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ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


ESCOLA MULTICAMPI DE CIÊNCIAS MÉDICAS
PROGRAMA DE RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM ATENÇÃO BÁSICA

MARCELLA MOARA MEDEIROS DANTAS

RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL E VIVÊNCIAS NO QUILOMBO: UM


RELATO DE EXPERIÊNCIA.

CURRAIS NOVOS/RN

2020
MARCELLA MOARA MEDEIROS DANTAS

RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL E VIVÊNCIAS NO QUILOMBO: UM


RELATO DE EXPERIÊNCIA.

Trabalho de conclusão da Residência


Multiprofissional em Atenção Básica,
apresentado à Escola Multicampi de
Ciências Médicas da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte como requisito
parcial para obtenção do título de
especialista em Atenção Básica, sob a
orientação da Profa. Dra. Raquel Littério de
Bastos.

CURRAIS NOVOS/RN

2020
É tempo de caminhar em fingido silêncio,
e buscar o momento certo do grito,
aparentar fechar um olho evitando o cisco
e abrir escancaradamente o outro.

É tempo de fazer os ouvidos moucos


para os vazios lero-leros,
e cuidar dos passos assuntando as vias
ir se vigiando atento, que o buraco é fundo.

É tempo de ninguém se soltar de ninguém,


mas olhar fundo na palma aberta
a alma de quem lhe oferece o gesto.
O laçar de mãos não pode ser algema
e sim acertada tática, necessário esquema.

É tempo de formar novos quilombos,


em qualquer lugar que estejamos,
e que venham os dias futuros, salve 2020,
a mística quilombola persiste afirmando:
“a liberdade é uma luta constante”.

(Conceição Evaristo)
SIGLÁRIO

COEPPIR - Coordenadoria Estadual de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais


Quilombolas

CRAS - Centro de Referência de Assistência Social

DSS – Determinantes Sociais da Saúde

EBMSP - Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

EMCM – Escola Multicampi de Ciências Médicas

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

OMS – Organização Mundial da Saúde

ONU – Organização das Nações Unidas

PBF – Programa Bolsa Família

PNEPS SUS – Política Nacional de Educação Popular em Saúde

PRMAB – Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Básica

RN – Rio Grande do Norte

SESAP – Secretaria de Estado da Saúde Pública

SIEC - Subcoordenadoria de Informação, Educação e Comunicação

SUS – Sistema Único de Saúde

TCR – Trabalho de Conclusão da Residência

UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte


RESUMO

Este texto objetivou produzir um relato de experiência a partir da participação da


Residência Multiprofissional em Atenção Básica da Escola Multicampi de Ciências
Médica (EMCM) em vivências no quilombo, as quais aconteceram em dois momentos
durante os meses de Novembro e Dezembro de 2019. No primeiro momento, ocorreu a
imersão dos residentes na Comunidade Quilombola Negros do Riacho, localizada no
Município de Currais Novos/RN e no segundo momento houve a participação do
programa no I Estágio de Vivência no Quilombo Rio dos Macacos, realizado na cidade
de Salvador/BA, promovido pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP),
destinado a estudantes e profissionais da saúde de todas as instituições de ensino superior
do Brasil. Durante as vivências com a população quilombola foram utilizadas técnicas de
observação como o caderno de notas e diário de campo. Além disso, como estratégia
metodológica, realizou-se revisão bibliográfica de autores que retratam a historicidade e
o cotidiano de comunidades quilombolas, que compreendem a saúde em sua totalidade,
considerando seus determinantes sociais, bem como análise documental de boletins
epidemiológicos em quilombos referente à COVID-19, dados da Fundação Cultural
Palmares referente à certificação de comunidades quilombolas no RN e dados do
Ministério da Cidadania em relação às famílias quilombolas inseridas no Cadastro Único.
A aproximação do Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Básica
(PRMAB) com as necessidades de saúde de comunidades negras rurais fortalece o
compromisso político das residências em defesa do SUS, enquanto direito social e que
possui como princípios doutrinários a equidade, integralidade e universalidade. O produto
final da pesquisa é este relato de experiência com estrutura do texto de acordo com as
exigências de um trabalho científico.

PALAVRAS-CHAVE: Vivências, Quilombo, Residência Multiprofissional.


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 7
2. DA RESIDÊNCIA AO QUILOMBO: UM DIA DE VIVÊNCIA NA
COMUNIDADE NEGROS DO RIACHO/RN.................................................. 10
3. “A LIBERDADE É UMA LUTA CONSTANTE”: I ESTÁGIO DE VIVÊNCIA
NO QUILOMBO RIO DOS MACACOS/BA................................................... 14
4. NECROPOLÍTICA E POPULAÇÃO NEGRA EM TEMPOS DE
PANDEMIA........................................................................................................20
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 23
6. REFERÊNCIAS ................................................................................................ 25
7. APÊNDICE ....................................................................................................... 27
7

1. INTRODUÇÃO

As comunidades quilombolas se configuram como um dos povos tradicionais


existentes no Brasil, assim como os ribeirinhos, os povos indígenas, os povos ciganos, as
comunidades tradicionais de matriz africana, os pescadores artesanais, entre outros.
Conforme a cartilha sobre os direitos dos povos e comunidades tradicionais (Costa Filho;
Vianna Mendes, 2013), esses grupos contribuem para a preservação da memória,
patrimônio cultural e dos saberes populares do país, por isso, seus direitos devem ser
assegurados e reconhecidos pelas autoridades. Nas palavras dos autores:

Os membros de um povo ou comunidade tradicional têm modos de ser,


fazer e viver distintos dos da sociedade em geral, o que faz com que
esses grupos se autorreconheçam como portadores de identidades e
direitos próprios. (COSTA FILHO; VIANNA MENDES, 2013, p. 12).

Buscando fortalecer a inclusão, a troca de experiências, promover a equidade e o


acesso à direitos básicos para esses grupos populacionais, o Programa de Residência
Multiprofissional em Atenção Básica da UFRN/EMCM tem se aproximado da realidade
sociocultural do quilombo, a partir de vivências intersetoriais e da participação no I
estágio em comunidade no Quilombo Rio dos Macacos, promovido pela Escola Bahiana
de Medicina e Saúde Pública (EBMSP), através do programa de extensão Bahiana em
Defesa da Vida, realizado em Dezembro de 2019 na cidade de Salvador/BA.

