Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Santa Maria, RS
2017
2
_________________________________
Jânia Maria Lopes Saldanha, Drª. (UFSM).
(Presidente/Orientadora)
_________________________________
Valéria Ribas do Nascimento, Drª (UFSM).
(Universidade Federal de Santa Maria - UFSM)
_________________________________
Tatyana Scheila Friedrich, Drª (UFPR).
(Universidade Federal do Paraná - UFPR)
Santa Maria, RS
2017.
5
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, por crer em uma força transcendental capaz de nos auxiliar nos
momentos de maiores dificuldades, não poderia ser outro o meu agradecimento inicial que
não a Deus. Nos momentos mais solitários da escrita desta dissertação, o silêncio e a buscas
de respostas geraram angústias que foram amenizadas pela crença de que havia (e de que há)
uma entidade, maior que tudo e todos, capaz nos amparar e nos tranquilizar.
Em segundo lugar, um agradecimento especial não pode deixar de ser feito à minha
orientadora Prof.ª Drª Jânia Maria Lopes Saldanha. A ela agradeço não só ao auxílio e à
orientação nessa dissertação, mas demonstro minha mais profunda gratidão e enorme carinho
por todos esses anos em que trabalhamos juntas. Ao seu lado, professora, aprendi muito mais
do que altas reflexões acadêmicas. Aprendi a observar o mundo de modo crítico e a partilhar o
conhecimento.
Como já lhe disse uma vez, mestres são aqueles que nos fazem ter vontade de estudar,
de conhecer e de trilhar caminhos que, mesmo tortuosos, podem nos levar a fazer a diferença
na vida de outras pessoas. A senhora, sem dúvidas é uma grande mestre e fonte de inspiração
para mim. Muito obrigada pela confiança e pela amizade!
Meu principal agradecimento é igualmente feito a três pessoas: a minha mãe Marilene,
ao meu amor Daniel e ao meu irmão Otávio. Os três acompanharam diariamente as aventuras
e desventuras da elaboração e da escrita deste trabalho. À Marilene agradeço imensamente
pelo amor, pelo carinho e pela confiança existentes de modo abundante em nosso
relacionamento. Gratidão é a palavra exata para definir todo o apoio desde o êxito na seleção
de mestrado, no final de 2014 até a conclusão dessa importante fase da minha vida. Meu amor
por ti é eterno, transcendental e incondicional. Como já diz a nossa música: “nossos destinos
foram traçados na maternidade”.
Ao meu amor Daniel agradeço inicialmente pela compreensão das minhas ausências e
por, mesmo diante das minhas angústias, dos medos e das inseguranças, ter segurado firme
em minha mão e ter permanecido ao meu lado durante esta caminhada. Muito obrigada por ter
me auxiliado, por meio de questionamentos e diálogos, a elaborar reflexões e conclusões mais
apuradas sobre esta dissertação e principalmente por ter me dado todo o amor do mundo
durante essa jornada. Que este seja só o começo da nossa história e que possamos estar
sempre juntos, caminhando lado a lado de mãos dadas e com os corações regados pelo nosso
amor.
6
Ao Otávio, agradeço pela leveza que traz aos meus dias. Conviver com alguém com
tamanho senso de humor e sarcasmo, sem sobra de dúvidas aliviou o peso das reflexões
densas e trouxe paz ao meu coração. Muito obrigada, meu irmão.
Da mesma forma, não posso deixar de agradecer a todos os meus amigos que longe ou
perto, de maneira mais intensa ou mais leve estiveram ao meu lado ao longo desses dois anos
de mestrado. Todavia, por não ter espaço aqui para agradecer nominalmente a todos,
agradeço-os na pessoa de dois deles, que acompanharam de perto esses dois anos de
mestrado: Márcio e Tiéli.
Ao Márcio, grande amigo desde os tempos de graduação e colega no mestrado,
agradeço por ter uma influência importante para me tornar quem sou hoje. A tua inquietude
diante do mundo aos poucos também foi se tornando minha e teus constantes incentivos e
questionamentos refletem hoje em meu modo de pensar. Meus agradecimentos a ti serão
eternos, assim como nossa amizade. Tu sempre serás o meu “best”!
À Tiéli agradeço pela leveza, pelo riso frouxo e pela amizade mais linda e pura.
Obrigada por ter partilhado comigo inseguranças, por ter dividido alegrias e tristezas desde a
graduação até o mestrado. Nossa amizade foi sendo regada diariamente e se tornou essa flor
tão preciosa no meu jardim. Não tenho dúvidas de que estaremos, longe ou perto, sempre
torcendo uma pela outra e vibrando a cada nova conquista. Muito obrigada por tudo, minha
“mamis”.
Agradeço ainda aos queridos colegas da turma de 2015 do mestrado em Direito do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria (PPGD
UFSM). Cada um com suas peculiaridades e seus modos de ver a vida e o mundo ganharam
um espaço especial em meu coração. Agradeço a todos e a cada um por tornarem essa
caminhada leve e florida. Sucesso a todos nós!
Aos professores e servidores que compõem o PPGD da UFSM, o meu muito obrigada
por todos os ensinamentos deste período. Sem sobra de dúvidas cada um de vocês contribuiu,
em maior ou menos medida, para meu crescimento pessoal e profissional.
Por fim, meu agradecimento especial às professoras Tatyana Scheila Friedrich e
Valéria Ribas do Nascimento, membros da banca de defesa de dissertação que prontamente
aceitaram o convite para avaliar este trabalho.
7
(Immanuel Kant).
8
RESUMO
O processo de internacionalização dos direitos humanos foi um dos responsáveis por tornar os indivíduos em
sujeitos de direito internacional e por motivar o desenvolvimento do princípio da humanidade. Nesse contexto,
ideais cosmopolitas, inspirados nas reflexões filosóficas de Immanuel Kant, a partir de meados do século
passado, passaram a despontar com o intuito de fornecer bases para a interpretação de determinados fenômenos.
No campo jurídico, a observação a partir de preceitos do cosmopolitismo acaba por fornecer importantes
elementos para a compreensão dos direitos humanos e da necessidade de combate à impunidade em relação
àqueles que cometem violações globais a tais direitos por meio de genocídios, crimes de guerra e crimes contra a
humanidade. Em relação a esses tipos penais, a internacionalização fomentou o chamado princípio da jurisdição
universal. Segundo tal princípio, qualquer Estado é capaz de julgar crimes ocorridos contra os direitos humanos,
mesmo que não haja vinculação territorial dos fatos ao seu território ou vínculo de nacionalidade entre vítimas
e/ou réus e o Estado julgador. Está-se diante da denominada deslocalização judiciária, em que elementos como
territorialidade e nacionalidade são colocados em xeque por força da necessidade de proteção aos direitos
humanos. A utilização desse princípio, por gerar rupturas com elementos da compreensão moderna de direito, de
jurisdição e de processo, gera questionamentos de ordem prática, no campo da chamada cosmopolitização da
justiça. Diante desse cenário, os problemas de pesquisa que norteiam este trabalho são: Em que medida o
processo de internacionalização dos direitos humanos estabelece um dever de exercício de jurisdição universal
por parte dos Estados? Ao observar os limites do real, quais são os entraves para um efetivo exercício da
jurisdição universal em sua forma absoluta? O objetivo geral da pesquisa foi o de observar o princípio da
jurisdição universal sobre a ótica dicotômica do dever ser cosmopolita, de inspiração nas reflexões filosóficas
kantianas e de autores que utilizam Kant como sua base teórica e do ser da cosmopolitização, conceito
desenvolvido no plano da sociologia por Ulrich Beck e que demonstra que a realidade se afasta das percepções
de um cosmopolitismo filosófico e se aproxima da ideia de que a sociedade se tornou cosmopolita em razão da
transnacionalização de riscos globais. Utilizou-se o método de abordagem dialético e os métodos de
procedimento comparativo e tipológico. Concluiu-se que ancorada filosoficamente em premissas do
cosmopolitismo e, juridicamente nas normas do jus cogens, a jurisdição universal, em sua forma absoluta, é vista
como um dever ser capaz de romper com a impunidade e reparar violações de direitos humanos. No entanto, a
realidade do ser afasta-se das pretensões universalistas e se aproxima do particularismo das práticas, de modo
que a presença de entraves jurídicos e políticos ao exercício da jurisdição universal reduzem de modo drástico o
seu espectro de aplicação. De dever de punir, por meio da aplicação da jurisdição universal absoluta, os Estados
passaram a somente poder punir se houver a assunção de algumas condições, em geral estipuladas pelas
respectivas legislações internas.
ABSTRACT
The process of internationalization of human rights was one of those responsible for making individuals subject
to international law and for motivating the development of the principle of humanity. In this context,
cosmopolitan ideals, inspired by the philosophical reflections of Immanuel Kant, from the middle of the last
century, began to emerge with the intention of providing bases for the interpretation of certain phenomena. In the
legal field, observation based on precepts of cosmopolitanism provides important elements for understanding
human rights and the need to combat impunity for those who commit global violations of such rights through
genocide, war crimes and crimes Against humanity. In relation to these criminal types, internationalization
fostered the so-called principle of universal jurisdiction. According to this principle, any State is capable of
prosecuting crimes against human rights, even if there is no territorial connection of the facts to its territory or
nationality link between victims and / or defendants and the state of judgment. We are faced with the so-called
judicial relocation, in which elements such as territoriality and nationality are put in check because of the need to
protect human rights. The use of this principle, by generating ruptures with elements of modern understanding of
law, jurisdiction and process, raises practical questions in the field of the so-called cosmopolitanization of
justice. In view of this scenario, the research problems that guide this work are: To what extent does the process
of internationalization of human rights establish a duty of States to exercise universal jurisdiction? When looking
at the limits of the real, what are the obstacles to an effective exercise of universal jurisdiction in its absolute
form? The general objective of the research was to observe the principle of universal jurisdiction over the
dichotomous view of being cosmopolitan, of inspiration in Kantian philosophical reflections and of authors who
use Kant as their theoretical basis and of the being of cosmopolitanization, a concept developed in the plane of
Sociology by Ulrich Beck and which demonstrates that reality departs from the perceptions of a philosophical
cosmopolitanism and approaches the idea that society has become cosmopolitan because of the
transnationalization of global risks. The method of dialectical approach and the methods of comparative and
typological procedure were used. It has been concluded that philosophically anchored on the premises of
cosmopolitanism and, legally in the norms of jus cogens, universal jurisdiction, in its absolute form, is seen as a
duty to be able to break with impunity and repair human rights violations. However, the reality of being shies
away from universalist pretensions and approaches the particularism of practices, so that the presence of legal
and political obstacles to the exercise of universal jurisdiction drastically reduces its spectrum of application.
From the duty of punishment, through the application of absolute universal jurisdiction, States have only been
able to punish if there are certain conditions, generally stipulated by their respective domestic laws.
LISTA DE QUADROS
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13
1 INTRODUÇÃO
sobre bases Estatais, mas sob uma ótica nacional de percepção de mundo. Desta maneira, a
ruptura trazida pela aplicação do princípio da jurisdição universal é estrutural no sentido de
questionar sob qual modo um Estado, por meio do seu poder judiciário, poderá investigar e
julgar atos cometidos em outro território, mas com consequências globais.
As estruturas nacionais modernas de percepção das relações políticas, econômicas e
jurídicas são, por conseguinte, no mínimo questionadas diante desse novo fenômeno e de seus
correlatos, como é o caso da mundialização dos juízes nacionais e dos diálogos entre as
diferentes jurisdições em busca de respostas harmônicas e eficazes para solucionar problemas
de espectro global. Esse é um dos pontos de observação deste trabalho, de maneira que os
problemas de pesquisa que norteiam o presente estudo são: Em que medida o processo de
internacionalização dos direitos humanos ocorrido após a Segunda Guerra Mundial estabelece
um dever de exercício de jurisdição universal em matéria de direitos humanos por parte dos
Estados? Ao observar os limites do real, quais são os entraves para um efetivo exercício da
jurisdição universal em sua forma absoluta?
O objetivo geral que norteou a pesquisa foi o de observar o princípio da jurisdição
universal sobre a ótica dicotômica do dever ser cosmopolita, de inspiração nas reflexões
filosóficas kantianas e de demais autores que apresentam reflexões baseadas no
cosmopolitismo de Kant ou próximas dele, e do ser da cosmopolitização, conceito
desenvolvido no plano da sociologia por Ulrich Beck e que demonstra que a realidade se
afasta das percepções de um cosmopolitismo idealista ou filosófico e se aproxima da ideia de
que a sociedade se tornou cosmopolita em razão, não só das transformações em curso na
sociedade mundial, mas, principalmente, pela transnacionalização de riscos globais. Desta
feita, segundo o cosmopolitismo sociológico de Beck, para compreender esse cenário
complexo, é necessário o desprendimento da ótica nacional de observar o mundo e as
instituições e sua suplantação por uma mirada cosmopolita.
Para que o objetivo de observar a jurisdição universal sob o prisma do cosmopolitismo
e da cosmopolitização fosse alcançado, utilizou-se o método de abordagem dialético. Segundo
Marina Marconi e Eva Lakatos, o método dialético, como forma de abordagem, penetra no
mundo dos fenômenos através de sua ação recíproca, da contradição inerente ao fenômeno e
da mudança dialética que ocorre na natureza e na sociedade. A compreensão do referido
método de que o mundo é visto como um conjunto de processos nos quais as coisas não estão
isoladas, mas fazem parte de um todo unido, bem como que a luta de contrários inerente a
esses processos é o conteúdo interno do desenvolvimento, foi crucial para a adoção do método
dialético para abordar a questão.
16
ou nacionais devem ser estabelecidos entre o Estado julgador e os fatos e indivíduos por ele
julgados para que seja dada a mínima efetividade às decisões.
18
direitos humanos, ou seja, direitos do ser humano no aspecto individual e com base em sua
dignidade, mas também direitos da humanidade. O alicerce destes últimos é a solidariedade
intergeracional e desta surge a ideia de responsabilidade pela humanidade, tanto sob o aspecto
moral, quanto jurídico.
Como categoria jurídica, Delmas-Marty (2004a, p. 75) assevera que a humanidade se
constitui ora como vítima de crimes, ora como titular de um patrimônio. No primeiro desses
casos, que é o que interessa de sobremaneira a esse trabalho, pode-se destacar a noção de
crime contra a humanidade1 e de jurisdição universal 2 em matéria de direitos humanos, esta
última caracterizada pela possibilidade de juízes de determinado tribunal nacional possuírem a
competência para julgamento de violações de direitos humanos com escopo de proteção às
vítimas e de tutela da humanidade. No segundo caso, por sua vez, quando se trata de
titularidade, temos a figura do patrimônio comum da humanidade e de bens públicos
mundiais.
Ambos os casos configuram conceitos e categorias ainda em formação no campo
jurídico e que sofrem influência direta das vicissitudes do processo de mundialização e das
novas instituições surgidas na sociedade em rede, visto que a humanidade enquanto categoria
jurídica é algo que inquieta os Estados em suas concepções tradicionais de soberania
(DELMAS-MARTY, 2004a, p.74). Desta feita, tendo como ótica o princípio da humanidade e
o paradigma da solidariedade e da responsabilidade moral e jurídica pela humanidade
(ZARKA, 2015, p. 01), abordar-se-á, no primeiro capítulo deste trabalho as teorias do
cosmopolitismo, tendo em vista que, almeja-se demonstrar que o cosmopolitismo é a base
político-filosófica capaz de justificar a aplicação do princípio da jurisdição universal em
matéria de direitos humanos, que é o objeto de análise de tal trabalho.
Assim, inicialmente procura-se realizar breve contextualização histórica acerca do
cosmopolitismo, abordando primeiramente as reflexões iniciais dos cínicos e estoicos na
Antiguidade, período em que eventual preocupação com a humanidade se justificaria no plano
1
O Estatuto de Roma apresenta em seus artigos a tipificação de delitos como genocídio (artigo 6º), crimes contra
a humanidade (artigo 7º) e crimes de guerra (artigo 8º). A humanidade apresenta-se como vítima nos três tipos
referenciados nesta nota.
2
Utilizar-se-á, neste trabalho as expressões jurisdição universal ou competência universal para tratar do
princípio jurídico que permite que magistrados possam julgar delitos cometidos contra os direitos humanos sem
que haja qualquer vinculação com seu território, ou tendo vinculação mínima, como é o caso, por exemplo, de o
sujeito perpetrador dos atos atentatórios à humanidade se encontrar no território do Estado que o julgará. No
entanto, é pertinente o destaque de que algumas decisões judiciais e certos debates acadêmicos e doutrinários
utilizam expressões como princípio de universalidade, princípio de competência universal ou princípio de
justiça mundial. A título exemplificativo, a Corte Constitucional Federal Alemã utiliza a expressão princípio de
universalidade ou princípio de justiça mundial. Por sua vez, na Espanha fala-se em princípio da competência
universal ou competência universal. (CORDERO, 2008).
20
Uma das categorias jurídicas oriundas das reflexões sobre a humanidade é o princípio
da competência ou jurisdição universal em matéria de direitos humanos. Segundo tal princípio
(RAMOS, 2015, p. 290), o Estado é autorizado a regular e sancionar condutas realizadas fora
de seu território com a finalidade de cumprir seu dever de cooperação internacional e combate
à impunidade3, ou ainda para proteger valores essenciais da comunidade internacional4 como
um todo.
Justamente nesse segundo aspecto que se enquadram as hipóteses de utilização da
jurisdição universal em matéria de defesa dos direitos humanos, conforme se verá no próximo
3
Essa primeira descrição vincula-se ao exercício da jurisdição universal de forma condicionada, uma vez que
para que a competência possa ser efetivada deve haver a satisfação de certas condições, como a presença do
suposto autor no território do Estado. Tais condições são elaboradas pelos Estados no momento da previsão do
princípio em suas legislações internas.
4
Tal descrição se vincula ao modelo de jurisdição universal absoluta, que tem como pressuposto de análise o
caráter internacional da ofensa. Assim, para esse modelo de jurisdição universal, a aceitação de um crime como
de direito internacional implica a possibilidade de exerce a competência para julgá-lo. Para essa concepção,
haveria uma obrigação do Estado de custódia, de processar ou extraditar (aut dedere aut judicare) – exercício de
universalidade delegada – que passaria ao princípio da universalidade absoluta na medida em que se tornaria
dever de todos os Estados exercer a competência, por se tratar de um crime internacional e pelo fato de as
violações aos direitos humanos configurarem verdadeiros ataques ao jus cogens. (JANKOV, 2005).
21
capítulo. Todavia o que faz com que, contrariando elementos clássicos em relação à soberania
nacional, um Estado se veja como competente para julgar violações cometidas por indivíduos,
por outro Estado ou mesmo por empresas transnacionais? Dentre algumas respostas que
podem ser dadas a esta pergunta, uma delas é estrutural para o desenvolvimento deste
capítulo: o sentimento de empatia e de compaixão pelo próximo quando este sofre alguma
violação. Olivier de Frouville (2015) afirma que, individualmente, quando vemos, ouvimos
ou temos notícia de alguma injustiça ou violação de direitos humanos em qualquer lugar que
seja do globo terrestre, grande parte de nós é tomado por sentimentos como empatia,
compaixão, solidariedade e fraternidade pelo próximo.
Isso se justifica pelo fato de a humanidade constituir-se de seres humanos que
individual e coletivamente não só pertencem a determinado Estado ou região com
particularidades e especificidades, mas antes de tudo fazem parte do cosmos, sendo capazes
de sentir compaixão mesmo por aqueles que sequer conhecem (ESPIELL, 1999). Este é o
fundamento do cosmopolitismo, teoria que será apresentada neste capítulo como basilar para a
compreensão dos alicerces teóricos e filosóficos para a existência da competência universal
em questões concernentes à violação de direitos humanos.
O cenário global do século XX não deixa dúvidas de que o princípio da humanidade
(CANÇADO TRINDADE; LEAL, 2016), que tem a pessoa humana e as relações de
solidariedade transnacional e intergeracional como suas bases, deve ser a pedra de toque para
reger não só o direito internacional como as relações entre os Estado, bem como entre Estados
e indivíduos do seu e de outros territórios. A percepção cosmopolita se enquadra na ideia de
que no processo de humanização do direito do pós-Segunda Guerra Mundial, o jus gentium
contemporâneo concebe os Estados e outras formas de organização sócio-política como
entidades que devem antes de qualquer outro compromisso, o respeito à pessoa e a
salvaguarda da humanidade.
