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NATAL/RN
2022
CLARICE GOMES DE MEDEIROS MAIA
NATAL/RN
2022
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________
Profª. Mª. Fabiana Dantas Soares Alves da Mota (Orientadora)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
______________________________________________________
Profª. Drª. Maria Teresa Lisboa Nobre Pereira (Coorientadora)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
______________________________________________________
Prof. Me. Gustavo Henrique Freire Barbosa (Examinador)
Centro Universitário Maurício de Nassau (UNINASSAU)
NATAL/RN
2022
A Beto Franzisko (in memoriam)1, amigo,
artesão e entusiasta da Economia
Solidária, que transformou as ruas em um
ato contínuo de afeto, luta e resistência.
1
Documentário que registrou um pouco da trajetória do grande Beto Franzisko:
https://drive.google.com/file/d/1hN5sWdIVqx0DlmJAz2nQhWyiiIlcBRd6/view.
AGRADECIMENTOS
A violência é explícita,
O crime aponta à esquina,
A bebida ameniza a dura realidade
E a droga alucina.
O Estado é omisso,
A sociedade reprova,
E entre a sopa e o cuscuz solidário,
A maior fome é por direitos.
Clarice Maia
RESUMO
The phenomenon of the homeless population is multiplying and becoming more complex
throughout the history of humanity. Despite being active citizens on all sides of the city, the
invisibility process has demarcated for a long time the inertia and the distancing of the public
power, including the Judiciary. The current study stems from the question: do homeless
people recognize themselves as subjects of individual and collective rights in order to sue for
jurisdictional protection? From this, it is believed that there is a minimum of self-recognition,
but there are factors that impede the accomplishment of the formulation of the plea to
jurisdictional protection. In this research, the objectives are to highlight the individual and
collective rights listed in Article 5, caput, of the Constitution of the Federative Republic of
Brazil/1988, as pertinent to the experiences of homeless people; identify the factors that
promote greater awareness of individual and collective rights in the experiences of homeless
people; and verify which difficulties are faced by homeless people to achieve the access to
Justice. For this, the study starts from the dialectic historical materialist perspective, resulting,
for the researcher, in the extraction of the multiple determinations of the object. Furthermore,
the investigation is guided by the empirical implication, by the author's accompaniment to the
demands of the homeless people in Natal/RN, through the National Movement of the
Homeless People of Rio Grande do Norte, using bibliographic and documental sources, as
well as anchored in a qualitative approach. Thereby, it is concluded that the homeless people
recognize themselves as subjects of individual and collective rights, but there are immediate
and structural factors that preclude the fulfillment of the formulation of the plea to
jurisdictional protection, being necessary that the Judiciary and the institutional bodies that
surround it advance as to the effectiveness of the right to access to Justice.
1 INTRODUÇÃO 14
2 A LUTA POR DIREITOS: DA RUA AO PARLAMENTO 20
2.1 (Sobre)viver nas ruas: O direito à vida 23
2.2 Vozes e resistências: O direito à liberdade 26
2.3 Entre o real e o ideal: O direito à igualdade 29
2.4 Descartáveis urbanos? O direito à segurança 31
2.5 (In)visíveis por todos os lados da cidade: O direito à propriedade 35
3 A IDENTIDADE HUMANA E CIDADÃ ESTAMPADA NOS CORPOS DAS
PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA 38
3.1 Os pormenores da cidadania e a população em situação de rua: Voto, documentação,
trabalho, impostos, saúde e educação 40
3.2 Só as lutas mudam a vida: Movimento Nacional da População de Rua 44
4 MARQUISES, PRAÇAS E VIADUTOS: OS DESAFIOS DO ACESSO À JUSTIÇA
PELAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA 46
4.1 População incivil, embora cidadã 49
4.2 Entre a rua e o asfalto: O acesso à Justiça 50
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 57
REFERÊNCIAS 62
14
1 INTRODUÇÃO
“Eu me posiciono sempre a favor da vida, a favor dos fracos, a favor dos pequenos, a favor
das minorias, daqueles que lutam, a favor dos sem-terra, dos sem casa, a favor da população
de rua, da comunidade LGBT, a favor dos nordestinos, dos negros, dos refugiados, dos
abandonados, das mulheres trans, dos homens trans, de todos aqueles que são considerados
lixo, escória, todos aqueles que são evitados, todos aqueles que são exterminados”
(Padre Júlio Lancelolotti, 2020)
2
Foto tirada no Dia de Luta da População em Situação de Rua de 2021, em frente a Prefeitura do Natal/RN. O
olhar capturou um diálogo entre a autora e Vanilson Torres, além da espontaneidade de João Maria (in
memoriam).
15
Não é justo para alguns que um mendigo roube o pão. Mas não é justo para muitos
outros que o mendigo não tenha um pão (MASCARO, 2013). A reflexão posta é ponto de
partida para desenvolver um raciocínio crítico acerca dos direitos das pessoas em situação de
rua no ordenamento jurídico brasileiro.
A princípio, Pachukanis (1988) delimita que toda relação jurídica se dá entre sujeitos
e, por sua vez, o sujeito é fundamento de estudo da forma jurídica. No entanto, para Mascaro
(2013), embora existam afirmativas de que o sujeito de direito é o indivíduo, o ser humano,
desde o surgimento do capitalismo, existem sujeitos de direitos que não são seres humanos, a
saber, as pessoas jurídicas; de igual modo, ao longo da história, houve seres humanos que não
ocuparam o lugar de sujeitos de direito, como as pessoas escravizadas3.
Na perspectiva marxiana, Pachukanis entendia que o Direito era exclusivamente uma
forma de sociedade do Capital, portanto, não existindo Direito proletário. Nas suas palavras,
“Apenas com o completo desenvolvimento das relações burguesas o direito adquiriu um
caráter abstrato. Todo homem torna-se um homem em geral, todo trabalho torna-se um
trabalho social útil em geral, todo indivíduo torna-se um sujeito de direito abstrato.”
(PACHUKANIS, 2017, p. 138).
No Brasil, a construção social, política e econômica, não é pacífica quanto a todo ser
humano ser sujeito de direitos. Por um viés crítico, Mascaro (2013) afirma ser falsa a
concepção de que o sujeito de direito nasce do imperativo da dignidade da pessoa humana,
sendo mais determinante a condição do trabalhador de nada possuir e se vender
autonomamente à exploração capitalista.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) prevê o
advento dos direitos fundamentais, os quais, para Bonavides (2004), são aqueles direitos que
receberam da Constituição o mais elevado grau de garantia ou de segurança.
O art. 5º, caput, da CRFB/88 traz os direitos fundamentais que serão objeto desse
estudo, a saber: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade (BRASIL, 1988, on-line).
Para além, a leitura caput do artigo demarca que todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a
inviolabilidade dos direitos supracitados.
Ao passo que o texto constitucional traz um rol de direitos fundamentais, e, ao que
interessa a esse trabalho, a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade como
3
No Brasil, até o ano de 1888 havia escravos, e a escravidão estava amparada nas leis e no Estado.
Absurdamente, o escravo não era considerado pelo mundo jurídico um sujeito de direito, mesmo sendo um
ser humano. A compreensão do conceito de sujeito revela posições sociais concretas e, por detrás da
afirmação do tema, há uma grande carga ideológica. (MASCARO, 2013, p. 100)
16
sendo direitos individuais e coletivos, são as pessoas em situação de rua sujeitos de direitos
individuais e coletivos?
