conseqüência Todavia, a decisão que impediu
uma terra indígena; apenas a revela. Se, quanto ao dado territorial, de uma sociedade plural é o bani- aos índios da Raposa Serra do Sol a
Por outro lado, a definição de concede-se que há algo de desco- mento definitivo das categorias acul- ocupação plena de seu território,
uma terra de ocupação tradicional nhecimento, as demais impugna- turados e selvagens. A uma, porque mantendo ali plantadores de arroz,
não pode passar ao largo do estudo ções feitas ao decreto de homologa- ultrapassada a noção de cultura co- gerou sentimento de discriminação
antropológico, salvo se pretender- ção da Raposa Serra do Sol não es- mo totalidade, como perfeita coe- perfeitamente compreensível. Pior
mos reinstaurar o viés etnocêntrico condem o seu viés racista. rência de crenças homogeneamente ainda, o quadro de indefinição
que orientava o direito anterior, em É assim no que diz respeito à sua partilhadas. A duas, porque, nas rela- quanto ao seu destino.
que o juiz atribui aos agentes a sua localização em faixa de fronteira. A ções interétnicas, as situações de Os índios da Raposa Serra do Sol
própria visão. Submeter o processo política para as fronteiras nacionais contato não importam em abando- aguardam, há mais de vinte anos,
de demarcação de áreas indígenas a está no Projeto Calha Norte, que vê, no dos códigos e valores que orien- uma solução que lhes permita lan-
critérios outros que não aqueles que em sua ocupação humana, a mais tam cada grupo. A aculturação pres- çar-se a projetos de futuro. Enquan-
resultam da organização social do eficaz estratégia de defesa. Ao se en- supõe a existência de uma cultura to isso, tal como K., de O Processo, de
grupo, é retornar ao regime de uma xergar ameaça na presença indígena única ou dominante, da qual os de- Kafka, estão condenados a viver
sociedade hegemônica que tem o nessa região, das duas, uma; ou se re- mais grupos étnicos e culturais estão num tempo orientado pelos outros.
domínio das classificações, do esta-
Deborah Duprat Protesta-se contra o território belecimento das fronteiras, que diz

Raposa
“contínuo”, como se a Raposa Serra quem está dentro e quem está fora.

A
história judiciária brasileira do Sol fosse a única terra indígena a Era, aliás, o que se fazia com os
registra uma única condena- apresentar essa característica. diferentes até pouco tempo atrás. Di-
ção por genocídio: índios ya- Não é demais lembrar que a atu- ferentes, bem entendido, todos
nomamis de Roraima, mortos por al Constituição determina que a ter- aqueles que não correspondiam ao
garimpeiros naquela que ficou co- ra de ocupação tradicional seja ex- real sujeito de direito: masculi-
nhecida como a “chacina de hashi- pressão do modo de vida do povo in- no/branco/adulto/são/proprietário.

Serra do Sol mu”. Na praça principal de Boa Vis-


ta, há uma estátua que homenageia
o garimpeiro.
Esse pano-de-fundo não pode
ser escamoteado na discussão atual
sobre os limites territoriais da Terra
dígena que ali se situa. O elemento
central, portanto, na sua definição, é
a organização espacial do grupo, o
que significa dizer que terra e comu-
nidade indígena são elementos in-
dissociáveis.
Mulheres confinadas ao espaço do-
méstico; crianças portadoras de defi-
ciência, às escolas especiais; idosos,
aos asilos. Eficiente estratégia, tam-
bém, de torná-los invisíveis.
Com a Constituição de 1988, a so-
Indígena Raposa Serra do Sol. Ao assim conceber as terras de ciedade passa a ser, normativamen-

e o debate Desconhecimento, intolerância e


racismo
É preciso também que se desve-
le o quanto há de desconhecimen-
to, intolerância e racismo no dis-
ocupação tradicional indígenas, não
se permite mais ao Estado brasileiro
estabelecer fronteiras como espaços
de confinamento, tal qual o modelo
do regime constitucional anterior.
Antes, as áreas indígenas segui-
te, plural. Direitos são concebidos de
modo a assegurar a todos o exercício
pleno de sua diferença, de sua iden-
tidade. E é nesse contexto que, goste-
se ou não, se situa o processo de de-

curso que inaugura a ação que o Es- am a lógica da assimilação: os índios

atual no STF tado de Roraima propôs, no Supre-


mo Tribunal Federal - STF, contra o
decreto que homologou a demarca-
ção dessa área.
ficavam confinados em espaços de-
limitados externamente, sempre em
extensão bastante diminuta, porque
se acreditava que o seu destino,
Há muito de desconhecimento, intolerância e racismo no discurso que gerou
a ação proposta contra o decreto de homologação da “Raposa”
16 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 UnB – SindjusDF | 17

