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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA - UFSM

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS - CCSH


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – PPGD
MESTRADO EM DIREITO

Rafaela da Cruz Mello

PRINCÍPIO DA JURISDIÇÃO UNIVERSAL: A DESLOCALIZAÇÃO


JUDICIÁRIA ENTRE O DEVER SER COSMOPOLITA E A
REALIDADE DA COSMOPOLITIZAÇÃO

Santa Maria, RS
2017
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Rafaela da Cruz Mello

PRINCÍPIO DA JURISDIÇÃO UNIVERSAL: A DESLOCALIZAÇÃO JUDICIÁRIA


ENTRE O DEVER SER COSMOPOLITA E A REALIDADE DA
COSMOPOLITIZAÇÃO

Dissertação apresentada ao Mestrado em Direito


do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM,
RS), como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Direito.

Orientadora: Profª Drª Jânia Maria Lopes Saldanha

Santa Maria, RS.


2017
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Rafaela da Cruz Mello

PRINCÍPIO DA JURISDIÇÃO UNIVERSAL: A DESLOCALIZAÇÃO JUDICIÁRIA


ENTRE O DEVER SER COSMOPOLITA E A REALIDADE DA
COSMOPOLITIZAÇÃO

Dissertação apresentada ao Mestrado em Direito


do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM,
RS), como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Direito.

Aprovado em 14 de março de 2017:

_________________________________
Jânia Maria Lopes Saldanha, Drª. (UFSM).
(Presidente/Orientadora)

_________________________________
Valéria Ribas do Nascimento, Drª (UFSM).
(Universidade Federal de Santa Maria - UFSM)

_________________________________
Tatyana Scheila Friedrich, Drª (UFPR).
(Universidade Federal do Paraná - UFPR)

Santa Maria, RS
2017.
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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, por crer em uma força transcendental capaz de nos auxiliar nos
momentos de maiores dificuldades, não poderia ser outro o meu agradecimento inicial que
não a Deus. Nos momentos mais solitários da escrita desta dissertação, o silêncio e a buscas
de respostas geraram angústias que foram amenizadas pela crença de que havia (e de que há)
uma entidade, maior que tudo e todos, capaz nos amparar e nos tranquilizar.
Em segundo lugar, um agradecimento especial não pode deixar de ser feito à minha
orientadora Prof.ª Drª Jânia Maria Lopes Saldanha. A ela agradeço não só ao auxílio e à
orientação nessa dissertação, mas demonstro minha mais profunda gratidão e enorme carinho
por todos esses anos em que trabalhamos juntas. Ao seu lado, professora, aprendi muito mais
do que altas reflexões acadêmicas. Aprendi a observar o mundo de modo crítico e a partilhar o
conhecimento.
Como já lhe disse uma vez, mestres são aqueles que nos fazem ter vontade de estudar,
de conhecer e de trilhar caminhos que, mesmo tortuosos, podem nos levar a fazer a diferença
na vida de outras pessoas. A senhora, sem dúvidas é uma grande mestre e fonte de inspiração
para mim. Muito obrigada pela confiança e pela amizade!
Meu principal agradecimento é igualmente feito a três pessoas: a minha mãe Marilene,
ao meu amor Daniel e ao meu irmão Otávio. Os três acompanharam diariamente as aventuras
e desventuras da elaboração e da escrita deste trabalho. À Marilene agradeço imensamente
pelo amor, pelo carinho e pela confiança existentes de modo abundante em nosso
relacionamento. Gratidão é a palavra exata para definir todo o apoio desde o êxito na seleção
de mestrado, no final de 2014 até a conclusão dessa importante fase da minha vida. Meu amor
por ti é eterno, transcendental e incondicional. Como já diz a nossa música: “nossos destinos
foram traçados na maternidade”.
Ao meu amor Daniel agradeço inicialmente pela compreensão das minhas ausências e
por, mesmo diante das minhas angústias, dos medos e das inseguranças, ter segurado firme
em minha mão e ter permanecido ao meu lado durante esta caminhada. Muito obrigada por ter
me auxiliado, por meio de questionamentos e diálogos, a elaborar reflexões e conclusões mais
apuradas sobre esta dissertação e principalmente por ter me dado todo o amor do mundo
durante essa jornada. Que este seja só o começo da nossa história e que possamos estar
sempre juntos, caminhando lado a lado de mãos dadas e com os corações regados pelo nosso
amor.
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Ao Otávio, agradeço pela leveza que traz aos meus dias. Conviver com alguém com
tamanho senso de humor e sarcasmo, sem sobra de dúvidas aliviou o peso das reflexões
densas e trouxe paz ao meu coração. Muito obrigada, meu irmão.
Da mesma forma, não posso deixar de agradecer a todos os meus amigos que longe ou
perto, de maneira mais intensa ou mais leve estiveram ao meu lado ao longo desses dois anos
de mestrado. Todavia, por não ter espaço aqui para agradecer nominalmente a todos,
agradeço-os na pessoa de dois deles, que acompanharam de perto esses dois anos de
mestrado: Márcio e Tiéli.
Ao Márcio, grande amigo desde os tempos de graduação e colega no mestrado,
agradeço por ter uma influência importante para me tornar quem sou hoje. A tua inquietude
diante do mundo aos poucos também foi se tornando minha e teus constantes incentivos e
questionamentos refletem hoje em meu modo de pensar. Meus agradecimentos a ti serão
eternos, assim como nossa amizade. Tu sempre serás o meu “best”!
À Tiéli agradeço pela leveza, pelo riso frouxo e pela amizade mais linda e pura.
Obrigada por ter partilhado comigo inseguranças, por ter dividido alegrias e tristezas desde a
graduação até o mestrado. Nossa amizade foi sendo regada diariamente e se tornou essa flor
tão preciosa no meu jardim. Não tenho dúvidas de que estaremos, longe ou perto, sempre
torcendo uma pela outra e vibrando a cada nova conquista. Muito obrigada por tudo, minha
“mamis”.
Agradeço ainda aos queridos colegas da turma de 2015 do mestrado em Direito do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria (PPGD
UFSM). Cada um com suas peculiaridades e seus modos de ver a vida e o mundo ganharam
um espaço especial em meu coração. Agradeço a todos e a cada um por tornarem essa
caminhada leve e florida. Sucesso a todos nós!
Aos professores e servidores que compõem o PPGD da UFSM, o meu muito obrigada
por todos os ensinamentos deste período. Sem sobra de dúvidas cada um de vocês contribuiu,
em maior ou menos medida, para meu crescimento pessoal e profissional.
Por fim, meu agradecimento especial às professoras Tatyana Scheila Friedrich e
Valéria Ribas do Nascimento, membros da banca de defesa de dissertação que prontamente
aceitaram o convite para avaliar este trabalho.
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“Os povos da terra participam em vários graus de uma comunidade


universal, que se desenvolveu a ponto de que a violação do direito,
cometida em um lugar do mundo, repercute em todos os demais.
A ideia de um direito cosmopolita não é, portanto, fantástica ou
exagerada; é um complemento necessário ao código não escrito
do Direito político e internacional, transformando-o num direito
universal da humanidade. Somente nessas condições podemos
congratular-nos de estar continuamente avançando em direção a
uma paz perpétua”

(Immanuel Kant).
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RESUMO

PRINCÍPIO DA JURISDIÇÃO UNIVERSAL: A DESLOCALIZAÇÃO JUDICIÁRIA


ENTRE O DEVER SER COSMOPOLITA E A REALIDADE DA
COSMOPOLITIZAÇÃO

AUTORA: Rafaela da Cruz Mello


ORIENTADORA: Jânia Maria Lopes Saldanha

O processo de internacionalização dos direitos humanos foi um dos responsáveis por tornar os indivíduos em
sujeitos de direito internacional e por motivar o desenvolvimento do princípio da humanidade. Nesse contexto,
ideais cosmopolitas, inspirados nas reflexões filosóficas de Immanuel Kant, a partir de meados do século
passado, passaram a despontar com o intuito de fornecer bases para a interpretação de determinados fenômenos.
No campo jurídico, a observação a partir de preceitos do cosmopolitismo acaba por fornecer importantes
elementos para a compreensão dos direitos humanos e da necessidade de combate à impunidade em relação
àqueles que cometem violações globais a tais direitos por meio de genocídios, crimes de guerra e crimes contra a
humanidade. Em relação a esses tipos penais, a internacionalização fomentou o chamado princípio da jurisdição
universal. Segundo tal princípio, qualquer Estado é capaz de julgar crimes ocorridos contra os direitos humanos,
mesmo que não haja vinculação territorial dos fatos ao seu território ou vínculo de nacionalidade entre vítimas
e/ou réus e o Estado julgador. Está-se diante da denominada deslocalização judiciária, em que elementos como
territorialidade e nacionalidade são colocados em xeque por força da necessidade de proteção aos direitos
humanos. A utilização desse princípio, por gerar rupturas com elementos da compreensão moderna de direito, de
jurisdição e de processo, gera questionamentos de ordem prática, no campo da chamada cosmopolitização da
justiça. Diante desse cenário, os problemas de pesquisa que norteiam este trabalho são: Em que medida o
processo de internacionalização dos direitos humanos estabelece um dever de exercício de jurisdição universal
por parte dos Estados? Ao observar os limites do real, quais são os entraves para um efetivo exercício da
jurisdição universal em sua forma absoluta? O objetivo geral da pesquisa foi o de observar o princípio da
jurisdição universal sobre a ótica dicotômica do dever ser cosmopolita, de inspiração nas reflexões filosóficas
kantianas e de autores que utilizam Kant como sua base teórica e do ser da cosmopolitização, conceito
desenvolvido no plano da sociologia por Ulrich Beck e que demonstra que a realidade se afasta das percepções
de um cosmopolitismo filosófico e se aproxima da ideia de que a sociedade se tornou cosmopolita em razão da
transnacionalização de riscos globais. Utilizou-se o método de abordagem dialético e os métodos de
procedimento comparativo e tipológico. Concluiu-se que ancorada filosoficamente em premissas do
cosmopolitismo e, juridicamente nas normas do jus cogens, a jurisdição universal, em sua forma absoluta, é vista
como um dever ser capaz de romper com a impunidade e reparar violações de direitos humanos. No entanto, a
realidade do ser afasta-se das pretensões universalistas e se aproxima do particularismo das práticas, de modo
que a presença de entraves jurídicos e políticos ao exercício da jurisdição universal reduzem de modo drástico o
seu espectro de aplicação. De dever de punir, por meio da aplicação da jurisdição universal absoluta, os Estados
passaram a somente poder punir se houver a assunção de algumas condições, em geral estipuladas pelas
respectivas legislações internas.

Palavras-chave: Jurisdição Universal. Cosmopolitismo. Cosmopolitização. Direitos


Humanos.
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ABSTRACT

PRINCIPLE OF UNIVERSAL JURISDICTION: THE JUDICIAL DISLOCATION OF


DUTY BEING COSMOPOLITAN AND THE REALITY OF COSMOPOLITIZATION

AUTHOR: Rafaela da Cruz Mello


ADVISOR: Jânia Maria Lopes Saldanha

The process of internationalization of human rights was one of those responsible for making individuals subject
to international law and for motivating the development of the principle of humanity. In this context,
cosmopolitan ideals, inspired by the philosophical reflections of Immanuel Kant, from the middle of the last
century, began to emerge with the intention of providing bases for the interpretation of certain phenomena. In the
legal field, observation based on precepts of cosmopolitanism provides important elements for understanding
human rights and the need to combat impunity for those who commit global violations of such rights through
genocide, war crimes and crimes Against humanity. In relation to these criminal types, internationalization
fostered the so-called principle of universal jurisdiction. According to this principle, any State is capable of
prosecuting crimes against human rights, even if there is no territorial connection of the facts to its territory or
nationality link between victims and / or defendants and the state of judgment. We are faced with the so-called
judicial relocation, in which elements such as territoriality and nationality are put in check because of the need to
protect human rights. The use of this principle, by generating ruptures with elements of modern understanding of
law, jurisdiction and process, raises practical questions in the field of the so-called cosmopolitanization of
justice. In view of this scenario, the research problems that guide this work are: To what extent does the process
of internationalization of human rights establish a duty of States to exercise universal jurisdiction? When looking
at the limits of the real, what are the obstacles to an effective exercise of universal jurisdiction in its absolute
form? The general objective of the research was to observe the principle of universal jurisdiction over the
dichotomous view of being cosmopolitan, of inspiration in Kantian philosophical reflections and of authors who
use Kant as their theoretical basis and of the being of cosmopolitanization, a concept developed in the plane of
Sociology by Ulrich Beck and which demonstrates that reality departs from the perceptions of a philosophical
cosmopolitanism and approaches the idea that society has become cosmopolitan because of the
transnationalization of global risks. The method of dialectical approach and the methods of comparative and
typological procedure were used. It has been concluded that philosophically anchored on the premises of
cosmopolitanism and, legally in the norms of jus cogens, universal jurisdiction, in its absolute form, is seen as a
duty to be able to break with impunity and repair human rights violations. However, the reality of being shies
away from universalist pretensions and approaches the particularism of practices, so that the presence of legal
and political obstacles to the exercise of universal jurisdiction drastically reduces its spectrum of application.
From the duty of punishment, through the application of absolute universal jurisdiction, States have only been
able to punish if there are certain conditions, generally stipulated by their respective domestic laws.

Keywords: Universal Jurisdiction. Cosmopolitanism. Cosmopolitanization. Human Rights.


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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Fontes do direito que habilitam a competência universal..................................... 64.

Quadro 2 – Casos atuais em que os Estados fizeram/fazem uso do princípio da jurisdição


universal...................................................................................................................................74.
11

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ATCA – Alien Tort Claims Act.


DUDH – Declaração Universal dos Direitos do Homem.
FIBGAR – Fundação Internacional Baltasar Garzón.
OEA – Organização dos Estados Americanos
OIT – Organização Internacional do Trabalho.
ONU – Organização das Nações Unidas.
TPI – Tribunal Penal Internacional.
12

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13

2 O DEVER DE COMPETÊNCIA UNIVERSAL EM MATÉRIA DE


DIREITOS HUMANOS: FUNDAMENTOS TEÓRICOS E JURÍDICOS ............. 18

2.1 DO DIREITO COSMOPOLÍTICO AO COSMOPOLITISMO PÓS-


METAFÍSICO: FUNDAMENTOS COSMOPOLITAS QUE CONSTITUEM O
DEVER SER MORAL DO EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA UNIVERSAL.... 20

2.2 JURISDIÇÃO UNIVERSAL NO QUADRO DOS DIREITOS


HUMANOS: FUNDAMENTOS JURÍDICOS PARA A TUTELA DA
HUMANIDADE. ........................................................................................................... 44

3 A REALIDADE PRÁTICA ACERCA DO PRINCÍPIO DA JURISDIÇÃO


UNIVERSAL: ENTRE AS POSSIBILIDADES NO CENÁRIO JURÍDICO E OS
LIMITES DO REAL .................................................................................................... 81

3.1 DA COSMOPOLITIZAÇÃO DA JUSTIÇA À HOSPITALIDADE


JUDICIÁRIA: REFLEXOS DE ALGUNS EFEITOS DA APLICAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA JURISDIÇÃO UNIVERSAL NO CENÁRIO GLOBAL. ............ 83

3.2 ANACRONISMOS DA JURISDIÇÃO: ENTRAVES JURÍDICOS E


POLÍTICOS À APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA COMPETÊNCIA
UNIVERSAL A PARTIR DA OBSERVAÇÃO DA LEGISLAÇÃO E DE CASOS
PRÁTICOS. ................................................................................................................... 99

4 CONCLUSÃO .......................................................................................................... 123

REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 126


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1 INTRODUÇÃO

A compreensão do presente passa pela formação da memória individual e, para que


esta ocorra, o entendimento dos fatos do passado é o substrato básico. Essa formação de
memória, contudo, não se dá somente no plano individual, mas também deve ocorrer no plano
coletivo em relação a fatos locais, regionais e globais vivenciados por um sem número de
pessoas.
Os últimos cem anos da história mundial foram marcados por uma quantidade tão
grande de eventos e ocorrências, que os processos de formação mnemônicos passaram a ser
prejudicados em razão da não valorização ou do esquecimento dos depoimentos e das
vivências de uma parcela considerável de atores e personagens de momentos cruciais da
história. Infelizmente, isso ocorre em diversas situações de violações de direitos, em que o
relato da história por parte das vítimas é deixado em segundo plano.
Nos tempos atuais, em que o processo de internacionalização dos direitos humanos se
aprofunda por meio das comunicações entre magistrados e da formação de redes globais de
proteção da humanidade, também se agudizam os riscos diante da transnacionalidade dos
problemas globais. Nesse cenário de diversidade e instantaneidade no processo de troca de
informações, a percepção de violações de direitos humanos como questões que devem gerar
respostas transnacionais é a base mínima para o início de uma formação de memória coletiva.
Almejou-se, com o processo de internacionalização dos direitos humanos, iniciado em
meados do século XX, o reconhecimento desses direitos como valores universais, indivisíveis
e inderrogáveis, os quais deveriam estar acima de qualquer estrutura institucional e
condicionar as soberanias estatais - ilimitadas internacionalmente de acordo com o paradigma
westfaliano- a valores mínimos em matéria de proteção dos direitos do homem. É sob essa
ótica, da chamada viragem kantiana, que a proteção da humanidade passou a ser vista como o
princípio mínimo a ser seguido e perseguido por todos os Estados, da mesma forma em que a
atuação desses entes deve ser solidária em relação aos indivíduos e de cooperação em relação
a outros Estados.
Isso é a base do paradigma cosmopolita que, a partir de então, passa a ocupar um lugar
de destaque nas questões concernentes aos direitos humanos, principalmente por reconhecer o
indivíduo como um sujeito de direitos no plano internacional. É justamente sob as
composições desse paradigma de cosmopolitismo e solidariedade que as estruturas de uma
justiça penal internacional começam a ser (re)pensadas.
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Assim, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, os dois principais ramos da


justiça penal internacional passaram ser desenvolvidos: a jurisdição universal (doravante
também denominada, por deferência doutrinária, de competência universal) e o Tribunal
Penal Internacional (TPI). Ambas as estruturas, dentre diversas funções, possuem a
característica de fomentar a substituição de uma cultura de impunidade para uma cultura de
responsabilidade, sendo que essa alteração de ótica é substancial para a valorização das
vítimas e formação de uma memória coletiva em relação aos fatos do passado.
O sonho de uma justiça internacional coaduna-se a um cenário de nações arbitradas
pelo direito, de Estados que, de modo definitivo, deram as costas ao estado natural para
finalmente aceitarem a jurisdição da razão. Nesse novo cenário, portanto, a humanização do
direito, tanto interna quanto externamente é o ponto chave, de maneira que a preocupação
com a humanidade é o cerne das teorias cosmopolitas no plano filosófico e político e, no
plano jurídico, isso se reflete nas normas universais inderrogáveis e que se encontram acima
de qualquer Estado: as normas de jus cogens.
Entretanto, para realizar, de maneira efetiva, esse sonho de uma justiça internacional,
esta última deve se emancipar e não conhecer limites temporais ou espaciais. Desta maneira,
quanto a crimes globais contra os direitos humanos, a condição de procedibilidade mínima,
em razão da natureza material e da gravidade dos delitos é a sua imprescritibilidade somada à
possibilidade de julgamento para além das fronteiras do Estado em que as violações
ocorreram.
Isso é a base do princípio da jurisdição universal, que em sua forma absoluta,
caracteriza-se por, permitir que qualquer Estado no mundo, que reconheça tal
princípio/instrumento, possa, diante da inércia ou da não efetividade da jurisdição do local dos
fatos, realizar a persecução penal de indivíduos, Estados ou até mesmo pessoas jurídicas que
são suspeitas de terem cometido violações de caráter global aos direitos humanos, como é o
caso de crimes contra a humanidade, genocídios ou crimes de guerra, por exemplo. Em tese,
portanto, para o exercício da jurisdição universal absoluta, a única condição de
procedibilidade é a natureza material dos crimes cometidos, não sendo relevantes quaisquer
condições territoriais ou nacionais de ligação entre os fatos, vítimas ou suspeitos com o
Estado julgador.
Diante dessa possibilidade, surgida antes do início da Segunda Guerra Mundial, porém
melhor desenvolvida a partir da criação do Tribunal de Nuremberg, elementos entendidos
como cruciais para o estabelecimento de competências, como é o caso da territorialidade,
passaram a ser colocados em xeque, justamente pelo fato de que foram construídos não só
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sobre bases Estatais, mas sob uma ótica nacional de percepção de mundo. Desta maneira, a
ruptura trazida pela aplicação do princípio da jurisdição universal é estrutural no sentido de
questionar sob qual modo um Estado, por meio do seu poder judiciário, poderá investigar e
julgar atos cometidos em outro território, mas com consequências globais.
As estruturas nacionais modernas de percepção das relações políticas, econômicas e
jurídicas são, por conseguinte, no mínimo questionadas diante desse novo fenômeno e de seus
correlatos, como é o caso da mundialização dos juízes nacionais e dos diálogos entre as
diferentes jurisdições em busca de respostas harmônicas e eficazes para solucionar problemas
de espectro global. Esse é um dos pontos de observação deste trabalho, de maneira que os
problemas de pesquisa que norteiam o presente estudo são: Em que medida o processo de
internacionalização dos direitos humanos ocorrido após a Segunda Guerra Mundial estabelece
um dever de exercício de jurisdição universal em matéria de direitos humanos por parte dos
Estados? Ao observar os limites do real, quais são os entraves para um efetivo exercício da
jurisdição universal em sua forma absoluta?
O objetivo geral que norteou a pesquisa foi o de observar o princípio da jurisdição
universal sobre a ótica dicotômica do dever ser cosmopolita, de inspiração nas reflexões
filosóficas kantianas e de demais autores que apresentam reflexões baseadas no
cosmopolitismo de Kant ou próximas dele, e do ser da cosmopolitização, conceito
desenvolvido no plano da sociologia por Ulrich Beck e que demonstra que a realidade se
afasta das percepções de um cosmopolitismo idealista ou filosófico e se aproxima da ideia de
que a sociedade se tornou cosmopolita em razão, não só das transformações em curso na
sociedade mundial, mas, principalmente, pela transnacionalização de riscos globais. Desta
feita, segundo o cosmopolitismo sociológico de Beck, para compreender esse cenário
complexo, é necessário o desprendimento da ótica nacional de observar o mundo e as
instituições e sua suplantação por uma mirada cosmopolita.
Para que o objetivo de observar a jurisdição universal sob o prisma do cosmopolitismo
e da cosmopolitização fosse alcançado, utilizou-se o método de abordagem dialético. Segundo
Marina Marconi e Eva Lakatos, o método dialético, como forma de abordagem, penetra no
mundo dos fenômenos através de sua ação recíproca, da contradição inerente ao fenômeno e
da mudança dialética que ocorre na natureza e na sociedade. A compreensão do referido
método de que o mundo é visto como um conjunto de processos nos quais as coisas não estão
isoladas, mas fazem parte de um todo unido, bem como que a luta de contrários inerente a
esses processos é o conteúdo interno do desenvolvimento, foi crucial para a adoção do método
dialético para abordar a questão.
16

Como métodos de procedimento, adotou-se o método comparativo, ao observar a


jurisdição universal em sua forma absoluta sob a ótica do cosmopolitismo de cariz filosófico e
em sua forma condicionada na realidade da cosmopolitização e, o método tipológico, com a
exposição breve de elementos abstratos em relação ao princípio analisado, mas que podem
servir para análise e compreensão de casos concretos. Por fim, como técnica de pesquisa,
utilizou-se a pesquisa bibliográfica, por meio da revisão teórica de diversos autores e a
pesquisa documental em relatórios, dossiês e textos de lei que abordassem a temática dessa
dissertação.
Dividiu-se, por fim, essa a dissertação, nos moldes de um plano francês, em duas
grandes partes, sendo a primeira delas responsável pelo dever ser em relação à jurisdição
universal. Assim, inicialmente, para justificar a existência filosófica desse princípio
apresentam-se algumas teses cosmopolitas, as quais possuem como ponto de comunicação o
direito cosmopolita de Kant, que apresenta como base a valorização do homem e da
solidariedade para além das fronteiras dos Estados. Na sequência, já tendo sido feita a
proposição de elementos filosóficos do cosmopolitismo para justificar a existência da
jurisdição universal enquanto princípio, o seu uso, como instrumento de combate a
impunidade é abordado no sentido de estabelecer fundamentações jurídicas para seu
exercício, com base na humanização do direito internacional e nas regras de jus cogens.
A segunda parte do trabalho é a do ser da jurisdição universal, ou seja, os aspectos da
realidade em relação ao princípio e à sua utilização. Desta maneira, primeiramente, abordam-
se as suas possibilidades, no contexto de caos jurídico da paisagem global, com a
apresentação do princípio interligado à hospitalidade judiciária em relação às vítimas de
crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra e à atuação de importantes atores,
como é o casos dos juízes, que diante da cosmopolitização da justiça são capazes de, por meio
de suas comunicações ou diálogos informais, estabelecer novos paradigmas para a sociedade
global.
Após a breve explanação das possibilidades da jurisdição universal frente a novos
fenômenos da sociedade mundializada, abordam-se os entraves para o seu exercício na forma
proposta pelo dever ser de sua teoria, qual seja, na forma absoluta. Assim, são trazidos, por
meio da observação de casos concretos e das mudanças legislativas recentes de alguns países
selecionados, os entraves políticos que afastam a jurisdição universal da forma absoluta -
como um instrumento de fortalecimento para a humanização do direito internacional e
combate à impunidade - e a aproximam de sua forma condicionada, em que liames territoriais
17

ou nacionais devem ser estabelecidos entre o Estado julgador e os fatos e indivíduos por ele
julgados para que seja dada a mínima efetividade às decisões.
18

2 O DEVER DE COMPETÊNCIA UNIVERSAL EM MATÉRIA DE DIREITOS


HUMANOS: FUNDAMENTOS TEÓRICOS E JURÍDICOS

No século XX, a humanidade nunca se comportou de modo tão diabólico, porém


jamais produziu de modo tão divino. A ilusão otimista da geração que viveu no final do
século XIX fora ofuscada pelo idealismo trazido pelo progresso técnico, seguido de enorme
retrocesso moral. Com essas palavras Stefan Zweig (2014, p.16) definiu os conturbados anos
do início do século XX, período marcado por duas guerras de proporções mundiais, com
campos de concentração, bombardeios de cidades, torturas, dentre outras atrocidades contra
seres humanos. Paradoxalmente, no entanto, foi identificado como época de progresso do
intelecto no campo da técnica, com descobertas e experimentos como fissão nuclear,
erradicação de doenças, dentre outras.
Os horrores e atrocidades advindos da derrota da razão e do triunfo da brutalidade
fizeram com que, imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, uma das preocupações
mais pulsantes fosse a de tutela dos direitos humanos em âmbito internacional. Consoante
destaca Mireille Delmas-Marty (2004a, p. 74), a temática dos direitos humanos até a Segunda
Guerra Mundial era uma questão pensada, sobretudo, dentro dos Estados. Porém, com o
advento da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), em 1948, seguida por
outros marcos normativos e instituições jurídicas de caráter global, supranacional e regional, a
preocupação com o respeito e a tutela dos direitos humanos se internacionalizou. Nesse
processo, Delmas-Marty (2004a, p.75) afirma que a humanidade se revela como uma
categoria jurídica, aparecendo no direito internacional no cruzamento de diversos conceitos
recentes e em evolução.
Héctor Gros Espiell (1999, p.27), rememorando René Jean Dupuy explica que a
humanidade – constituída por seres humanos que vivem em um momento dado, mas que
realizam projeções para o futuro e formam as gerações que estão por vir – é a comunidade
internacional vista sob uma ótica humana. Deste modo, a transtemporalidade marca o
conceito de humanidade, ou seja, o homem possui responsabilidade pelo presente e pelo
futuro, de modo que o direito à sobrevivência passa a marcar a humanidade enquanto
categoria jurídica.
É desta noção, de responsabilidade pela humanidade, que surgem direitos como direito
ao desenvolvimento, à paz, a não violência, dentre outros que não só se configuram como
19

direitos humanos, ou seja, direitos do ser humano no aspecto individual e com base em sua
dignidade, mas também direitos da humanidade. O alicerce destes últimos é a solidariedade
intergeracional e desta surge a ideia de responsabilidade pela humanidade, tanto sob o aspecto
moral, quanto jurídico.
Como categoria jurídica, Delmas-Marty (2004a, p. 75) assevera que a humanidade se
constitui ora como vítima de crimes, ora como titular de um patrimônio. No primeiro desses
casos, que é o que interessa de sobremaneira a esse trabalho, pode-se destacar a noção de
crime contra a humanidade1 e de jurisdição universal 2 em matéria de direitos humanos, esta
última caracterizada pela possibilidade de juízes de determinado tribunal nacional possuírem a
competência para julgamento de violações de direitos humanos com escopo de proteção às
vítimas e de tutela da humanidade. No segundo caso, por sua vez, quando se trata de
titularidade, temos a figura do patrimônio comum da humanidade e de bens públicos
mundiais.
Ambos os casos configuram conceitos e categorias ainda em formação no campo
jurídico e que sofrem influência direta das vicissitudes do processo de mundialização e das
novas instituições surgidas na sociedade em rede, visto que a humanidade enquanto categoria
jurídica é algo que inquieta os Estados em suas concepções tradicionais de soberania
(DELMAS-MARTY, 2004a, p.74). Desta feita, tendo como ótica o princípio da humanidade e
o paradigma da solidariedade e da responsabilidade moral e jurídica pela humanidade
(ZARKA, 2015, p. 01), abordar-se-á, no primeiro capítulo deste trabalho as teorias do
cosmopolitismo, tendo em vista que, almeja-se demonstrar que o cosmopolitismo é a base
político-filosófica capaz de justificar a aplicação do princípio da jurisdição universal em
matéria de direitos humanos, que é o objeto de análise de tal trabalho.
Assim, inicialmente procura-se realizar breve contextualização histórica acerca do
cosmopolitismo, abordando primeiramente as reflexões iniciais dos cínicos e estoicos na
Antiguidade, período em que eventual preocupação com a humanidade se justificaria no plano

1
O Estatuto de Roma apresenta em seus artigos a tipificação de delitos como genocídio (artigo 6º), crimes contra
a humanidade (artigo 7º) e crimes de guerra (artigo 8º). A humanidade apresenta-se como vítima nos três tipos
referenciados nesta nota.
2
Utilizar-se-á, neste trabalho as expressões jurisdição universal ou competência universal para tratar do
princípio jurídico que permite que magistrados possam julgar delitos cometidos contra os direitos humanos sem
que haja qualquer vinculação com seu território, ou tendo vinculação mínima, como é o caso, por exemplo, de o
sujeito perpetrador dos atos atentatórios à humanidade se encontrar no território do Estado que o julgará. No
entanto, é pertinente o destaque de que algumas decisões judiciais e certos debates acadêmicos e doutrinários
utilizam expressões como princípio de universalidade, princípio de competência universal ou princípio de
justiça mundial. A título exemplificativo, a Corte Constitucional Federal Alemã utiliza a expressão princípio de
universalidade ou princípio de justiça mundial. Por sua vez, na Espanha fala-se em princípio da competência
universal ou competência universal. (CORDERO, 2008).
20

moral e individual. A seguir, almeja-se analisar a teoria kantiana de proposição de um direito


cosmopolita, para na sequencia abordar teóricos contemporâneos que trabalham,
principalmente com o cosmopolitismo político, sociológico e jurídico, envolvendo
instituições e categorias que interessam ao direito e, sobretudo, ao princípio da jurisdição
universal.
Na sequência, partindo-se para a abordagem inicial do objeto de estudo desta
dissertação, já tendo sido explicada a base cosmopolita que é apresentada como fundamento
filosófico para a existência do princípio da jurisdição universal, abordar-se-á o modo como
ela é inserida no processo de internacionalização dos direitos humanos e de formação de uma
justiça penal internacional. Para tanto, serão abordadas as alterações em relação aos elementos
formadores de um Estado: o povo, a soberania e o território, apresentando a noção de valores
universais em matéria de direitos humanos, bem como de criação de normas internacionais e
formação de costumes que possibilitam a existência de uma fundamentação jurídica em torno
da necessidade de aplicação da competência universal em matéria de direitos humanos.

2.1 DO DIREITO COSMOPOLÍTICO AO COSMOPOLITISMO PÓS-


METAFÍSICO: FUNDAMENTOS COSMOPOLITAS QUE CONSTITUEM O
DEVER SER MORAL DO EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA UNIVERSAL.

Uma das categorias jurídicas oriundas das reflexões sobre a humanidade é o princípio
da competência ou jurisdição universal em matéria de direitos humanos. Segundo tal princípio
(RAMOS, 2015, p. 290), o Estado é autorizado a regular e sancionar condutas realizadas fora
de seu território com a finalidade de cumprir seu dever de cooperação internacional e combate
à impunidade3, ou ainda para proteger valores essenciais da comunidade internacional4 como
um todo.
Justamente nesse segundo aspecto que se enquadram as hipóteses de utilização da
jurisdição universal em matéria de defesa dos direitos humanos, conforme se verá no próximo

3
Essa primeira descrição vincula-se ao exercício da jurisdição universal de forma condicionada, uma vez que
para que a competência possa ser efetivada deve haver a satisfação de certas condições, como a presença do
suposto autor no território do Estado. Tais condições são elaboradas pelos Estados no momento da previsão do
princípio em suas legislações internas.
4
Tal descrição se vincula ao modelo de jurisdição universal absoluta, que tem como pressuposto de análise o
caráter internacional da ofensa. Assim, para esse modelo de jurisdição universal, a aceitação de um crime como
de direito internacional implica a possibilidade de exerce a competência para julgá-lo. Para essa concepção,
haveria uma obrigação do Estado de custódia, de processar ou extraditar (aut dedere aut judicare) – exercício de
universalidade delegada – que passaria ao princípio da universalidade absoluta na medida em que se tornaria
dever de todos os Estados exercer a competência, por se tratar de um crime internacional e pelo fato de as
violações aos direitos humanos configurarem verdadeiros ataques ao jus cogens. (JANKOV, 2005).
21

capítulo. Todavia o que faz com que, contrariando elementos clássicos em relação à soberania
nacional, um Estado se veja como competente para julgar violações cometidas por indivíduos,
por outro Estado ou mesmo por empresas transnacionais? Dentre algumas respostas que
podem ser dadas a esta pergunta, uma delas é estrutural para o desenvolvimento deste
capítulo: o sentimento de empatia e de compaixão pelo próximo quando este sofre alguma
violação. Olivier de Frouville (2015) afirma que, individualmente, quando vemos, ouvimos
ou temos notícia de alguma injustiça ou violação de direitos humanos em qualquer lugar que
seja do globo terrestre, grande parte de nós é tomado por sentimentos como empatia,
compaixão, solidariedade e fraternidade pelo próximo.
Isso se justifica pelo fato de a humanidade constituir-se de seres humanos que
individual e coletivamente não só pertencem a determinado Estado ou região com
particularidades e especificidades, mas antes de tudo fazem parte do cosmos, sendo capazes
de sentir compaixão mesmo por aqueles que sequer conhecem (ESPIELL, 1999). Este é o
fundamento do cosmopolitismo, teoria que será apresentada neste capítulo como basilar para a
compreensão dos alicerces teóricos e filosóficos para a existência da competência universal
em questões concernentes à violação de direitos humanos.
O cenário global do século XX não deixa dúvidas de que o princípio da humanidade
(CANÇADO TRINDADE; LEAL, 2016), que tem a pessoa humana e as relações de
solidariedade transnacional e intergeracional como suas bases, deve ser a pedra de toque para
reger não só o direito internacional como as relações entre os Estado, bem como entre Estados
e indivíduos do seu e de outros territórios. A percepção cosmopolita se enquadra na ideia de
que no processo de humanização do direito do pós-Segunda Guerra Mundial, o jus gentium
contemporâneo concebe os Estados e outras formas de organização sócio-política como
entidades que devem antes de qualquer outro compromisso, o respeito à pessoa e a
salvaguarda da humanidade.
Nesse sentido, Yves Charles Zarka (2015) destaca que a responsabilidade pela
humanidade pode ser considerada como suplementar, que direta ou indiretamente deriva de
atos individuais ou coletivos, públicos ou privados. Assim, nós não estamos comprometidos
somente como cidadãos de um Estado determinado em relação a outro homem, mas também
como cidadãos do mundo diante da humanidade inteira, solidários dessa humanidade. Deste
modo, a responsabilidade a que se fala é cosmopolita e, como tal, se reflete tanto na esfera
individual e moral, como coletiva, institucional e jurídica.
Para trabalhar com o que é o cosmopolitismo e como hoje ele é refletido na política e
nas instituições jurídicas da sociedade em rede, é pertinente realizar o resgate histórico da
22

teoria, com vistas a demonstrar que o cosmopolitismo tem sua origem totalmente atrelada aos
indivíduos e sua relação de pertencimento com o mundo, do que qualquer proximidade
político-institucional. Faz-se a ressalva ainda, de que o cosmopolitismo se apresenta como
uma teoria variável (SALDANHA, S/A), abordada por teóricos nos campos da filosofia,
política, sociologia, direito, dentre outros.
Por isso não se almeja esgotar as teorizações sobre o tema, pois como bem referem
Gisele Guimarães Cittadino e Deo Campos Dutra (2013) exaurir dúvidas sobre o verdadeiro
sentido do cosmopolitismo é tarefa enciclopédica que pode levar a uma conclusão vazia.
Assim, muito pelo contrário, abordar-se-á a questão com o intuito de apresentar o
cosmopolitismo jurídico como a base teórica para o desenvolvimento da jurisdição universal
em matéria de direitos humanos no mundo hoje. Para isso, pertinente o resgate do
cosmopolitismo filosófico dos antigos e dos modernos, com destaque para o direito
cosmopolita de Immanuel Kant.
O termo cosmopolitismo 5 teria tido sua origem na antiguidade greco-romana, mais
precisamente com Diógenes. Segundo contam os filósofos e historiadores, Diógenes, ao
responder o questionamento: “De onde você é?” teria dito que era cidadão do cosmos
(MOLES, 2007). Valéry Laurand (2015, p. 59) afirma que o cosmopolitismo dos antigos é
considerado por diversos estudiosos como cosmopolitismo negativo ou cosmopolitismo
antijurídico, vez que recusa todas as instituições existentes e parece fazer do mundo uma
cidade, sem ligação social ou de regulação entre os indivíduos. Ela ainda destaca que para
Diógenes e os cínicos, os impulsos e afetos humanos devem ser livres de toda e qualquer
norma, a fim de que a animalidade em cada um se exprima.
Assim, o cínico é cosmopolita no momento em que adota por padrão o mundo como
cidade, reduzido à sua habitação e tendo liberdade, a qual se definirá pelo fato de ser livre de
qualquer restrição, em especial as fundadas pela sociedade humana. A peculiaridade desse
tipo de cosmopolitismo é a ausência de um sentimento de alteridade e empatia pelo próximo,
no sentido de percebê-lo como alguém igual a si, e a exacerbação do individualismo de se ver
sem qualquer ligação com uma pólis ou com demais homens.
Nesse sentido, Laurand (2015, p. 68) complementa que a prática da ligação
interindividual é fundada na transgressão, atitude fundamental que constitui a maneira de

5
Pertinente o destaque trazido por Hauke Brukhorst de que o cosmopolitismo não é um projeto especificamente
europeu. Segundo ele, o cosmopolitismo havia sido inventado durante a Era Axial, etre 800 e 200 a.C, em vários
lugares diferentes e relativamente independentes um dos outros. Todavia, o termo cosmopolitismo foi
introduzido pela primeira vez no século IV a.C por filósofos gregos e, na sequência, aprimorado e reinterpretado
por romanos, cristão e, posteriormente, por filósofos modernos. (BRUNKHORST, 2011).
23

considerar o outro. A ligação cínica, portanto, não constitui algo que se possa chamar de
sociedade, visto que o relacionamento com os outros não possui um “cimento” como amizade
ou filantropia, é somente aberta a encontrar o outro como evento.
De forma semelhante era o cosmopolitismo dos estóicos. Segundo Brunkhorst (2011),
o cosmopolitismo desempenhava para a filosofia estoica as seguintes funções: a) função
ideológica de transfigurar impérios e seus imperadores; b) função filosófica prática de
conduzir o ser humano ao discernimento de perceber que faz parte de uma ordem mais
abrangente. Todavia, isso não seria possível a todos. Apenas um seleto grupo – o dos sábios –
poderia participar da “cidade universal”; c) função lógica e ontológica de finalizar a
representação teórica da ordem racional da existência. Dentro dessa estrutura, portanto,
novamente ressalta-se que o cosmopolitismo desenvolvido pelos antigos, não teve
importância direta em termos jurídicos e políticos, além de que, o atrelamento à perspectiva
puramente individual e metafísica é ressaltado pelo fato de que a maioria dos cosmopolitas
estava de acordo com a estrutura de dominação de classes no espectro do mundo político
existente.
A vinculação do cosmopolitismo com o direito passa a ser marcante na modernidade,
com os escritos de Immanuel Kant, no século XVIII, nos quais o termo é interpretado para
além de uma questão ética e pessoal e levado à esfera jurídico-política. Em sua obra À Paz
Perpétua, Kant (2008) trabalha com as questões da guerra e da paz, afirmando que ambos são
conceitos com caráter jurídico, de modo que a garantia da paz depende de estruturas jurídicas
institucionais. Para ele, o estado de natureza entre homens não é de paz, mas sim de guerra,
hostilidades e, mesmo que não existam hostilidades, tal estado não apresenta nenhuma
segurança para a paz, visto que não impede que povos ou pessoas tratem-se como inimigos.
Segundo Soraya Nour (2004, p. 38), ao sustentar a tese de um estado de paz através do
direito público, Kant defende a ideia de que o estado de natureza deve ser superado em todos
os seus níveis: não só entre indivíduos, mas também entre Estados, bem como entre Estados e
indivíduos em si. Desta premissa, o direito público então compreende três categorias distintas,
porém intrinsicamente ligadas e interdependentes: a) direito do Estado; b) direito das gentes e
c) direito cosmopolita.
A primeira categoria, a qual corresponde o direito interno estatal, encontra-se no
primeiro artigo definitivo da obra À Paz Perpétua: “A Constituição civil em todo Estado deve
ser republicana” (KANT, 2008). Aqui, a autonomia configura-se como elemento chave, uma
vez que o Estado seria administrado conforme as leis dadas por seu próprio povo. Assim
24

Soraya Nour (2004, p. 41) destaca que neste artigo pode-se visualizar a teoria contratualista
de Kant, que se distingue de outros teóricos da modernidade.