Nesse sentido, Yves Charles Zarka (2015) destaca que a responsabilidade pela
humanidade pode ser considerada como suplementar, que direta ou indiretamente deriva de
atos individuais ou coletivos, públicos ou privados. Assim, nós não estamos comprometidos
somente como cidadãos de um Estado determinado em relação a outro homem, mas também
como cidadãos do mundo diante da humanidade inteira, solidários dessa humanidade. Deste
modo, a responsabilidade a que se fala é cosmopolita e, como tal, se reflete tanto na esfera
individual e moral, como coletiva, institucional e jurídica.
Para trabalhar com o que é o cosmopolitismo e como hoje ele é refletido na política e
nas instituições jurídicas da sociedade em rede, é pertinente realizar o resgate histórico da
22
teoria, com vistas a demonstrar que o cosmopolitismo tem sua origem totalmente atrelada aos
indivíduos e sua relação de pertencimento com o mundo, do que qualquer proximidade
político-institucional. Faz-se a ressalva ainda, de que o cosmopolitismo se apresenta como
uma teoria variável (SALDANHA, S/A), abordada por teóricos nos campos da filosofia,
política, sociologia, direito, dentre outros.
Por isso não se almeja esgotar as teorizações sobre o tema, pois como bem referem
Gisele Guimarães Cittadino e Deo Campos Dutra (2013) exaurir dúvidas sobre o verdadeiro
sentido do cosmopolitismo é tarefa enciclopédica que pode levar a uma conclusão vazia.
Assim, muito pelo contrário, abordar-se-á a questão com o intuito de apresentar o
cosmopolitismo jurídico como a base teórica para o desenvolvimento da jurisdição universal
em matéria de direitos humanos no mundo hoje. Para isso, pertinente o resgate do
cosmopolitismo filosófico dos antigos e dos modernos, com destaque para o direito
cosmopolita de Immanuel Kant.
O termo cosmopolitismo 5 teria tido sua origem na antiguidade greco-romana, mais
precisamente com Diógenes. Segundo contam os filósofos e historiadores, Diógenes, ao
responder o questionamento: “De onde você é?” teria dito que era cidadão do cosmos
(MOLES, 2007). Valéry Laurand (2015, p. 59) afirma que o cosmopolitismo dos antigos é
considerado por diversos estudiosos como cosmopolitismo negativo ou cosmopolitismo
antijurídico, vez que recusa todas as instituições existentes e parece fazer do mundo uma
cidade, sem ligação social ou de regulação entre os indivíduos. Ela ainda destaca que para
Diógenes e os cínicos, os impulsos e afetos humanos devem ser livres de toda e qualquer
norma, a fim de que a animalidade em cada um se exprima.
Assim, o cínico é cosmopolita no momento em que adota por padrão o mundo como
cidade, reduzido à sua habitação e tendo liberdade, a qual se definirá pelo fato de ser livre de
qualquer restrição, em especial as fundadas pela sociedade humana. A peculiaridade desse
tipo de cosmopolitismo é a ausência de um sentimento de alteridade e empatia pelo próximo,
no sentido de percebê-lo como alguém igual a si, e a exacerbação do individualismo de se ver
sem qualquer ligação com uma pólis ou com demais homens.
Nesse sentido, Laurand (2015, p. 68) complementa que a prática da ligação
interindividual é fundada na transgressão, atitude fundamental que constitui a maneira de
5
Pertinente o destaque trazido por Hauke Brukhorst de que o cosmopolitismo não é um projeto especificamente
europeu. Segundo ele, o cosmopolitismo havia sido inventado durante a Era Axial, etre 800 e 200 a.C, em vários
lugares diferentes e relativamente independentes um dos outros. Todavia, o termo cosmopolitismo foi
introduzido pela primeira vez no século IV a.C por filósofos gregos e, na sequência, aprimorado e reinterpretado
por romanos, cristão e, posteriormente, por filósofos modernos. (BRUNKHORST, 2011).
23
considerar o outro. A ligação cínica, portanto, não constitui algo que se possa chamar de
sociedade, visto que o relacionamento com os outros não possui um “cimento” como amizade
ou filantropia, é somente aberta a encontrar o outro como evento.
De forma semelhante era o cosmopolitismo dos estóicos. Segundo Brunkhorst (2011),
o cosmopolitismo desempenhava para a filosofia estoica as seguintes funções: a) função
ideológica de transfigurar impérios e seus imperadores; b) função filosófica prática de
conduzir o ser humano ao discernimento de perceber que faz parte de uma ordem mais
abrangente. Todavia, isso não seria possível a todos. Apenas um seleto grupo – o dos sábios –
poderia participar da “cidade universal”; c) função lógica e ontológica de finalizar a
representação teórica da ordem racional da existência. Dentro dessa estrutura, portanto,
novamente ressalta-se que o cosmopolitismo desenvolvido pelos antigos, não teve
importância direta em termos jurídicos e políticos, além de que, o atrelamento à perspectiva
puramente individual e metafísica é ressaltado pelo fato de que a maioria dos cosmopolitas
estava de acordo com a estrutura de dominação de classes no espectro do mundo político
existente.
A vinculação do cosmopolitismo com o direito passa a ser marcante na modernidade,
com os escritos de Immanuel Kant, no século XVIII, nos quais o termo é interpretado para
além de uma questão ética e pessoal e levado à esfera jurídico-política. Em sua obra À Paz
Perpétua, Kant (2008) trabalha com as questões da guerra e da paz, afirmando que ambos são
conceitos com caráter jurídico, de modo que a garantia da paz depende de estruturas jurídicas
institucionais. Para ele, o estado de natureza entre homens não é de paz, mas sim de guerra,
hostilidades e, mesmo que não existam hostilidades, tal estado não apresenta nenhuma
segurança para a paz, visto que não impede que povos ou pessoas tratem-se como inimigos.
Segundo Soraya Nour (2004, p. 38), ao sustentar a tese de um estado de paz através do
direito público, Kant defende a ideia de que o estado de natureza deve ser superado em todos
os seus níveis: não só entre indivíduos, mas também entre Estados, bem como entre Estados e
indivíduos em si. Desta premissa, o direito público então compreende três categorias distintas,
porém intrinsicamente ligadas e interdependentes: a) direito do Estado; b) direito das gentes e
c) direito cosmopolita.
A primeira categoria, a qual corresponde o direito interno estatal, encontra-se no
primeiro artigo definitivo da obra À Paz Perpétua: “A Constituição civil em todo Estado deve
ser republicana” (KANT, 2008). Aqui, a autonomia configura-se como elemento chave, uma
vez que o Estado seria administrado conforme as leis dadas por seu próprio povo. Assim
24
Soraya Nour (2004, p. 41) destaca que neste artigo pode-se visualizar a teoria contratualista
de Kant, que se distingue de outros teóricos da modernidade.
Kant desenvolve uma teoria contratualista que se distingue das de seus antecessores
por não pressupor que a liberdade no estado de natureza seja limitada, mas sim
deixada totalmente em favor da aquisição da liberdade como autonomia: o homem
abandona a “liberdade selvagem e sem lei” para “reencontrar em um estado jurídico
sua liberdade em geral” (NOUR, 2004, p. 41).
6
Para Kant, a paz depende a vontade do povo. Segundo o argumento de interesse próprio, ele destaca que os que
arcam com os encargos de uma guerra devem decidir se o Estado entrará em guerra ou não. Assim, seria natural
que os cidadãos pudessem decidir sobre isso, vez que eles suportariam as maiores aflições de um conflito em
grandes proporções (KANT, 2008).
7
Soraya Nour, nesse sentido afirma que Kant afirmava que um Estado Mundial é não apenas impossível do
ponto de vista político como inaceitável do ponto de vista moral: a diversidade de culturas, que é moralmente
desejável, deve ser preservada. (NOUR, 2004, p. 54).
25
demais. É em uma estrutura federativa que os Estados poderão zelar por sua segurança e pela
tutela de seus direitos não por meio da força, mas por meio da vontade de uma estrutura
complexa.
Por fim, o terceiro artigo definitivo para a paz perpétua (NOUR, 2004, p. 54), traz a
novidade da teoria kantiana. Até Kant, o direito tinha duas dimensões: direito estatal (interno
de cada Estado) e o direito das gentes, refletido pelas relações dos Estados entre si e dos
indivíduos de um Estado com os indivíduos de outro Estado (direito internacional). O terceiro
artigo dispõe sobre uma terceira dimensão do direito, apresentando-a sob o seguinte
enunciado: “O direito cosmopolita deve limitar-se às condições de hospitalidade universal”.
Consoante afirma Ademar Pozzatti Júnior (2014), nessa premissa Kant apresenta a
teoria de um direito cosmopolita, capaz de se configurar como o direito dos cidadãos do
mundo, uma vez que considera cada indivíduo não como membro de seu Estado, mas como
membro, ao lado dos Estados, de uma sociedade cosmopolita. O caráter jurídico do direito
cosmopolita é enfatizado por Kant, ao afirmar que o terceiro artigo definitivo de seu projeto
de paz perpétua não se trata de filantropia, mas sim de direito, o qual só seria limitado pelas
condições de hospitalidade universal.
Quanto a essas condições, Zarka (2015, p. 26) afirma que a hospitalidade universal -
que se configura como conteúdo do direito cosmopolita de Kant - é fundamentada na
circularidade da Terra. Se nosso planeta é uma superfície esférica fechada em si mesmo e não
um horizonte plano ilimitado, pelas próprias condições geográficas, não é possível evitar a
proximidade dos indivíduos. Assim, o direito cosmopolita é o direito dos cidadãos do mundo,
que considera cada um como membro de uma sociedade cosmopolita. Como destaca o próprio
Kant (2008, p. 22), os habitantes da Terra passam a constituir um sistema em que ataques a
um direito em um lugar da Terra é sentido em todos os outros lugares.
Em relação às teorias até então expostas, Louis Lourme (2012, p.31), sob o ponto de
vista filosófico, determina que há uma diferença grande em se afirmar como cidadão do
mundo na antiguidade, na modernidade e nos dias atuais. Ser cosmopolita para os cínicos e
estóicos era interpretar o mundo como uma grande cidade, em que os que usassem
“convenientemente” a razão – ou seja, somente os sábios e deuses – poderiam livremente
circular, configurando uma cidadania cosmopolita nada universalista.
A modernidade por sua vez, com o pensamento kantiano, ampliou essa noção, de
modo que se pode afirmar que o mundo tornou-se progressivamente mais sensível aos
indivíduos, com enfoque também à alteridade (a proposta de hospitalidade universal e direito
de visita corroboram essa afirmação). Além disso, uma das grandes novidades da proposta de
26
um direito cosmopolita, como um terceiro nível do sistema jurídico é a adoção de uma visão
institucional e jurídica em relação ao cosmopolitismo, constituindo a teoria de que nenhum
Estado é inteiramente livre para fazer o que quiser no interior de suas fronteiras. Pelo
contrário, o direito cosmopolita estabelece princípios que restringem não só a soberania
externa, como a soberania interna dos Estados.
Desta feita, o direito cosmopolita kantiano serve como base filosófica para ancorar o
atual exercício de competência universal em matéria de direitos humanos. A mentalidade
alargada dos juízes nacionais que aplicam tal princípio nos dias atuais encontra fundamento
na noção de colocar-se no lugar do outro e na proteção de valores humanos de cariz universal.
Na própria construção de seu imperativo categórico, Kant sobreleva o valor humano sobre
todos os demais e assim determina que se deva agir de tal modo que se tome a humanidade,
tanto na perspectiva de si próprio, como na de qualquer outro, sempre como fim, nunca
meramente como meio.
O projeto de paz perpétua kantiano, nos séculos que o seguiram, não passou de um
ideal filosófico. Nesse sentido inclusive, Julie Allard (2008, p. 70) destaca que os
nacionalismos pungentes dos séculos XIX e XX relegaram o cosmopolitismo ao lugar de
ideologias decadentes. Somente após a Segunda Guerra Mundial, com as experiências de
crimes contra a humanidade e posterior internacionalização dos direitos humanos, ocorre uma
reativação de interpretações cosmopolitas sobre o mundo, principalmente nos campos político
e jurídico. Nesse sentido, a pergunta que passa a nortear esse capítulo a partir de agora é: o
que o cosmopolitismo nos dias atuais?
O resgate histórico realizado, de modo breve, até aqui constitui elemento importante
para a construção das bases filosóficas do cosmopolitismo. Como bem assevera Zarka (2015),
o cosmopolitismo dá à responsabilidade pela humanidade o seu fundamento ontológico e
jurídico e, justamente por essa razão, a reconstrução histórica das bases filosóficas das teorias
cosmopolitas é relevante. Os teóricos dos séculos XX e XXI, no entanto, ampliaram as
reflexões sobre essa questão, de modo que, consoante refere Jânia Saldanha (S/A), hoje os
estudos sobre cosmopolitismo são vastos, apresentam teorias variáveis e com amplitudes e
âmbitos diversos, de modo que se mostra uma tarefa hercúlea tentar mapear todas as teorias
desenvolvidas sobre o tema.
Na contemporaneidade, muito mais do que nutrir uma visão romântica, o
cosmopolitismo busca compreender filosófica, política, jurídica e sociologicamente a
27
mas também outros atores internacionais e sujeitos de direito internacional. Esse tipo de
cosmopolitismo, juntamente com o que Lourme (2012, p. 21) chama de cosmopolitismo
sociológico, induz à reflexão de que o cosmopolitismo deixa de ser apenas um ideal distante e
uma teoria meramente filosófica e passa a fazer parte da realidade mundial, configurando-se
em realidade sócio-política.
Ao fim, a última categoria enunciada por Lourme (2012, p. 22) e que deriva das
demais é a do cosmopolitismo jurídico. Neste a indagação é de que modo o direito é capaz de
retransmitir os ideais cosmopolitas. Assim, a reflexão desse tipo de cosmopolitismo é a de
que, partindo-se de noções morais e políticas, sejam pensadas de que maneira as instituições
existentes podem construir um direito cosmopolita na atualidade.
É justamente esse tipo de cosmopolitismo que serve de base teórica para justificar a
tutela da humanidade por meio do exercício da jurisdição universal em matéria de direitos
humanos. O caminho para a construção do cosmopolitismo jurídico, o qual embasa a justiça
em escala global, passa necessariamente por suas bases filosóficas, já abordadas aqui, bem
como pela construção de uma cidadania mundial, advinda do cosmopolitismo moral, assim
como da perda do protagonismo do Estado na sociedade em rede, reflexões realizadas pelos
cosmopolitismos político e sociológico.
A paisagem política, jurídica e social alterou-se profundamente após a Segunda Guerra
Mundial. Mireille Delmas-Marty (2004b), ao analisar essa questão, sobretudo na seara do
direito afirma que enquanto na tradição romano-germânica deparamo-nos com um espaço
normativo estatal, tempo normativo marcado pela duração e ordem normativa legal, no
contexto mundializado da sociedade em rede, o monopólio estatal é posto em xeque,
conformando um espaço desestatizado, uma configuração do tempo desestabilizada e uma
ordem deslegalizada. No entanto, não são somente as configurações jurídicas que foram
alteradas na mundialização. No campo social, Appiah (2006, p. 14) afirma que nos últimos
séculos, quando todas as comunidades humanas passaram gradualmente a formar uma rede
única de comércio e uma rede global de informações, alcançou-se o ponto em que cada ser
humano pode imaginar a possibilidade de se colocar em contato com qualquer outro em
qualquer continente do planeta.
A compressão temporal e espacial oriunda das facilidades das redes de informações
leva à interconectividade e à noção de que não só é possível influenciar nas vidas de todo
planeta como aprender sobre a vida que se desenvolve em qualquer lugar, de modo que se
pode compreender o mundo como uma tribo global (APPIAH, 2006, p. 15). Nesse sentido,
Appiah (2006, p.18) assevera que dois aspectos se entrelaçam configurando o cosmopolitismo
29
por ele defendido: o primeiro é a ideia de responsabilidade pelo outro, ou seja, de que temos
obrigações que se estendem para além dos laços de parentesco. O segundo, por sua vez,
consiste em valorizar as vidas humanas em particular, estimando as crenças das diferentes
culturas. O cosmopolitismo para Appiah, portanto, aproxima-se do cosmopolitismo cultural,
em que o interesse pelo universal e o respeito pelas diferenças legítimas são analisados.
Ao lado do cosmopolitismo cultural, no aspecto de cosmopolitismo moral, uma das
autoras constantemente referidas é Martha Nussbaum por seu trabalho denominado
Patriotismo e Cosmopolitismo (NUSSBAUM, 1999). Esta, ao propor a tese de uma educação
cosmopolita, desenvolve sua teoria na consolidação do que ela determina por sentimento
cosmopolita. Tendo como base a filosofia dos estoicos e de Kant, ela afirma que cada um de
nós habita em duas comunidades: a local, aquela em que nascemos e a comunidade de
deliberações e aspirações humanas, da qual emanam as obrigações morais com o restante da
humanidade. Ao defender, portanto, sua noção de cidadania mundial, Nussbaum afirma que
ser cosmopolita supõe considerar o igual valor de todos os seres humanos como limitação
reguladora de nossas ações e aspirações políticas.
Assim, o local de nascimento de um indivíduo nada mais é do que um acidente
(NUSSBAUM, 1999) e para a cidadania mundial, a nacionalidade, a etnia, a classe social ou a
raça de alguém nada mais é do que uma característica moralmente irrelevante. Para ela então,
o fato de alguém ter nascido no Brasil ou na Índia, de ser homem ou mulher, índio ou negro
nada mais é do que um acidente, algo que não deve ser considerado moralmente determinante.
Evidentemente, embora acidental, o local de nascimento, as relações de parentesco, o
pertencimento a um grupo com características culturais semelhantes auxiliam no suporte da
ideia de que todo indivíduo tem mais filiações do que a humana. Deste modo, consoante
Nussbaum todo homem estaria rodeado por uma série de círculos concêntricos de lealdade ou
filiação:
como algo superficial, posto que, em parte constituem nossa identidade. Podemos e
devemos dedicar-lhes uma especial atenção na educação. Mas, ao mesmo tempo,
devemos também trabalhar para fazer com que todos os seres humanos formem
parte de nossa comunidade de diálogo e que sejam de nossa incumbência; basear
nossas deliberações políticas nesta comunidade entrelaçada e conferir uma atenção
especial e um respeito especial ao círculo que define nossa humanidade
(NUSSBAUM, 1999, p. 20).
determina que esse sentimento cosmopolita é construído por filósofos e considerado somente
por eles mesmos, dependendo de uma sorte de ascese em relação ao restante dos mortais.
Importante ainda o destaque de que, embora não reconheça a noção de sentimento
cosmopolita de Martha Nussbaum, Frouville, com base na fenomenologia explica a percepção
do outro, que está longe de nós, por meio do exercício da “emoção cosmopolita” ou “paixão
cosmopolita” que teria na solidariedade o seu embasamento. Outro aspecto de crítica ao
pensamento de Nussbaum reside em pontos de sua obra em que subestima o valor moral do
patriotismo.
Richard Falk (1999, p. 67) exemplifica muito bem esse tipo de crítica à Nussbaum. Ele
destaca que, embora seja simpatizante das teorias da autora, sente-se inquieto diante do
implícito apoio dela a uma visão polarizada que culmina em tensões entre o cosmopolitismo e
a consciência nacional. A partir disso, Falk apresenta a teoria de que ao longo do século XX e
nos ainda recentes anos do século XXI, ambos os polos apresentam problemas.
O polo patriótico apresenta como principal instituição o clássico modelo de um Estado
soberano, com fortes traços de autonomia e consciência nacional. Porém, na realidade atual,
essas autonomias bem como a primazia do Estado se encontram gravemente desafiadas ou
suplantadas pela globalização. Os fluxos econômicos internacionais produzem reflexos para
as esferas internas dos Estados, alterando a capacidade de investimento em bem estar social e
políticas públicas.