A convergência de interesses econômicos


e militares no caso Raposa já orientava a
política indigenista da Ditadura Militar
forças conservadoras - inicialmente nhecida como “contraditório”, justi-
através do relator da Comissão de ficada como garantia constitucional
Sistematização e em seguida pela aliada ao princípio da “ampla defesa”
articulação político-parlamentar contra a perda de bens e direitos.
denominada “Centrão” - , defende-
ram que as terras indígenas fossem O avanço do agronegócio com teses
constitucionalmente conceituadas da “ditadura militar”
como “de posse imemorial onde os Desde o final do Governo FHC,
índios se achassem permanente- os setores interessados no avanço
mente localizados”. do agronegócio no Brasil reivindi-
Com essa formulação pretendia- cam não mais a possibilidade de
se aprovar na ANC um conteúdo questionar ou impugnar o estudo
normativo que permitisse uma in- de identificação e delimitação de
terpretação restritiva sobre os direi- uma terra indígena. Pretendem as-
tos territoriais indígenas, de modo a segurar a possibilidade de nele in-
legitimar o que o Governo Sarney já terferir, indicando assistentes ou re-
implementava. presentantes técnicos.
Mas tal propósito, ao se deparar Além disso, inconformados com
com a mobilização dos povos indí- os esforços dos povos indígenas em
genas na Constituinte, não manteve fazer avançar a demarcação e a re- gócio nos estados de Santa Catari- genas, seja como “ilhas”, ou áreas
o apoio político necessário, vendo- visão dos limites das terras que tra- na, Paraná, São Paulo, Mato Grosso descontínuas.
se derrotado. dicionalmente ocupam, tais seto- do Sul, Mato Grosso, Rondônia, De conteúdo genocida, tal tese
Com a aprovação do art. 231 da res articulam teses jurídicas para Amazonas, Pará e Roraima, confor- não é nova, e já foi praticada com re-

Territórios indígenas e soberania Constituição Federal, impulsiona-


ram-se as legítimas e justas pressões
dos povos indígenas, a fim de que
impedir ou retardar a sua demarca-
ção, visando quebrar a indisponi-
bilidade das terras indígenas à
mam amplo espectro de alianças,
articulando os representantes nos
poderes legislativo e executivo,
sultados desastrosos para os povos
indígenas e para o país. Exemplo
dramático é a realidade dos Kaiowá-
aquela política indigenista fosse re- apropriação capitalista. Os benefi- municipais e estaduais. Envolvem Guarani, no Mato Grosso do Sul, cu-

nacional: o caso Raposa Serra do Sol vista. Em conseqüência do agrava-


mento da invasão de garimpeiros na
terra Yanomami, proporcionado pe-
ciários do agronegócio defendem a
competência do Congresso Nacio-
nal para aprovar a demarcação das
também suas bancadas no Con-
gresso Nacional, cujos Deputados e
Senadores integram a base de sus-
jos casos de suicídio e mortalidade
infantil por desnutrição tanto têm
escandalizado a opinião pública na-
la forma genocida em que a terra foi terras indígenas, de modo que o tentação do Governo Federal, e cional e internacional.
Paulo Machado Guimarães das como “colônias indígenas”, co- demarcada, o então Governo Collor presidente da República somente pressionam no sentido de que não O cerne da questão posta sob a
A tese da “soberania nacional” visa apenas mo ocorreu no Rio Negro, estado do de Mello foi levado a alterar a de- possa homologar as demarcações se demarquem mais terras indíge- apreciação do Supremo Tribunal Fe-

A
questão da demarcação da Amazonas, e os “não-aculturados” marcação das terras indígenas do que tenham sido aprovadas pelo nas, ou que em fazendo, sejam em deral, no caso da Terra Indígena Ra-
Terra Indígena Raposa Serra
do Sol, contestada em Ação
favorecer os interesses do ag ronegócio teriam suas terras demarcadas co-
mo “áreas indígenas”, como foi efeti-
Rio Negro e Yanomami.
Mas os segmentos conservadores
Poder Legislativo.
Os setores inconformados com a
dimensões reduzidas.
É nesse contexto que se situa o
posa Serra do Sol, está na manuten-
ção da correta perspectiva constituci-
Popular no Supremo Tribunal Fede-
ral - STF, tem provocado debates so-
nas terras indígenas vado nas terras do povos Yanomami.
Evidenciava-se à época que o
que articularam interesses econô-
micos jamais abandonaram seu ver-
homologação da demarcação da
Terra Indígena Raposa Serra do Sol,
embate judicial e político que se
trava em torno da demarcação da
onal. Esperamos que o STF afaste as
modalidades interpretativas que, sob
bre supostas implicações para a so- propósito destas concepções políti- dadeiro propósito no sentido de alimentam uma articulação nacio- Terra Indígena Raposa Serra do o falso argumento da defesa da sobe-
berania nacional. No presente artigo minutas, e que as áreas à sua volta pectivos povos indígenas. co-administrativas era o de demar- aprovar normas ou regulamentos nal com segmentos das Forças Ar- Sol. As forças políticas conserva- rania nacional, buscam restringir os
resgatamos um pouco dos antece- sejam apropriadas por particulares, No Governo Sarney, quando da car terras indígenas com limites re- que impliquem restrições à demar- madas. Trabalham em torno das ve- doras e de direita, aliadas a varia- direitos indígenas sobre suas terras,
dentes históricos desse discurso no criando-se novas cidades na faixa de instalação da Assembléia Nacional duzidos, liberando as áreas em vol- cação das terras indígenas. lhas teses que predominaram na “di- dos interesses econômicos e, como mas visam unicamente beneficiar a
âmbito do desenvolvimento da polí- fronteira. Constituinte - ANC, setores milita- ta para o desenvolvimento de ativi- As reações contra as garantias tadura militar”, no sentido de não ocorrera há vinte e um anos atrás, sua apropriação privada. Esperamos
tica indigenista desde o período pré- Esta concepção militar e de segu- res, mantendo forte influência so- dades econômicas privadas. O re- constitucionais relativas à demarca- admitir a demarcação de terras indí- a interesses de setores militares, que o STF decida no sentido de, fa-
constituinte, com ênfase nos inte- rança nacional, ou institucional, fa- bre a condução da política indige- sultado de tais atividades se desti- ção das terras tradicionalmente ocu- genas em dimensões corretas, na defendem a tese genocida, de que zendo valer o texto Constitucional
resses econômicos ali camuflados. vorece interesses econômicos sobre nista, articularam-se na elabora- naria à exportação, conforme ex- padas pelos índios passaram a se de- faixa de fronteira. as terras indígenas devem ser de- aprovado há vinte anos atrás, assegu-
as terras indígenas e suas riquezas ção do “Projeto Calha Norte”, em pressamente previsto no “Projeto senvolver, no Governo Collor, na dis- Com isso, os interesses econô- marcadas com limites reduzidos, rar aos povos indígenas as terras que
Antecedentes naturais. torno do qual foi concebida nova Calha Norte”, já que as áreas fron- cussão que resultou na edição do micos, notadamente os do agrone- seja como colônias ou áreas indí- tradicionalmente ocupam.
Sob a concepção estratégica de Trata-se de uma convergência de política de demarcação. A idéia era teiriças onde essas terras se locali- Decreto nº. 22/91. No Governo Fer-
“vivificação da fronteira”, sustenta- interesses econômicos e militares, dar tratamento desigual entre as zam - como também ocorre em re- nando Henrique Cardoso, tais rea-
se que a melhor forma de proteger que já durante a “ditadura militar” terras indígenas, tendo como cri- lação à Raposa Serra do Sol - , eram ções foram canalizadas para os ter-
as fronteiras do Estado Nacional é a orientou a condução da política in- tério um suposto grau de “acultu- concebidas como “corredores de mos do atual Decreto nº. 1.775/96, O modelo genocida de “ilhas” que se quer implantar na Raposa
instalação de núcleos populacio- digenista, fazendo com que as terras ração” dos índios, previsto no De- exportação”. que viabiliza aos “interessados” na
nais. Para tanto, vê-se como indis- indígenas fossem demarcadas com creto nº. 94.946, de 1987. Na mesma ocasião em que o terra a ser demarcada, e a oportuni-
tem r esultado par a os Kaio wá-Guar ani do Mato Grosso do Sul
pensável que as terras indígenas se-
jam demarcadas em dimensões di-
tamanhos inferiores aos que corres-
pondiam à sua ocupação pelos res-
Os índios considerados “acultu-
rados” teriam suas terras demarca-
Governo Sarney implementou sua
política de demarcação, na ANC as
dade de apresentarem contestação
ao estudo de identificação, fase co-
em escândalos de suicídio e mortes por desnutrição
10 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 UnB – SindjusDF | 11