Conforme Falcão (2014), o estágio de vivência em comunidades busca oferecer


um elo entre academia e as comunidades populares que enfrentam negação de direitos
constitucionais, promovendo saúde através de três eixos fundamentais: ensino, pesquisa
e extensão. Possui compromisso pedagógico na perspectiva da educação popular, fator
que possibilita, durante a vivência do estágio, um espaço de troca de saberes entre
estudantes, viventes, professores, profissionais em saúde e usuários/as da comunidade.
Nesse sentido, vivências no quilombo possibilitam a compreensão das reais necessidades
de saúde da comunidade, compreendendo a saúde em sua totalidade, não a partir da
ausência de doença, já que há o contato direto com o cotidiano, a história, a cultura e
crenças da população.

A nível regional, Currais Novos é um Município de pequeno porte, localizado na


região do Seridó do Rio Grande do Norte, apresenta, segundo dados do CENSO de 2010,
uma população de 42.652 habitantes distribuídos numa área de 864 km² (IBGE, 2010).
Currais Novos, conhecida como princesa do Seridó, é um dos cenários de prática do
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Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Básica (PRMAB) da Escola


Multicampi de Ciências Médicas (EMCM) e também é uma das cidades do Rio Grande
do Norte que possuem em sua área de abrangência uma comunidade quilombola,
conhecida como Negros do Riacho. Conforme dados do site da Fundação Cultural
Palmares, há 33 comunidades quilombolas certificadas e distribuídas no RN
(PALMARES, 2020).

É nesse cenário da região potiguar que o PRMAB vem realizando, desde o ano de
2016, um trabalho de promoção e prevenção à saúde na atenção básica da cidade de
Currais Novos/RN. A aproximação do programa de residência com as necessidades de
saúde do quilombo Rio dos Macacos/BA, através da participação no estágio de vivência
em comunidade e do quilombo Negros do Riacho/RN, à nível regional, através de
participação em ação intersetorial, fortalece o papel político do programa de residência
na defesa do SUS, o qual tem como princípios a equidade, integralidade e universalidade.

Nessa perspectiva, o presente trabalho objetivou produzir um relato de experiência


a partir da minha participação em vivências com a população quilombola, enquanto
Assistente Social, por meio do PRMAB. As vivências aconteceram em dois momentos:
através de um dia de imersão na Comunidade Negros do Riacho/RN e através da
participação no I estágio de vivência no Quilombo Rio dos Macacos/BA. Ambas as
vivências aconteceram durante os meses de Novembro e Dezembro de 2019,
respectivamente. É importante ressaltar que a viabilização e defesa do acesso aos direitos
da população quilombola é compromisso de pauta de atuação profissional do Assistente
Social, conforme Campanha de Gestão do CFESS-CRESS 2017-2020 – “Assistentes
Sociais no combate ao racisco”. Além disso, a defesa intransigente dos direitos humanos
e o empenho na elimentação de todas as formas de preconceito são princípios
fundamentais do código de ética desse profissional, motivos que somaram na escolha do
objetivo de pesquisa.

A Política Nacional de Saúde à População Negra é um marco histórico no que se


refere à conquista de direitos, bem como a Lei N° 8.080/90 que tem como um dos
princípios a “igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de
qualquer espécie”. Nesse sentido, a temática traz reflexão sobre a questão da igualdade e
equidade no sistema de serviços de saúde para a população negra das comunidades
quilombolas, além de contribuir com a desconstrução do racismo estrutural, ainda tão
9

presente na sociedade e nas instituições. Amparados nas legislações e na soma de esforços


coletivos, deve-se buscar melhorias e visibilidades na tentativa de minimizar situações de
agravos e riscos por meio de políticas públicas afirmativas.

A abordagem do relato deu-se a partir da minha vivência nos quilombos, por meio
do programa de residência multiprofissional, reconhecendo que meu lugar de fala não é
capaz de representar por meio da escrita a vivência destes grupos, pois meu olhar está
permeado pelos privilégios dos brancos. Nesse sentido, minha tarefa é tecer reflexões
sobre este lugar que é ao mesmo tempo incômodo e fecundo para o aprendizado da
alteridade.

O relato de experiência justifica-se pela necessidade de conhecermos o cotidiano


de comunidades quilombolas e suas reais condições de saúde, sobretudo, no território
onde o PRMAB está inserido. Apesar de avanços na perspectiva de direitos e inclusão
social para a população negra, ainda é notório a reprodução do racismo traduzido em
violação de direitos humanos e desigualdades sociais no acesso às políticas públicas para
as comunidades negras rurais. Povos que historicamente vivenciam negação de acesso à
condições mínimas de subsistência, como o acesso à água potável e energia elétrica, por
exemplo, entre outros direitos que caminham a passos lentos para as comunidades
quilombolas, os quais serão melhor retratados no decorrer desse trabalho.

Como metodologia para a realização desta produção, foram utilizadas técnicas de


observação como o caderno de notas e o diário de campo. Para que o trabalho se configure
como uma ferramenta de alinhamento teórico, foi realizada pesquisa bibliográfica de
autores que retratam a historicidade e o cotidiano de comunidades quilombolas, que
compreendem a saúde em sua totalidade, considerando seus determinantes sociais e
também, foi realizado análise documental de boletins epidemiológicos em relação à
COVID-19 e a população quilombola no Brasil.

O presente relato estará estruturado em quatro capítulos. O primeiro corresponde


a parte introdutória, que contém os objetivos da pesquisa, as estratégias metodológicas e
uma apresentação geral dos capítulos seguintes. No segundo capítulo será abordado a
experiência da residência multiprofissional com a comunidade quilombola Negros do
Riacho, localizada em Currais Novos/RN, território de prática do PRMAB. O terceiro
capítulo retrata as experiências vivenciadas no I Estágio de Vivência no Quilombo Rio
dos Macacos, realizado em Dezembro de 2019, na cidade de Salvador/BA. No quarto
10

capítulo será analisado o contexto atual de pandemia causada pelo novo coronavírus
(Sars-Cov-2) e sua relação com as implicações da necropolítica para as comunidades
negras rurais.