Assim, ao passo que a globalização favorece cada vez mais ao desaparecimento da
noção de um Estado humano, também impulsiona casa vez mais o desenvolvimento de
Estados Neuróticos, ou seja, cada vez mais as pressões globalizadoras induzem as forças
políticas representativas, como é o caso dos governantes e partidos políticos a adotar políticas
que contradigam a própria identidade ética que os define (FALK, 1999, p. 70). Para Falk
(1999, p. 69), a viabilidade ética do patriotismo depende da estrutura de um Estado humano,
com espaço público eficaz e válida participação cidadã. Como o cenário imposto pela
globalização é outro, adotar de modo estanque uma perspectiva nacionalista para, por
exemplo, alcançar uma realização política ou para enxergar o mundo passa a ser uma espécie
de ilusão.
Do outro lado, no polo cosmopolita, segundo Falk (1999, p. 71) os vetores estoicos e
kantianos apresentam perspectivas de dever ser que, por vezes, não encontram lugar na
realidade do globalismo contemporâneo. Assim, para que o cosmopolitismo não seja
visionário, deve conter uma crítica ao globalismo dos mercados que, ao ser colocado em
prática, minimiza o conteúdo ético de ver o mundo como um todo.
32
Por fim, Falk irá defender a premissa de que em relação às expectativas sobre
educação, aspirações éticas e lealdade política, no cenário atual, é um erro insistir na ótica
polarizada de perceber o mundo. Ele propõe então reestruturações nesses três campos
(educação, aspirações éticas e lealdade política) com vistas a evitar a polarização entre
patriotismo e cosmopolitismo e promover um diálogo, pois as relações globais no século XXI
não deveriam mais aplicar a lógica binária de separação entre partes e todo como aspectos
apartados.
Essa reflexão final se aproxima de alguns aspectos da teoria de Ulrich Beck sobre o
cosmopolitismo, pois, ao analisar o que é o cosmopolitismo (BECK, 2006, p. 30), ele
apresenta categorias importantes no sentido cultural e sociológico, mais precisamente das
relações entre os indivíduos. Assim, o referido autor menciona que o conceito de
cosmopolitismo possui duas dimensões: uma que aponta para um passado remoto (pré-
nacional) e outra que ruma para o futuro (pós-nacional). A primeira delas refere-se às
concepções iniciais dos antigos sobre cosmopolitismo e a segunda demonstra a redescoberta
do termo diante das vicissitudes da mundialização, em que é apresentado como conceito
positivo oposto à ordem do mercado e do Estado nacional.
Na visão de Beck, o cosmopolitismo é apresentado enquanto categoria científico-
social para uma forma especial de relação social com o culturalmente diferente e, na esteira da
proposta de Falk, o conceito de cosmopolitismo se caracteriza pela superação do dualismo
global/local, local/nacional, internacional/nacional, uma vez que o princípio do
cosmopolitismo pode ser encontrado e praticado nas mais diferentes regiões do globo (BECK,
2006, p. 31). Ele apresenta três formas modernas de se relacionar com o culturalmente
diferente, que, apesar de se interagirem entre si, não devem ser confundidas: o universalismo,
o nacionalismo e o cosmopolitismo.
O primeiro termo, universalismo, segue o princípio da superação das diferenças. Beck
afirma que a condição de possibilidade deste princípio é o desenvolvimento de normas
universais capazes de permitir a fundamentação e institucionalização da igualdade. Deste
modo, o princípio universalista substitui a diversidade de normas por uma norma unitária.
Outra forma de se relacionar com o diferente é o nacionalismo, princípio referido por
Beck como a forma típica de relação com o diferente da primeira modernidade 9. Este unifica
9
Segundo o que será apresentado alhures, Ulrich Bech define que a primeira modernidade teria sido composta
por sociedades nacionais marcadas por rápida industrialização e consolidação por meio de várias revoluções
políticas e industriais ao longo dos séculos. A segunda modernidade é a marca dos dias atuais, ou da denominada
modernidade reflexiva em que estruturas da primeira modernidade são questionadas e colocadas em xeque pela
assunção de riscos e problemas de caráter transnacional ou global. (BECK, 2005).
33
(...) o nacionalismo carece de qualquer tipo de norma que lhe permita regular a
relação com o diferente que existe fora dele. (...) Deste modo, o nacionalismo
exacerbado não só apresenta recursos comuns com o universalismo como também
com formas pré modernas de subordinação hierárquica. Daí a propensão a negar a
igualdade de direitos a outras nações, a apresenta-las como bárbaras (...)(BECK,
2006, p.33). (tradução livre).
(...) um conceito que permita uma convivência acima de qualquer fronteira, sem que
isto implique necessariamente sacrificar a particularidade e a diferença no altar da
suposta igualdade (nacional). Deste modo, identidade e integração já não são
simplesmente outras formas de nomear a hegemonia sobre o outro ou os outros, a
hegemonia de maiorias sobre minorias. O cosmopolitismo aceita a diferença, mas
não a converte em algo absoluto, senão que ao mesmo tempo busca vias para fazê-la
universalmente aceitável (BECK, 2006, p. 34). (tradução livre).
raciocínios político e jurídico. Isso porque, ao mesmo tempo em que não retira a importância
dos Estados, também contempla outros atores das relações internacionais e sujeitos de direito
internacional, como é o caso dos próprios indivíduos.
Como bem destaca Beck (2005), o conceito de cosmopolitismo não se confunde com o
de globalização. O primeiro se refere ao processo multidimensional que visa modificar a
natureza histórica dos mundos sociais e a importância dos Estados nesse contexto.
Globalização, por sua vez, consoante já se explicitou alhures, vincula-se com a economia,
tendo, como assevera Valéria Ribas do Nascimento (2008), uma imagem poliédrica ao se
vincular como um fenômeno que engloba uma rede complexa de interações, influências e
fluxos, ligando localidades distintas, de modo que as transformações em escala local
influenciam no espectro global e vice-versa.
Apesar de, como destaca Immanuel Wallerstein, a globalização ser um acontecimento
propriamente moderno (WALLERSTEIN, 2002), é no século XX, sobretudo na década de
1970 que o fenômeno globalizatório promove alterações políticas capazes de criar novas
formas de sociabilidade articuladas e impostas. Novas configurações geopolíticas começam a
ser estabelecidas, de modo que tanto o alcance quanto o ritmo de interações globais crescem
acelerando fluxos e alterando laços entre os Estados.
Alfonso De Julios-Campuzano (2009, p.83) destaca que a intensificação dos fluxos
comerciais em âmbito transnacional, juntamente com a dependência crescente dos Estados
com relação às empresas transnacionais e às forças que operam no mercado global acabam
por gerar consequências diretas à capacidade de controle estatal. A soberania tão enaltecia no
paradigma westfaliano, torna-se porosa em uma rede complexa de interdependências em que,
paulatinamente os Estados tornam-se submissos ao poder econômico transnacional.
Vive-se uma crise multifacetária da arquitetura estatal, que deriva do alto grau de
relações de interdependência entre os Estados, tanto pela redefinição de suas funções, quanto
pela fragilização de sua singularidade e pela fragmentação de sua estrutura diante da
superposição de instituições mundializadas (SALDANHA, S/A). Diante dessa realidade de
intensificação de relações econômicas, surgimento de novos atores no cenário internacional e
nascimento de novas esferas de tensão – hoje não se vivem mais guerras mundiais, mas
situações de terrorismo, violação de direitos humanos e demais riscos em esfera global –
alguns teóricos estabelecem críticas às propostas cosmopolitas, afirmando que não passam de
mero ideal filosófico.
Um dos críticos de maior envergadura é Danilo Zolo. Seguindo o viés do realismo das
relações internacionais, Zolo (1997) se mostra cético em relação ao alcance da paz por meio
36
importante noção para o que ele denominará de mirada cosmopolita: o compartilhamento dos
riscos no mundo atual. Violações de direitos humanos, terrorismo, degradações ambientais,
risco oriundos da tecnocracia, dentre outros eventos são casos em que as respostas não são
atinentes a somente um ou alguns Estados, mas que afetam ao globo terrestre como um todo.
Desta forma, a despeito da crítica da corrente realista das relações internacionais, aqui
exemplificada através do pensamento de Danilo Zolo, Beck afirma que o cosmopolitismo hoje
não mais é um dever ser ou um idealismo utópico (2006). Pelo contrário é uma realidade
latente no mundo mundializado, pois, dadas as condições do mundo globalizado, o
cosmopolitismo agora é menos uma questão de ideal filosófico do que uma sociologia em
transformação.
A partir dessa premissa Beck apresenta a definição de mirada cosmopolita. Esta é
oriunda do fato de que a realidade se tornou cosmopolita em razão não só das transformações
em curso na sociedade mundial, mas em função da transnacionalização de riscos globais,
como é o caso do terrorismo, violações de direitos humanos ou de direitos ambientais. Para
compreender essa complexidade é preciso desprender-se da ótica nacional de observar o
mundo e as instituições, o que Beck vai denominar de superação do nacionalismo
metodológico. Isso significa romper com paradigmas clássicos de observação do mundo,
saindo da territorialmente limitada ótica nacional para a mirada cosmopolita.
Nesse novo paradigma, três são as etapas para o desenvolvimento de uma ótica
cosmopolita (MACEDO, 2011): a primeira configura-se pela distinção conceitual do
cosmopolitismo em relação a outros fenômenos que com ele se relacionam ou com ele podem
se confundir; a segunda etapa apresenta as contradições entre o nacionalismo metodológico e
a cosmopolitização real e, por fim, a terceira etapa propõe uma nova gramática de
investigação e compreensão de mundo tendo por base uma ciência social cosmopolita.
Na primeira etapa mencionada, Beck caracteriza três tipos diferentes de
cosmopolitismo (BECK, 2006): o primeiro deles seria o cosmopolitismo filosófico, tomado
como ideal; o segundo seria o cosmopolitismo político, que tem como referência os atores
sociais e as tarefas de uma concepção da política centrada no Estado. Por fim, Beck traz
reflexões profundas sobre o que ele denomina de cosmopolitismo sociológico ou
metodológico. Neste, o instrumental teórico e metodológico das ciências sociais se dirige
contra o nacionalismo implícito de seu sistema conceitual, visto que outro marco de
observação, que não o nacional, é necessário para compreender as vicissitudes da
mundialização.
39
“O Estado é grande demais para questões pequenas e pequeno demais para questões
grandes”. Assim define Luigi Ferrajoli (2007, p. X) a atmosfera do cenário político-jurídico
internacional atual, em que a crise do Estado (STRECK; BOLZAN DE MORAIS, 2012, p.
136) coloca em xeque questões herdadas do racionalismo moderno. Jacques Chevallier (2009)
afirma que o fim do século XX e o início do século XXI carregam consigo a paradoxal
característica da antimodernidade e da hipermodernidade, ao pretenderem romper, em certos
pontos, com elementos modernos ao passo que exacerbam outras condições herdadas de tal
construção social, política e ideológica.
O Estado, a despeito da globalização, continua a ser um importante ator das relações
internacionais, porém, princípios e institutos jurídicos criados e aperfeiçoados ao longo das
últimas décadas contêm em si elementos de antimodernidade no momento em que abalam, ou
no mínimo questionam, alguns pilares de sustentação modernos do Estado, como é o caso do
45
povo, do território e da soberania. Segundo Lênio Streck e José Luiz Bolzan de Morais (2012,
p. 163), muito embora particularidades e terminologias conceituais acerca do Estado tenham
diferido ao longo da história (Estado Absoluto, Estado Liberal, Estado de Bem Estar Social,
Estado Democrático de Direito), tradicionalmente os elementos referidos acima têm sido
apontados como constitutivos dessa instituição.
O que se pretende apresentar inicialmente neste subcapítulo é o fato de que esses
elementos passam a ser questionados e redimensionados não só diante da mundialização
como um todo, mas principalmente frente a um dos fenômenos mais relevantes das últimas
décadas: o processo de internacionalização dos direitos humanos e de tutela da humanidade.
Nesse sentido, como destaca Gustavo Oliveira Vieira (2015, p. 101) ainda que a
mundialização tenha uma evidente face predatória e, que de um lado, se desenvolva como um
processo hegemônico do capitalismo transnacionalizado, a reação anti-hegemônica surge
guiada pela bandeira dos direitos humanos, com a presença simultânea tanto de movimentos
sociais e lutas populares pela defesa de direitos individuais e coletivos, como através da
normatização e institucionalização de direitos, no sentido de estabelecer um mínimo ético
universal através da garantia legal de direitos básicos a todos os seres humanos do planeta.
Assim, um dos primeiros elementos que se vê influenciado pelo século XX e XXI é o
povo, elemento material subjetivo que constitui um Estado. Segundo Lênio Streck e José Luiz
Bolzan (2012, p.165), o povo realça o aspecto jurídico do grupo vinculado a uma determinada
ordem normativa, sendo um conceito jurídico-constitucional. Nesse sentido, é possível
afirmar que ele difere tanto de população, como de cidadão. Este último, conforme sua
concepção moderna, é o nacional de determinado Estado dotado de direitos políticos, e aquela
diz respeito a todos os que habitam o território, ou seja, engloba todas as pessoas, inclusive as
que se encontram temporariamente em determinado Estado.
Diante das atrocidades cometidas durante as duas grandes guerras mundiais, restou
claro que o nacionalismo extremado pode se configurar como um grande risco. Stefan Zweig
(2014) em sua biografia no qual descreve a Europa do entre guerras, destaca que em um curto
período de tempo, uma geração presenciou catástrofes inimagináveis oriundas de uma das
piores “pestes”, o nacionalismo. O sentimento que brota no seio de um povo, de pertença a
determinado local e de partilhamento de referências, mais do que com Estado se relaciona
com o conceito de nação, a partir do momento em que identidades referentes à origem,
interesses e credos se unem na forma de um elemento psicossocioantropológico em
determinado Estado.
46
Sob a égide dessa última teoria, se o Estado é soberano internamente, ele o é por
necessidade e não poderão existir fontes normativas superiores a ele. A soberania externa dos
Estados, por sua vez, estabelece na comunidade internacional, o estado natural de
desregramento, superado internamente pelo contrato social (FERRAJOLI, 2007, p.20). Deste
modo, o Estado moderno enfrenta o paradoxo de internamente a soberania ser fator de fim do
estado natural de guerra de todos contra todos e, externamente em tal momento haver a
fundação de uma comunidade de Estados que, justamente em razão da soberania, justificavam
as guerras externas.
É nesse sentido que Immanuel Kant afirma que no plano externo, os Estados modernos
encontram-se em situação de guerra de todos contra todos, sendo necessário estabelecer a paz
por três vias sucessivas: o estabelecimento da república em âmbito interno, a fundação de uma
federação de Estados livres no plano externo e, ainda nesse plano, a formação de um direito
cosmopolita, objetivando estabelecer princípios e regras acerca das relações entre indivíduos e
Estados.
Como leciona Ferrajoli (2007, p.27), alguns dos valores modernos em relação à
soberania já começaram a ser questionados e abalados durante a Revolução Francesa, no
século XVIII. No plano interno, há a progressiva limitação da soberania por meio da
configuração de um direito estatal. O governante deve se submeter ao princípio da legalidade,
à incipiente normatização dos direitos fundamentais e à suposta vontade da maioria, de modo
que a relação entre Estados e cidadãos já não é mais uma relação entre soberano e súditos,
mas entre dois sujeitos, ambos de soberania limitada.
Em tal período, nos ordenamentos jurídicos internos, os antigos direitos naturais
passaram a ser consagrados e positivados como universais. Essa universalidade é parcial e
corrompida pelo hábito de reconhecer o Estado como fonte única de direito, de modo que os
direitos do homem se achatam diante da normativização dos direitos do cidadão. Estes
últimos, internamente configuram bases de igualdade entre os indivíduos nacionais e
externamente tecem privilégios para uns, sendo ao mesmo tempo fonte de discriminação em
relação a outros.
Nesse ponto, a base do direito cosmopolita de Kant, a hospitalidade universal, tem
como objetivo fazer frente justamente a essa fonte de discriminação que pode ocorrer em
relação a indivíduos que não são cidadãos de determinado Estado. Isso porque, a
hospitalidade descrita por ele se refere ao direito de visita do estrangeiro ao território de
determinado país e, no exercício de tal visita, o estrangeiro tem direito à hospitalidade estatal,
a ser acolhido e bem tratado pelo período em que se encontrar no território.
50
Universal dos Direitos do Homem (DUDH) de 1948, que transformam, ao menos no plano
normativo, a ordem jurídica mundial.
A Declaração auxiliou na elaboração de uma ética comum ao consagrar um conjunto
de valores, ditos universais, consensualmente estabelecidos e que devem ser respeitados pelos
Estados. Como refere Gustavo Oliveira Vieira (2015), os direitos humanos estabelecem
vínculos entre direito e moral criando espaços para a alteridade e a sociabilidade mundiais.
Esse é o elemento inicial para a criação de um Direito Internacional dos Direitos
Humanos, que trata do direito de todos, independentemente de nacionalidade, credo, raça ou
opção política e que obriga os Estados a assumir deveres e responsabilidades em prol dos
indivíduos, ampliando e alterando a lógica da reciprocidade dos tratados internacionais
tradicionais (RAMOS, 2015, p. 29). Nesse cenário, como destaca Ferrajoli (2007, p. 40), a
soberania deixa de ser uma liberdade absoluta e selvagem e passa a se subordinar
juridicamente a duas normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos
humanos, cujos valores passam a transcender a esfera de um só Estado, implicando, ao menos
formalmente, em um universalismo inoculado pela adoção, por parte dos entes estatais de um
mesmo texto de direitos humanos, imposto pela ratificação de tratados (RAMOS, 2015, p.35).
A disseminação de normas cosmopolitas de direitos humanos acompanha e influencia
as transformações da soberania no século XX. O nascimento do sistema onusiano rompe com
alguns paradigmas do direito internacional moderno, sobretudo ao alterar o eixo central de
uma liberdade plena para os Estados, que eram os únicos sujeitos de direito internacional,
para a humanização do direito, vislumbrada principalmente pela inclusão do indivíduo no rol
dos sujeitos de direito internacional e pela criação de órgãos políticos e jurisdicionais
internacionais de supervisão e controle dos Estados para que estes não violem direitos dos
indivíduos.
Desta forma, como leciona Ferrajoli (2007, p.40) forma-se um verdadeiro
ordenamento jurídico supra estatal, com a inclusão das normas protetivas dos direitos
humanos na esfera de jus cogens, ou seja, de normas imperativas sobre todas as outras e com
mudança de estrutura do cenário jurídico mundial, vez que se passa de um pacto associativo
de Estados para um pacto de sujeição às regras de Direito Internacional dos Direitos
Humanos. Nesse cenário, uma vez que as referidas transformações estão alterando a soberania
estatal, é importante distinguir entre soberania do estado e soberania popular.
Seyla Benhabib (2006, p.26), ao propor e realizar essa distinção, afirma que a
soberania, partindo-se do referencial de pensamento moderno ocidental pode ser narrada
como uma negociação constante entre esses dois polos, o estatal e o popular. Assim, no
52
primeiro polo, soberania significa a capacidade de um Estado agir como alicerce definitivo e
indivisível da autoridade com a jurisdição de exercer o monopólio sobre os meios de
violência, juntamente como a gestão da justiça, da política e da economia.
O segundo polo, desenvolvido como outrora mencionado, a partir da Revolução
Francesa, denota a ideia do povo como sujeito e objeto do direito, envolvendo instituições
representativas, separação de poderes e garantia do igual valor de liberdade de cada um. As
normas cosmopolitas de direitos humanos, como ressalta Benhabib (2006, p.26) alteram a
soberania na medida em que reforçam o projeto de soberania popular e forçam a abertura da
soberania estatal, principalmente diante de demandas que impulsionam a ruptura com a
territorialidade, ou seja, o desacoplamento entre jurisdição e território.
Neste novo paradigma de soberania, a premissa é de que a solidariedade impere
enquanto valor moral e enquanto princípio jurídico orientador dos atos dos Estados. Essa é a
premissa de Alain Supiot (2015a, p. 25), que vislumbra entre os conceitos polissêmicos de
solidariedade, a necessidade de apuração, nos dias atuais, da noção de solidariedade como um
princípio jurídico.
Segundo ele, diante de uma globalização percebida como processo inexorável de
harmonização pelo cálculo econômico, a solidariedade é necessária para fazer frente a
problemas comuns aos mais diversos países, como é o caso dos riscos ecológicos e de
questões sociais e monetárias engendradas pela globalização. Ela, deste modo, será uma
maneira de compreender a antiga premissa kantiana de que a Terra é uma superfície esférica
em que inevitavelmente todos estão ligados. Assim, como assevera Supiot (2015a, p.32), a
solidariedade é uma maneira pela qual os homens são capazes de se sentir em conjunto,
possibilitando a construção de alguns valores universais.