estórias, mitos, desenhos, adornos e sibilidade de seus cidadãos dirigi-


Os povos indígenas e os mecanismos internacionais de proteção dos Direitos Humanos técnicas dos povos indígenas repre- rem queixas a outros órgãos interna-
sentam um patrimônio imaterial in- cionais de Direitos Humanos, é pe-

Indígenas? No Itamaraty?
calculável, merecedor da proteção e rante a Comissão Interamericana de
do reconhecimento do Estado e de Direitos Humanos (CIDH) que esse
quantos se debrucem sobre essa mecanismo vem sendo mais larga-
questão, seja no plano interno, seja, e mente utilizado.
cada vez mais, no plano internacio- Atualmente, mais de cento e se-
nal. Para um país como o Brasil, e tenta petições, casos e medidas cau-
Carlos Eduardo da Cunha Oliveira apenas por esses motivos, seus povos telares envolvendo o Brasil tramitam
originários já constituiriam um fator perante a CIDH. Entre esses, por seu

A
pergunta não parecerá descabi- de clara relevância para nossas rela- significado atual para a questão indí-
da a quem, com a atenção fixada ções internacionais. As razões, no en- gena, merece destaque o que acom-
em salões onde transitem pesso- tanto, não param por aí. panha a situação dos povos Macuxi,
as de diferentes nacionalidades e que Vivemos, no Brasil, em um Esta- Ingaricó, Wapixana, Taurepang e Pa-
falam outros tantos idiomas, jamais do democrático de direito. A pro- tamona, na Terra Indígena Raposa
pensará que algo tão centralmente liga- mulgação da Constituição Federal Serra do Sol.
do à nossa origem e história, como os de 1988 representou um divisor de A situação das referidas comuni-
povos indígenas, seja objeto da atenção águas na história política do país, dades foi objeto de petição inicial-
do Ministério das Relações Exteriores. estabelecendo o 'direito a ter direi- mente dirigida à CIDH em 10 de ju-
Ressalvando-se o fato de que o apelido tos' como elemento conformador lho de 2004. Em novembro de 2004,
desse mesmo Ministério deriva de um de nossa vida política e base para a ataques armados às comunidades
topônimo indígena - Itamaraty signifi- contínua ampliação do marco legal de Jawari, Homologação, Brilho do
ca 'pedra branca', em tupi - o mal-en- voltado para a promoção e a prote- Sol e Lilás, levaram a CIDH a decre-
tendido é até, em certa medida, com- ção dos direitos de todos os cida- tar medidas cautelares que insta-
preensível. A uma sociedade que faz da dãos. No tocante aos povos indíge- vam o Estado brasileiro a proteger a
antropofagia sua metáfora constitutiva; nas, a Constituição Federal reco- vida, a segurança, a integridade físi-
que proclama a alegada capacidade de nheceu, de modo cabal, seu direito ca e a liberdade de circulação dos desses direitos no plano interno. aplique, de modo efetivo, as normas
assimilar diferenças e de traduzi-las em à diferença, rompendo o paradigma membros de todas as comunidades O poder de 'dizer o direito', assim relativas à gestão de terras indíge-
um novo e inextrincável amálgama de assimilacionista que até então ori- indígenas da região, bem como a in- como o monopólio do uso legítimo nas e à proteção dessas terras con-
culturas um traço distintivo de sua entava a legislação e a política indi- vestigar os fatos que motivaram a da força, constituem atributos da so- tra agressões ao meio ambiente; pa-
identidade, não parecerá que sua enor- genista nacionais. concessão daquelas medidas. O re- berania no plano interno, tanto ra que o Estado realize, em suma, o
me variedade étnica e cultural consti- Tal processo não deixou de ter re- gistro de novos atos de violência ou quanto a inviolabilidade de nossa in- direito, e ao fazê-lo, dê pleno exercí-
tuam, por si só, algo dotado de valor e flexos no plano internacional. Paula- de incitação à violência contra co- tegridade territorial e a não sujeição cio à sua soberania.
de significado para suas relações no tinamente, foi o Brasil preenchendo munidades da Raposa Serra do Sol da vontade do Estado ao arbítrio de Para além de sua inegável con-
plano internacional. lacuna até então existente na ratifi- levaram o Comitê para a Eliminação outro Estado o são no plano interna- tribuição à construção da comu-
Os fatos apontam, no entanto, para cação de pactos e de convenções da Discriminação Racial (CERD) a cional. Tal entendimento é plena- nhão nacional, os povos indígenas
algo radicalmente distinto disso. O Bra- aprovados pela Organização das Na- também acolher, em agosto de mente compatível com a participa- possuem uma realidade cultural
sil soma cerca de 220 povos indígenas, ções Unidas e a Organização dos Es- 2006, o pedido de consideração da ção do Brasil em instâncias interna- que lhes é própria, a qual encerra
que falam mais de 180 línguas. Mais de tados Americanos, os quais ampliam situação na região, no marco do seu cionais de proteção dos direitos hu- um potencial de desenvolvimento
30 povos indígenas, situados em re- e reforçam o marco legal existente procedimento de ação urgente (ur- manos, as quais não atuam de modo diferenciado e que merece prote-
giões de fronteira, mantêm, há tempos no país para a promoção e a prote- gent action procedure). concorrente, mas apenas comple- ção e reconhecimento, à luz dos
imemoriais, laços de troca e parentesco ção dos Direitos Humanos. mentar aos mecanismos internos compromissos assumidos pelo
com grupos situados em países vizi- Ao ratificar esses instrumentos, o Conclusões aplicáveis à proteção desses direitos, país no plano interno e internacio-
nhos. Estimativas da Funai indicam a Brasil assumiu, perante os seus cida- A consideração, por instâncias in- após o seu esgotamento e tendo co- nal. Lutar contra a discriminação,
existência, no Brasil, de cerca de 43 gru- dãos, a responsabilidade objetiva de ternacionais, de denúncias de viola- mo guia os compromissos aos quais ao tempo em que se avança a pro-
pos indígenas isolados. zelar pela promoção e a proteção dos ções dos direitos humanos ocorridas o país livremente aderiu no plano in- moção e a proteção dos direitos in-
O Brasil homologou, para posse ex- direitos neles consignados, facultan- na Terra Indígena Raposa Serra do ternacional. dígenas, constitui um objetivo per-
clusiva e permanente dos povos indíge- do-lhes, ainda, a possibilidade de va- Sol desperta questões relevantes so- São ilustrativas, a propósito, as manente do Estado brasileiro, em
nas, terras equivalentes a 12,5 por cen- lerem-se dos mecanismos postos à bre a relação entre os mecanismos recomendações até o momento di- linha com a legislação nacional, e
to do território nacional. Tais terras, so- disposição por esses instrumentos - internacionais e nacionais de prote- rigidas ao Brasil, seja pela Comissão com a participação construtiva do
bretudo na região amazônica, figuram como o acompanhamento da avalia- ção desses direitos. Interamericana de Direitos Huma- país nas instâncias internacionais
entre as de maior conservação do país. ção de relatórios periódicos e o aces- Nunca é demais lembrar que a nos, seja pelo Comitê para a Elimi- de promoção e proteção dos direi-
Técnicas indígenas de manejo dos re- so a procedimento de queixas - para consideração, por um procedimento nação da Discriminação Racial. Tais tos humanos. Tal objetivo, como
cursos naturais, assim como o conheci- aprimorar a realização desses direi- de queixa, do mérito de uma denún- instâncias apelam para que o Esta- visto, não se dá em detrimento de
mento tradicional associado ao uso da tos no plano interno. cia tem como pré-condição a de- do coíba e puna os responsáveis por nossa soberania, servindo, antes,
biodiversidade, constituem elementos monstração, pelo peticionário, do atos de violência; para que garanta a como um elemento adicional pelo
da maior importância para responder O uso do procedimento de queixas esgotamento ou da inexistência de vida, a integridade física e a segu- qual essa mesma soberania é refor-
a questões atuais no campo da pro- Embora o Brasil reconheça a pos- recursos eficazes para a proteção rança de seus cidadãos; para que çada e reafirmada.
moção do desenvolvimento susten-
tável e da busca de novas terapias
contra enfermidades. As línguas, cantos, Lutar contra a discriminação, ao tempo em que se avança a promoção e a proteção dos
direitos indígenas, constitui um objetivo per manente do Estado brasileiro
* As idéias expressas neste artigo são de inteira responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a posição do Governo brasileiro.
14 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 UnB – SindjusDF | 15