Por fim, teceremos algumas considerações finais a respeito das experiências


vivenciadas com a população quilombola, bem como a importância do Programa de
Residência Multiprofissional em Atenção Básica da UFRN/EMCM no compromisso
político contra o racismo estrutural, que é um fator de adoecimento e na mediação da
assistência à saúde para grupos populacionais em situação de vulnerabilidade social.

2. DA RESIDÊNCIA AO QUILOMBO: UM DIA DE VIVÊNCIA NA


COMUNIDADE NEGROS DO RIACHO/RN.

“Lutas externas e internas


de um grupo negro
que procura sobreviver,
ilhado em um mundo rural branco”.
(Nassaro Nasser)

A primeira vivência com povos quilombolas, por meio do Programa de Residência


Multiprofissional em Atenção Básica, aconteceu em Novembro de 2019 com a
comunidade Negros do Riacho, localizada em Currais Novos/RN. Foi um dia de imersão
na comunidade, desenvolvendo ações intersetoriais em parceria com o Município e com
o Governo do Estado, através do projeto de democratização do cinema para comunidades
negras rurais, evento conhecido como Cinequidade.

Conforme Assunção (2009), os Negros do Riacho são descentes de um ex escravo


que ocupou essas terras após ter sido alforriado e lá construiu sua família, conhecido como
Trajano Lopes da Silva. A comunidade negra constitui um dos quilombos que estão
inseridos no território norte-riograndense e fica localizado à 12 km da cidade de Currais
Novos/RN.

Nas terras do Riacho, são praticadas algumas atividades econômicas como


agricultura de subsistência, produção de algodão, de carvão e produção de “louça”
(Assunção, 2009). Veremos que todas essas atividades encontram desafios para a sua
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manutenção, tornando a vulnerabilidade socioeconômica um dos maiores desafios


enfrentados por essas famílias.

Conforme Relatórios de Informações Sociais do Ministério da Cidadania, com


dados referentes ao mês de fevereiro de 2020, o Município de Currais Novos possui 56
famílias quilombolas cadastradas na base de dados do Cadastro Único do Governo
Federal. Das 56 famílias cadastradas, 45 recebem a transferência de renda do Programa
Bolsa Família – PBF, o qual se configura como um dos principais instrumentos de direitos
para o quilombo (BRASIL, 2020). O que deveria ser um complemento financeiro, passa
a ser a principal renda familiar, já que muitos quilombolas não possuem renda fixa.

Uma das atividades econômicas característica da região é a agricultura de


subsistência. Porém, como o seridó possui um clima muito quente e semiárido, viver
totalmente da agricultura é basicamente impossível para esse grupo social, se tornando
um desafio. O clima é seco, com escassez de chuvas, característico do Nordeste, fatores
que contribuem com a pobreza e a fome da comunidade. Conforme Assunção (2009), “a
prática da agricultura é uma atividade que sempre esteve presente na vida dessa gente,
embora em épocas de seca, ela seja pouco praticada”. (p. 78).

Outra atividade culturalmente praticada pelos quilombolas de Currais Novos é a


produção artesanal da “louça”. Às margens da BR 220, existe uma grande panela de barro
que sinaliza a entrada para as terras dos Negros do Riacho. Percebe-se que a produção
artesanal é um forte instrumento de caracterização dessa população.

A ‘louça’ já faz parte da história e da própria vida dessas pessoas. Desde


os antigos que se trabalha no barro, os mais moços vão ajudando e
aprendendo com os mais velhos. [...] Antigamente, os homens também
faziam, trabalhavam também no barro, porém este sempre foi um
trabalho realizado muito mais pelas mulheres. (ASSUNÇÃO, 2009, p.
65).

Os desafios que se apresentam no cotidiano da comunidade para a reprodução da


atividade econômica são muitos. Desde a falta de recursos à desvalorização do artesanato
e da mão de obra, tornando com que a produção da louça não dê conta de abarcar com
todas as necessidades financeiras das famílias do quilombo. Segundo Assunção (2009),
“a ‘louça’ é levada à feira semanal de Currais Novos, todas as segundas-feiras, no
12

caminhão que faz a linha, pagando-se por pote e mais a passagem, ou aluga-se um burro
ou então se vai a pé com o pote na cabeça”. (p. 71).

Cientes de que as vulnerabilidades sociais interferem diretamente na codição de


saúde da população, visando mediar o direito a saúde e promover equidade, enquanto um
dos princípios do Sistema Único de Saúde, o Programa de Residência Multiprofissional
em Atenção Básica da Escola Multicampi de Ciências Médicas (EMCM) realiza um dia
de imersão na Comunidade Negros do Riacho, localizada no Município de Currais Novos,
a partir da ação intersetorial do Cinequidade, objetivando o fortalecimento de vínculos
comunitários, a promoção de saúde e a troca de experiências entre os profissionais
residentes e a comunidade quilombola.

O Cinequidade é um projeto do Governo do Estado, realizado pela Secretaria de


Estado da Saúde Pública (SESAP), por meio da Subcoordenadoria de Informação,
Educação e Comunicação (SIEC), em parceria com a Coordenadoria Estadual de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial (COEPPIR) e visa contribuir para a democratização do
acesso do cinema para as populações quilombolas rurais, no interior do estado do Rio
Grande do Norte, por meio da exibição de documentários, curtas e filmes que favorecem
a reflexão dos envolvidos, abordando a temática da consciência negra.
Como uma oportunidade de aproximação do programa de residência, afim de
conhecer as necessidades de saúde do quilombo, dar suporte aos grupos mais vulneráveis
socialmente e mediar o acesso às políticas públicas, a residência se insere na programação
do Cinequidade promovendo um dia de imersão para os Residentes Multiprofissionais na
Comunidade Quilombola do Seridó.
A imersão ou vivência na comunidade aconteceu em três momentos, durante o
mês de Novembro de 2019. No primeiro momento, que aconteceu no turno matutino, foi
realizado uma roda de conversa entre os residentes multiprofissionais e um dos líderes
comunitários da comunidade, momento que possibilitou conhecer o processo sócio
histórico do quilombo, suas lideranças, associações e organizações políticas, por meio de
diálogos e conversas sobre as dificuldades, limitações e potencialidades da comunidade.
No segundo momento, que ocorreu no turno vespertino, houve uma roda de conversa com
as mulheres e crianças quilombolas em relação a temática da violência contra a mulher,
realizada pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) do município, como
uma das ações da semana de enfrentamento a violência contra a mulher, possibilitando
um espaço de diálogo e conhecimento.
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O terceiro momento da imersão da residência na comunidade Negros do Riacho