Para esta pesquisa, será adotada a concepção firmada em tratados internacionais e
recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro de que a vida humana pressupõe direitos e
garantias individuais e coletivos, mas sem se furtar de analisar o direito como instrumento
que, muitas vezes, atua na manutenção das desigualdades sociais. Vale ressaltar que segundo
Valença et al. (2021) de 1988 até os dias atuais o grande desafio tem sido conferir
normatividade e eficácia principalmente às disposições que se referem à estruturação da rede
de proteção social inspirada nas experiências da social-democracia europeia.
No que diz respeito à população em situação de rua, Silva (2009) conclui que se trata
de uma população constituída enquanto fenômeno social de múltiplas determinações, sendo
uma expressão radical da questão social4 na contemporaneidade, bem como localizado nos
centros urbanos, marcado pelo preconceito, por particularidades vinculadas ao território em
que se manifesta e com tendência à naturalização.
A partir desses marcadores, é possível chegar no Decreto Presidencial nº 7.053, de
23 de dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de
Rua, o qual traz a definição da população em situação de rua5. À vista disso, Maggio (2019)
reconhece que apesar de diversos direitos fundamentais possuírem existência e validade na
ordem constitucional e infraconstitucional, na realidade brasileira, têm suas eficácias, no
mínimo, perceptivelmente, restringidas.
Nessa linha de raciocínio, sendo as pessoas em situação de rua sujeitos de direitos
individuais e coletivos, cabe observar que a eficácia desses direitos está aquém do
fundamental.
A CRFB/88, em seu art. 5º, inciso XXXV, firmou o compromisso de constituir um
sistema de justiça acessível (BRASIL, 1988, on-line). Tendo em vista as violações cotidianas
sofridas pelas pessoas em situação de rua e o acesso à Justiça como basilar no ordenamento
jurídico brasileiro, Leite (2017) questiona se esses sujeitos de direitos têm legitimidade ativa
para ajuizar procedimentos, compreendendo-se que a legitimidade ativa não se encerra na
4
A “questão social” condensa múltiplas desigualdades mediadas por disparidades nas relações de gênero,
características étnico-raciais, relações com o meio ambiente e formações regionais, colocando em causa
amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilização (IAMAMOTO, 2013, p 330).
5
Art. 1o Fica instituída a Política Nacional para a População em Situação de Rua, a ser implementada de
acordo com os princípios, diretrizes e objetivos previstos neste Decreto.
Parágrafo único. Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional
heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e
a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas
como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de
acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória (BRASIL, 2009, on-line).
17
possivelmente não serão alcançadas conclusões concretas. Assim, dada a implicação da autora
com a pauta das pessoas em situação de rua, o presente trabalho se propõe a uma pesquisa
empírica.
Norteado por uma pesquisa bibliográfica e documental, a presente investigação será
ancorada em uma abordagem qualitativa. No que diz respeito à coleta de dados, o estudo terá
por base a revisão bibliográfica de tratados internacionais, normas constitucionais e
supralegais, bem como produções científicas.
Seguindo a linha de raciocínio posta, em diálogo com a perspectiva materialista
histórica dialética, a realidade é eternamente dinâmica. Por isso, Netto (2011) ressalta que
concluída a investigação, toda conclusão é sempre provisória, sujeita à comprovação, à
retificação, ao abandono ou a outros caminhos.
20
6
Foto tirada no Dia de Luta da População em Situação de Rua de 2021, em frente à Prefeitura do Natal/RN,
articulado pelo Movimento Nacional da População em Situação de Rua do Rio Grande do Norte e apoiadoras
e apoiadores. O Dia de Luta da População em Situação de Rua nasceu a partir do episódio que ficou
conhecido como Massacre da Praça da Sé, ocorrido na cidade de São Paulo, em 2004, onde 7 pessoas em
situação de rua foram brutalmente assassinadas enquanto dormiam e 6 ficaram com sequelas irreversíveis,
fato que motivou a organização política desse segmento social e a consequente estruturação do Movimento
Nacional da População de Rua (MNPR), em conformidade à Cartilha “Conhecer para Lutar”, organizada pelo
MNPR.
21
A visão clássica dos direitos humanos é atravessada por uma lógica universalizante,
mas na perspectiva crítica de Flores (2009) só é possível defender o universalismo de
chegada. Ou seja, cada grupo humano está em um processo de luta que parte de um ponto
diferente, mas converge com a pauta da dignidade; nessa lógica, se consegue preservar
práticas culturais diferentes e buscar a efetivação da ideia de que todas e todos são titulares de
direitos humanos.
23
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da
Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, e recepcionado pelo
Brasil na forma do Decreto nº 592, de 6 de julho 1992, prevê, em seu artigo 6, que o direito à
vida é inerente à pessoa humana, devendo este direito ser protegido pela lei e ninguém poderá
ser arbitrariamente privado de sua vida.
Canotilho (2003) expõe entendimento que o direito à vida é um direito subjetivo
inerente à existência do cidadão. Desse modo, nem o Estado nem terceiros podem agir contra
a vida de um sujeito; no ordenamento jurídico brasileiro, é prevista exceção aos casos de
24
Ato contínuo, vale analisar o registro civil do nascimento à vida adulta das pessoas
em situação de rua. A Lei nº 9.534, de 10 de dezembro de 1997, alterou a Lei nº 6.015, de 31
de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), passando a prever:
Art. 30. Não serão cobrados emolumentos pelo registro civil de nascimento e pelo
assento de óbito, bem como pela primeira certidão respectiva.
§ 1º Os reconhecidamente pobres estão isentos de pagamento de emolumentos pelas
demais certidões extraídas pelo cartório de registro civil.
§ 2º O estado de pobreza será comprovado por declaração do próprio interessado ou
a rogo, tratando-se de analfabeto, neste caso, acompanhada da assinatura de duas
testemunhas.
§ 3º A falsidade da declaração ensejará a responsabilidade civil e criminal do
interessado. (BRASIL, 1997, on-line).
Ou seja, desde 1997 a legislação brasileira dispõe que não serão cobradas taxas pelo
registro civil de nascimento e pelo assento de óbito na primeira certidão, bem como os
reconhecidamente pobres serão isentos de pagamento das demais certidões extraídas pelo
cartório de registro civil. No entanto, a realidade das pessoas em situação de rua é de
desconhecimento desse direito assegurado por lei e de consequente ausência de
documentação.
O I Censo e Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua (BRASIL,
2008, on-line), realizado pelo, à época, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome (MDS), no período entre agosto de 2007 e março de 2008, identificou, naquele período,
que 24,8% das pessoas em situação de rua não possuíam qualquer tipo de documento de
identificação. Em continuidade, dos entrevistados, 58,9% possuíam Registro Geral (RG);
42,2% possuíam Cadastro de Pessoa Física (CPF); 39,7%, Carteira de Trabalho e Previdência
Social (CTPS); 37,9, certidão de nascimento ou de casamento.
Isto posto, a ausência do registro civil de pessoas em situação de rua implica
diretamente no exercício do direito à vida digna, ao passo que o registro civil é basilar para os
atos da vida civil. Exemplos que podem ser trazidos à tona são o cadastramento para o
atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS); na rede federal, estadual e municipal de
ensino; no antigo Bolsa Família e no atual Auxílio Brasil; no Auxílio Emergencial; nos
programas sociais de habitação; nas iniciativas de geração de trabalho e renda; entre outros.