povos indígenas têm sido tensas ção econômica, defendendo o de-


nesta região por uma falta de diálo- senvolvimento a qualquer custo e
go, e imposições feitas pelo Exérci- visando povoar as Terras Indígenas
to como a construção de um Pelo- com não-indígenas para entregá-
tão de Fronteira em Uiramutã sem las às grandes empresas.
ouvir as lideranças indígenas a res- Alguns rizicultores vêm apresen-
peito de qual seria um local apro- tando documentos de propriedade
priado para a instalação de um Pe- das suas fazendas dentro da terra
lotão de Fronteira. indígena, omitindo o fato que, con-
É fato que tem havido um des- forme a Constituição, “são nulos e
respeito histórico por parte do extintos, não produzindo efeitos ju-
Exército com os povos indígenas de rídicos, os atos que tenham por ob-
Roraima. Na década de 1970, no ex- jeto a ocupação, o domínio e a pos-
tremo sul do estado e norte do se das terras a que se refere este ar-
Amazonas o 6º Batalhão de Enge- tigo...” (Constituição Federal, 1988,
nharia e Construção (6º BEC) junto Artigo 231, parágrafo 6º) cabendo
com empresas empreiteiras, com o ao Estado indenizar as benfeitorias
apoio da 1º Batalhão de Infantaria de boa-fé. A maioria dos riziculto-
de Selva (1º BIS), abriram a rodovia res ocupou esta terra indígena a
BR-174, que cortou as terras do po- partir do final da década de 1970 e a
vo indígena Waimiri-Atroari para ampliação das suas lavouras de ar-
favorecer, nos anos seguintes, a roz vem sendo realizada após a de-
construção da Usina Hidrelétrica marcação da área em 1998, e em
de Balbina e a abertura da Mina de desafio a ela. Desta forma as ben-
Pitinga por mineradoras do Grupo feitorias não podem ser caracteri-
Paranapanema. zadas como de boa-fé.
Relatos destes índios revelam Após estudos sucessivos, a área
que tratores passaram sobre suas foi formalmente identificada pela
aldeias e que suas tentativas de de- Funai em 1993, entretanto, frente a
fenderem seu território foram res- pressões políticas no intuito de im-
pondidas com demonstrações de pedir a regularização desta terra
força bélica desmedidamente mais indígena, a sua demarcação foi rea-
poderosa. A invasão trouxe epide- lizada apenas em 1989 pelo minis-
mias que reduziram tragicamente a tro da Justiça, que assinou o Despa-
população total dos Waimiri-Atroa- cho 050/98, que revogou o Despa- estado de Roraima, quando de fato populacional é maior (1,08 hab/km²)
ri. De 600 a 1000 indivíduos em cho 080/96, e a Portaria 820/98, que ocupa apenas 7,5%. A área total das do que a densidade populacional
1973 (já muito reduzida por epide- declara esta terra indígena posse Terras Indígenas demarcadas em média do estado de Roraima
mias anteriores) conforme estima- permanente dos povos indígenas. Roraima ocupa cerca de 43% da su- (0,65% hab/km², descontada a ca-
A Terra Indígena Raposa Serra do Sol e tiva de Gilberto Pinto Figueiredo
Costa, sertanista da Funai, os Wai-
miri-Atroari foram reduzidos a ape-
Em 15 de abril de 2005 o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva assinou o
decreto de homologação desta terra
perfície do estado, o que é pouco
considerando que, em 1975, quase
todo o então Território de Roraima
pital, Boa Vista). De fato, há espaço
para todos.
No Brasil, em torno de 13% do
nas 332 pessoas em 1983, seguido indígena em uma extensão de 1,747 consistia de Terras Indígenas. Num território nacional corresponde a

a questão da soberania nacional por uma recuperação populacional


desde então.
Quanto ao posicionamento dos
militares em relação à Raposa Serra
do Sol, argumenta P. Maldos, asses-
milhão de hectares.
A demarcação e a homologação
da terra indígena Raposa Serra do
Sol resultaram de longos estudos
antropológicos realizados junto
estado de menos de um milhão de
habitantes (o Censo Nacional do
IBGE de 2000 constata que a popu-
lação total de Roraima era de
395.725 pessoas) e uma superfície
Terras Indígenas. Na Austrália, con-
forme dados de 1997, 15% do terri-
tório nacional corresponde a Terras
Indígenas. No Canadá também há
Terras Indígenas demarcadas em
Stephen G. Baines nais dessas terras, mandando seus que defenderam o território brasi- É completamente falsa a afirma- sor político do Cimi, que o que está com lideranças indígenas. Nova- de 224.298,98 km2, não falta terra áreas contínuas. Só na província de
jagunços atacar comunidades indí- leiro e atualmente se definem como ção, que vem circulando na mídia em jogo é o interesse nas riquezas mente, para tentar desmerecer os em Roraima, não sendo necessário Nunavut, um total de 350 mil km2