A despeito das falhas e dos riscos dos valores universais (DELMAS-MARTY, 2004a),
é inegável que a universalização dos direitos humanos está para a mundialização como uma
plataforma jurídica que veicula reivindicações e obrigações de ordem ética e moral em favor
de todas as pessoas e em todos os lugares, mas especialmente os vulneráveis e
hipossuficientes. Como destaca Gustavo de Oliveira Vieira (2015), os direitos humanos são
capazes de constituir e representar o vetor ético da mundialização, promovendo um grande
impacto nos ordenamentos jurídicos internos dos Estados e a própria abertura dos mesmos à
ordem jurídica internacional.
Desde a segunda metade do século XX até os dias atuais não só as normas
internacionais vinculadas ao conteúdo material dos direitos humanos foram ampliadas, como
se deu o estabelecimento de tribunais, cortes e demais órgãos consultivos e contenciosos no
53
Desta feita, Habermas (2001, p.152) afirma que essa crítica estaria dividida em crítica
da razão e crítica do poder. A primeira delas traz a premissa de que os direitos humanos
seriam uma expressão da razão especificamente ocidental, de modo que sob as vestes de
universalidade admitiriam exclusões realizadas em seu nome. Por outro lado, a versão da
crítica do poder desmente a universalidade tendo por base a precedência das particularidades
ocultadas, de modo que atrás das reivindicações jurídicas e normativas universais estariam
escondidas vontades de imposição de determinada coletividade.
A despeito das críticas, a visão de Habermas (2001, p. 153) é a de que mesmo os
pensadores dessas duas visões por ele apresentadas não rejeitam de modo algum os direitos
humanos como um todo. Isso porque hoje, em razão da mundialização e das relações de
transnacionalidade e interdependência, outras culturas e outras religiões estão ligadas aos
desafios do mundo contemporâneo. Assim, o modelo hegemônico de direitos humanos se
deve menos ao fundo cultural específico da civilização ocidental do que à tentativa de se
responder aos desafios da mundialização e da globalização.
Embora contrário à postura de Habermas, Boaventura de Sousa Santos (2009) defende
a superação da dicotomia entre universalismo e relativismo dos direitos humanos em prol de
uma ideia multicultural desses direitos. Em sendo um crítico do modelo eurocêntrico,
Boaventura afirma que os direitos humanos não são universais em sua aplicação, havendo em
sua construção no pós Segunda Guerra Mundial, interesses ideológicos que estiveram a
serviço do modelo econômico capitalista.
Todavia, ao mesmo tempo em que certa dualidade entre políticas de invisibilidade e
políticas de supervisibilidade se estabeleciam, de modo contra hegemônico, movimentos
sociais, organizações não governamentais, dentre outros coletivos, assumiram uma luta
emancipatória e popular de direitos humanos, objetivando que não só a conceituação, como
também a prática envolvendo essa temática deixe de ser um localismo globalizado e passe a
ser um projeto cosmopolita.
A base do cosmopolitismo emancipatório e contra hegemônico de Boaventura de
Sousa Santos, de implantação de valores de baixo para cima e não de cima para baixo é a
hermenêutica diatópica. Com base nesta última, o elemento forte de cada cultura, seu topoi10,
10
Pode-se compreender topois como lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura, que
funcionam como premissas de argumentação que, por sua evidência, não se discutem e tornam possíveis a
produção e a troca de argumentos. Compreender determinada cultura a partir dos topois de outra cultura é tarefa
muito difícil, para a qual Boaventura de Sousa Santos propõe uma hermenêutica diatópica. Esta se baseia na
ideia de que os topois de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria
cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível a partir do interior dessa cultura, uma vez que a
aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, atingir
55
a completude – objetivo inatingível – mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude
mútua, por meio de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, em outra
(SANTOS, 2009).
56
Sob essa mesma ótica, Narciso Xavier Leandro Baez e Vicente Barreto (2009)
afirmam que a mera inserção legal da dignidade da pessoa humana – que é o elemento cerne
dos direitos humanos – em um sistema positivo de direitos e, dissociada de valores morais
seria um passo importante, mas ainda não suficiente para evitar eventuais violações desses
direitos. Considerando que os direitos humanos possuem cariz moral e jurídico – no sentido
de esta dimensão reconhecê-los e transformá-los em normas a fim de obter efetividade -, esses
direitos possuem uma dimensão básica e uma dimensão cultural.
Na primeira, de modo semelhante às premissas do direito natural, eles seriam inatos
pautados em valores morais e conferidos aos indivíduos pelo simples fato de serem humanos.
Nessa dimensão básica estaria a dignidade da pessoa humana, no momento em que esta
constitui uma qualidade universal intrínseca, irrenunciável e inalienável, inerente a todos os
seres humanos independentemente de especificidades culturais.
A fim de identificar quais são os valores básicos e inderrogáveis a todos os seres
humanos, a construção de elementos minimamente comuns somente será dada a partir do
diálogo e do cruzamento das diferentes culturas. Isso seria capaz de facilitar a consolidação de
uma cultura cosmopolita baseada em identificação, em que prevaleça a dignidade da pessoa
humana acima dos relativismos.
A dimensão cultural, por sua vez, envolve elementos externos ao ser humano,
oriundos da diferença de ambientes naturais e dos múltiplos sistemas de crenças. No entanto,
mesmo assim, todas as pessoas, ainda que inseridas em especificidades culturais distintas,
ainda mantém atributos comuns. É por essa lógica que segue a premissa kantiana de que
violações de direitos humanos cometidas em um ponto do planeta repercutirão sobre todo ele.
Assim, o cerne da chamada universalização estaria não em impor determinada cultura
sobre outras, mas em buscar uma raiz comum, um conjunto de valores mínimos capazes de
dialogar com diferentes culturas, garantindo a preservação e o respeito da vida humana em
qualquer lugar. Essa, portanto, é a ótica do direito cosmopolita em Kant, pois diante da
dicotomia entre práticas culturais e direitos humanos, a base do cosmopolitismo é a busca de
critérios lógico-racionais que sejam comuns a todas as culturas e, nesse aspecto estão os
direitos humanos, com a sua dimensão mínima de dignidade da pessoa humana como núcleo
moral e jurídico do direito cosmopolita.
O universalismo constante no processo de internacionalização dos direitos humanos é
a base para o abalo do terceiro pilar constitutivo do Estado: o território. Isso porque,
juntamente com a internacionalização dos direitos humanos, o pós Segunda Guerra Mundial,
57
motivou a ideia de formação de um direito penal internacional, alicerçado sobre as bases dos
direitos humanos em perspectiva universal.
A construção do direito penal moderno é feita tendo como uma de suas principais
bases o território. Grande parte das leis penais ou processuais penais levam em conta ou a
nacionalidade do autor ou da vítima do fato típico delituoso (autor ou vítima devem ser
nacionais do Estado que julgará a infração penal) ou o local em que se sucedeu o fato
(princípio da territorialidade). Há poucas brechas para os casos de extraterritorialidade, ou
seja, situações em que a lei penal de determinado país é aplicada para casos que ocorrem fora
de seu território. Porém, mesmo nessas hipóteses, a presença das nacionalidades da vítima ou
do réu é preponderante para determinar a competência de julgamento que possui um Estado.
Esse pilar é abalado pelo que Antoine Garapon (2002, p.21) denomina de uma ideia de
justiça universal desenvolvida na janela que se abre entre a queda do muro de Berlim em
1989, na Alemanha e o desabamento das Torres Gêmeas em 2002, nos Estados Unidos. Sem
ter a intenção de contrariar Garapon, é possível afirmar que para o ideal de uma justiça
universal imbuída na ideia de formação de um direito penal internacional e fundamentado nos
direitos humanos, essa janela é um pouco mais abrangente, abarcando, principalmente, as
primeiras reações, ao final da Segunda Guerra Mundial, para punir os crimes cometidos no
lapso entre 1939 e 1945.
Uma dessas reações de punição dos autores dos crimes cometidos durante a guerra foi
a criação de tribunais ad hoc, como foi o caso do Tribunal de Nuremberg. Embora Antoine
Garapon destaque que a ideia de julgar autores de crimes de guerra e de graves atentados
cometidos contra os direitos dos indivíduos seja muito antiga, tendo ressurgido, durante a
Primeira Guerra Mundial, para a análise deste trabalho, é importante a aferição dessa proposta
após 1945.
Isso se justifica pelo fato de que, consoante se explanou antes, é no início da segunda
metade do século passado que o processo de internacionalização dos direitos humanos se
intensifica e começou a se consolidar, tecendo as bases para a ideia de justiça penal
internacional que temos hoje. Uma passagem de Antoine Garapon ilustra muito bem essa
questão:
O projeto de uma justiça penal internacional vem na sequencia das diferentes utopias
que tentaram conter a violência da guerra (...). Se o pensamento antigo e medieval
glorifica o combate, o racionalismo clássico tenta circunscrever os contornos da
guerra justa, o século das Luzes constrói projetos de paz, o Pacto de Briand-Kellog
proíbe a guerra e o século XX emprega toda sua fé na organização de uma
comunidade internacional que convoca seus votos ... A justiça penal internacional é
58
11
Na mundialização há uma concorrência de normatividade entre regras jurídicas clássicas e outras que, para
evitar confusões conceituais, podem ser denominadas de “normas” técnicas e de gestão, produzidas por entes
privados e que regulam um vasto território, ainda pouco conhecido, denominado de O.N.N.I – objetos
normativos não identificados. (FRYDMAN, 2014, p. 9).
62
pelas tentativas de reconhecimento de valores universais e pelo império do direito ao lado das
relações diplomáticas no plano internacional, no chamado rule of law.
O cenário de caos político e jurídico da mundialização faz com que, embora
conflitantes, esses dois modelos ainda coexistam no plano internacional e por isso, Delmas-
Marty (2011) afirma que a eficácia da justiça penal internacional depende em grande parte da
cooperação dos Estados. Isso porque, em um primeiro aspecto, em se tratando da jurisdição
internacional em matéria penal, o Tribunal Penal Internacional para exercer suas atividades
necessita da ratificação e da adesão dos Estados ao Tratado de Roma.
Em um segundo aspecto, em se tratando da competência universal para investigar e
punir delitos com cariz universal, como é o caso do genocídio, do crime contra a humanidade
e do crime de guerra, é necessário que os Estados reconheçam o princípio da competência
universal e adequem seus mecanismos processuais internos para que nesses casos, suas
jurisdições funcionem como um local de aplicação de regras universais de direitos humanos.
Nesse contexto, segundo Delmas-Marty (2011, p.21) o papel do direito encontra-se no
processo de definição, por meio dos interditos fundadores e dos direitos fundamentais ou
humanos, de valores que se não forem uniformes e universais, são no mínimo comuns entre as
mais diferentes culturas. É no campo dos interditos fundadores que se encontra o tipo penal
do crime contra a humanidade (ou lesa-humanidade) uma vez que se consubstancia na
proteção da humanidade como vítima e na construção desta como uma categoria jurídica.
É por isso que a competência universal absoluta, que tem como base o julgamento de
delitos contra a humanidade pertencentes ao jus cogens, é capaz de abalar as estruturas
modernas do Estado, como povo, soberania e território. Isso porque a nacionalidade de um
povo passa a ser elemento secundário quando se trata da proteção da humanidade; a soberania
dos Estados passa a contar com duplo limite: de ordem interna advindo do processo de
internacionalização dos direitos humanos e de ordem externa em razão da positivação dos
direitos humanos em nível internacional; e o território passa a não ser mais o elemento chave
para a instauração de competência por delitos cometidos contra a humanidade diante da
premissa de que a impunidade deve ser combatida. O direito, portanto se reflete no fato de
estabelecer fundamentos normativos e jurídicos para legitimar a tutela da humanidade contra
violações.
O primeiro desses elementos, em caráter geral, é a Carta Internacional dos Direitos
Humanos, que se trata, na realidade da união de três elementos normativos: a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, de 1948; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de
64
1966. Esse bloco normativo demonstra a indivisibilidade dos direitos humanos e seu alcance
universal (RAMOS, 2015, p. 157), características reafirmadas em 1993, na Conferência
Mundial de Direitos Humanos de Viena, que reconheceu o universalismo, a indivisibilidade e
a interdependência dos direitos protegidos como corolários dos direitos humanos.
No sistema global de proteção aos direitos do homem, desde o fim da Segunda Guerra
Mundial e, sobretudo após a criação dos Pactos internacionais referidos, ao lado dos tratados
gerais sobre a temática, o princípio da especialidade é visto no momento em que grupos
considerados vulneráveis historicamente, como é o caso das mulheres, dos negros e das
crianças, passaram a contar com convenções e tratados que, a partir de valores universais em
direitos humanos, traziam pontos específicos de defesa desses grupos.
O desenvolvimento normativo da justiça penal internacional se dá nesse sistema global
de proteção dos direitos humanos e foi se desenvolvendo através da ratificação de diversas
convenções, com a inclusão paulatina nas décadas de 1970 e 1980 do princípio da jurisdição
universal em vários tratados (JIMÉNEZ; CÉSPEDES, 2015). Diversas condutas passam a ser
tipificadas tendo como ponto em comum o fato de que a ação ou omissão cometidas contra os
direitos humanos agridem a humanidade como um todo, ensejando responsabilidade penal aos
que o cometem, sejam indivíduos, empresas ou Estados.
Para Aitor Martínez Jiménez e Manuel Miguel Vergara Céspedes (2015), os
fundamentos jurídicos que habilitam os Estados a se valer de seus tribunais internos para
perseguir atos considerados crimes internacionais violadores de direitos humanos se localizam
no direito internacional, tanto convencional como consuetudinário, formando parte do núcleo
duro do direito imperativo, através do jus cogens12. Segundo eles, três cenários se destacam: o
dos crimes cuja persecução universal só está baseada em uma fonte não escrita, os crimes que
são reconhecidos tanto em fontes não escritas como em fontes consuetudinárias e os crimes
que são resultado de fontes convencionais geradoras de mecanismos, direitos e obrigações não
presentes no direito consuetudinário com anterioridade.
No que se refere à legitimação própria de cada crime, a competência universal, é
reconhecida, através de diversas fontes, no direito e na prática internacional. Jiménez e
Céspedes (2015), nesse sentido, afirmaram que o princípio da competência universal, ao ser
parte do direito internacional geral, motivou o fato de que alguns tratados internacionais que
12
A Corte Internacional de Justiça já determinou que, em várias ocasiões, as obrigações erga omnes que derivam
do jus cogens como aquelas que todos os Estados possuem interesse de proteção e pelas quais se veem obrigados
(CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 1970; 1997).
65
interamericano)
Desaparecimento forçado Convenção Interamericana sobre
Desaparecimento Forçado de Pessoas,
de 1994 (art. 4º e 5º).
14
Importante ressaltar que, para alguns autores, o dever de aut dedere, aut iudicare (entregar ou processar) não
se confunde com o Princípio da Jurisdição Universal. Frederico Mendes e Ana Carolina Rodrigues destacam que
ambos os termos são de caráter transnacional e tomam como ponto de partida a noção de que a justiça é melhor
servida assegurando que os autores de crimes graves sejam levados a julgamento, se não em um fórum, então,
em outro. Uma diferença importante é que o leque de crimes abrangidos por princípios da Jurisdição Universal
contemporâneos é consideravelmente mais estreito do que coberto por várias convenções aut dedere. Nesse
ponto, segundo os autores, fica evidente onde há maior abismo: a cláusula extraditar ou perseguir é normalmente
estabelecida via tratado ou por meio de direito costumeiro internacional; a Juridição Universal é tida como
unilateral, incondicionada a recusa de extradição até mesmo quando previsto em tratado. Ressalta-se, contudo,
que neste trabalho será adotada a concepção de aproximar o dever de aut dedere, aut iudicare à jurisdição
universal em sua forma condicionada, de modo que, caso algum suspeito da prática de crime global contra os
direitos humanos se encontre no território do Estado pretensamente julgador, este será obrigado ou a julgá-lo,
exercendo a jurisdição universal na sua forma condicionada, ou à extraditá-lo. (MENDES; RODRIGUES, 2016).
69
tribunais a situação, sem importar o vínculo de nacionalidade entre o autor dos fatos e o
Estado julgador.
O princípio da jurisdição universal em sua forma absoluta também foi reconhecido no
próprio Estatuto de Roma, que disciplina sobre algumas espécies de delitos internacionais
contra a humanidade e sobre os procedimentos perante o Tribunal Penal Internacional. No
preâmbulo do texto normativo, há a disposição de que todos os povos estão unidos por laços
comuns e que suas culturas foram construídas sobre uma herança partilhada, formando um
mosaico que deve ser protegido para que não se rompa. Assim, os crimes de maior gravidade
que afetam a comunidade internacional em seu conjunto não devem ficar impunes, devendo
sua repressão ser assegurada pela adoção de medidas em nível nacional e por meio de
cooperação internacional, sendo dever de todo Estado exercer sua jurisdição penal contra os
responsáveis por crimes internacionais.
Nesse sentido, estudiosos da temática uniram-se no I Congresso Internacional de
Jurisdição Universal (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN , 2015b),
ocorrido em setembro de 2015 e elaboraram um documento denominado “Princípios de
Madrid-Buenos Aires de Jurisdição Universal”. Esse documento apresenta três principais
objetivos: a) reafirmar os esforços doutrinários realizados até então sobre a temática do direito
penal internacional e da jurisdição universal; b) promover a codificação dos elementos que
gozam de consenso e, c) denunciar novas fontes de impunidade e meios de combatê-la com a
aspiração de que a opinio iuris consolide a Jurisdição Universal como um instrumento eficaz
para a erradicação da impunidade e proteção das vítimas.
O texto do documento afirma ainda que pretende atualizar os chamados “Princípios de
Princeton” e princípios de “Cairo-Arusha15”. Ambos os documentos, idealizados em 2001,
foram balizadores importantes para os casos em que já havia sido aplicado o princípio da
jurisdição universal, bem como para os casos vindouros, uma vez que definia fundamentos da
competência universal, bem como aspectos processuais que causavam dúvidas sobre o
exercício deste princípio. Embora ainda vigentes, o passar dos anos trouxe avanços em
relação à jurisdição universal, de modo que os Princípios de Madrid-Buenos Aires cumprem
um papel importante ao apresentar atualizações pertinentes.
15
Os princípios de Cairo-Arusha foram criados com o intuito de oferecer diretrizes aos países africanos em
relação à justiça penal internacional e à jurisdição universal. O documento que contém essas diretrizes, na
íntegra encontra-se em:
http://www.afla.nl/IManager/Download/474/21493/4321/366498/EN/4321_366498_pSBb_The_Cairo-
_Arusha_Principles_on_Universal_Jurisdiction_in_Respect_of_Gross_Human_Rights_Offences.pdf. Acesso em
29 ago 2016.
70
16
Princípio 3 – Crimes econômicos e ambientais de persecução universal. A jurisdição universal também será
aplicável aos crimes econômicos e contra o meio ambiente que por sua extensão e escala afetam gravemente os
direitos humanos de grupos ou coletividades, ou suponham a destruição irreversível de ecossistemas.
(FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2015a).
17
Os Princípios de Madrid-Buenos Aires determinam que a jurisdição universal será aplicável aos crimes de
direito internacional, tais como: genocídio, crimes de lesa humanidade, crimes de guerra, pirataria, escravidão,
desaparecimento forçado, tortura, tráfico de seres humanos, execuções extrajudiciais, crime de agressão,
atividades econômicas lesivas ao meio ambiente, crimes econômicos e contra o meio ambiente que por sua
extensão e escala afetam gravemente os direitos humanos de grupos ou coletividades ou suponham a destruição
irreversível dos ecossistemas, bem como todos os crimes contidos em convenções internacionais ratificadas
pelos Estados (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2015a).
18
Princípio 7 – Jurisdição universal civil. A jurisdição universal será factível no âmbito civil independentemente
da pena, sempre que o dano se derive de algum dos crimes indicados nos princípios 2 e 3 (FUNDACIÓN
INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2015a).