Kant desenvolve uma teoria contratualista que se distingue das de seus antecessores
por não pressupor que a liberdade no estado de natureza seja limitada, mas sim
deixada totalmente em favor da aquisição da liberdade como autonomia: o homem
abandona a “liberdade selvagem e sem lei” para “reencontrar em um estado jurídico
sua liberdade em geral” (NOUR, 2004, p. 41).

Essa teoria kantiana é fundada na noção de constituição republicana, vista como


funcionalmente pacífica, uma vez que expressa a vontade geral do povo, ou seja, dos que
assumem os encargos da guerra6. Até então, as teorias contratualistas da modernidade não
consideravam o cenário internacional composto por uma pluralidade de Estados. É justamente
do fato de Kant racionalizar radicalmente os argumentos contratualistas, passando a
considerar não somente as relações internas de um Estado, que nasce o segundo postulado da
obra À Paz Perpétua.
É da premissa de que a estrutura jurídico-política de um Estado em seu âmbito interno
também possui relação intrínseca com o comportamento deste no plano internacional que se
desenvolve o segundo artigo definitivo para a paz perpétua (KANT, 2008), qual seja, “O
Direito das Gentes deve se fundar em uma federação de Estados livres”. Os Estados, portanto,
tendo estrutura jurídica interna organizada em torno de constituições republicanas seriam
aptos ou capazes de se organizar em federações.
Deste modo, o direito internacional repousa, para Kant, na convergência de Estados
que dispõem de uma constituição republicana em âmbito interno. A paz deve decorrer de
liberdade, através da aliança de povos e não por meio de união ou Estado de povos, vez que
nesta última situação haveria hierarquia entre um e outro7.
Interessante a ressalva de que a proposta kantiana, condizente com o restante de sua
teoria é a de criação de uma federação de nações livres, o que segundo Ademar Pozzatti
Júnior (2014), alguns autores chamarão de Estado civil mundial ou Estado cosmopolita.
Assim, Kant não propagava a ideia de criação de um Estado mundial centralizado e unitário,
por acreditar que se assim ocorresse haveria dominação e hegemonia de um Estado sobre os

6
Para Kant, a paz depende a vontade do povo. Segundo o argumento de interesse próprio, ele destaca que os que
arcam com os encargos de uma guerra devem decidir se o Estado entrará em guerra ou não. Assim, seria natural
que os cidadãos pudessem decidir sobre isso, vez que eles suportariam as maiores aflições de um conflito em
grandes proporções (KANT, 2008).
7
Soraya Nour, nesse sentido afirma que Kant afirmava que um Estado Mundial é não apenas impossível do
ponto de vista político como inaceitável do ponto de vista moral: a diversidade de culturas, que é moralmente
desejável, deve ser preservada. (NOUR, 2004, p. 54).
25

demais. É em uma estrutura federativa que os Estados poderão zelar por sua segurança e pela
tutela de seus direitos não por meio da força, mas por meio da vontade de uma estrutura
complexa.
Por fim, o terceiro artigo definitivo para a paz perpétua (NOUR, 2004, p. 54), traz a
novidade da teoria kantiana. Até Kant, o direito tinha duas dimensões: direito estatal (interno
de cada Estado) e o direito das gentes, refletido pelas relações dos Estados entre si e dos
indivíduos de um Estado com os indivíduos de outro Estado (direito internacional). O terceiro
artigo dispõe sobre uma terceira dimensão do direito, apresentando-a sob o seguinte
enunciado: “O direito cosmopolita deve limitar-se às condições de hospitalidade universal”.
Consoante afirma Ademar Pozzatti Júnior (2014), nessa premissa Kant apresenta a
teoria de um direito cosmopolita, capaz de se configurar como o direito dos cidadãos do
mundo, uma vez que considera cada indivíduo não como membro de seu Estado, mas como
membro, ao lado dos Estados, de uma sociedade cosmopolita. O caráter jurídico do direito
cosmopolita é enfatizado por Kant, ao afirmar que o terceiro artigo definitivo de seu projeto
de paz perpétua não se trata de filantropia, mas sim de direito, o qual só seria limitado pelas
condições de hospitalidade universal.
Quanto a essas condições, Zarka (2015, p. 26) afirma que a hospitalidade universal -
que se configura como conteúdo do direito cosmopolita de Kant - é fundamentada na
circularidade da Terra. Se nosso planeta é uma superfície esférica fechada em si mesmo e não
um horizonte plano ilimitado, pelas próprias condições geográficas, não é possível evitar a
proximidade dos indivíduos. Assim, o direito cosmopolita é o direito dos cidadãos do mundo,
que considera cada um como membro de uma sociedade cosmopolita. Como destaca o próprio
Kant (2008, p. 22), os habitantes da Terra passam a constituir um sistema em que ataques a
um direito em um lugar da Terra é sentido em todos os outros lugares.
Em relação às teorias até então expostas, Louis Lourme (2012, p.31), sob o ponto de
vista filosófico, determina que há uma diferença grande em se afirmar como cidadão do
mundo na antiguidade, na modernidade e nos dias atuais. Ser cosmopolita para os cínicos e
estóicos era interpretar o mundo como uma grande cidade, em que os que usassem
“convenientemente” a razão – ou seja, somente os sábios e deuses – poderiam livremente
circular, configurando uma cidadania cosmopolita nada universalista.
A modernidade por sua vez, com o pensamento kantiano, ampliou essa noção, de
modo que se pode afirmar que o mundo tornou-se progressivamente mais sensível aos
indivíduos, com enfoque também à alteridade (a proposta de hospitalidade universal e direito
de visita corroboram essa afirmação). Além disso, uma das grandes novidades da proposta de
26

um direito cosmopolita, como um terceiro nível do sistema jurídico é a adoção de uma visão
institucional e jurídica em relação ao cosmopolitismo, constituindo a teoria de que nenhum
Estado é inteiramente livre para fazer o que quiser no interior de suas fronteiras. Pelo
contrário, o direito cosmopolita estabelece princípios que restringem não só a soberania
externa, como a soberania interna dos Estados.
Desta feita, o direito cosmopolita kantiano serve como base filosófica para ancorar o
atual exercício de competência universal em matéria de direitos humanos. A mentalidade
alargada dos juízes nacionais que aplicam tal princípio nos dias atuais encontra fundamento
na noção de colocar-se no lugar do outro e na proteção de valores humanos de cariz universal.
Na própria construção de seu imperativo categórico, Kant sobreleva o valor humano sobre
todos os demais e assim determina que se deva agir de tal modo que se tome a humanidade,
tanto na perspectiva de si próprio, como na de qualquer outro, sempre como fim, nunca
meramente como meio.
O projeto de paz perpétua kantiano, nos séculos que o seguiram, não passou de um
ideal filosófico. Nesse sentido inclusive, Julie Allard (2008, p. 70) destaca que os
nacionalismos pungentes dos séculos XIX e XX relegaram o cosmopolitismo ao lugar de
ideologias decadentes. Somente após a Segunda Guerra Mundial, com as experiências de
crimes contra a humanidade e posterior internacionalização dos direitos humanos, ocorre uma
reativação de interpretações cosmopolitas sobre o mundo, principalmente nos campos político
e jurídico. Nesse sentido, a pergunta que passa a nortear esse capítulo a partir de agora é: o
que o cosmopolitismo nos dias atuais?
O resgate histórico realizado, de modo breve, até aqui constitui elemento importante
para a construção das bases filosóficas do cosmopolitismo. Como bem assevera Zarka (2015),
o cosmopolitismo dá à responsabilidade pela humanidade o seu fundamento ontológico e
jurídico e, justamente por essa razão, a reconstrução histórica das bases filosóficas das teorias
cosmopolitas é relevante. Os teóricos dos séculos XX e XXI, no entanto, ampliaram as
reflexões sobre essa questão, de modo que, consoante refere Jânia Saldanha (S/A), hoje os
estudos sobre cosmopolitismo são vastos, apresentam teorias variáveis e com amplitudes e
âmbitos diversos, de modo que se mostra uma tarefa hercúlea tentar mapear todas as teorias
desenvolvidas sobre o tema.
Na contemporaneidade, muito mais do que nutrir uma visão romântica, o
cosmopolitismo busca compreender filosófica, política, jurídica e sociologicamente a
27

mundialização 8 , tendo como base a preocupação com a organização jurídico-política do


mundo e com possibilidades de universalizações. Louis Lourme (2012, p.15) utiliza-se de
uma categorização interessante sobre a questão. Para ele, embora uma definição única,
singular e definitiva sobre o termo seja impossível, é possível que se façam algumas
classificações acerca do que já foi desenvolvido.
Assim, o autor define quatro modalidades de cosmopolitismo (LOURME, 2012, p.
15): a) cosmopolitismo como uma maneira de ser – significa viver como cidadão do mundo
sem que necessariamente exista fundamento teórico para isso; b) cosmopolitismo como
realidade sociológica – segundo Lourme, essa modalidade diria respeito à coexistência, em
um mesmo lugar, de comunidades ou indivíduos de culturas diferentes; c) cosmopolitismo
como projeto político (e jurídico) – tentativas de construir, na esfera política e, por extensão,
na esfera jurídica, quadros obedecendo a princípios cosmopolitas e, por fim d)
cosmopolitismo como concepção de mundo – aquele em que a maneira como o indivíduo
funda sua visão de justiça ou de moral se dá a partir de sua noção de pertencimento ao mundo.
Além das modalidades, as quais definem o cosmopolitismo em aspecto prático (a e b)
ou teórico (c e d), individual (a e d) ou social (b e c) ou como modalidade de ação (a, c e d),
Lourme realiza ainda um importante trabalho de classificação dos tipos de cosmopolitismo
(LOURME, 2012, p. 18), que será usada ao longo desse trabalho. Segundo ele, existem cinco
tipos de cosmopolitismo. O primeiro é o chamado cosmopolitismo moral, que frequentemente
se liga com conceitos de filosofia cosmopolita dos cínicos, dos estoicos, de Kant e, que hoje
refletem sobre as possibilidades de reivindicação de uma cidadania mundial.
Com proximidade em relação ao cosmopolitismo moral, outra categoria apresentada
por Lourme (2012, p.19) é a do cosmopolitismo cultural. Este é o que contempla o binômio
das relações de pertencimento ao mundo e pertencimento a determinada cultura em
específico.
Na sequência há o cosmopolitismo político ou institucional, o qual tenta traduzir no
campo político os ideais do cosmopolitismo. Esse é um tipo interessante para os objetivos que
aqui serão propostos e defendidos, uma vez que o cosmopolitismo político reflete um novo
pensamento frente a uma organização política internacional que, não possui somente Estados,
8
Na obra “Três Desafios para um Direito Mundial”, Mirelle Delmas-Marty observa as particularidades dos
termos globalização, mundialização e universalidade, quais sejam: “A mundialização remete à difusão espacial
de um produto, de uma técnica ou de uma ideia. A universalidade implica um compartilhar de sentidos”. Em
outra passagem, disserta: “Difusão espacial de um lado, compartilhar os sentidos de outra, estas duas fórmulas
descrevem muito bem a diferença que separam os dois fenômenos que eu denominarei globalização para a
economia e universalização para os direitos do homem, guardando assim o termo mundialização uma
neutralidade que ele jamais perderá, caso não se resigne rapidamente ao primado da economia sobre os Direitos
do Homem”. (DELMAS-MARTY, 2003, p. 08-09).
28

mas também outros atores internacionais e sujeitos de direito internacional. Esse tipo de
cosmopolitismo, juntamente com o que Lourme (2012, p. 21) chama de cosmopolitismo
sociológico, induz à reflexão de que o cosmopolitismo deixa de ser apenas um ideal distante e
uma teoria meramente filosófica e passa a fazer parte da realidade mundial, configurando-se
em realidade sócio-política.
Ao fim, a última categoria enunciada por Lourme (2012, p. 22) e que deriva das
demais é a do cosmopolitismo jurídico. Neste a indagação é de que modo o direito é capaz de
retransmitir os ideais cosmopolitas. Assim, a reflexão desse tipo de cosmopolitismo é a de
que, partindo-se de noções morais e políticas, sejam pensadas de que maneira as instituições
existentes podem construir um direito cosmopolita na atualidade.
É justamente esse tipo de cosmopolitismo que serve de base teórica para justificar a
tutela da humanidade por meio do exercício da jurisdição universal em matéria de direitos
humanos. O caminho para a construção do cosmopolitismo jurídico, o qual embasa a justiça
em escala global, passa necessariamente por suas bases filosóficas, já abordadas aqui, bem
como pela construção de uma cidadania mundial, advinda do cosmopolitismo moral, assim
como da perda do protagonismo do Estado na sociedade em rede, reflexões realizadas pelos
cosmopolitismos político e sociológico.
A paisagem política, jurídica e social alterou-se profundamente após a Segunda Guerra
Mundial. Mireille Delmas-Marty (2004b), ao analisar essa questão, sobretudo na seara do
direito afirma que enquanto na tradição romano-germânica deparamo-nos com um espaço
normativo estatal, tempo normativo marcado pela duração e ordem normativa legal, no
contexto mundializado da sociedade em rede, o monopólio estatal é posto em xeque,
conformando um espaço desestatizado, uma configuração do tempo desestabilizada e uma
ordem deslegalizada. No entanto, não são somente as configurações jurídicas que foram
alteradas na mundialização. No campo social, Appiah (2006, p. 14) afirma que nos últimos
séculos, quando todas as comunidades humanas passaram gradualmente a formar uma rede
única de comércio e uma rede global de informações, alcançou-se o ponto em que cada ser
humano pode imaginar a possibilidade de se colocar em contato com qualquer outro em
qualquer continente do planeta.
A compressão temporal e espacial oriunda das facilidades das redes de informações
leva à interconectividade e à noção de que não só é possível influenciar nas vidas de todo
planeta como aprender sobre a vida que se desenvolve em qualquer lugar, de modo que se
pode compreender o mundo como uma tribo global (APPIAH, 2006, p. 15). Nesse sentido,
Appiah (2006, p.18) assevera que dois aspectos se entrelaçam configurando o cosmopolitismo
29

por ele defendido: o primeiro é a ideia de responsabilidade pelo outro, ou seja, de que temos
obrigações que se estendem para além dos laços de parentesco. O segundo, por sua vez,
consiste em valorizar as vidas humanas em particular, estimando as crenças das diferentes
culturas. O cosmopolitismo para Appiah, portanto, aproxima-se do cosmopolitismo cultural,
em que o interesse pelo universal e o respeito pelas diferenças legítimas são analisados.
Ao lado do cosmopolitismo cultural, no aspecto de cosmopolitismo moral, uma das
autoras constantemente referidas é Martha Nussbaum por seu trabalho denominado
Patriotismo e Cosmopolitismo (NUSSBAUM, 1999). Esta, ao propor a tese de uma educação
cosmopolita, desenvolve sua teoria na consolidação do que ela determina por sentimento
cosmopolita. Tendo como base a filosofia dos estoicos e de Kant, ela afirma que cada um de
nós habita em duas comunidades: a local, aquela em que nascemos e a comunidade de
deliberações e aspirações humanas, da qual emanam as obrigações morais com o restante da
humanidade. Ao defender, portanto, sua noção de cidadania mundial, Nussbaum afirma que
ser cosmopolita supõe considerar o igual valor de todos os seres humanos como limitação
reguladora de nossas ações e aspirações políticas.
Assim, o local de nascimento de um indivíduo nada mais é do que um acidente
(NUSSBAUM, 1999) e para a cidadania mundial, a nacionalidade, a etnia, a classe social ou a
raça de alguém nada mais é do que uma característica moralmente irrelevante. Para ela então,
o fato de alguém ter nascido no Brasil ou na Índia, de ser homem ou mulher, índio ou negro
nada mais é do que um acidente, algo que não deve ser considerado moralmente determinante.
Evidentemente, embora acidental, o local de nascimento, as relações de parentesco, o
pertencimento a um grupo com características culturais semelhantes auxiliam no suporte da
ideia de que todo indivíduo tem mais filiações do que a humana. Deste modo, consoante
Nussbaum todo homem estaria rodeado por uma série de círculos concêntricos de lealdade ou
filiação:

(...) enquanto o primeiro círculo é o eu, o segundo abarcaria a família imediata, o


terceiro a família extensa, a continuação e, por essa ordem, os círculos vizinhos ou
grupos locais, o dos concidadãos e dos compatriotas (esta esfera também
compreenderia a todos os grupos baseados em identidades éticas, linguísticas,
históricas, profissionais, de gênero ou sexuais), finalmente ao redor de todos esses
círculos se englobaria o maior de todos eles, aquele que englobaria a todos, o da
humanidade inteira (ALONSO, 2002, p. 173).

Ainda segundo ela:

Não devemos abandonar nossos afetos e identificações particulares, sejam essas de


tipo étnico, religioso ou baseadas no gênero. Não é necessário que as pensemos
30

como algo superficial, posto que, em parte constituem nossa identidade. Podemos e
devemos dedicar-lhes uma especial atenção na educação. Mas, ao mesmo tempo,
devemos também trabalhar para fazer com que todos os seres humanos formem
parte de nossa comunidade de diálogo e que sejam de nossa incumbência; basear
nossas deliberações políticas nesta comunidade entrelaçada e conferir uma atenção
especial e um respeito especial ao círculo que define nossa humanidade
(NUSSBAUM, 1999, p. 20).

A grande preocupação então trazida com Nussbaum é com os riscos de um patriotismo


cego, que rechace a noção de que todos os seres humanos pertencem ao mundo. Por isso, ela
menciona que a ênfase no orgulho patriótico é moralmente perigosa, pois em última instância
é capaz de subverter até mesmo os valores que mantém a nação unida. Para ela então o ideal
cosmopolita, como contraponto do patriotismo, é importante para a propagação de valores de
preocupação com toda a comunidade de seres humanos.
Tanto em Nussbaum como em Appiah percebe-se que o ideal cosmopolita se encontra
entre o universalismo e o particularismo cultural. Ser cidadão do mundo não é sinônimo de
renunciar as identidades locais, muito pelo contrário, são essas particularidades que
constituem uma enorme fonte de riqueza vital. Nesse viés, o cosmopolitismo moral de
Nussbaum e o cosmopolitismo cultural de Appiah encaixam-se dentro de três importantes
princípios do cosmopolitismo apresentados por Lourme (2012, p.23): princípio da igual
dignidade, princípio da diversidade e princípio da obrigação.
Ao defenderem a ideia de que na tribo global, nossos deveres devem ser pensados não
só em função de nossos próximos, mas também em função da humanidade, os autores
destacados corroboram para a construção do princípio cosmopolita da igual dignidade, que
vem complementado pelos princípios da diversidade – no qual não há hierarquização das
diferenças – e da obrigação, que, na noção de enraizamento de Appiah (2006, p. 29) significa
articular o pertencimento teórico ao mundo da humanidade com a realidade local dos
indivíduos em suas próprias culturas.
Pertinente salientar, no entanto, que embora importante para a categoria moral de
cosmopolitismo, alguns pontos da teoria de Nussbaum são criticados por outros autores.
Olivier de Frouville (2015, p. 15), nesse sentido, afirma que duas são as principais críticas à
teoria da autora. A primeira delas é a de que um sentimento cosmopolita como propõe
Nussbaum seria inacessível aos comuns mortais. Nesse aspecto, a autora embasa seu
pensamento, sobretudo, na visão dos estoicos do cosmopolitismo e, esses, embora
considerassem a prerrogativa de ser pertencente ao local em que se nasce e ao cosmos, só
reconhecem tal prerrogativa aos sábios (LAURAND, 2015, p. 68). Assim, Frouville
31

determina que esse sentimento cosmopolita é construído por filósofos e considerado somente
por eles mesmos, dependendo de uma sorte de ascese em relação ao restante dos mortais.
Importante ainda o destaque de que, embora não reconheça a noção de sentimento
cosmopolita de Martha Nussbaum, Frouville, com base na fenomenologia explica a percepção
do outro, que está longe de nós, por meio do exercício da “emoção cosmopolita” ou “paixão
cosmopolita” que teria na solidariedade o seu embasamento. Outro aspecto de crítica ao
pensamento de Nussbaum reside em pontos de sua obra em que subestima o valor moral do
patriotismo.
Richard Falk (1999, p. 67) exemplifica muito bem esse tipo de crítica à Nussbaum. Ele
destaca que, embora seja simpatizante das teorias da autora, sente-se inquieto diante do
implícito apoio dela a uma visão polarizada que culmina em tensões entre o cosmopolitismo e
a consciência nacional. A partir disso, Falk apresenta a teoria de que ao longo do século XX e
nos ainda recentes anos do século XXI, ambos os polos apresentam problemas.
O polo patriótico apresenta como principal instituição o clássico modelo de um Estado
soberano, com fortes traços de autonomia e consciência nacional. Porém, na realidade atual,
essas autonomias bem como a primazia do Estado se encontram gravemente desafiadas ou
suplantadas pela globalização. Os fluxos econômicos internacionais produzem reflexos para
as esferas internas dos Estados, alterando a capacidade de investimento em bem estar social e
políticas públicas.
Assim, ao passo que a globalização favorece cada vez mais ao desaparecimento da
noção de um Estado humano, também impulsiona casa vez mais o desenvolvimento de
Estados Neuróticos, ou seja, cada vez mais as pressões globalizadoras induzem as forças
políticas representativas, como é o caso dos governantes e partidos políticos a adotar políticas
que contradigam a própria identidade ética que os define (FALK, 1999, p. 70). Para Falk
(1999, p. 69), a viabilidade ética do patriotismo depende da estrutura de um Estado humano,
com espaço público eficaz e válida participação cidadã. Como o cenário imposto pela
globalização é outro, adotar de modo estanque uma perspectiva nacionalista para, por
exemplo, alcançar uma realização política ou para enxergar o mundo passa a ser uma espécie
de ilusão.
Do outro lado, no polo cosmopolita, segundo Falk (1999, p. 71) os vetores estoicos e
kantianos apresentam perspectivas de dever ser que, por vezes, não encontram lugar na
realidade do globalismo contemporâneo. Assim, para que o cosmopolitismo não seja
visionário, deve conter uma crítica ao globalismo dos mercados que, ao ser colocado em
prática, minimiza o conteúdo ético de ver o mundo como um todo.
32

Por fim, Falk irá defender a premissa de que em relação às expectativas sobre
educação, aspirações éticas e lealdade política, no cenário atual, é um erro insistir na ótica
polarizada de perceber o mundo. Ele propõe então reestruturações nesses três campos
(educação, aspirações éticas e lealdade política) com vistas a evitar a polarização entre
patriotismo e cosmopolitismo e promover um diálogo, pois as relações globais no século XXI
não deveriam mais aplicar a lógica binária de separação entre partes e todo como aspectos
apartados.
Essa reflexão final se aproxima de alguns aspectos da teoria de Ulrich Beck sobre o
cosmopolitismo, pois, ao analisar o que é o cosmopolitismo (BECK, 2006, p. 30), ele
apresenta categorias importantes no sentido cultural e sociológico, mais precisamente das
relações entre os indivíduos. Assim, o referido autor menciona que o conceito de
cosmopolitismo possui duas dimensões: uma que aponta para um passado remoto (pré-
nacional) e outra que ruma para o futuro (pós-nacional). A primeira delas refere-se às
concepções iniciais dos antigos sobre cosmopolitismo e a segunda demonstra a redescoberta
do termo diante das vicissitudes da mundialização, em que é apresentado como conceito
positivo oposto à ordem do mercado e do Estado nacional.
Na visão de Beck, o cosmopolitismo é apresentado enquanto categoria científico-
social para uma forma especial de relação social com o culturalmente diferente e, na esteira da
proposta de Falk, o conceito de cosmopolitismo se caracteriza pela superação do dualismo
global/local, local/nacional, internacional/nacional, uma vez que o princípio do
cosmopolitismo pode ser encontrado e praticado nas mais diferentes regiões do globo (BECK,
2006, p. 31). Ele apresenta três formas modernas de se relacionar com o culturalmente
diferente, que, apesar de se interagirem entre si, não devem ser confundidas: o universalismo,
o nacionalismo e o cosmopolitismo.
O primeiro termo, universalismo, segue o princípio da superação das diferenças. Beck
afirma que a condição de possibilidade deste princípio é o desenvolvimento de normas
universais capazes de permitir a fundamentação e institucionalização da igualdade. Deste
modo, o princípio universalista substitui a diversidade de normas por uma norma unitária.
Outra forma de se relacionar com o diferente é o nacionalismo, princípio referido por
Beck como a forma típica de relação com o diferente da primeira modernidade 9. Este unifica

9
Segundo o que será apresentado alhures, Ulrich Bech define que a primeira modernidade teria sido composta
por sociedades nacionais marcadas por rápida industrialização e consolidação por meio de várias revoluções
políticas e industriais ao longo dos séculos. A segunda modernidade é a marca dos dias atuais, ou da denominada
modernidade reflexiva em que estruturas da primeira modernidade são questionadas e colocadas em xeque pela
assunção de riscos e problemas de caráter transnacional ou global. (BECK, 2005).
33

as diferenças, separando-as conforme distinções nacionais. Assim como o universalismo, a


lógica nacionalista, consoante refere Beck (2006), segue a premissa de “ou este ou esse”,
aspirando internamente a superação das diferenças e a unificação de normas, porém, em
âmbito externo, produz mais diferenças. Nesse sentido:

(...) o nacionalismo carece de qualquer tipo de norma que lhe permita regular a
relação com o diferente que existe fora dele. (...) Deste modo, o nacionalismo
exacerbado não só apresenta recursos comuns com o universalismo como também
com formas pré modernas de subordinação hierárquica. Daí a propensão a negar a
igualdade de direitos a outras nações, a apresenta-las como bárbaras (...)(BECK,
2006, p.33). (tradução livre).

Por fim, a terceira forma moderna de se relacionar com o diferente é o


cosmopolitismo, que converte o reconhecimento das diferenças na máxima a ser perseguida
em relação ao pensamento, à convivência e à ação, sendo que o princípio que rege o
cosmopolitismo é o do “não só como também”. As diferenças são elementos que enriquecem
e serão aceitas e valoradas como tal. Por isso, percebe-se o outro como diferente, mas também
como igual. Uma questão interessante que Beck destaca é que o cosmopolitismo exige revisão
nos conceitos de integração e identidade. Assim:

(...) um conceito que permita uma convivência acima de qualquer fronteira, sem que
isto implique necessariamente sacrificar a particularidade e a diferença no altar da
suposta igualdade (nacional). Deste modo, identidade e integração já não são
simplesmente outras formas de nomear a hegemonia sobre o outro ou os outros, a
hegemonia de maiorias sobre minorias. O cosmopolitismo aceita a diferença, mas
não a converte em algo absoluto, senão que ao mesmo tempo busca vias para fazê-la
universalmente aceitável (BECK, 2006, p. 34). (tradução livre).

Embora tenham características diferentes, os conceitos anteriormente explicitados se


inter-relacionam e se complementam entre si. Segundo Beck (2006, p. 36), o cosmopolitismo,
de uma parte requer a existência de normas universais que permitem regular a relação com o
diferente. Casos essas normas universais não existam, corre-se o risco de o cosmopolitismo
degenerar-se em formas de particularismo pós-moderno ou violência.
Da mesma forma, se o cosmopolitismo almeja garantir não só identidades e direitos
individuais, mas também direitos coletivos, é importante que existam mecanismos políticos
capazes de estabilizar institucionalmente a diferença coletiva. Nesse aspecto é pertinente o
recurso ao nacionalismo, que historicamente é a forma mais exitosa de dotar de normas
universais a diferença coletiva. Caso faltem esses estabilizadores, o cosmopolitismo pode se
transformar em universalismo substancial.
34

A partir dessa breve explanação sobre os tipos moral e cultural de cosmopolitismo, é


interessante o recorte feito por Jeremy Waldron (2000). Segundo ele, pode-se analisar o
cosmopolitismo em duas instâncias: a primeira delas é a das atitudes cosmopolitas ou do
estilo de vida cosmopolita no plano individual, na qual o adjetivo em questão indica um modo
de estar no mundo, uma maneira de construir uma identidade para si próprio, a qual difere ou
é oposta à ideia de pertencer ou ter devoção a uma única cultura. Essa é a perspectiva
abordada pela ideia de cidadania mundial, presente nas concepções de cosmopolitismo moral
e cultural.
A segunda percepção trazida por Waldron é abordada no plano da filosofia política, do
direito e da sociologia, haja vista que se trata da noção de cosmopolitismo refletida em
instituições na sociedade mundializada. O paradigma westfaliano de compreensão do cenário
político-jurídico internacional sofre modificações relevantes no século XX, de modo que,
concomitantemente ao processo de globalização no campo econômico, teóricos passam a
realizar novas leituras do cosmopolitismo, apontando-o como norte para compreensão da
multidimensionalidade dos fenômenos sociais, políticos e jurídicos em escala global.
Como bem destaca Marcílio Franca (2006), o paradigma westfaliano é fundamental
para que se compreenda o modelo de Estado e de direito desenvolvido ao longo dos séculos,
uma vez que foi com a Paz de Westfália, de 1648, que houve não só o desenvolvimento da
estrutura do Estado Moderno, como também a estruturação da sociedade internacional
assentada em um sistema de Estados e na afirmação da absoluta independência recíproca dos
diferentes ordenamentos estatais. Juridicamente, portanto, o paradigma westfaliano aí
apresentado é responsável pela afirmação formal da soberania estatal laica e pelo
estabelecimento de uma nova ordem mundial para o período, marcada por um pensamento
jus-político dominado por governos centralistas, fronteiras rígidas, soberania interna exclusiva
e horizontalidade formal na relação entre Estados.
A mundialização do século XX impacta de modo considerável o paradigma
westfaliano. A esfera econômica marcada pela globalização dos mercados,
transnacionalização de atores e de fluxos comerciais, bem como a esfera dos direitos
humanos, marcada pela universalização acabam por exigir respostas do raciocínio jurídico e
político dotadas de institucionalidade para estabelecer uma nova organização de forças
propulsoras com a intenção, principalmente de humanização e de democratização no seio da
sociedade global.
É nesse contexto que, conforme assevera Ademar Pozzatti Júnior (2014), o
cosmopolitismo ressurge como uma alternativa teórica e prática capaz de dotar de respostas os
35

raciocínios político e jurídico. Isso porque, ao mesmo tempo em que não retira a importância
dos Estados, também contempla outros atores das relações internacionais e sujeitos de direito
internacional, como é o caso dos próprios indivíduos.
Como bem destaca Beck (2005), o conceito de cosmopolitismo não se confunde com o
de globalização. O primeiro se refere ao processo multidimensional que visa modificar a
natureza histórica dos mundos sociais e a importância dos Estados nesse contexto.
Globalização, por sua vez, consoante já se explicitou alhures, vincula-se com a economia,
tendo, como assevera Valéria Ribas do Nascimento (2008), uma imagem poliédrica ao se
vincular como um fenômeno que engloba uma rede complexa de interações, influências e
fluxos, ligando localidades distintas, de modo que as transformações em escala local
influenciam no espectro global e vice-versa.
Apesar de, como destaca Immanuel Wallerstein, a globalização ser um acontecimento
propriamente moderno (WALLERSTEIN, 2002), é no século XX, sobretudo na década de
1970 que o fenômeno globalizatório promove alterações políticas capazes de criar novas
formas de sociabilidade articuladas e impostas. Novas configurações geopolíticas começam a
ser estabelecidas, de modo que tanto o alcance quanto o ritmo de interações globais crescem
acelerando fluxos e alterando laços entre os Estados.
Alfonso De Julios-Campuzano (2009, p.83) destaca que a intensificação dos fluxos
comerciais em âmbito transnacional, juntamente com a dependência crescente dos Estados
com relação às empresas transnacionais e às forças que operam no mercado global acabam
por gerar consequências diretas à capacidade de controle estatal. A soberania tão enaltecia no
paradigma westfaliano, torna-se porosa em uma rede complexa de interdependências em que,
paulatinamente os Estados tornam-se submissos ao poder econômico transnacional.
Vive-se uma crise multifacetária da arquitetura estatal, que deriva do alto grau de
relações de interdependência entre os Estados, tanto pela redefinição de suas funções, quanto
pela fragilização de sua singularidade e pela fragmentação de sua estrutura diante da
superposição de instituições mundializadas (SALDANHA, S/A). Diante dessa realidade de
intensificação de relações econômicas, surgimento de novos atores no cenário internacional e
nascimento de novas esferas de tensão – hoje não se vivem mais guerras mundiais, mas
situações de terrorismo, violação de direitos humanos e demais riscos em esfera global –
alguns teóricos estabelecem críticas às propostas cosmopolitas, afirmando que não passam de
mero ideal filosófico.
Um dos críticos de maior envergadura é Danilo Zolo. Seguindo o viés do realismo das
relações internacionais, Zolo (1997) se mostra cético em relação ao alcance da paz por meio
36

do cosmopolitismo. Um de seus pontos de crítica se relaciona com a descrença em relação à


existência de um governo mundial com estruturas centralizadas e, sua crítica se assenta em
três modelos de organização mundial que, segundo ele, não foram capazes de garantir a paz: a
Santa Aliança, a Sociedade das Nações e a Organização das Nações Unidas. Para o autor, a
formação de um governo mundial, de uma justiça universal e de uma constituição global são
pressupostos implícitos de qualquer abordagem cosmopolita que defenda uma autoridade
supranacional e universal com poderes efetivos para intervir no sentido de manter a paz.
O grande déficit em relação ao trabalho de Zolo é o de insistir no fato de que a ótica
cosmopolita de paz é vinculada à existência de um Estado mundial centralizado ou a um
governo mundial forte e centralizado. Nesse sentido, Daniele Archibugi (2005) refere que há
insistência de Zolo em forçar essa interpretação de um governo mundial centralizado,
perspectiva não só distante da de Kant, que previa a formação de uma federação de Estados,
mas também de diversos autores contemporâneos sobre o cosmopolitismo, que privilegiam
soluções institucionais mais flexíveis e menos pesadas do que propriamente a formação de um
império ou uma federação.
Um exemplo disso são os esforços de alguns autores, sobretudo a partir da década de
1990, em abordar o viés cosmopolita e democrático na esfera de teoria da governança e da
cidadania globais (BRENNAN, 2003). Nesse sentido, Daniele Archibugi (2005), ao defender
a noção de uma democracia cosmopolita afirma que não se pode confundi-la com o projeto de
um governo mundial, que concentra forças em uma única instituição, mas pelo contrário, um
projeto que invoca alianças voluntárias entre instituições das mais diferentes esferas, em que o
poder coercitivo é compartilhado, em última instância, entre os atores e submetido ao controle
judicial.
Assim, para Archibugi (2005), o projeto de uma democracia cosmopolita tem como
objetivo a democratização do sistema internacional, propondo a implantação de uma
sociedade democrática dentro, entre e para além dos Estados. A estrutura da democracia
cosmopolita, para o autor, é vista em relação aos diferentes níveis de governança, também
denominados de redes de interação: espaço local, estatal, interestatal, regional e mundial.
David Held (1997), assim como Daniele Archibugi, ao propor sua noção de
democracia cosmopolita, em nenhum momento apresenta como tese a de um Estado mundial
centralizado, bem como não prevê o fim dos Estados. Segundo ele, a democracia em tempos
de globalização deve ser repensada em razão do surgimento de novos atores internacionais e
de questões que transcendem as fronteiras dos Estados.
37

