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FASCÍCULOS DE \;- Cc, / n' - ;l

CIÊNCIAS PENAIS
trlmestral- ano 6 - v.6 - n.2 - p.1-141 - abr/mal/jun - 1993

ÍNDICE

CASTILHOS, Ela Wiecko Volkmer de - A incorporação do pacto inter-


nacional sobre direitos civis e políticos pelo direito brasileiro 3
MIOTTO, Armida Bergamini - Os direitos e os deveres dos presos 13
DOTTI, René Ariel - Reforma penal e direitos humanos ...... 32
BARATTA, Alessandro - Direitos humanos: entre a violência estrutural
e a violência penal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
SANJUAN, Teresa Preixes & CARBONELL, José Carlos Remotti - O
direito à liberdade pessoal na constituição espanhola de 1978 . . . .. 62
CER VINI, Raul - Direitos humanos e direito penal: alcance e sentido
dos processos de desinstitucionalização . . . . . . . . . . . . . 91
SLOKAR, Alejandro - Sistema penitenciário e direitos humanos 118
KOS-RABCEWICZ-ZUBKOWSKI, Ludwik - O problema da defesa por
si mesmo ou por advogado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130

Sergio Antonio Fabris Editor


Porto Alegre - RS
FAscíCULOS DE
CIÊNCIAS PENAIS

Diretores
Gilberto Niederauer Corrêa
Professor de Direito Processual Penal da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Odone Sanguiné
A INCORPORAÇÃO DO PACTO INTERNACIONAL
Procurador de Justiça SOBRE DIREITOS CIVIS E POLíTICOS PELO
Paulo Pinto de Carvalho
Ex-Professor de Direito Penal da
DIREITO BRASILEIRO
Universidade Federal do FJo Grande do Sul
Ex-Professor de Direito Penal da
Pontiflcla Universidade Católica do RS
Gérson Pereira dos Santos Ela Wiecko Volkmer de Castilho
Professor da Universidade Federal da Bahia Professora de Direito Penai da UFSC.
Joã~ Mal'cello de Araújo Jr. Sub procuradora-Geral da República.
Professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Diretor Chefe de Redação


Odone Sanguiné 1. INTRODUÇÃO Políticos, propondo algumas diretri-
zes práticas às autoridades públicas.
Colaboradores A ratificação, pelo Brasil, dos
Nacionais Pactos Internacionais sobre Direi-
Alberto Silva Franco - São Paulo tos Econômicos, Sociais e Culturais 2. A INCORPORAÇÃO DO
Luiz Luisi - Porto Alegre
e sobre Direitos Civis e Políticos PACTO AO DIREITO INTERNO
Nilo Batista - Rio de Janeiro
Antonio Magalhães Gomes Filho - São Paulo (PIDESC e 'PIDCP), em janeiro úl-
Alberto Zacharias Toron - São Paulo
O PIDCP foi adotado pela Reso-
timo, exige uma reflexão sobre suas lução nQ 2.200 da Assembléia Geral
Estrangeiros
conseqüências no plano da prática e
Antonio Beristain - San Sebastian das Nações Unidas, em 16 de de-
Eugenio Raúl Zaffaroni - Buenos Aires da ciência jurídicas. zembro de 1966, entrando em vigor
Francesco C. Palazzo - Firenze Esta reflexão se torna indispen- em 23 de março de 1976, após ser
Francisco Mufioz Conde - Sevilha sável a todos os aplicadores da lei
John Vervaele - Utrecht ratificado por 35 Estados.
.Tuan Bustos Ram(rez - Barcelona que trabalham direta ou indireta-
Só Çm 1985, no discurso que pro-
mente com os direitos humanos e,
feriu na abertura da 40ª Assembléia
em especial, aos membros do Mi-
Apoio Geral das Nações Unidas, o Presi-
nistério Público, instituição que, no dente José Sarney anunciou a de-
Procuradoria-Geral da Justiça do Brasil, é encarregada constitucional-
Estado do Rio Grande do Sul cisão do Governo Brasileiro de ade-
mente de promover a defesa dos
rir ao Pacto. A demora do Brasil
interesses e direitos indisponíveis da
reflete uma conjuntura histórico-po-
sociedade.
© SERGIO ANTONIO FABRIS EDITOR
lítica autoritária e quebra da tra-
Este breve estudo cingir-se-á a
Telefone (051)233-2681 dição jurídico-diplomática de valo-
Caixa Postal 4001 considerações a respeito do Pacto
ração dos direitos humanos, pois
90631-970 Porto Alegre, RS - Brasil Internacional sobre Direitos Civis e
participou ativamente dos trabalhos