Por sua vez, a pessoa idosa em situação de rua também tem o direito à vida digna
violado. A realidade é que é explicitamente ignorado o art. 230 da CRFB/88 que apregoa que
a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua
participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o
26
direito à vida, assim como também o que está estabelecido na Lei nº 10.741, de 1º de outubro
de 2003 (Estatuto do Idoso).
Na prática, as pessoas idosas em situação de rua desconhecem a proteção integral
destinada àqueles com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. Um exemplo fático a se
expor é que os serviços socioassistenciais da proteção social especial da alta complexidade,
previstos na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), conhecidos como Abrigos
Municipais, não atendem idosos. Aquelas pessoas adultas usuárias desses serviços ao
completarem 60 (sessenta) anos são desligadas e encaminhadas para Instituições de Longa
Permanência para Idosos (ILPI), porém, muitas vezes, esses sujeitos estão em pleno gozo das
suas capacidades para as atividades da vida cotidiana, não se encaixando no perfil daqueles
que são acolhidos nas ILPIs.
A questão das pessoas idosas se complexifica quando analisado o art. 14 do Estatuto
do Idoso, ao passo que é previsto que se o idoso ou seus familiares não possuírem condições
econômicas de prover o seu sustento, recai sobre o Poder Público a responsabilidade deste
provimento, no âmbito da PNAS (BRASIL, 2003, on-line). Ou seja, no caso das pessoas
idosas em situação de rua, é negado o serviço público de abrigamento e violado o direito à
promoção do sustento.
Ainda, cabe pontuar as vidas que são ceifadas nas ruas. Pereira (2008) traz, em sua
dissertação, fruto de entrevistas às pessoas em situação de rua, um relato intitulado de “o pior
de morar na rua é o medo de perder a vida”. As palavras do entrevistado:
O que mais tenho medo é de perder a vida na mão de algum marginal. Eu não mexo
com ninguém. O povo da rua não mexe com ninguém. A gente briga entre si, quando
bebe, mas fazer maldade pros outros, assaltar, isso não! A gente tem é medo de
sofrer isso aí. (PEREIRA, 2008, p. 81).
A partir disso, constata-se que na violência das ruas, dormir é um luxo. A todo
momento a pessoa em situação de rua precisa estar atenta aos perigos a que está exposta,
assim, dada a realidade, é comum que pessoas em situação de rua portem objetos cortantes, no
intuito de proteger a própria vida.
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão
e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.” (ONU,
1948, on-line). Ainda, no artigo 3, que “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à
segurança pessoal.” (ONU, 1948, on-line).
É pertinente pontuar que a liberdade é inerente ao sujeito, sendo anterior à sociedade,
ao Direito e ao Estado. Nas lições de Beccaria (1999) os sujeitos abdicaram de parte das suas
liberdades para poderem gozar do restante com segurança, delegando todas essas porções de
liberdades ao Estado.
Diante disso, o art. 5º, caput, da CRFB/88 traz como segundo dos direitos
fundamentais a serem garantidos aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, o direito
à liberdade (BRASIL, 1988, on-line). Das diversas liberdades que estão previstas no decorrer
do texto constitucional, para esse estudo cabe atenção especial para a liberdade de ir e vir e
para a liberdade de expressão.
No que toca à liberdade de ir e vir das pessoas em situação de rua é preciso observar
a contradição entre estar em situação de rua e ter a completa liberdade para ir e vir e pôr em
prática todos os desejos enquanto sujeitos, mas também a barreira de acesso, justamente por
estar em situação de rua, e não poder adentrar espaços públicos e privados, devido ao mau
odor, à aparência, às vestimentas, entre outros.
A liberdade de ir e vir das pessoas em situação de rua também resta comprometida
facilmente pela criminalização desses sujeitos. É comum que as pessoas em situação de rua
sejam acusadas da prática de crimes e detidas, havendo um liame evidente entre a situação de
rua e o sistema penitenciário, sendo reconhecido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na
Política Nacional de Atenção às Pessoas Egressas do Sistema Prisional de 2020.
Além disso, mais uma vez a liberdade de ir e vir das pessoas em situação de rua é
suprimida com a internação compulsória. A Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001 (Lei
Antimanicomial), permite três tipos de internações psiquiátricas, a saber: a voluntária, a
involuntária e a compulsória.
A internação voluntária, prevista no art. 6º, I, da Lei nº 10.216/2001, é aquela que se
dá com o consentimento da pessoa; a internação involuntária, disposta no art. 6º, II, da Lei nº
10.216/2001, se dá sem o consentimento do sujeito e a pedido de terceiro7; e a internação
7
Art. 8º A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado
no Conselho Regional de Medicina - CRM do Estado onde se localize o estabelecimento.
§ 1o A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao
Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo
esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta.
28
compulsória, prescrita no art. 6º, III, da Lei nº 10.216/2001, é determinada pelo Poder
Judiciário8.
No último caso, o que possibilita a autorização judicial é o sopesamento entre o
direito à vida e o direito à liberdade. Conforme Bobbio (2004), não cabe analisar os direitos
fundamentais como absolutos, afinal, dois direitos fundamentais não podem ter um
fundamento que torne um direito e o seu oposto, ambos, inquestionáveis e irresistíveis9.
Diante disso, considerando que as pessoas em situação de rua, por vezes, têm
atravessamentos com questões de saúde mental, e a distância do Poder Judiciário desta
discussão, é problemática a existência de uma lei que autorize a internação compulsória
desses sujeitos.
Outra liberdade de especial relevância é a liberdade de expressão no contexto da
situação de rua. Na medida em que é retirada a identidade humana e cidadã desses sujeitos,
pelo fato de estarem em situação de rua, suas manifestações são invisibilizadas por
profissionais e pela sociedade, sendo enquadrados no território produzido pelo sistema
capitalista, segundo Coimbra et al. (2003), de “não saber”, vistos como desqualificados,
condenados e segregados, considerados, até mesmo, danosos e perigosos, necessitando de
acompanhamento, tutela, monitoramento e controle.
De mais a mais, dentro do escopo da liberdade de expressão, se tem a liberdade de
crença. Nesse sentido, práticas caritativas e filantrópicas podem e devem acontecer diante da
limitação do Estado em suprir as demandas da população em situação de rua. Muito embora, é
necessário refletir criticamente sobre como tais atividades acontecem, de modo que é comum
grupos religiosos conduzirem suas ações seguindo uma ordem: primeiro se realiza uma oração
e depois se doa o alimento. Logo, a liberdade de crença da pessoa em situação de rua é
colocada em xeque em troca de um prato de comida.
§ 2o O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou
quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento.
8
Art. 9º A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente,
que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos
demais internados e funcionários.
9
Aliás, vale a pena recordar que, historicamente, a ilusão do fundamento absoluto de alguns direitos
estabelecidos foi um obstáculo à introdução de novos direitos, total ou parcialmente incompatíveis com
aqueles. Basta pensar nos empecilhos colocados ao progresso da legislação social pela teoria jusnaturalista do
fundamento absoluto da propriedade: a oposição quase secular contra a introdução dos direitos sociais foi
feita em nome do fundamento absoluto dos direitos de liberdade. O fundamento absoluto não é apenas uma
ilusão; em alguns casos, é também um pretexto para defender posições conservadoras (BOBBIO, 2004, p.
15).