71
20
Artigo 6º - Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "genocídio", qualquer um dos atos que a seguir
se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou
religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de
membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição
física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e)
Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo (ESTATUTO DE ROMA DO TRIBUNAL
PENAL INTERNACIONAL, 1998).
21
O artigo 7º do Estatuto de Roma apresenta os seguintes atos como constitutivos de crime contra a humanidade
quando praticados, generalizada ou sistematicamente contra população civil: a) Homicídio; b)
Extermínio; c) Escravidão; d) Deportação ou transferência forçada de uma população; e) Prisão ou outra forma
de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; f) Tortura;
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer
outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; h) Perseguição de um grupo ou coletividade
que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, ou
em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional,
relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal; i)
Desaparecimento forçado de pessoas; j) Crime de apartheid;k) Outros atos desumanos de caráter semelhante,
que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou
mental (ESTATUTO DE ROMA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998).
73
De acordo com a determinação legal, para que um fato seja enquadrado no tipo penal
do crime contra a humanidade é necessário que existam graves agressões sistemáticas ou
generalizadas contra população civil, com conhecimento deste ataque. A sistematicidade e a
generalidade, nessa situação, constituem elementos determinantes do tipo. A sistematicidade
se reflete na existência de um plano ou de uma política formalmente adotada por um Estado
ou organização, que promova a realização dos crimes, ao passo que a generalidade tem
ligação com elemento quantitativo que mede a amplitude da conduta.
Segundo Ivan Cláudio Marx (2013, p. 60) a grande peculiaridade do crime contra a
humanidade está no bem jurídico primariamente protegido. Enquanto em um homicídio
“comum”, o bem jurídico violado prioritariamente é a vida, no crime contra a humanidade, a
vida é um direito protegido apenas de modo secundário, pois o bem jurídico diretamente
tutelado é a humanidade como um todo e a existência de standards mínimos de direitos
humanos, assim como o interesse internacional na conservação da paz e da convivência
pacífica entre os povos. Logo, o fato de haver lesão não só à vítima em seu plano individual,
mas também a toda a humanidade como conjunto é um dos fundamentos da possibilidade de
exercício da competência universal para a persecução criminal.
Na sequência, o artigo 8º22 do Estatuto do TPI apresenta o crime de guerra, que é o de
mais longa data existente dentro do direito penal internacional. O início da codificação desses
22
Entende-se por "crimes de guerra": a) As violações graves às Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de
1949, a saber, qualquer um dos seguintes atos, dirigidos contra pessoas ou bens protegidos nos termos da
Convenção de Genebra que for pertinente: i) Homicídio doloso; ii) Tortura ou outros tratamentos desumanos,
incluindo as experiências biológicas; iii) O ato de causar intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à
integridade física ou à saúde; iv) Destruição ou a apropriação de bens em larga escala, quando não justificadas
por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária; v) O ato de compelir um
prisioneiro de guerra ou outra pessoa sob proteção a servir nas forças armadas de uma potência inimiga; vi)
Privação intencional de um prisioneiro de guerra ou de outra pessoa sob proteção do seu direito a um julgamento
justo e imparcial; vii) Deportação ou transferência ilegais, ou a privação ilegal de liberdade; viii) Tomada de
reféns; b) Outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito
do direito internacional, a saber, qualquer um dos seguintes atos: i) Dirigir intencionalmente ataques à população
civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; ii) Dirigir intencionalmente ataques a
bens civis, ou seja bens que não sejam objetivos militares; iii) Dirigir intencionalmente ataques ao pessoal,
instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de assistência
humanitária, de acordo com a Carta das Nações Unidas, sempre que estes tenham direito à proteção conferida
aos civis ou aos bens civis pelo direito internacional aplicável aos conflitos armados; iv) Lançar
intencionalmente um ataque, sabendo que o mesmo causará perdas acidentais de vidas humanas ou ferimentos na
população civil, danos em bens de caráter civil ou prejuízos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que
se revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar global concreta e direta que se previa; v) Atacar
ou bombardear, por qualquer meio, cidades, vilarejos, habitações ou edifícios que não estejam defendidos e que
não sejam objetivos militares; vi) Matar ou ferir um combatente que tenha deposto armas ou que, não tendo mais
meios para se defender, se tenha incondicionalmente rendido; vii) Utilizar indevidamente uma bandeira de
trégua, a bandeira nacional, as insígnias militares ou o uniforme do inimigo ou das Nações Unidas, assim como
os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, causando deste modo a morte ou ferimentos graves; viii) A
transferência, direta ou indireta, por uma potência ocupante de parte da sua população civil para o território que
ocupa ou a deportação ou transferência da totalidade ou de parte da população do território ocupado, dentro ou
para fora desse território; ix) Dirigir intencionalmente ataques a edifícios consagrados ao culto religioso, à
74
educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem
doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares; x) Submeter pessoas que se encontrem sob o
domínio de uma parte beligerante a mutilações físicas ou a qualquer tipo de experiências médicas ou científicas
que não sejam motivadas por um tratamento médico, dentário ou hospitalar, nem sejam efetuadas no interesse
dessas pessoas, e que causem a morte ou coloquem seriamente em perigo a sua saúde; xi) Matar ou ferir à traição
pessoas pertencentes à nação ou ao exército inimigo; xii) Declarar que não será dado quartel; xiii) Destruir ou
apreender bens do inimigo, a menos que tais destruições ou apreensões sejam imperativamente determinadas
pelas necessidades da guerra; xiv) Declarar abolidos, suspensos ou não admissíveis em tribunal os direitos e
ações dos nacionais da parte inimiga; xv) Obrigar os nacionais da parte inimiga a participar em operações bélicas
dirigidas contra o seu próprio país, ainda que eles tenham estado ao serviço daquela parte beligerante antes do
início da guerra; xvi) Saquear uma cidade ou uma localidade, mesmo quando tomada de assalto; xvii) Utilizar
veneno ou armas envenenadas; xviii) Utilizar gases asfixiantes, tóxicos ou outros gases ou qualquer líquido,
material ou dispositivo análogo; xix) Utilizar balas que se expandem ou achatam facilmente no interior do corpo
humano, tais como balas de revestimento duro que não cobre totalmente o interior ou possui incisões; xx)
Utilizar armas, projéteis; materiais e métodos de combate que, pela sua própria natureza, causem ferimentos
supérfluos ou sofrimentos desnecessários ou que surtam efeitos indiscriminados, em violação do direito
internacional aplicável aos conflitos armados, na medida em que tais armas, projéteis, materiais e métodos de
combate sejam objeto de uma proibição geral e estejam incluídos em um anexo ao presente Estatuto, em virtude
de uma alteração aprovada em conformidade com o disposto nos artigos 121 e 123; xxi) Ultrajar a dignidade da
pessoa, em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes; xxii) Cometer atos de violação,
escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à força, tal como definida na alínea f) do parágrafo 2o do artigo
7o, esterilização à força e qualquer outra forma de violência sexual que constitua também um desrespeito grave
às Convenções de Genebra; xxiii) Utilizar a presença de civis ou de outras pessoas protegidas para evitar que
determinados pontos, zonas ou forças militares sejam alvo de operações militares; xxiv) Dirigir intencionalmente
ataques a edifícios, material, unidades e veículos sanitários, assim como o pessoal que esteja usando os
emblemas distintivos das Convenções de Genebra, em conformidade com o direito internacional; xxv) Provocar
deliberadamente a inanição da população civil como método de guerra, privando-a dos bens indispensáveis à sua
sobrevivência, impedindo, inclusive, o envio de socorros, tal como previsto nas Convenções de Genebra; xxvi)
Recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou utilizá-los para participar ativamente
nashostilidades. c) Em caso de conflito armado que não seja de índole internacional, as violações graves do
artigo 3o comum às quatro Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos atos que
a seguir se indicam, cometidos contra pessoas que não participem diretamente nas hostilidades, incluindo os
membros das forças armadas que tenham deposto armas e os que tenham ficado impedidos de continuar a
combater devido a doença, lesões, prisão ou qualquer outro motivo: i) Atos de violência contra a vida e contra a
pessoa, em particular o homicídio sob todas as suas formas, as mutilações, os tratamentos cruéis e a tortura; ii)
Ultrajes à dignidade da pessoa, em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes; iii) A tomada
de reféns; iv) As condenações proferidas e as execuções efetuadas sem julgamento prévio por um tribunal
regularmente constituído e que ofereça todas as garantias judiciais geralmente reconhecidas como
indispensáveis. d) A alínea c) do parágrafo 2o do presente artigo aplica-se aos conflitos armados que não tenham
caráter internacional e, por conseguinte, não se aplica a situações de distúrbio e de tensão internas, tais como
motins, atos de violência esporádicos ou isolados ou outros de caráter semelhante; e) As outras violações graves
das leis e costumes aplicáveis aos conflitos armados que não têm caráter internacional, no quadro do direito
internacional, a saber qualquer um dos seguintes atos: i) Dirigir intencionalmente ataques à população civil em
geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; ii) Dirigir intencionalmente ataques a edifícios,
material, unidades e veículos sanitários, bem como ao pessoal que esteja usando os emblemas distintivos das
Convenções de Genebra, em conformidade com o direito internacional; iii) Dirigir intencionalmente ataques ao
pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de
assistência humanitária, de acordo com a Carta das Nações Unidas, sempre que estes tenham direito à proteção
conferida pelo direito internacional dos conflitos armados aos civis e aos bens civis; iv) Atacar intencionalmente
edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às
ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos,
sempre que não se trate de objetivos militares; v) Saquear um aglomerado populacional ou um local, mesmo
quando tomado de assalto; vi) Cometer atos de agressão sexual, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez
à força, tal como definida na alínea f do parágrafo 2o do artigo 7o; esterilização à força ou qualquer outra forma
de violência sexual que constitua uma violação grave do artigo 3 o comum às quatro Convenções de Genebra; vii)
Recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou em grupos, ou utilizá-los para participar
ativamente nas hostilidades; viii) Ordenar a deslocação da população civil por razões relacionadas com o
conflito, salvo se assim o exigirem a segurança dos civis em questão ou razões militares imperiosas; ix) Matar ou
ferir à traição um combatente de uma parte beligerante; x) Declarar que não será dado quartel; xi) Submeter
75
crimes deu-se no I Convênio de Genebra de 1865, mas no momento sua fidelidade estava
vinculada ao direito internacional moderno, de Estados soberanos, livres e totalmente
independentes no plano externo. Por isso, em tal período objetivava-se respeitar o exercício da
guerra, arma legítima de atuação na sociedade internacional do período.
Após a aprovação da Carta de São Francisco, em 1945, normas de ius ad bellum, de
proibição do uso da força e de guerra como ferramenta diplomática passaram a regular os
conflitos armados, estabelecendo limites aos conflitos quando estes se instalam. O rol
apresentado no artigo referido do Estatuto de Roma se trata de extenso elenco de ações
delitivas que buscam minimizar os horrores naturais da guerra, através da proteção de todos
os que não são ou os que deixam de ser combatentes no contexto de um conflito armado.
A justificativa para a escolha da observação da aplicação da jurisdição universal em
sua forma absoluta em relação a esses crimes apresentados se dá em razão do último relatório
sobre jurisdição universal (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN ,
2016a) no mundo, lançado recentemente pela Fundação Internacional Baltasar Garzon
(FIBGAR). Conforme esse relatório, as observações demonstram que doze são os países que
vem aplicando recentemente o princípio da competência universal (Argentina, Bélgica, Chile,
Finlândia, França, Alemanha, Holanda, Senegal, Espanha, Suécia, Suíça e Reino Unido) e o
fazem, principalmente com relação aos delitos presentes no Estatuto de Roma, como se pode
observar no quadro abaixo.
pessoas que se encontrem sob o domínio de outra parte beligerante a mutilações físicas ou a qualquer tipo de
experiências médicas ou científicas que não sejam motivadas por um tratamento médico, dentário ou hospitalar
nem sejam efetuadas no interesse dessa pessoa, e que causem a morte ou ponham seriamente a sua saúde em
perigo; xii) Destruir ou apreender bens do inimigo, a menos que as necessidades da guerra assim o exijam; f) A
alínea e) do parágrafo 2o do presente artigo aplicar-se-á aos conflitos armados que não tenham caráter
internacional e, por conseguinte, não se aplicará a situações de distúrbio e de tensão internas, tais como motins,
atos de violência esporádicos ou isolados ou outros de caráter semelhante; aplicar-se-á, ainda, a conflitos
armados que tenham lugar no território de um Estado, quando exista um conflito armado prolongado entre as
autoridades governamentais e grupos armados organizados ou entre estes grupos. 3. O disposto nas
alíneas c) e e) do parágrafo 2o, em nada afetará a responsabilidade que incumbe a todo o Governo de manter e de
restabelecer a ordem pública no Estado, e de defender a unidade e a integridade territorial do Estado por
qualquer meio legítimo (ESTATUTO DE ROMA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998).
76
O
Tortura Genocídio Crime contra Crime Outros
a humanidade de
guerra
Sob Franco Argenti Espanha ✔ ✔
invest dictatorship na
igaçã
o
Sob Paraguayan Argenti Paraguai ✔ ✔
invest Indigenous na
igaçã community
o
Sob Amesys França Líbia ✔
invest
igaçã
o
Sob Qosmos França Síria ✔
invest
igaçã
o
Sob Guantanam França Cuba ✔
invest o (Guantanamo
igaçã Bay)
o
Sob Syrian cases França Síria ✔
invest
igaçã
o
Sob US Torture Aleman Diferentes ✔
invest case ha locais
igaçã
o
Sob Syrian cases Aleman Síria ✔
invest ha
igaçã
o
Sob Boko Espanh Ningéria ✔
invest Haram a
igaçã
o
Sob Karenzi Espanh Ruanda ✔ ✔ ✔ ✔ ✔
invest Karake a República
igaçã Democrática
o do Congo
Sob The Sahara Espanh Marrocos ✔ ✔ ✔
invest case a
igaçã
o
Sob Falung Espanh China ✔ ✔
invest Gong case a
igaçã
o
Sob Guantánam Espanh Cuba ✔
invest o a (Guantanamo
igaçã Bay)
o
Sob Clever Suécia Ruanda ✔ ✔
invest Berindinki
igaçã
o
77
prisão Desaedeleer
domi
ciliar;
Acus
ado
Em Martina Bélgica Libéria ✔ ✔
prisão Johnson
domi
ciliar;
Acus
ado
Em Hissène Senegal Chad ✔ ✔ ✔
julga Habré
ment
o
Em Colonel Reino Nepal ✔
julga Kumar Unido
ment Lama
o
Caso Relizane França Algéria ✔
julga (Mohamed
do; brothers)
Em
recurs
o
Caso Wenceslas França Ruanda ✔ ✔ ✔
julga Munyeshya
do; ka
Em
recurs
o.
Caso José Couso Espanh Iraque ✔
julga a
do;
Em
recurs
o.
Sente Pascal França Ruanda ✔ ✔
nciad Simbikang
o; wa
Apela
ção
em
recurs
o
Encer Lopez and Chile Venezuela ✔
rado Ceballos
Encer Tibet Espanh China (Tibet) ✔ ✔ ✔
rado a
Encer Pinochet Espanh Chile ✔
rado a
Encer Unocal- Bélgica Birmânia ✔ ✔
rado Total
do direito, bem como os limites impostos pela realidade à consagração desse importante
princípio internacional.
81
A melhor reflexão para iniciar este capítulo é a de Luis Peraza. Em estudos sobre a
jurisdição universal, o autor afirmou que esta é fácil de explicar, porém complicada de
interpretar e executar (PERAZA, 2006, p. 05). Uma das justificativas para isso é a de que o
princípio, principalmente em sua modalidade absoluta, conforme já se demonstrou alhures,
abala as estruturas de formação do Estado moderno e propõe um rompimento com concepções
herdadas da modernidade e vigentes até os dias de hoje.
Há certo descompasso entre as pretensões filosóficas de justificativa do exercício da
jurisdição universal, as quais estruturam os pilares de um arcabouço capaz de criar um dever
ser jurídico baseado na solidariedade e na alteridade cosmopolitas, e as constatações da
realidade, observáveis por meio da sociologia e das alterações do direito no plano fático. Se
no aspecto da filosofia nos deparamos com as teorias do cosmopolitismo, no campo da
sociologia, um dos focos da segunda parte desse trabalho, o pensamento de Ulrich Beck
(2003, p. 187), conforme já apresentado de modo breve anteriormente, nos permite apresentar
a chamada cosmopolitização da realidade.
Segundo o autor, a pergunta sociológica chave de nosso tempo é: até que ponto o
espaço de experiência transnacional dilui o espaço de experiência nacional? Esses dois locus
interagem entre si e se relacionam de que maneira? Na busca de respostas a esse
questionamento, Beck constata três situações: a primeira delas é a de que a globalização,
como local de experiência transnacional, é geralmente pensada de modo aditivo. Isto quer
dizer que, a lógica cartesiana moderna de organização estrutural com base em espaços bem
delineados e delimitados continua vigente, uma vez que, tal como nessa lógica, a sociedade
permanece concebida e organizada em termos de Estado nacional, atuando a globalização de
forma suplementar e externa.
A segunda situação constatada é a de percepção da globalização como cenário em que
se estabelecem entrelaçamentos e interdependências entre os Estados. Tal ideia, como destaca
Beck (2003, p. 187), apesar de ser uma forma habilidosa de interpretar a globalização como
modo de internacionalização, não deixa de conceber o Estado como ponto fulcral, de maneira
que o nacionalismo metodológico que determinou a sociologia, o direito e a política na
racionalidade moderna não é superado.
82
mundo que se tornou cosmopolita pela força das coisas23, necessita-se urgentemente de uma
nova ótica, o que Beck chamará de mirada cosmopolita.
Esta surge para confrontar a mirada nacional, que levada ao campo da ciência deu
origem ao nacionalismo metodológico, um reflexo do racionalismo moderno que aborda as
sociedades sob o ponto de vista dos Estados nacionais. O descompasso entre as experiências
do real, permeadas por elementos transnacionais e cosmopolitas, e o modo de interpretação
dessas situações, ainda atrelado à ótica nacionalista moderna gera uma sensação de caos e
incompreensão do panorama mundial atual. Assim, em um mundo de crises globais e perigos
derivados da civilização, velhas definições modernas perdem seu sentido e sua
obrigatoriedade, pois são ultrapassadas pela força da realidade.
Como proposta de superação da mirada nacional no campo da política e do
nacionalismo metodológico no campo das ciências surge a ideia de mirada cosmopolita ou de
cosmopolitismo metodológico. A título exemplificativo, Ulrich Beck (2005, p. 17) afirma que
a mirada cosmopolita proposta se consubstancia em cinco princípios: a) na experiência de
crise da sociedade mundial, com as relações de interdependência sendo percebidas através dos
riscos globais e da sociedade de destino civilizado que tenta suprimir fronteiras internas e
externas; b) no reconhecimento das diferenças da ordem mundial e do resultante caráter
conflitivo da sociedade global; c) na empatia cosmopolita e na mudança de perspectivas; d) na
impossibilidade de viver em uma sociedade mundial sem fronteiras e na pressão resultante
para traçar e fixar novas fronteiras e muros; e) princípio da miscelânea, no qual culturas e
tradições locais, nacionais, étnicas e religiosas se interpenetram e se mesclam, de modo que,
como assevera Beck: “o cosmopolitismo sem provincialismo é vazio e o provincialismo sem
cosmopolitismo é cego." (2005, p;17).
A mirada cosmopolita, a partir desses princípios, coloca em questão o convencimento
de que a sociedade e a política modernas só podem existir caso se organizem no modo de
Estados nacionais. O grande paradoxo que surge entre elementos da realidade cosmopolita e
elementos de compreensão nacionais aponta para o fato de que o nacionalismo metodológico
apresenta concepções inadequadas para a sociedade global do século XXI.
Um desses defeitos, por exemplo, se reflete nas questões de identidade. Na perspectiva
de uma mirada nacional, questões identitárias são percebidas sob um binômio: ou se é
23
A contrariedade entre a incompletude das ideias e a força das coisas é uma das premissas que guia o trabalho
de Mireille Delmas-Marty no primeiro livro da coleção “As forças imaginantes do direito” 23. Nessa relação, ela
analisa as vicissitudes da mundialização e as consequências desta para a seara jurídica por meio da oposição
entre as falhas de um universalismo jurídico, visto no patamar de incompletude das ideias e os limites do
relativismo jurídico, compreendido enquanto força das coisas (DELMAS-MARTY, 2004a).