Ao utilizar as reflexões de Kant como um de seus pontos de partida, Held defende um


direito democrático cosmopolita, que deve ser baseado não somente nos domínios de poder
das comunidades políticas, mas também nas redes de interação que atravessam fronteiras. O
direito público democrático, que é respaldado pelo direito democrático cosmopolita, é
interpretado por Held (1997, p. 272) como um direito da humanidade, pois se consagra dentro
de um Estado e através das fronteiras.
Na estrutura de uma comunidade política cosmopolita, em que os Estados deixam de
ser os únicos centros de poder, até mesmo dentro de suas próprias fronteiras, o direito
democrático cosmopolita poderia ser defendidos pelos Estados e por sociedades democráticas
que sejam capazes de reunir o juízo político necessário e aprender como as instituições e as
práticas políticas devem se adaptar às novas circunstâncias oriundas da mundialização. Uma
dessas adaptações, por exemplo, concerne ao próprio conceito de soberania, que, segundo
Held (1997, p. 279), na mundialização pode se desprender da ideia de fronteiras e territórios
fixos e ser pensada como uma constelação espaço-temporal maleável.
Além da manutenção do Estado, o modelo democrático proposto por Held não exige
que no seio da comunidade cosmopolita haja integração política e cultural fundada na
homogeneidade de crenças, valores e normas. Admite-se a pluralidade de identidades e, para
que essa pluralidade persista ao longo do tempo, cada identidade deve reconhecer a outra
como presença legítima, de modo que, a única base para cultivar e proteger o pluralismo
cultural e a diversidade de identidades é a implementação do direito democrático cosmopolita.
O modelo de democracia cosmopolita proposto por Held é capaz de constituir
fundamento teórico para justificar a existência do princípio da jurisdição universal em matéria
de direitos humanos, uma vez que o paradigma cosmopolita por ele proposto admite a
existência de Estados, porém com uma noção de soberania diferenciada da noção moderna do
termo, bem como reconhece e admite diversidades culturais e a existência de uma cidadania
mundial. Assim, enquanto cidadão mundial, um indivíduo em algum ponto do globo que sofre
violação de direitos humanos seja por ação de um Estado, seja por ação de entes particulares,
como é o caso de empresas transnacionais, seria capaz de demandar em qualquer Estado que
possua em seu ordenamento jurídico regras sobre exercício de jurisdição universal.
As teorias cosmopolitas vinculadas à esfera de governança e cidadania globais
possuem como ponto chave para o raciocínio observar o paradigma cosmopolita diante das
vicissitudes da mundialização. A noção de que os Estados não são mais os únicos sujeitos de
direito internacionais e de que os fluxos do mercado financeiro são determinantes nas relações
globais, não são as únicas características da mundialização. Ulrich Beck (2005) apresenta uma
38

importante noção para o que ele denominará de mirada cosmopolita: o compartilhamento dos
riscos no mundo atual. Violações de direitos humanos, terrorismo, degradações ambientais,
risco oriundos da tecnocracia, dentre outros eventos são casos em que as respostas não são
atinentes a somente um ou alguns Estados, mas que afetam ao globo terrestre como um todo.
Desta forma, a despeito da crítica da corrente realista das relações internacionais, aqui
exemplificada através do pensamento de Danilo Zolo, Beck afirma que o cosmopolitismo hoje
não mais é um dever ser ou um idealismo utópico (2006). Pelo contrário é uma realidade
latente no mundo mundializado, pois, dadas as condições do mundo globalizado, o
cosmopolitismo agora é menos uma questão de ideal filosófico do que uma sociologia em
transformação.
A partir dessa premissa Beck apresenta a definição de mirada cosmopolita. Esta é
oriunda do fato de que a realidade se tornou cosmopolita em razão não só das transformações
em curso na sociedade mundial, mas em função da transnacionalização de riscos globais,
como é o caso do terrorismo, violações de direitos humanos ou de direitos ambientais. Para
compreender essa complexidade é preciso desprender-se da ótica nacional de observar o
mundo e as instituições, o que Beck vai denominar de superação do nacionalismo
metodológico. Isso significa romper com paradigmas clássicos de observação do mundo,
saindo da territorialmente limitada ótica nacional para a mirada cosmopolita.
Nesse novo paradigma, três são as etapas para o desenvolvimento de uma ótica
cosmopolita (MACEDO, 2011): a primeira configura-se pela distinção conceitual do
cosmopolitismo em relação a outros fenômenos que com ele se relacionam ou com ele podem
se confundir; a segunda etapa apresenta as contradições entre o nacionalismo metodológico e
a cosmopolitização real e, por fim, a terceira etapa propõe uma nova gramática de
investigação e compreensão de mundo tendo por base uma ciência social cosmopolita.
Na primeira etapa mencionada, Beck caracteriza três tipos diferentes de
cosmopolitismo (BECK, 2006): o primeiro deles seria o cosmopolitismo filosófico, tomado
como ideal; o segundo seria o cosmopolitismo político, que tem como referência os atores
sociais e as tarefas de uma concepção da política centrada no Estado. Por fim, Beck traz
reflexões profundas sobre o que ele denomina de cosmopolitismo sociológico ou
metodológico. Neste, o instrumental teórico e metodológico das ciências sociais se dirige
contra o nacionalismo implícito de seu sistema conceitual, visto que outro marco de
observação, que não o nacional, é necessário para compreender as vicissitudes da
mundialização.
39

Ainda dentro dessa tipologia, a distinção mais pertinente é da de cosmopolitismo e


cosmopolitização (ou cosmopolitismo real). O primeiro é reflexo de uma dimensão ativa,
configurando-se como uma missão orientada para a organização do mundo. Já a
cosmopolitização é reflexo de uma dimensão passiva, de emergência dos fenômenos sociais
que ocorrem em decorrência da globalização no campo econômico e da mundialização no
campo político (2005, p. 53).
Assim, segundo Beck (2005, p. 104) a cosmopolitização é um processo não linear e
dialético em que conceitos como universal e contextual, semelhante e distinto, global e local
não devem ser interpretados como polaridades culturais, mas como princípios que se
imbricam. A realidade, portanto, como se verá mais adiante neste trabalho, se torna
cosmopolita, sobretudo a partir da nova dialética dos perigos globais e de interdependência de
relações entre as diferentes esferas de tomada do poder. Desta maneira, os riscos da
civilização radicalizam potencialmente a consciência das normas em nível global, fundam a
opinião pública e possibilitam uma ótica cosmopolita, que favorece ao cosmopolitismo dentro
das instituições.
A partir da cosmopolitização, a realidade se torna cosmopolita em seu núcleo
enquanto as formas de pensamento e de consciência ainda se encontram atreladas à metafísica
dos Estados nacionais. A alteração de dimensões espacial e temporal promovidas pela
cosmopolitização demonstra que as relações nacional-nacional, que marcam o paradigma
westfaliano dão lugar a relações de padrão translocal, local-global, transnacional, nacional-
global, global-global.
A mirada cosmopolita indubitavelmente abala os pilares modernos das estruturas
sociais e questiona os princípios do nacionalismo metodológico e da mirada nacional. No
cosmopolitismo da realidade, a interiorização discursiva do global afeta não só às estruturas
sociais modernas presas à metafísica dos Estados, como também categorias e métodos de
investigação sociológicos. Assim, a mirada cosmopolita inclui a nacional, porém o contrário
não é possível. Observar situações transnacionais somente sob a ótica nacional causa déficits
de compreensão dos fenômenos globais. A internacionalização que subjaz à mundialização
exige reflexões sobre o papel das instituições, porém sob um ponto de vista cosmopolita, em
que redes de interação de diferentes níveis são capazes de se comunicar e apresentar propostas
de solução a problemas de nível global.
Desta forma, a mirada cosmopolita se aplica às instituições nos mais diversos níveis,
seja na estrutura interna dos Estados ou no cenário internacional. No pensar sociológico, as
instituições ainda se encontram atreladas à mirada nacional e ao nacionalismo metodológico,
40

porém, as experiências práticas da cosmopolitização demonstram que, sob o viés empírico-


analítico, os fenômenos globais necessitam de uma mirada cosmopolita para que sua plena
compreensão seja alcançada.
Um exemplo disso se vincula ao objeto principal desse trabalho: o princípio da
jurisdição universal em matéria de direitos humanos. A cosmopolitização ou o
cosmopolitismo da realidade, a partir do desenvolvimento de redes de interação multinivel,
coloca em questão princípios como territorialidade e soberania. O fato de um juiz nacional
julgar violações de direitos humanos ocorridas em outro Estado e envolvendo sujeitos que não
possuem vinculação alguma com seu território de origem, como é o caso das previsões de
jurisdição universal absoluta, abala de modo muito grande compreensões construídas pela
modernidade. Para que se possa de fato compreender e tornar eficaz esse princípio, essa nova
ótica de percepção e compreensão da humanidade se faz necessária. A cosmopolitização
como diz Beck altera muitas das percepções modernas, de modo que o próprio nacional, por
exemplo, não é somente o nacional, mas o global interiorizado (BECK, 2006, p.128).
Essa reflexão remonta-nos ao quinto e último tipo de cosmopolitismo destacado por
Lourme (2012), o cosmopolitismo jurídico. Como refere Jânia Saldanha (S/A), o ideal de
construção de uma cidadania mundial, que é a base do cosmopolitismo moral, e a perda pelo
Estado, na mundialização, da sua condição de único sujeito de direito internacional, situação
que gera reflexões ao cosmopolitismo político e sociológico, propulsiona indagações sobre o
modo como o direito e as estruturas jurídicas reagem ao cosmopolitismo e à cosmopolitização
e, de que forma seria possível pensar em uma justiça em escala mundial, na qual ao centro
estaria o cosmopolitismo jurídico.
Na concepção de Lourme, sob os auspícios do cosmopolitismo de realidade, na prática
jurídica já estaríamos diante de sinais tangíveis de cosmopolitização oriunda das redes de
interação multinível entre os diferentes atores internacionais e sujeitos de direito
internacional. Duas são as situações de cosmopolitização jurídica para ele: a) os diálogos
entre jurisdições e b) a deslocalização judiciária, qual seja, a escolha de um fórum (fórum
shopping) para julgar determinado litígio. Essas categorias propostas por Lourme são também
encontradas nos escritos de Julie Allard (2008, p.61), que afirma que a mundialização do
direito ocasiona borrões nas fronteiras nacionais ao designar uma abertura do direito nacional
às normas e decisões tomadas em nível mundial.
Segundo ela, a mundialização do direito deve ser percebida através de uma ótica
cosmopolita, para que se possam universalizar valores relativos aos direitos humanos e
revisitar conceitos da modernidade que não mais podem ser interpretados por meio de uma
41

ótica nacional. Desse modo, os sistemas jurídicos na mundialização tornam-se próximos e se


comunicam, havendo a emergência de solidariedade e do diálogo em nível global. A noção de
cosmopolitismo permite interpretar o deslocamento de fronteiras, principalmente entre direito
nacional e internacional e a recomposição de ligações para além dessas fronteiras.
Em específico, os casos de deslocalização judiciária, nos quais estão as situações de
exercício da jurisdição universal, fundamentam a legitimidade de uma leitura cosmopolita da
mundialização do direito, na medida em que eles pressupõem ou produzem uma forma de
solidariedade humana e de consciência política global, independentemente da nacionalidade
dos indivíduos e do sistema jurídico ao qual pertencem (ALLARD, 2008).
Assim como as concepções políticas de cosmopolitismo, a visão jurídica deste também
não defende a criação de uma estrutura hegemônica e centralizada para a aplicação do direito
em escala mundial. Nesse sentido, é importante o cosmopolitismo de relação de Mireille
Delmas-Marty (2004a). Para ela, o direito na mundialização é caracterizado por um enorme
caos normativo e judiciário. A tradicional e moderna pirâmide kelseniana dá lugar a estruturas
disformes e novas geometrias jurídicas em formatos indefinidos que representam os pontos de
contato e de colisão entre os mais diferentes sistemas jurídicos, nas mais diversas esferas.
Seria então possível criar um direito comum pela unificação dessas esferas? Para ela, o
necessário não seria a unificação para a criação de um direito comum, mas tentativas de
ordenar o plural existente no caos jurídico. O direito comum dito em suas obras não tem a
pretensão de unificar o direito no texto, pois isso seria uma tarefa utópica e perigosa, assim
como não se almeja a existência de uma justiça mundial ou tribunal mundial em razão de
riscos de hegemonia.
A ideia, no entanto, é a de exploração da pluralidade como potencial poder de
integração, vez que as redes dinâmicas e as estruturas vetorizadas pelos direitos humanos
presentes nas novas geometrias jurídicas oriundas da mundialização, se pautam no
reconhecimento do outro como verdadeira forma de alteridade e solidariedade, bem como no
sentimento de pertencimento em relação à humanidade. Para estabelecer a formação desse
direito comum através da ordenação do plural três são os processos apresentados: a
coordenação por entrecruzamento; a harmonização e a unificação (DELMAS-MARTY,
2006).
A coordenação por entrecruzamento caracteriza-se por ser um processo horizontal em
que a autoridade das decisões será reforçada pelo jogo de referências cruzadas de uma
jurisdição à outra. Essa é uma fase transitória na construção de uma ordem jurídica mundial,
em que a internormatividade e a interpretação cruzada permitem a formação de, no mínimo,
42

uma comunidade de juízes. É na coordenação que reside o procedimento de diálogo entre os


juízes, uma realidade no campo da cosmopolitização da justiça e que será tratado nos
capítulos seguintes.
Se o primeiro processo de interação é a coordenação, o segundo é a harmonização, que
tende a aproximar os sistemas com um propósito coordenativo, porém sem a intenção
unificadora. Os elementos que permitiriam essa aproximação, em matéria de direitos humanos
seriam os valores universais em relação a esses. Tal processo limita-se a uma integração
imperfeita, pois particularidades nacionais são mantidas, porém exige-se o reconhecimento
mútuo em relação ao outro. A competência universal em matéria de direitos humanos estaria
aqui reconhecida.
Por fim, dentro da noção cosmopolita de Delmas-Marty, o último processo de
ordenação do plural é o de unificação. Do ponto de vista formal, seria o processo perfeito por
unir ordens jurídicas de diferentes níveis sob um mesmo modelo hierárquico. Entretanto, sob
o enfoque empírico, essa perfeição está longe de ser garantida, vez que a unificação consiste
na transferência pura e simples do regramento jurídico de um país para outro, em um tipo de
verticalização que é capaz de gerar dominação e hegemonia, sem o respeito à pluralidade.
Nesses processos, o direito é visto como uma ferramenta da mundialização, capaz de
organizar o caos jurídico existente, dando-lhe o mínimo de coerência, além de o mínimo de
estruturação às relações globais. No âmbito da deslocalização judiciária, em que
simultaneamente ocorrem processos de externalização de problemas internos (refletidos em
demandas realizadas em tribunais internacionais) e internalização de problemas externos (em
que o maior exemplo é o de competência universal) (LOURME, 2012) o viés de observação
do direito atrelado a noção da existência de valores universais cosmopolitas é capazes de
justificar tanto o uso da competência universal como a globalização de emoções e de
sentimentos de empatia e compaixão para com aqueles que tem seus direitos humanos e
fundamentais violados.
O princípio da jurisdição universal, desta forma, suscita no plano interno tensões entre
direito e poder, colocando em crise conceitos clássicos como o de soberania e de imunidade
de jurisdição entre os Estados. Igualmente, a deslocalização da justiça por meio da
competência universal contribui para a universalização de casos particulares e do sofrimento
proveniente de violência institucionalizada ou sacrificial, da injustiça e da natureza dos fatos,
de modo que as vítimas, em razão da supremacia dos direitos humanos de cariz universal ou
universalizável, são estimuladas a buscar justiça em outro foro pelo fato de seus direitos não
43

terem sido tutelados em seu sistema de justiça de origem (SALDANHA; BOLZAN DE


MORAIS, 2014).
Dentro dessa conceituação jurídica em relação ao cosmopolitismo, Seyla Benhabib é
capaz de fornecer elementos importantes para a conformação de um dever ser em relação à
competência universal em matéria de direitos humanos. O cosmopolitismo pós-metafísico de
Benhabib (2004) tem como um de seus pontos de partida a teoria kantiana, visto que os
dilemas normativos de pertencimento político dos indivíduos se focavam na esfera do direito
cosmopolita.
Para ela, o cosmopolitismo de Kant configura-se como importante legado à
humanidade, sobretudo por ser um modelo teórico que, não só foi capaz de abalar com
entendimentos do direito internacional clássico e da concepção wetfaliana de soberania, como
pavimentou caminhos para a transição dessa concepção para a soberania liberal internacional.
Enquanto na primeira estrutura os Estados deveriam ser livres e iguais, com autoridade sobre
todos os objetos e seres em seu território, na segunda concepção a igualdade entre os Estados
é crescentemente dependente de suas subscrições a valores comuns e princípios, como a
observância dos direitos humanos, por exemplo.
Nesse viés, alguns elementos da modernidade e do paradigma westfaliano, segundo
Benhabib são hoje anacrônicos e necessitam de novas compreensões e definições diante da
realidade conjunta de ascensão de normas internacionais de proteção aos direitos humanos
com cariz cosmopolita e, de porosidade e fragmentação das soberanias estatais. Assim,
enquanto a estrutura westfaliana valoriza a integridade territorial e a autoridade jurisdicional
como elementos unificados, a globalização acentua o processo de desacoplamento da
jurisdição e do território. Está-se diante, portanto, de uma crise de territorialidade, incapaz de
ser plenamente compreendida sob a ótica do racionalismo moderno e das estruturas ainda
westfalianas.
Sob a base kantiana, Benhabib (2006, p.18) afirma que os direitos humanos almejam
proteger os seres humanos enquanto indivíduos ou coletividades e não enquanto cidadãos de
certos Estados. Por isso a pretensão é de incorporar um direito cosmopolita e internacional
que não depende de autoridade na vontade dos Estados. Logo, aspiram abrigar obrigações
éticas universais sob a forma da lei.
Para Seyla Benhabib (2006, p.16) desde a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, em 1948, entrou-se em uma fase de evolução da sociedade civil global caracterizada
pela transição de normas internacionais por normas cosmopolitas de justiça. As primeiras são
compreendidas como regras que dispõem sobre questões tais quais obrigações e tratados ou
44

acordos bilaterais ou multilaterais entre os Estados. As segundas, por sua vez,


independentemente de sua origem legal, possuem direcionamento para os indivíduos como
pessoas morais e legais em uma sociedade civil global. Dotam-se, portanto, os indivíduos de
prerrogativas e direitos independentemente de seus Estados, o que propicia bases para a
humanização do direito internacional. É justamente com base nessas últimas normas que o
substrato capaz de sustentar o princípio de jurisdição universal está ancorado.
Deste modo, as noções de cosmopolitismo apresentadas por Benhabib o
consubstanciam como um projeto filosófico de mediação, em que as normas que devem reger
as relações entre indivíduos e Estados na sociedade global não são nem meramente morais,
nem só legais, devendo ser compreendidas e analisadas na concepção de moralidade da lei em
um contexto global. Elas assinalam a legalização e a juridificação do direito dos seres
humanos em qualquer lugar do mundo, independentemente de sua filiação em uma
comunidade delimitada.
Logo, pensar os valores universais sob a ótica de observação cosmopolita estabelece
bases para a reflexão dos fundamentos filosóficos que sustentam a noção de tutela da
humanidade. A questão a ser refletida a seguir é a dos fundamentos jurídicos existentes para a
proteção da humanidade por meio da aplicação do princípio da competência universal.

2.2 JURISDIÇÃO UNIVERSAL NO QUADRO DOS DIREITOS HUMANOS:


FUNDAMENTOS JURÍDICOS PARA A TUTELA DA HUMANIDADE.

“O Estado é grande demais para questões pequenas e pequeno demais para questões
grandes”. Assim define Luigi Ferrajoli (2007, p. X) a atmosfera do cenário político-jurídico
internacional atual, em que a crise do Estado (STRECK; BOLZAN DE MORAIS, 2012, p.
136) coloca em xeque questões herdadas do racionalismo moderno. Jacques Chevallier (2009)
afirma que o fim do século XX e o início do século XXI carregam consigo a paradoxal
característica da antimodernidade e da hipermodernidade, ao pretenderem romper, em certos
pontos, com elementos modernos ao passo que exacerbam outras condições herdadas de tal
construção social, política e ideológica.
O Estado, a despeito da globalização, continua a ser um importante ator das relações
internacionais, porém, princípios e institutos jurídicos criados e aperfeiçoados ao longo das
últimas décadas contêm em si elementos de antimodernidade no momento em que abalam, ou
no mínimo questionam, alguns pilares de sustentação modernos do Estado, como é o caso do
45

povo, do território e da soberania. Segundo Lênio Streck e José Luiz Bolzan de Morais (2012,
p. 163), muito embora particularidades e terminologias conceituais acerca do Estado tenham
diferido ao longo da história (Estado Absoluto, Estado Liberal, Estado de Bem Estar Social,
Estado Democrático de Direito), tradicionalmente os elementos referidos acima têm sido
apontados como constitutivos dessa instituição.
O que se pretende apresentar inicialmente neste subcapítulo é o fato de que esses
elementos passam a ser questionados e redimensionados não só diante da mundialização
como um todo, mas principalmente frente a um dos fenômenos mais relevantes das últimas
décadas: o processo de internacionalização dos direitos humanos e de tutela da humanidade.
Nesse sentido, como destaca Gustavo Oliveira Vieira (2015, p. 101) ainda que a
mundialização tenha uma evidente face predatória e, que de um lado, se desenvolva como um
processo hegemônico do capitalismo transnacionalizado, a reação anti-hegemônica surge
guiada pela bandeira dos direitos humanos, com a presença simultânea tanto de movimentos
sociais e lutas populares pela defesa de direitos individuais e coletivos, como através da
normatização e institucionalização de direitos, no sentido de estabelecer um mínimo ético
universal através da garantia legal de direitos básicos a todos os seres humanos do planeta.
Assim, um dos primeiros elementos que se vê influenciado pelo século XX e XXI é o
povo, elemento material subjetivo que constitui um Estado. Segundo Lênio Streck e José Luiz
Bolzan (2012, p.165), o povo realça o aspecto jurídico do grupo vinculado a uma determinada
ordem normativa, sendo um conceito jurídico-constitucional. Nesse sentido, é possível
afirmar que ele difere tanto de população, como de cidadão. Este último, conforme sua
concepção moderna, é o nacional de determinado Estado dotado de direitos políticos, e aquela
diz respeito a todos os que habitam o território, ou seja, engloba todas as pessoas, inclusive as
que se encontram temporariamente em determinado Estado.
Diante das atrocidades cometidas durante as duas grandes guerras mundiais, restou
claro que o nacionalismo extremado pode se configurar como um grande risco. Stefan Zweig
(2014) em sua biografia no qual descreve a Europa do entre guerras, destaca que em um curto
período de tempo, uma geração presenciou catástrofes inimagináveis oriundas de uma das
piores “pestes”, o nacionalismo. O sentimento que brota no seio de um povo, de pertença a
determinado local e de partilhamento de referências, mais do que com Estado se relaciona
com o conceito de nação, a partir do momento em que identidades referentes à origem,
interesses e credos se unem na forma de um elemento psicossocioantropológico em
determinado Estado.
46

Em tempos de mundialização e crescimento exponencial de deslocamento de


indivíduos por meio de migrações internacionais, o sentimento de pertencimento a um grupo
deve estar ao lado do sentimento de alteridade e de humanidade em relação aos demais grupos
e indivíduos. Essa é a base, conforme já se demonstrou, do cosmopolitismo moral de Martha
Nussbaum e, mesmo crítico da autora, Olivier de Frouville (2015, p.17), em aproximação
breve com o pensamento de Nussbaum, afirma que nas últimas décadas a maneira de
consciência sobre o mundo gera uma mudança significativa em relação ao outro e provoca a
passagem brutal de uma categoria a outra: a percepção do outro como um total estranho pode
passar da não identificação absoluta à emoção cosmopolita, ou seja, a uma verdadeira
compaixão ou solidariedade efetiva em favor de um ser distante que não conhecemos e que é
capaz de nos despertar algum sentimento.
Isso corrobora a afirmação feita por Jürgen Habermas de que os direitos humanos são
como as duas faces de Janus (HABERMAS, 2001): possuem tanto uma dimensão moral e
ética, quanto uma dimensão jurídica, ambas capazes de afetar indivíduos isolados ou em
comunidades. Para o autor, a tensão aqui existente é entre o sentido universal dos direitos
humanos, os quais devem valer de modo ilimitado a todos, e as condições locais para sua
efetivação. Esse binômio pode ter suas bases de solução justamente na teoria cosmopolita
vinculada aos direitos humanos, cujo processo de expansão lançou as bases para a chamada
internacionalização do direito constitucional, a partir da inclusão de valores, normas e
princípios de direitos humanos no ordenamento jurídico interno dos Estados.
Deste modo, a partir das reflexões de Olivier de Frouville (2015, p.18), é possível
perceber que essas duas faces de Janus se entrelaçam e se confundem, no momento em que,
para ele, o direito tem por função a tentativa de dotar de perenidade as emoções cosmopolitas,
que caso contrário, restariam até hoje frustradas em um mundo de Estados soberanos regidos
pelo direito internacional moderno. A emoção em relação aos outros para além das fronteiras
se pereniza e se transforma em um verdadeiro sentimento cosmopolita, que necessita do apoio
de um direito cosmopolita.
A retomada de traços do cosmopolitismo kantiano, pelo cosmopolitismo pós-
metafísico de Seyla Benhabib (2004) propõe, em relação à construção de um direito, a partir
da observação das relações de interdependência entre o nacional e o internacional na
mundialização. Isso gera a necessidade de anexos e interações democráticas entre esses dois
planos a fim de ampliar as noções de pertencimento e de reconhecimento do outro, para além
do nacional.
47

Sustentando sua teoria, Benhabib (2004) refere que a noção de identidade de


determinado povo pertencente a um Estado, na modernidade configurou a cidadania nacional,
de modo que a noção de pertencimento à determinada comunidade tornou-se dependente
desta categoria. Todavia, a era atual demonstra que não só a soberania do Estado se
fragmentou, como também a instituição da cidadania vem sendo desagregada. O
pertencimento político e os direitos advindos da condição de cidadão, indubitavelmente
continuam tendo importância inestimável no plano interno dos Estados, mas de modo
crescente a transnacionalidade e os deslocamentos humanos por entre fronteiras estatais
tornaram-se centrais para o (re) pensar de uma teoria de justiça global.
Nesse sentido, diante desse cenário em que elementos do paradigma moderno de
Estado e westfaliano de direito internacional são diuturnamente colocados em xeque frente à
mundialização, um dilema é posto para as democracias liberais: o embate entre o clamor por
autodeterminação soberana e os princípios de direitos humanos. Isso porque, em geral, há
uma contradição entre as disposições normativas sobre direitos humanos e a soberania estatal,
a qual clama pelo fechamento ou controle de fronteiras.
Nas condições atuais da sociedade global, nem é possível ou viável o anseio pelo fim
dos sistemas de Estados, muito menos nos encontramos em um estágio em que seja possível o
desenvolvimento de uma cidadania global. Uma saída luminosa então pode se dar, como se
defende nesse trabalho, através das teorias cosmopolitas, sobretudo nos planos jurídico e
político. Nesse viés, o pensamento de Julie Allard torna-se extremamente pertinente:

O cosmopolitismo designa uma referência política (polis) ao mundo (cosmos),


frequentemente pensada, após o Iluminismo, sobre um modo jurídico: a união
política dos homens à escala planetária passa, em efeito, pela instauração de um
direito que lhes seja comum e que vá reger suas relações. Essa questão se torna
ainda mais urgente em razão da mundialização e da crise do Estado Nação, que (re)
mobilizam o pensamento cosmopolita: o cosmopolitismo contemporâneo procura
pensar filosoficamente a mundialização através da questão da organização política
universal (ALLARD, 2008, p.61) (tradução livre).

Sob essa ótica de interdependência e universalidade, ao mesmo tempo em que a


dimensão internacional dos direitos da pessoa humana se reflete no plano interno dos Estados,
com a alteração de regras e normas jurídicas e com a mudança de alguns aspectos da noção de
povo enquanto elemento constitutivo dos Estados, a soberania é outra característica que se vê
alterada pelo processo de mundialização. Segundo Lênio Streck e José Luiz Bolzan de Morais
(2012, p. 167) o conceito de soberania foi firmado no século XVI, vinculado ao Estado
48

Moderno e à concepção política de oposição do poder do Estado em relação aos demais


poderes.
Luigi Ferrajoli (2007, p.03), ao teorizar sobre a temática, defendeu a existência de
soberania interna e soberania externa, sendo a primeira a história da progressiva limitação do
instituto, paralelamente à formação dos Estados constitucionais e democráticos de direito,
enquanto a segunda configura-se como a história de sua progressiva absolutização, tendo
alcançado seu ápice no século XX, durante os grandes confrontos mundiais. Segundo
Ferrajoli (2007, p. 05), a primeira dessas conceituações a ser teorizada foi a soberania externa,
de modo que suas formulações iniciais remontam ao nascimento do direito internacional
moderno e servem a uma função eminentemente prática de oferecer fundamento jurídico à
conquista do Novo Mundo, nos séculos XV a XVII.
Francisco de Vitória teria sido um dos principais teóricos capazes de lançar os
alicerces do direito internacional moderno e, simultaneamente do conceito moderno do Estado
como sujeito soberano (FERRAJOLI, 2007, p.07), com a configuração da ordem mundial
como sociedade natural de Estados soberanos livres e independentes, sujeitos apenas à guerra
justa e ao direito natural. No século XVII esse modelo vitoriano entrou em crise diante do
duplo processo de secularização e absolutização que compuseram a formação da ideia
moderna do Estado como pessoa artificial.
Assim, absolutiza-se primeiro a soberania externa, de modo a se adaptar,
realisticamente, à divisão da Europa em novos Estados soberanos, consoante pactuado pela
Paz de Westfália em 1648. Hugo Grotius é apresentado como um dos teóricos mais relevantes
de tal período, vez que concebe o direito como elemento autônomo não só em relação à moral
e à teologia, como também em relação ao direito natural, derivando da vontade e dos
interesses dos sujeitos mais fortes da comunidade internacional. No caso da guerra, por
exemplo, Ferrajoli (2007, p.19) destaca que Grotius admite como lícito aos beligerantes matar
todos os que se encontrarem em território inimigo, inclusive mulheres, crianças e prisioneiros.
A soberania interna, por sua vez, é afetada pela teoria jusnaturalista do século XVII,
por meio da noção de possuir caráter absoluto. Jean Bodin, em 1576, em obra denominada
Les six Livres de la République, apresentou como únicos limites para a soberania interna dos
Estados as leis divinas e naturais. Para os contratualistas como Hobbes, os limitadores da
soberania estatal, sendo o Estado visto como pessoa dotada de personalidade, eram a lei
natural observada como princípio da razão juntamente com o vínculo contratual da tutela da
vida dos súditos.
49

Sob a égide dessa última teoria, se o Estado é soberano internamente, ele o é por
necessidade e não poderão existir fontes normativas superiores a ele. A soberania externa dos
Estados, por sua vez, estabelece na comunidade internacional, o estado natural de
desregramento, superado internamente pelo contrato social (FERRAJOLI, 2007, p.20). Deste
modo, o Estado moderno enfrenta o paradoxo de internamente a soberania ser fator de fim do
estado natural de guerra de todos contra todos e, externamente em tal momento haver a
fundação de uma comunidade de Estados que, justamente em razão da soberania, justificavam
as guerras externas.
É nesse sentido que Immanuel Kant afirma que no plano externo, os Estados modernos
encontram-se em situação de guerra de todos contra todos, sendo necessário estabelecer a paz
por três vias sucessivas: o estabelecimento da república em âmbito interno, a fundação de uma
federação de Estados livres no plano externo e, ainda nesse plano, a formação de um direito
cosmopolita, objetivando estabelecer princípios e regras acerca das relações entre indivíduos e
Estados.
Como leciona Ferrajoli (2007, p.27), alguns dos valores modernos em relação à
soberania já começaram a ser questionados e abalados durante a Revolução Francesa, no
século XVIII. No plano interno, há a progressiva limitação da soberania por meio da
configuração de um direito estatal. O governante deve se submeter ao princípio da legalidade,
à incipiente normatização dos direitos fundamentais e à suposta vontade da maioria, de modo
que a relação entre Estados e cidadãos já não é mais uma relação entre soberano e súditos,
mas entre dois sujeitos, ambos de soberania limitada.
Em tal período, nos ordenamentos jurídicos internos, os antigos direitos naturais
passaram a ser consagrados e positivados como universais. Essa universalidade é parcial e
corrompida pelo hábito de reconhecer o Estado como fonte única de direito, de modo que os
direitos do homem se achatam diante da normativização dos direitos do cidadão. Estes
últimos, internamente configuram bases de igualdade entre os indivíduos nacionais e
externamente tecem privilégios para uns, sendo ao mesmo tempo fonte de discriminação em
relação a outros.
Nesse ponto, a base do direito cosmopolita de Kant, a hospitalidade universal, tem
como objetivo fazer frente justamente a essa fonte de discriminação que pode ocorrer em
relação a indivíduos que não são cidadãos de determinado Estado. Isso porque, a
hospitalidade descrita por ele se refere ao direito de visita do estrangeiro ao território de
determinado país e, no exercício de tal visita, o estrangeiro tem direito à hospitalidade estatal,
a ser acolhido e bem tratado pelo período em que se encontrar no território.
50

Internamente, o Estado configura-se como um sistema jurídico fechado,


autossuficiente e o monopólio da força por ele alcançado passa a ser subordinado ao direito.
No âmbito externo, ainda marcado pela progressiva absolutização da soberania, prevalece o
domínio do mais forte, de modo que, no século XX a vontade livre dos Estados no cenário
internacional atingiu formas desenfreadas e ilimitadas, a ponto de duas grandes guerras
eclodirem em menos de cinquenta anos.
O final da Segunda Guerra Mundial, como já dito outras vezes neste trabalho, foi o
marco da mudança teórica de estruturação da soberania dos Estados, sobretudo no plano
externo. Isso porque, de um sistema westfaliano de igualdade entre os entes soberanos e
domínio a todo custo do mais forte sobre os demais, começam a ser instauradas bases para a
concretização do processo de humanização do direito internacional (CANÇADO
TRINDADE, 2006), o que se reflete no desenvolvimento da internacionalização dos direitos
humanos e na internalização posterior de valores universais sobre os direitos do homem.
Como afirma Antônio Augusto Cançado Trindade, a metade final do século XX
constrói o reconhecimento da centralidade dos direitos humanos como um novo ethos de
nossos tempos (2006, p.112). Com isso, tem-se incitado à revitalização dos próprios
fundamentos e princípios do direito internacional, tendendo a realizar abstração de soluções
jurisdicionais e espaciais (territoriais) clássicas e deslocando a ênfase para a noção de
solidariedade e para o princípio da humanidade.
Conforme se falou anteriormente, no plano interno a conformação dos direitos
fundamentais começou a se estruturar no século XVIII, com a Revolução Francesa. Nos
pleitos da burguesia, valores como a liberdade, o direito à vida e à igualdade formal entre os
indivíduos, passaram a ser baluartes da defesa de um Estado absenteísta, cujo ordenamento
jurídico possuía a função de resguardar tais direitos contra eventuais violações. Desta forma, a
preocupação com direitos fundamentais, embora ainda tímida, já estava prevista e
normatizada no plano interno.
A internacionalização, ou seja, a transcendência e ampliação desses direitos para o
âmbito internacional, efetivamente começou a ser feita a partir do pós 1945, diante do total
vilipêndio cometido, principalmente contra a população civil, durante os confrontos mundiais.
Alguns precedentes de internacionalização surgiram no começo do século passado, como é o
caso do direito humanitário ou de regras trabalhistas em âmbito internacional, na Convenção
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1919. Todavia foram a Carta de São
Francisco, que em 1945 criou a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Declaração
51