Fase. de Clênc. Penais. Porto Alegre, v.6, n.2, p.3-12, abr/mai/jun, 1993
determinadas normas que fazem ferença entre tutelar e reconhecer é
parte da ordem jurídica existente; no mais uma diferença de grau do que
segundo caso, às ilegalidades dos de qualidade; refere-se à diversa na-
fatos que violam normas do orde- tureza e intensidade das conseqüên-
namento. Ê necessário fazer aqui cias jurídicas (sanções) previstas nos
uma distinção: estes fatos podem seI distintos ordenamentos para os casos
"normativos", em particular ações e de violação de normas, e dos ins-
DIREITOS HUMANOS: decisões de 6rgãos competentes pre- trumentos legais postos à disposição
ENTRE A VIOLÊNCIA ESTRUTURAL E vistas nas regras de produção do dos interessados (pessoas, grupos ou
A VIOLÊNCIA PENAL (1) ordenamento como fontes de nor- Estados) para convalidar frente aos
mas. 6rgãos de controle jurisdicional ou
Pense-se, por exemplo, nas de- político as pretensões legítimas, no
Alessandro Baratta
cisões do legislador, dos juízes e dos caso de violações de direitos hu-
Da Universidade de Saarland, Saarbrücken-Alemanha.
6rgãos do governo e da adminis- manos.
Tradução de tração pública: não é raro que estas Por sua vez, a presença de normas
Ana Luola Sabadell
Da Universidade de Saarland - Alemanha. decisões e as normas que elas pro- que prevêem sanções e conferem a
duzem no respectivo nível do or- faculdade de recursos e, por outro
denamento contrastem com normas lado, a eficácia destas normas e a
de grau superior do ordenamento existência de estruturas adequadas
1. DIREITOS HUMANOS A idéia de homem é defmida em
nacional ou normas do ordenamento para impedir ou sancionar a violação
E NECESSIDADES REAIS relação com a esfera de iiberdade
supranacional; que decisões judiciais de direitos humanos e responder às
(entendida como autonomia) e com
Quando falamos em Direitos Hu- e administrativas violem normas de exigências das vítimas de tais vio-
os recursos que na hist6ria dos or- leis que tutelem direitos fundamen-
manos, utilizamos um conceito com- lações são aspectos integrantes da
denamentos políticos são reconhe-
plexo, integrado por dois elementos: tais, que decisões do legislador não tensão fundamental entre ser e dever
cidos como direitos dos indivíduos e
homem e direito. Estes elementos respeitem normas constitucionais; ser que acompanha a hist6ria dos
dos grupos. A idéia do direito, ou
estão vinculados entre si, mediante que decisões judiciais de qualquer direitos humanos. Trata-se, por um
seja, do direito justo ou da justiça é
uma relação de complementaridade nível do ordenamento nacional vio- lado, da tensão entre a esfera dos
defInida em relação às liberdades e
e de oposição. Complementaridade lem normas de direito supranacional fatos, e por outro, entre a esfera das
aos recursos que devem ser reconhe-
no sentido do que pertence ao ho- que tutelam direitos humanos (2). normas, sejam estas de direito po-
cidos às pessoas e aos grupos para
mem enquanto tal segundo o direito, Quando não se trata de direitos sitivo ou normas de justiça.
que eles possam satisfazer suas ne-
oposição no sentido em que o direito normativos, as ilegalidades referem- Como já vimos anteriormente, a
cessidades. Nesta situação de tensão,
não reconhece ao homem o que lhe se a comportamentos, situações e idéia de homem remete à realidade
o conceito de direitos humanos in-
pertence enquanto tal. Esta relação relações sociais que violam normas do direito e, por outro lado, a idéia
dica não s6 possível divergência en-
se deve ao fato de que na hist6ria de positivas do ordenamento nacional do direito remete à realidade con-
tre o direito que é e o que deveria
nossa cultura, homem e direito são e/ou internacional, que tutelam ou creta das pessoas, dos grupos hu-
ser, mas também entre o direito que
defInidos a partir de um ponto de reconhecem direitos humanos. A di- man9s e dos povos, e é precisamente
é (as normas vigentes) e os fatos.
vista ideal, com uma remissão re- No primeiro caso nos referimos às 2. Situando o caso brasileiro, pode-se consultar: Caco Barcellos, Rota 66. A história ~a pol!~ia que
cíproca. injustiças do direito e precisamente.a mata. São Paulo, 1992. Este autor nos indica uma série de casos em que a. !ustlça MI.htar ~a
Polícia Militar de São Paulo absolve policiais que sistematicamente se utlhzam de V10lêncla
contra civis. Tais sentenças r~presentam um atentado gravíssimo aos direitos humanos porque
1. Tradução da revisão alemã (1993) do original espanhol. sustentam e legitimam a prática de uma violência policial sem limites.

Fase. de Clênc. Penais. Porto Alegre, v.6, n.2, p.44-61, abr/mai/jun, 1993 45
cial, sobrepõe-se às suas transcrições uns produz-se à custa da satisfação
por isso que há na história dos di- os homens e entre o homem e a das necessidades dos outros.
nos termos do direito nacional e das
reitos humanos uma discordância natureza influencia, obviamente, o Em contextos teóricos e com lin-
convenções internacionais, assim
contínua entre normas e fatos. Este é desenvolvimento destas capacidades guagens distintas, Marx e Galtung
como a idéia de justiça sempre ul-
o valor "contrafático" que possuem individuais. À medida em que cresce expressam um mesmo conceito. Para
trapassa às suas realizações dentro
as normas, que são válidas e às quais a capacidade social de produção do direito e indica o caminho à Marx, a discrepância entre condições
se pode apelar, precisamente porque material e cultural e com ela o grau realização da idéia do homem, ou potenciais e atuais de vida depende
os fatos as violam, sejam elas normas de satMação das necessidades, cres- seja, do princípio da dignidade hu- da contradição existente entre o grau
de direito ou de justiça. Não obs- ce também a capacidade dos indi- mana. A história dos povos e da de desenvolvimento alcançado pelas
tante, há simultaneamente uma con- víduos e dos grupos. As necessidades sociedade apresenta-se como a his- forças produtivas e as relações de
tínua sobreposição da realidade do se tornam mais imprescindíveis, mais
tória dos contínuos obstáculos en- propriedade e poder dominantes na
homem em relação às normas. diferenciadas. contrados neste caminho, a história sociedade. As relações injustas de
É a realidade que produz a idéia e O desenvolvimento da capacidade
da contínua violação dos direitos propriedade e poder impedem a
não vice-versa. Se a história dos social de produção corresponde
humanos, isto é, da permanente ten- "maneira humana" de satisfazer as
direitos humanos houvesse sido so- também ao desenvolvimento das
tativa de se reprimir as necessidades necessidades. Igualmente, para Gal-
mente a história de uma idéia, ela necessidades e das possibilidades de
reais das pessoas, dos grupos huma- tung a discrepância entre situações
teria se limitado a encher as biblio- satisfazê-las. A esta satisfação cor-
nos e dos povos. atuais e potenciais de satisfação das
tecas de folhas escritas ou impressas responde o ulterior desenvolvimento
O sociólogo John Galtung refere- necessidades é efeito da injustiça
e não encher de violência e sangue o das capacidades dos indivíduos, dos
se à discrepância entre as condições social.
caminho dos povos, como ocorreu e grupos e dos povos. Assim sendo,
potenciais da vida e as condições Neste sentido, segundo Galtung
ainda ocorre na atualidade. podemos definir as necessidades
atuais (3). As primeiras são aquelas "injustiça social" é sinônimo de "vio-
Ao mencionar a realidade do ho- reais como as potencialidades de que seriam possíveis para a maioria lência estrutural". Se usamos esta
mem refiro-me às pessoas, aos gru- existência e qualidade de vida das dos indivíduos na medida do desen- definição podemos sustentar que a
pos humanos e aos povos na sua pessoas, dos grupos e dos povos que volvimento da capacidade social de violência estrutural é a repressão das
concreta existência dentro de deter- correspondem a um determinado produção. As segundas se devem ao necessidades reais e portanto dos
minadas relações sociais de produ- grau de desenvolvimento da capaci-
desperdício e à repressão destas direitos humanos no seu conteúdo
ção. O ser humano, quando con- dade de produção material e cultural
potencialidades. Uma concepção si- histórico-social. A violência estrutu-
siderado dentro de uma determinada numa formação econômico-social.
milar pode ser encontrada na obra de rai é uma das formas de violência; é a
fase do desenvolvimento da socie- Marx. Ao desenvolvimento das for- forma geral da violência em cujo
dade, é um "portador" de neces- 2. VIOLÊNCIA COMO ças produtivas na sociedade cor- contexto costuma originar-se, direta
sidades reais. Partindo de um ponto REPRESSÃO DAS responde, como escrevem Marx e ou indiretamente, todas as outras
de vista histórico-social, o conceito NECESSIDADES REAIS E Engels em Deutsche Ideologie (4), formas de violência. Podemos dis-
das necessidades reais corresponde a DOS DIREITOS HUMANOS uma "maneira humana" de satisfação tiguir estas outras formas, segundo o
uma visão dinâmica do homem e de das necessidades; mas esta maneira agente, em "violência individual",
suas capacidades. Os direitos humanos constituem a humana é obstruída pela tentativa quando o agente é um indivíduo;
Cada pessoa, cada grupo, cada projeção normativa, em termos do permanente de se impor uma "ma- "violência de grupo", quando o
sociedade possui capacidades espe- dever ser, das potencialidades su- neira desumana", ou seja, aquela na agente é um grupo social, que por
cíficas para desenvolver sua própria pracitadas, ou seja, das necessidades qual a satisfação das necessidades de sua vez se serve de indivíduos par-
existência, para expressar-se, para reais. Neste sentido, o conteúdo nor-
dar sentido à vida e às coisas. A mativo dos direitos humanos, enten- 3. Cf. Johann Galtung, Stmkturelle Gewalt. Beitrage zur Friedensforschung, Hamburg, 1977.
história da interação produtiva entre dido numa concepção histórico-so- 4. Marx Engels Werke.Band 3, Berlin, 1958. p. 417 e ss.