N
os últimos anos, está haven- genas, incendiar casas e espancar e cidadãos brasileiros, ao contrário nos últimos meses, de que o Exérci- minerais, florestais e hídricas que fatos, a imprensa de Roraima vem invadir as terras indígenas desres- foi demarcado como Terras Indíge-
do uma crescente campa- balear índios. do que a mídia roraimense vem di- to não tem acesso às Terras Indíge- eventualmente possam existir na- questionando o laudo antropológi- peitando os direitos constitucio- nas sem apresentar nenhum risco
nha de informações falsas A bandeira do nacionalismo bra- vulgando, ao representá-los como nas. Sendo terras da União sobre as quela região e também em outras co, insinuando sua falsidade, e di- nais dos povos indígenas. para a soberania nacional.
veiculadas por alguns políticos e sileiro está sendo levantada para perigosos separatistas. quais os índios têm direitos originá- em faixa de fronteira. Acrescenta vulgando informações errôneas e A terra indígena Raposa Serra Qualquer pretensão de reverter
empresários roraimenses, através colocar em questão a demarcação e A regularização das terra indíge- rios, essas terras, segundo a Consti- que aos militares interessa des- infundadas tal como a manipula- do Sol tem uma densidade popula- a demarcação e a homologação de
da mídia, para desinformar a opi- a homologação dessa terra indíge- na garante a soberania nacional, tuição Federal de 1988, destinam- constituir a demarcação já feita pa- ção dos índios por ONGs nacionais cional maior do que muitas outras Terras Indígenas, a exemplo da Ra-
nião pública a respeito da terra na, por meio do argumento com- pois são terras da União, além de se à sua posse permanente, “caben- ra abrir precedentes para outras e estrangeiras. regiões do estado de Roraima. posa Serra do Sol, representa um
indígena Raposa Serra do Sol. As in- pletamente falso de que a ocupação garantir-lhes o manejo de forma do-lhes o usufruto exclusivo das ri- desconstituições de Terras Indíge- A mesma imprensa vem divul- Com uma área de 1,747 milhão de desrespeito aos direitos dos povos
formações divulgadas invertem e indígena põe em risco a soberania sustentável como os indígenas vêm quezas do solo, dos rios e dos lagos nas, e que a visão militar é de entre- gando também que essa terra indí- hectares, é habitada por cerca de indígenas e à própria Constituição
distorcem os fatos para favorecer os nacional. Historicamente, os povos fazendo ao longo de milhares de nelas existentes” (Constituição Fe- gar o patrimônio público à explora- gena ocupa 46% da superfície do 18 mil indígenas. Sua densidade Brasileira.
interesses dos rizicultores que inva- indígenas desta área defenderam a anos. Os rizicultores e seus aliados deral, 1988, artigo 231, parágrafo
diram essa terra indígena. Uma soberania do governo brasileiro querem, ao contrário, privatizar as 2º). E, sendo terras da União, o
meia dúzia de rizicultores invasores nesta região. Na definição da fron- terras da União, e estão causando Exército tem acesso livre para fisca- A densidade populacional da Terra Indígena é maior do que a densidade
está recorrendo à violência contra teira entre o Brasil e a Guiana, no danos ambientais irreversíveis atra- lizar as fronteiras do Brasil.
os indígenas, habitantes tradicio- início do século XX, foram os índios vés do uso de agrotóxicos. As relações entre o Exército e os populacional média para o estado de Roraima. De fato, há espaço para todos
12 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008 UnB – SindjusDF | 13

ENTREVISTA COM J. J. GOMES CANOTILHO


O Dir eito Constitucional continua
Pela necessidade de o sujeito prisioneiro da sua aridez for mal
e do seu confor mismo .

de direito se aproximar dos doutrina (jurídica e política) sur-


gem cada vez mais imbricadas e
flexíveis. De qualquer forma, o ele-
mento central da nossa posição re-
conduz-se ainda à ideia de confor-
boa parte dos trabalhos académi-
cos sobre problemas constitucio-
nais continuam a ignorar as obras
dos maitres penseurs da actualida-
de como, por exemplo, Jürgen Ha-

“sujeitos densos” da vida real


mação constitucional dos proble- bermas ou John Rawls. Possivel-
mas segundo o principio democrá- mente, não terão lido nas suas di-
tico e não de acordo com princí- mensões fundamentais Montesqui-
pios a priori ou transcendentais. eu, Rosseau e Locke. Tão pouco
Se vemos bem as coisas, as difi- Kant e Hegel. O que significa a igno-
culdades da metódica jurídica resi- rância da reflexão multissecular so-