Universal dos Direitos do Homem (DUDH) de 1948, que transformam, ao menos no plano
normativo, a ordem jurídica mundial.
A Declaração auxiliou na elaboração de uma ética comum ao consagrar um conjunto
de valores, ditos universais, consensualmente estabelecidos e que devem ser respeitados pelos
Estados. Como refere Gustavo Oliveira Vieira (2015), os direitos humanos estabelecem
vínculos entre direito e moral criando espaços para a alteridade e a sociabilidade mundiais.
Esse é o elemento inicial para a criação de um Direito Internacional dos Direitos
Humanos, que trata do direito de todos, independentemente de nacionalidade, credo, raça ou
opção política e que obriga os Estados a assumir deveres e responsabilidades em prol dos
indivíduos, ampliando e alterando a lógica da reciprocidade dos tratados internacionais
tradicionais (RAMOS, 2015, p. 29). Nesse cenário, como destaca Ferrajoli (2007, p. 40), a
soberania deixa de ser uma liberdade absoluta e selvagem e passa a se subordinar
juridicamente a duas normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos
humanos, cujos valores passam a transcender a esfera de um só Estado, implicando, ao menos
formalmente, em um universalismo inoculado pela adoção, por parte dos entes estatais de um
mesmo texto de direitos humanos, imposto pela ratificação de tratados (RAMOS, 2015, p.35).
A disseminação de normas cosmopolitas de direitos humanos acompanha e influencia
as transformações da soberania no século XX. O nascimento do sistema onusiano rompe com
alguns paradigmas do direito internacional moderno, sobretudo ao alterar o eixo central de
uma liberdade plena para os Estados, que eram os únicos sujeitos de direito internacional,
para a humanização do direito, vislumbrada principalmente pela inclusão do indivíduo no rol
dos sujeitos de direito internacional e pela criação de órgãos políticos e jurisdicionais
internacionais de supervisão e controle dos Estados para que estes não violem direitos dos
indivíduos.
Desta forma, como leciona Ferrajoli (2007, p.40) forma-se um verdadeiro
ordenamento jurídico supra estatal, com a inclusão das normas protetivas dos direitos
humanos na esfera de jus cogens, ou seja, de normas imperativas sobre todas as outras e com
mudança de estrutura do cenário jurídico mundial, vez que se passa de um pacto associativo
de Estados para um pacto de sujeição às regras de Direito Internacional dos Direitos
Humanos. Nesse cenário, uma vez que as referidas transformações estão alterando a soberania
estatal, é importante distinguir entre soberania do estado e soberania popular.
Seyla Benhabib (2006, p.26), ao propor e realizar essa distinção, afirma que a
soberania, partindo-se do referencial de pensamento moderno ocidental pode ser narrada
como uma negociação constante entre esses dois polos, o estatal e o popular. Assim, no
52

primeiro polo, soberania significa a capacidade de um Estado agir como alicerce definitivo e
indivisível da autoridade com a jurisdição de exercer o monopólio sobre os meios de
violência, juntamente como a gestão da justiça, da política e da economia.
O segundo polo, desenvolvido como outrora mencionado, a partir da Revolução
Francesa, denota a ideia do povo como sujeito e objeto do direito, envolvendo instituições
representativas, separação de poderes e garantia do igual valor de liberdade de cada um. As
normas cosmopolitas de direitos humanos, como ressalta Benhabib (2006, p.26) alteram a
soberania na medida em que reforçam o projeto de soberania popular e forçam a abertura da
soberania estatal, principalmente diante de demandas que impulsionam a ruptura com a
territorialidade, ou seja, o desacoplamento entre jurisdição e território.
Neste novo paradigma de soberania, a premissa é de que a solidariedade impere
enquanto valor moral e enquanto princípio jurídico orientador dos atos dos Estados. Essa é a
premissa de Alain Supiot (2015a, p. 25), que vislumbra entre os conceitos polissêmicos de
solidariedade, a necessidade de apuração, nos dias atuais, da noção de solidariedade como um
princípio jurídico.
Segundo ele, diante de uma globalização percebida como processo inexorável de
harmonização pelo cálculo econômico, a solidariedade é necessária para fazer frente a
problemas comuns aos mais diversos países, como é o caso dos riscos ecológicos e de
questões sociais e monetárias engendradas pela globalização. Ela, deste modo, será uma
maneira de compreender a antiga premissa kantiana de que a Terra é uma superfície esférica
em que inevitavelmente todos estão ligados. Assim, como assevera Supiot (2015a, p.32), a
solidariedade é uma maneira pela qual os homens são capazes de se sentir em conjunto,
possibilitando a construção de alguns valores universais.
A despeito das falhas e dos riscos dos valores universais (DELMAS-MARTY, 2004a),
é inegável que a universalização dos direitos humanos está para a mundialização como uma
plataforma jurídica que veicula reivindicações e obrigações de ordem ética e moral em favor
de todas as pessoas e em todos os lugares, mas especialmente os vulneráveis e
hipossuficientes. Como destaca Gustavo de Oliveira Vieira (2015), os direitos humanos são
capazes de constituir e representar o vetor ético da mundialização, promovendo um grande
impacto nos ordenamentos jurídicos internos dos Estados e a própria abertura dos mesmos à
ordem jurídica internacional.
Desde a segunda metade do século XX até os dias atuais não só as normas
internacionais vinculadas ao conteúdo material dos direitos humanos foram ampliadas, como
se deu o estabelecimento de tribunais, cortes e demais órgãos consultivos e contenciosos no
53

âmbito internacional, destinados a estabelecer parâmetros interpretativos sobre essas normas,


bem como julgar eventuais violações de direitos. Interessante notar, como bem destaca
Gustavo de Oliveira Vieira (2015, p.111) que de acordo com o número de adesões e
ratificações em relação aos tratados internacionais com cariz humanista é possível inferir que
o mundo está normativamente conectado pela matriz dos direitos humanos.
Segundo ele, a título exemplificativo, pode se observar que, até 2014, a Convenção
para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1951, contava com 146 ratificações;
a Convenção Internacional sobre Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1969, contava
com 177 adesões; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, contava com
168 ratificações ao passo que o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, do mesmo ano, contava com 162 adesões estatais; a Convenção contra a Tortura e
outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes, de 1987, possuía 156
ratificantes. Por fim, o maior número de ratificações se deu na Convenção pela Eliminação de
todas as formas de discriminação contra a Mulher, bem como a Convenção sobre os Direitos
das Crianças, até 2014, possuíam respectivamente 188 e 194 ratificações (VIEIRA, 2015, p.
111).
Notável perceber, através desses números, que existe entre os países ratificantes
consenso sobre determinadas questões. Assim, a despeito do debate entre universalistas e
relativistas em relação aos direitos humanos, os dados obtidos mostram que há pontos de
convergência sobre a temática mesmo em culturas diferentes. Jurgen Habermas (2001, p. 151)
corrobora com este pensamento, na medida em que afirma que os direitos humanos
configuram-se como único fundamento de legitimação dentre todos os reconhecidos pela
política e, a justificação disso, seria o fato de quase todos os Estados do globo adotarem o teor
da Carta da ONU e da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Segundo ele, se no campo normativo, as ratificações dos instrumentos de tutela dos
direitos humanos feitas pelos países como prova irrefutável da certeza de suas alegações, as
questões filosóficas e epistemológicas sobre a temática ainda são controversas. Isso porque a
validade universal, o cerne do conteúdo dos direitos humanos, bem como sua procedência
geram debates doutrinários intensos, uma vez que para alguns teóricos, o discurso acerca dos
direitos humanos baseado em argumentos normativos é acompanhado da forma de
legitimação política ocidental, o que geraria dúvidas sobre a incorporação de elementos
culturais externos a essa forma de legitimação, bem como a ideia de que por trás de uma
reivindicação de validade universal estaria a reivindicação de poder por parte do Ocidente.
54

Desta feita, Habermas (2001, p.152) afirma que essa crítica estaria dividida em crítica
da razão e crítica do poder. A primeira delas traz a premissa de que os direitos humanos
seriam uma expressão da razão especificamente ocidental, de modo que sob as vestes de
universalidade admitiriam exclusões realizadas em seu nome. Por outro lado, a versão da
crítica do poder desmente a universalidade tendo por base a precedência das particularidades
ocultadas, de modo que atrás das reivindicações jurídicas e normativas universais estariam
escondidas vontades de imposição de determinada coletividade.
A despeito das críticas, a visão de Habermas (2001, p. 153) é a de que mesmo os
pensadores dessas duas visões por ele apresentadas não rejeitam de modo algum os direitos
humanos como um todo. Isso porque hoje, em razão da mundialização e das relações de
transnacionalidade e interdependência, outras culturas e outras religiões estão ligadas aos
desafios do mundo contemporâneo. Assim, o modelo hegemônico de direitos humanos se
deve menos ao fundo cultural específico da civilização ocidental do que à tentativa de se
responder aos desafios da mundialização e da globalização.
Embora contrário à postura de Habermas, Boaventura de Sousa Santos (2009) defende
a superação da dicotomia entre universalismo e relativismo dos direitos humanos em prol de
uma ideia multicultural desses direitos. Em sendo um crítico do modelo eurocêntrico,
Boaventura afirma que os direitos humanos não são universais em sua aplicação, havendo em
sua construção no pós Segunda Guerra Mundial, interesses ideológicos que estiveram a
serviço do modelo econômico capitalista.
Todavia, ao mesmo tempo em que certa dualidade entre políticas de invisibilidade e
políticas de supervisibilidade se estabeleciam, de modo contra hegemônico, movimentos
sociais, organizações não governamentais, dentre outros coletivos, assumiram uma luta
emancipatória e popular de direitos humanos, objetivando que não só a conceituação, como
também a prática envolvendo essa temática deixe de ser um localismo globalizado e passe a
ser um projeto cosmopolita.
A base do cosmopolitismo emancipatório e contra hegemônico de Boaventura de
Sousa Santos, de implantação de valores de baixo para cima e não de cima para baixo é a
hermenêutica diatópica. Com base nesta última, o elemento forte de cada cultura, seu topoi10,

10
Pode-se compreender topois como lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura, que
funcionam como premissas de argumentação que, por sua evidência, não se discutem e tornam possíveis a
produção e a troca de argumentos. Compreender determinada cultura a partir dos topois de outra cultura é tarefa
muito difícil, para a qual Boaventura de Sousa Santos propõe uma hermenêutica diatópica. Esta se baseia na
ideia de que os topois de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria
cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível a partir do interior dessa cultura, uma vez que a
aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, atingir
55

é valorizado como mecanismo capaz de permitir um diálogo multicultural em matéria de


direitos humanos.
Desta forma, para a imposição desse caráter emancipatório e multicultural, é
necessário compreender que todas as culturas são relativas no momento em que possuem
particularidades não compreendidas por outras. Ao mesmo tempo, todas as culturas aspiram
preocupações e valores válidos para todos os seres humanos do mundo, independentemente de
seu contexto territorial ou cultural, como é o caso da dignidade da pessoa humana, que
embora presente em todos os tratados internacionais de direitos humanos, nem sempre é
concebida e interpretada da mesma forma por diferentes culturas.
A despeito dessa concepção de Boaventura, cremos nas constatações de Mireille
Delmas-Marty (2004a). Embora Boaventura de Sousa Santos argumente que a dignidade da
pessoa humana é concebida de modo diferente de uma cultura em relação à outra, Delmas-
Marty afirma que, mesmo que o universalismo apresente inúmeras falhas e contradições, é
imperioso reconhecer que há elementos que, de modo comum para todas as culturas, devem
constituir violação de direitos humanos, como é o caso da tortura, por exemplo.
Assim, para exemplificar tal questão, Mireille Delmas-Marty se socorre da metáfora
da esfera, desenvolvida por Paul Riccoeur, segundo a qual as diferentes comunidades e
culturas do planeta estariam todas dispostas na superfície circular de uma esfera, uma ao lado
da outra e, aparentemente, sem qualquer elemento de interconexão entre elas. Para encontrar
semelhanças, será em vão observar a superfície da esfera, sendo necessário perfurá-la. Ao
perfurarmos a esfera, no núcleo dela todas as comunidades de sua superfície encontrarão um
ponto em comum (DELMAS-MARTY, 2011).
Nesse ponto estariam o que Delmas-Marty refere como mínimo ético universal e
irredutível humano, ou seja, valores, interpretações, concepções e entendimentos em que,
mesmo as mais diferentes culturas, apresentarão consenso, como é o caso da tortura e dos
tratamentos desumanos, cruéis e degradantes, tipos penais que almejam a tutela da
humanidade enquanto bem jurídico. Assim, seriam esses dois elementos as bases da
Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, já que evitar que os horrores
cometidos, sobretudo contra a população civil, durante as duas grandes guerras mundiais se
repetissem foi o fundamento moral para a criação do documento.

a completude – objetivo inatingível – mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude
mútua, por meio de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, em outra
(SANTOS, 2009).
56

Sob essa mesma ótica, Narciso Xavier Leandro Baez e Vicente Barreto (2009)
afirmam que a mera inserção legal da dignidade da pessoa humana – que é o elemento cerne
dos direitos humanos – em um sistema positivo de direitos e, dissociada de valores morais
seria um passo importante, mas ainda não suficiente para evitar eventuais violações desses
direitos. Considerando que os direitos humanos possuem cariz moral e jurídico – no sentido
de esta dimensão reconhecê-los e transformá-los em normas a fim de obter efetividade -, esses
direitos possuem uma dimensão básica e uma dimensão cultural.
Na primeira, de modo semelhante às premissas do direito natural, eles seriam inatos
pautados em valores morais e conferidos aos indivíduos pelo simples fato de serem humanos.
Nessa dimensão básica estaria a dignidade da pessoa humana, no momento em que esta
constitui uma qualidade universal intrínseca, irrenunciável e inalienável, inerente a todos os
seres humanos independentemente de especificidades culturais.
A fim de identificar quais são os valores básicos e inderrogáveis a todos os seres
humanos, a construção de elementos minimamente comuns somente será dada a partir do
diálogo e do cruzamento das diferentes culturas. Isso seria capaz de facilitar a consolidação de
uma cultura cosmopolita baseada em identificação, em que prevaleça a dignidade da pessoa
humana acima dos relativismos.
A dimensão cultural, por sua vez, envolve elementos externos ao ser humano,
oriundos da diferença de ambientes naturais e dos múltiplos sistemas de crenças. No entanto,
mesmo assim, todas as pessoas, ainda que inseridas em especificidades culturais distintas,
ainda mantém atributos comuns. É por essa lógica que segue a premissa kantiana de que
violações de direitos humanos cometidas em um ponto do planeta repercutirão sobre todo ele.
Assim, o cerne da chamada universalização estaria não em impor determinada cultura
sobre outras, mas em buscar uma raiz comum, um conjunto de valores mínimos capazes de
dialogar com diferentes culturas, garantindo a preservação e o respeito da vida humana em
qualquer lugar. Essa, portanto, é a ótica do direito cosmopolita em Kant, pois diante da
dicotomia entre práticas culturais e direitos humanos, a base do cosmopolitismo é a busca de
critérios lógico-racionais que sejam comuns a todas as culturas e, nesse aspecto estão os
direitos humanos, com a sua dimensão mínima de dignidade da pessoa humana como núcleo
moral e jurídico do direito cosmopolita.
O universalismo constante no processo de internacionalização dos direitos humanos é
a base para o abalo do terceiro pilar constitutivo do Estado: o território. Isso porque,
juntamente com a internacionalização dos direitos humanos, o pós Segunda Guerra Mundial,
57

motivou a ideia de formação de um direito penal internacional, alicerçado sobre as bases dos
direitos humanos em perspectiva universal.
A construção do direito penal moderno é feita tendo como uma de suas principais
bases o território. Grande parte das leis penais ou processuais penais levam em conta ou a
nacionalidade do autor ou da vítima do fato típico delituoso (autor ou vítima devem ser
nacionais do Estado que julgará a infração penal) ou o local em que se sucedeu o fato
(princípio da territorialidade). Há poucas brechas para os casos de extraterritorialidade, ou
seja, situações em que a lei penal de determinado país é aplicada para casos que ocorrem fora
de seu território. Porém, mesmo nessas hipóteses, a presença das nacionalidades da vítima ou
do réu é preponderante para determinar a competência de julgamento que possui um Estado.
Esse pilar é abalado pelo que Antoine Garapon (2002, p.21) denomina de uma ideia de
justiça universal desenvolvida na janela que se abre entre a queda do muro de Berlim em
1989, na Alemanha e o desabamento das Torres Gêmeas em 2002, nos Estados Unidos. Sem
ter a intenção de contrariar Garapon, é possível afirmar que para o ideal de uma justiça
universal imbuída na ideia de formação de um direito penal internacional e fundamentado nos
direitos humanos, essa janela é um pouco mais abrangente, abarcando, principalmente, as
primeiras reações, ao final da Segunda Guerra Mundial, para punir os crimes cometidos no
lapso entre 1939 e 1945.
Uma dessas reações de punição dos autores dos crimes cometidos durante a guerra foi
a criação de tribunais ad hoc, como foi o caso do Tribunal de Nuremberg. Embora Antoine
Garapon destaque que a ideia de julgar autores de crimes de guerra e de graves atentados
cometidos contra os direitos dos indivíduos seja muito antiga, tendo ressurgido, durante a
Primeira Guerra Mundial, para a análise deste trabalho, é importante a aferição dessa proposta
após 1945.
Isso se justifica pelo fato de que, consoante se explanou antes, é no início da segunda
metade do século passado que o processo de internacionalização dos direitos humanos se
intensifica e começou a se consolidar, tecendo as bases para a ideia de justiça penal
internacional que temos hoje. Uma passagem de Antoine Garapon ilustra muito bem essa
questão:

O projeto de uma justiça penal internacional vem na sequencia das diferentes utopias
que tentaram conter a violência da guerra (...). Se o pensamento antigo e medieval
glorifica o combate, o racionalismo clássico tenta circunscrever os contornos da
guerra justa, o século das Luzes constrói projetos de paz, o Pacto de Briand-Kellog
proíbe a guerra e o século XX emprega toda sua fé na organização de uma
comunidade internacional que convoca seus votos ... A justiça penal internacional é
58

a última dessas utopias, numa altura em que se constata o fracasso de todas as


anteriores (GARAPON, 2002, p.42).

O que suporta a utopia de uma justiça universal é a esperança de reunir o mundo em


torno de alguns valores fundamentais, por isso a crença de que os valores cosmopolitas de
respeito e proteção aos direitos humanos são a base filosófica capaz de sustentar essa justiça
universal, por conter valores fundamentais que servem para todas as sociedades. Segundo
Garapon (2002), para realizar essa esperança de que os Estados finalmente aceitem a
jurisdição da razão, a justiça deve se emancipar de qualquer tutela e não conhecer limites nem
no tempo, nem no espaço. Assim, como bem ressalta o autor, é possível que se julgue a
História há cinquenta anos de distância, bem como que se autorize a julgar fora de suas
fronteiras.
Por isso a justiça penal internacional estilhaça algumas divisões modernas entre direito
e política, sobretudo no momento em que propõe a fusão do direito internacional - marcado
pela coordenação de soberanias livres e independentes e cujas eventuais infrações
sancionavam atos cometidos em zonas de contato entre soberanias (como era o caso da
pirataria, do tráfico de escravos, do terrorismo) - com o direito penal, que era um atributo
interno dos Estados destinado a estabelecer sanções para coibir e punir atos contrários ao
sistema jurídico e proteger valores internos comuns.
A justiça penal internacional, com base nessa fusão passa a julgar dois tipos de
infrações: os crimes do direito penal clássico, tais como agressão, tráfico internacional de
pessoas, pirataria em alto mar e, uma nova categoria, desenvolvida no seio do processo de
internacionalização dos direitos humanos e marcada por um caráter híbrido que abrange tanto
a esfera nacional quanto a internacional: os crimes contra a humanidade e os genocídios. A
novidade dessa categoria, segundo Antoine Garapon (2002, p. 45) é que esses tipos penais
podem ser imputados não só a sujeitos submetidos a uma soberania, mas ao próprio soberano.
Nesse sentido, a concepção de uma justiça penal internacional afronta diretamente ao
sistema westfaliano, uma vez que este delimitava claramente o âmbito interno e o âmbito
externo, pois isso é uma das condições do positivismo jurídico. Logo, ao não só retirar as
fronteiras entre o interno e o externo, mas ao mesclar e tornar híbridos esses espaços, a justiça
penal internacional desenvolvida no seio do processo de mundialização estremece o direito
internacional moderno e igualmente o positivismo jurídico. Assim, como refere Antoine
Garapon:
59

O modelo westfaliano repousava em três elementos: numa ordem internacional


concebida como equilíbrio de forças, numa estrita divisão entre o direito interno e o
direito internacional e, por último, numa estrita separação entre moral e política. A
sua ultrapassagem pela justiça penal internacional assenta as três questões que tinha
o mérito de regular empiricamente em novos termos: origina o aparecimento de um
novo risco de confusão entre moral e política; queda-se mudo quanto às relações do
direito e da força e às garantias efetivas da paz (GARAPON, 2002, p.45).

No aspecto estrutural, a justiça penal internacional apresenta duas importantes formas


de exercício que se baseiam na noção de extraterritorialidade. A primeira delas se dá por meio
da atuação de uma jurisdição internacional una, ou seja, um tribunal internacional com
competência para julgar os delitos tipificados no Estatuto de Roma, de 1998. A segunda
forma de exercício é o tema observado neste trabalho, a jurisdição universal, princípio que
confere a um Estado a possibilidade (e até mesmo a obrigação) de proceder judicialmente
contra qualquer pessoa suspeita de crimes particularmente graves que atentem contra a
consciência da humanidade, mesmo na falta de critérios territoriais.
A jurisdição universal, como bem destaca Garapon (2002, p. 35) possui o condão de
sublimar a distinção entre o interno e o internacional, uma vez que a atuação se dá por meio
das jurisdições internas, mas a legitimação parte das regras de direito internacional, mais
especificamente do jus cogens. Assim, ela seria composta da supremacia de certos direitos
sobre a soberania estatal juntamente com a noção de desterritorialização da justiça penal
internacional.
Segundo Carlos Slepoy (2013) em virtude do princípio real ou de proteção de
interesses, a maior parte dos países do mundo incluem em sua legislação interna a persecução
judicial de delitos cometidos em outros Estados quando os afetam. Desta maneira, embora a
territorialidade seja o princípio basilar para o direito penal na perspectiva interna dos Estados,
a extraterritorialidade é presente no momento em que infrações penais que são cometidas no
exterior, mas que afetem aos Estados de algum modo, poderão ser julgadas por leis penais e
processuais penais do Estado estrangeiro afetado por uma razão de tutela de seus próprios
interesses.
A regra de competência universal ou o exercício da jurisdição universal, por sua vez,
não só coloca em xeque o notadamente moderno princípio da territorialidade, em que um
Estado somente era capaz de julgar infrações cometidas dentro de seu território ou em relação
a seus nacionais, como também não se confunde com a extraterritorialidade em seus critérios
tradicionais, como os referidos acima (UNIVERSITÉ LIBRE DE BRUXELLES , 2016)
Nesse sentido, segundo André de Carvalho Ramos:
60

Pela regra internacional da jurisdição universal, o Estado é autorizado a regular e


sancionar condutas realizadas fora de seu território, para cumprir seu dever de
cooperação internacional e combate à impunidade ou ainda para proteger valores
essenciais da comunidade internacional como um todo (RAMOS, 2015, p. 290).

O referido autor, de modo elucidativo, divide esse princípio em dois tipos: a)


jurisdição universal comum ou grociana e b) jurisdição universal especial ou qualificada. No
primeiro tipo, os Estados buscam cooperar para impedir a impunidade e a criação de locais
seguros de criminalidade comum. Esse tipo de jurisdição extraterritorial é antiga no direito
internacional e admite que um Estado possa regular e sancionar condutas realizadas fora de
seu território, pois do contrário haveria impunidade.
Desenvolveu-se como costume internacional de combate à pirataria, pois os piratas
eram vistos como inimigos do gênero humanos e qualquer Estado possuía o dever de, não
importando a nacionalidade do pirata, entregá-lo ou puni-lo. O segundo tipo de jurisdição
universal, por sua vez, liga-se ao processo de mundialização e internacionalização dos direitos
humanos ocorridos no pós-Segunda Guerra Mundial. Com a criação do Tribunal de
Nuremberg passam a fazer parte da agenda internacional preocupações com violações aos
direitos humanos (RAMOS, 2015, p. 292).
Assim, conforme já dito, de acordo com o princípio da territorialidade, as leis
nacionais requerem pelo menos uma dessas três condições para haver o exercício da
jurisdição: a) as infrações devem ser cometidas em território nacional; b) as infrações devem
ser cometidas por algum nacional do Estado; c) a(s) vítima(s) devem ser cidadãos do próprio
Estado. No entanto, a gravidade de certos crimes faz com que a noção de fronteiras estatais
seja colocada em cheque.
Logo, situações de genocídio, de crimes de guerra, de crimes contra a humanidade,
além de serem tipos penais do Estatuto de Roma e terem o Tribunal Penal Internacional (TPI)
como órgão competente para julgamento dos casos, também encontram respaldo no princípio
da jurisdição universal qualificada. Embora o Direito Penal Internacional tenha
experimentado grandes desenvolvimentos desde o Tribunal de Nuremberg até a criação de
Tribunais ad hoc, foi com a criação e aprovação do Estatuto de Roma e a criação do Tribunal
Penal Internacional que tipos penais de crimes e violações de direitos humanos contra a
humanidade ganharam reconhecimento jurídico em âmbito internacional, com progresso em
relação à proteção das vítimas. A atuação, todavia, do Tribunal Penal Internacional é limitada,
por razões políticas e procedimentais e, por esse motivo, sua função deve ser reforçada desde
61

as esferas local e nacional através da aplicação da jurisdição universal (FUNDACIÓN


INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN , 2015a).
A título exemplificativo dos problemas em relação ao TPI que fazem necessária a
existência de outros mecanismos para punição de delitos contra os direitos humanos,
recentemente a Fundação Internacional Baltasar Garzón (CÉSPEDES, 2016) divulgou
informação de que alguns países da África, como é o caso do Burundi e da República Sul
Africana teriam manifestado intenções de não mais reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal
Internacional.
No caso específico do Burundi, por exemplo, tal notícia somada com a escalada de
violência étnica e com a decisão do presidente do país a se apresentar para um novo mandato
seria uma estratégia para evitar futuras condenações de personalidades políticas do país por
crimes contra a humanidade e genocídio, vez que, segundo especialistas, a situação fática da
região hoje se assemelha ao panorama de Ruanda em 1994, às vésperas do genocídio de hutus
contra tutsis (CÉSPEDES, 2016).
Deste modo, enquanto o primeiro tipo de exercício de jurisdição universal se relaciona
com as normas do direito internacional e com as relações de cooperação entre Estados na
sociedade internacional dentro do paradigma westfaliano, o segundo tipo marca uma nova
etapa da jurisdição universal, que trata de impedir que indivíduos, empresas transnacionais, ou
mesmo agentes do Estado, agindo em consonância com leis locais ou com regras oriundas de
outras fontes que não as estatais11, violem normas internacionais essenciais. Passa-se, nessa
nova etapa, a lidar com as vicissitudes do direito na mundialização e com o sentimento de
universalização do sofrimento (ALLARD, 2008), algo semelhante com a premissa kantiana de
que, no que concerne aos direitos humanos, uma violação cometida em canto do planeta
Terra, invariavelmente será sentida por todos os demais indivíduos (KANT, 2008, p. 22).
Em se tratando de uma nova perspectiva em relação à jurisdição universal, que tem
como premissa a solidariedade, a alteridade e valores universais, uma nova lente de
observação é necessária para analisar essa questão. Assim, como já se demonstrou no capítulo
anterior, as teorias do cosmopolitismo serão utilizadas para tecer o fundamento teórico eficaz
e capaz de justificar o uso da competência universal qualificada e absoluta.
Nesses termos, inclusive, de suma pertinência para esse trabalho a distinção entre
jurisdição universal absoluta e jurisdição universal condicionada. Ambas podem ser

11
Na mundialização há uma concorrência de normatividade entre regras jurídicas clássicas e outras que, para
evitar confusões conceituais, podem ser denominadas de “normas” técnicas e de gestão, produzidas por entes
privados e que regulam um vasto território, ainda pouco conhecido, denominado de O.N.N.I – objetos
normativos não identificados. (FRYDMAN, 2014, p. 9).
62

consideradas como partes da competência universal qualificada outrora referida. No entanto, a


jurisdição universal absoluta parte do pressuposto de uma ausência total de qualquer liame
entre o Estado julgador e a situação julgada. Desta maneira, as vítimas, os suspeitos e mesmo
o local em que os fatos ocorreram não precisam se ligar de nenhum modo ao Estado julgador,
uma vez que o pressuposto em análise é o caráter internacional da ofensa, que viola normas
provenientes do jus cogens e crimes aí tipificados, como é o caso dos crimes enunciados no
Estatuto de Roma.
O exercício da jurisdição universal de forma condicionada, por sua vez, se vincula à
aplicação deste princípio mediante a incidência de determinadas condições, que em geral são:
a presença ou o domicílio das vítimas junto ao Estado julgador ou a presença ou o domicílio,
no território do Estado julgador, dos suspeitos da prática dos crimes. Essas condições são
elaboradas individualmente pelos Estados em suas legislações internas e, em geral, se referem
à crimes internacionais ou transnacionais contra os direitos humanos que não necessariamente
fazem parte das regras de jus cogens. Pode-se, neste sentido, inclusive aproximar a jurisdição
universal condicionada às formas tradicionais de extraterritorialidade.
O término da Segunda Guerra Mundial e as preocupações em relação às violações de
direitos humanos cometidas até então, principalmente por agentes do Estado contra seus
cidadãos, faz emergir a noção de humanidade, bem como de cuidado e de responsabilidade
em relação a esta. Yves Charles Zarka (2015, p.17), nesse sentido, afirma que, em termos de
humanidade, o fundamento filosófico para pensar a responsabilidade é o cosmopolitismo,
como já fora dito no subcapítulo anterior.
Além de ter o cosmopolitismo como suporte filosófico, a base jurídico-política para a
aplicação do princípio da jurisdição universal, por sua vez, são os interesses da humanidade,
devendo esta ser vista como bem jurídico a ser tutelado. O pensamento de Mireille Delmas
Marty (2011) auxilia na compreensão do papel do direito na mundialização e na tutela da
humanidade por meio da proteção de valores se não universais, comuns às mais diferentes
culturas.
Desta forma, ao discorrer sobre a justiça penal internacional, ela afirma que as últimas
décadas marcam um movimento de transição, em que se almeja passar de uma era de
impunidades a uma era de responsabilidades, principalmente por violações aos direitos
humanos. Nesse período de transição, ela concorda com Antoine Garapon ao sustentar a ideia
de que o modelo tradicional de soberania herdado da Paz de Westfália, no qual a política
imperava sobre o direito e, as relações internacionais eram regidas pelo rule of force, é
confrontado pelo modelo universalista, balizado por regras de proteção aos direitos humanos,
63

pelas tentativas de reconhecimento de valores universais e pelo império do direito ao lado das
relações diplomáticas no plano internacional, no chamado rule of law.
O cenário de caos político e jurídico da mundialização faz com que, embora
conflitantes, esses dois modelos ainda coexistam no plano internacional e por isso, Delmas-
Marty (2011) afirma que a eficácia da justiça penal internacional depende em grande parte da
cooperação dos Estados. Isso porque, em um primeiro aspecto, em se tratando da jurisdição
internacional em matéria penal, o Tribunal Penal Internacional para exercer suas atividades
necessita da ratificação e da adesão dos Estados ao Tratado de Roma.
Em um segundo aspecto, em se tratando da competência universal para investigar e
punir delitos com cariz universal, como é o caso do genocídio, do crime contra a humanidade
e do crime de guerra, é necessário que os Estados reconheçam o princípio da competência
universal e adequem seus mecanismos processuais internos para que nesses casos, suas
jurisdições funcionem como um local de aplicação de regras universais de direitos humanos.
Nesse contexto, segundo Delmas-Marty (2011, p.21) o papel do direito encontra-se no
processo de definição, por meio dos interditos fundadores e dos direitos fundamentais ou
humanos, de valores que se não forem uniformes e universais, são no mínimo comuns entre as
mais diferentes culturas. É no campo dos interditos fundadores que se encontra o tipo penal
do crime contra a humanidade (ou lesa-humanidade) uma vez que se consubstancia na
proteção da humanidade como vítima e na construção desta como uma categoria jurídica.
É por isso que a competência universal absoluta, que tem como base o julgamento de
delitos contra a humanidade pertencentes ao jus cogens, é capaz de abalar as estruturas
modernas do Estado, como povo, soberania e território. Isso porque a nacionalidade de um
povo passa a ser elemento secundário quando se trata da proteção da humanidade; a soberania
dos Estados passa a contar com duplo limite: de ordem interna advindo do processo de
internacionalização dos direitos humanos e de ordem externa em razão da positivação dos
direitos humanos em nível internacional; e o território passa a não ser mais o elemento chave
para a instauração de competência por delitos cometidos contra a humanidade diante da
premissa de que a impunidade deve ser combatida. O direito, portanto se reflete no fato de
estabelecer fundamentos normativos e jurídicos para legitimar a tutela da humanidade contra
violações.
O primeiro desses elementos, em caráter geral, é a Carta Internacional dos Direitos
Humanos, que se trata, na realidade da união de três elementos normativos: a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, de 1948; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de
64

1966. Esse bloco normativo demonstra a indivisibilidade dos direitos humanos e seu alcance
universal (RAMOS, 2015, p. 157), características reafirmadas em 1993, na Conferência
Mundial de Direitos Humanos de Viena, que reconheceu o universalismo, a indivisibilidade e
a interdependência dos direitos protegidos como corolários dos direitos humanos.
No sistema global de proteção aos direitos do homem, desde o fim da Segunda Guerra
Mundial e, sobretudo após a criação dos Pactos internacionais referidos, ao lado dos tratados
gerais sobre a temática, o princípio da especialidade é visto no momento em que grupos
considerados vulneráveis historicamente, como é o caso das mulheres, dos negros e das
crianças, passaram a contar com convenções e tratados que, a partir de valores universais em
direitos humanos, traziam pontos específicos de defesa desses grupos.
O desenvolvimento normativo da justiça penal internacional se dá nesse sistema global
de proteção dos direitos humanos e foi se desenvolvendo através da ratificação de diversas
convenções, com a inclusão paulatina nas décadas de 1970 e 1980 do princípio da jurisdição
universal em vários tratados (JIMÉNEZ; CÉSPEDES, 2015). Diversas condutas passam a ser
tipificadas tendo como ponto em comum o fato de que a ação ou omissão cometidas contra os
direitos humanos agridem a humanidade como um todo, ensejando responsabilidade penal aos
que o cometem, sejam indivíduos, empresas ou Estados.
Para Aitor Martínez Jiménez e Manuel Miguel Vergara Céspedes (2015), os
fundamentos jurídicos que habilitam os Estados a se valer de seus tribunais internos para
perseguir atos considerados crimes internacionais violadores de direitos humanos se localizam
no direito internacional, tanto convencional como consuetudinário, formando parte do núcleo
duro do direito imperativo, através do jus cogens12. Segundo eles, três cenários se destacam: o
dos crimes cuja persecução universal só está baseada em uma fonte não escrita, os crimes que
são reconhecidos tanto em fontes não escritas como em fontes consuetudinárias e os crimes
que são resultado de fontes convencionais geradoras de mecanismos, direitos e obrigações não
presentes no direito consuetudinário com anterioridade.
No que se refere à legitimação própria de cada crime, a competência universal, é
reconhecida, através de diversas fontes, no direito e na prática internacional. Jiménez e
Céspedes (2015), nesse sentido, afirmaram que o princípio da competência universal, ao ser
parte do direito internacional geral, motivou o fato de que alguns tratados internacionais que

12
A Corte Internacional de Justiça já determinou que, em várias ocasiões, as obrigações erga omnes que derivam
do jus cogens como aquelas que todos os Estados possuem interesse de proteção e pelas quais se veem obrigados
(CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 1970; 1997).
65

regulavam a competência territorial exclusiva para alguns crimes internacionais passassem a


ser reinterpretados para admitir o princípio em comento.
Além disso, múltiplos instrumentos internacionais, por vezes obrigam os Estados a
impor a competência universal para a persecução desse tipo de crime que atenta contra a
humanidade. O Estado então não exerce sua jurisdição nacional, mas uma competência
universal com vistas a proteger os interesses da humanidade por meio de uma espécie de
controle difuso subsidiário, ou seja, quando o Estado responsável primordialmente pela
investigação e julgamento não o exercer, outros países que reconheçam o princípio da
competência universal podem fazê-lo.
O quadro apresentado a seguir ilustra bem a teoria dos autores supra referidos, uma
vez que os delitos internacionais que autorizam o uso da competência universal, mais
precisamente a competência universal em sua forma absoluta, encontram suas fontes ou no jus
cogens, ou no direito internacional consuetudinário, bem como em regras oriundas de tratados
e convenções criados para positivar a tutela dos direitos da humanidade.

Quadro 1 - Fontes do direito que habilitam a competência universal

Fonte do Direito Crime Fonte ou alusão normativa


Jus Cogens e direito Pirataria
consuetudinário Comércio de Escravos
internacional Crimes de guerra
Crime de lesa humanidade
Genocídio
Tortura
Crime de agressão
Apartheid
Desaparecimento forçado
Direito convencional Pirataria Convenção sobre o Direito do Mar (art.
105).
internacional
Crimes de guerra I Convênio de Genebra (art. 49);
II Convênio de Genebra (art. 50);
III Convênio de Genebra (art.129);
IV Convênio de Genebra (art. 146).
Tortura Convenção contra a tortura e outros
66

tratamentos ou penas cruéis, desumanas


ou degradantes, de 1984 (art. 7º).
Apartheid Convenção Internacional sobre a
Repressão e o Castigo do crime de
Apartheid, de 1973 (art. 5º)
Desaparecimento forçado Convenção Internacional para a
proteção de todas as pessoas contra
desaparecimentos forçados, de 2006
(art. 9.2)
Atos de terrorismo Convênio para a repressão do
apoderamento ilícito de aeronaves, de
1970 (art.4.2).
Convenção Internacional contra a
tomada de reféns, de 1979 (art. 5.2).
Convênio Internacional para a repressão
de atentados terroristas cometidos com
bombas, de 1997 (art.6.4).
Convênio Internacional para a repressão
do financiamento ao terrorismo, de 1999
(art. 7.4).
Convênio Internacional para a repressão
dos atos de terrorismo nuclear (ats. 9-
11).
Crimes contra Convenção das Nações Unidas sobre
prevenção e castigo de delitos contra
diplomáticos
pessoas internacionalmente protegidas,
de 1973 (art. 7).
Corrupção Convenção das Nações Unidas contra a
corrupção (art. 42.4)
Bens culturais em conflitos Convenção para a Proteção dos Bens
Culturais em caso de Conflito Armado
armados
(art. 28).
Narcotráfico Convenção das Nações Unidas contra o
Tráfico Ilícito de Entorpecentes e
Substâncias psicotrópicas (art. 4.2).
Delinquência transnacional Convenção das Nações Unidas contra a
Delinquência Organizada Transnacional
(art. 15.4).
Direito convencional Tortura Convenção Interamericana para
Prevenir e Sancionar a Tortura, de 1985
67

regional (sistema (art. 12 e 14).

interamericano)
Desaparecimento forçado Convenção Interamericana sobre
Desaparecimento Forçado de Pessoas,
de 1994 (art. 4º e 5º).