29
O subcapítulo 2.2 deste trabalho inicia com a constatação de que a DUDH previu que
todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos. Entretanto, Bonavides (2003)
defende que ficou demonstrada se tratar de uma utopia a igualdade absoluta, com o aumento
das desigualdades materiais, provocado pela Revolução Industrial e pelo avanço da
sociabilidade capitalista.
Posto isto, o art. 5º, caput, da CRFB/88 traz como terceiro dos direitos fundamentais
a serem garantidos aos brasileiros e aos estrangeiros, o direito à igualdade (BRASIL, 1988,
on-line). Disso resultou o direito ao voto universal, a igualdade de gênero, de raça, de
orientação sexual, entre outros.
A partir disso se pode tecer considerações acerca do direito à igualdade e a
população em situação de rua. A começar pelo direito ao voto universal, o art. 14, §1º, da
CRFB/88 prevê a obrigatoriedade do alistamento eleitoral e do voto para os maiores de
dezoito anos e a facultatividade para os analfabetos, os maiores de 60 (setenta) anos e os
maiores de 16 (dezesseis) e menores de 18 (dezoito) anos (BRASIL, 1988, on-line).
Contudo, como já explicitado neste estudo, as pessoas em situação de rua, muitas
vezes, sequer têm acesso ao registro civil para providenciar as demais documentações,
considerando-se, nesse caso, o Título de Eleitor. Além do mais, é relevante considerar as
condições objetivas para exercer o direito ao voto, como o deslocamento até à zona eleitoral.
A título de registro, o município de Porto Alegre/RS era referência nas rodas de
conversas sobre o direito ao voto e a população em situação de rua por possuir passe livre nos
transportes coletivos nos dias de eleições, mas a Câmara de Vereadores de Porto Alegre/RS,
por meio da Lei Complementar nº 931/2021, extinguiu o passe livre nos domingos de
eleições10.
Vale salientar que embora o exercício da cidadania esteja muito além do ato de votar,
para o senso comum, ser cidadão está intimamente ligado ao voto. Ou seja, no imaginário da
pessoa em situação de rua que, por condições diversas, não pratica o ato de votar, seria ela
uma cidadã?
10
Ressalta-se que a redação da Lei Complementar nº 362/1995 instituía o passe livre para todos os usuários do
sistema de transporte coletivo por ônibus na cidade de Porto Alegre/RS, ficando a cargo da gestão eleger 12
(doze) dias por ano e não mais que 2 (dois) por mês, para que a política pública fosse implementada. Mas
com a alteração promovida pela Lei Complementar nº 931/2021, o passe livre passou a ser possível apenas
no dia de Nossa Senhora dos Navegantes (2 de fevereiro) e nos dias de campanhas de vacinação de grande
relevância e alcance (PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE, 1995, on-line).
30
Sobre a diferença entre ser mulher e homem em situação de rua, ela revela que a
vida na rua é mais difícil para a mulher se ela estiver sozinha. “Eu, quando cai em
situação de rua, já estava com o Josué. Se a mulher cair em situação de rua sozinha,
tem muitos casos de violência, como estupro, drogadição, alcoolismo” (informação
verbal). E complementa: “no final das contas, termina vindo a deficiência mental por
conta da utilização dessas drogas” (informação verbal). (BORTOLI, 2016, p. 30).
na via administrativa; no uso do nome social para fins de cadastro nos serviços públicos e
tratamento interpessoal; na submissão à prostituição para sobrevivência; entre outras.
O subcapítulo 2.2 deste trabalho traz o artigo 3 da DUDH o qual prevê que todo ser
humano tem direito à segurança pessoal. Bauman (2008) defende que a legitimação do Estado
perante a sociedade fundamenta-se no compromisso de proteger os integrantes da sociedade
dos seus medos, elencando três tipos, a saber: as ameaças ao corpo e às propriedades; as
ameaças à ordem social e à sobrevivência; e as ameaças ao lugar da pessoa no mundo,
relacionado às pautas de classe, gênero, étnica, religiosa, entre outras, e, em outras palavras, a
imunidade à degradação e à exclusão social.
Nesse sentido, o art. 5º, caput, da CRFB/88 traz como quarto dos direitos
fundamentais a serem garantidos aos brasileiros e aos estrangeiros, o direito à segurança
(BRASIL, 1988, on-line). Das diversas seguranças que estão previstas no decorrer do texto
constitucional, para esse estudo cabe atenção especial para a segurança alimentar e nutricional
(SAN) e para a segurança pública.
A Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, Lei Orgânica de Segurança Alimentar e
Nutricional (Losan), institui o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
(Sisan), o qual garante o Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável (DHAA).
O The State of Food Insecurity in the World, produzido pela Organização das Nações
Unidas (ONU) em 2014, apresenta dados e a contextualização da saída do Brasil do Mapa da
Fome, sendo atribuído especial importância ao Programa Fome Zero, de iniciativa da gestão
do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e ao Programa Brasil sem Miséria, criado na gestão
da Presidenta Dilma Rousseff (FAO, IFAD and WFP, 2014). Isso porque tais programas
foram marcos históricos de atenção à segurança alimentar e nutricional, como também
diminuição da fome e maior igualdade de renda, gerando dados consistentes de repercussão
internacional.
Porém, o “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia
da Covid-19 no Brasil”, elaborado pela Rede PENSSAN, mostra que o Brasil retrocedeu 15
anos em 5 anos, voltando a ter a fome como um problema estrutural.
32
11
Imagem retirada do “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19
no Brasil” (REDE PENSSAN, 2021).
33
banho, lavem suas roupas, participem de oficinas, recebam encaminhamento para outros
serviços públicos e atendimento psicológico, socioassistencial e jurídico.
No entanto, ao passo que, no primeiro momento, as atividades públicas e privadas
foram suspensas devido à pandemia da Covid-19, esses serviços também foram fechados e as
pessoas em situação de rua, por óbvio, duramente afetadas. Diante disso, a população em
situação de rua ficou ainda mais dependente das ações caritativas e filantrópicas para se
alimentar12.
Sobre este ponto, Maia (2021b) expõe que no estado do Rio Grande do Norte, em
2021, com o agravamento da disseminação do novo coronavírus, via Decreto Estadual nº
30.383, de 26 de fevereiro de 2021, estabeleceu-se o toque de recolher. Assim, grupos
solidários, os quais atuam majoritariamente no período noturno, estariam impossibilitados de
alcançar as pessoas em situação de rua, todavia, o MNPR/RN, juntamente a secretarias
estaduais, editou a Portaria Conjunta nº 001 - SESAP/SESED/SEMJIDH, de 02 de março de
2021, a qual isentava voluntários em ações filantrópicas no período noturno e nos finais de
semana do toque de recolher.
Dando continuidade, tal Portaria Conjunta também escusava pessoas em situação de
rua do toque de recolher. Uma vez autorizada a abordagem policial e a aplicação de multa
contra aqueles que estivessem nas ruas em momento posterior ao permitido, é preciso
considerar o histórico da atuação truculenta e violenta dos profissionais da segurança pública
com as pessoas em situação de rua.
Costa (2005) afirma que viver nas ruas é sempre estar em risco. Tal risco se
materializa no medo dos pertences serem furtados ou roubados, de ser agredido entre os iguais
da rua, de ser vítima de estupro ou estupro de vulnerável, de ser alvo de agressões inesperadas
pelo simples fato de ser uma pessoa em situação de rua, agressões advindas tanto da
sociedade civil, como também dos profissionais da segurança pública. Nas palavras de Costa
(2005), “A rua é vivida como um espaço de instabilidade, um mundo à parte da sociedade
formal, onde a presença do Estado como garantidor da ordem e da segurança é relativa.”