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ticulares: pertence a este tipo de declarações modernas de direitos e tica quatro categorias de conside- sua maior parte, a violência inter-
violência aquela realizada por gru- as constituições fazem uma ampla rações que têm relação com o papel nacional é excluída do horizonte do
pos paramilitares. Além disso, po- distinção entre diversas categorias do direito penal e as alternativas a conceito de crime. Por isto, a partir
demos também falar em "violência de direitos humanos, mas não con- este. do ponto de vista das previsões le-
institucional", quando o agente é um sidero que esta seja a ocasião opor- A primeira consideração refere-se gais, a violência criminal é somente
órgão do Estado, um governo, o tuna para me deter no exame' destas aos limites do sistema de justiça uma ínfima parte da violência na
exército ou a polícia. A violência categorias. Limitarei-me simples- criminal como reação à violência e sociedade e no mundo.
institucional pode ter formas legais, mente a destacar uma possível clas- defesa dos direitos humanos; a se-
ou seja, de acordo com as leis vigen- sificação que deriva da definição gunda refere-se ao sistema punitivo 3.2. O modo como o sistema de
tes num Estado ou, como acontece extralegal de direitos humanos que como sistema de violência insti- justiça criminal intervém sobre este
em muitos casos, ilegais. propus aqui em termos de neces- tucional; a terceira, ao controle so- limitado setor da violência "cons-
A esta forma de violência insti- sidades reais. cial alternativo da violência e, a truído" através do conceito de cri-
tucional pertencem o terrorismo de Definindo as necessidades reais quarta, à concepção da violência e da minalidade é estruturalmente sele-
Estado e as distintas formas de di- em termos de esferas de autonomia e defesa dos direitos humanos no con- tivo. Esta é uma característica de
tadura e de repressão militar. Por recursos, podemos classificar dois texto dos conflitos sociais (5). todos os sistemas penais. Há uma
fim, podemos falar de "violência grupos fundamentais de direitos enorme disparidade entre o número
internacional", quando o agente é a humanos, que por sua vez podem ser 3. "CONSTRUÇÃO" E de situações em que o sistema é
administração de um Estado, que se posteriormente diferenciados. Per- CONTROLE DO PROBLEMA chamado a intervir e aquelas em que
dirige com determinadas ações tencem ao primeiro grupo o direito à DA VIOLÊNCIA NO SISTEMA este tem possibilidades de intervir e
através de órgãos próprios ou de vida, à integridade física, à liberdade DE JUSTIÇA CRIMINAL efetivamente intervém. O sistema de
agentes mantidos por aquela, contra pessoal, à liberdade de opinião, de justiça penal está integralmente de-
o governo e o povo de outro Estado. expressão, de religião, e também os 3.1. A maneira como é percebida dicado a administrar uma reduzi-
Pertencem a este tipo de violência os direitos políticos. Ao segundÇl grupo a violência no sistema do direito díssima porcentagem das infrações,
crimes internacionais, como o mer- pertencem os denominados direitos penal, ou seja, a forma como esta é seguramente inferior a 10%. Esta
cenarismo, a sabotagem econômica econômico-sociais, dentre eles o di- "construída" como problema social, seletividade depende da própria es-
etc. Outras possíveis distinções com reito ao trabalho, à educação etc. é parcial. De todas as formas de trutura do sistema, isto é, da dis-
relação ao conceito de violência se Outras distinções levam em consi- violência anteriormente menciona- crepância entre os programas de
relacionam às formas com as quais deração as necessidades específicas das, somente alguns tipos de vio- ação previstos nas leis penais e as
esta é praticada (violência direta e dos sujeitos. Neste caso distinguem- lência individual são levadas em possibilidades reais de intervenção
indireta, física, moral etc.) e aos se os direitos das pessoas, dos consideração no sistema de justiça do sistema. A imunidade (6), e não a
sujeitos contra quem se pratica grupos, como por exemplo no caso criminal. A violência de grupo e a criminalização, é a regra no modo de
(minorias étnicas, membros de mo- das minorias étnicas e os direitos dos violência institucional são consi- funcionamento deste sistema.
vimentos políticos e sindicais, grupos povos, entre eles o direito a auto- deradas apenas em relação à ações Imunidade e criminalização são
marginais, operários, trabalhadores determinação e o direito ao desen- de pessoas individuais e não no con- realizadas geralmente pelos sistemas
rurais, mulheres, crianças, homos- volvimento. texto do conflito social que elas ex- punitivos segundo a lógica das desi-
sexuais etc.). Frente a uma fenomenologia glo- pressam. A violência estrutural e, em gualdades nas relações de pro-
Em qualquer de suas formas, a bal da violência, comprendida como
5, Com respeito aos três primeiros pontos, limitarei-me a dal' algumas indicações referentes a
violência é sempre repressão de repressão das necessidades reais e alguns dos resultados obtidos no meu tl'abalho de pesquisa dentro da cl'iminologia crítica e que
necessidades e, portanto, violação ou dos direitos humanos, apresentam-se podem selvir como bibliografia complementai'.
suspensão de direitos humanos. As na perspectiva da criminologia crí- 6. Cf. Louck Hulsman, CriticaI Criminology and the concept of crime, in Contemporary crises, 1986,
p. 63-80, 70 e ss.