J
. J. Gomes Canotilho, constitu- concretas das várias constituições camente estas novas propostas os mesmos sujeitos e não parte das dem mais na sua rotina e falta de bre o logos da política.
cionalista português é, sem dú- nacionais. constitucionais. Alguns autores re- mesmas premissas que as “novas es- comunicação com outros horizon- Dito isso, é bom de ver que as
vida, o autor mais influente do b) “Constitucionalismo supra- centes assinalam mesmo que com tratégias de governabilidade” agita- tes de reflexão como as da sociolo- discussões actuais sobre as teorias
campo em Portugal e no Brasil. nacional” como esquema estrategi- a institucionalização de uma com- das no Brasil. É possível, porém, ten- gia e da filosofia do que nos seus da Justiça com o seu recurso à es-
Formulador da tese da “constitui- camente necessário e funcional de mon law constituída pela pluralida- do em consideração o caso do Brasil, pontos de partida quanto à investi- tratégia contrafactual (“contrato
ção dirigente”, que ele próprio, cri- novas constelações político-territo- de de instrumentos jurídicos da detectar alguns vectores nos movi- gação e extrínsecação do sentido sob o véu de ignorância”, “discurso
ticamente, tem revisitado, procura riais (ex: União Europeia) que aspi- globalização-liberalização econó- mentos “panconstituintes”. Nuns das normas para efeito da sua apli- entre participantes iguais”) e que
conferir ao seu pensamento um ra à integração politica e económi- mica, o próprio direito constitucio- casos, perante o que se considera o cação prática. em rigor agitam o problema da “au-
sentido paradigmático e oferecer, ca através de esquemas constituci- nal entrou na “época da circulação carácter dotado de soluções e fór- toridade moral” das cartas consti-
tal como ele diz num de seus escri- onais (“constituição européia”, “tra- dos factores de produção”. As cons- mulas narrativas da Constituição O senhor tem chamado a aten- tucionais permanecem marginais
tos (O Tempo Curvo de uma Carta tado constitucional”) respeitadores tituições entram no mercado das Brasileira, retoma-se o problema da ção para a necessidade de recupe- na reflexão metódica ou são remeti-
[Fundamental] ou o Direito Consti- da identidade constitucional dos regras correndo o risco de serem validade jurídica e política das “cláu- rar no Direito Constitucional, o das para o campo da filosofia do Di-
tucional Interiorizado), uma pers- estados-membros. pura e simplesmente dispensadas sulas pétreas” defendendo-se a ina- “impulso dialógico e crítico que reito (também com rarefacção de
pectiva dos problemas constitucio- c) O “constitucionalismo global” por “falta de valor de mercado”. ceitabilidade política e a ilegitimida- hoje é fornecido pelas teorias polí- estudiosos). Por outro lado, os de-
nais mais radicalmente pessoal, orientado para a sedimentação de de jurídica dos limites materiais. ticas da Justiça e pelas teorias críti- safios das teorias sistémicas quanto
como revela nesta entrevista con- novos paradigmas da “constituição Na América Latina atualmente, De uma forma sintética, poderí- cas da sociedade”, que o fazem “de- à lógica autoreferencial dos siste-
cedida ao professor José Geraldo sem política” ancorados no desen- movimentos com protagonismo amos afirmar que para estas cor- finitivamente prisioneiro de sua mas e, concretamente, do sistema
de Sousa Junior, de Constituição & volvimento e sedimentação de re- social autônomos - bolivarismo na rentes um “limite constitucional é revisão total da constituição? ta constituinte” era (e é) uma luta aridez formal e do seu conformis- constitucional teriam podido con-
Democracia. gras standards, contratos, que, na Venezuela, pluralismo de sujeitos um limite como outro qualquer in- Quanto às novas fontes de direi- por posições constituintes e de mo político”. O que é preciso atri- tribuir para alertar os constitucio-
sua interacção, seleccionam as re- na Bolívia, novas estratégias de go- dependentemente do seu objecto”. to o problema liga-se a algumas das que a lógica do “pluralismo de in- buir, pois, ao Direito Constitucio- nalistas exegetas, para a insuficiên-
Após a vaga constitucional, gulações juridicamente vinculati- vernabilidade no Brasil, na Argen- Noutra perspectiva, retoma-se a ló- considerações feitas na resposta à térpretes” não raro escondia que nal para nele “incluir-se outros cia da peregrinação hermenêutica