(COSTA, 2005, p 11).
A linha de raciocínio construída é ratificada por Pereira (2008) ao trazer um relato
intitulado de “Aqui ninguém dorme, só cochila”. As palavras dos entrevistados:
12
Isso porque os serviços públicos existentes não são suficientes para atender a demanda de todo o quantitativo
de pessoas em situação de rua nas cidades.
34
13
A Portaria constitui uma peça, onde a autoridade policial registra o conhecimento da prática de um crime de
Ação Pública Incondicionada, especificando, se possível, o lugar, o dia e a hora em que foi cometido o crime,
o pronome do autor e o da vítima, e conclui determinando a instauração do inquérito policial.
35
Público (MP), como prevê o art. 5º, II, do CPP (BRASIL, 1941, on-line). Tais hipóteses se
configuram no cenário em que houve a retirada da vida da vítima.
Dito isto, o art. 12 do CPP prevê que "O inquérito policial acompanhará a denúncia
ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra" (BRASIL, 1941, on-line). Logo, deste
dispositivo, deduz-se que o inquérito policial não é indispensável para o oferecimento da
denúncia ou da queixa.
No caso dos homicídios das pessoas em situação de rua, é possível tanto que o
Delegado se manifeste de ofício, como que a autoridade judiciária ou MP requisite a
instauração dos inquéritos policiais. Ainda, caso não haja a instauração do inquérito policial, o
MP pode oferecer Denúncia se houver indícios de autoria, afinal, a materialidade delitiva está
constatada com a morte da vítima.
Noutro giro, cabe observar que no Rio Grande do Norte, na pesquisa realizada por
Medeiros et al. (2022) entre o período de 01 de janeiro de 2016 a 31 de dezembro de 2020
foram identificadas 9.328 (nove mil trezentos e vinte e oito) mortes decorrentes de crimes
violentos letais intencionais, das quais 223 (duzentos e vinte e três) mortes tiveram nos
inquéritos policiais pedidos de arquivamento; desse dado, 129 (cento e vinte e nove)
arquivamentos decorreram de ausência de identificação de autoria.
Ou seja, no que se refere ao Rio Grande do Norte, a priori se tem a denegação da
instauração de inquérito policial quanto a morte de pessoas em situação de rua, e, a posteriori,
quando instaurados para investigar a morte da população em geral, se tem uma expressiva
quantidade de arquivamento dos inquéritos policiais por ausência de identificação de autoria.
Assim, por um lado fica cada vez mais evidente o descaso com a vida das pessoas em
situação de rua e, por outro, a ineficiência estrutural das investigações de mortes violentas no
Rio Grande do Norte.
Em síntese, o artigo 21 expõe: 1) Toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus
bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social; 2) Nenhuma pessoa pode ser
privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de
utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei; e 3)
Tanto a usura como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem devem ser
reprimidas pela lei (CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS , 1969).
Mascaro (2017) entende que na sociedade capitalista é próprio do trabalhador que vai
ser explorado, oferecer o seu trabalho em troca do salário. Continua, com ênfase que ambos
são tidos como sujeitos de direitos, formalmente iguais, com poderes para transacionar seus
direitos, sob o corolário da autonomia da vontade. Por isso, a propriedade privada é resultado
da acumulação primitiva e da exploração da força de trabalho do trabalhador.
Obviamente, a população em situação de rua não faz parte da classe social que detém
a propriedade privada. O próprio conceito estabelecido no ordenamento jurídico brasileiro
para fazer referência à população em situação de rua, no art. 1 do Decreto Presidencial nº
7.053, de 23 de dezembro de 2009, traz a “inexistência de moradia convencional regular”
(BRASIL, 2009, on-line).
Destarte, surgem as ocupações urbanas. Maia (2021a) discorre que no município de
Natal, Rio Grande do Norte, diante da transitoriedade e da incapacidade de abarcar a todos
nos abrigos temporários estruturados pela prefeitura com a Covid-19, famílias ocuparam o
Viaduto do Baldo, de modo que a prefeitura orquestrou um despejo violento, sem a
apresentação de alternativas de habitação para aquelas famílias. Ainda, é pertinente observar o
posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre despejos na pandemia, sendo
firmado entendimento da sua suspensão, por ora, até 31 de outubro de 2022, em sede de
Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 828
do Distrito Federal.
Aiexe (2019), aprofunda a discussão explanando que as desocupações forçadas
contra grupos vulneráveis, onde é possível incluir a população em situação de rua, se dá
também por especulação imobiliária ou intervenção urbana. Veja-se:
Em geral, sua presença é tolerada por décadas até que a área se torne valorizada e
passe a atrair interesses de setores econômicos ligados à especulação imobiliária ou
quando elege a área como de interesse para uma intervenção urbana: um viaduto,
uma praça, um alargamento de via, etc. É quando surgem as pressões para que sejam
retiradas dali, para darem espaço ao “desenvolvimento”, eufemismo para designar
que sejam mais transformadas em “vítimas do bem comum”. “Bem comum” que
deve ser entendido como bem dos que podem desfrutá-lo, o que pouco ou nada se
aplica a elas. Em rigor, quando se trata das intervenções que são destinadas a
37
promover bem-estar aos habitantes de uma cidade, não se tem em vista as pessoas
das classes marginalizadas, ou “subalternas”, que pouco desfrutam e raramente
desfrutarão do conforto e do bem-estar construídos pela coletividade. (AIEXE, 2019,
p. 181).
14
Foto tirada no dia 25 de abril de 2021, data em que Marcos Antônio Torres da Silva era a única pessoa em
situação de rua no Município de Taipu/RN. Na época, tanto a sociedade civil, como o poder público tinha
conhecimento da realidade de Marcos, no entanto, ele não possuía fisicamente Certidão de Nascimento,
Certidão de Registro Geral ou Cadastro de Pessoa Física, impossibilitando acessar serviços públicos e
requerer benefícios governamentais, como o Auxílio Emergencial, dependendo da solidariedade da
população para sobreviver.
39
"Mendigo não tem que votar. Ele não faz nada na vida. Ele não tem que tomar atitude
nenhuma. Aliás, eu acho que deveria até virar ração para peixe"15. Com essas palavras o então
Vereador José Paulo Carvalho de Oliveira (PT do B) se manifestou na 20º Sessão Ordinária da
Câmara Municipal de Piraí/RJ, ocorrida em 08/10/2013, a qual debateu os 25 anos da
CRFB/88.
A priori, tal fala merece completo repúdio por violar expressamente preceitos
basilares do ordenamento jurídico internacional, de direitos humanos, e, no ordenamento
pátrio, de direitos fundamentais, os quais reconhecem que pessoas em situação de rua são
sujeitos. E, mais que isso, são identidades humanas, detentoras de direitos e garantias
fundamentais, não podendo, jamais, terem suas vidas ceifadas e seus corpos reduzidos à ração
de peixe.
A posteriori, Bortoli (2016) explicita que, no Brasil atual, é comum associar a
cidadania ao direito de votar. Então, considerando os saberes formados e disseminados pelo
senso comum e as afirmações feitas pelo então Vereador José Paulo Carvalho de Oliveira (PT
do B), seriam as pessoas em situação de rua cidadãs?