86
estrangeiro, ou se é nacional. Como bem salienta Ulrich Beck (2005, p. 41), nenhum dos
métodos de investigação que utilizam conceitos estadísticos como estrangeiro e nacional está
preparado para abordar uma realidade vital que cada vez é mais transnacional e está
caracterizada por múltiplas filiações que ultrapassam fronteiras.
Ao lado das questões de identidade encontram-se os dilemas territoriais. O
nacionalismo metodológico impõe uma compreensão territorial da sociedade que se apoia em
fronteiras estatalmente construídas e controladas. Nessa perspectiva, mesmo a cultura também
é compreendida como elemento territorialmente limitado e fechado em fronteiras estatais.
Desta forma, pertinente mais uma vez a reflexão de Beck (2005, p. 34) de que a
realidade se torna cosmopolita em seu núcleo, enquanto nossas formas de pensamento e
consciência estão atreladas aos Estados nacionais e à compreensão do mundo sob a ótica de
uma mirada nacional. A novidade de nosso tempo, desta forma, não é a mescla cultural e
identitária, mas a sua tentativa de percepção e reflexividade social sob uma ótica cosmopolita.
A mirada nacional, portanto, analisa o Estado e os problemas sob bases inquestionadas de
suas próprias premissas, enquanto a proposta de uma ótica cosmopolita almeja agudizar a
compreensão das interdependências globais, sem ser necessariamente internacional.
Nesse sentido, inclusive, outra reflexão pertinente é de que o internacional e o
cosmopolita não podem ser equiparados, até mesmo pelo fato de que as reflexões sobre o
internacional possuem como referência elementos do nacional, compreendidos sob as
estruturas e conceitos do nacionalismo metodológico. O cosmopolitismo de realidade, no
entanto, sob a percepção da mirada cosmopolita, abarca a transformação da gramática social e
política e, portanto, a integração por meio da globalidade reflexiva. O binômio do dentro e do
fora que subjazem na diferenciação do nacional e do internacional resta suprimido diante da
premissa do “não só dentro como também fora” (2005, p. 50).
Deste modo, para compreender a cosmopolitização, que na maioria das vezes é uma
sequela involuntária da força da realidade, é necessário superar a noção de nacionalismo
metodológico e a mirada nacional. Embora a teoria de Beck tenha sido criada para propor
novas categorizações no ramo da sociologia, a seara do direito também passa a conviver com
uma grande multiplicidade de fenômenos oriundos da acelerada dinâmica social dos dias
atuais (ROSA, 2012).
O tempo de cosmopolitismo de realidade inter-relaciona-se com a lógica da aceleração
social estudada e descrita por Artmut Rosa (2012). Para ele vive-se a lógica da aceleração
social, vislumbrada em três modalidades: aceleração técnica; aceleração das mudanças sociais
e aceleração do ritmo de vida (ROSA, 2012, P. 101).
87
nacional, contam com um sistema jurídico baseado na racionalidade moderna das grades
codificações e da percepção de que as condutas deveriam estar positivadas nas normas
jurídicas, devendo o magistrado realizar a aplicação do silogismo lógico-subsuntivo, ou seja,
realizar a adequação do fato à norma jurídica para chegar a uma decisão. Tal sistema nas
últimas décadas vem sofrendo influência do sistema de common law, ou de valorização dos
precedentes judiciais, no qual a hermenêutica interpretativa realizada pelos magistrados não
necessariamente fica adstrita aos textos legais, de modo que as decisões oriundas das
interpretações dos juízes, baseadas em casos concretos, configuram precedentes em
determinadas situações.
A dinâmica dos problemas globais da sociedade de risco impulsiona, no campo do
direito essa necessidade de inter-relações e de cruzamentos entre os sistemas, de maneira que
a plena compreensão dos fenômenos oriundos desse cenário não poderá acontecer quando se
tem por base a referência de uma mirada nacional. Uma das situações que surge, por exemplo,
a título exemplificativo, é denominada por Marcelo Neves de transconstitucionalismo. Tendo
como campo de observação o Direito Constitucional, Neves (2009) afirma que a partir do
final do século XX, constitucionalistas de diversas tradições teóricas e dos mais variados
países, vinculados ao estudo das Constituições estatais passaram a ter como preocupação
primordial os novos desafios de um novo direito constitucional que ultrapassou as fronteiras
dos respectivos Estados e tornou-se incisivamente relevante para outras ordens jurídicas,
inclusive as não-estatais.
Na continuidade de seu pensamento, Neves deixa explícita a noção de que no processo
de maior integração da sociedade mundial, certas questões, como é o caso dos direitos
humanos, tornaram-se insuscetíveis de serem tratadas por uma ordem jurídica estatal no
âmbito do respectivo território, vez que são relevantes para mais de uma ordem jurídica e para
mais de um ator social. Isso leva a relações transversais desenvolvidas de maneira permanente
e cada vez mais profundas em torno de problemas e dilemas comuns.
Dessa maneira, embora não de modo explícito, é possível afirmar certa concordância
da ideia da obra de Neves com a noção de sociedade do risco e de cosmopolitização de Beck.
Isso porque o primeiro assevera que o direito constitucional, por exemplo, embora tenha sua
base originária no Estado, dele se emancipa tendo em vista que outras ordens jurídicas estão
envolvidas diretamente na solução de problemas constitucionais básicos, prevalecendo
inclusive, em muitos casos, contra a orientação das respectivas ordens estatais.
Diante dessa breve explicação torna-se impossível discordar da premissa de Mireille
Delmas-Marty (2004b) de se vive, desde a segunda metade do século XX um verdadeiro caos
89
ou não estatais, e Tort Claims significa que a responsabilidade civil é um remédio para o erro
cometido contra direitos internacionalmente reconhecidos (ALLAN & OVERY, 2016).
Com a viragem kantiana do século XX e a crescente internacionalização dos direitos
humanos, a figura da jurisdição universal preconizada pelo ATCA desperta de quase dois
séculos de dormência e passa a ter como princípios norteadores as premissas do
cosmopolitismo, como já se mencionou no capítulo anterior. O dever de aplicação da
jurisdição universal como um princípio de proteção da humanidade e de combate à
impunidade torna-a uma importante ferramenta para a tutela dos indivíduos, vítimas de
violações de direitos humanos seja por governos, seja por governantes ou outras autoridades
estatais, ou ainda por pessoas privadas ou empresas.
Importante esclarecimento feito por André de Carvalho Ramos (2016) é o de que a
responsabilidade internacional penal do indivíduo originou-se no costume internacional de
combate à pirataria nos mares e, paulatinamente, novos delitos, como tráfico de escravos, por
exemplo, foram sendo aceitos tanto pelo costume internacional quanto por normas
convencionais como possíveis de ter como sujeito ativo indivíduos de outras nacionalidades.
A peculiaridade desses crimes é que também eram infrações penais do ponto de vista do
direito local. Desta forma, o Estado ao punir um pirata de outra nacionalidade, estaria por
conveniência e por oportunidade, somente substituindo outro Estado.
O processo de internacionalização dos direitos humanos adicionou novo elemento à
responsabilidade penal: persecução criminal de indivíduos agindo em nome de Estados, ou
seja, agentes públicos das mais diversas hierarquias, que obedecendo a leis locais cometeram
atos contrários aos direitos humanos. Segundo André de Carvalho Ramos (2016), essa
novidade foi essencial para a punição de atos bárbaros e odiosos, chamados posteriormente de
crimes contra a humanidade, cometidos contra a população civil com o uso do aparato estatal.
Se sob a perspectiva teórica o que permeia essa nova interpretação do princípio da
jurisdição universal são as teses cosmopolitas, no plano prático da cosmopolitização, o que é
possível vislumbrar é a aplicação desse princípio de forma consonante com novos fenômenos
jurídicos, como é o caso da comunicação entre ordens jurídicas distintas, da mundialização
dos juízes nacionais, bem como da hospitalidade judiciária. Essas situações citadas
representam estruturas desenvolvidas no processo de cosmopolitismo de realidade e que
desempenham importante papel nesse cenário desorganizado da paisagem jurídica global.
Embora ainda nesse panorama caótico, tais fenômenos, que são formas de
cosmopolitização da justiça, oferecem possibilidades de respostas, em sua maioria com bases
cosmopolitas ou em ideais de proteção dos direitos humanos, para problemas comuns aos
91
mais diversos atores internacionais da sociedade do risco. Estudam-se, deste modo, essas
questões pelo fato de que, em maior ou menor escala elas se relacionam com as alterações no
plano fático, da interpretação do princípio da jurisdição universal em matéria de direitos
humanos.
O primeiro desses acontecimentos é o que Antoine Garapon e Julie Allard (2006)
denominam de comércio entre juízes, mas que será denominada nesse trabalho de
comunicações entre juízes ou mundialização dos magistrados nacionais. Frente à
globalização, o direito se tornou um bem intercambiável, capaz de transpor barreiras
nacionais como se fosse um produto de exportação e importação. É justamente nessa
concepção que Allard e Garapon desenvolvem a ideia de comércio entre magistrados.
Crê-se, no entanto, que as dinâmicas na seara jurídica ultrapassam a noção econômica
de o direito de ser um bem intercambiável e se incluem verdadeiramente nos reflexos da
cosmopolitização, de modo que temas como direitos humanos, proteção de direitos ambientais
e outras questões apresentadas como dilemas transnacionais devem mobilizar estruturas locais
e globais para sua completa resolução. Nesse contexto, a interpenetração do direito alienígena
em esferas nacionais se dá não somente através da validação no ordenamento jurídico de
normas provenientes de tratados, convenções ou acordos internacionais, mas também passa a
ser enfoque da preocupação dos principais atores dos diferentes sistemas de justiça: os juízes.
Esses se configuram como agentes ativos no processo de mundialização, uma vez que
ultrapassam sua função precípua de interpretar e aplicar a legislação nacional para se tornarem
importantes personagens da cosmopolitização da justiça nos dias atuais (SALDANHA;
MELLO, 2014). Importante salientar que como um acontecimento da cosmopolitização, esse
processo de mundialização dos juízes nacionais e consequente comunicação entre magistrados
não é um espaço legislativo à revelia, mas, na grande maioria das vezes, um fórum informal
de intercâmbios situados à margem dos mecanismos institucionais.
Em estando à margem de mecanismos institucionais, essas comunicações, embora
positivas, em alguns casos, para o desenvolvimento de uma racionalidade argumentativa
comum visando a solução de determinadas questões globais, também corroboram a tese
anteriormente descrita por Allard de que os movimentos de abertura dos juízes nacionais às
decisões de outros magistrados se dão na análise de casos concretos e particulares, de modo
que nem sempre essa abertura e comunicação gerarão precedentes repetitivos capazes de criar
um entendimento consolidado em relação a algum assunto.
Nesse sentido Garapon e Allard (2006, p. 19) destacam que nos últimos anos, a
abertura dos sistemas jurídicos nacionais às jurisprudências de outros sistemas levou ao
92
assevera que as relações desenvolvidas possuem principalmente função de estímulo ou, como
já ocorreu, de neutralização.
A função de estímulo é destacada no processo mais conhecido de aplicação do
princípio da competência universal: o de julgamento do ex-ditador chileno Augusto Pinochet.
Neste caso, o juiz Espanhol Baltasar Garzón em 1998 enviou a Inglaterra um pedido de
detenção de Pinochet fundado em acusação de homicídios cometidos pelo ditador contra
cidadãos espanhóis ocorridos no Chile entre 1973 e 1983. Por impropriedades jurídicas, a
justiça espanhola, recorrendo ao princípio da jurisdição universal, enviou novamente pedido
de detenção à justiça britânica, porém fundado em acusações, contra Pinochet, de crime
contra a humanidade utilizando-se de aparato estatal e com motivação meramente política.
Esse pedido espanhol acompanhado da decisão da Câmara dos Lordes britânica de
apreciar o processo antes de pôr o general em liberdade fortalece a função de estímulo das
relações entre magistrados, sobretudo pelo fato de inspirar o exercício da competência
universal em outros países, para casos envolvendo questões de violação de direitos humanos
em âmbito global (ALLARD; GARAPON, 2006). Por outro lado, destaca-se eventual função
de neutralização que pode acontecer quando determinada jurisdição se considera competente
para julgar delitos contra a humanidade tendo como finalidade escapar de julgamento por
outro tribunal. Essa última situação é exemplificada por Garapon no caso em que a República
do Congo (Congo-Brazzaville) instaurou processo de instrução contra militares suspeitos de
estarem implicados no massacre de Beach24 tendo intuito de escapar ao processo instruído na
França com base no princípio da competência universal.
Assim, não só a informalidade estimula o processo de comunicação entre diferentes
juízes, como o fato da internalização de matérias e instrumentos existentes na esfera global
pela esfera nacional estimula a mundialização dos magistrados. Nesse sentido, relatórios
comparando a estrutura da competência universal em diferentes Estados como Alemanha,
França, Bélgica, Finlândia, Croácia, Reino Unido, dentre outros (CORDERO, 2008)
demonstram que as legislações nacionais, ao apresentarem o princípio da competência
universal, o fazem por motivos vinculados à existência de uma estrutura global entrelaçada
com o objetivo de defesa dos direitos humanos.
Desta maneira, as razões de ser ou as justificativas apresentadas em âmbito interno
são: a) natureza dos delitos, que são crimes de caráter global, capazes de afetar toda a
24
Em maio de 1999 ocorreu no chamado Massacre de Beach. Beach era o porto fluvial de Brazzaville, no Congo
e o referido massacre fora perpetrado por soldados membros do governo de situação e foi a última consequência
da guerra civil ocorrida na República do Congo, comumente chamada de Congo-Brazzaville (PESNOT, 2013).
94
humanidade. Nesse sentido, o Estado que exerce a competência universal, sobretudo na sua
forma absoluta, não deve agir conforme seus interesses, mas no interesse da comunidade
internacional, como um verdadeiro agente desta comunidade, empenhado na preservação da
ordem mundial e no combate a violações aos direitos humanos; b) a existência de obrigações
internacionais que ligam os Estados; c) o objetivo de combate à impunidade, uma vez que, em
diversas situações, os Estados diretamente afetados pelos crimes e, em particular os Estados
em que os crimes foram cometidos, por vezes, não possuem vontade ou capacidade de
proteger os institutos legais atacados ou perseguir os perpetradores de violações; d) mais
recentemente, as lutas contra o crime organizado e a defesa do meio ambiente global
passaram também a ser questões internacionais que motivam, dentro dos Estados, o exercício
da competência universal (CORDERO, 2008).
O processo de mundialização dos juízes nacionais, que é fundamental para o exercício
da competência universal, encontra-se intrinsecamente ligado à crescente comunicação entre
cortes judiciais. No caso da jurisdição universal, a potencialidade dialógica se dá por duas
vertentes: por meio da comunicação horizontal entre os diferentes Estados e, através da
comunicação vertical entre Estados e Tribunal Penal Internacional, responsável pelos
julgamentos de indivíduos que cometeram crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de
guerra.
Em se tratando de problemas globais, ou de biótopos jurídicos (SALDANHA;
VIEIRA, 2015, p.27), ou seja, temas que ganham contornos de universalidade, os diálogos
jurisdicionais tem a finalidade de estabelecer parâmetros materiais mínimos em relação a
algumas questões que são objetos de debates judiciais nos mais diferentes Estados. Por isso,
como referem Jânia Maria Lopes Saldanha e Lucas Pacheco Vieira (2015, p.10), no caos
jurídico da paisagem mundial, os diálogos transjurisdicionais devem seguir a estrutura de
romances em cadeia, na perspectiva descrita por Ronald Dworkin, ou seja, os juízes sempre
reconstroem, a partir do material disponível (seja por meio das decisões internas ou de
referências jurisprudenciais externas), um conjunto de precedentes que permitem justificar
suas decisões mais difíceis em outras decisões semelhantes ou em princípios.
Todavia, fala-se em potencialidade dialógica pelo fato de que os aspectos
procedimentais ou formais que constituem peculiaridades de cada Estado, por vezes podem
constituir entraves aos diálogos. Assim, no caso da jurisdição universal, uma gramática
comum em direitos humanos é construída do ponto de vista material, pela definição de atos de
violação de direitos da humanidade, porém, do ponto de vista formal, os limites da realidade
95
impedem maiores aprofundamentos sobre o tema, pelo fato de que a legislação interna de
cada país adota o princípio de modo diferente, como se verá no próximo capítulo.
O jogo de interpretações cruzadas e de referências recíprocas (SALDANHA; VIEIRA,
2015, p.16) que move os diálogos transjurisdicionais se dá pelo fato de que os juízes
nacionais se internacionalizam pelo crescente uso do direito internacional, pela extensão de
sua competência nacional e pelo seu dever de controlar a convencionalidade. Desta maneira, a
mundialização do juiz nacional e as comunicações transjurisdicionais consequentes
demonstram claramente a emancipação e a emulação dos magistrados, de modo que agudizam
a inevitável porosidade da jurisdição em tempos de cosmopolitização.
Nesse sentido, a interconectividade da sociedade atual, evidenciada, portanto, pelos
fenômenos anteriormente descritos, confere novas roupagens para questões pensadas há
alguns séculos. Esse é o caso daquilo que Kant apontou como o cerne do direito cosmopolita,
a hospitalidade universal.
No artigo terceiro da série dos artigos definitivos para a paz perpétua, como já fora
abordado anteriormente neste trabalho, Kant afirma que “O direito cosmopolita deve limitar-
se às condições de hospitalidade universal.”. Este artigo se embasa na noção de que todos têm
o mesmo direito sob o solo e de que uma violação a um direito cometida em um ponto da
Terra será sentida por todos os indivíduos nos demais pontos do globo terrestre.
Interessante observar é que o direito cosmopolita vincula-se a um direito de visita, de
modo que Kant, em sua teoria não concebe ao hóspede o direito de permanecer no território
estrangeiro, bem como não confere ao indivíduo de outro Estado o direito de ser tratado tal
qual um cidadão do país que visita. Como destaca Ademar Pozzatti (2014) em reflexões sobre
a obra kantiana, o hóspede é aquele que está por pouco tempo em uma determinada região ou
localidade e recebe tratamento especial, devendo obedecer às normas específicas e
costumeiras do Estado que o recebe. Essa restrição do direito cosmopolita de Kant se justifica
pelo fato de que, se tal direito fosse absoluto, ou seja, se o direito de visita na realidade fosse
direito de permanência irrestrito, isso poderia acarretar a violação de soberania da população
indígena, uma vez que os escritos de Kant são contemporâneos aos períodos de existência de
exploração explícita de metrópoles europeias sobre colônias americanas e africanas.
Evidentemente releituras acerca desse conceito kantiano foram feitas com o sentido de
atualizá-lo. É o caso, a título exemplificativo, do pensamento de Jacques Derrida (2001), que
tendo como norte um dever de hospitalidade realiza reflexões acerca de cidades-refúgios,
autônomas, independentes entre si e dos Estados, mas aliadas por diversas formas de
solidariedade (DERRIDA, 2001, p.17) que seriam capazes de transformar e refundar
96
contrário, ele é provocado pelas partes que possuem capacidade de demandar naquele
determinado local. Esse ponto destacado no final, no entanto, é considerado uma crítica mais
contundente em relação às dúvidas e aos dilemas sobre o exercício da jurisdição universal.
Segundo Benoit Frydman (2006, p.08) essa forma de exercício de uma justiça global é
deixada à iniciativa dos ativistas e à arbitrariedade das jurisdições nacionais. Em razão disso,
como veremos a seguir, os limites da realidade impõem que a concorrência de jurisdições
capazes de exercer a competência universal, bem como as diferentes decisões que podem
surgir dessas competências concorrentes, no plano jurídico, da maneira como o
compreendemos, não possuam solução.
Deste modo, essas críticas se inserem na lógica da ordem jurídica internacional
moderna, fundada na soberania de Estados e na ótica nacional de compreensão de problemas
que possuem cariz global. Assim, observam-se questões transnacionais emergentes, como é o
caso do julgamento de crimes globais contra os direitos humanos por meio da jurisdição
universal, sob olhares de direito internacional público moderno e sobre repartições de
competência judiciária organizadas sob a égide do racionalismo moderno e, do que Beck
chamou de mirada nacional.