Fonte: (JIMÉNEZ; CÉSPEDES, 2015, p. 23).

Embora seja extensa a quantidade de delitos que reconhecem a competência universal


e apresentam previsão para a aplicação do princípio é necessário ressaltar que a
materialização prática deste em relação ao fim da impunidade e a proteção de valores no
mínimo comuns em matéria de direitos humanos começa a se delinear em casos a partir da
década de 1980 e, principalmente, em delitos como genocídio, crimes contra a humanidade e
tortura. Assim, segundo Ximena Torrijo (2004, p. 123), em 1980, nos Estados Unidos, o Alien
Tourts Claims Act13 foi usado como precedente no Caso Filartiga Peña-Irala, no qual os
EUA reafirmam sua jurisdição a respeito de caso de tortura ocorrido no Paraguai, com autor e
vítima com nacionalidade paraguaia. Na sequencia, no Canadá, em 1989, os Tribunais
canadenses conheceram o Caso Finta, no qual um ex-gendarme húngaro fora julgado pela
deportação de mais de 8000 judeus da Hungria até os campos de concentração nazistas
durante a Segunda Guerra Mundial.
De acordo com Luiz Peraza (2006, p. 332) o despontar desses e outros casos no final
do século passado oferece espaço para a materialização prática do princípio da competência
universal por meio da Resolução 978 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, de 1995,
que determina que é dever dos Estados a detenção de pessoas que se encontrem em seu
território contra as quais haja provas suficientes de sua responsabilidade em atos de
competência do Tribunal Penal Internacional para Ruanda.
Embora se trate de uma situação específica de um tribunal ad hoc criado no âmbito da
justiça penal internacional, a importância da resolução se dá pela previsão de persecução,
detenção e punição obrigatória de indivíduo que tenha cometido algum delito contra a
humanidade quando este se encontre em território nacional. Essa previsão legitima a
utilização da competência universal em sua forma condicionada, vez que condiciona o
13
O Alien Tort Claims Act surgiu nos Estados Unidos e foi promulgado na primeira sessão do Congresso
americano em 1789. Acredita-se que foi criado para atender a duas finalidades: a) para fornecer proteção legal
para embaixadores estrangeiros residentes nos Estados Unidos e; b) para permitir ações contra os piratas. Ainda
em vigor, ele afirma que os tribunais distritais possuem jurisdição para julgar ações civis de reparação por delitos
praticados, mesmo no estrangeiro, em violação do direito das nações ou de um tratado firmado pela estado
americana. Essas violações podem ser aquelas hoje consideradas mais graves como tortura, tratamentos
desumanos e degradantes e, até, de forma mais alargada, aquelas vinculadas ao meio ambiente, por exemplo.
(ALLAN & OVERY, s/a).
68

exercício da competência por determinado magistrado nacional ao fato de o suposto autor do


delito se encontrar no território do Estado julgador.
Para Jiménez e Céspedes (2015, p. 22), as fontes de jus cogens e consuetudinárias não
apresentam a priori limites na aplicação da jurisdição universal, comportando sua versão
absoluta, no qual basta a natureza do delito para configurar a competência. Os tratados
internacionais com vocação codificadora não contradizem a faculdade de persecução penal,
pois, muitas vezes concretizam a jurisdição universal em seus textos, mas impõem para isso
determinadas condições. Convenções como a da Tortura, por exemplo, introduzem um
elemento semelhante ao descrito na resolução acima, vez que apresentam como condição que
ativa e faz compulsória a competência universal, o fato de que o suposto indivíduo tenha
cometido crime contra a humanidade deva estar dentro do território do Estado. Este é o
princípio aut dedere, aut iudicare que converte a faculdade jurisdicional em uma obrigação
no momento em que se constate a presença do suposto criminoso em seu território e se relute
a extradição14.
Inclusive é sob a forma condicionada que o princípio da jurisdição universal é previsto
no artigo 7º do Código Penal brasileiro. De acordo com esse dispositivo, ficarão sujeitos à lei
brasileira, mesmo que cometidos no exterior, os crimes que, por tratado ou convenção, o
Brasil se obrigou a reprimir, sendo uma das condições para o exercício dessa competência que
o agente esteja em território nacional. Apesar de tal previsão legal, até hoje o Poder Judiciário
brasileiro não realizou a aplicação do princípio da jurisdição universal em algum julgamento.
No que concerne à forma absoluta da jurisdição universal, a extinta Comissão de
Direitos Humanos das Nações Unidas declarou em 1999 (2006, p. 332) que em qualquer
conflito armado, a tomada de reféns, a tortura ou eventual tratamento inumano ou degradante
em pessoas que não tomam parte ativamente das hostilidades constitui uma grave violação do
direito internacional humanitário e todas as nações têm a obrigação de levar aos seus próprios

14
Importante ressaltar que, para alguns autores, o dever de aut dedere, aut iudicare (entregar ou processar) não
se confunde com o Princípio da Jurisdição Universal. Frederico Mendes e Ana Carolina Rodrigues destacam que
ambos os termos são de caráter transnacional e tomam como ponto de partida a noção de que a justiça é melhor
servida assegurando que os autores de crimes graves sejam levados a julgamento, se não em um fórum, então,
em outro. Uma diferença importante é que o leque de crimes abrangidos por princípios da Jurisdição Universal
contemporâneos é consideravelmente mais estreito do que coberto por várias convenções aut dedere. Nesse
ponto, segundo os autores, fica evidente onde há maior abismo: a cláusula extraditar ou perseguir é normalmente
estabelecida via tratado ou por meio de direito costumeiro internacional; a Juridição Universal é tida como
unilateral, incondicionada a recusa de extradição até mesmo quando previsto em tratado. Ressalta-se, contudo,
que neste trabalho será adotada a concepção de aproximar o dever de aut dedere, aut iudicare à jurisdição
universal em sua forma condicionada, de modo que, caso algum suspeito da prática de crime global contra os
direitos humanos se encontre no território do Estado pretensamente julgador, este será obrigado ou a julgá-lo,
exercendo a jurisdição universal na sua forma condicionada, ou à extraditá-lo. (MENDES; RODRIGUES, 2016).
69

tribunais a situação, sem importar o vínculo de nacionalidade entre o autor dos fatos e o
Estado julgador.
O princípio da jurisdição universal em sua forma absoluta também foi reconhecido no
próprio Estatuto de Roma, que disciplina sobre algumas espécies de delitos internacionais
contra a humanidade e sobre os procedimentos perante o Tribunal Penal Internacional. No
preâmbulo do texto normativo, há a disposição de que todos os povos estão unidos por laços
comuns e que suas culturas foram construídas sobre uma herança partilhada, formando um
mosaico que deve ser protegido para que não se rompa. Assim, os crimes de maior gravidade
que afetam a comunidade internacional em seu conjunto não devem ficar impunes, devendo
sua repressão ser assegurada pela adoção de medidas em nível nacional e por meio de
cooperação internacional, sendo dever de todo Estado exercer sua jurisdição penal contra os
responsáveis por crimes internacionais.
Nesse sentido, estudiosos da temática uniram-se no I Congresso Internacional de
Jurisdição Universal (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN , 2015b),
ocorrido em setembro de 2015 e elaboraram um documento denominado “Princípios de
Madrid-Buenos Aires de Jurisdição Universal”. Esse documento apresenta três principais
objetivos: a) reafirmar os esforços doutrinários realizados até então sobre a temática do direito
penal internacional e da jurisdição universal; b) promover a codificação dos elementos que
gozam de consenso e, c) denunciar novas fontes de impunidade e meios de combatê-la com a
aspiração de que a opinio iuris consolide a Jurisdição Universal como um instrumento eficaz
para a erradicação da impunidade e proteção das vítimas.
O texto do documento afirma ainda que pretende atualizar os chamados “Princípios de
Princeton” e princípios de “Cairo-Arusha15”. Ambos os documentos, idealizados em 2001,
foram balizadores importantes para os casos em que já havia sido aplicado o princípio da
jurisdição universal, bem como para os casos vindouros, uma vez que definia fundamentos da
competência universal, bem como aspectos processuais que causavam dúvidas sobre o
exercício deste princípio. Embora ainda vigentes, o passar dos anos trouxe avanços em
relação à jurisdição universal, de modo que os Princípios de Madrid-Buenos Aires cumprem
um papel importante ao apresentar atualizações pertinentes.

15
Os princípios de Cairo-Arusha foram criados com o intuito de oferecer diretrizes aos países africanos em
relação à justiça penal internacional e à jurisdição universal. O documento que contém essas diretrizes, na
íntegra encontra-se em:
http://www.afla.nl/IManager/Download/474/21493/4321/366498/EN/4321_366498_pSBb_The_Cairo-
_Arusha_Principles_on_Universal_Jurisdiction_in_Respect_of_Gross_Human_Rights_Offences.pdf. Acesso em
29 ago 2016.
70

Um dos exemplos de atualizações trata da questão de que no rol de crimes de


persecução universal passam a estarem incluídas as atividades econômicas que lesam o meio
ambiente. Assim, o Princípio 316 afirma que a jurisdição universal também será aplicável aos
crimes econômicos e contra o meio ambiente que, por sua extensão e escala, afetam
gravemente os direitos humanos de grupos ou coletividades ou, que suponham a destruição
irreversível dos ecossistemas.
Outra novidade considerável trazida na declaração de Madrid-Buenos Aires é a de que
pessoas físicas ou jurídicas poderão ser responsáveis penal ou civilmente por sua ação ou
omissão nos crimes enunciados no texto dos princípios17, qualquer que tenha sido a forma ou
o grau de sua participação ou encobrimento, sem prejuízo da responsabilidade civil que
possam ter os Estados. Nesse aspecto, o princípio 718 também se mostra como um avanço
relevante por prever a possibilidade de exercício de jurisdição universal no âmbito civil,
independentemente da esfera penal, sempre que dos crimes indicados no texto do documento
se derive algum dano. Assim, a amplitude do princípio e da proteção aos direitos humanos,
aumenta com a previsão de responsabilização de pessoas jurídicas e de competência universal
em matéria civil, no que tange aos danos causados por violações de direitos humanos.
Deste modo, nas últimas décadas, após a viragem kantiana do pós Segunda Guerra
Mundial, ou seja, após o retorno do ideário de Kant da percepção de que o homem é o fim do
direito, a tradução jurídica dessa ideia passa a ser o princípio da dignidade humana e a tutela
da humanidade, consagrados externamente nos documentos normativos e declarativos
internacionais, como se vislumbra no preâmbulo do Estatuto de Roma. Como asseveram
Jimenez e Céspedes (2015, p. 21), imbuídas do ideário kantiano, várias recomendações e
normas foram emitidas por diferentes instâncias internacionais para que os Estados exerçam a
jurisdição universal com a finalidade de investigar e punir responsáveis por delitos que,
embora cometidos contra grupos ou indivíduos em específico, se refletem em toda a

16
Princípio 3 – Crimes econômicos e ambientais de persecução universal. A jurisdição universal também será
aplicável aos crimes econômicos e contra o meio ambiente que por sua extensão e escala afetam gravemente os
direitos humanos de grupos ou coletividades, ou suponham a destruição irreversível de ecossistemas.
(FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2015a).
17
Os Princípios de Madrid-Buenos Aires determinam que a jurisdição universal será aplicável aos crimes de
direito internacional, tais como: genocídio, crimes de lesa humanidade, crimes de guerra, pirataria, escravidão,
desaparecimento forçado, tortura, tráfico de seres humanos, execuções extrajudiciais, crime de agressão,
atividades econômicas lesivas ao meio ambiente, crimes econômicos e contra o meio ambiente que por sua
extensão e escala afetam gravemente os direitos humanos de grupos ou coletividades ou suponham a destruição
irreversível dos ecossistemas, bem como todos os crimes contidos em convenções internacionais ratificadas
pelos Estados (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2015a).
18
Princípio 7 – Jurisdição universal civil. A jurisdição universal será factível no âmbito civil independentemente
da pena, sempre que o dano se derive de algum dos crimes indicados nos princípios 2 e 3 (FUNDACIÓN
INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2015a).
71

humanidade. Além dos exemplos já apresentados, outro que se destaca é a Recomendação


sobre jurisdição universal e Corte Penal Internacional da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, de 1998.
Nesta recomendação, a Comissão defende a ideia de que a consagração definitiva do
princípio da responsabilidade penal individual na ordem internacional e seu complemento, o
princípio da jurisdição universal, contribuem notavelmente não só ao fortalecimento dos
sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos como também à consolidação do
império do direito e das liberdades humanas fundamentais na comunidade mundial
(JIMÉNEZ; CÉSPEDES, 2015, p. 21). Desta forma, a orientação é a de que os Estados
membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) adotem medidas legislativas ou de
outra natureza que sejam necessárias para invocar e exercer a jurisdição universal frente aos
indivíduos em matéria de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.
Nessa ótica, é possível perceber que a fundamentação jurídica em torno da questão
demonstra que os Estado podem, em âmbito interno, elaborar leis específicas para regular o
exercício da competência universal. Enquanto as normas internas são capazes de delinear
traços sobre a legitimação e amplitude da competência, as normas internacionais apresentam o
conteúdo material da jurisdição universal, merecendo destaque, principalmente o genocídio, o
crime lesa humanidade, os crimes de guerra, a tortura e o desaparecimento forçado.
Ainda que todos os delitos apresentados na tabela anteriormente exposta sejam, em
razão de previsão normativa e pela agressão que causam aos direitos humanos, passíveis de
ser investigados por meio do princípio da jurisdição universal, neste trabalho, o foco será
dado ao genocídio, ao crime contra a humanidade ou lesa humanidade e aos crimes de guerra,
três principais delitos presentes no Estatuto de Roma e que ensejam, por fazerem parte do jus
cogens, a aplicação da jurisdição universal em sua forma absoluta.
O artigo 2919 de tal diploma internacional, seguindo a esteira da Convenção sobre a
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade de 1968, dispõe
que tais delitos são imprescritíveis em razão do seu caráter de jus cogens, ou seja, a punição
dos atores envolvidos poderá ocorrer a qualquer momento, independente do tempo que tenha
transcorrido entre a prática do ato e sua investigação jurisdicional. Desta forma, a qualquer
tempo, investigações sobre violações aos direitos humanos enquadradas nas previsões do
Estatuto podem ser realizadas tanto pelo Estado onde os fatos ocorreram, como pelo próprio

Artigo 29 – Imprescritibilidade – Os crimes de competência do Tribunal não prescrevem (ESTATUTO DE


19

ROMA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998).


72

Tribunal Penal Internacional, ou ainda, através do princípio da jurisdição universal em sua


forma absoluta, por Estados que não tenham qualquer relação com os fatos.
O primeiro delito a ser apresentado no Estatuto de Roma é o crime de genocídio.
Previsto pelo artigo 6º20, entende-se por genocídio qualquer um dos seguintes atos, praticados
com intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso:
homicídio de membros de grupo; ofensas graves à integridade física ou mental de membros
de grupo; sujeição internacional do grupo a condições de vida com vistas a provocar sua
destruição física, total ou parcial; imposição de medicas destinadas a impedir nascimentos no
seio do grupo e, transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.
O conteúdo desse artigo é cópia literal do artigo 2º da Convenção para a Prevenção e
Repressão ao Crime de Genocídio, de 1948 de modo que é possível observar que o racismo e
o dolo de extermínio de um grupo por características de sua identidade são elementos
essenciais do crime. O tipo penal em questão apresenta dois elementos: o volitivo e o
objetivo. O primeiro liga-se com a motivação subjetiva do crime de genocídio, que é o dolo, a
vontade de extermínio, o segundo, por sua vez, se consubstancia no ato de agressão física ou
mental contra determinado grupo humano com características semelhantes.
Se não houver cumprimento desses requisitos, o ato em questão poderá se tratar de
crime contra a humanidade ou lesa humanidade. Ele está previsto no artigo 7º do Estatuto de
Roma, que determina que por crime contra a humanidade entendem-se atos21 cometidos no
quadro de ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil, havendo
conhecimento desse ataque.

20
Artigo 6º - Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "genocídio", qualquer um dos atos que a seguir
se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou
religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de
membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição
física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e)
Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo (ESTATUTO DE ROMA DO TRIBUNAL
PENAL INTERNACIONAL, 1998).
21
O artigo 7º do Estatuto de Roma apresenta os seguintes atos como constitutivos de crime contra a humanidade
quando praticados, generalizada ou sistematicamente contra população civil: a) Homicídio; b)
Extermínio; c) Escravidão; d) Deportação ou transferência forçada de uma população; e) Prisão ou outra forma
de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; f) Tortura;
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer
outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; h) Perseguição de um grupo ou coletividade
que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, ou
em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional,
relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal; i)
Desaparecimento forçado de pessoas; j) Crime de apartheid;k) Outros atos desumanos de caráter semelhante,
que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou
mental (ESTATUTO DE ROMA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998).
73

De acordo com a determinação legal, para que um fato seja enquadrado no tipo penal
do crime contra a humanidade é necessário que existam graves agressões sistemáticas ou
generalizadas contra população civil, com conhecimento deste ataque. A sistematicidade e a
generalidade, nessa situação, constituem elementos determinantes do tipo. A sistematicidade
se reflete na existência de um plano ou de uma política formalmente adotada por um Estado
ou organização, que promova a realização dos crimes, ao passo que a generalidade tem
ligação com elemento quantitativo que mede a amplitude da conduta.
Segundo Ivan Cláudio Marx (2013, p. 60) a grande peculiaridade do crime contra a
humanidade está no bem jurídico primariamente protegido. Enquanto em um homicídio
“comum”, o bem jurídico violado prioritariamente é a vida, no crime contra a humanidade, a
vida é um direito protegido apenas de modo secundário, pois o bem jurídico diretamente
tutelado é a humanidade como um todo e a existência de standards mínimos de direitos
humanos, assim como o interesse internacional na conservação da paz e da convivência
pacífica entre os povos. Logo, o fato de haver lesão não só à vítima em seu plano individual,
mas também a toda a humanidade como conjunto é um dos fundamentos da possibilidade de
exercício da competência universal para a persecução criminal.
Na sequência, o artigo 8º22 do Estatuto do TPI apresenta o crime de guerra, que é o de
mais longa data existente dentro do direito penal internacional. O início da codificação desses

22
Entende-se por "crimes de guerra": a) As violações graves às Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de
1949, a saber, qualquer um dos seguintes atos, dirigidos contra pessoas ou bens protegidos nos termos da
Convenção de Genebra que for pertinente: i) Homicídio doloso; ii) Tortura ou outros tratamentos desumanos,
incluindo as experiências biológicas; iii) O ato de causar intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à
integridade física ou à saúde; iv) Destruição ou a apropriação de bens em larga escala, quando não justificadas
por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária; v) O ato de compelir um
prisioneiro de guerra ou outra pessoa sob proteção a servir nas forças armadas de uma potência inimiga; vi)
Privação intencional de um prisioneiro de guerra ou de outra pessoa sob proteção do seu direito a um julgamento
justo e imparcial; vii) Deportação ou transferência ilegais, ou a privação ilegal de liberdade; viii) Tomada de
reféns; b) Outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito
do direito internacional, a saber, qualquer um dos seguintes atos: i) Dirigir intencionalmente ataques à população
civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; ii) Dirigir intencionalmente ataques a
bens civis, ou seja bens que não sejam objetivos militares; iii) Dirigir intencionalmente ataques ao pessoal,
instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de assistência
humanitária, de acordo com a Carta das Nações Unidas, sempre que estes tenham direito à proteção conferida
aos civis ou aos bens civis pelo direito internacional aplicável aos conflitos armados; iv) Lançar
intencionalmente um ataque, sabendo que o mesmo causará perdas acidentais de vidas humanas ou ferimentos na
população civil, danos em bens de caráter civil ou prejuízos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que
se revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar global concreta e direta que se previa; v) Atacar
ou bombardear, por qualquer meio, cidades, vilarejos, habitações ou edifícios que não estejam defendidos e que
não sejam objetivos militares; vi) Matar ou ferir um combatente que tenha deposto armas ou que, não tendo mais
meios para se defender, se tenha incondicionalmente rendido; vii) Utilizar indevidamente uma bandeira de
trégua, a bandeira nacional, as insígnias militares ou o uniforme do inimigo ou das Nações Unidas, assim como
os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, causando deste modo a morte ou ferimentos graves; viii) A
transferência, direta ou indireta, por uma potência ocupante de parte da sua população civil para o território que
ocupa ou a deportação ou transferência da totalidade ou de parte da população do território ocupado, dentro ou
para fora desse território; ix) Dirigir intencionalmente ataques a edifícios consagrados ao culto religioso, à
74

educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem
doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares; x) Submeter pessoas que se encontrem sob o
domínio de uma parte beligerante a mutilações físicas ou a qualquer tipo de experiências médicas ou científicas
que não sejam motivadas por um tratamento médico, dentário ou hospitalar, nem sejam efetuadas no interesse
dessas pessoas, e que causem a morte ou coloquem seriamente em perigo a sua saúde; xi) Matar ou ferir à traição
pessoas pertencentes à nação ou ao exército inimigo; xii) Declarar que não será dado quartel; xiii) Destruir ou
apreender bens do inimigo, a menos que tais destruições ou apreensões sejam imperativamente determinadas
pelas necessidades da guerra; xiv) Declarar abolidos, suspensos ou não admissíveis em tribunal os direitos e
ações dos nacionais da parte inimiga; xv) Obrigar os nacionais da parte inimiga a participar em operações bélicas
dirigidas contra o seu próprio país, ainda que eles tenham estado ao serviço daquela parte beligerante antes do
início da guerra; xvi) Saquear uma cidade ou uma localidade, mesmo quando tomada de assalto; xvii) Utilizar
veneno ou armas envenenadas; xviii) Utilizar gases asfixiantes, tóxicos ou outros gases ou qualquer líquido,
material ou dispositivo análogo; xix) Utilizar balas que se expandem ou achatam facilmente no interior do corpo
humano, tais como balas de revestimento duro que não cobre totalmente o interior ou possui incisões; xx)
Utilizar armas, projéteis; materiais e métodos de combate que, pela sua própria natureza, causem ferimentos
supérfluos ou sofrimentos desnecessários ou que surtam efeitos indiscriminados, em violação do direito
internacional aplicável aos conflitos armados, na medida em que tais armas, projéteis, materiais e métodos de
combate sejam objeto de uma proibição geral e estejam incluídos em um anexo ao presente Estatuto, em virtude
de uma alteração aprovada em conformidade com o disposto nos artigos 121 e 123; xxi) Ultrajar a dignidade da
pessoa, em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes; xxii) Cometer atos de violação,
escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à força, tal como definida na alínea f) do parágrafo 2o do artigo
7o, esterilização à força e qualquer outra forma de violência sexual que constitua também um desrespeito grave
às Convenções de Genebra; xxiii) Utilizar a presença de civis ou de outras pessoas protegidas para evitar que
determinados pontos, zonas ou forças militares sejam alvo de operações militares; xxiv) Dirigir intencionalmente
ataques a edifícios, material, unidades e veículos sanitários, assim como o pessoal que esteja usando os
emblemas distintivos das Convenções de Genebra, em conformidade com o direito internacional; xxv) Provocar
deliberadamente a inanição da população civil como método de guerra, privando-a dos bens indispensáveis à sua
sobrevivência, impedindo, inclusive, o envio de socorros, tal como previsto nas Convenções de Genebra; xxvi)
Recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou utilizá-los para participar ativamente
nashostilidades. c) Em caso de conflito armado que não seja de índole internacional, as violações graves do
artigo 3o comum às quatro Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos atos que
a seguir se indicam, cometidos contra pessoas que não participem diretamente nas hostilidades, incluindo os
membros das forças armadas que tenham deposto armas e os que tenham ficado impedidos de continuar a
combater devido a doença, lesões, prisão ou qualquer outro motivo: i) Atos de violência contra a vida e contra a
pessoa, em particular o homicídio sob todas as suas formas, as mutilações, os tratamentos cruéis e a tortura; ii)
Ultrajes à dignidade da pessoa, em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes; iii) A tomada
de reféns; iv) As condenações proferidas e as execuções efetuadas sem julgamento prévio por um tribunal
regularmente constituído e que ofereça todas as garantias judiciais geralmente reconhecidas como
indispensáveis. d) A alínea c) do parágrafo 2o do presente artigo aplica-se aos conflitos armados que não tenham
caráter internacional e, por conseguinte, não se aplica a situações de distúrbio e de tensão internas, tais como
motins, atos de violência esporádicos ou isolados ou outros de caráter semelhante; e) As outras violações graves
das leis e costumes aplicáveis aos conflitos armados que não têm caráter internacional, no quadro do direito
internacional, a saber qualquer um dos seguintes atos: i) Dirigir intencionalmente ataques à população civil em
geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; ii) Dirigir intencionalmente ataques a edifícios,
material, unidades e veículos sanitários, bem como ao pessoal que esteja usando os emblemas distintivos das
Convenções de Genebra, em conformidade com o direito internacional; iii) Dirigir intencionalmente ataques ao
pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de
assistência humanitária, de acordo com a Carta das Nações Unidas, sempre que estes tenham direito à proteção
conferida pelo direito internacional dos conflitos armados aos civis e aos bens civis; iv) Atacar intencionalmente
edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às
ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos,
sempre que não se trate de objetivos militares; v) Saquear um aglomerado populacional ou um local, mesmo
quando tomado de assalto; vi) Cometer atos de agressão sexual, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez
à força, tal como definida na alínea f do parágrafo 2o do artigo 7o; esterilização à força ou qualquer outra forma
de violência sexual que constitua uma violação grave do artigo 3 o comum às quatro Convenções de Genebra; vii)
Recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou em grupos, ou utilizá-los para participar
ativamente nas hostilidades; viii) Ordenar a deslocação da população civil por razões relacionadas com o
conflito, salvo se assim o exigirem a segurança dos civis em questão ou razões militares imperiosas; ix) Matar ou
ferir à traição um combatente de uma parte beligerante; x) Declarar que não será dado quartel; xi) Submeter
75

crimes deu-se no I Convênio de Genebra de 1865, mas no momento sua fidelidade estava
vinculada ao direito internacional moderno, de Estados soberanos, livres e totalmente
independentes no plano externo. Por isso, em tal período objetivava-se respeitar o exercício da
guerra, arma legítima de atuação na sociedade internacional do período.
Após a aprovação da Carta de São Francisco, em 1945, normas de ius ad bellum, de
proibição do uso da força e de guerra como ferramenta diplomática passaram a regular os
conflitos armados, estabelecendo limites aos conflitos quando estes se instalam. O rol
apresentado no artigo referido do Estatuto de Roma se trata de extenso elenco de ações
delitivas que buscam minimizar os horrores naturais da guerra, através da proteção de todos
os que não são ou os que deixam de ser combatentes no contexto de um conflito armado.
A justificativa para a escolha da observação da aplicação da jurisdição universal em
sua forma absoluta em relação a esses crimes apresentados se dá em razão do último relatório
sobre jurisdição universal (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN ,
2016a) no mundo, lançado recentemente pela Fundação Internacional Baltasar Garzon
(FIBGAR). Conforme esse relatório, as observações demonstram que doze são os países que
vem aplicando recentemente o princípio da competência universal (Argentina, Bélgica, Chile,
Finlândia, França, Alemanha, Holanda, Senegal, Espanha, Suécia, Suíça e Reino Unido) e o
fazem, principalmente com relação aos delitos presentes no Estatuto de Roma, como se pode
observar no quadro abaixo.

Quadro 2 – Casos atuais em que os Estados fizeram/fazem uso do princípio da jurisdição


universal.

PAÍS PAÍS EM QUE


SITU PROCESSO QUE OCORREU O TIPO DE DELITO COMETIDO
AÇÃ JULGA FATO

pessoas que se encontrem sob o domínio de outra parte beligerante a mutilações físicas ou a qualquer tipo de
experiências médicas ou científicas que não sejam motivadas por um tratamento médico, dentário ou hospitalar
nem sejam efetuadas no interesse dessa pessoa, e que causem a morte ou ponham seriamente a sua saúde em
perigo; xii) Destruir ou apreender bens do inimigo, a menos que as necessidades da guerra assim o exijam; f) A
alínea e) do parágrafo 2o do presente artigo aplicar-se-á aos conflitos armados que não tenham caráter
internacional e, por conseguinte, não se aplicará a situações de distúrbio e de tensão internas, tais como motins,
atos de violência esporádicos ou isolados ou outros de caráter semelhante; aplicar-se-á, ainda, a conflitos
armados que tenham lugar no território de um Estado, quando exista um conflito armado prolongado entre as
autoridades governamentais e grupos armados organizados ou entre estes grupos. 3. O disposto nas
alíneas c) e e) do parágrafo 2o, em nada afetará a responsabilidade que incumbe a todo o Governo de manter e de
restabelecer a ordem pública no Estado, e de defender a unidade e a integridade territorial do Estado por
qualquer meio legítimo (ESTATUTO DE ROMA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998).
76

O
Tortura Genocídio Crime contra Crime Outros
a humanidade de
guerra
Sob Franco Argenti Espanha ✔ ✔
invest dictatorship na
igaçã
o
Sob Paraguayan Argenti Paraguai ✔ ✔
invest Indigenous na
igaçã community
o
Sob Amesys França Líbia ✔
invest
igaçã
o
Sob Qosmos França Síria ✔
invest
igaçã
o
Sob Guantanam França Cuba ✔
invest o (Guantanamo
igaçã Bay)
o
Sob Syrian cases França Síria ✔
invest
igaçã
o
Sob US Torture Aleman Diferentes ✔
invest case ha locais
igaçã
o
Sob Syrian cases Aleman Síria ✔
invest ha
igaçã
o
Sob Boko Espanh Ningéria ✔
invest Haram a
igaçã
o
Sob Karenzi Espanh Ruanda ✔ ✔ ✔ ✔ ✔
invest Karake a República
igaçã Democrática
o do Congo
Sob The Sahara Espanh Marrocos ✔ ✔ ✔
invest case a
igaçã
o
Sob Falung Espanh China ✔ ✔
invest Gong case a
igaçã
o
Sob Guantánam Espanh Cuba ✔
invest o a (Guantanamo
igaçã Bay)
o
Sob Clever Suécia Ruanda ✔ ✔
invest Berindinki
igaçã
o
77

Sob Ali Bin Suíça Barhain ✔


invest Fadhul Al-
igaçã Buainain
o
Sob Sadeq Holand Afeganistão ✔
invest Alamyar a
igaçã
o;
Prisã
o
preve
ntiva
Sob The Iraqi Finlând Iraque ✔
invest twin ia
igaçã Brothers
o;
Prisã
o
preve
ntiva
Sob Alieu Suíça Libéria ✔
invest Kosiah
igaçã
o;
Prisã
o
preve
ntiva
Sob Paul Senegal República ✔
invest Mwilambwe Democrática
igaçã do Congo
o;
Prisã
o
preve
ntiva;
Acus
ado
Sob The Jesuits Espanh El Salvador ✔
invest Murder a
igaçã
o;
Prisã
o
preve
ntiva;
Acus
ado
Deten Octavien França Ruanda ✔ ✔
ção Ngenzi &
Tito
Barahira
Pende Inocente Espanh El Salvador ✔
nte Orlando a
extra Montana
dição
para a
Espan
ha
Em Michel Bélgica Libéria ✔ ✔
78

prisão Desaedeleer
domi
ciliar;
Acus
ado
Em Martina Bélgica Libéria ✔ ✔
prisão Johnson
domi
ciliar;
Acus
ado
Em Hissène Senegal Chad ✔ ✔ ✔
julga Habré
ment
o
Em Colonel Reino Nepal ✔
julga Kumar Unido
ment Lama
o
Caso Relizane França Algéria ✔
julga (Mohamed
do; brothers)
Em
recurs
o
Caso Wenceslas França Ruanda ✔ ✔ ✔
julga Munyeshya
do; ka
Em
recurs
o.
Caso José Couso Espanh Iraque ✔
julga a
do;
Em
recurs
o.
Sente Pascal França Ruanda ✔ ✔
nciad Simbikang
o; wa
Apela
ção

Cond Onesphore Aleman Ruanda ✔


enado Rwabukom ha
; be
Apela
ção
Cond Mouhannad Suécia Síria ✔ ✔
enado Droubi
;
Apela
ção
Cond Ignace Aleman Congo ✔ ✔
enado Murwanash ha
yaka &
Straton
Musoni
Cond Erwin Suíça Guatemala ✔
enado Sperisen
79

em
recurs
o
Encer Lopez and Chile Venezuela ✔
rado Ceballos
Encer Tibet Espanh China (Tibet) ✔ ✔ ✔
rado a
Encer Pinochet Espanh Chile ✔
rado a
Encer Unocal- Bélgica Birmânia ✔ ✔
rado Total

Fonte: (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2016a).

O crescente reconhecimento material do princípio da jurisdição universal nas últimas


décadas demonstra que há não só um fundamento filosófico em relação à sua existência,
apresentado neste trabalho por meio do direito cosmopolita kantiano e das teorias
cosmopolitas derivadas das premissas de Kant, como esse fundamento filosófico contribui
para a noção de que em matéria de direitos humanos a moral e o direito são elementos
intrinsicamente ligados. A tutela da humanidade passa a receber atenção não só do direito
internacional dos direitos humanos, mas também do direito penal internacional, por meio da
noção de que agressões que violem direitos humanos merecem ser previstas em tipos penais
com aplicação internacional, de modo que os indivíduos que cometem tais atos não devem
ficar impunes.
É nesse aspecto que o dever ser moral passa a comportar um dever ser jurídico de
tutela da humanidade tendo por base a solidariedade. O respeito ao outro e a proteção dos
valores universais, ou no mínimo comuns, que formam esse mosaico que é a humanidade não
podem ser garantidos somente no plano da moral ou da ética, mas para que possam ter
cogência e obrigatoriedade, devem ser previstos em normas jurídicas. Deste modo, o
fundamento jurídico para o exercício da competência universal não só existe, mas também é
claramente explicitado em documentos internacionais escritos, como é o caso dos tratados e
convenções, como também em práticas e costumes internacionais, tendo seu conteúdo
material disposto no jus cogens.
Todavia, entre o dever ser e o ser, um abismo profundo de consequências e questões
começam a emergir, de modo que possibilidades abstratas e concretas se delineiam ao mesmo
tempo em que a força da realidade insiste em colocar limites e entraves aos avanços do
princípio. É nesta dicotomia que esse capítulo é concluído, para, a partir de agora, apresentar
o ser em relação ao princípio da competência universal, ou seja, as possibilidades e mudanças,
sobretudo jurídicas, que são apresentadas pelo princípio e refletidas nas mais diversas esferas
80

do direito, bem como os limites impostos pela realidade à consagração desse importante
princípio internacional.
81

3 A REALIDADE PRÁTICA ACERCA DO PRINCÍPIO DA JURISDIÇÃO


UNIVERSAL: ENTRE AS POSSIBILIDADES NO CENÁRIO JURÍDICO E OS
LIMITES DO REAL

A melhor reflexão para iniciar este capítulo é a de Luis Peraza. Em estudos sobre a
jurisdição universal, o autor afirmou que esta é fácil de explicar, porém complicada de
interpretar e executar (PERAZA, 2006, p. 05). Uma das justificativas para isso é a de que o
princípio, principalmente em sua modalidade absoluta, conforme já se demonstrou alhures,
abala as estruturas de formação do Estado moderno e propõe um rompimento com concepções
herdadas da modernidade e vigentes até os dias de hoje.
Há certo descompasso entre as pretensões filosóficas de justificativa do exercício da
jurisdição universal, as quais estruturam os pilares de um arcabouço capaz de criar um dever
ser jurídico baseado na solidariedade e na alteridade cosmopolitas, e as constatações da
realidade, observáveis por meio da sociologia e das alterações do direito no plano fático. Se
no aspecto da filosofia nos deparamos com as teorias do cosmopolitismo, no campo da
sociologia, um dos focos da segunda parte desse trabalho, o pensamento de Ulrich Beck
(2003, p. 187), conforme já apresentado de modo breve anteriormente, nos permite apresentar
a chamada cosmopolitização da realidade.
Segundo o autor, a pergunta sociológica chave de nosso tempo é: até que ponto o
espaço de experiência transnacional dilui o espaço de experiência nacional? Esses dois locus
interagem entre si e se relacionam de que maneira? Na busca de respostas a esse
questionamento, Beck constata três situações: a primeira delas é a de que a globalização,
como local de experiência transnacional, é geralmente pensada de modo aditivo. Isto quer
dizer que, a lógica cartesiana moderna de organização estrutural com base em espaços bem
delineados e delimitados continua vigente, uma vez que, tal como nessa lógica, a sociedade
permanece concebida e organizada em termos de Estado nacional, atuando a globalização de
forma suplementar e externa.
A segunda situação constatada é a de percepção da globalização como cenário em que
se estabelecem entrelaçamentos e interdependências entre os Estados. Tal ideia, como destaca
Beck (2003, p. 187), apesar de ser uma forma habilidosa de interpretar a globalização como
modo de internacionalização, não deixa de conceber o Estado como ponto fulcral, de maneira
que o nacionalismo metodológico que determinou a sociologia, o direito e a política na
racionalidade moderna não é superado.
82

Por fim, a terceira constatação é finalmente a cosmopolitização. Esta não se vincula


propriamente com a história das ideias do cosmopolitismo visualizadas no campo da filosofia,
mas com o fato de a realidade ter se tornado cosmopolita. Isso pode ser exemplificado por
meio da genealogia dos riscos globais, nos quais, de acordo com Mireille Delmas-Marty
(2004a), ora a humanidade é vítima de violações a seus direitos, ora é titular de direitos.
Assim, o cosmopolitismo sob essa ótica passa do campo do dever ser para a esfera do ser, ou,
como refere Beck (205, p.10), o cosmopolitismo deixa de ser uma simples ideia da razão para
migrar dos sonhos filosóficos em direção à pura e simples realidade.
Essa migração será chamada de cosmopolitização e, como se verá mais adiante, além
de operar efeitos na sociologia, produz efeitos no direito, no que Julie Allard denomina de
cosmopolitização da justiça (ALLARD, 2008). Sob essa ótica, diversos fenômenos
extremamente relevantes vêm ocorrendo no campo jurídico dos Estados, demonstrando que o
pertencimento coletivo a uma sociedade única de riscos globais faz emergir o processo de
busca de respostas em conjunto ou de referências recíprocas que possam surgir como
precedentes de respostas.
Nesse sentido, situações como a mundialização dos juízes nacionais, como os diálogos
interjurisdicionais, ou, ainda como a hospitalidade judiciária em matéria de direitos humanos
configuram-se como reflexos inevitáveis do processo de cosmopolitização da justiça e podem
todos ser perpassados ou circundar a ideia de jurisdição universal. Isso porque esse princípio
exige que estruturas estanques e internas do Estado moderno - para além do povo, do
território e da soberania -, sejam (re) questionadas e (re) pensadas, sendo que os fenômenos
jurídicos destacados, que se vinculam à jurisdição universal, são basilares para realizar essas
indagações.
Outrossim, além dessas mudanças em sentido macro no cenário jurídico, no momento
de alteração da lente de percepção de filosófica e do dever ser para a sociológica do ser,
outros questionamentos surgem, principalmente em relação aos aspectos procedimentais da
competência universal e os entraves ou limites que esses procedimentos impõem ao princípio.
Assim, a tramitação em vários tribunais distintos, a execução da sentença proveniente de
julgamento que aplicou o princípio da competência universal, o acesso à justiça, as
dificuldades linguísticas, entre outros são elementos do processo em âmbito nacional que
indiscutivelmente limitam o pleno funcionamento do princípio, principalmente em sua forma
absoluta. Por meio de casos práticos emblemáticos sobre o tema, esses problemas de ordem
procedimental e processual serão abordados a fim de pontuar quais são e de que modo atuam
os limites do real sobre a jurisdição universal.
83

3.1 DA COSMOPOLITIZAÇÃO DA JUSTIÇA À HOSPITALIDADE


JUDICIÁRIA: REFLEXOS DE ALGUNS EFEITOS DA APLICAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA JURISDIÇÃO UNIVERSAL NO CENÁRIO GLOBAL.