aconteceu no turno noturno do mesmo dia e culminou com a exposição do filme “O
menino que inventou o vento”, como ação programada do Cinequidade. Após a exibição
do filme foi realizada uma roda de conversa para discussão da temática e relação do filme
com as vivências e lutas cotidianas enfrentadas pelos povos do Riacho, possibilitando
reflexão crítica e protagonismo dos envolvidos.
Na ocasião da exposição do filme, percebemos em vários momentos como o filme
refletia o dia-dia do quilombo. As crianças trocavam olhares se identificando com
algumas cenas, como quando um dos personagens principais tomava banho de “cunha”
antes de ir para a escola, que era localizada em região distante da sua residência.
Por muito tempo os negros do riacho não tiveram acesso a água encanada.
Segundo Assunção (2009), só em 2005, que a comunidade teve acesso a direitos básicos,
através de parceria da Prefeitura Municipal da cidade com o Governo do Estado, a
exemplo da instalação de um dessalinizador para produção de água potável e emissão de
documentos, como a Carteira de Identidade (RG).
Percebemos que o acesso à direitos básicos como a água potável é de longe uma
realidade das comunidades negras rurais, que só passaram a ter acesso a água encanada
após um longo processo de lutas e reivindicações. Nesse sentido, a negação de direitos
básicos pode se caracterizar como uma das implicações do racismo estrutural,
evidenciado nas dificuldades cotidianas que os povos do Riacho historicamente
enfrentam por melhores condições de vida e reconhecimento social.
O PRMAB tem um papel fundamental na mediação de direitos e na assistência à
saúde para grupos populacionais em situação de vulnerabilidade social, especificamente
para a comunidade quilombola, localizada na região do Seridó. É necessário que haja um
trabalho de extensão, para além de ações intersetoriais e pontuais, fortalecendo a
integração do ensino, serviço e comunidade, bem como o cuidado continuado.
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3. “A LIBERDADE É UMA LUTA CONSTANTE”: I ESTÁGIO DE


VIVÊNCIA NO QUILOMBO RIO DOS MACACOS/BA.

“Queremos que as autoridades entendam


que o negro precisa ser verdadeiramente livre
e liberdade para nós
é viver em nossa terra”.
(Quilombola)

O I Estágio de Vivência no Quilombo Rio dos Macacos aconteceu no mês de


Dezembro de 2019, na cidade de Salvador/BA e contou com a participação de 15
estudantes e profissionais da saúde, além de professores e extensionistas do Programa
Bahiana em Defesa da Vida da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP).
O Quilombo Rio dos Macacos fica localizado em Simões Filho, região metropolitana de
Salvador. A história é marcada pela luta e resistência travada com a Marinha do Brasil,
por uma série de humilhações, negação de direitos básicos e violências sofridas em defesa
da demarcação do território e pelo direito à dignidade.

Tomei conhecimento do I Estágio de Vivência no Quilombo por meio da


coordenação do PRMAB, que socializou com os residentes essa experiência de vivência
no SUS. A seleção para o estágio na comunidade do Quilombo Rio dos Macacos/BA
aconteceu em duas etapas. Na primeira fase elaboramos uma carta de intenção e enviamos
ao programa de extensão Bahiana em Defesa da Vida e a segunda fase ocorreu por meio
de entrevista, no meu caso, aconteceu de forma remota, por meio de chamada de vídeo.
Em seguida fui aprovada, e participei da vivência representando o Programa de
Residência da UFRN/EMCM.

O objetivo do programa de extensão Bahiana em Defesa da Vida, da Escola


Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP) visa promover o empoderamento de
comunidades em situações de vulnerabilidade social e o engajamento de discentes e
docentes na luta em defesa do direito humano à saúde e a vida. No I estágio de vivência
que aconteceu entre os dias 7 à 15 de dezembro, tive a oportunidade de conhecer a história
de vida do quilombo, criar vínculos e construir, junto com a comunidade, os
extensionistas e viventes, uma fossa ecológica, também conhecida como fossa verde ou
15

BET - bacia de evapotranspiração, como primeira iniciativa de saneamento básico e


promoção do direito à saúde para essas famílias.

Logo pós a divulgação dos viventes aprovados para participar do estágio de


vivência no quilombo, o programa publicou em sua página do instagram
(bahianaemdefesadavida) uma nota de pesar em relação ao assassinato de um dos líderes
do quilombo, faltando apenas uma semana para o início do estágio na comunidade. Fiquei
preocupada e triste com a notícia, imaginando como a luta por direitos humanos perpassa
pela negação de liberdades e até pelo derramamento de sangue. Refleti sobre a relação do
nome do programa (Bahiana em defesa da vida) com o objetivo da vivência. Após o
ocorrido, a coordenação manifestou a viabilidade do estágio e no dia seguinte me vi
arrumando as malas para embarcar nessa viagem.

Ao chegar em Salvador, uma das extensionistas do programa já me aguardava.