Nas lições de Bonavides (2020), a Constituição Imperial de 1824 foi dominada pelas
sugestões constitucionais provenientes da França, sendo a única Constituição no mundo que
perfilhou a repartição de poderes de Montesquieu pela de Benjamin Constant. Diante disso,
foi criado o Poder Moderador, para além do Poder Executivo, do Poder Legislativo e do Poder
Judiciário.
Ainda considerando a Constituição Imperial de 1824:
15
PIRAÍ (RJ). 20° Sessão Ordinária do 2º Período. YouTube, 8 out. 2013. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=pGxVoubyfz8. Acesso em: 20 abr. 2022.
40
Ou seja, o voto era censitário, tendo direito a votar os homens livres, maiores de 25
(vinte e cinco) anos, e com renda anual de mais de 100 (cem) mil réis. Nessa lógica, eram
implicitamente excluídos do direito ao voto as mulheres, as pessoas em situação de rua e as
pessoas analfabetas.
O direito ao voto só fora alcançado pelas brasileiras e brasileiros na Constituição de
1946. Fernandes (2017) afirma que a Constituição de 1946 foi acompanhada pelo movimento
de redemocratização e de valorização dos direitos humanos não apenas no âmbito nacional,
mas também no cenário internacional, após a derrota do nazifascismo na 2ª Guerra Mundial.
Ato contínuo, o art. 14, caput, da CRFB/88 prevê expressamente que “A soberania
popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para
todos” (BRASIL, 1988, on-line). Neste estudo, no subcapítulo 2.3, já houve o entendimento
do direito ao voto se estender à população em situação de rua e já foram elencadas as
dificuldades para a efetivação desse direito por esse segmento populacional.
Construído o repertório brasileiro acerca do direito ao voto e feita a interligação com
a população em situação de rua, bem como considerando o entendimento repercutido no senso
comum de que o exercício da cidadania está ligado diretamente ao ato de votar, retorna-se a
questão ainda sem resposta: por vezes, impossibilitadas ou impedidas de votar, se identificam
as pessoas em situação de rua enquanto cidadãs?
rua, com o objetivo de propiciar o seu acesso ao mercado de trabalho (BRASIL, 2009,
on-line).
Lemos Junior e Freitas (2019) relembram tal previsão legislativa e afirmam que tais
ações governamentais, em prol de direitos trabalhistas para a população em situação de rua
devem ser imediatamente efetivadas. Caso não o seja, incorre em pena da sua concretização
ser requerida por meio de ação civil pública com pedido de indenização por dano moral
coletivo, a ser impetrada pelo Ministério Público do Trabalho.
Embora seja um caminho juridicamente correto, é imperioso destacar que na visão
dos juristas, na construção textual citada, o ajuizamento de uma ação, se mostra como
primeira e única alternativa. Isto posto, é preciso considerar o olhar limitado de tal defesa,
pois os efeitos de uma ação judicial são limitados ao pedido e ao que for deferido pelo Juízo,
podendo não suprir estruturalmente as necessidades de geração de trabalho e renda da
população em situação de rua, principalmente no que diz respeito à associação com outras
políticas públicas, proporcionando a real emancipação desses sujeitos.
Engels e Kautsky (2012) perseveram que as reivindicações jurídicas do proletariado
devem conter um elemento desestabilizador, perturbador da quietude do domínio da ideologia
jurídica - leia-se burguesa. Por analogia, tem-se a referência de que quando Engels analisa a
tradicional reivindicação jurídica do movimento sindical em favor de um salário justo, sugere
a substituição pela reivindicação da posse dos meios de produção pelos trabalhadores.
Assim, apenas acionar a tutela jurisdicional para assegurar direitos trabalhistas à
população em situação de rua parece não suprir questões estruturais. Sob outro prisma,
construir alternativas político-administrativas de pressão e efetivação da Política Nacional
para a População em Situação de Rua e de políticas públicas, bem como a conscientização dos
sujeitos em situação de rua dos direitos, a fim de que eles assumam o protagonismo
reivindicatório, parece ser um caminho mais concreto.
Mendes e Freitas (2021) trazem a narrativa de uma argentina que vive em situação de
rua em Canoa Quebrada/CE, a qual defende que seu estilo de vida é de resistência, pois apesar
do preconceito que sofre e das más condições de trabalho, insiste em seguir um modo de vida:
a contracultura. Ao mesmo tempo em que afirma viver na perspectiva da contracultura,
pondera que não é por completo, pelo fato de pagar impostos e colaborar com a máquina
capitalista quando compra coisas.
De fato, todos os sujeitos estão inseridos nessa logística. A pessoa em situação de rua
pode não necessariamente declarar o Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF), pagar o
Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) ou o Imposto sobre Propriedade de Veículo
42
Automotor (IPVA), categorias que afetam duramente à classe trabalhadora, mas com certeza a
população em situação de rua é afetada por outras formas de arrecadação.
Nessa linha de raciocínio, incide o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e
Serviços (ICMS) sobre qualquer tipo de compra, estando o imposto incluso no valor de cada
produto, além do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), presente, por exemplo, na
compra de cada carteira de cigarro ou de cada bebida alcoólica para consumo próprio, ou na
compra de águas, doces e salgados para revenda e geração de renda.
Resta evidente que a população em situação de rua não está isenta de maneira
alguma do pagamento de impostos no sistema capitalista. Assim, se para alguns a noção de
cidadania está vinculada a essa contraprestação, nada mais justo que a população em situação
de rua seja vista como é: cidadã!
Bortoli (2016) recolheu a informação verbal de uma mulher em situação de rua
questionada sobre ser cidadã:
Com certeza, eu voto. Não só pelo fato de votar. Até porque eu tenho direito por ser
cidadã a todas as assistências governamentais, como segurança pública e a saúde, até
porque a clínica da família vem aqui e tudo mais. Então, assim, a partir do momento
que eu tenho documentação e sou registrada aqui, eu acho que sou cidadã desse país.
Até porque pago imposto. (BORTOLI, 2016, p. 132)
Esse relato é riquíssimo para ratificar que está posto no senso comum da população
em situação de rua a associação entre o voto e o fato de ser cidadão. E, mais que isso, o acesso
à saúde pública entra em evidência.
Matos et al. (2020) ressaltam que o Consultório na Rua (CnaR), instituído pela
Portaria 122, de 25 de janeiro de 2011, do Ministério da Saúde (BRASIL, 2011, on-line), é
formado por uma equipe multiprofissional, que busca atender diferentes demandas de saúde
das pessoas em situação de rua, in loco, observada a adequabilidade dos procedimentos,
sendo, portanto, porta de entrada na atenção básica do SUS.
Todavia, é imperativo destacar as dificuldades de atuação do CnaR. Matos (2016, p.
106) identificou que os profissionais do CnaR em Natal/RN se sentiam "à margem do SUS”,
enfrentando os estigmas aos quais estão sujeitos às pessoas em situação de rua, buscando
construir com os demais profissionais de saúde a ideia de promoção de direito, em
contraponto à caridade, além da falta de insumos para o trabalho.
Somado a isso, após a criação do teto de gastos, por meio da Emenda Constitucional
nº 95, de 15 de dezembro de 2016, reflexo do Governo de Michel Temer, o SUS passou a ser
desfinanciado. É verdade que na pandemia da Covid-19 houve a potencialização dos
43
investimentos federais na saúde, mas em 2022 o orçamento voltou a cair, em que pese o
aumento da inflação.
Portanto, está posta uma questão estrutural entre o acesso à educação e a noção de cidadania
para as pessoas em situação de rua.