Todos os fenômenos emergentes do cenário jurídico aqui apontados, quais sejam, a
mundialização dos juízes nacionais, os diálogos transjursdicionais e a hospitalidade judiciária,
além de terem a jurisdição universal como elemento que os perpassa ou os pode perpassar, ou
seja, de configurarem possibilidades para o incremento da utilização desse princípio,
apresentam como eixo comum o fato de se sustentarem em outra lógica que não a dos
Estados, mas a da ordem de um direito da humanidade sob perspectiva cosmopolita.
Deste modo, embora se deem sob a égide de um processo de globalização e de
cosmopolitização, as questões apresentadas – sobretudo a que é tema deste trabalho – jamais
serão compreendidas em suas totais potencialidades enquanto a observação de mundo
continuar arraigada em miradas nacionais, as quais, no plano jurídico corroboram com
estruturas westfalianas de direito internacional. A não superação dessa lógica de compreensão
de mundo, mesmo em tempos de transnacionalidade, conforma os chamados limites do real,
ou seja, situações que configuram problemas no sentido de eficácia das questões aqui
expostas.
No próximo capítulo, portanto, serão abordados os limites do real em relação aos
casos de jurisdição universal, com o objetivo de fortalecer a noção de que, no que tange aos
aspectos materiais, não restam dúvidas de que o caráter global das violações contra os direitos
humanos ensejam punição dos agentes ativos dos delitos cometidos, não só para que seja
99
realizada a tutela dos direitos do homem como também para que tais casos não fiquem
impunes. Todavia, os grandes entraves à aplicação desse princípio se encontram nos aspectos
formais e processuais para sua efetivação, vez que esses não foram ainda capazes de
transcender a compreensão westfaliana e moderna de direito internacional.
jurisdicionados, aplicando o direito objetivo ao caso concreto e resolvendo a crise jurídica que
envolve as partes. Assim, o poder jurisdicional compreende as tarefas de, não só dizer o
direito (juris dictio), mas também impor o direito, de modo que, sua tarefa não é completa se
só disser o direito e não reunir condições para fazê-lo valer completamente.
É justamente neste aspecto que se encontra o grande anacronismo da jurisdição em sua
adjetivação universal, pois, como delineia Daniel Amorim Assumpção Neves (2016), a
jurisdição como poder no paradigma racional moderno, é algo que se vincula essencialmente
a um Estado organizado e capaz de interferir na esfera jurídica de seus jurisdicionados. A
universalidade da jurisdição, conforme se demonstrou até aqui, indubitavelmente rompe com
essa vinculação moderna de que a jurisdição necessariamente depende de ligações estatais sob
o ponto de vista territorial e subjetivo. Todavia, sob a ótica procedimental e formal o
paradoxo se instaura, vez que as grandes dificuldades da jurisdição universal atrelam-se
justamente ao não conhecimento de outra forma de aplicação da jurisdição que não sob os
procedimentos de processo nacionais.
O caos jurídico intrínseco à cosmopolitização estimula a deslocalização judiciária por
meio do alargamento da competência absoluta de jurisdições internas, que antes só eram
capazes de julgar situações que possuíssem algum tipo de vínculo com o Estado. Nesse
contexto, pertinente o destaque de Seyla Benhabib (2006) de que o anacronismo do nosso
tempo advém da dicotômica situação de que o universalismo da ética deriva de
comprometimento com o transcendental e com a igual dignidade das pessoas, enquanto o
particularismo da lei deriva de fronteiras estatais.
No caso da jurisdição universal, esse anacronismo é claro, vez que a motivação
material de aplicação deste princípio encontra-se no princípio da humanidade, na
universalização de valores comuns em direitos humanos, e no combate à impunidade, por
meio da investigação e punição de responsáveis por crimes cometidos contra os direitos
humanos. No entanto, os limites formais esbarram nessa pretensão de universalidade,
corroborando a hipótese de Benhabib de que o particularismo da lei exige fronteiras estatais.
Justamente por isso tal princípio encontra-se diante desse anacronismo e do paradoxo
de pretensão de universalidade frente à exigência de procedimentalidade que ainda se atrela a
estruturas formais estatais. Logo, a afirmação realizada por Luis Peraza no início deste
segundo capítulo possui tanta razão: a jurisdição universal consubstancia-se em um princípio
de fácil compreensão, porém de difícil aplicação.
A fim de engendrar algumas explicações a ele e tornar mais visíveis seus paradoxos,
Anthony Colangelo (2005) desenvolve a ideia de que todo e qualquer Estado sempre possuirá
101
Esse atrelamento, vinculado ao plano nacional, passa a ser algo de difícil compreensão
e execução em termos de jurisdição universal, de modo que, passa a existir a necessidade de
que, ou em âmbito interno existam previsões legislativas no que tange ao processo sob a
aplicação do princípio da jurisdição universal ou, em âmbito externo se delineiem normas
capazes de elucidar os juízes no exercício de sua competência universal. Em âmbito externo,
não existem definições acerca de procedimentos adequados no campo processual referentes ao
exercício da competência universal, entretanto, existem algumas diretrizes para a aplicação do
princípio.
As principais diretrizes encontram-se nos Princípios de Princeton (COMISSÃO
INTERNACIONAL DE JURISTAS , 2001), documento elaborado por pesquisadores sobre o
tema no início de 2001. Tal documento foi elaborado com o intuito de oferecer balizadores
mínimos para conferir maior coerência e agilidade às situações em que o princípio da
jurisdição universal é aplicado.
Nesse sentido, um dos primeiros pontos destacados pelo documento encontra-se no
fato de este ratificar a ideia de que a jurisdição universal sustenta-se unicamente na natureza
do delito, ou seja, o aspecto material será o responsável pela definição da competência. Essa é
a base prescritiva, portanto, para a aplicação da jurisdição universal em sua forma absoluta.
Todavia, o item 225 do primeiro artigo dos Princípios de Princeton contém a premissa
de que uma das condições para a eficácia da aplicação da jurisdição universal reside no fato
de que o suspeito deve estar presente ante o órgão que irá julgá-lo, seja estando no território
do país em questão ou que se tenha possibilidade de extraditá-lo ao país julgador. Desta
forma, evidente já no texto do documento redigido por especialistas no tema que, diante do
entrelaçamento das funções prescritivas e adjudicativas da jurisdição, o exercício da
jurisdição universal nos dias atuais somente poderá ser efetivo na sua forma condicionada, já
que no estabelecimento de condições internas para julgamento, os Estados dependem menos
de questões políticas internacionais ou de cooperação entre países e mais da própria
legalidade do procedimento penal em âmbito interno para fazer valer suas decisões.
Essa última situação ilustra exatamente o caso Pinochet, uma vez que a Espanha, ao
apreciar o caso em que o ex-ditador chileno fora acusado de crimes, das mais diversas
espécies, contra os direitos humanos, solicitou à Inglaterra a extradição do investigado, com
25
Principio 1 - Fundamentos da jurisdição universal (...) 2. A jurisdição universal poderá ser exercida por um
órgão judicial competente e ordinário do Estado a fim de processar um indivíduo devidamente acusado de ter
cometido crimes graves de direito internacional que se enumeram no parágrafo 1º do princípio 2, a condição de
que o acusado esteja presente ante a esse órgão judicial. (tradução livre). (COMISSÃO INTERNACIONAL DE
JURISTAS, 2001).
103
26
Maiores informações sobre o caso podem ser encontradas no endereço: http://baltasargarzon.org/jurisdiccion-
universal/pinochet/442-2/. Acesso em 25 out 2016.
104
27
Princípio 3 – Ativação da jurisdição universal na ausência de legislação nacional. Em respeito aos crimes
graves sob a égide do direito internacional, tal qual se especificam no Princípio 2 (1), os órgãos judiciais
nacionais podem se basear na jurisdição universal, mesmo que sua legislação não a contemple especificamente.
(tradução livre) (COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS, 2001).
105
solidária e limitada, o que demonstra que o dever ser cosmopolita pugna pela substituição de
uma soberania solitária por uma soberania solidária (SUPIOT, 2015a).
Ainda no que tange aos Princípios de Princeton, outro aspecto importante que deve
guiar a todos os Estados que realizarem a aplicação do princípio da jurisdição universal é o de
que, em razão da busca pela punição daqueles que cometeram crimes contra a humanidade,
genocídios ou outras formas de violações aos direitos humanos, eventuais anistias concedidas
aos sujeitos ativos dos delitos não impedem a persecução, julgamento e condenação dos
agentes28. Essa previsão é de suma importância no que se refere aos delitos cometidos por
indivíduos que desempenharam funções públicas por determinados períodos, como é o caso
de governantes ou demais agentes públicos e políticos.
Justamente por essa questão, o princípio da jurisdição universal opera como uma
importante ferramenta da justiça de transição. Assim, diversos países que passaram por anos
de ditadura militar, civil-militar ou que sofreram com ataques aos direitos humanos
perpetrados por ditadores ou representantes políticos autoritários, após o reestabelecimento
democrático, editam leis nacionais de anistia, contemplando nessas previsões, o perdão aos
atos e atrocidades cometidos contra a população civil como um todo ou contra grupos
minoritários.
Desta maneira, em razão dessas previsões de anistia, ou até mesmo de prescrição dos
crimes, trazidas em normas nacionais, o país em que as violações ocorreram resta
inviabilizado na tarefa de punir os agentes dos delitos. No entanto, como fora visto
anteriormente, crimes contra os direitos humanos são imprescritíveis, e a gravidade dos
delitos, como bem descreve as disposições dos Princípios de Princeton não é capaz de
permitir com que estes sejam anistiados. Assim, a jurisdição universal, ao permitir que um
terceiro Estado julgue os atos, desconsidera qualquer previsão nacional de anistia ou
prescrição.
Não é à toa que casos emblemáticos sobre jurisdição universal envolvem a persecução
penal de agentes políticos que não foram julgados em seus Estados ou pelo país em que os
28
Princípio 5 – Imunidades. No que concerne aos delitos graves de direito internacional que se enumeram no
parágrafo 1 do Princípio 2, a função oficial de um acusado, seja na qualidade de Chefe de Estado ou de Governo,
ou de funcionário competente, não lhe exonerará de responsabilidade penal, nem atenuará sua pena. (tradução
livre). Princípio 6 – Prescrição. Os delitos graves de direito internacional que se enumeram no parágrafo 1 do
Princípio 2 são imprescritíveis (tradução livre). Princípio 7 – Anistias. 1. As anistias, em geral são incompatíveis
com a obrigação dos Estados de imputar responsabilidade pelo cometimento de delitos graves de direito
internacional, os quais se enumeram no parágrafo 1 do Princípio 2. 2. As anistias que sejam incompatíveis com
as obrigações jurídicas internacionais do Estado que as concede, não impedirão o exercício da jurisdição
universal sobre os delitos graves de direito internacional que se enumeram no parágrafo 1 do Princípio 2.
(tradução livre). (COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS, 2001).
106
delitos por eles cometidos aconteceram. Percebe-se isso, por exemplo, na observação em
relação aos casos proeminentes de jurisdição universal apresentados pelo Universal
Jurisdiction Annual Review 2016 (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR
GARZÓN, 2016a).
Tal relatório, dentre outros casos trazidos, elenca como os três mais relevantes os que
seguem: O Caso Pinochet, em que o ex-ditador chileno Augusto Pinochet foi investigado em
1998 pela Espanha; o Caso Hissène Habré, no qual o ex-presidente do Chad (1982-1990)
acusado de ser sujeito ativo de crimes contra a humanidade, tortura e crimes de guerra foi
julgado em 2015 no Senegal e, o Caso Pascal Simbikangwa, em que o réu, que durante o
genocídio de Ruanda, em 1994, trabalhava para a Central de Inteligência do país, foi acusado
de ser cúmplice no genocídio ocorrido e em 2014 foi julgado na França por tais atos
(FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2016a). Todos os três casos
corroboram para a afirmação de que a jurisdição universal é um importante instrumento da
justiça de transição, auxiliando no combate à impunidade e na promoção da proteção
universal em relação aos direitos humanos.
Indubitavelmente o objetivo precípuo da jurisdição universal é a responsabilização dos
sujeitos ativos de crimes contra a humanidade, genocídio e seus correlatos. Porém, sua
utilização pode auxiliar em outras questões, vez que serve como catalisador da ação dos
tribunais em países que previamente demonstraram ausência de interesse em investigar e
punir autores de crimes internacionais contra os direitos humanos (FEDERAÇÃO
INTERNACIONAL DE DERECHOS HUMANOS , 2009). O próprio caso Pinochet, a
despeito de o ex-ditador não ter sido efetivamente julgado pela Espanha, foi ponto de partida
para o questionamento de medidas legislativas e executivas de concessão de imunidades e
anistias a agentes políticos no Chile, bem como abertura de processos judiciais em relação a
desaparecimentos forçados, tortura e outras violações que haviam se mantido em silêncio.
Essa prerrogativa corrobora para a afirmação de que para a justiça de transição, o
princípio da jurisdição universal é uma importante ferramenta. A título exemplificativo, na
Argentina, de modo similar ao que ocorreu no Chile, leis como a “Ley de Punto Final” e
“Ley de Obediencia debida”, adotadas para proteger os militares contra denúncias penais
pelas atrocidades cometidas durante a ditadura militar argentina, foram retiradas do
ordenamento jurídico em 2005, não só em razão da jurisprudência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, que reiteradas vezes decidiu que as leis de anistia negociada, quando
beneficiam agentes causadores de crimes contra a humanidade, são inválidas, mas, sobretudo,
107
logo depois que vários processos contra oficiais argentinos foram iniciados ante tribunais
espanhóis, tendo como base o princípio da jurisdição universal.
Entretanto, é importante que se destaque que é pacífico na doutrina internacional o
fato de que a jurisdição universal deverá, assim como o Tribunal Penal Internacional, sempre
ser subsidiária. Isso significa que a prioridade para o julgamento de crimes contra a
humanidade, genocídio e seus correlatos, é do Estado em que as ações ocorreram. Todavia,
muitas vezes por falta de interesse político, por ausência de mecanismos jurídicos ou
processuais adequados, ou mesmo diante da existência de leis nacionais de anistia ou
imunidades, esses Estados não realizam nem mesmo a investigação dos fatos, de modo que o
horizonte de impunidade poderá ser rompido pela atuação subsidiária de outro Estado por
meio do exercício da jurisdição universal, seja ela condicionada ou absoluta.
Nesse viés, portanto, um dos modos compreendidos pela doutrina para evitar o
conflito horizontal de competência e estimular o combate à impunidade foi justamente a
previsão de subsidiariedade em relação à jurisdição universal. Consoante apresentam Jimenez
e Céspedes (2015), o princípio da subsidiariedade denota uma ordem de hierarquia entre
jurisdições estatais no momento de proceder a investigações e ajuizar ações em relação aos
delitos cometidos contra os direitos humanos.
Desta maneira, deve ser dada posição de prevalência para a justiça do Estado em que
os fatos ocorreram. Todos os Estados, em razão do jus cogens e da proteção de valores
universais, podem ser chamados a julgar os responsáveis por crimes internacionais, todavia,
esta faculdade seria interrompida se o Estado em que se cometeu o delito tenha procedido –
ou passar a proceder - a investigação ou a ajuizamento da questão. Essa prioridade dada ao
Estado em que os fatos se sucederam para investigá-los se justifica pela maior facilidade em
relação aos recursos investigativos e economia processual, havendo acesso mais fácil a
provas, vítimas e até mesmo maior possibilidade de efetivação dos resultados da persecução
penal.
Junto a esse princípio, na fase de investigação dos crimes, tendo em vista o dever de
cooperação entre os Estados, outro princípio que se destaca é o da concorrência, pois as
investigações concorrentes não serão obstadas até que um Estado receba a ação, ou seja, que
ela de fato seja ajuizada.
Os Princípios de Priceton corroboram com esse entendimento de que a jurisdição do
local dos fatos tem prioridade para julgamento em relação à jurisdição de qualquer outro
Estado. O princípio 8 (COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS, 2001) apresenta a
determinação de que, quando mais de um Estado tenha afirmado ou possa afirmar sua
108
jurisdição sobre uma pessoa e quando um Estado que tem essa pessoa sob sua custódia não
tenha outro fundamento para sua jurisdição que o princípio da universalidade, dito Estado, ao
decidir entre ajuizar ou extraditar, deverá sustentar sua decisão em uma composição
equilibrada dos seguintes critérios: a) obrigações provenientes de tratados multilaterais ou
bilaterais; b) lugar em que os delitos foram cometidos; c) nexo de nacionalidade do suspeito
com o Estado; d) nexo de nacionalidade das vítimas com o Estado; e) probabilidade, boa fé e
eficácia do ajuizamento da ação no Estado; f) equidade e imparcialidade as atuações do
Estado julgador; g) conveniência para as partes e testemunhas, assim como a disponibilidade
de provas no Estado requerente e h) interesses da justiça.
Ainda nesta seara, o princípio 9, item 229, apresenta a importante previsão de que os
Estados deverão reconhecer a validade do devido exercício da jurisdição universal por parte
de outro Estado e reconhecerão eventuais sentenças definitivas do órgão judicial nacional
ordinário e competente ou do órgão judicial internacional competente que exerça essa
jurisdição de acordo com as garantias processuais internacionais. Isso se determina desta
forma pelo fato de que, ao exercer a jurisdição universal, determinado Estado atua como um
ente internacional, defendendo valores universais em matéria de direitos humanos e,
utilizando regras de direito material oriundas do jus cogens.
Essa previsão só se faz possível nos dias atuais em razão das conquistas oriundas dos
processos de internacionalização dos direitos humanos e das vicissitudes da sociedade
mundial em tempos de cosmopolitização. Como já fora mencionado neste trabalho, os dias
atuais são marcados pela hipermodernidade e pela antimodernidade (CHEVALLIER, 2009),
de maneira que, em relação à jurisdição universal, as prerrogativas de direito material e de
dever ser são antimodernas por romperem com a territorialidade típica da racionalidade
jurídica moderna e por abalarem com a noção de soberania ilimitada e solitária no plano
internacional, com a proposta cosmopolita de solidariedade capaz de ligar os Estados na
finalidade comum de tutelar os interesses da humanidade.
Entretanto, a força da realidade desvela elementos hipermodernos no campo dos
interesses políticos, na medida em que a ausência de um mecanismo que torne obrigatórias as
decisões oriundas do exercício da jurisdição universal permite que sob argumentos de
interferência e ingerência de um Estado em outro, essas sentenças se tornem ineficazes
29
Princípio 9. O princípio do non bis in idem ou proibição do segundo processamento pelo mesmo delito. 2. O
Estado reconhecerá a validez do devido exercício da jurisdição universal por parte de outro Estado e reconhecerá
a sentença definitiva do órgão judicial nacional ordinário e competente ou do órgão judicial internacional
competente que exerça essa jurisdição de acordo com as garantias processuais internacionais (tradução livre).
(COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS, 2001).
109
(FRYDMAN, 2006). Desta maneira, o descompasso entre jurisdição universal prescritiva com
fundamento em valores universais do jus cogens e jurisdição universal adjudicativa atrelada
somente a diretrizes internacionais e a normas processuais nacionais, demonstra que a
situação conjunta de imposição de poder político e econômico e de ausência de superação de
elementos da modernidade, como é o caso do próprio nacionalismo metodológico em relação
a questões como processo e jurisdição, configuram-se como um dos grandes entraves de
realidade em relação à jurisdição universal.
Pode-se, deste modo, afirmar que o no plano do dever ser cosmopolita encontra-se a
jurisdição universal absoluta fundada, sobretudo, nas prescrições do jus cogens e no processo
de valorização do homem como principal sujeito de direito internacional do nosso tempo.
Porém, a realidade do ser demonstra que, essa possibilidade de exercício da jurisdição
universal em sua forma absoluta mostra-se não só incompatível com forças políticas e
econômicas da globalização, como também com as estruturas ainda nacionais da jurisdição
adjudicativa. A realidade do ser, portanto, é de exercício da jurisdição universal quase que
unicamente em sua forma condicionada.