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T
priedade e de poder. A sociologia dos mais fortes. A resposta penal é, sujeitos mais lesados nas situações controle da criminalidade na qual se
jurídico-penal e a experiência coti- sobretudo, uma resposta "simbólica" conf1itivas nas quais intervém o sis- baseiam as teorias da pena, como a
diana demonstram que o sistema e não "instrumental" (7). Ou seja, tema de justiça penal, não altera o da prevenção geral e a da prevenção
direciona sua ação principalmente às real e eficaz. Isto depende do pró- fato de que o referido sistema só especial deve, através de pesquisas
infrações praticadas pelo segmento prio modo com que são elaborados passa a atuar quando as pessoas já se empíricas (8), considerar-se como
mais frágil e marginal da população; os programas de ação do sistema, transformaram em vítimas. As con- falsa ou não verificadas. Não sa-
que os grupos poderosos na so- isto é, as figuras do delito e as normas seqüências da violência não podem bemos assim, se a ameça penal ou a
ciedade possuem a capacidade de processuais. A respeito disto, gos- ser eliminadas efetivamente, apenas sanção de alguns infratores pode
impor ao sistema uma quase que taria de ressaltar quatro aspectos que simbolicamente. Por esta razão, o efetivamente representar uma con-
total impunidade das próprias ações considero importantes: sistema de justiça punitivo se apre- tramotivação para outros infratores
criminais. senta como uma forma institucional e potenciais. Em geral, sabemos que as
A imunidade dos crimes mais a) O controle penal intervém so- ritual de vingança. Tal como a vin- intervenções penais estigmatizantes
graves é cada vez mais elevada à bre os efeitos e não sobre as causas gança ele intervém com a pena, em (como a prisão) produzem efeitos
medida em que cresce a violência da violência, isto é, sobre deter- forma de violências para compensar contrários à denominada ressocia-
estrutural e a prepotência das mi- minados comportamentos através simbolicamente um ato de violência lização do condenado. Mesmo num
norias privilegiadas que pretendem dos quais se manifestam os conflitos, já realizado. hipotético sistema de justiça criminal
satisfazer as suas necessidades em e não sobre os conflitos propria- que funcione de acordo com os
detrimento das necessidades dos de- mente ditos. d) Finalmente, o resultado da in- princípios constitucionais do Estado
mais e reprimir com violência física tervenção do sistema de justiça cri- de Direito e os princípios do direito
as exigências de progresso e justiça, b) O controle penal intervém so- minal (a sentença e sua execução) penal liberal, a pena não pode repre-
assim como as pessoas, os grupos bre pessoas e não situações. A pessoa não é imediatamente posterior à sentar uma defesa adequada dos di-
sociais e movimentos que são seus é considerada pelo direito penal prática do delito. Há um atraso no reitos humanos em relação à vio-
intérpretes. como uma variável independente e processo de intervenção penal. Não lência. Não é possível afirmar, por-
não como uma variável dependente obstante, no momento do juízo se tanto, um efeito relevante da pena na
3.3. Ainda que a altíssima por- das situações. considera o acusado como o mesmo diminuição das infrações à norma. A
centagem de imunidade imposta ao indivíduo do momento da realização sanção penal teria assim, quando
funcionamento da justiça penal por c) O controle penal intervém de do delito; mas sabemos que isto é muito, um papel de reafirmação da
sua própria estrutura fosse repartida maneira reativa e não preventiva. uma ficção, a ficção da identidade do validade da norma, não obstante sua
com uma lógica oposta àquela Com isto quero dizer que ele in- sujeito, que não corresponde à rea- violação.
descrita, se a intervenção do sistema tervém quando as conseqüências das lidade. As teorias sociológicas da pena
punitivo pudesse ser concentrada nas infrações já se produziram, mas não Por todos estes aspectos suscinta- que colocaram esta função simbólica
infrações mais graves, sua res- efetivamente para evitá-las. Qual- mente destacados, a resposta penal como centro de atenção, como a de
posta à violência permaneceria, de quer progresso que se possa realizar apresenta-se como uma resposta Durkeim (9) e a atual teoria deno-
todo modo, inadequada para defen- com relação à ampliação dos direitos simbólica. A pretensão de que ela minada prevenção-integração (10),
der os mais fracos da prepotência das vítimas, que tendem a ser os possa cumprir uma função instru- reconhecem implícita ou explicita-
mental de defesa social e de efetivo mente que as penas não cumprem as
7. Cf. Winfl'ed Hassemel', Symbolisches Strafrecht und Rechtsgütel'schutz, in: Zeitschrift fiir
Strafrecht, 1989, p. 553-559; Alessandl'O Baratta, Jenseits der Strafe. Rechtsgüterschutz in der 8. Cf. Alessandro Baratta, ob. cit., 1993.
Risikogesellschaft. Zur Neubewertung der FUllktionen des Strafrechts, Manuskrit in druck fUI' 9. Cf. Emile Durkeim, Les rcgles de la méthode sociologique, Paris, 1968, p. 65 e ss.
die Festschl'ift zum 70. Geburtstag von Arthur Kaufmann, C. F. Müller Juristischel' Verlag, 10. Cf. Alessandro Bal'atta, Integt·ation-Pl'iivention. Eine systematische Neubegl'ündung del' Stl'afe,
Heidelberg, 1993. (Manuscrito publicado em comemoração do 70º aniversário de Arthur in: Kriminologisches !oumal, 1984, p. 132-148 (complemental'iamente também pode-se consultat'
Kaufmann). a bibliografia indicada pelo autol' neste texto).