Por outro lado, a Cartilha “Conhecer para Lutar”, organizada pelo Movimento
Nacional da População de Rua (MNPR), construída com o propósito de formar e organizar
politicamente pessoas em situação de rua, assevera:
Toda pessoa que está em situação de rua é um cidadão! Portanto, seus direitos e
obrigações estão estabelecidos na Constituição Federal de 1988, independente da
cor, raça, religião ou condição social e econômica.
A Constituição em seu Artigo 5º diz que todos somos iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, não podendo ser violado o direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade. (MNPR, 2010, p. 11)
pessoa em situação de rua tem o direito constitucional à moradia negado; por outro viés, estar
“em situação de rua” revela um caráter situacional, transitório, temporário, o qual pode ser
modificado com acesso a políticas públicas estruturantes, em especial, de habitação e de
geração de trabalho e renda16.
À vista disso, constata-se que a existência e atuação do MNPR é uma importante via
para a conscientização dos seus direitos individuais e coletivos por parte das pessoas em
situação de rua. Por outro lado, Almeida (2015) analisa que o processo de organização
política da população em situação de rua exige fazer uma mediação com as condições
concretas de vida dessas pessoas. Afinal, no sistema capitalista, as condições de vida da classe
trabalhadora já são precarizadas no mundo do trabalho, mas, nos tempos de Crise do Capital,
tais dificuldades são potencializadas, dificultando o processo de organização política, mesmo
para aquelas pessoas que têm garantido o básico para subsistir, como comer, morar e vestir,
assim, para a população em situação de rua, que sequer tem acesso ao mínimo para existir, é
um desafio o engajamento no processo de discussão política.
Todavia, está se falando em dificuldades e desafios, não em impossibilidades.
Almeida (2015) defende que, diante desse cenário sensível, a mobilização para que as pessoas
passem a integrar o MNPR é um processo lento, haja vista a luta cotidiana e a naturalização
das violações constitucionais sofridas, leva ao não reconhecimento enquanto sujeitos de
direitos. Por isso, o despertar da consciência exige insistência e reflexão sobre essas
condições, a fim não só de engajar esses sujeitos na luta coletiva, mas principalmente
proporcionar que se identifiquem enquanto sujeitos de direitos e garantias fundamentais.
Ainda, Santos (2021) evidencia o silenciamento das memórias coletivas das pessoas
em situação de rua, com o objetivo perverso de apagamento tanto da história como da
existência individual e coletiva dessas pessoas. No contraponto, as lideranças do MNPR, no
Nordeste, põem em prática formas de resistência, a fim de manter a memória viva, em prol do
fortalecimento e da construção de uma identidade coletiva das lideranças do movimento
social.
Peloso (2009, p. 56 apud BEZERRA, 2014, p. 96) aponta para o fato de que a luta é
impulsionada pela exploração e dominação; ninguém está na luta porque gosta, mas sim
porque se vê obrigado pela necessidade; estar na luta é continuar vivendo e se reconhecendo
como gente.
16
Por esse motivo, ao longo de todo este estudo, foi feita a escolha política de usar as terminologias “pessoas
em situação de rua” e “população em situação de rua”.
46
“Os pobres da terra, durante séculos excluídos, marginalizados e dominados, têm caminhado
em silêncio e depressa no chão dessa longa noite de humilhação e proclamam, no gesto da
luta, da resistência, da ruptura, da desobediência, sua nova condição, seu caminho sem volta,
sua presença maltrapilha, mas digna, na cena da História.”
(José de Souza Martins, Caminhada no Chão da Noite: Emancipação Política e Libertação
nos Movimentos Sociais do Campo, 1989)
17
Foto tirada no dia 21 de junho de 2021, no Centro do Rio de Janeiro/RJ.
47
A sociedade civil é distinguida em três tipos por Santos (2005, p. 25), a íntima, a
estranha e a incivil. Assim, a sociedade civil íntima é composta por aqueles que gozam de um
elevado nível de inclusão, desfrutando do leque completo de direitos humanos, bem como
tendo uma íntima relação com o Estado, principalmente no que diz respeito a alcançar as
políticas públicas a que se tem direito.
Ato contínuo, a sociedade civil estranha é formada por aqueles que vivenciam um
misto de inclusão e exclusão social. Dessa forma, o acesso aos direitos humanos se dá na
esfera dos direitos civis e políticos, mas de maneira escassa aos direitos sociais e econômicos.
Desta feita, está posta uma relação estranha com o Estado.
Ainda, a sociedade civil incivil corresponde àqueles totalmente excluídos. Na prática,
os sujeitos que se encontram nesse grupo não têm acesso a quaisquer direitos humanos. Em
rigor, não pertencem à sociedade civil e, consequentemente, ao Estado.
Para Melo (2019, p. 53), a população em situação de rua se localiza no que
Boaventura de Sousa Santos denomina de sociedade civil incivil. Isso porque, a priori, se
trata de um grupo populacional cujos direitos humanos e fundamentais são completamente
negados e totalmente excluídos socialmente.
Em continuidade, o termo “cidadania” é amplamente utilizado na literatura jurídica,
mas não há uma demarcação de quem é cidadão e de quais são os atributos que lhe são
conferidos constitucionalmente. No que toca à população em situação de rua, o capítulo 3
deste estudo se dedicou, a partir da identidade humana e cidadã estampada em seus corpos, a
identificar os fatores que promovem a maior consciência de direitos individuais e coletivos
nas vivências das pessoas em situação de rua.
Leite (2017, p. 65) acredita que a concepção de cidadania está atrelada à participação
do povo nas instâncias decisórias, não simplesmente à capacidade eleitoral. O cidadão deve
ter atuação direta na democracia, com a
Nesse sentido, Maia (2021, p. 639) ressalta que as pessoas em situação de rua
ocupam espaços sociais e políticos via MNPR. A partir disso, são possíveis articulações e
representações dos interesses e necessidades das pessoas em situação de rua, por intermédio
do diálogo com os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Também, pelo fato de as
próprias pessoas em situação de rua estarem a frente dessas construções, são demarcadas as
particularidades em cada localidade no que diz respeito às bandeiras de luta do MNPR.
direitos humanos das pessoas em situação de rua, de acordo com a Política Nacional para
População em Situação de Rua (BRASIL, 2009, on-line).
No que tange o acesso à Justiça, a Resolução nº 40 do CNDH prevê que a população
em situação de rua tem direito ao amplo acesso aos órgãos do sistema de justiça e defesa dos
direitos, bem como o atendimento deve ser prioritário, desburocratizado e humanizado, sem
necessidade de agendamento; contar com equipe de atendimento multidisciplinar; a falta de
documento pessoal, ausência de comprovação de residência ou o tipo de vestimenta não
poderão ser utilizados para vedação ao atendimento desta população; entre outros pontos
(BRASIL, 2020, on-line).
Também, a Resolução nº 425, de 08 de outubro de 2021, do CNJ, institui no âmbito
do Poder Judiciário, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e
suas Interseccionalidades. Dentre os objetivos se tem o intuito de assegurar o amplo acesso à
Justiça às pessoas em situação de rua, de forma célere e simplificada, a fim de contribuir com
a superação de múltiplas vulnerabilidades econômica e social, bem como da sua situação de
precariedade e/ou ausência habitacional (CNJ, 2021, on-line).