Ela foi minha anfitriã pelos próximos dias, me ofereceu hospedagem em sua residência,
tudo estava dando muito certo. Minha primeira impressão, durante o caminho, foi que
Salvador era um pequeno reflexo do país. As desigualdades sociais estavam estampadas,
vi muitas pessoas em situação de rua, saindo do metrô, vi ambulantes de mercadorias, que
aqui no Rio Grande do Norte nós chamamos de feirantes, trabalhadores autônomos, sem
vínculo formal empregatício, vendendo pilhas, relógios, óculos, roupas e acessórios em
geral. No caminho para a casa da minha colega, eu via pequenas casas amontoadas, com
infra estrutura comprometidas, todas com fachadas semelhantes, formando um grande
morro. Do lado direito, vi prédios, empresas e clubes com estrutura de ponta. Pensei em
Salvador como reflexo do país nesse sentido; riqueza e desigualdades no mesmo espaço
geográfico, porém, ocupando singularidades e particularidades totalmente opostas.

A vivência esteve dividida em 3 momentos: pré-vivência, reflexão sobre a


formação social brasileira, a conjuntura nacional e local, dinâmicas de interação e
pactuação inicial de convivência. Seria o momento de preparação dos viventes para o
estágio na comunidade), vivência (dia-dia com a comunidade quilombola, vivenciando
os desafios cotidianos da comunidade, construção da fossa verde, participando da cultura
e dos costumes) e pós-vivência (momento de diálogos e avaliação entre a equipe do
estágio de vivência, construindo possibilidades e desdobramentos para novas ações do
programa Bahiana em Defesa da Vida da EBMSP).
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Tendo em vista que a construção da fossa ecológica precisaria de muita mão de


obra e tempo, no primeiro dia fomos ao quilombo e juntos com integrantes da comunidade
colocamos a “mão na massa”. Imersos no cotidiano do quilombo começamos os primeiros
passos para a construção do que mais na frente chamaríamos de fossa verde, também
conhecida como BET – bacia de evapotranspiração. Cavamos buracos, carregamos
massa, tijolos, arejamos a terra, limpamos o terreno para a construção da fossa. A
Engenheira Civil e Bioconstrutora com especialização em sistemas de instalações prediais
da equipe, nos deu as orientações necessárias para a construção da fossa, visando causar
um menor impacto negativo para o meio ambiente.

Eu não fazia ideia do que era uma fosse verde e como ela poderia contribuir para
a comunidade e para o meio ambiente. A engenheira nos explicou que a BET é um sistema
ecológico de tratamento de esgoto doméstico, as águas provenientes do vaso sanitário
iriam nutrir a fossa que, após concluída, seria coberta por um jardim. Entender sobre como
a construção civil poderia ser elaborada visando um menor impacto ao meio ambiente e
mais ainda, sobre como o esgoto doméstico (fezes, urina) pode servir de adubo para
plantação de bananas, por exemplo, era novo para mim. O que eu ouvia nos eixos teóricos
do PRMAB sobre fazer saúde a partir das reais necessidades da comunidade, com a
construção da fossa verde fez muito sentido. Estávamos promovendo saúde em sua
condição social e ambiente, a partir das necessidades de vida e de saúde do quilombo,
tendo em vista que nenhuma das casas da comunidade rural possuía esgotamento sanitário
adequado, inclusive em um dos diálogos durante a vivência foi relatado que moradores
do quilombo já haviam morrido por causa de doenças provocadas por vermes.

O estágio na comunidade nos possibilitou vivenciar a troca de experiências,


reconhecendo o trabalho coletivo para a construção da fossa verde como um espaço de
atuação interdisciplinar. Não havia aprendido como arejar a terra na graduação, mas
aprendi que o saneamento básico interfere diretamente na condição de saúde da
população. Ao passo que a fossa verde ia sendo construída, a vivência estava despertando
em mim habilidades críticas reflexivas necessárias para o trabalho em comunidades no
SUS.

Ao todo éramos 25 profissionais e estudantes da área da saúde, fomos divididos


em 5 grupos de 5 pessoas. Durante a vivência no quilombo, cada grupo ficava responsável
por uma tarefa e acontecia rodízio das atividades que estavam sendo desenvolvidas. O
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trabalho organizado e a atribuição das atividades ajudaram para que a nossa experiência
fosse mais bem aproveitada e para que a construção da fossa ocorresse no tempo
determinado. Estudantes de Psicologia, residentes multiprofissionais em saúde,
profissional de Nutrição, estudantes de Medicina, profissional de Engenheira, professores
universitários, estudante de Serviço Social... em muito aquela equipe se assemelhou a
equipe multiprofissional a qual trabalho no Programa de Residência da UFRN/EMCM.

Descascando as batatas para o almoço, conversando com uma das moradoras, ela
falou que nasceu e se criou no quilombo e que muita coisa do que precisavam para se
alimentar encontravam ali, na natureza. Foi lá que provei a fruta Cacau, principal matéria-
prima do chocolate. Lembro de uma manhã na vivência que estávamos cavando o buraco
na terra para colocar o cano, por onde o esgoto iria passar e vi a felicidade estampada no
semblante de um dos moradores, ele falava “que bom que vocês estão construindo história
no quilombo, Quilombo Rio dos Macacos”. Se a construção da fossa era importante para
o programa Bahiana em Defesa da Vida, muito mais para a comunidade, que há décadas
possui histórico de negligência, negação de direitos básicos, descaso por parte das
autoridades e poderes públicos e violação de direitos humanos por parte da Força Naval
brasileira.

Imersos no cotidiano de vida do quilombo, tivemos a oportunidade de conhecer


as lutas que se travavam naquele território por melhores condições de vida e por
dignidade. Havia as orientações da engenheira da equipe, mas também havia a troca de
experiência com os saberes daqueles homens e mulheres, que construíram suas próprias
casas. Saber científico e saber popular, ambos se materializam na construção da fossa
ecológica, que se concretizava ao passar dos dias.

Durante o momento de territorialização, tivemos a oportunidade de conhecer


outros moradores e lugares do quilombo. Histórias de luta e resistência, contadas por
pessoas que viveram experiências de dor e injustiça social. A territorialização começou
com uma das moradoras nos mostrando um pouco das plantas medicinais e ervas que eles
utilizam para tratamento de adoecimentos, feridas e doenças que surgem no quilombo.
Lembro de ter perguntado se eles usavam remédios e uma das senhoras informou que
tudo que eles precisavam, encontravam na natureza, com as plantas medicinais.
Ansiedade, dor de cabeça, tratamento para puérperas, cada planta tinha a sua função e o
seu papel histórico importante na medicina popular da comunidade.
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As dificuldades vivenciadas pela comunidade quilombola começam na entrada.