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lizados da população, que são os mos (14), com o aumento, na so-
funções de eliminar os delitos ou que dos indivíduos e na sociedade, e clientes fixos do sistema de justiça ciedade externa, da violência estru-
não é necessário que se cumpram. contribuem para reproduzir as re- criminal. tural e com a suspensão de fato ou de
Durkeim inclusive considerava que lações desiguais de propriedade e direito das regras da democracia.
os delitos são "funcionais" dentro de poder (12). Deste ponto de vista, a 4.2. A violência da pena tem sido
certos limites para a realização da pena apresenta-se como violência estudada sobretudo em relação à 4.3. O estudo das funções latentes
função simbólica da pena: se não institucional que cumpre a função de prisão. Mesmo a prisão que estivesse da prisão e, em geral, da justiça
houvesse infrações, não se confir- um instrumento de reprodução da de acordo com os padrões mínimos penal, bem como as análises his-
mariam as normas e os valores vigen- violênca estrutural. determinados pelos acordos inter- tóricas dos sistemas de punição,
tes através da reação social contra nacionais para tutelar os interesses mostram as relações que subsistem
elas (11). 4.1. A pena é uma violência ins- do condenado, ou seja, a prisão que, entre tal estudo e a reprodução do
titucional; ela é a repressão das como todos sabemos, praticamente status quo nas relações sociais. Desde
necessidades reais. A suspensão dos não existe, também produziria uma seu início, a instituição carcerária
4. O SISTEMA DE PUNIÇÃO
correspondentes direitos humanos situação de privação e sofrimento moderna, nas formas em que ela
COMO SISTEMA DE em relação às pessoas consideradas que se estende além da pessoa do ainda não se distinguia das casas de
VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL responsáveis penalmente é justi- preso, atingindo o seu ambiente so- trabalho ou dos asilos para pobres e
ficada dentro da teoria tradicional do cial mais próximo. marginais, tem sido sempre uma
Sustentar o argumento de que a
pena não pode cumprir uma função
ius puniendi pelas funções ins- Mas a prisão não é somente uma instituição de disciplina dos grupos
trumentais e simbólicas que a pena violência institucional, ela também é marginalizados na sociedade. Tam-
instrumental relevante, mas apenas
deve cumprir e com a infração um local de concentração extrema de bém hoje, a maior parte da po-
uma função simbólica, significa ne-
realizada pelo sujeito declarado res- outras formas de violência: violência pulação penitenciária é recrutada
gar a realização das funções "úteis"
ponsável. Não obstante, sabemos entre indivíduos e violência de grupo. entre os setores mais vulneráveis e
declaradas pelos sistemas penais,
muito bem que tais funções não se Recordemos que Foucault em seu marginalizados da população.
precisamente a de defender os bens
jurídicos, reprimir a criminalidade,
realizam, não são "úteis", e que tal livro Vigiar e punir já havia insistido Para a maioria dos seus clientes, a
suspensão de direitos, num elevado no fato de que as garantias do direito marginalização carcerária é uma
condicionando a atitude dos infra-
número de casos, dá-se com im- reconhecidas pelo direito penal forma "secundária" de marginaliza-
tores reais ou potenciais ou neu-
tralizando aos primeiros (infratores putados à espera de julgamento; que liberal, em geral não passam pela ção que segue à marginalização
na maioria dos sistemas punitivos, o porta da prisão, uma zona franca de "primária" causada, sobretudo, por
reais).
indiciado cumpre uma pena extra- arbítrio contra os detentos (13). Não uma colocação marginal no mercado
Não obstante, isto não significa
legal ou de outro modo antecipada obstante os progressos realizados de trabalho.
que em lugar das funções instrumen-
desde a sua primeira relação com a pelas legislações penitenciárias mais A estas funções materiais de re-
tais declaradas, o sistema de justiça
polícia; igualmente, deve-se destacar modernas, esta situação, de fato, não produção, de institucionalização da
penal não produza efeitos reais e não
que isto ocorre geralmente com os se modificou substancialmente na desigualdade social, acrescentam-se
cumpra funções latentes, não de-
acusados oriundos dos grupos so- maioria dos Estados. O arbítrio e a funções simbólicas não menos im-
claradas. Estes efeitos e funções in-
ciais mais vulneráveis e margina- violência na prisão tendem a au- portantes. A seleção de uma pe-
cidem negativamente na existência
mentar a níveis cada vez mais extre- quena população recrutada so-
11. Cf. Emile Durkeim, ob. cit., p. 65 e S5. ..',• , • , •
12. Sobre este tema, veja-se: Alessandro Baratta, Crlmmologta cnaca e critica deZ dmtto penale,
13. Cf. Michel Foucault, Übenvachen und StrafclI, Frankfurt/M. 1977, p. 316 e ss. (O autor utiliza a
Bologna, 1982, capítulos XIII e XlVi e do mcsmo autor, Sozialc P.roblcme und Konstruktion der
Kriminalitãt, in: KJ'iminologisches Jotlmal, 1986, p. 200-218; Gerhnda Smaus, Das Strafrecht und versão alemã da referida obra).
die Kl'iminalitiit in der Allttagssprache der deU/scllen Bevolkerung, Opladen, 1985 (complel~len­ 14. Veja como exemplo o massacre de 111 pessoas presos oco1'l'ido no dia 2 de outubro de 1992 na
tal'iamente também pode-se consultar a bibliografia indicada pela autora nesta obra), veja-se Casa de Detenção de São Paulo. Com isto, comprova-se uma vez mais que a prisão é um lugar
também da mesma autora: L'image du droit penal et la reproduction idéologique des classes destacado de violação dos direitos humanos.
sociales, in: Deviance et SocieM, Genf. vol. 6, n. 4, p. 353-373.