Na medida em que a viragem kantiana do século passado aumentou as percepções do


homem como centro da sociedade e o dever de tutela da humanidade por meio da proteção
dos direitos humanos, a ascensão neoliberal e o afã pelo crescimento econômico na disputa
por mercados no campo internacional desvelaram uma face obscura do final do século XX e
início do século XXI. Esse cenário é exposto e enfrentado por Ulrick Beck (2003, p.187) na
teorização do que ele chama de sociedade do risco.
Para a compreensão dessa sociedade, Beck propõe uma distinção entre primeira e
segunda modernidades. A primeira foi marcada pela sociedade nacional e estatal, com rápida
industrialização e consolidação por meio de várias revoluções políticas e industriais ao longo
dos séculos. A segunda modernidade é a marca dos dias atuais, ou da denominada
modernidade reflexiva em que estruturas da primeira modernidade são questionadas e
colocadas em xeque pela assunção de riscos e problemas de caráter transnacional ou global.
Desta forma, a sociedade industrial, caracterizada pelo processo de produção e
distribuição de bens foi deslocada pela sociedade de risco, em que a distribuição destes riscos
não é condizente com as diferenças sociais, econômicas e até mesmo geográficas da primeira
modernidade. Nos dias atuais, portanto, a modernidade deve enfrentar cinco processos
interligados: a globalização, a individualização, o desemprego, o subemprego e os riscos
globais da crise ecológica e da turbulência dos mercados financeiros.
O conjunto de riscos seria capaz de gerar uma nova forma de capitalismo, de
economia, de ordem global, de sociedade e de vida pessoal. Assim, a paisagem que ilustra a
esfera social, política, econômica e jurídica do século XXI é extremamente caótica e marcada
pelo duplo processo de transnacionalização de problemas comum e interdependência na busca
de respostas. Nessa situação, emergem as figuras da globalização e da cosmopolitização.
A primeira é entendida como um processo, sobretudo, econômico, sob a perspectiva
unidimensional de um mercado mundial desregulamentado, enquanto a segunda deve ser
percebida e compreendida à luz da multiplicação dos modos de vida transnacionais em uma
perspectiva multidimensional (MACEDO, 2011). A cosmopolitização, desta forma, não é um
modo diferente de perceber a globalização, pois são conceitos distintos: enquanto a
globalização altera a qualidade do econômico e do político na sociedade global, a
84

cosmopolitização aproxima-se de um fenômeno empírico de tentativa de abertura da antiga


estrutura social da Sociologia para a modernidade reflexiva (BECK, 2003, p. 188). Essa noção
de cosmopolitismo da realidade, ou de cosmopolitização apresentada por Beck significa uma
transformação interna dos e nos detentores do poder estatal, havendo a compreensão de uma
nova forma de cosmopolitismo, no sentido de interpenetrações e ajustes entre o local e o
global, com abertura integral para o mundo.
Diferentemente de pensadores cosmopolitas clássicos, que entendiam a modernidade
como trânsito das iniciais circunstâncias de sociedades relativamente fechadas para a época
universal de sociedades independentes, Ulrich Beck parte da análise empírica da sociedade
atual delineando o modo pela qual ela se cosmopolitiza. Desta maneira, uma das distinções
mais relevantes de sua obra diz respeito ao cosmopolitismo filosófico e ao cosmopolitismo
sociológico.
O primeiro é resultante de uma escolha voluntária e planejada e se vincula ao sentido
kantiano da noção de cosmopolitismo, do sentimento de fazer parte do experimento
civilizador da humanidade e contribuir para a formação de uma cultura universal (BECK,
2005, p. 31). Seria, portanto, um cosmopolitismo ativo, um dever ser para ordenar o mundo.
A cosmopoltização sociológica, por sua vez, relaciona-se com o campo da práxis, e é vivida
sem que seus protagonistas saibam do que está se sucedendo.
Enquanto na modernidade nacional o cosmopolitismo só poderia ser imaginado,
porém não vivido, nos dias atuais a realidade se tornou cosmopolita e não necessariamente
por uma escolha, pois pode o ser por imposição, como é o caso dos perseguidos políticos, dos
imigrantes econômicos ou ambientais, dos refugiados, dentre outros que não são estrangeiros
por escolha própria, mas por imposição histórica. Nas palavras de Ulrich Beck:

(...) distinguirei dois tipos de cosmopolitismo: o mais geral é a interpretação que


advoga pela harmonia por cima de fronteiras culturais e nacionais (cosmopolitismo
normativo ou cosmopolitismo filosófico). Esta compreensão normativa deve se
distinguir de uma perspectiva descritivo analítica das ciências sociais, que se libera
de categorias nacionais (a mirada cosmopolita ou cosmopolitismo analógico-
empírico) (BECK, 2005, p. 30).

Nesse processo de cosmopolitização ou de cosmopolitismo da realidade vive-se o


paradoxo do crescimento das relações de interdependência entre os atores sociais e o
surgimento de diversos fenômenos de caráter internacional e transnacional que não são
capazes de serem compreendidos sobre as lentes de observação do Estado nação. Para esse
85

mundo que se tornou cosmopolita pela força das coisas23, necessita-se urgentemente de uma
nova ótica, o que Beck chamará de mirada cosmopolita.
Esta surge para confrontar a mirada nacional, que levada ao campo da ciência deu
origem ao nacionalismo metodológico, um reflexo do racionalismo moderno que aborda as
sociedades sob o ponto de vista dos Estados nacionais. O descompasso entre as experiências
do real, permeadas por elementos transnacionais e cosmopolitas, e o modo de interpretação
dessas situações, ainda atrelado à ótica nacionalista moderna gera uma sensação de caos e
incompreensão do panorama mundial atual. Assim, em um mundo de crises globais e perigos
derivados da civilização, velhas definições modernas perdem seu sentido e sua
obrigatoriedade, pois são ultrapassadas pela força da realidade.
Como proposta de superação da mirada nacional no campo da política e do
nacionalismo metodológico no campo das ciências surge a ideia de mirada cosmopolita ou de
cosmopolitismo metodológico. A título exemplificativo, Ulrich Beck (2005, p. 17) afirma que
a mirada cosmopolita proposta se consubstancia em cinco princípios: a) na experiência de
crise da sociedade mundial, com as relações de interdependência sendo percebidas através dos
riscos globais e da sociedade de destino civilizado que tenta suprimir fronteiras internas e
externas; b) no reconhecimento das diferenças da ordem mundial e do resultante caráter
conflitivo da sociedade global; c) na empatia cosmopolita e na mudança de perspectivas; d) na
impossibilidade de viver em uma sociedade mundial sem fronteiras e na pressão resultante
para traçar e fixar novas fronteiras e muros; e) princípio da miscelânea, no qual culturas e
tradições locais, nacionais, étnicas e religiosas se interpenetram e se mesclam, de modo que,
como assevera Beck: “o cosmopolitismo sem provincialismo é vazio e o provincialismo sem
cosmopolitismo é cego." (2005, p;17).
A mirada cosmopolita, a partir desses princípios, coloca em questão o convencimento
de que a sociedade e a política modernas só podem existir caso se organizem no modo de
Estados nacionais. O grande paradoxo que surge entre elementos da realidade cosmopolita e
elementos de compreensão nacionais aponta para o fato de que o nacionalismo metodológico
apresenta concepções inadequadas para a sociedade global do século XXI.
Um desses defeitos, por exemplo, se reflete nas questões de identidade. Na perspectiva
de uma mirada nacional, questões identitárias são percebidas sob um binômio: ou se é

23
A contrariedade entre a incompletude das ideias e a força das coisas é uma das premissas que guia o trabalho
de Mireille Delmas-Marty no primeiro livro da coleção “As forças imaginantes do direito” 23. Nessa relação, ela
analisa as vicissitudes da mundialização e as consequências desta para a seara jurídica por meio da oposição
entre as falhas de um universalismo jurídico, visto no patamar de incompletude das ideias e os limites do
relativismo jurídico, compreendido enquanto força das coisas (DELMAS-MARTY, 2004a).
86

estrangeiro, ou se é nacional. Como bem salienta Ulrich Beck (2005, p. 41), nenhum dos
métodos de investigação que utilizam conceitos estadísticos como estrangeiro e nacional está
preparado para abordar uma realidade vital que cada vez é mais transnacional e está
caracterizada por múltiplas filiações que ultrapassam fronteiras.
Ao lado das questões de identidade encontram-se os dilemas territoriais. O
nacionalismo metodológico impõe uma compreensão territorial da sociedade que se apoia em
fronteiras estatalmente construídas e controladas. Nessa perspectiva, mesmo a cultura também
é compreendida como elemento territorialmente limitado e fechado em fronteiras estatais.
Desta forma, pertinente mais uma vez a reflexão de Beck (2005, p. 34) de que a
realidade se torna cosmopolita em seu núcleo, enquanto nossas formas de pensamento e
consciência estão atreladas aos Estados nacionais e à compreensão do mundo sob a ótica de
uma mirada nacional. A novidade de nosso tempo, desta forma, não é a mescla cultural e
identitária, mas a sua tentativa de percepção e reflexividade social sob uma ótica cosmopolita.
A mirada nacional, portanto, analisa o Estado e os problemas sob bases inquestionadas de
suas próprias premissas, enquanto a proposta de uma ótica cosmopolita almeja agudizar a
compreensão das interdependências globais, sem ser necessariamente internacional.
Nesse sentido, inclusive, outra reflexão pertinente é de que o internacional e o
cosmopolita não podem ser equiparados, até mesmo pelo fato de que as reflexões sobre o
internacional possuem como referência elementos do nacional, compreendidos sob as
estruturas e conceitos do nacionalismo metodológico. O cosmopolitismo de realidade, no
entanto, sob a percepção da mirada cosmopolita, abarca a transformação da gramática social e
política e, portanto, a integração por meio da globalidade reflexiva. O binômio do dentro e do
fora que subjazem na diferenciação do nacional e do internacional resta suprimido diante da
premissa do “não só dentro como também fora” (2005, p. 50).
Deste modo, para compreender a cosmopolitização, que na maioria das vezes é uma
sequela involuntária da força da realidade, é necessário superar a noção de nacionalismo
metodológico e a mirada nacional. Embora a teoria de Beck tenha sido criada para propor
novas categorizações no ramo da sociologia, a seara do direito também passa a conviver com
uma grande multiplicidade de fenômenos oriundos da acelerada dinâmica social dos dias
atuais (ROSA, 2012).
O tempo de cosmopolitismo de realidade inter-relaciona-se com a lógica da aceleração
social estudada e descrita por Artmut Rosa (2012). Para ele vive-se a lógica da aceleração
social, vislumbrada em três modalidades: aceleração técnica; aceleração das mudanças sociais
e aceleração do ritmo de vida (ROSA, 2012, P. 101).
87

A primeira dessas modalidades seria capaz de se relacionar com a lógica da


globalização econômica, sendo uma forma de aceleração intencional dos processos destinada
a um rumo específico. As outras duas modalidades, por sua vez, podem se relacionar entre si e
representam reflexos do processo de cosmopolitização, vez que a aceleração das mudanças
sociais significa, de um lado, o ritmo no qual se transformam as formas da prática e as
orientações da ação e de outro, as formas de ligação social e os modelos relacionais. A
aceleração do ritmo de vida, mais especificamente, reflete as alterações no plano individual,
com o recrudescimento do sentimento de urgência, de pressão temporal e do estresse.
Na aceleração inerente à cosmopolitização, portanto, o espaço vivencial cotidiano da
interdependência cosmopolita não surge como uma relação de amor de todos a todos. Surge,
pelo contrário, da preocupação e das consequências das situações de risco global, seja como
reflexões ou como propostas de solução para problemas globais. Esse fenômeno, como já fora
dito, não é exclusivo das ciências sociais, de modo que no direito é possível se falar em
cosmopolitização da justiça e em reflexos da sociedade dos riscos globais na seara jurídica,
não só por meio de teorias e ações que desvelam esse fenômeno, mas também através de
posturas que almejam encontrar respostas para os riscos comuns globais.
Nesse sentido, Jullie Allard (2008) conceitua cosmopolitização da justiça partindo das
ideias de Ulrick Beck, de modo que destaca que o teórico não pensa em um mundo sem
Estados nacionais, mas apenas considera que, metodologicamente, o Estado não é mais o
ponto de partida de reflexão das diferentes formas de justiça em curso. Para ela a
cosmopolitização apresenta algumas características como é o caso da interdependência entre
os atores sociais das mais diversas esferas; a noção de que o mundo é partilhado, seja por
meio dos riscos globais ou pelo ideal de um destino em comum e a mundialização da justiça.
Esta última até pode apresentar como norte e como figuras imperativas de dever ser os
princípios cosmopolitas, porém é um processo social efetivo com riscos e com ambiguidades
no âmbito da justiça e do direito. Segundo Allard (2008), no campo jurídico a
cosmopolitização dá azo ao cosmopolitismo de situação pelo fato de que, por exemplo,
quando os juízes dialogam para além do campo nacional, frequentemente é para resolver
situações concretas específicas ou os chamados hard cases. As soluções encontradas, desta
maneira, invariavelmente permeiam casos concretos. Por isso, o cosmopolitismo de situação
leva a um direito mundializado, visto em casos particulares e em articulações entre o geral e o
particular.
Nesse sentido, países com tradição de civil law, como é o caso do Brasil, além de
possuírem como referência no âmbito das ciências sociais e políticas as noções de Estado
88

nacional, contam com um sistema jurídico baseado na racionalidade moderna das grades
codificações e da percepção de que as condutas deveriam estar positivadas nas normas
jurídicas, devendo o magistrado realizar a aplicação do silogismo lógico-subsuntivo, ou seja,
realizar a adequação do fato à norma jurídica para chegar a uma decisão. Tal sistema nas
últimas décadas vem sofrendo influência do sistema de common law, ou de valorização dos
precedentes judiciais, no qual a hermenêutica interpretativa realizada pelos magistrados não
necessariamente fica adstrita aos textos legais, de modo que as decisões oriundas das
interpretações dos juízes, baseadas em casos concretos, configuram precedentes em
determinadas situações.
A dinâmica dos problemas globais da sociedade de risco impulsiona, no campo do
direito essa necessidade de inter-relações e de cruzamentos entre os sistemas, de maneira que
a plena compreensão dos fenômenos oriundos desse cenário não poderá acontecer quando se
tem por base a referência de uma mirada nacional. Uma das situações que surge, por exemplo,
a título exemplificativo, é denominada por Marcelo Neves de transconstitucionalismo. Tendo
como campo de observação o Direito Constitucional, Neves (2009) afirma que a partir do
final do século XX, constitucionalistas de diversas tradições teóricas e dos mais variados
países, vinculados ao estudo das Constituições estatais passaram a ter como preocupação
primordial os novos desafios de um novo direito constitucional que ultrapassou as fronteiras
dos respectivos Estados e tornou-se incisivamente relevante para outras ordens jurídicas,
inclusive as não-estatais.
Na continuidade de seu pensamento, Neves deixa explícita a noção de que no processo
de maior integração da sociedade mundial, certas questões, como é o caso dos direitos
humanos, tornaram-se insuscetíveis de serem tratadas por uma ordem jurídica estatal no
âmbito do respectivo território, vez que são relevantes para mais de uma ordem jurídica e para
mais de um ator social. Isso leva a relações transversais desenvolvidas de maneira permanente
e cada vez mais profundas em torno de problemas e dilemas comuns.
Dessa maneira, embora não de modo explícito, é possível afirmar certa concordância
da ideia da obra de Neves com a noção de sociedade do risco e de cosmopolitização de Beck.
Isso porque o primeiro assevera que o direito constitucional, por exemplo, embora tenha sua
base originária no Estado, dele se emancipa tendo em vista que outras ordens jurídicas estão
envolvidas diretamente na solução de problemas constitucionais básicos, prevalecendo
inclusive, em muitos casos, contra a orientação das respectivas ordens estatais.
Diante dessa breve explicação torna-se impossível discordar da premissa de Mireille
Delmas-Marty (2004b) de se vive, desde a segunda metade do século XX um verdadeiro caos
89

jurídico que necessita de ordenação. Esse caos é oriundo da pluralidade de atores


internacionais e sujeitos de direito internacional e do surgimento de novas fontes que
culminam em uma nova arquitetura jurídica, incompreensível em sua plenitude diante das
lentes de observação da racionalidade moderna.
Nesse panorama caótico, as hierarquias encontram-se entrelaçadas nos mais diversos
níveis (local, nacional, regional, supranacional e internacional), os espaços estão
desestatizados diante da proliferação de fontes jurídicas provenientes também de lugares não
estatais. Os tempos tornam-se desestabilizados e as ordens deslegalizadas, com objetos
jurídicos fugindo de padrões legislativos clássicos e da tecnicidade específica das leis. O
direito moderno, compreendido dentro das estruturas estatais e na forma piramidal, com a
primazia de um governo por leis (SUPIOT, 2015b) é substituído por hierarquias descontínuas,
por pirâmides inacabadas e por um direito contemporâneo no formato de redes, ou, nas
palavras de Delmas-Marty (2004b), de estruturas anárquicas e anéis em formatos de
guirlandas capazes de ilustrar minimamente o cenário de caos.
Nessa esfera, além do surgimento de novas instituições, como é o caso dos Tribunais
Internacionais de Direitos Humanos ou de estruturas supranacionais como é o caso das
instituições surgidas no bojo da União Europeia, princípios e institutos já existentes adquirem
novas roupagens e passam a integrar novos fenômenos surgidos na seara jurídica. Esse é o
caso do princípio da jurisdição universal, cerne desse trabalho e que desponta como uma
figura importante no processo de cosmopolitização.
A figura da jurisdição universal surge nos Estados Unidos com o chamado Alien Tort
Claims Act (ATCA), promulgado na primeira sessão do Congresso Americano em 1789. Sua
criação deu-se, sobretudo, por dois motivos: o primeiro deles seria o de proteção legal para
embaixadores estrangeiros residentes nos Estados Unidos e, o segundo, para permitir ações
contra os piratas. Essa descrição induz a observação do princípio ainda sobre uma premissa
grocciana e não como uma forma de tutela da humanidade enquanto vítima de violações aos
direitos humanos.
Estando em vigor desde a data mencionada, o texto do ATCA afirma que as cortes
distritais devem ter jurisdição originária para apreciar e julgar ações civis de reparação por
delitos praticados, mesmo no estrangeiro, em violação ao direito das nações ou de um tratado
firmado pelos Estados Unidos. A lei, desta forma, autorizava cidadãos de fora da jurisdição
norte-americana a apresentarem, junto aos tribunais federais, pedido de reparação e
compensação por danos sofridos, alegando violação do direito das nações. A expressão Alien
significa que a lei é destinada aos estrangeiros e não aos americanos, sejam eles atores estatais
90

ou não estatais, e Tort Claims significa que a responsabilidade civil é um remédio para o erro
cometido contra direitos internacionalmente reconhecidos (ALLAN & OVERY, 2016).
Com a viragem kantiana do século XX e a crescente internacionalização dos direitos
humanos, a figura da jurisdição universal preconizada pelo ATCA desperta de quase dois
séculos de dormência e passa a ter como princípios norteadores as premissas do
cosmopolitismo, como já se mencionou no capítulo anterior. O dever de aplicação da
jurisdição universal como um princípio de proteção da humanidade e de combate à
impunidade torna-a uma importante ferramenta para a tutela dos indivíduos, vítimas de
violações de direitos humanos seja por governos, seja por governantes ou outras autoridades
estatais, ou ainda por pessoas privadas ou empresas.
Importante esclarecimento feito por André de Carvalho Ramos (2016) é o de que a
responsabilidade internacional penal do indivíduo originou-se no costume internacional de
combate à pirataria nos mares e, paulatinamente, novos delitos, como tráfico de escravos, por
exemplo, foram sendo aceitos tanto pelo costume internacional quanto por normas
convencionais como possíveis de ter como sujeito ativo indivíduos de outras nacionalidades.
A peculiaridade desses crimes é que também eram infrações penais do ponto de vista do
direito local. Desta forma, o Estado ao punir um pirata de outra nacionalidade, estaria por
conveniência e por oportunidade, somente substituindo outro Estado.
O processo de internacionalização dos direitos humanos adicionou novo elemento à
responsabilidade penal: persecução criminal de indivíduos agindo em nome de Estados, ou
seja, agentes públicos das mais diversas hierarquias, que obedecendo a leis locais cometeram
atos contrários aos direitos humanos. Segundo André de Carvalho Ramos (2016), essa
novidade foi essencial para a punição de atos bárbaros e odiosos, chamados posteriormente de
crimes contra a humanidade, cometidos contra a população civil com o uso do aparato estatal.
Se sob a perspectiva teórica o que permeia essa nova interpretação do princípio da
jurisdição universal são as teses cosmopolitas, no plano prático da cosmopolitização, o que é
possível vislumbrar é a aplicação desse princípio de forma consonante com novos fenômenos
jurídicos, como é o caso da comunicação entre ordens jurídicas distintas, da mundialização
dos juízes nacionais, bem como da hospitalidade judiciária. Essas situações citadas
representam estruturas desenvolvidas no processo de cosmopolitismo de realidade e que
desempenham importante papel nesse cenário desorganizado da paisagem jurídica global.
Embora ainda nesse panorama caótico, tais fenômenos, que são formas de
cosmopolitização da justiça, oferecem possibilidades de respostas, em sua maioria com bases
cosmopolitas ou em ideais de proteção dos direitos humanos, para problemas comuns aos
91

mais diversos atores internacionais da sociedade do risco. Estudam-se, deste modo, essas
questões pelo fato de que, em maior ou menor escala elas se relacionam com as alterações no
plano fático, da interpretação do princípio da jurisdição universal em matéria de direitos
humanos.
O primeiro desses acontecimentos é o que Antoine Garapon e Julie Allard (2006)
denominam de comércio entre juízes, mas que será denominada nesse trabalho de
comunicações entre juízes ou mundialização dos magistrados nacionais. Frente à
globalização, o direito se tornou um bem intercambiável, capaz de transpor barreiras
nacionais como se fosse um produto de exportação e importação. É justamente nessa
concepção que Allard e Garapon desenvolvem a ideia de comércio entre magistrados.
Crê-se, no entanto, que as dinâmicas na seara jurídica ultrapassam a noção econômica
de o direito de ser um bem intercambiável e se incluem verdadeiramente nos reflexos da
cosmopolitização, de modo que temas como direitos humanos, proteção de direitos ambientais
e outras questões apresentadas como dilemas transnacionais devem mobilizar estruturas locais
e globais para sua completa resolução. Nesse contexto, a interpenetração do direito alienígena
em esferas nacionais se dá não somente através da validação no ordenamento jurídico de
normas provenientes de tratados, convenções ou acordos internacionais, mas também passa a
ser enfoque da preocupação dos principais atores dos diferentes sistemas de justiça: os juízes.
Esses se configuram como agentes ativos no processo de mundialização, uma vez que
ultrapassam sua função precípua de interpretar e aplicar a legislação nacional para se tornarem
importantes personagens da cosmopolitização da justiça nos dias atuais (SALDANHA;
MELLO, 2014). Importante salientar que como um acontecimento da cosmopolitização, esse
processo de mundialização dos juízes nacionais e consequente comunicação entre magistrados
não é um espaço legislativo à revelia, mas, na grande maioria das vezes, um fórum informal
de intercâmbios situados à margem dos mecanismos institucionais.
Em estando à margem de mecanismos institucionais, essas comunicações, embora
positivas, em alguns casos, para o desenvolvimento de uma racionalidade argumentativa
comum visando a solução de determinadas questões globais, também corroboram a tese
anteriormente descrita por Allard de que os movimentos de abertura dos juízes nacionais às
decisões de outros magistrados se dão na análise de casos concretos e particulares, de modo
que nem sempre essa abertura e comunicação gerarão precedentes repetitivos capazes de criar
um entendimento consolidado em relação a algum assunto.
Nesse sentido Garapon e Allard (2006, p. 19) destacam que nos últimos anos, a
abertura dos sistemas jurídicos nacionais às jurisprudências de outros sistemas levou ao
92

aparecimento de duas práticas: situações em que os juízes tomam a iniciativa de consultar


decisões judiciais estrangeiras quando não existe nenhuma obrigatoriedade de isso ser feito ou
elaboram uma espécie de costume judicial para colmatar os silêncios do direito positivo. Não
são poucos os casos de abertura dos juízes nacionais a decisões estrangeiras, tanto de outros
Estados como de Cortes ou Tribunais Internacionais. Talvez um dos casos que merece
destaque, a título exemplificativo, por constituir verdadeiro paradigma de abertura e
comunicação judicial seja a decisão proferida em 2003, pela Suprema Corte dos Estados
Unidos, no caso Lawrence vs.Texas.
A situação fática do caso em comento fora a seguinte: agentes policiais, ao atenderem
uma ocorrência sobre tiroteio em Houston, entraram em um apartamento onde se encontravam
dois homens praticando relações sexuais consentidas. Contra eles foi intentada ação judicial
com argumento de violação de uma lei texana que impedia a prática de relações sexuais entre
indivíduos do mesmo sexo. Após condenação pelo Tribunal da Relação do Texas, os
indivíduos recorreram à Suprema Corte dos Estados Unidos e esta, em sua decisão, utilizou-
se, dentre outros argumentos, da jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos para
inocentar os acusados (ALLARD; GARAPON, 2006, p.16).
No caso de exercício da jurisdição universal, essa abertura dos juízes nacionais não só
às decisões de magistrados de outros Tribunais Estatais ou Internacionais, mas também a
normas provenientes de outros sistemas de justiça, sejam nacionais ou globais, fica evidente.
Como destaca Garapon (2006), a mundialização dos magistrados nessa questão é motivada
pela solidariedade transnacional entre juízes para combater determinados crimes
particularmente hediondos contra a humanidade.
Essa solidariedade transnacional pode ser vislumbrada tanto através da abertura dos
juízes aos argumentos jurídicos utilizados em outros casos como também por meio de auxílios
procedimentais oriundos de processos de cooperação entre os sistemas de justiça. Nesse
processo de mundialização da justiça, em que o princípio da jurisdição universal ocupa um
lugar de destaque por propiciar e estimular a abertura dos sistemas jurídicos nacionais a
dilemas e problemas da humanidade, as redes jurídicas que se estabelecem não são
homogêneas, uniformes, ou destituídas de elementos políticos ou econômicos.
Muito pelo contrário, a cosmopolitização da sociedade é complexa e as relações que
nela se desenvolvem incorporam essa complexidade, por isso que, para além de observar uma
nova ordenação jurídica global, o mais importante é verificar as especificidades das
comunicações já existentes entre juízes. Nesse ponto, em relação às comunicações pelas quais
perpassa o princípio da jurisdição universal, Garapon (ALLARD; GARAPON, 2006, p.34)
93

assevera que as relações desenvolvidas possuem principalmente função de estímulo ou, como
já ocorreu, de neutralização.
A função de estímulo é destacada no processo mais conhecido de aplicação do
princípio da competência universal: o de julgamento do ex-ditador chileno Augusto Pinochet.
Neste caso, o juiz Espanhol Baltasar Garzón em 1998 enviou a Inglaterra um pedido de
detenção de Pinochet fundado em acusação de homicídios cometidos pelo ditador contra
cidadãos espanhóis ocorridos no Chile entre 1973 e 1983. Por impropriedades jurídicas, a
justiça espanhola, recorrendo ao princípio da jurisdição universal, enviou novamente pedido
de detenção à justiça britânica, porém fundado em acusações, contra Pinochet, de crime
contra a humanidade utilizando-se de aparato estatal e com motivação meramente política.
Esse pedido espanhol acompanhado da decisão da Câmara dos Lordes britânica de
apreciar o processo antes de pôr o general em liberdade fortalece a função de estímulo das
relações entre magistrados, sobretudo pelo fato de inspirar o exercício da competência
universal em outros países, para casos envolvendo questões de violação de direitos humanos
em âmbito global (ALLARD; GARAPON, 2006). Por outro lado, destaca-se eventual função
de neutralização que pode acontecer quando determinada jurisdição se considera competente
para julgar delitos contra a humanidade tendo como finalidade escapar de julgamento por
outro tribunal. Essa última situação é exemplificada por Garapon no caso em que a República
do Congo (Congo-Brazzaville) instaurou processo de instrução contra militares suspeitos de
estarem implicados no massacre de Beach24 tendo intuito de escapar ao processo instruído na
França com base no princípio da competência universal.
Assim, não só a informalidade estimula o processo de comunicação entre diferentes
juízes, como o fato da internalização de matérias e instrumentos existentes na esfera global
pela esfera nacional estimula a mundialização dos magistrados. Nesse sentido, relatórios
comparando a estrutura da competência universal em diferentes Estados como Alemanha,
França, Bélgica, Finlândia, Croácia, Reino Unido, dentre outros (CORDERO, 2008)
demonstram que as legislações nacionais, ao apresentarem o princípio da competência
universal, o fazem por motivos vinculados à existência de uma estrutura global entrelaçada
com o objetivo de defesa dos direitos humanos.
Desta maneira, as razões de ser ou as justificativas apresentadas em âmbito interno
são: a) natureza dos delitos, que são crimes de caráter global, capazes de afetar toda a

24
Em maio de 1999 ocorreu no chamado Massacre de Beach. Beach era o porto fluvial de Brazzaville, no Congo
e o referido massacre fora perpetrado por soldados membros do governo de situação e foi a última consequência
da guerra civil ocorrida na República do Congo, comumente chamada de Congo-Brazzaville (PESNOT, 2013).
94

humanidade. Nesse sentido, o Estado que exerce a competência universal, sobretudo na sua
forma absoluta, não deve agir conforme seus interesses, mas no interesse da comunidade
internacional, como um verdadeiro agente desta comunidade, empenhado na preservação da
ordem mundial e no combate a violações aos direitos humanos; b) a existência de obrigações
internacionais que ligam os Estados; c) o objetivo de combate à impunidade, uma vez que, em
diversas situações, os Estados diretamente afetados pelos crimes e, em particular os Estados
em que os crimes foram cometidos, por vezes, não possuem vontade ou capacidade de
proteger os institutos legais atacados ou perseguir os perpetradores de violações; d) mais
recentemente, as lutas contra o crime organizado e a defesa do meio ambiente global
passaram também a ser questões internacionais que motivam, dentro dos Estados, o exercício
da competência universal (CORDERO, 2008).
O processo de mundialização dos juízes nacionais, que é fundamental para o exercício
da competência universal, encontra-se intrinsecamente ligado à crescente comunicação entre
cortes judiciais. No caso da jurisdição universal, a potencialidade dialógica se dá por duas
vertentes: por meio da comunicação horizontal entre os diferentes Estados e, através da
comunicação vertical entre Estados e Tribunal Penal Internacional, responsável pelos
julgamentos de indivíduos que cometeram crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de
guerra.
Em se tratando de problemas globais, ou de biótopos jurídicos (SALDANHA;
VIEIRA, 2015, p.27), ou seja, temas que ganham contornos de universalidade, os diálogos
jurisdicionais tem a finalidade de estabelecer parâmetros materiais mínimos em relação a
algumas questões que são objetos de debates judiciais nos mais diferentes Estados. Por isso,
como referem Jânia Maria Lopes Saldanha e Lucas Pacheco Vieira (2015, p.10), no caos
jurídico da paisagem mundial, os diálogos transjurisdicionais devem seguir a estrutura de
romances em cadeia, na perspectiva descrita por Ronald Dworkin, ou seja, os juízes sempre
reconstroem, a partir do material disponível (seja por meio das decisões internas ou de
referências jurisprudenciais externas), um conjunto de precedentes que permitem justificar
suas decisões mais difíceis em outras decisões semelhantes ou em princípios.
Todavia, fala-se em potencialidade dialógica pelo fato de que os aspectos
procedimentais ou formais que constituem peculiaridades de cada Estado, por vezes podem
constituir entraves aos diálogos. Assim, no caso da jurisdição universal, uma gramática
comum em direitos humanos é construída do ponto de vista material, pela definição de atos de
violação de direitos da humanidade, porém, do ponto de vista formal, os limites da realidade
95

impedem maiores aprofundamentos sobre o tema, pelo fato de que a legislação interna de
cada país adota o princípio de modo diferente, como se verá no próximo capítulo.
O jogo de interpretações cruzadas e de referências recíprocas (SALDANHA; VIEIRA,
2015, p.16) que move os diálogos transjurisdicionais se dá pelo fato de que os juízes
nacionais se internacionalizam pelo crescente uso do direito internacional, pela extensão de
sua competência nacional e pelo seu dever de controlar a convencionalidade. Desta maneira, a
mundialização do juiz nacional e as comunicações transjurisdicionais consequentes
demonstram claramente a emancipação e a emulação dos magistrados, de modo que agudizam
a inevitável porosidade da jurisdição em tempos de cosmopolitização.
Nesse sentido, a interconectividade da sociedade atual, evidenciada, portanto, pelos
fenômenos anteriormente descritos, confere novas roupagens para questões pensadas há
alguns séculos. Esse é o caso daquilo que Kant apontou como o cerne do direito cosmopolita,
a hospitalidade universal.
No artigo terceiro da série dos artigos definitivos para a paz perpétua, como já fora
abordado anteriormente neste trabalho, Kant afirma que “O direito cosmopolita deve limitar-
se às condições de hospitalidade universal.”. Este artigo se embasa na noção de que todos têm
o mesmo direito sob o solo e de que uma violação a um direito cometida em um ponto da
Terra será sentida por todos os indivíduos nos demais pontos do globo terrestre.
Interessante observar é que o direito cosmopolita vincula-se a um direito de visita, de
modo que Kant, em sua teoria não concebe ao hóspede o direito de permanecer no território
estrangeiro, bem como não confere ao indivíduo de outro Estado o direito de ser tratado tal
qual um cidadão do país que visita. Como destaca Ademar Pozzatti (2014) em reflexões sobre
a obra kantiana, o hóspede é aquele que está por pouco tempo em uma determinada região ou
localidade e recebe tratamento especial, devendo obedecer às normas específicas e
costumeiras do Estado que o recebe. Essa restrição do direito cosmopolita de Kant se justifica
pelo fato de que, se tal direito fosse absoluto, ou seja, se o direito de visita na realidade fosse
direito de permanência irrestrito, isso poderia acarretar a violação de soberania da população
indígena, uma vez que os escritos de Kant são contemporâneos aos períodos de existência de
exploração explícita de metrópoles europeias sobre colônias americanas e africanas.
Evidentemente releituras acerca desse conceito kantiano foram feitas com o sentido de
atualizá-lo. É o caso, a título exemplificativo, do pensamento de Jacques Derrida (2001), que
tendo como norte um dever de hospitalidade realiza reflexões acerca de cidades-refúgios,
autônomas, independentes entre si e dos Estados, mas aliadas por diversas formas de
solidariedade (DERRIDA, 2001, p.17) que seriam capazes de transformar e refundar
96

modalidades de pertença ao Estado. Pensar acerca disso transcende as estruturas jurídicas


internacionais ainda dominadas pela regra da soberania estatal, suposta como intangível,
porém cada vez mais problemática e precária.
Partindo das ideias kantianas e das releituras de Derrida, Benoit Frydman desenvolve
estudos acerca de uma das formas de hospitalidade das últimas décadas: a hospitalidade
judiciária. Segundo ele (FRYDMAN, 2006), os procedimentos judiciais de caráter global, seja
por seus objetos ou por seus efeitos, manifestam a emergência de uma justiça transnacional.
Isso porque, nessa categoria de hospitalidade judiciária se incluem grupos ou indivíduos que,
por diversas razões, não obtém a prestação jurisdicional efetiva diante de suas jurisdições
nacionais em relação a certas demandas e, se voltam à jurisdição estrangeira para ter julgadas
as suas causas.
Exatamente nesse aspecto encontra-se a jurisdição universal, com destaque para sua
forma absoluta, uma vez que reflete a possibilidade de um magistrado nacional, diante de uma
demanda relativa a violações de direitos humanos de caráter global, ter a possibilidade de
julgar a questão mesmo que os vínculos que unam a jurisdição nacional com o demandante
não sejam territoriais ou concernentes à nacionalidade, mas sim liames materiais, em função
da causa. Os juízes, no entanto, segundo Frydman (2006), se deparam com um dilema quando
se exige a prestação jurisdicional nesses tipos de casos.
Isso porque, mesmo diante de fenômenos vanguardistas como os descritos
anteriormente, de abertura informal às decisões de outras jurisdições e de diálogos
transjurisdicionais, os magistrados apresentam reações diversas, que variam não só de acordo
com as disposições legais ou jurisdicionais de suas respectivas ordens jurídicas, como
também conforme a cultura judiciária, a natureza da jurisdição ou mesmo as convicções do
magistrado. A despeito de tais posições, o exercício da jurisdição universal para o julgamento
de crimes globais contra os direitos humanos é uma realidade que deve ter como um de seus
pilares de sustentação a hospitalidade, como conceito herdado de Kant, porém adjetivada de
judiciária.
Assim, como assevera Benoit Frydman (2006, p. 03), o direito de acesso à justiça,
compreendido como direito humano universal, juntamente com a hospitalidade judiciária
constituem o fundamento procedimental do direito cosmopolita nos dias atuais. Desta
maneira, na realidade da jurisdição universal, que congrega essas duas premissas no sentido
de se tornar um importante instrumento do direito cosmopolita, é possível afirmar que as
ações deslocalizadas que demandam por respostas jurisdicionais aos crimes e violações aos
direitos humanos utilizam-se de uma forma de fórum shopping positivo.
97