Além disso, na Resolução nº 425 do CNJ são reforçados pontos já abordados na
Resolução nº 40 do CNDH. À vista disso, resta evidente que o Poder Judiciário brasileiro
reconhece a condição de vulnerabilidade para fins de acesso à Justiça por parte das pessoas
em situação de rua.
Tal reconhecimento é importante e acarreta a edição de atos normativos, porém, é
imprescindível analisar o quão recente é a publicação das resoluções supracitadas, frente a um
fenômeno histórico. Ademais, para além de tais previsões é preciso observar a sua efetivação.
Por esse ponto de vista, é inequívoco que é fundamental propor estratégias de
atuação efetivas em relação ao acesso à Justiça por parte das pessoas em situação de rua.
Assim, cabe atenção especial à atuação preambular da Defensoria Pública na forma de busca
ativa, estratégia já implementada pelos serviços socioassistenciais e de saúde previstos,
respectivamente, na PNAS e no SUS.
Almeida et al. (2019) reconhecem que para a Defensoria Pública implementar o
acesso à Justiça e a promoção de direitos humanos para pessoas em situação de rua é
necessário perceber as múltiplas vulnerabilidades (hipervulnerabilização) vivenciadas por
esse grupo e refletir sobre uma atuação estratégica para alcançar essas pessoas que estão à
margem do sistema de justiça, inclusive, em muitos casos, pela própria Defensoria Pública.
Afinal, se trata de um público tão vulnerável que o modelo tradicional de prestação de
assistência jurídica não os contempla.
52
Isto posto, se apresenta a alternativa da busca ativa. Oliveira (2019, p. 56) afirma não
ter encontrado durante a sua pesquisa nenhuma bibliografia nacional que abordasse o papel da
“busca ativa” no sistema de justiça. No entanto, Forell e Gray (2009 apud OLIVEIRA, 2019,
p. 59) alcançou o conceito de “busca ativa” como a assistência jurídica prestada fora do
escritório, para pessoas em situação de vulnerabilidade que tenham problemas legais.
Por mais nobre que seja a conceituação que se chegou o estudo de Oliveira sobre
busca ativa e assistência jurídica, cabe se debruçar sobre o que está implícito em na
terminologia “problemas legais”.
O início deste capítulo aborda a problemática sobre a porta de entrada das pessoas
em situação de rua na história brasileira ter sido “problemas legais”. Já é passada a hora do
sistema de justiça reconhecer essas pessoas enquanto sujeitos de direitos individuais e
coletivos, os quais podem acessar à justiça não apenas para resolver problemas, mas também
para pleitear direitos.
Dando prosseguimento, Almeida et al. (2019) expõem que o marco inicial da atuação
da Defensoria Pública no Brasil com a população em situação de rua foi a realização do
Seminário sobre direitos e garantias da população em situação de rua, realizado pelo Colégio
Nacional de Defensores Públicos-Gerais (CONDEGE) e pela Secretaria de Direitos Humanos
(SDH) do Governo Federal, em 2010, oportunidade em que Maria Lúcia Santos Pereira18,
liderança do MNPR da Bahia, fez importante relato sobre o Seminário:
18
O webdocumentário “Filha da Rua” (2004) demonstra que Maria Lúcia Santos Pereira ficou órfã dos pais aos
3 anos de idade e passou a morar em Salvador com 2 mulheres, as quais faleceram quando Maria Lúcia tinha
15 anos de idade. Então, foi encaminhada para o Juizado de Menores e, devido às violências institucionais,
em dada oportunidade, fugiu para as ruas. Nas ruas foi apresentada ao álcool e às drogas, e quando desejou,
buscou ajuda, foi amparada e fez efetivo tratamento. Durante a sua trajetória nas ruas se viu intermediando
injustiças promovidas pelos serviços públicos e agentes de segurança pública, até amadurecer criticamente a
necessidade de organização política da população em situação de rua, sendo fundadora do MNPR e liderança
reconhecida nacional e internacionalmente. Aos 51 anos Maria Lúcia faleceu em 2018, deixando um legado
de luta e resistência.
53
Noutro giro, no que toca em uma das questões centrais desta pesquisa, o Relatório de
Atividades sobre a implementação da Resolução nº 425 do CNJ traz como problemas
detectados a ausência de documentos de identificação pessoal, derivada da falta de acesso à
emissão dos documentos, perda, furto, retirada compulsória etc (CNJ, 2022a).
Tal fato impacta diretamente na possibilidade da propositura de ações judiciais por
parte das pessoas em situação de rua no pleito de direitos individuais e coletivos, uma vez que
os sistemas de protocolo de processos eletrônicos exigem o registro de dados como RG, CPF
e comprovante de residência.
Como alternativa, o art. 8º, VII, VIII e IX, da Resolução nº 425 do CNJ dispõe:
19
O print foi feito pela autora para demonstrar que o cadastro de demandas no PJe 2.x possibilita a indicação de
processo que tenha como parte pessoa em situação de rua.
55
20
Imagem retirada do Trilhas de Acesso à Justiça (CNJ, 2022b).
56
Por óbvio, é uma política extremamente recente e que ainda está sendo
implementada. Nesse sentido, os atores e atrizes envolvidos na sua implementação certamente
irão se deparar com desafios e incongruências, os quais fazem parte das singularidades das
vivências das pessoas em situação de rua.
Antecipadamente, a crítica gira em torno do fato de mesmo com o olhar do Poder
Judiciário estando voltado às demandas das pessoas em situação de rua, ainda continua sendo
indispensável a documentação civil para a propositura de ações judiciais, logo, ainda está
posta a burocratização.
Do modo que a Resolução nº 425 do CNJ está prevista, na ausência de documentação
civil por pessoas em situação de rua, deve ser diligenciada, com prioridade, a sua confecção
(CNJ, 2021, on-line). A partir do norte da implicação empírica e do acesso a fontes
bibliográficas e documentais, um caminho possível seria acessar dados já existentes sobre a
pessoa em situação de rua do caso concreto que busque o Poder Judiciário, e garantir de fato o
acesso à Justiça.
O subcapítulo 3.1 deste trabalho discorre sobre a existência e atuação in loco do
CnaR desde 2011 no Brasil, também, vale pontuar que com a pandemia da Covid-19, as
pessoas em situação de rua foram eleitas como prioritárias para recebimento da vacinação
(BRASIL, 2021, on-line). Tanto para o atendimento in loco, como para a vacinação, são
necessários registros21; ou seja, os dados coletados pela saúde pública podem ser aliados para
efetivar o acesso à Justiça para as pessoas em situação de rua.
21
[...] o atendimento às pessoas em situação de rua deve ser realizado, independente delas possuírem o Cartão
SUS ou comprovante de residência, assim a vacinação da população em situação de rua, não pode ser negada
por motivo de falta de documentação, deve-se aplicar a primeira dose, em paralelo se faz necessário
providenciar a documentação do cidadão (BRASIL, 2021, p. 1).
57
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
“(...) As leis não bastam. Os lírios não nascem das leis. (...)”
(Carlos Drummond de Andrade, Nosso Tempo, 1940)
22
Foto tirada no dia 06 de abril de 2021, na Avenida Prudente de Morais em Natal/RN, durante uma ação do
MNPR/RN, onde foram entregues alimentações e kits de higiene para as pessoas em situação de rua
encontradas pelas ruas da cidade, considerando o ápice da pandemia da Covid-19 e ausência de serviços
públicos que contemplasse a todos os sujeitos em situação de rua no município de Natal/RN.
58
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