53
52
bretudo entre as camadas mais bai- principalmente ao "perigo da cri- dos casos este atua não como um países democráticos regidos pelas
xas da sociedade e dentro de um minalidade", ou às chamadas "clas- sistema de proteção de direitos regras do Estado de Direito, o fun-
número maior de infratores distri- ses perigosas", ao invés de dirigir-se humanos, mas como um sistema de cionamento dos órgãos da justiça
buídos em todas as classes sociais, à violência estrutural. Neste sentido, violação destes. Estudos e controles criminal à margem da legalidade é
condiciona um estereotipo de cri- a violência criminal adquire na aten- realizados por instituições e comis- freqüente. Mas a transgressão da lei,
minoso que atua tanto no sentido sões de direitos humanos nacionais e da constituição e dos direitos huma-
ção do público a dimensão que de-
comum como nas próprias instâncias internacionais colocaram em evi- nos por parte da função punitiva
veria corresponder à violência es-
do sistema de justiça penal com dois dência as graves violações ocorridas constitui a norma no caso de so-
trutural, e em parte contribui a
efeitos principais de legitimação: em ocultá-la e mantê-la. Sobretudo em em decorrência do funcionamento da ciedades nas quais as regras do jogo
primeiro lugar, a legitimação da momentos de crises dos governos e justiça criminal, em relação a quase democrático foram suspendidas seja
própria forma seletiva de atuar do da democracia, o "perigo da cri- todas as normas de proteção dos de fato ou de direito, e em situações
sistema, já que o estereotipo de minalidade" utilizado nas campa- direitos humanos na legislação local de profundas desigualdades sociais
criminoso corresponde sobretudo às nhas de "Lei e Ordem", converte-se e em convenções internacionais (17). nas quais os grupos dominantes exer-
características dos indivíduos que num instrumento de produção de Trata-se de sérias ilegalidades come- cem, através das instituições do Es-
pertencem às classes mais baixas e consenso das maiorias silenciosas tidas por parte dos órgãos de polícia tado ou juntamente com elas, uma
marginais. Em segundo lugar, uma frente às relações de poder existentes no processo penal e na execução das ação de repressão voltada à susten-
legitimação das relações sociais de penas. Não são poucos os casos de tação violenta de seus privilégios.
(15). Trata-se de uma tentativa -
desigualdade e da situação de des- violações de leis e regulamentos
particularmente perversa - de le-
vantagem dos grupos sociais que se gitimar a injustiça nas relações so- nacionais frente a princípios de di- 4.5. Nestes casos, a degeneração
situam nos níveis mais baixos da ciais (a repressão violenta da exi- reito penal liberal nacional e inter- dos sistemas de justiça criminal pode
escala social, porque precisamente gência de justiça), o uso público da nacional. Um exemplo desta legis- atingir um quadro de extrema gra-
nestes grup'os se encontrariam as doutrina da "segurança nacional" e lação e práxis punitiva fundamental- vidade diante do qual é mais rea-
tendências para realizar ações penal- da pena legal e extralegal como guer- mente desviada de princípios ele- lístico falar de um sistema penal
mente relevantes. Em geral, a ima- ra ao "inimigo interno" (16). mentares de direito penal do Estado extralegal, de penas extrajudiciais do
gem da criminalidade promovida de direito nos apresenta a legislação que falar de delitos e de não apli-
pela prisão e a percepção dela como 4.4. Observando o sistema penal especial antiterrorista em alguns cação das normas que regulam o
uma ameaça à sociedade, devido à como efetivamente é e funciona, e países da Europa ocidental nos anos sistema penal legal. Se a obra dos
atitude de pessoas e não à existência não como deveria ser, sobre a base setenta e mais atualmente também grupos armados de repressão, de
de conflitos sociais, produz um des- das normas legais e constitucionais, pode-se mencionar a conhecida "ley grupos paramilitares ou dos cha-
vio da atenção do público, dirigida podemos dizer que na maior parte de segulidad ciudadana" da Espanha, mados "de autodefesa" é tolerada
que se constitui numa verdadeira pelos órgãos do Estado ou inclusive
15. Cf.. Alessandro Baratta, Soziale Probleme und Konstruktion der Kriminalitiit, ob. cit., p. 200-218.
violação dos direitos e garantias admitida por algumas normas excep-
16. Veja-se, por exemplo o caso brasileiro, em que se pode visualizar claramente a presença da constitucionais dos cidadãos. No cionais; se intimidações, torturas,
id~?logia da segurança nacional, ainda que sob parâmetros diversos do pe1'lodo da ditadura caso latinoamericano sempre se po- desaparições forçadas fazem parte
nl1ltt~r, como um dos elementos primordiais na o1'Íentação da política criminal deste país na
at~laltdade. A reprodução da imagem do criminoso como o grande inimigo interno tem sido de recordar as legislações antiter- de um plano determinado das oligar-
altmentada constantemente pela maioria dos órgãos oficiais, e só contl'ibui para produzir tristes roristas que se aplicam em países quias no poder com o apoio direto ou
espetáculos como o ocorl'ido na Casa de Detenção de São Saulo, onde em meia hora mais de uma como Peru e Colômbia. Também em
centena de presos foram executados, obviamente ilegalmente, por policiais militares, enquanto
indireto do exército e dos governan-
que parte da opinião pública não somente entendia como C011'eta a ação do governo estadual
como pedia o fusilamento dos demais presos. '
17. ~es.te se~ti~o, um exemp~o de p~squisa empírica realizada nesta região a respeito do sistema de
Justiça crl111malna Amel'lca Latllla pode ser encontrada em Eugênio Raúl Zaffaroni Derechos
humanos y sitemas penales ell America Lati/la, Buenos Aires, 1985. '