Explica-se: em sua forma tradicional, o fórum shopping é uma prerrogativa surgida


para evitar ou contornar a aplicação de uma lei ou de contratos financeiros ou jurídicos a uma
determinada situação, no interesse de uma das partes. Assim, a parte dispondo de diversos
foros competentes, ajuíza a ação naquele em que mais seja favorecida. Essa lógica do direito
internacional privado é importada para questões envolvendo crimes globais contra os direitos
humanos, de modo que as vítimas de tais delitos não recorrem ao fórum shopping para
escapar de uma lei, como ocorre na esfera privada, mas para fazer com que seja apreendida
pelo direito uma situação que lhe iria escapar.
Benoit Frydman (2006, p.05), tendo como base essa lógica destaca quatro tipos de
situação em que o “fórum shopping às avessas” é exercido: a) Nas situações em que as
vítimas de violações aos direitos humanos e seus representantes podem demandar em
jurisdições estrangeiras quando as violações tiverem sido cometidas sobre o território de
Estados autoritários que não garantem ou não defendem direitos humanos (inclusive em
diversos momentos são os próprios Estados que violam os direitos das vítimas); b) Em casos
em que a prestação jurisdicional de determinado Estado é falha ou este não possui, por razões
políticas, interesse em judicializar as violações cometidas. Nessa situação, é muito comum a
edição de leis de anistia (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2015b)
ou de atos que denotem imunidade aos agentes ativos das práticas delituosas perante a
jurisdição nacional, de maneira que o acesso à justiça em outro Estado é uma das únicas
alternativas que restam às vítimas; c) Quando os defensores dos direitos humanos são
conduzidos a deslocalizar um caso com a intenção de encontrar a legislação mais favorável
para apreciar todos os argumentos e fatos existentes no caso e, por fim d) Em se tratando
especificamente de questões de eficácia, essa situação se dá quando as vítimas podem ainda
ter interesse em procurar jurisdições estrangeiras que disponham de recurso efetivo diante de
sua jurisdição de origem.
Inevitável, diante desse apontamento feito por Frydman (2006), que o exercício da
jurisdição universal é realizado, principalmente com a intenção de punir indivíduos, Estados
ou empresas que tenham agido em desacordo com a proteção global conferida aos direitos
humanos, incidindo, na maioria das vezes, em fatos típicos descritos no Estatuto de Roma. No
entanto, no contexto de cosmopolitização, essa prática enfrenta críticas, como é o caso, por
exemplo, de que os países que exercem jurisdição universal possam desenvolver uma nova
forma de imperialismo, por meio do poder judiciário.
A grande falha dessa crítica esbarra justamente no princípio da inércia da jurisdição:
não é o juiz que, de ofício, aventa para si a possibilidade de julgar determinado delito. Pelo
98

contrário, ele é provocado pelas partes que possuem capacidade de demandar naquele
determinado local. Esse ponto destacado no final, no entanto, é considerado uma crítica mais
contundente em relação às dúvidas e aos dilemas sobre o exercício da jurisdição universal.
Segundo Benoit Frydman (2006, p.08) essa forma de exercício de uma justiça global é
deixada à iniciativa dos ativistas e à arbitrariedade das jurisdições nacionais. Em razão disso,
como veremos a seguir, os limites da realidade impõem que a concorrência de jurisdições
capazes de exercer a competência universal, bem como as diferentes decisões que podem
surgir dessas competências concorrentes, no plano jurídico, da maneira como o
compreendemos, não possuam solução.
Deste modo, essas críticas se inserem na lógica da ordem jurídica internacional
moderna, fundada na soberania de Estados e na ótica nacional de compreensão de problemas
que possuem cariz global. Assim, observam-se questões transnacionais emergentes, como é o
caso do julgamento de crimes globais contra os direitos humanos por meio da jurisdição
universal, sob olhares de direito internacional público moderno e sobre repartições de
competência judiciária organizadas sob a égide do racionalismo moderno e, do que Beck
chamou de mirada nacional.
Todos os fenômenos emergentes do cenário jurídico aqui apontados, quais sejam, a
mundialização dos juízes nacionais, os diálogos transjursdicionais e a hospitalidade judiciária,
além de terem a jurisdição universal como elemento que os perpassa ou os pode perpassar, ou
seja, de configurarem possibilidades para o incremento da utilização desse princípio,
apresentam como eixo comum o fato de se sustentarem em outra lógica que não a dos
Estados, mas a da ordem de um direito da humanidade sob perspectiva cosmopolita.
Deste modo, embora se deem sob a égide de um processo de globalização e de
cosmopolitização, as questões apresentadas – sobretudo a que é tema deste trabalho – jamais
serão compreendidas em suas totais potencialidades enquanto a observação de mundo
continuar arraigada em miradas nacionais, as quais, no plano jurídico corroboram com
estruturas westfalianas de direito internacional. A não superação dessa lógica de compreensão
de mundo, mesmo em tempos de transnacionalidade, conforma os chamados limites do real,
ou seja, situações que configuram problemas no sentido de eficácia das questões aqui
expostas.
No próximo capítulo, portanto, serão abordados os limites do real em relação aos
casos de jurisdição universal, com o objetivo de fortalecer a noção de que, no que tange aos
aspectos materiais, não restam dúvidas de que o caráter global das violações contra os direitos
humanos ensejam punição dos agentes ativos dos delitos cometidos, não só para que seja
99

realizada a tutela dos direitos do homem como também para que tais casos não fiquem
impunes. Todavia, os grandes entraves à aplicação desse princípio se encontram nos aspectos
formais e processuais para sua efetivação, vez que esses não foram ainda capazes de
transcender a compreensão westfaliana e moderna de direito internacional.

3.2 ANACRONISMOS DA JURISDIÇÃO: ENTRAVES JURÍDICOS E


POLÍTICOS À APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA COMPETÊNCIA
UNIVERSAL A PARTIR DA OBSERVAÇÃO DA LEGISLAÇÃO E DE CASOS
PRÁTICOS.

A compreensão de mundo a partir dos Estados e de estruturas estatais - algo típico da


mirada nacional e do nacionalismo metodológico - no plano internacional serve como um dos
fundamentos que estrutura o paradigma westfaliano. Consoante já fora mencionado, esse
paradigma determina que a sociedade internacional é composta por Estados livres e
independentes, que no plano interno tem sua soberania limitada por regras de direito
constitucional e, no plano externo praticamente não possuem limitações em relação a seus
atos, exceto pelas regras de direito de guerra apresentadas pelo clássico direito internacional
público.
O processo de cosmopolitização por sua vez, em consonância com a
internacionalização do direito e dos direitos humanos promove radicalizações, fomenta
porosidades e incentiva rupturas em relação a esse paradigma moderno, de modo que, na
esteira do pensamento de Mireille Delmas-Marty (2004a), a incompletude das ideias colide
com a força das coisas ou da realidade. Nesse sentido, o cosmopolitismo de realidade ou
cosmopolitização descritos por Ulrich Beck (2005) desvelam a crise de estruturas modernas,
colocando em xeque alguns conceitos.
Um desses conceitos é o de jurisdição, que, conforme se demonstrou ao longo de todo
este trabalho, em tempos de internacionalização dos direitos humanos e de cosmopolitização
da justiça passa a ser adjetivado com a palavra universal. Grande parte das teorias sobre a
jurisdição, desde o fim do século XIX até meados do século XX, definem tal conceito como
uma atuação estatal visando a aplicação do direito ao caso concreto, resolvendo-se com
definitividade uma situação de crise jurídica e, por ser uma atuação estatal, a jurisdição
sempre foi vinculada ao território de determinado Estado.
Como assevera Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 2), quando compreendida
como poder, a jurisdição representa o poder estatal de interferir na esfera jurídica dos seus
100

jurisdicionados, aplicando o direito objetivo ao caso concreto e resolvendo a crise jurídica que
envolve as partes. Assim, o poder jurisdicional compreende as tarefas de, não só dizer o
direito (juris dictio), mas também impor o direito, de modo que, sua tarefa não é completa se
só disser o direito e não reunir condições para fazê-lo valer completamente.
É justamente neste aspecto que se encontra o grande anacronismo da jurisdição em sua
adjetivação universal, pois, como delineia Daniel Amorim Assumpção Neves (2016), a
jurisdição como poder no paradigma racional moderno, é algo que se vincula essencialmente
a um Estado organizado e capaz de interferir na esfera jurídica de seus jurisdicionados. A
universalidade da jurisdição, conforme se demonstrou até aqui, indubitavelmente rompe com
essa vinculação moderna de que a jurisdição necessariamente depende de ligações estatais sob
o ponto de vista territorial e subjetivo. Todavia, sob a ótica procedimental e formal o
paradoxo se instaura, vez que as grandes dificuldades da jurisdição universal atrelam-se
justamente ao não conhecimento de outra forma de aplicação da jurisdição que não sob os
procedimentos de processo nacionais.
O caos jurídico intrínseco à cosmopolitização estimula a deslocalização judiciária por
meio do alargamento da competência absoluta de jurisdições internas, que antes só eram
capazes de julgar situações que possuíssem algum tipo de vínculo com o Estado. Nesse
contexto, pertinente o destaque de Seyla Benhabib (2006) de que o anacronismo do nosso
tempo advém da dicotômica situação de que o universalismo da ética deriva de
comprometimento com o transcendental e com a igual dignidade das pessoas, enquanto o
particularismo da lei deriva de fronteiras estatais.
No caso da jurisdição universal, esse anacronismo é claro, vez que a motivação
material de aplicação deste princípio encontra-se no princípio da humanidade, na
universalização de valores comuns em direitos humanos, e no combate à impunidade, por
meio da investigação e punição de responsáveis por crimes cometidos contra os direitos
humanos. No entanto, os limites formais esbarram nessa pretensão de universalidade,
corroborando a hipótese de Benhabib de que o particularismo da lei exige fronteiras estatais.
Justamente por isso tal princípio encontra-se diante desse anacronismo e do paradoxo
de pretensão de universalidade frente à exigência de procedimentalidade que ainda se atrela a
estruturas formais estatais. Logo, a afirmação realizada por Luis Peraza no início deste
segundo capítulo possui tanta razão: a jurisdição universal consubstancia-se em um princípio
de fácil compreensão, porém de difícil aplicação.
A fim de engendrar algumas explicações a ele e tornar mais visíveis seus paradoxos,
Anthony Colangelo (2005) desenvolve a ideia de que todo e qualquer Estado sempre possuirá
101

dois tipos de jurisdição: a jurisdição prescritiva e a jurisdição adjudicativa. A primeira liga-se


à autoridade para prescrever previsões legislativas em relação a determinadas condutas ou
situações. A jurisdição adjudicativa, por sua vez, relaciona-se com os aspectos formais que
viabilizam a prestação material prevista na legislação, ou seja, vincula-se ao processo e seus
procedimentos.
De maneira mais clara, é possível relacionar a jurisdição estatal prescritiva à
autoridade que torna possível a aplicação de suas leis a pessoas e a coisas. De outra forma, a
jurisdição estatal adjudicativa é a autoridade para sujeitar pessoas ou coisas a seu processo.
Ambas estão interligadas, de modo que, quando se qualificam essas duas categorias com o
adjetivo universal, chega-se à conclusão, apresentada por Colangelo (2005), de que o
exercício da jurisdição universal adjudicativa, depende da aplicação legal da jurisdição
universal prescritiva.
Explica-se: a jurisdição universal, consoante se explicou ao longo de todo este
trabalho consubstancia-se pelo fato de a jurisdição de um Estado ser compreendida como
competente para julgar violações contra os direitos humanos, mesmo que essas violações não
tenham qualquer relação com o(s) Estado(s) competente(s) para julgar (caso de uma
jurisdição universal absoluta). De acordo com o que fora apresentado no primeiro capítulo, a
fundamentação jurídica capaz de permitir que isso ocorra são as normas de jus cogens, sobre
as quais impera o princípio da humanidade, como bem referem Antônio Augusto Cançado
Trindade e Vinícius Fox Drummond (2016).
É justamente sobre essas bases que se funda a jurisdição universal prescritiva, segundo
Colangelo (2005). É amplamente contrário às regras de direito internacional que um Estado
estenda unilateralmente sua jurisdição prescritiva, ou seja, as normas que compõem seu
ordenamento jurídico interno, sob o território de outro Estado. Aliás, isso somente seria
possível nos casos de extraterritorialidade previstos na legislação interna, em que liames entre
o Estado julgador são estabelecidos previamente com as partes envolvidas na situação.
Deste modo, no questionamento sobre qual lei as cortes nacionais devem utilizar em
situações de aplicação do princípio da jurisdição universal, principalmente em sua forma
absoluta, a resposta são as normas internacionais que compõem o jus cogens, sejam tanto
tratados internacionais que versem sobre direitos humanos, como o costume internacional.
Todavia, as cortes nacionais, no momento em que aplicam essa jurisdição universal
prescritiva, com fundamento no direito internacional, enfrentam problemas internos e
externos, de ordem processual, justamente pelo fato de que a jurisdição adjudicativa possui
relação de dependência em relação à prescritiva.
102

Esse atrelamento, vinculado ao plano nacional, passa a ser algo de difícil compreensão
e execução em termos de jurisdição universal, de modo que, passa a existir a necessidade de
que, ou em âmbito interno existam previsões legislativas no que tange ao processo sob a
aplicação do princípio da jurisdição universal ou, em âmbito externo se delineiem normas
capazes de elucidar os juízes no exercício de sua competência universal. Em âmbito externo,
não existem definições acerca de procedimentos adequados no campo processual referentes ao
exercício da competência universal, entretanto, existem algumas diretrizes para a aplicação do
princípio.
As principais diretrizes encontram-se nos Princípios de Princeton (COMISSÃO
INTERNACIONAL DE JURISTAS , 2001), documento elaborado por pesquisadores sobre o
tema no início de 2001. Tal documento foi elaborado com o intuito de oferecer balizadores
mínimos para conferir maior coerência e agilidade às situações em que o princípio da
jurisdição universal é aplicado.
Nesse sentido, um dos primeiros pontos destacados pelo documento encontra-se no
fato de este ratificar a ideia de que a jurisdição universal sustenta-se unicamente na natureza
do delito, ou seja, o aspecto material será o responsável pela definição da competência. Essa é
a base prescritiva, portanto, para a aplicação da jurisdição universal em sua forma absoluta.
Todavia, o item 225 do primeiro artigo dos Princípios de Princeton contém a premissa
de que uma das condições para a eficácia da aplicação da jurisdição universal reside no fato
de que o suspeito deve estar presente ante o órgão que irá julgá-lo, seja estando no território
do país em questão ou que se tenha possibilidade de extraditá-lo ao país julgador. Desta
forma, evidente já no texto do documento redigido por especialistas no tema que, diante do
entrelaçamento das funções prescritivas e adjudicativas da jurisdição, o exercício da
jurisdição universal nos dias atuais somente poderá ser efetivo na sua forma condicionada, já
que no estabelecimento de condições internas para julgamento, os Estados dependem menos
de questões políticas internacionais ou de cooperação entre países e mais da própria
legalidade do procedimento penal em âmbito interno para fazer valer suas decisões.
Essa última situação ilustra exatamente o caso Pinochet, uma vez que a Espanha, ao
apreciar o caso em que o ex-ditador chileno fora acusado de crimes, das mais diversas
espécies, contra os direitos humanos, solicitou à Inglaterra a extradição do investigado, com

25
Principio 1 - Fundamentos da jurisdição universal (...) 2. A jurisdição universal poderá ser exercida por um
órgão judicial competente e ordinário do Estado a fim de processar um indivíduo devidamente acusado de ter
cometido crimes graves de direito internacional que se enumeram no parágrafo 1º do princípio 2, a condição de
que o acusado esteja presente ante a esse órgão judicial. (tradução livre). (COMISSÃO INTERNACIONAL DE
JURISTAS, 2001).
103

base no princípio da jurisdição universal e da prerrogativa de aut dedere, aut iudicare


(extraditar ou julgar). Nesse caso em específico, um dos mais conhecidos envolvendo a
aplicação do princípio da jurisdição universal, Pinochet foi denunciado na Espanha pelo seu
envolvimento no desaparecimento de cidadãos de nacionalidade espanhola que moravam no
Chile, bem como pelo cometimento de crimes de tortura, terrorismo de Estado e genocídio.
Havia, portanto, além da razão material para o julgamento dos crimes (o que baseia a
jurisdição universal em sua forma absoluta), o liame da nacionalidade das vítimas – espanhóis
– com o Estado julgador – Espanha (estabelecimento de condições para o exercício da
jurisdição universal).
O juiz espanhol, Baltasar Garzón, em razão da natureza de jus cogens dos crimes
cometidos por Pinochet, invocou o princípio da jurisdição universal, solicitando ao governo
britânico a extradição do ex-ditador, uma vez que esse, à época se encontrava no Reino
Unido. Houve confusão na decisão britânica, que demorou 16 meses para ser concedida26,
pois, primeiramente decidiu-se que Pinochet era imune à extradição por ser ex-chefe de
Estado e por ter cometido crimes encampados por atos oficiais (MENDES; RORIGUES,
2016).
Em segundo julgamento, a Câmara dos Lordes rejeitou não só a imunidade de
jurisdição como negou o argumento de que Pinochet teria cometido atos oficiais, uma vez que
os delitos pelos quais ele estava sendo acusado compunham o jus cogens. Por fim, depois de
outras avaliações e julgamento na Câmara dos Lordes, a decisão final coube ao Secretário de
Assuntos Ingleses, Sack Straw que, a despeito de ter-se mostrado favorável à extradição,
deferiu a autorização para a volta do ex-ditador ao Chile, em razão da idade avançada de
Pinochet, juntamente com seu estado de saúde debilitado.
O fato, portanto, de o acusado estar no território do Estado julgador ou de haver
possibilidade de que ele seja extraditado demonstra um dos limites ao exercício da jurisdição
universal, uma vez que impõe condições ao seu exercício. Isso porque, nos casos de jurisdição
universal absoluta, tal como se prevê nos aspectos materiais ligados à questão (aspectos da
jurisdição prescritiva), a natureza do crime é o bastante para que exista a aplicação do
princípio por todo e qualquer Estado.
No entanto, para que exista no mínimo a possibilidade de esta aplicação ser efetiva, é
necessário que a legislação interna de cada país preveja as possibilidades e os requisitos para

26
Maiores informações sobre o caso podem ser encontradas no endereço: http://baltasargarzon.org/jurisdiccion-
universal/pinochet/442-2/. Acesso em 25 out 2016.
104

o exercício da competência universal 27, de modo que na prática, de absoluta, a jurisdição


tenderá sempre, como se verá mais adiante, a ser condicionada. É justamente nesse sentido
que a condição mínima de procedibilidade prevista nos princípios de Princeton é a de que o
acusado esteja ou possa estar no território do Estado que o julgará.
Da mesma forma, o documento referido, em seu princípio 5 determina os seguintes
deveres dos Estados: a) no caso da presença de suspeito ou investigado em seu território, o
país deve julgá-lo ou extraditá-lo, desde que as garantias processuais internacionais do
suspeito, investigado ou réu sejam preservadas, a fim de evitar arbitrariedades ou exacerbação
de competências; b) prestação de assistência administrativa e judicial a outros Estados que
investiguem crimes contra os direitos humanos e, c) adoção de medidas compatíveis com
critérios internacionais de proteção aos direitos humanos.
Pode-se afirmar que o dever de cooperação aqui apresentado é basilar para que, não só
a aplicação do princípio da jurisdição universal possa ser efetiva, como para que haja
efetividade no funcionamento da justiça penal internacional como um todo. Isso porque, o
Estatuto de Roma, principal documento que disciplina regras de funcionamento para o
Tribunal Penal Internacional, em seu preâmbulo já determina que os crimes de maior
gravidade, que afetam a comunidade internacional em seu conjunto, não devem ficar impunes
e, sua repressão deve ser efetivamente assegurada através da adoção de medidas em nível
nacional e do reforço da cooperação internacional (ESTATUTO DE ROMA DO TRIBUNAL
PENAL INTERNACIONAL , 1998).
Além disso, o Capítulo IX de tal tratado apresenta regras de cooperação internacional
e auxílio judiciário, de modo que é dever dos Estados signatários do Estatuto não só cooperar
durante as investigações ou instrução de processos que apurem violações graves aos direitos
humanos, como também na fase de execução, vez que, conforme a redação do artigo 103 do
TPI, as penas privativas de liberdade serão cumpridas em um Estado indicado pelo Tribunal, a
partir de uma lista de Estados que tenham manifestado sua disponibilidade para receber
pessoas condenadas.
A previsão de cooperação nos diversos mecanismos de justiça penal internacional é
um reflexo da solidariedade cosmopolita e do fato de que a soberania estatal, que era ilimitada
no plano internacional dentro do paradigma westfaliano, diante da proteção a valores
universais comuns, do princípio da humanidade e das regras de jus cogens, tende a ser

27
Princípio 3 – Ativação da jurisdição universal na ausência de legislação nacional. Em respeito aos crimes
graves sob a égide do direito internacional, tal qual se especificam no Princípio 2 (1), os órgãos judiciais
nacionais podem se basear na jurisdição universal, mesmo que sua legislação não a contemple especificamente.
(tradução livre) (COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS, 2001).
105

solidária e limitada, o que demonstra que o dever ser cosmopolita pugna pela substituição de
uma soberania solitária por uma soberania solidária (SUPIOT, 2015a).
Ainda no que tange aos Princípios de Princeton, outro aspecto importante que deve
guiar a todos os Estados que realizarem a aplicação do princípio da jurisdição universal é o de
que, em razão da busca pela punição daqueles que cometeram crimes contra a humanidade,
genocídios ou outras formas de violações aos direitos humanos, eventuais anistias concedidas
aos sujeitos ativos dos delitos não impedem a persecução, julgamento e condenação dos
agentes28. Essa previsão é de suma importância no que se refere aos delitos cometidos por
indivíduos que desempenharam funções públicas por determinados períodos, como é o caso
de governantes ou demais agentes públicos e políticos.
Justamente por essa questão, o princípio da jurisdição universal opera como uma
importante ferramenta da justiça de transição. Assim, diversos países que passaram por anos
de ditadura militar, civil-militar ou que sofreram com ataques aos direitos humanos
perpetrados por ditadores ou representantes políticos autoritários, após o reestabelecimento
democrático, editam leis nacionais de anistia, contemplando nessas previsões, o perdão aos
atos e atrocidades cometidos contra a população civil como um todo ou contra grupos
minoritários.
Desta maneira, em razão dessas previsões de anistia, ou até mesmo de prescrição dos
crimes, trazidas em normas nacionais, o país em que as violações ocorreram resta
inviabilizado na tarefa de punir os agentes dos delitos. No entanto, como fora visto
anteriormente, crimes contra os direitos humanos são imprescritíveis, e a gravidade dos
delitos, como bem descreve as disposições dos Princípios de Princeton não é capaz de
permitir com que estes sejam anistiados. Assim, a jurisdição universal, ao permitir que um
terceiro Estado julgue os atos, desconsidera qualquer previsão nacional de anistia ou
prescrição.
Não é à toa que casos emblemáticos sobre jurisdição universal envolvem a persecução
penal de agentes políticos que não foram julgados em seus Estados ou pelo país em que os

28
Princípio 5 – Imunidades. No que concerne aos delitos graves de direito internacional que se enumeram no
parágrafo 1 do Princípio 2, a função oficial de um acusado, seja na qualidade de Chefe de Estado ou de Governo,
ou de funcionário competente, não lhe exonerará de responsabilidade penal, nem atenuará sua pena. (tradução
livre). Princípio 6 – Prescrição. Os delitos graves de direito internacional que se enumeram no parágrafo 1 do
Princípio 2 são imprescritíveis (tradução livre). Princípio 7 – Anistias. 1. As anistias, em geral são incompatíveis
com a obrigação dos Estados de imputar responsabilidade pelo cometimento de delitos graves de direito
internacional, os quais se enumeram no parágrafo 1 do Princípio 2. 2. As anistias que sejam incompatíveis com
as obrigações jurídicas internacionais do Estado que as concede, não impedirão o exercício da jurisdição
universal sobre os delitos graves de direito internacional que se enumeram no parágrafo 1 do Princípio 2.
(tradução livre). (COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS, 2001).
106

delitos por eles cometidos aconteceram. Percebe-se isso, por exemplo, na observação em
relação aos casos proeminentes de jurisdição universal apresentados pelo Universal
Jurisdiction Annual Review 2016 (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR
GARZÓN, 2016a).
Tal relatório, dentre outros casos trazidos, elenca como os três mais relevantes os que
seguem: O Caso Pinochet, em que o ex-ditador chileno Augusto Pinochet foi investigado em
1998 pela Espanha; o Caso Hissène Habré, no qual o ex-presidente do Chad (1982-1990)
acusado de ser sujeito ativo de crimes contra a humanidade, tortura e crimes de guerra foi
julgado em 2015 no Senegal e, o Caso Pascal Simbikangwa, em que o réu, que durante o
genocídio de Ruanda, em 1994, trabalhava para a Central de Inteligência do país, foi acusado
de ser cúmplice no genocídio ocorrido e em 2014 foi julgado na França por tais atos
(FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2016a). Todos os três casos
corroboram para a afirmação de que a jurisdição universal é um importante instrumento da
justiça de transição, auxiliando no combate à impunidade e na promoção da proteção
universal em relação aos direitos humanos.
Indubitavelmente o objetivo precípuo da jurisdição universal é a responsabilização dos
sujeitos ativos de crimes contra a humanidade, genocídio e seus correlatos. Porém, sua
utilização pode auxiliar em outras questões, vez que serve como catalisador da ação dos
tribunais em países que previamente demonstraram ausência de interesse em investigar e
punir autores de crimes internacionais contra os direitos humanos (FEDERAÇÃO
INTERNACIONAL DE DERECHOS HUMANOS , 2009). O próprio caso Pinochet, a
despeito de o ex-ditador não ter sido efetivamente julgado pela Espanha, foi ponto de partida
para o questionamento de medidas legislativas e executivas de concessão de imunidades e
anistias a agentes políticos no Chile, bem como abertura de processos judiciais em relação a
desaparecimentos forçados, tortura e outras violações que haviam se mantido em silêncio.
Essa prerrogativa corrobora para a afirmação de que para a justiça de transição, o
princípio da jurisdição universal é uma importante ferramenta. A título exemplificativo, na
Argentina, de modo similar ao que ocorreu no Chile, leis como a “Ley de Punto Final” e
“Ley de Obediencia debida”, adotadas para proteger os militares contra denúncias penais
pelas atrocidades cometidas durante a ditadura militar argentina, foram retiradas do
ordenamento jurídico em 2005, não só em razão da jurisprudência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, que reiteradas vezes decidiu que as leis de anistia negociada, quando
beneficiam agentes causadores de crimes contra a humanidade, são inválidas, mas, sobretudo,
107

logo depois que vários processos contra oficiais argentinos foram iniciados ante tribunais
espanhóis, tendo como base o princípio da jurisdição universal.
Entretanto, é importante que se destaque que é pacífico na doutrina internacional o
fato de que a jurisdição universal deverá, assim como o Tribunal Penal Internacional, sempre
ser subsidiária. Isso significa que a prioridade para o julgamento de crimes contra a
humanidade, genocídio e seus correlatos, é do Estado em que as ações ocorreram. Todavia,
muitas vezes por falta de interesse político, por ausência de mecanismos jurídicos ou
processuais adequados, ou mesmo diante da existência de leis nacionais de anistia ou
imunidades, esses Estados não realizam nem mesmo a investigação dos fatos, de modo que o
horizonte de impunidade poderá ser rompido pela atuação subsidiária de outro Estado por
meio do exercício da jurisdição universal, seja ela condicionada ou absoluta.
Nesse viés, portanto, um dos modos compreendidos pela doutrina para evitar o
conflito horizontal de competência e estimular o combate à impunidade foi justamente a
previsão de subsidiariedade em relação à jurisdição universal. Consoante apresentam Jimenez
e Céspedes (2015), o princípio da subsidiariedade denota uma ordem de hierarquia entre
jurisdições estatais no momento de proceder a investigações e ajuizar ações em relação aos
delitos cometidos contra os direitos humanos.
Desta maneira, deve ser dada posição de prevalência para a justiça do Estado em que
os fatos ocorreram. Todos os Estados, em razão do jus cogens e da proteção de valores
universais, podem ser chamados a julgar os responsáveis por crimes internacionais, todavia,
esta faculdade seria interrompida se o Estado em que se cometeu o delito tenha procedido –
ou passar a proceder - a investigação ou a ajuizamento da questão. Essa prioridade dada ao
Estado em que os fatos se sucederam para investigá-los se justifica pela maior facilidade em
relação aos recursos investigativos e economia processual, havendo acesso mais fácil a
provas, vítimas e até mesmo maior possibilidade de efetivação dos resultados da persecução
penal.
Junto a esse princípio, na fase de investigação dos crimes, tendo em vista o dever de
cooperação entre os Estados, outro princípio que se destaca é o da concorrência, pois as
investigações concorrentes não serão obstadas até que um Estado receba a ação, ou seja, que
ela de fato seja ajuizada.
Os Princípios de Priceton corroboram com esse entendimento de que a jurisdição do
local dos fatos tem prioridade para julgamento em relação à jurisdição de qualquer outro
Estado. O princípio 8 (COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS, 2001) apresenta a
determinação de que, quando mais de um Estado tenha afirmado ou possa afirmar sua
108

jurisdição sobre uma pessoa e quando um Estado que tem essa pessoa sob sua custódia não
tenha outro fundamento para sua jurisdição que o princípio da universalidade, dito Estado, ao
decidir entre ajuizar ou extraditar, deverá sustentar sua decisão em uma composição
equilibrada dos seguintes critérios: a) obrigações provenientes de tratados multilaterais ou
bilaterais; b) lugar em que os delitos foram cometidos; c) nexo de nacionalidade do suspeito
com o Estado; d) nexo de nacionalidade das vítimas com o Estado; e) probabilidade, boa fé e
eficácia do ajuizamento da ação no Estado; f) equidade e imparcialidade as atuações do
Estado julgador; g) conveniência para as partes e testemunhas, assim como a disponibilidade
de provas no Estado requerente e h) interesses da justiça.
Ainda nesta seara, o princípio 9, item 229, apresenta a importante previsão de que os
Estados deverão reconhecer a validade do devido exercício da jurisdição universal por parte
de outro Estado e reconhecerão eventuais sentenças definitivas do órgão judicial nacional
ordinário e competente ou do órgão judicial internacional competente que exerça essa
jurisdição de acordo com as garantias processuais internacionais. Isso se determina desta
forma pelo fato de que, ao exercer a jurisdição universal, determinado Estado atua como um
ente internacional, defendendo valores universais em matéria de direitos humanos e,
utilizando regras de direito material oriundas do jus cogens.
Essa previsão só se faz possível nos dias atuais em razão das conquistas oriundas dos
processos de internacionalização dos direitos humanos e das vicissitudes da sociedade
mundial em tempos de cosmopolitização. Como já fora mencionado neste trabalho, os dias
atuais são marcados pela hipermodernidade e pela antimodernidade (CHEVALLIER, 2009),
de maneira que, em relação à jurisdição universal, as prerrogativas de direito material e de
dever ser são antimodernas por romperem com a territorialidade típica da racionalidade
jurídica moderna e por abalarem com a noção de soberania ilimitada e solitária no plano
internacional, com a proposta cosmopolita de solidariedade capaz de ligar os Estados na
finalidade comum de tutelar os interesses da humanidade.
Entretanto, a força da realidade desvela elementos hipermodernos no campo dos
interesses políticos, na medida em que a ausência de um mecanismo que torne obrigatórias as
decisões oriundas do exercício da jurisdição universal permite que sob argumentos de
interferência e ingerência de um Estado em outro, essas sentenças se tornem ineficazes

29
Princípio 9. O princípio do non bis in idem ou proibição do segundo processamento pelo mesmo delito. 2. O
Estado reconhecerá a validez do devido exercício da jurisdição universal por parte de outro Estado e reconhecerá
a sentença definitiva do órgão judicial nacional ordinário e competente ou do órgão judicial internacional
competente que exerça essa jurisdição de acordo com as garantias processuais internacionais (tradução livre).
(COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS, 2001).
109

(FRYDMAN, 2006). Desta maneira, o descompasso entre jurisdição universal prescritiva com
fundamento em valores universais do jus cogens e jurisdição universal adjudicativa atrelada
somente a diretrizes internacionais e a normas processuais nacionais, demonstra que a
situação conjunta de imposição de poder político e econômico e de ausência de superação de
elementos da modernidade, como é o caso do próprio nacionalismo metodológico em relação
a questões como processo e jurisdição, configuram-se como um dos grandes entraves de
realidade em relação à jurisdição universal.
Pode-se, deste modo, afirmar que o no plano do dever ser cosmopolita encontra-se a
jurisdição universal absoluta fundada, sobretudo, nas prescrições do jus cogens e no processo
de valorização do homem como principal sujeito de direito internacional do nosso tempo.
Porém, a realidade do ser demonstra que, essa possibilidade de exercício da jurisdição
universal em sua forma absoluta mostra-se não só incompatível com forças políticas e
econômicas da globalização, como também com as estruturas ainda nacionais da jurisdição
adjudicativa. A realidade do ser, portanto, é de exercício da jurisdição universal quase que
unicamente em sua forma condicionada.
Não raras vezes, diante das dificuldades de superação do olhar sob a ótica nacional, a
jurisdição universal é compreendida como uma forma de neocolonialismo ou de imperialismo
ocidental, uma vez que os casos mais conhecidos de utilização do princípio são de
investigações e julgamentos perpetrados por países da Europa e pelos Estados Unidos
envolvendo situações e fatos ocorridos ou na América Latina ou na África. Tal afirmação, de
um lado perde força diante do fato de que países da América do Sul (mais especificamente a
Argentina) e da África já despontam como locais em que a jurisdição universal está sendo
exercida, mas de outro esbarra nos meandros da geopolítica internacional, uma vez que
violações de direitos humanos ocorridas por autoridades políticas de Estados com grande
força política ou econômica no plano internacional não são capazes de serem investigados e
condenados pela utilização do princípio em comento. Prova disso, é o que se verá mais
adiante em relação ao caso Tibet e ao caso dos Jogos Olímpicos de Pequim.
Segundo o Universal Jurisdiction Annual Review 2016, Argentina30, Chile e Senegal31
vêm se destacando por investigações e julgamentos de casos de violações contra os direitos
humanos utilizando-se do princípio da jurisdição universal. Um dos casos mais importantes