inaugurada com as metas-narra- vas para os global players do mer- tina, no Uruguai e no Equador - gica geracional insistindo-se nas primeira pergunta. Independente- essa luta continuava depois de modos de compreender as regras em torno dos textos escritos. Acres-
tivas revolucionárias fortes no cado global (ex: Organização Mun- vêm desencadeando uma nova on- origens democráticas da livre revi- mente do problema da globaliza- aprovada a constituição. A inter- jurídicas”? ce ainda, apenas para citar mais um
modelo português, no qual a ex- dial do Comércio, Organização da constituinte. De que modo o ca- sibilidade do texto: uma geração ção é claro que a mundialização ge- pretação seria afinal um “esquema As insinuações finais da resposta tópico, a insensibilidade dos juris-
periência de constituição dirigen- Mundial de Saúde, etc). ráter mobilizador desse protago- não pode vincular a outra às impo- ra novos espaços normativos e que de revelações” de precompreen- à pergunta anterior - falta de comu- tas à perspectiva antinormativista
te ganhou relevo, que mudanças É bom de ver que o constitucio- nismo repercute no sistema de sições datadas pelo circunstancia- a diversificação dos autores força a sões políticas. Continuamos a con- nicação com outros horizontes de dos cultores das teorias criticas. Es-
podem ser designadas hoje, na Te- nalismo referido em último lugar fontes e na concepção do Direito? lismo de uma época pondo inad- ver um “Estado plural” e que a con- siderar que a metódica jurídica re- reflexão - apontam já para o sentido ses têm apontado para a necessida-
oria da Constituição e na Teoria põe em causa o núcleo fundamen- Tenho dificuldade em responder missível a limitação da soberania corrência de ordenamentos justifi- flecte todas as dimensões de cria- da nossa resposta. O direito consti- de de o sujeito de Direito se aproxi-
do Estado? tal do constitucionalismo, desde os por completa falta de conhecimento da geração actual. Daqui se conclu- ca a deslocação da análise das fon- ção e aplicação das normas jurídi- tucional continua prisioneiro da mar dos “sujeitos densos” da vida
Poderemos sistematizar da se- problemas de legitimação demo- das situações concretas. E pelos iria que a tese da subordinação do tes de direito a partir da rede de cas e a prova disso é a de que as di- sua aridez formal e do seu confor- real e para o pluralismo e diferença
guinte forma as turbulências teóri- crática à protecção dos direitos fun- exemplos referidos é fácil ver que o poder de revisão à constituição é produção do direito e não com ba- ferenças entre legislação (legisla- mismo. A prova disso começa logo de regulações no contexto global e
cas e dogmáticas do constituciona- damentais. Temos criticado publi- “bolivarismo constituinte” não tem um anacronismo antidemocrático. se na pirâmide normativa. tio), jurisprudência (jurisdictio) e pela produção universitária. Uma “alteromundial”.
lismo: Na modesta qualidade de regis-
a) “Constitucionalismo cosmo- tador de “observações sobre obser- A multiplicidade de sujeitos que
polita” (“neoconstitucionalismo
cosmopolita”) que procura na se-
A “luta constituinte” é uma luta por vações” parece-nos que em algu-
mas destas contestações se despre-
se movem no debate constitucio-
nal contemporâneo tende a abrir
Na modesta qualidade de r egistador de “obser v ações
quência da Paz Perpétua de Kant e
das Teorias de Justiça de J. Rawls e J.
posições constituintes e a lógica do za, afinal, o poder constituinte do
povo. Tem povo maioritário para fa-
expectativas de diálogo político es-
truturado na linguagem do Direi-
sobr e obser v ações” par ece-nos que em algumas
Habermas, entre outros, recortar as
dimensões universalizáveis dos
“plur alismo de intérpr etes” não r aro zer uma nova constituição? Pensam
apenas num “conciliábulo parla-
to. Para usar uma expressão sua,
quais as principais “posições inter-
destas contestações se despr eza, afinal, o poder
princípios estruturantes das consti-
tuições (direitos fundamentais, de-
esconde que essa luta continua mentar” para, em nome da gover-
nabilidade, transmutar o órgão le-
pretativas da Constituição” que
emergem desse processo?
constituinte do po vo . Tem po vo maioritário
mocracia, estado de direito) sem
esquecer a localização e imersão
depois de apro v ada a constituição gislativo em órgão com poderes
constituintes para proceder a uma
Boa pergunta! Em trabalhos an-
teriores demos conta de que a “lu-
par a fazer uma no v a constituição?
24 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JULHO DE 2008