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tes e se há uma impunidade garan- punitiva através do direito baseado certos países e no grande movimento pazes de condicionar em certos paí-
tida pelos órgãos do Estado que na mais rigorosa afirmação das popular que sustentou, imediata- ses as ações do governo e de com-
deveriam punir tais comportamen- garantias jurídicas próprias do Es- mente após a reinstauração da de- petir com o poder e a autoridade dos
tos, então nos encontramos frente a tado de Direito e dos direitos hu- mocracia na Argentina, os processos órgãos legítimos do Estado (20).
um fenômeno que podemos estudar manos de todos os cidadãos, em contra os generais responsáveis pelas Por outro lado, pode-se citar o
como o exercício arbitrário da vio- particular das vítimas, processados e violações dos direitos humanos du- exemplo da intervenção penal no
lência penal de grupos ou da vio- condenados pelo sistema de justiça rante a ditadura. Também a exi- campo da ecologia que parece tra-
lência institucional para a manu- penal. Seu programa consiste numa gência civil democrática visando eli- duzir-se paradoxalmente numa situa-
tenção da violência estrutural e a ampla e rigorosa política de des- minar a impunidade dos parami- ção de menor e não de maior defesa
repressão das pessoas e movimentos criminalização e, numa perspectiva litares e pistoleiros em certos países ecológica (21). De fato, a intervenção
que tentam reduzi-la. final, na superação do atual sistema nos quais eles estão na ordem do dia penal neste campo é substancial ou
de justiça penal e sua substituição pode representar uma propaganda formalmente acessória às normas e
por formas mais adequadas, diferen- legítima para a função simbólica da às decisões administrativas. Ou seja,
5. DIREITOS HUMANOS
ciadas e justas de defesa dos direitos pena, um elemento de uma ação isto pressupõe que os comportamen-
ENTRE VIOLÊNCIA dirigida ao reestabelecimento da le- tos lesivos ao ambiente devem ser
INSTITUCIONAL E VIOLÊNCIA humanos frente à violência.
galidade e da paz. irregulares desde o ponto de vista da
ESTRUTURAL Contudo existem exemplos atuais disciplina administrativa para po-
5.2. A intervenção do sistema de
justiça penal sobre os conflitos é, em sentido contrário que fazem sen- derem ser objeto de sanções penais.
Pelo que vimos até agora, conc1ui-
se que os direitos humanos não po- sobretudo, uma intervenção simbó- tir os limites e também os gravíssimos Mas sabemos também que a grande
dem encontrar no direito penal uma lica que não pode representar uma custos sociais que estão relacionados maioria dos prejuízos ecológicos não
proteção adequada, que ao con- solução efetiva destes. Entretanto, com as tentativas de utilização do provêm de comportamentos irre-
trário, muitas violações destes di- isso não quer dizer que, em certas sistema penal para o controle de gulares desde o ponto de vista das
reitos apresentam-se no interior da circunstâncias, a função simbólica situações de irrefreável "negativi- normas administrativas e penais, mas
função punitiva legal ou extralegal. A exercida através de um uso correto e da de social" (19); pense-se por um sim de comportamentos regulares
criminologia crítica toma consciên- rigoroso da justiça penal não possa lado na proibição penal de certas que fazem parte de um sistema de
cia desta dupla dimensão da vio- representar um momento de ação drogas, que acrescentou aos graves produção e de exploração dos recur-
lência que ameaça os direitos hu- civil e política para a defesa e rea- problemas de tóxico-dependência sos naturais, que se desenvolve inde-
manos: a violência penal e a violência firmação dos direitos humanos; por outros novos e não menos graves, já pendentemente das necessidades
estrutural. exemplo, depois que se tenham con- que criou a oportunidade para o reais dos produtores e de todos os
sumado na impunidade formas de desenvolvimento de um colossal mer- indivíduos. Portanto, tal como no
violação generalizada e constante. cado ilegal a nível mundial, do qual campo da droga, também no da eco-
5.1. A teoria do direito penal
Dois exemplos não muito recentes se alimentam grupos poderosos ca- logia a intervenção do sistema penal
mínimo (18) representa uma propos-
ta de política criminal alternativa na mas atuais se deram nos movimentos
perspectiva da criminologia crítica. pela reforma das normas referentes à 19. Nota do tradutor: O autor desenvolve o conceito de "negatividade social" dentro da sua teoria
crítica ao sistema penal. Neste sentido o autor entende serem socialmente negativos aqueles
Trata-se, sobretudo, de um pro- violência sexual que se concreti- comportamentos que contrastam com as necessidades e interesses importantes dos indivíduos e
grama de contenção da violência zaram, em grande parte, devido à da comunidade, tomando por base critérios de valomção considerados válidos. Para um melhor
força dos movimentos feministas de exame neste conceito, remeto-me a: Bal'atta, A. Criminologia critica e critica de! diritto penale
Bologna, 1982, capítulos VII e XV, respectivamente p. 83 e ss. e p. 199 e ss. '
18. Cf. Alessandro Baratta, Prinzipien des minimalen Strafrechts. Eine Theorie der Menschrecbte 20. Cf. Alessandro Baratta, Rationale Drogenpolitik? Die soziologischen Dimensionen eines
ais ~chutz~bjekte und Gl'enze des Strafrechts, in: Kriminologische Fo/'schung in den 8(Jer Jahren. strafrechtlichen Verbots, in: Kriminologisches IOf/mal, 1990, p. 2-25.
ProJektbel'lch~e aus der Bundesrepublik Deutschland. Hrsg. von G. Kaiser, H. Kmy, H. J.
21. Veja-se Winfred Hassemer em: Winfred Hassemer und Volker Meinberg Kontl'overs Um-
Albrecht, Fretburg i. Bt·. 1988, p. 513-542. weltschutz durch Stmfrecht, in: Neue Krimil/a~)olitik, 1, 1989, p. 46-49. '

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produz uma concentração da aten- sociedade organiza defesas públicas lesão é inerente à aplicação de uma venção significa também, e primeira-
ção e dos recursos em políticas de eficazes diante da violência de mi- sanção. mente, uma estratégia de contenção
controle que não tem por objeto as norias prepotentes e da negatividade da violência baseada no controle da
situações em que realmente surgem social. Este controle social alterna- 6.3. Deve ser um controle eficaz e sua forma geral. Isto significa uma
os problemas que se pretende resol- tivo deverá ter características opos- real, não simbólico. Isto implica, pelo estratégia de justiça social. Mas a
ver, contribuindo por fim para di- tas àquelas próprias do sistema da menos, em quatro conseqüências: prevenção da violência estrutural é,
minuir e não para aumentar a defesa justiça criminal, de tal forma a evitar 6.3.1. Dirige-se às causas e não ao mesmo tempo, parte do conflito
dos direitos humanos. a injustiça e a ineficácia que carac- somente às manifestações dos con- social e da ação política no seu
terizam as intervenções deste sis- flitos e da violência; interior.
tema. 6.3.2. Tem por objeto as situações
6. O CONTROLE ALTERNATIVO
e não somente os comportamentos 7.1. Uma característica geral da
DA VIOLÊNCIA E A DEFESA
6.1. Deve ser um controle basea- dos atores implicados nelas. construção dos conflitos no interior
DOS DIREITOS HUMANOS
do numa estratégia global que leve 6.3.3. Sem negar meios de com- das categorias do pensamento penal
A criminologia crítica tem-se de- em consideração toda a fenome- pensação e restituição para as víti- e criminológico tradicional é a sua
dicado à análise das contradições e nologia da violência e não apenas mas, quando estes sej am possíveis e "despolitização" em termos de uma
limites do sistema da justiça criminal. uma pequena parte dela; natural- necessários, o controle social alter- suposta ciência do comportamento
Seu próprio fundamento epistemo- mente, globalidade não significa ho- nativo da violência deve ser, sobre- individual e de uma técnica de res-
lógico está ligado ao reconhecimento mogeneidade dos instrumentos usa- tudo, consistente com o contexto da posta a ele. Os sujeitos e os compor-
de que a criminalidade não é uma dos pelo controle, mas sim uma di- agressão. Isto corresponde a um tamentos a controlar são os "cri-
qualidade natural dos sujeitos e dos ferenciação adequada deles, inclu- "princípio geral de prevenção", do minosos" e os "crimes"; as técnicas
comportamentos, mas sim uma qua- sive dentro de uma estratégia geral. qual deriva, dentre outros, o prin- de resposta são a pena, como dis-
lidade atribuída a estes através dos cípio da prevalência fundamental da suasão ou tratamento, e a "política
processos de definição. Isto não sig- 6.2. Deve fundamentar-se nos função de "polícia" do Estado com criminal" de maneira geral. Diante
nifica, entretanto, que ela não se princípios de igualdade e legalidade, respeito à função punitiva. desta visão tradicional e restrita, a
depare com a exigência de serem evitando estrategicamente a discri- 6.3.4. Deve considerar o infrator criminologia crítica apresenta-se co-
postas em prática estratégias de con- minação dos mais fracos e a im- na sua identidade atual. mo uma crítica da criminologia. Ela
trole social mais justas e eficazes punidade dos mais fortes. Como ga- demonstra que os comportamentos
frente ao "referente material" (22) rantia das pessoas a ele submetidas, 7. CONFLITOS SOCIAIS E definidos como criminais não são
daquelas definições, quando este deve funcionar segundo regras gerais NEGATIVIDADE SOCIAL "distintos" dos outros, que na pro-
exista; ou seja, frente a todas aquelas que coibam arbitrariedades e for- dução dos conflitos e da violência
situações de "negatividade social", mação de posições de poder decor- Afirmei anteriormente que todas estrutural só ocasionalmente inter-
previstas ou não pelas normas pe- rentes de uma excessiva discricio- as formas de violência em geral se vêm os fatores definidos socialmente
nais, que representam repressão de nariedade da intervenção. Também relacionam, direta ou indiretamente, como criminais ou, como tais, pas-
necessidades reais e violações de na defesa dos direitos humanos, de- com a violência estrutural. Ainda síveis de definição no âmbito das leis
direitos humanos (23). Trata-se de ve-se respeitá-los até onde seja pos- que fosse impossível excluir situações penais. Por isto a criminologia tra-
contribuir para o processo através do sível, uma vez que um certo nível de particulares de violência que não dicional - a penologia e a política
qual a maioria dos membros de uma tenham relação com ela, pode-se criminal - são geralmente discursos
sustentar que a violência estrutural é inadequados para uma política de
22. Para uma tentativa de definh' epistemologicamente tal conceito, cf. G. Baratta, Forma giuridica
e contenuto sociale: labelling approach, in: Dei delitti e delle pene, II, 1984, p. 241-269. a forma geral de violência. A apli- controle social eficaz dos conflitos e
23. Alessandro Baratta, Die kritische Kriminologie und U1l'e Funktion in der k1'iminalpolitik in: cação do princípio geral de pre- da violência. Trata-se, antes de mais
Kriminalsoziologisch Bibliographie, 1985, p. 38-51. '