Todos os dias, durante a vivência, antes de acessar o quilombo, nossa equipe passava pela
identificação na base naval, é o mesmo processo que a comunidade realiza diariamente.
Essa identificação acontece de forma burocrática e até constrangedora para muitos
moradores, que em sua maioria são negros. Há a tentativa de segregar a comunidade a
fim de fragilizar a capacidade de articulação do quilombo. A própria demarcação
geográfica do território realizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA), em defesa dos interesses da Marinha, favoreceram essa fragmentação,
pois a base naval está localizada no meio do quilombo (lado C), os dividindo em dois
grupos, lado A e lado B. Foi possível perceber através dos relatos de um dos moradores
que qualquer tentativa de negociação para melhorias na comunidade acontecia/acontece
dentro da base naval da Marinha, com muitos cafés e almoços. Seguiu relatando que o
INCRA acompanhou a demarcação do território feito pela Marinha, e não o contrário,
afastando a comunidade da água e dos recursos naturais existentes nas terras, sendo que
a principal fonte de renda do quilombo é a economia da pesca e o trabalho rural. Percebe-
se que as decisões referente à comunidade quilombola são permeadas por relações de
poder e interesses próprios.

Há uma série de negação de direitos que passa desde a falta de saneamento básico,
de acesso à água potável, à energia, a burocratização e negação de entrada de qualquer
iniciativa de melhoria de vida para a comunidade. A exemplo da proibição da entrada de
professores para realizar trabalho de alfabetização na comunidade. Conforme dito na
territorialização, as crianças andam vários quilômetros para pegar água no rio, tomar
banho e depois ir para a escola, a qual fica localizada fora do quilombo. Nos foi relatado
que muitas casas do quilombo caem, por terem uma estrutura antiga, algumas eram de
taipa e a Marinha do Brasil, através de seus comandantes e generais, proíbem que os
quilombolas construam novas casas. A tentativa é de negar qualquer iniciativa de
evolução e crescimento para o quilombo Rio dos Macacos.

Casos de estupro dentro do território por parte de militares que ocasionalmente


oferecem caronas em seus carros à jovens quilombolas, invasão nas residências
quilombolas, espancamento na frente de familiares (esposo e crianças), são exemplos de
violações de direitos humanos que nos foram relatados. Houve visita da Organização das
Nações Unidas/ONU ao local, o Ministério Público de Salvador já foi acionado, porém,
há um descaso institucional, “o próprio Estado dá cobertura”, “a vida do cachorro tem
19

mais valor que a gente”. Todas essas graves violações de direitos humanos são
denunciadas no documentário: “Quilombo Rio dos Macacos – O filme”, publicado no
YouTube no ano de 2017, dirigido por Josias Pires.

O sofrimento psicológico tem se tornado um dos principais fatores de


adoecimento para os moradores quilombolas, pela situação atual de luto que enfrentam,
decorrente do assassinato recente de um dos líderes comunitários e por vivenciarem
diariamente uma série de violências psicológicas e físicas que interferem na condição de
saúde da coletividade. Alguns quilombolas resolveram morar juntos, em uma única casa,
por motivos de medo, receio de serem vítimas de uma próxima violência ou de terem suas
casas e privacidades invadidas sem objeção, “a gente não dorme de noite... as crianças
estão com medo”.

O Quilombo Rio dos Macacos possui mais de 200 anos, conforme relato de
moradores. Segundo o Artigo 68° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
“às comunidades remanescentes de quilombo será garantido a propriedade definitiva das
terras”. Nesse sentido, a União e o Governo Federal têm o dever de realizar o
procedimento de identificação e de demarcação da terra para os remanescentes
quilombolas. Desapropriar famílias quilombolas das terras da União em prol de interesses
particulares se configura como violação de direitos humanos.
20

4. NECROPOLÍTICA E POPULAÇÃO NEGRA EM TEMPOS DE


PANDEMIA

“Quando se nega a humanidade do outro


qualquer violência torna-se possível,
de agressões até a morte”.
(Achille Mbembe).

Diante do contexto de pandemia que o Brasil e o mundo vivencia, em relação às


condições de vida e de saúde dos quilombolas, a COVID-19 aprofundou uma questão que
já está posta historicamente: a ausência de políticas públicas para comunidades e povos
tradicionais. Em reportagem para o UOL, o colunista Valente (2020) enfatiza que os
motivos desse aprofundamento de risco social para quilombolas está relacionado às
dificuldades de acesso à água potável, falta de saneamento básico, dificuldade de acesso
aos serviços de saúde (localizados em sua maioria na zona urbana dos municípios),
distante das políticas públicas, realidade cotidiana dos quilombos.

Para Mbembe, historiador e autor da teoria necropolítica, a materialização da


necropolítica se dá pela expressão da morte (MBEMBE, 2016). Quando vemos
instituições de representação do Estado, como no caso dos conflitos entre a Marinha do
Brasil e o Quilombo Rio dos Macacos em Salvador/Bahia, por exemplo, vemos um
Estado adotando, por meio de representações militares, o uso ilegítimo da força, do
extermínio, da política das desigualdades sociais. Conforme a pesquisadora Rosane
Borges, em entrevista realizada para o site Ponte, é a humanidade subalterna e
estigmatizada socialmente que a polícia invade e extermina (FERRARI, 2019). Segundo
a pesquisadora, a política da morte (necropolítica) é aplicada através da militarização da
força e das relações de poder, sendo exercida nas favelas, nas periferias, nos conflitos
pela terra, nas lutas pela regularização fundiária de comunidades tradicionais.