ABAIXO ASSINADO

Raposa Serra do Sol - Brasil


Demarcação de território indígena em perigo
Boaventura de Sousa Santos do paíse a função socioambiental da
propriedade, com distintas formas
2648 assinatur as até 30-07-2008
D
iante da polêmica demarca- de manejo sustentável dos territó-
ção do território indígena Ra- Acesse: http://www.petitiononline.com/tirssjg/petition.html rios pelas variadas comunidades
posa Serra do Sol, em Rorai- culturais existentes no Brasil.
ma, e sendo premente o julgamento 6. Uma inflexão da jurisprudên-
da questão pelo Supremo Tribunal portanto, absolutamente ilegal, an- condição não inviabiliza o desen- cia do STF em sentido contrário
Federal (STF) brasileiro, os abaixo- tes da concessão da liminar, não te- volvimento do estado, que, possuin- àquela até hoje dominante pode im-
assinados têm a declarar o seguinte: nha sido objeto de condenação tão do, quanto ao restante, área supe- plicar a revisão de todos os demais
1. A Constituição de 1988 reafir- veemente quanto tem sido quando o rior à de Pernambuco e inúmeros processos demarcatórios ardua-
mou o direito originário das terras in- Movimento dos Sem Terra (MST) ou outros Estados com população mai- mente realizados, o acirramento da
dígenas, cabendo à União a demar- outros movimentos sociais ocupam or, tem condições de estabelecer discriminação anti-índios e anti-ne-
cação de tais territórios. Tal processo prédios ou praticam formas de resis- projetos sustentáveis e estratégicos gros e a conflagração de novos con-
não cria nada, antes reconhece e pro- tência pacífica. que levem em conta como fator po- flitos fundiários, gerando maior in-
tege, formalmente, a situação de ocu- 3. Raposa Serra do Sol não é a sitivo e não como entrave a forte segurança a esses grupos subalter-
pação tradicional do território. maior nem a única terra indígena em presença indígena na região, em es- nos. Países vizinhos, com popula-
2. As terras indígenas são, por de- zona de fronteira. Esta condição pecial na zona rural e no Exército. O ções indígenas majoritárias ou não,
terminação constitucional, inaliená- tampouco fragiliza a integridade e slogan “terra demais para pouco ín- têm procurando desenvolver um
veis e imprescritíveis, e sua proprie- soberania nacionais, seja porque dio”, por outro lado, obscurece a re- conceito de “constitucionalismo
dade pertencence à União. Não per- inexiste, em qualquer lugar do mun- alidade fundiária brasileira, com multicultural”, de que é exemplo a
tencem, portanto, aos índios, que so- do qualquer movimento separatista imensa concentração de terras nas Colômbia. No momento em que se
mente têm seu usufruto e posse per- indígena, seja porque as terras fron- mãos de poucos proprietários. celebram os vinte anos da Consti-
manente. Sua condição de inaliená- teiriças também são bens da União. 5. O longo processo de demarca- tuição de 1988 e os 60 anos da De-
veis - terras fora de comércio - e, ao A demarcação contínua, tal como ção das terras indígenas no Brasil (a claração Universal dos Direitos Hu-
mesmo tempo, cobiçadas, explicam posta, é, ao contrário do alegado por Constituição fixara cinco anos para manos, tal mudança de postura se-
a disputa. Fique claro que os territó- seus opositores, a salvaguarda da in- sua finalização) é emblemático dos ria um duro golpe nos direitos indí-
rios indígenas, uma vez demarcados, tegridade e soberania nacionais, in- desafios postos pela Constituição de genas, justamente quando, no plano
asseguram a plena soberania da clusive pelo acesso facilitado de Po- 1988: a afirmação dos indígenas co- internacional, foi finalmente apro-
União sobre tais terras e a nulidade lícia Federal e Forças Armadas a bens mo sujeitos de direitos, não mais vada após trinta anos de discussão,
de eventuais títulos de propriedade públicos, o que não ocorreria se re- passíveis de tutela pelo Estado e de uma Declaração dos Povos Indíge-
sobrepostos. Tal disputa, portanto, é, conhecidas propriedades privadas políticas de assimilação, devendo nas. O momento, pois, é de apreen-
também disputa por terras da União no referido território. ser respeitadas suas culturas e tradi- são, vigilância e também de confian-
e, portanto, terras públicas. E causa 4. A área indígena objeto de lití- ções; o reconhecimento da diversi- ça de que o compromisso, constante
estranheza que a resistência violenta gio representa menos de 8% de Ro- dade étnico-racial cultural como va- na Constituição de 1988, de preva-
à desocupação das terras, com atos raima e, mesmo somadas todos os lor fundante do “processo civilizató- lência dos Direitos Humanos, seja
de destruição de bens públicos, e, demais territórios indígenas, tal rio nacional” e da própria unidade novamente reafirmado.

Você também pode gostar