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nada, de restituir às situações con- o exercício dos poderes públicos e a nos em parte, o contraste histórico envolvidos para o estabelecimento de
flitivas sua dimensão política dentro atividade dos órgãos do Estado não entre interesses de grupos em con- um acordo que permita transformar
de uma análise realista dos conflitos sejam expressões de um poder flitos procurando identificar os inter- a luta armada em luta política, com
sociais. Problemas "criminológicos" alienado da vontade popular e dos esses potencialmente mais gerais, ou regras consensuais e asseguradas.
de grandes dimensões como corrup- interesses gerais. Neste sentido, a seja, aqueles que correspondem a um Dentro do marco da contradição
ção, criminalidade organizada, cri- luta por um sistema penal mais justo avanço nas relações sociais, que per- fundamental entre trabalho e capital
minalidade econômica, graves des- e por um sistema de defesa dos mitam um modo mais humano de há uma multiplicidade de conflitos
vios praticados por órgãos estatais, direitos humanos melhor que o atual satisfação das necessidades. dependentes e independentes; atuam
terrorismo e atividades de grupos de sistema de justiça criminal é um dos Para superar o dogmatismo é ne- uma pluralidade de pessoas, grupos e
extermínio e paramilitares são pro- âmbitos da luta pela democracia e cessário abandonar a idéia de que os movimentos que se situam e se des-
blemas políticos que não podem ser pela justiça social. interesses generalizáveis sejam ex- locam, cada vez mais, em novos
enfrentados quando confiados a pressados numa determinada fase da âmbitos, que não podem ser simples-
"técnicos" (ou, pelo menos, somente 7.2. Falar de interesses gerais não vida de uma sociedade somente por mente reduzidos à contraposição
a estes). São problemas relacionados significa não estar atento à existência um grupo social, somente por um fundamental; esta adquire, simulta-
com a atividade dos órgãos de repre- de conflitos de interesses na so- sujeito histórico. Na história da li- neamente, conteúdos específicos em
sentação política e com os cidadãos, ciedade, de grupos sociais contra- beração há um espaço para uma diferentes áreas. Os âmbitos do con-
partidos políticos, sindicatos e movi- postos ou concorrentes; não significa pluralidade de sujeitos. O respeito ao flito são muitos, porque as percep-
mentos sociais, em função de sua negar a existência de um conflito pluralismo na luta contra a violência ções dos atores envolvidos são he-
participação política; problemas que social fundamental entre classes in- é o pressuposto para que esta luta terogêneas e mutantes. A lógica da
são objeto da luta das classes in- feriores e classes dominantes, entre não atinja, como freqüentemente história é mais rica do que qualquer
feriores para liberar-se da opressão as maiorias que possuem a força de acontece, falsas metas e instaurem- esquema lógico. Dentro do conflito
das classes dominantes, da luta pela trabalho e as minorias que detêm a se, em lugar dos velhos domínios, geral para manter ou modificar as
justiça social e pela democracia. O propriedade e o poder. A história outros novos; em lugar de velhos formas de satisfação das necessi-
princípio geral da prevenção cor- dos direitos humanos é também a grupos privilegiados, novos que se dades, ou seja, as relações sociais de
responde então à estratégia do con- história deste conflito social, a his- autoproclamam com violência sobre produção e distribuição, é possível
trole democrático da violência. Isto tória da violência que cotidiana- todos os demais como o "verdadeiro que haja a formação de alianças
significa que os portadores das ne- mente procura reprimi-los. A afir- sujeito histórico". parciais de interesses e de projetos
cessidades reais, de direitos huma- mação dos direitos humanos através entre grupos posicionados em fren-
nos, unem-se para uma articulação da democracia é, ao mesmo tempo, a 7.3. Quando o conflito social atin- tes políticas diversas, alianças ba-
autônoma de suas próprias neces- via para a superação da violência. gir níveis extremos de violência, o seadas na necessidade da paz e da
sidades e direitos e para a criação de Creio que para contribuir para o princípio da lmiversalização dos in- ordem civilizada que podem ser, num
instrumentos públicos que atuem processo de superação desta vio- teresses pode permitir a definição de determinado momento, a necessida-
efetivamente a seu favor. O princípio lência é necessário uma ação intelec- objetivos intermediários. Neste sen- de mais generalizável, por ser com-
da "autonomia de articulação das tual, civil e política que nas suas tido, pode-se falar em "pacificação partida pela maior parte dos mem-
necessidades e dos direitos" realiza- premissas teóricas deve evitar cair dos conflitos", quero dizer, de um bros de uma sociedade.
se através de uma comunicação livre em dois erros contrapostos: o rela- chamamento dos diversos sujeitos
do poder entre os portadores e tivismo e o dogmatismo. Para es-
pressupõe a construção e manuten- capar do relativismo pode-se utilizar
ção da democracia representativa e o "princípio da universalização dos
participativa. Ou seja, pressupõe que interesses"; pode-se resolver, ao me-

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