As chamadas tipografias da crueldade. Quando pegamos os índices, por


exemplo, de mortes de jovens brancos de classe média, em cidades
como São Paulo, vão aparecer acidentes de carro e fatalidades. Mas a
incidência de mortes por policiais se dá com o jovem negro da
periferia. Isso quer dizer que há uma incidência de morte em que o
Estado é o agente. (FERRARI, 2019).
21

A relação entre necropolítica e a pandemia do COVID-19 aparece quando nos


deparamos com o controle social realizado pelo Estado nas tomadas de decisões de quem
deve viver (ser internado nas Unidades de Tratamento Intensivo – UTI, com
equipamentos de respiração para ventilação mecânica) e quem vai morrer, ficar a mercê
da sorte, distante do acesso às políticas sociais. Conforme Araújo (2020):

Na Itália, o aumento exponencial de casos de covid-19 levou os


médicos a escolherem salvar aqueles com "maior chance de
sobreviver", entre os milhares de pacientes que lotam os leitos dos
hospitais, seguindo orientação das autoridades do país. No Brasil, na
semana passada, em entrevista a um programa de TV, o presidente Jair
Bolsonaro (sem partido) relativizou a situação em que vivemos:
"Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, é a vida. Não pode parar
uma fábrica de automóveis porque tem mortes no trânsito", disse.
(ARAÚJO, 2020).

A condição de desigualdade social vivenciada pelos quilombolas tem sua total


relação com o processo de escravidão que permeou na história do país por mais de 400
anos (CRUZ, 1993). O princípio da equidade tem um valor imprescindível, frente ao
contexto histórico e ideológico de escravidão objetificando a população negra, por esse
motivo, as políticas públicas equitativas é uma forma de se alcançar igualdade na
assistência à saúde. De acordo com Cruz (1993) “Quatro séculos de escravidão afetaram
a saúde da raça negra e de sua descendência. [...] Pode-se inferir que a discriminação
racial [...] é responsável na atualidade pela continuidade das agressões à saúde dos negros.
(p. 323-324).

Há um debate por priorizar o tratamento de jovens e deixar os mais


idosos morrerem. Há ainda aqueles que, como o presidente Jair
Bolsonaro, insistem que a economia não pode parar mesmo se parte da
população precisar morrer para garantir essa produtividade.
(BERCITO, 2020).

Outra situação em que podemos refletir como a necropolítica interfere no


cotidianos de comunidades negras no Brasil, através de medidas arbitrárias e do
descumprimento de leis e direitos institucionalmente conquistados, é a ordem de
desapropriação, por parte do Governo Federal, para famílias quilombolas que residem na
região de Alcântara, no Maranhão. Em tempos de pandemia, quando o país se depara com
22

mais de 200 mil mortes por COVID-19, conforme dados do Ministério da Saúde
(atualizados na data 22/02/2021), o Governo assinou decreto que implica na remoção de
quilombolas, sem diálogo com as comunidades afetadas, como determina a Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho - OTI, tendo como objetivo de promover
interesses próprios e econômicos.

Conforme reportagem do Notícia Preta (2020), realizada no mês de Março de


2020, a possibilidade de remoção atingiria aproximadamente 800 famílias, são quase 30
comunidades de afrodescendentes que vivem na região há mais de três séculos. Ainda na
reportagem, segundo Danilo Serejo, assessor jurídico do Movimento dos Atingidos pela
Base Espacial de Alcântara, “quando o governo nos nega o direito de consulta, e decide
verticalmente sobre as nossas vidas, na prática nos rouba o direito de decidir sobre o nosso
futuro. Reproduz, com isso, uma lógica que só encontra paralelo no Brasil Colônia”.
(Notícia Preta, 2020).

Nesse sentido, a aproximação do Programa de Residência (PRMAB) em ambas


as vivências nos quilombos evidencia o recorte etnico/racial em relação ao acesso às
políticas públicas vivenciadas pelas populações negras rurais, mais especificamente pelas
populações quilombolas. Fator que coloca em questão um dos princípios do SUS que é a
equidade, enfatizando a importância de trabalhos voltados para ações de políticas
afirmativas e inclusivas, que tragam também para o debate o racismo e as violações de
direitos humanos enquanto fator de adoecimento.
23

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relevância da temática se fundamenta no contexto de desigualdades sociais e


violação de direitos humanos vivenciados historicamente pelos povos quilombolas.
Conforme (Cruz 1993), as desigualdades e ausência de políticas públicas interferem
diretamente na condição de saúde da população negra. São muitas as manifestações do
racismo que continuam atualizando determinações sociais que implicam em
desassistência à saúde e negação dos direitos dos quilombolas na sociedade.

Em que medida a luta dos quilombos por melhores condições de vida e igualdade
de oportunidades está inserida na agenda política dos residentes multiprofisisonais em
atenção básica? Qual o papel político do PRMAB frente às desigualdades sociais
vivenciadas pelos quilombolas diariamente? Participar de ambas as vivências no
quilombo possibilitou repensar o lugar de privilégio branco que ocupo dentro de um
sistema excludente, racista e desigual, refletindo sobre o meu lugar de fala, a partir da
experiência de extensão.

Conforme boletim epidemiológico da Coordenação Nacional de Articulação das


Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, com dados atualizados em 20 de
Fevereiro de 2021; dos 4.935 quilombolas infectados pela COVID-19 no Brasil, 207
chegaram a óbito (CONAQ, 2021). Os dados significativos revelam a falta de políticas
públicas do Estado voltadas para atender as demandas das populações mais vulneráveis,
que geograficamente se encontram distante dos equipamentos de saúde e historicamente
vivenciam as implicações negativas do racismo estrutural, refletido nas dificuldades de
acesso às políticas sociais, no preconceito, nas opressões constantes e na violação de
direitos humanos.

Participar de ambas as vivências trouxe reflexões para além das condições de


saúde nos quilombos, no sentido de pensar qual a relação das vulnerabilidades
vivenciadas pelos quilombolas com a negação de direitos básicos, com a agenda política
do PRMAB, com as dificuldades de acesso às políticas públicas, com a necropolítica e
com a COVID-19. Cabe aqui o pensamento do professor da UFRRJ - Renato Nogueira,
durante palestra no I Simpósio pela Saúde Pública, de que é importante pensar o desmonte
do SUS e das políticas públicas como uma forma de incorporação da necropolítica. No
contexto de pandemia global, diminuir o SUS é aumentar as chances de mortes para as
24

populações mais vulneráveis. Quem são essas pessoas? Qual a cor dessas pessoas? Qual
o território que esses grupos ocupam?