30
Segundo as informações constantes no Universal Jurisdiction Annual Review 2016, a Argentina possui
atuação de destaque, sobretudo, em dois casos: o Caso Franco Dictatorship e o Caso da Comunidade Indígena
Paraguaia. (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2016a).
31
Segundo as informações constantes no Universal Jurisdiction Annual Review 2016, a atuação do Senegal foi
de destaque nos referidos casos: Caso Hissène Habre e Caso Paul Mwilambwe. (FUNDACIÓN
INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2016a).
110

dos dias atuais, o do ex-presidente do Chad, Hissène Habré, foi julgado em 2015 pelo
Senegal. Embora o mencionado caso apresente grande complexidade política e o julgamento
somente tenha ocorrido por imposição feita ao Senegal pela Corte Internacional de Justiça,
como será explicado a frente, não se pode deixar de reconhecer a importância da persecução
penal do caso em questão por colocar magistrados de um país da África como importantes
atores no julgamento, utilizando a jurisdição universal, na sua forma condicionada (Hissène
Habré havia se exilado no Senegal), para julgar o ex-ditador.
A Argentina, por sua vez, apresenta, segundo o relatório referido, dois principais casos
em curso com a prerrogativa de aplicação do princípio em comento: o Caso da Ditadura de
Franco (Querella Argentina), em que investigações estão sendo feitas em relação a oficiais
espanhóis que durante a ditadura de Franco, na Espanha, entre 1936 e 1977, cometeram
crimes contra os direitos humanos e, o Caso da Comunidade Indígena Paraguayan, em que o
Estado Argentino julga crimes cometidos no Paraguai, durante a ditadura de Alfredo
Stroessner (1954-1989). Quanto ao Chile, o relatório destaca que este apresenta o uso do
princípio da jurisdição universal em matéria cível, no caso Lopez e Ceballos.
Pertinente destacar maiores detalhamentos em relação aos casos julgados pela
Argentina, principalmente pelo destaque que o princípio da jurisdição universal teve na
América Latina após a denúncia dos crimes da ditadura franquista ter sido aceita pela justiça
argentina, em 2010 (SLEPOY, 2016). A Constituição da Nação Argentina apresenta de modo
genérico a previsão de que os magistrados do país podem realizar a persecução penal de
crimes contra os direitos humanos ocorridos fora do território nacional, tendo como base a
aplicação do princípio da jurisdição universal.
A despeito dessa previsão, no caso em questão, a ação penal contra crimes do
franquismo estava ocorrendo na Espanha, porém, as reformas legislativas do país, em 2009, as
acusações de abuso de autoridade contra o juiz do processo em Madri, Baltasar Garzón e o
reconhecimento, pelo Estado espanhol, de anistia em relação aos crimes e a seus autores,
levaram ao arquivamento do caso (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR
GARZÓN , 2015b). As famílias das vítimas, que viviam em Buenos Aires, a fim de romper
com anos de impunidade pelos crimes cometidos, e com auxílio de organizações argentinas
como as Avós da Praça de Maio e a Central de Trabalhadores Argentinos, apresentaram o
caso perante o judiciário do país latino americano e, justamente sob a aplicação do princípio
da jurisdição universal este fora aceito.
Interessante notar no caso em questão - que ainda está em curso - um duplo processo.
O primeiro é o de divulgação do princípio da jurisdição universal não somente pelo fato de
111

este já se encontrar na constituição argentina ou por ser materialmente legitimado pelas


normas de jus cogens, mas principalmente pela atividade jurisdicional amplamente realizada
na Europa no final da década de 1990 e início dos anos 2000, sobretudo pelos exercícios de
jurisdição universal de forma absoluta por parte da Bélgica, como se exporá na sequência, e
da Espanha.
Inclusive nesse aspecto, o advogado das vítimas, Carlos Slepoy (2016), na chamada
Querella Argentina, menciona que a despeito das previsões normativas materiais para a
aplicação do princípio, a utilização que já havia sido feita em relação a ele foi o que motivou a
proposição do caso perante a justiça argentina. Segundo ele, até a data da propositura da ação
na argentina, a mais acabada implementação da jurisdição universal tinha sido na Espanha, no
caso Pinochet. Isso demonstra que o precedente jurisprudencial exerceu grande relevância na
situação em questão, corroborando com o que fora dito no subcapítulo anterior, de que os
magistrados são atores relevantes no processo de cosmopolitização da justiça.
O segundo processo a ser salientado é o de que, embora a justificativa para o
ajuizamento da ação com base na jurisdição universal tenha se dado pelas normas de jus
cogens (SLEPOY, 2016), a viabilidade procedimental só se deu em razão de que as entidades
e indivíduos autores da ação ou eram argentinos ou residiam na argentina. Isso corrobora com
a ideia, mais adiante exposta, de personalidade ativa alargada, ou seja, quando os autores,
mesmo que não possuindo a nacionalidade do Estado julgador, residem neste local ou têm
relação de parentesco com vítimas que eram nacionais de tal Estado. Tal questão de
legitimidade já demonstra que a jurisdição universal, no caso em comento, fora exercida de
forma condicionada.
Apesar dos casos citados, as críticas afirmando que a jurisdição universal é uma nova
forma de imperialismo existem pelo fato de que as situações envolvendo este princípio são de
profunda complexidade tanto política quanto jurídica, além de possuírem natureza
internacional. Tanto é que, por vezes, mesmo que não se atinja o objetivo precípuo, que é o de
efetiva punição dos responsáveis por crimes contra os direitos humanos, o exercício da
jurisdição universal pode auxiliar para evidenciar violações perpetradas por um Estado e,
potencialmente conduzir a uma mudança política.
Como já se apresentou aqui, as normas que servem de base para a aplicação de uma
jurisdição universal prescritiva são oriundas de tratados e do costuma internacional que
compõem o jus cogens, atuando no plano do dever ser, que é solidário e cosmopolita. O
mesmo plano internacional, por sua vez, não é capaz de fornecer mecanismos com força
cogente no que concerne à jurisdição universal adjudicativa, ou seja, em relação à questão
112

procedimental e processual. O problema que aqui se apresenta é muito semelhante ao


debatido em relação à eficácia das sentenças internacionais proferidas por Cortes
Internacionais ou Regionais de Direitos Humanos.
No que concerne à execução dessas sentenças não existem nos tratados internacionais
que regem as atividades dessas cortes, disposições disciplinando os meios e modos de
execução de suas decisões no território interno dos países. Pelo contrário, o que existe são
disposições prevendo que o direito interno dos Estados é que deve se encarregar desse tema.
O artigo 68 da Convenção Americana de Direitos Humanos, por exemplo, afirma que os
Estados que ratificam a Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todos
os casos em que forem partes e, o componente da sentença que determinar indenização
compensatória poderá ser executado no país respectivo pelo processo interno vigente para a
execução de sentenças.
A jurisdição universal atua da mesma forma, ou seja, caso um terceiro Estado realize a
investigação e puna determinado agente por genocídio, crime contra a humanidade ou
correlatos, é importante que o Estado em que o agente se encontre reconheça e execute essa
sentença com base em sua legislação interna. Como isso depende de razões estritamente de
ordem prática e política, os Princípios de Princeton, visando a eficácia das decisões, já
preveem que o sujeito ativo dos crimes esteja no território do Estado julgador ou que seja
capaz de estar (extradição). Do contrário, a efetividade da sentença proferida será
severamente comprometida.
Esse é um dos principais entraves ao exercício da jurisdição universal absoluta, a qual
passa a ser, diante dos limites da realidade, mero ideal. O que ganha força, no entanto, é o
desenvolvimento da jurisdição universal em sua forma condicionada, o que já é capaz de
auxiliar minimamente nas tarefas de construção e consolidação de valores universais comuns,
de promoção da solidariedade e da hospitalidade judiciária às vítimas, bem com do combate à
impunidade. Essas condições para exercício da jurisdição universal encontram-se, como já
fora abordado, minimamente expostas nas diretrizes dos Princípios de Princeton, porém, estão
mais bem explicadas na legislação interna dos diferentes Estados.
Sem dúvida, diversos países do mundo possuem previsões em sua legislação interna
acerca do exercício da jurisdição universal. Para a elaboração deste trabalho foi preciso
delimitar quais países teriam sua legislação aqui observada e exposta, com o intuito verificar
se, no ordenamento jurídico interno, possuem condições para o exercício do princípio aqui
analisado e quais são essas condições. Desta maneira, utilizou-se como parâmetro o Relatório
Anual sobre Jurisdição Universal do ano de 2016 (Universal Jurisdiction Annual Review
113

2016). Este avaliou o desempenho de doze países (com casos nos mais diferentes estágios: em
investigação, ajuizados, encerrados, dentro outros): Argentina, Bélgica, Chile, Finlândia,
França, Alemanha, Holanda, Senegal, Espanha, Suécia, Suíça e Reino Unido.
Desses doze países, optou-se aqui pelo destaque de cinco: Argentina, Senegal, França,
Bélgica e Espanha, sendo que em relação aos dois primeiros analisaram-se somente casos e
nos três últimos, observaram-se não só casos jugados, mas a legislação propriamente dita. Isso
se justifica no fato de que Argentina e Senegal não possuem pormenoridades em relação à
jurisdição universal em suas legislações, uma vez que, mesmo fora do plano europeu, aplicam
o princípio aqui estudado.
A escolha dos outros três países justifica-se por diferentes fatos: a) Bélgica, apesar de
ter dois casos de destaque no relatório, foi aqui incluída por ter sido vanguardista em relação à
previsão na legislação interna e na aplicação da jurisdição universal a casos práticos, como
ocorreu no julgamento do caso Unocal-Total, em que violações de direitos humanos ocorridas
na Birmânia (Myanmar) foram objetos de investigação na Bélgica. Esse caso é relevante por
envolver a atuação de empresas transnacionais, que no cenário de cosmopolitização e
proliferação de riscos globais, se configuram, em diversos casos, como atores responsáveis
por violações de direitos humanos; b) França e Espanha, por sua vez, foram selecionadas pela
quantidade de casos, apresentados no relatório, em que o princípio da jurisdição universal foi
evocado. Respectivamente possuem oito e nove casos de destaque (FUNDACIÓN
INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN , 2016a).
Anne Lagerwall (2009), ao observar a jurisdição universal nestes três países chegou às
seguintes constatações: tais países, desde o início do século XXI vem passando por
modificações legislativas no que tange à jurisdição universal e essas alterações são de duas
ordens: a) visam incluir infrações a serem julgadas utilizando-se do princípio da competência
universal32 e b) multiplicam as condições para o exercício deste princípio. Houve, portanto,
um paradoxo, no sentido de que, o campo de aplicação material em relação à jurisdição
universal foi ampliado, ao passo que o campo de aplicação formal foi condicionado a filtros.
Destas modificações, nos deteremos na segunda, já que em relação à primeira, por
reconhecerem as normas jus cogens, todos os países aludidos reconhecem os crimes contra a
humanidade, o genocídio e os crimes de guerra como violações graves aos direitos humanos e

32
Infrações para além das que são apresentadas em tratados internacionais ou costume internacional.
(LAGERWALL, 2009).
114

que geram obrigação de julgar ou de extraditar o acusado para julgamento 33 . Conforme


assevera Damien Vandermeersch (2008), durante muitos anos, a Bélgica foi um verdadeiro
laboratório em relação à jurisdição universal, em razão da sua legislação em matéria de crimes
de direito internacional humanitário, que, até 2003, reconhecia às jurisdições belgas, a
competência universal absoluta. Isso significava que, de acordo com uma normativa interna
belga, datada de 1993, nenhuma condição era exigida para que juízes e tribunais do país
procedessem à persecução penal de indivíduos suspeitos da autoria de graves violações contra
os direitos humanos.
Todavia, em 2003, tal previsão da legislação interna sofreu consideráveis alterações.
Com a reforma legislativa ocorrida, a competência universal dos juízes belgas foi reduzida e
condicionada a diversos filtros, sendo o principal deles a impossibilidade de persecução penal
e julgamento de casos que não possuam elementos de conexão com o Estado belga.
A partir de 2003, além da a abertura das investigações ficar subordinada à iniciativa de
procuradores federais, requisitos de ligação territorial ou nacional foram incluídos como
filtros para o exercício da jurisdição universal. Com isso, na Bélgica, passou-se a adotar as
chamadas personalidades ativa (suspeito residir ou se encontrar no território do Estado
julgador) ou passiva alargadas (vítimas serem nacionais do Estado julgador ou residirem neste
há algum tempo).
Desta maneira, por exemplo, vítimas de violações aos direitos humanos devem ou
possuir nacionalidade belga ou residir na Bélgica por um período específico (consoante a
legislação de 2003, esse período era de três anos). Assim, pode-se concluir, a partir das
previsões legislativas que, a competência universal absoluta (in absentia) adotada na Bélgica
em relação aos crimes de direito internacional humanitário foi substituída por uma
competência pessoal ativa e passiva alargadas, ou seja, a persecução penal só poderá ocorrer
se houver essas formas de ligação com o Estado belga.
Da mesma forma que a Bélgica, a Espanha, um dos países mais vanguardistas em
relação á aplicação do princípio da jurisdição universal, em 2014, passou por mudanças
legislativas abruptas em relação à matéria, apresentando, o que estudiosos (FUNDACIÓN
INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2015b) no assunto classificam como um
enorme retrocesso no campo de defesa dos direitos humanos e proteção das vítimas de crimes

33
Incluem-se dentre as normas de jus cogens em matéria de crimes internacionais os seguintes crimes: pirataria,
escravidão, crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídios, apartheid e tortura. Diversos outros
crimes internacionais ainda não são reconhecidos como inclusos nas regras de jus cogens, mas a aplicação do
princípio da competência universal para julgá-los é implícita ou explicitamente reconhecida por seus
instrumentos jurídicos fundadores (tratados internacionais) ou pela própria legislação interna dos Estados
(CORDERO, 2008).
115

contra a humanidade, genocídio e delitos afins. A Lei Orgânica do Poder Judiciário de 1998,
em seu artigo 23.4 trazia a previsão nacional de reconhecimento da competência universal
incondicionada aos magistrados espanhóis. Essa previsão motivou não só a persecução penal
e o pedido de extradição do ex-general Augusto Pinochet, como também a instrução de crimes
cometidos ao longo da ditadura militar argentina, a investigação de genocídio na Guatemala,
de torturas em Guantánamo, dos genocídios em Ruanda e outras situações (FUNDACIÓN
INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN , 2016b).
A despeito da postura vanguardista espanhola em relação à investigação e punição de
crimes transnacionais e de violação aos direitos humanos, a partir de 2009, pressões políticas
passaram a influenciar fortemente o cenário legislativo espanhol, de modo que as reformas
realizadas no campo da jurisdição universal passaram a impor critérios para o uso de tal
princípio. Em 2009, a condição de ligação mínima territorial ou nacional com o Estado
espanhol acabou por impedir a ocorrência de investigações acerca de violações aos direitos
humanos cometidas pelo Estado chinês nos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008.
Além de 2009, em março de 2014 (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR
GARZÓN, 2016b), o Congresso de Deputados da Espanha aprovou alteração legislativa mais
restritiva em relação à aplicação da jurisdição universal. Segundo o Informe sobre o estado da
jurisdição universal na Espanha em 2016 (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR
GARZÓN , 20156b), o novo texto de lei aprovado contém um catálogo ininteligível e
restritivo de condições para a afirmação da jurisdição universal na Espanha, de modo que uma
das poucas possibilidades ainda possíveis é a de afirmar a jurisdição na medida em que
existam indivíduos de nacionalidade espanhola entre as vítimas do delito perpetrado34.
Como na Bélgica, as alterações legislativas ocorridas em território espanhol previram
que os crimes internacionais não podem mais ser perseguidos de modo absoluto, exceto se
houver condições que determinem certa ligação com o Estado. Na França, da mesma forma, a
presença do acusado no território francês é uma condição expressamente reconhecida na

34
De acordo com o Informe sobre o estado da jurisdição universal na Espanha em 2016, o Supremo Tribunal
espanhol emitiu, em 18 de abril de 2016, manifestação cerca do recurso de cassação apresentado contra a
descontinuidade do caso de vítimas espanholas de crimes de genocídio, de lesa humanidade e crimes de guerra
nos campos de concentração nazistas da Segunda Guerra Mundial. Segundo a Sala II, “A nova regulação do
princípio de justiça universal com respeito aos delitos de genocídio, lesa humanidade e crimes de guerra tem
procedido a uma restrição tão substancial do direito dos cidadãos espanhóis, vítimas de tais delitos em território
estrangeiro, que exclui de forma extrema seu acesso a jurisdição para defender seus direitos dentro do território
espanhol, dadas as escassíssimas possibilidades de que um dos supostos autores resida habitualmente na Espanha
(...) A grande contradição substancial da reforma é evidenciada no direito de que enquanto os delitos mais
graves de direito penal internacional (lesa humanidade, genocídio e crimes de guerra) são movidos para fora da
competência da jurisdição espanhola, (...) ” (tradução livre). Ainda na sentença, o referido Tribunal asseverou
que “o critério da nacionalidade espanhola da vítima (princípio da personalidade passiva) restou excluído para os
delitos mais graves ou de primeiro grau (...)”(tradução livre). (THE DIPLOMAT, 2016).
116

legislação do país para o exercício da jurisdição universal. O motivo dessa exigência é


baseado na eficácia da persecução penal dos crimes cometidos em território estrangeiro
(CORDERO, 2008).
Todavia, no caso francês, a presença no território, em realidade, deverá ser
permanente no sentido de residência habitual no país, condicionando mais ainda a
personalidade ativa e passiva alargadas. Segundo as justificativas trazidas por Anne Lagerwall
(2009), tal condição visa a garantir a existência de uma verdadeira ligação entre a França e a
pessoa perseguida penalmente, de modo que uma simples passagem pelo território não seria
capaz de constituir uma ligação efetiva passível de ensejar o exercício da jurisdição universal.
O único Estado que dispõe de jurisdição universal absoluta é a Alemanha. O artigo
primeiro do Código Penal alemão permite que os magistrados do país recebam ações penais
no que concerne a delitos previstos como crimes internacionais no jus cogens, mesmo que os
acusados não estejam no território nacional alemão. Para infrações previstas somente na
legislação alemã, a competência universal admitida é a condicionada, uma vez que se exige
ligação entre o crime cometido em território estrangeiro e o Estado alemão, sob a forma, por
exemplo, de residência habitual na Alemanha. Todavia, é importante que se destaque que,
mesmo no caso de jurisdição universal absoluta, a faculdade de realizar a persecução penal de
indivíduos que se encontram em território estrangeiro é evitada diante das dificuldades em
relação à efetividade da decisão e ao cumprimento de sentença.
Conforme o que fora apresentado, um dos entraves ao exercício da jurisdição universal
concerne às dificuldades procedimentais em relação ao cumprimento das decisões proferidas.
Justamente em razão disso, as já poucas previsões, nas legislações nacionais, de jurisdição
universal absoluta, nos últimos anos, foram suprimidas em razão de modificações legislativas
internas que possuíam o escopo de condicionar a aplicação do principio em comento. Desta
maneira, pertinente relembrar a colocação de Seyla Behabib de que, em nosso tempo, a
pretensão de universalidade e de solidariedade transnacional em relação aos direitos humanos
esbarra em particularismos nacionais, atrelados fortemente às estruturas legislativas e
jurídicas locais.
No entanto, para além dos entraves jurídicos, questões políticas influenciam
fortemente à aplicação e utilização desse princípio, o que leva a crer que, a soberania dos
Estados, em determinados aspectos recusa-se a se subordinar à ordem internacional protetiva
em relação aos direitos humanos e às regras de jus cogens. Isso pode ser nitidamente
vislumbrado em alguns casos emblemáticos de aplicação do princípio da jurisdição universal,
em que não houve reconhecimento de decisão estrangeira.
117

Inicialmente, somente a título ilustrativo, basta observar como, nos últimos anos, a
influência de pressões políticas externas à Espanha fomentou um cenário de mudança
legislativa profunda em relação ao exercício da jurisdição universal no país. Mais
especificamente, desde meados dos anos 2000, estavam em trâmite na Espanha duas causas
que interferiam de modo direito nos interesses da China: o Caso Tibet, que dispunha sobre a
denúncia de crimes internacionais cometidos contra a população tibetana por autoridades
chinesas e, o caso de crimes contra a humanidade, também contra tibetanos nos preparativos
para os Jogos Olímpicos de 2008.
As alterações realizadas na legislação espanhola e a exigência de filtros de ligação
entre vítimas ou autores dos crimes e o Estado julgador, levou ao arquivamento do caso que
analisava as agressões que precederam às Olimpíadas. O Caso Tibet, por sua vez, só não foi
arquivado pelo fato de que, uma das vítimas do genocídio cometido contra a população
tibetana, possuía nacionalidade espanhola (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR
GARZÓN , 2016b).
Segundo relatos de Irene Lozano Domingo, deputada espanhola do Grupo Parlamentar
de União, Progresso e Democracia (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR
GARZÓN, 2015b), atrelados às questões políticas, impulsos econômicos fizeram com que
houvesse preferência pela alteração legislativa interna. Segundo ela, a China estaria
comprando dívidas e ativos imobiliários da Espanha, de maneira que, a persecução penal de
líderes e ex-líderes do governo colocaria em risco os negócios entre os países.
Da mesma forma, questões políticas permearam o Caso Hissène Habré, envolvendo o
ex-presidente do Chad, de 1982 a 1990, que segundo a Comissão da Verdade foi responsável
por mais de quarenta mil mortes na região, além de crimes de tortura sistemática. Quando saiu
do poder, Habré refugiou-se no Senegal, levando consigo uma grande quantidade de dinheiro
que o permitiu subornar agentes públicos no intuito de criar uma rede de proteção para evitar
a responsabilização por seus atos.
Em 2001, após onze anos de impunidade, as vítimas e familiares de vitimas dos atos
cometidos por Habré, intentaram ação contra ele perante tribunais belgas, uma vez que, em tal
período, a legislação belga ainda previa a possibilidade de exercício da jurisdição universal
em sua forma absoluta. Após quatro anos de instrução, em 2005, a Bélgica encaminhou
pedido de extradição de Habré e diante da ausência de resposta, encaminhou o caso para a
Corte Internacional de Justiça. Esta última, utilizando-se do princípio de aut dedere, aut
iudicare, concedeu decisão que obrigava o Senegal a julgar a questão.
118

Tal caso foi julgado em 2015, ou seja, vinte e cinco anos depois de Habré ter deixado
o poder no Chad. Esse período foi marcado por jogos econômicos de suborno e pela falta de
vontade e mobilização política para romper com a ilusão de impunidade do ex-ditador. Em
sentido semelhante, porém ancorados no argumento de existência de leis nacionais de
imunidade, entraves se delinearam no já explicado Caso Pinochet.
Importante destacar que, em relação a questões de imunidade, em 2002 a Corte
Internacional de Justiça proferiu uma importante sentença tendo como base o conflito surgido
entre Bélgica e República do Congo, tendo sido provocada por esta última pelo fato de que a
Bélgica não teria reconhecido a imunidade conferida a agentes políticos em seus estados de
origem (FRYDMAN, 2006). Em tal decisão, a Corte Internacional de Justiça considerou que
os Ministros de Estado estrangeiros, em exercício, gozam de imunidade de jurisdição penal e
de inviolabilidade em território estrangeiro, tal como agentes diplomáticos e consulares.
No entanto, a Corte Internacional de Justiça destacou que a imunidade de jurisdição
que beneficia ministros em exercício, não significa que fomente a impunidade por crimes
cometidos, quais sejam as suas intensidades. Isso porque, imunidade de jurisdição penal e
responsabilidade penal individual são conceitos amplamente distintos (CORDERO, 2008, p.
25): a imunidade refere-se a uma questão procedimental, de modo que pode estabelecer certos
obstáculos à persecução de determinado indivíduo por certo tempo, mas não é capaz de
exonerar o sujeito ativo de violações aos direitos humanos da responsabilidade pelos crimes
cometidos. Isso, inclusive pode ser ratificado pelo fato de que todo e qualquer crime contra os
direitos humanos, previsto no jus cogens, é imprescritível.
A legislação belga, alterada em 2003, incluiu esse entendimento da Corte
Internacional de Justiça, de maneira que seu Código de Processo Penal passou a limitar a
possibilidade de realizar a persecução penal de líderes estrangeiros em exercício. Desta
maneira, os representantes de outros Estados, em visitas oficiais à Bélgica gozariam de
imunidade absoluta de jurisdição. Apesar de a decisão da Corte Internacional de Justiça
abarcar diretamente os países envolvidos na questão, indiretamente, a conclusão a que se
chegou foi a de que a imunidade de chefes de Estado ou agentes políticos pelo cometimento
de crimes contra a humanidade, genocídio e seus congêneres não é capaz de excluir a
responsabilidade penal desses agentes, uma vez que, somente não podem ser julgados
enquanto estiverem exercendo função pública.
Importante ainda ressaltar um paradoxo interessante no que se refere às diretrizes
acerca da jurisdição universal quando confrontadas com os casos práticos e com as legislações
nacionais. Neste subcapítulo optou-se por fazer menção de dispositivos específicos do
119

documento denominado de Princípios de Princeton, uma vez que as reflexões ali elencadas
elucidam de modo mais claro questões práticas envolvendo a aplicação do princípio da
jurisdição universal. Todavia, mais recentemente, em 2015, grupos de estudiosos sobre justiça
de transição e justiça penal internacional, elaboraram o documento chamado de Princípios de
Madrid-Buenos Aires (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2015a),
atualizando, consoante se mencionou no item 1.2 desta dissertação, os Princípios de
Princeton.
Nesse sentido, os itens 2 e 3 deste novo documento merecem destaque por definirem
respectivamente que: a) a jurisdição universal será aplicável aos crimes de Direito
Internacional, tais quais: genocídio, crime de lesa humanidade, crimes de guerra, pirataria,
escravidão, desaparecimento forçado, tortura, tráfico de seres humanos, execuções
extrajudiciais e crimes de agressão, sendo que estes crimes podem ser cometidos por
múltiplas formas, incluindo as atividades econômicas e que possam afetar o meio ambiente; e
b) a jurisdição universal será também aplicável aos crimes econômicos e contra o meio
ambiente que por sua extensão e escala afetam gravemente os direitos humanos de grupos ou
coletividades ou que suponham a destruição irreversível dos ecossistemas.
Interessante, contudo, notar que a partir dessas duas definições, reflexões importantes
são realizadas ao longo do texto que contém os Princípios de Madrid- Buenos Aires, de
maneira que é possível de antemão notar que as diretrizes trazidas pelo documento
contemplam a ampliação e o desenvolvimento da jurisdição universal em sua forma absoluta,
em sentido oposto, portanto, às situações que foram descritas neste capítulo como exemplos
da realidade prática do princípio da jurisdição universal. Deste modo, por exemplo, o
documento em questão, em seu princípio 8, afirma que todos os Estados devem incorporar,
em suas legislações internas, o princípio da jurisdição universal (8.1), sendo que as
autoridades deveriam aplicar tal princípio nos casos expressos pelos itens 2 e 3 do documento
de Madrid-Buenos Aires, mesmo que a previsão de aplicação da jurisdição universal não
esteja contemplada nas legislações nacionais.
No mesmo sentido, o princípio 9 indica que as disposições dos Estados concernentes à
prescrição, à anistia, aos indultos e demais medidas destinadas a excluir responsabilidades não
serão aplicáveis aos crimes identificados nos itens 2 e 3, bem como, em relação a esses
crimes, as imunidades concedidas em âmbito interno não poderão ser óbices para a aplicação
do princípio da jurisdição universal por juízes de outro Estado. Interessante notar que a
motivação de ambos os documentos, os Princípios de Princeton e os Princípios de Madrid-
Buenos Aires, é a de estabelecimento de diretrizes mínimas que sejam capazes de orientar os
120

Estados na aplicação do princípio da jurisdição universal, de maneira que, o último


documento referido aproxima suas orientações para o estabelecimento de bases capazes de
ensejar a ampliação do reconhecimento e aplicação da jurisdição universal em sua forma
absoluta em relação aos delitos previstos nos seus itens 2 e 3.
Neste sentido, pode-se afirmar que, mesmo que de modo tímido, em relação ao tema
em questão, a realidade nos aponta para um cenário em que movimentos de sístoles e
diástoles são feitos. Isso porque, ao mesmo tempo em que as diretrizes de documentos
internacionais apontam um norte humanista para o princípio da jurisdição universal, a
legislação interna dos países que reconhecem tal princípio e a observação do “estado da arte”
em relação aos casos práticos aqui apresentados, demonstram que o princípio da jurisdição
universal estaria, nas legislações internas, cada vez mais condicionado a filtros que limitam a
atuação dos Estados.
Kenneth Mann (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN , 2015b,
p. 36), neste viés, afirma que a jurisdição universal avançou amplamente como conceito a
partir dos anos 90. Podemos complementar que esse avanço se deu pela ampliação do
processo de internacionalização dos direitos humanos e pela noção de que, na sociedade
global os riscos passaram a ser compartilhados, de modo que, situações atentatórias aos
direitos humanos passam a ser de responsabilidade de todos os Estados e não só do Estado e
das vitimas onde essas violações ocorreram.
Todavia, o mesmo autor complementa que, uma vez consolidada, a jurisdição
universal, foi exposta a fortes pressões políticas e econômicas, que ensejaram retrocessos por
meio das mudanças legislativas em países como Bélgica, Espanha e França, vanguardistas na
aplicação da jurisdição universal absoluta e que tiveram, internamente, a adoção de normas
condicionantes do exercício da competência universal. Um reflexo negativo dessas mudanças
se deu em um dos mais importantes casos de aplicação do princípio, o Caso Unocal-Total.
Tal caso configura-se como um dos mais relevantes no que tange à aplicação do
princípio da jurisdição universal pelo fato de a denúncia feita ao Estado belga envolver não só
agentes políticos da Birmânia (Myanmar), como também a empresa Total, denunciada por ser
cúmplice e conivente com as violações de direitos humanos ocorridas em território birmanês,
mas especificamente crimes contra a humanidade, tortura e trabalhos forçados, cometidos pela
junta militar birmanesa durante a construção e exploração do gasoduto de Yadana. Em abril
de 2002, quatro refugiados de Myanmar apresentaram reclamações, na Bélgica, contra a
empresa Total (contra a própria empresa e dois de seus diretores) fundadas na lei belga de
competência universal absoluta, de 1993 e em uma lei belga de 1999 que previa a
121

responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Os autores da ação alegaram que a empresa teria
fornecido apoio moral e financeiro ao governo militar de Myanmar, sabendo que tal auxílio
seria destinado a violações de direitos humanos por parte dos militares.
Em razão das alterações legislativas de 2003, que levaram à aprovação de novas regras
em relação à competência universal, a análise da ação em questão foi colocada em risco. Isso
porque, uma questão procedimental relevante fora colocada como condição mínima para o
exercício da competência universal: a legitimidade dos autores para intentar com a ação, uma
vez que não eram cidadãos belgas. Desta maneira, em abril de 2005, a antiga Corte de
Arbitragem da Bélgica35julgou que, segundo a Constituição do Estado, recusar aos autores,
então refugiados no território, o recurso à lei de competência universal era discriminatório.
Posteriormente, em junho do mesmo ano, a Corte de Cassação (a mais alta Corte de apelação
da Bélgica) ignorou a decisão tomada pela Corte de Arbitragem e rejeitou a persecução penal
contra a Total. Após algumas reviravoltas no caso, em outubro de 2007, em razão da lei de
competência universal de 2003, o procurador federal belga abriu novas investigações sobre o
caso, de modo que, em 2008, as autoridades do país encerraram o caso sem qualquer total
análise ou julgamento sobre o mérito dos pedidos.
Os casos práticos demonstram então que, apesar dos esforços das redes internacionais
de organizações não governamentais ligadas à proteção dos direitos humanos, bem como das
redes internacionais de juristas e de juízes, que passam a ser importantes personagens para a
mudança do paradigma de impunidade para o paradigma da responsabilidade, a força das
coisas impõe limites de realidade à aplicação do princípio da competência universal.
Indubitavelmente o reconhecimento, por parte tanto do jus cogens, como de normas
provenientes de tratados internacionais, de que existem crimes que ultrapassam a esfera dos
indivíduos e dos Estados, afetando a humanidade como um todo, atualiza a máxima kantiana
de que a infração de um direito em um lugar da Terra é sentida por todos e em todos os
demais cantos do globo.
O dever de proteção da humanidade e de solidariedade transnacional encoraja o
surgimento de uma das expressões contemporâneas da cosmopolitização da justiça, a
deslocalização judiciária, apresentada aqui como jurisdição ou competência universal. A
pretensão de intensa desterritorialização em relação ao local dos fatos em que os crimes
internacionais contra os direitos humanos ocorrem esbarra em problemas de ordem política,
econômica, jurídica e processual, corroborando para o entendimento de que, embora o dever

35
Em 2007 passou a se chamar Corte Constitucional.
122

ser tenha pretensões transnacionais e universalistas, com a promoção de valores comuns em


matéria de direitos humanos, a realidade é atrelada à estruturas nacionais, a particularismos
locais.
Isso inviabiliza o projeto de cariz cosmopolita e solidário de exercício de uma
hospitalidade judiciária plena, por meio da aplicação a casos concretos do princípio da
jurisdição universal absoluta, ou seja, o julgamento de crimes internacionais somente em
razão da natureza desses crimes, sem que seja necessária a existência de qualquer liame entre
os sujeitos e fatos criminosos e o Estado julgador. O que existe no cenário global hoje é a
previsão de um dever ser da jurisdição universal em sua forma absoluta, mas a realidade de
um exercício de jurisdição universal condicionada a questões territoriais ou de nacionalidade,
o que denota claro atrelamento a estruturas nacionais.
123

4 CONCLUSÃO

A espinha dorsal do presente trabalho pode ser vislumbrada na construção dicotômica


de incompletude das ideias diante da força da realidade. O pensamento acerca da jurisdição
universal na lógica de contraposição entre dever ser, representado aqui por meio das teorias
cosmopolitas e ser, vislumbrado nos entraves políticos e jurídicos opostos ao princípio em
estudo, corroboram para a crença de que se vivem tempos de universalização de conceitos e
de particularismo de práticas.
As pretensões universalistas em relação aos direitos humanos, fortalecidas ao longo do
processo de internacionalização destes, possuem como eixos norteadores a solidariedade entre
os Estados e a valorização do homem, que adquiriu o caráter de sujeito de direito
internacional. Neste sentido, a proteção de direitos humanos e a tutela da humanidade
colocam em xeque questões da modernidade e das estruturas do paradigma westfaliano, como
é o caso da soberania estatal, que deve deixar de ser ilimitada e passar a se sujeitar a normas
imperativas de direitos humanos, o jus cogens.
A compreensão dos fenômenos que são desencadeados por esse processo de
internacionalização dos direitos humanos, como é o caso da mundialização dos juízes, dos
diálogos transjurisdicionais e, sobretudo, da deslocalização judiciária por meio do exercício
da jurisdição universal, fica amplamente comprometida quando se utiliza como lente de
observação a ótica nacional, que só é capaz de interpretar o mundo e as instituições quando
vinculadas aos Estados nacionais. Perceber a transnacionalidade dos riscos dos dias atuais é
tarefa que deve transcender e superar a mirada nacional.
Essa superação proposta encontra-se na mirada cosmopolita, que possui em seu cerne
tanto o dever ser do cosmopolitismo quanto o ser, representado pelo cosmopolitismo de
realidade ou cosmopolitização. O dever ser, como estrutura filosófica, é aqui apresentado
pelas teorias cosmopolitas kantianas e de teóricos que, em maior ou menor medida, utilizam-
se dos ensinamentos de Kant para justificar um paradigma includente e de tutela da
humanidade. Como estrutura jurídica, as premissas de dever ser, normativamente garantidas
em tratados internacionais de direitos humanos e nas normas do jus cogens, garantiram a
humanização do direito internacional, com a inclusão do homem como sujeito de direitos na
seara internacional e através da tipificação de crimes globais contra os direitos humanos.
Nessa lógica de proteção universal, a justiça penal internacional encontrou um
substrato básico para seu desenvolvimento, de maneira que no campo teórico, a ideia de uma
124

das bases dessa justiça, a jurisdição universal, é vista como um princípio capaz de auxiliar na
transposição do paradigma da impunidade ao da responsabilidade. Desta maneira, ancorando-
se filosoficamente em premissas do cosmopolitismo e, juridicamente nas normas do jus
cogens, a jurisdição universal, em sua forma absoluta, é vista como uma forma de dever ser
capaz de romper com a impunidade e reparar as violações de direitos humanos cometidas
contra um sem número de vítimas, a partir do momento em que, os Estados que reconhecem o
princípio passam a ter o dever de aplicá-lo diante da inércia dos Estados em que os fatos
ocorreram.
Sendo assim, é possível afirmar que ao exercer a jurisdição universal em sua forma
absoluta, determinado Estado é visto como competente para julgar atos cometidos em outro
Estado, sem qualquer elemento de ligação territorial ou nacional. Observa-se unicamente,
portanto, a natureza do delito e, a jurisdição é exercida com vistas a tutelar a humanidade e
responsabilizar os sujeitos ativos, sejam eles indivíduos, Estados ou mesmo empresas
transnacionais.
No entanto, a realidade do ser afasta-se das pretensões universalistas e aproxima-se do
particularismo das práticas. Isso porque, a sociedade mundial se cosmopolitiza muito mais
através do partilhamento dos riscos sociais, do que por meio da valorização do homem.
Vivem-se tempos de constantes atentados aos direitos humanos e aos direitos ambientais, por
exemplo, e os jogos de poder da política e da economia internacionais tornam a realidade em
um campo recheado de entraves à proteção da humanidade.
No objeto de estudo deste trabalho, a presença de entraves jurídicos e políticos ao
exercício da jurisdição universal não retiram a legitimidade ou a importância do princípio,
mas reduzem de modo drástico o seu espectro de aplicação. De dever de punir, por meio da
aplicação da jurisdição universal absoluta, os Estados passaram a somente poder punir se
houver a assunção de algumas condições, em geral estipuladas pela legislação interna de cada
Estado.
O apego às estruturas nacionais de compreensão dos processos judiciais, a ainda
incipiente cooperação entre os Estados na busca pela punição de sujeitos ativos de crimes
contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra, bem como os jogos de interesse nos
campos político e econômicos nas relações internacionais, enfraquecem o princípio jurídico
em questão, de modo a afastá-lo de uma ideia de universalidade da proteção da humanidade e
aproximá-lo das premissas de conveniência, oportunidade e possibilidade de julgamento e
punição.
125

Deste modo, portanto, conforme a premissa kantiana abordada recorrentemente neste


trabalho, uma violação de direitos humanos em uma parte do globo terrestre é capaz de afetar
e comover outras partes do mundo em razão da empatia cosmopolita e das pretensões
universalistas em relação aos direitos humanos. Contudo, nos dias atuais, embora já existam
elementos – como é o caso da jurisdição universal - capazes de punir os responsáveis por
essas violações que atingem a humanidade como um todo, o atrelamento ao nacional,
sobretudo em relação às dinâmicas envolvendo processamento e execução de decisões
nacionais e internacionais por parte de outros Estados, ainda impedem que tais atos sejam
investigados e punidos por qualquer jurisdição do mundo.
126

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