A vivência nos quilombos, por meio da residência, também traz a reflexão do que
foi defendido por Sérgio Arouca na 8° Conferência Nacional de Saúde: “saúde não é
simplesmente ausência de doença... é bem-estar mental, social, político”. Em resumo, a
negação das liberdades individuais, a falta de condições dignas de vida, a violência em
todas as suas dimensões, a negação dos direitos humanos, são aspectos que participam do
cotidiano dos quilombos e que geram processos de adoecimento coletivos; o racismo
estrutural e suas implicações são, portanto, fatores de adoecimento.

A necropolítica não se materializa apenas no assassinato de grupos ou de pessoas


negras inocentes, mas na forma como o Estado regula as relações sociais a partir de um
sistema desigual, racista e excludente, bem como na forma que o Estado opera com as
políticas públicas, cada vez mais sucateadas. O que ambos os quilombos possuem em
comum? Um processo histórico de negação de políticas e violação de direitos humanos
que, segundo Cruz (1993) está relacionado ao processo de mais de quatro séculos de
escravidão no Brasil. Após quatro séculos de escravidão, o racismo estrutural ainda
reproduz negação de direitos e opressão para as comunidades negras rurais.

Em resumo, o programa de residência se insere nesse espaço através do debate


democrático e da troca de experiências, possibilitando, a partir da extensão popular,
repensar nosso lugar de fala, enquanto profissionais do SUS em formação, e refletir de
que forma o privilégio branco implica em desigualdades estruturais para a população
negra, sobretudo, para os quilombolas. O trabalho também trouxe uma melhor
compreensão sobre a atuação da atenção básica nos territórios por meio de ações
propositivas, que não se limita ao espaço das Unidades Básica de Saúde. Territórios que
possuem suas particularidades e vulnerabilidades. Segundo Falcão (2014): “[...] é preciso
descobrir estratégias por meio das quais se transformem projetos e programas desse tipo
em políticas públicas”. (p. 50).
25

REFERÊNCIAS:

ARAÚJO, Mateus. O que necropolítica tem haver com a pandemia e com falas de
Bolsonaro. TAB, 2020. Disponível em:
<https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/03/o-que-necropolitica-tem-a-ver-
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ASSUNÇÃO, Luiz. Os negros do Riacho: estratégias de sobrevivência e identidade


social. EDUFRN, 2009.

BARBOSA, Catarina. Acordo entre Brasil e EUA ameaça cerca de 800 famílias em
Alcântara, no Maranhão. Brasil de Fato, 2020. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2020/02/08/acordo-entre-brasil-e-eua-ameaca-cerca-
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BERCITO, Diogo. Pandemia democratizou poder de matar, diz autor da teoria da


“necropolítica”. Folha de S. Paulo, 2020. Disponível em:
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Disponível em: < https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/RIv3/geral/index.php > Acesso em
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<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/conadc/1988/constituicao.adct-1988-5-outubro-
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CONAQ. Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais


Quilombolas, 2021. Disponível em: < https://quilombosemcovid19.org/ > Acesso em: 20
de Fevereiro de 2021.

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tradicionais. Organizado por: Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social
(CIMOS) - Ministério Público de Minas Gerais, 2013.
26

CRUZ, Isabel Cristina Fonseca da. O negro brasileiro e a saúde-ontem, hoje e


amanhã. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 27, n. 3, p. 317-327, 1993.

DE JANEIRO, Rio. Fundação Cultural Palmares. OR editor, 2002.

FALCÃO, Emmanuel Fernandes. Vivência em comunidades: outra forma de ensino.


Editora UFPB. 2° Edição. João Pessoa, 2014.

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PALMARES, Fundação Cultural. Certificação Quilombola, 2020. Disponível em:


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valente/2020/04/25/coronavirus-quilombolas-brasil.htm?fbclid=IwAR1tMj1oBfPpnbH2
4gPz7Zizw6Uu_yascZGRJHuOCjG88qBa5DY0EJmIn7w > Acesso em 03 de Maio de
2020.
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APÊNDICES:

Fotografia 1: Centro comunitário do Quilombo Negros do Riacho, 2019.


Fonte: Acervo pessoal.

Fotografia 2: Roda de conversa com líder comunitário quilombola, 2019.


Fonte: Acervo pessoal.

Fotografia 3: Quilombo Negros do Riacho em Currais Novos/RN, 2019.


Fonte: Acervo pessoal.
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Fotografia 4: Escavação da fossa verde no Estágio de Vivência no Quilombo Rio dos Macacos/BA, 2019.
Fonte: Acervo pessoal.

Fotografia 5: Escavação do buraco no solo para o círculo de bananeiras durante o I Estágio de Vivência
no Quilombo Rio dos Macacos/BA, 2019. Fonte: Acervo pessoal.

Fotografia 6: Escavação do local em que o tubo caminhará até a fossa.


Fotografia 7: Tubo de esgoto.
Fontes 6 e 7: Acervo pessoal, 2019.
29

Fotografia 8: Construção da câmara de pneus que possibilita a ação das bactérias anaeróbicas, 2019.
Fonte: Acervo pessoal.

Fotografia 9: Fossa verde concluída: sistema ecológico de tratamento de esgoto doméstico, como
iniciativa de saneamento básico no Quilombo, 2019. Fonte: Acervo Pessoal.

Fotografia 10: Momento de territorialização no Quilombo Rio dos Macacos/BA, 2019.


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Fonte: Acervo pessoal.

Fotografia 11: Fruta Cacau produzida no Quilombo Rio dos Macacos/BA, 2019.
Fonte: Acervo pessoal.

Fotografia 12: Vivência no Quilombo Rio dos Macacos/BA, 2019.


Fonte: Acervo pessoal.

Fotografia 13: Viventes e extensionistas do programa Bahiana em Defesa da Vida, 2019.


Fonte: Instagram “bahianaemdefesadavida”.

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