Não raras vezes, diante das dificuldades de superação do olhar sob a ótica nacional, a
jurisdição universal é compreendida como uma forma de neocolonialismo ou de imperialismo
ocidental, uma vez que os casos mais conhecidos de utilização do princípio são de
investigações e julgamentos perpetrados por países da Europa e pelos Estados Unidos
envolvendo situações e fatos ocorridos ou na América Latina ou na África. Tal afirmação, de
um lado perde força diante do fato de que países da América do Sul (mais especificamente a
Argentina) e da África já despontam como locais em que a jurisdição universal está sendo
exercida, mas de outro esbarra nos meandros da geopolítica internacional, uma vez que
violações de direitos humanos ocorridas por autoridades políticas de Estados com grande
força política ou econômica no plano internacional não são capazes de serem investigados e
condenados pela utilização do princípio em comento. Prova disso, é o que se verá mais
adiante em relação ao caso Tibet e ao caso dos Jogos Olímpicos de Pequim.
Segundo o Universal Jurisdiction Annual Review 2016, Argentina30, Chile e Senegal31
vêm se destacando por investigações e julgamentos de casos de violações contra os direitos
humanos utilizando-se do princípio da jurisdição universal. Um dos casos mais importantes
30
Segundo as informações constantes no Universal Jurisdiction Annual Review 2016, a Argentina possui
atuação de destaque, sobretudo, em dois casos: o Caso Franco Dictatorship e o Caso da Comunidade Indígena
Paraguaia. (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2016a).
31
Segundo as informações constantes no Universal Jurisdiction Annual Review 2016, a atuação do Senegal foi
de destaque nos referidos casos: Caso Hissène Habre e Caso Paul Mwilambwe. (FUNDACIÓN
INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2016a).
110
dos dias atuais, o do ex-presidente do Chad, Hissène Habré, foi julgado em 2015 pelo
Senegal. Embora o mencionado caso apresente grande complexidade política e o julgamento
somente tenha ocorrido por imposição feita ao Senegal pela Corte Internacional de Justiça,
como será explicado a frente, não se pode deixar de reconhecer a importância da persecução
penal do caso em questão por colocar magistrados de um país da África como importantes
atores no julgamento, utilizando a jurisdição universal, na sua forma condicionada (Hissène
Habré havia se exilado no Senegal), para julgar o ex-ditador.
A Argentina, por sua vez, apresenta, segundo o relatório referido, dois principais casos
em curso com a prerrogativa de aplicação do princípio em comento: o Caso da Ditadura de
Franco (Querella Argentina), em que investigações estão sendo feitas em relação a oficiais
espanhóis que durante a ditadura de Franco, na Espanha, entre 1936 e 1977, cometeram
crimes contra os direitos humanos e, o Caso da Comunidade Indígena Paraguayan, em que o
Estado Argentino julga crimes cometidos no Paraguai, durante a ditadura de Alfredo
Stroessner (1954-1989). Quanto ao Chile, o relatório destaca que este apresenta o uso do
princípio da jurisdição universal em matéria cível, no caso Lopez e Ceballos.
Pertinente destacar maiores detalhamentos em relação aos casos julgados pela
Argentina, principalmente pelo destaque que o princípio da jurisdição universal teve na
América Latina após a denúncia dos crimes da ditadura franquista ter sido aceita pela justiça
argentina, em 2010 (SLEPOY, 2016). A Constituição da Nação Argentina apresenta de modo
genérico a previsão de que os magistrados do país podem realizar a persecução penal de
crimes contra os direitos humanos ocorridos fora do território nacional, tendo como base a
aplicação do princípio da jurisdição universal.
A despeito dessa previsão, no caso em questão, a ação penal contra crimes do
franquismo estava ocorrendo na Espanha, porém, as reformas legislativas do país, em 2009, as
acusações de abuso de autoridade contra o juiz do processo em Madri, Baltasar Garzón e o
reconhecimento, pelo Estado espanhol, de anistia em relação aos crimes e a seus autores,
levaram ao arquivamento do caso (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR
GARZÓN , 2015b). As famílias das vítimas, que viviam em Buenos Aires, a fim de romper
com anos de impunidade pelos crimes cometidos, e com auxílio de organizações argentinas
como as Avós da Praça de Maio e a Central de Trabalhadores Argentinos, apresentaram o
caso perante o judiciário do país latino americano e, justamente sob a aplicação do princípio
da jurisdição universal este fora aceito.
Interessante notar no caso em questão - que ainda está em curso - um duplo processo.
O primeiro é o de divulgação do princípio da jurisdição universal não somente pelo fato de
111
2016). Este avaliou o desempenho de doze países (com casos nos mais diferentes estágios: em
investigação, ajuizados, encerrados, dentro outros): Argentina, Bélgica, Chile, Finlândia,
França, Alemanha, Holanda, Senegal, Espanha, Suécia, Suíça e Reino Unido.
Desses doze países, optou-se aqui pelo destaque de cinco: Argentina, Senegal, França,
Bélgica e Espanha, sendo que em relação aos dois primeiros analisaram-se somente casos e
nos três últimos, observaram-se não só casos jugados, mas a legislação propriamente dita. Isso
se justifica no fato de que Argentina e Senegal não possuem pormenoridades em relação à
jurisdição universal em suas legislações, uma vez que, mesmo fora do plano europeu, aplicam
o princípio aqui estudado.
A escolha dos outros três países justifica-se por diferentes fatos: a) Bélgica, apesar de
ter dois casos de destaque no relatório, foi aqui incluída por ter sido vanguardista em relação à
previsão na legislação interna e na aplicação da jurisdição universal a casos práticos, como
ocorreu no julgamento do caso Unocal-Total, em que violações de direitos humanos ocorridas
na Birmânia (Myanmar) foram objetos de investigação na Bélgica. Esse caso é relevante por
envolver a atuação de empresas transnacionais, que no cenário de cosmopolitização e
proliferação de riscos globais, se configuram, em diversos casos, como atores responsáveis
por violações de direitos humanos; b) França e Espanha, por sua vez, foram selecionadas pela
quantidade de casos, apresentados no relatório, em que o princípio da jurisdição universal foi
evocado. Respectivamente possuem oito e nove casos de destaque (FUNDACIÓN
INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN , 2016a).
Anne Lagerwall (2009), ao observar a jurisdição universal nestes três países chegou às
seguintes constatações: tais países, desde o início do século XXI vem passando por
modificações legislativas no que tange à jurisdição universal e essas alterações são de duas
ordens: a) visam incluir infrações a serem julgadas utilizando-se do princípio da competência
universal32 e b) multiplicam as condições para o exercício deste princípio. Houve, portanto,
um paradoxo, no sentido de que, o campo de aplicação material em relação à jurisdição
universal foi ampliado, ao passo que o campo de aplicação formal foi condicionado a filtros.
Destas modificações, nos deteremos na segunda, já que em relação à primeira, por
reconhecerem as normas jus cogens, todos os países aludidos reconhecem os crimes contra a
humanidade, o genocídio e os crimes de guerra como violações graves aos direitos humanos e
32
Infrações para além das que são apresentadas em tratados internacionais ou costume internacional.
(LAGERWALL, 2009).
114
33
Incluem-se dentre as normas de jus cogens em matéria de crimes internacionais os seguintes crimes: pirataria,
escravidão, crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídios, apartheid e tortura. Diversos outros
crimes internacionais ainda não são reconhecidos como inclusos nas regras de jus cogens, mas a aplicação do
princípio da competência universal para julgá-los é implícita ou explicitamente reconhecida por seus
instrumentos jurídicos fundadores (tratados internacionais) ou pela própria legislação interna dos Estados
(CORDERO, 2008).
115
contra a humanidade, genocídio e delitos afins. A Lei Orgânica do Poder Judiciário de 1998,
em seu artigo 23.4 trazia a previsão nacional de reconhecimento da competência universal
incondicionada aos magistrados espanhóis. Essa previsão motivou não só a persecução penal
e o pedido de extradição do ex-general Augusto Pinochet, como também a instrução de crimes
cometidos ao longo da ditadura militar argentina, a investigação de genocídio na Guatemala,
de torturas em Guantánamo, dos genocídios em Ruanda e outras situações (FUNDACIÓN
INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN , 2016b).
A despeito da postura vanguardista espanhola em relação à investigação e punição de
crimes transnacionais e de violação aos direitos humanos, a partir de 2009, pressões políticas
passaram a influenciar fortemente o cenário legislativo espanhol, de modo que as reformas
realizadas no campo da jurisdição universal passaram a impor critérios para o uso de tal
princípio. Em 2009, a condição de ligação mínima territorial ou nacional com o Estado
espanhol acabou por impedir a ocorrência de investigações acerca de violações aos direitos
humanos cometidas pelo Estado chinês nos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008.
Além de 2009, em março de 2014 (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR
GARZÓN, 2016b), o Congresso de Deputados da Espanha aprovou alteração legislativa mais
restritiva em relação à aplicação da jurisdição universal. Segundo o Informe sobre o estado da
jurisdição universal na Espanha em 2016 (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR
GARZÓN , 20156b), o novo texto de lei aprovado contém um catálogo ininteligível e
restritivo de condições para a afirmação da jurisdição universal na Espanha, de modo que uma
das poucas possibilidades ainda possíveis é a de afirmar a jurisdição na medida em que
existam indivíduos de nacionalidade espanhola entre as vítimas do delito perpetrado34.
Como na Bélgica, as alterações legislativas ocorridas em território espanhol previram
que os crimes internacionais não podem mais ser perseguidos de modo absoluto, exceto se
houver condições que determinem certa ligação com o Estado. Na França, da mesma forma, a
presença do acusado no território francês é uma condição expressamente reconhecida na
34
De acordo com o Informe sobre o estado da jurisdição universal na Espanha em 2016, o Supremo Tribunal
espanhol emitiu, em 18 de abril de 2016, manifestação cerca do recurso de cassação apresentado contra a
descontinuidade do caso de vítimas espanholas de crimes de genocídio, de lesa humanidade e crimes de guerra
nos campos de concentração nazistas da Segunda Guerra Mundial. Segundo a Sala II, “A nova regulação do
princípio de justiça universal com respeito aos delitos de genocídio, lesa humanidade e crimes de guerra tem
procedido a uma restrição tão substancial do direito dos cidadãos espanhóis, vítimas de tais delitos em território
estrangeiro, que exclui de forma extrema seu acesso a jurisdição para defender seus direitos dentro do território
espanhol, dadas as escassíssimas possibilidades de que um dos supostos autores resida habitualmente na Espanha
(...) A grande contradição substancial da reforma é evidenciada no direito de que enquanto os delitos mais
graves de direito penal internacional (lesa humanidade, genocídio e crimes de guerra) são movidos para fora da
competência da jurisdição espanhola, (...) ” (tradução livre). Ainda na sentença, o referido Tribunal asseverou
que “o critério da nacionalidade espanhola da vítima (princípio da personalidade passiva) restou excluído para os
delitos mais graves ou de primeiro grau (...)”(tradução livre). (THE DIPLOMAT, 2016).
116
Inicialmente, somente a título ilustrativo, basta observar como, nos últimos anos, a
influência de pressões políticas externas à Espanha fomentou um cenário de mudança
legislativa profunda em relação ao exercício da jurisdição universal no país. Mais
especificamente, desde meados dos anos 2000, estavam em trâmite na Espanha duas causas
que interferiam de modo direito nos interesses da China: o Caso Tibet, que dispunha sobre a
denúncia de crimes internacionais cometidos contra a população tibetana por autoridades
chinesas e, o caso de crimes contra a humanidade, também contra tibetanos nos preparativos
para os Jogos Olímpicos de 2008.
As alterações realizadas na legislação espanhola e a exigência de filtros de ligação
entre vítimas ou autores dos crimes e o Estado julgador, levou ao arquivamento do caso que
analisava as agressões que precederam às Olimpíadas. O Caso Tibet, por sua vez, só não foi
arquivado pelo fato de que, uma das vítimas do genocídio cometido contra a população
tibetana, possuía nacionalidade espanhola (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR
GARZÓN , 2016b).
Segundo relatos de Irene Lozano Domingo, deputada espanhola do Grupo Parlamentar
de União, Progresso e Democracia (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR
GARZÓN, 2015b), atrelados às questões políticas, impulsos econômicos fizeram com que
houvesse preferência pela alteração legislativa interna. Segundo ela, a China estaria
comprando dívidas e ativos imobiliários da Espanha, de maneira que, a persecução penal de
líderes e ex-líderes do governo colocaria em risco os negócios entre os países.
Da mesma forma, questões políticas permearam o Caso Hissène Habré, envolvendo o
ex-presidente do Chad, de 1982 a 1990, que segundo a Comissão da Verdade foi responsável
por mais de quarenta mil mortes na região, além de crimes de tortura sistemática. Quando saiu
do poder, Habré refugiou-se no Senegal, levando consigo uma grande quantidade de dinheiro
que o permitiu subornar agentes públicos no intuito de criar uma rede de proteção para evitar
a responsabilização por seus atos.
Em 2001, após onze anos de impunidade, as vítimas e familiares de vitimas dos atos
cometidos por Habré, intentaram ação contra ele perante tribunais belgas, uma vez que, em tal
período, a legislação belga ainda previa a possibilidade de exercício da jurisdição universal
em sua forma absoluta. Após quatro anos de instrução, em 2005, a Bélgica encaminhou
pedido de extradição de Habré e diante da ausência de resposta, encaminhou o caso para a
Corte Internacional de Justiça. Esta última, utilizando-se do princípio de aut dedere, aut
iudicare, concedeu decisão que obrigava o Senegal a julgar a questão.
118
Tal caso foi julgado em 2015, ou seja, vinte e cinco anos depois de Habré ter deixado
o poder no Chad. Esse período foi marcado por jogos econômicos de suborno e pela falta de
vontade e mobilização política para romper com a ilusão de impunidade do ex-ditador. Em
sentido semelhante, porém ancorados no argumento de existência de leis nacionais de
imunidade, entraves se delinearam no já explicado Caso Pinochet.
Importante destacar que, em relação a questões de imunidade, em 2002 a Corte
Internacional de Justiça proferiu uma importante sentença tendo como base o conflito surgido
entre Bélgica e República do Congo, tendo sido provocada por esta última pelo fato de que a
Bélgica não teria reconhecido a imunidade conferida a agentes políticos em seus estados de
origem (FRYDMAN, 2006). Em tal decisão, a Corte Internacional de Justiça considerou que
os Ministros de Estado estrangeiros, em exercício, gozam de imunidade de jurisdição penal e
de inviolabilidade em território estrangeiro, tal como agentes diplomáticos e consulares.
No entanto, a Corte Internacional de Justiça destacou que a imunidade de jurisdição
que beneficia ministros em exercício, não significa que fomente a impunidade por crimes
cometidos, quais sejam as suas intensidades. Isso porque, imunidade de jurisdição penal e
responsabilidade penal individual são conceitos amplamente distintos (CORDERO, 2008, p.
25): a imunidade refere-se a uma questão procedimental, de modo que pode estabelecer certos
obstáculos à persecução de determinado indivíduo por certo tempo, mas não é capaz de
exonerar o sujeito ativo de violações aos direitos humanos da responsabilidade pelos crimes
cometidos. Isso, inclusive pode ser ratificado pelo fato de que todo e qualquer crime contra os
direitos humanos, previsto no jus cogens, é imprescritível.
A legislação belga, alterada em 2003, incluiu esse entendimento da Corte
Internacional de Justiça, de maneira que seu Código de Processo Penal passou a limitar a
possibilidade de realizar a persecução penal de líderes estrangeiros em exercício. Desta
maneira, os representantes de outros Estados, em visitas oficiais à Bélgica gozariam de
imunidade absoluta de jurisdição. Apesar de a decisão da Corte Internacional de Justiça
abarcar diretamente os países envolvidos na questão, indiretamente, a conclusão a que se
chegou foi a de que a imunidade de chefes de Estado ou agentes políticos pelo cometimento
de crimes contra a humanidade, genocídio e seus congêneres não é capaz de excluir a
responsabilidade penal desses agentes, uma vez que, somente não podem ser julgados
enquanto estiverem exercendo função pública.
Importante ainda ressaltar um paradoxo interessante no que se refere às diretrizes
acerca da jurisdição universal quando confrontadas com os casos práticos e com as legislações
nacionais. Neste subcapítulo optou-se por fazer menção de dispositivos específicos do
119
documento denominado de Princípios de Princeton, uma vez que as reflexões ali elencadas
elucidam de modo mais claro questões práticas envolvendo a aplicação do princípio da
jurisdição universal. Todavia, mais recentemente, em 2015, grupos de estudiosos sobre justiça
de transição e justiça penal internacional, elaboraram o documento chamado de Princípios de
Madrid-Buenos Aires (FUNDACIÓN INTERNACIONAL BALTASAR GARZÓN, 2015a),
atualizando, consoante se mencionou no item 1.2 desta dissertação, os Princípios de
Princeton.
Nesse sentido, os itens 2 e 3 deste novo documento merecem destaque por definirem
respectivamente que: a) a jurisdição universal será aplicável aos crimes de Direito
Internacional, tais quais: genocídio, crime de lesa humanidade, crimes de guerra, pirataria,
escravidão, desaparecimento forçado, tortura, tráfico de seres humanos, execuções
extrajudiciais e crimes de agressão, sendo que estes crimes podem ser cometidos por
múltiplas formas, incluindo as atividades econômicas e que possam afetar o meio ambiente; e
b) a jurisdição universal será também aplicável aos crimes econômicos e contra o meio
ambiente que por sua extensão e escala afetam gravemente os direitos humanos de grupos ou
coletividades ou que suponham a destruição irreversível dos ecossistemas.
Interessante, contudo, notar que a partir dessas duas definições, reflexões importantes
são realizadas ao longo do texto que contém os Princípios de Madrid- Buenos Aires, de
maneira que é possível de antemão notar que as diretrizes trazidas pelo documento
contemplam a ampliação e o desenvolvimento da jurisdição universal em sua forma absoluta,
em sentido oposto, portanto, às situações que foram descritas neste capítulo como exemplos
da realidade prática do princípio da jurisdição universal. Deste modo, por exemplo, o
documento em questão, em seu princípio 8, afirma que todos os Estados devem incorporar,
em suas legislações internas, o princípio da jurisdição universal (8.1), sendo que as
autoridades deveriam aplicar tal princípio nos casos expressos pelos itens 2 e 3 do documento
de Madrid-Buenos Aires, mesmo que a previsão de aplicação da jurisdição universal não
esteja contemplada nas legislações nacionais.
No mesmo sentido, o princípio 9 indica que as disposições dos Estados concernentes à
prescrição, à anistia, aos indultos e demais medidas destinadas a excluir responsabilidades não
serão aplicáveis aos crimes identificados nos itens 2 e 3, bem como, em relação a esses
crimes, as imunidades concedidas em âmbito interno não poderão ser óbices para a aplicação
do princípio da jurisdição universal por juízes de outro Estado. Interessante notar que a
motivação de ambos os documentos, os Princípios de Princeton e os Princípios de Madrid-
Buenos Aires, é a de estabelecimento de diretrizes mínimas que sejam capazes de orientar os
120
responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Os autores da ação alegaram que a empresa teria
fornecido apoio moral e financeiro ao governo militar de Myanmar, sabendo que tal auxílio
seria destinado a violações de direitos humanos por parte dos militares.
Em razão das alterações legislativas de 2003, que levaram à aprovação de novas regras
em relação à competência universal, a análise da ação em questão foi colocada em risco. Isso
porque, uma questão procedimental relevante fora colocada como condição mínima para o
exercício da competência universal: a legitimidade dos autores para intentar com a ação, uma
vez que não eram cidadãos belgas. Desta maneira, em abril de 2005, a antiga Corte de
Arbitragem da Bélgica35julgou que, segundo a Constituição do Estado, recusar aos autores,
então refugiados no território, o recurso à lei de competência universal era discriminatório.
Posteriormente, em junho do mesmo ano, a Corte de Cassação (a mais alta Corte de apelação
da Bélgica) ignorou a decisão tomada pela Corte de Arbitragem e rejeitou a persecução penal
contra a Total. Após algumas reviravoltas no caso, em outubro de 2007, em razão da lei de
competência universal de 2003, o procurador federal belga abriu novas investigações sobre o
caso, de modo que, em 2008, as autoridades do país encerraram o caso sem qualquer total
análise ou julgamento sobre o mérito dos pedidos.
Os casos práticos demonstram então que, apesar dos esforços das redes internacionais
de organizações não governamentais ligadas à proteção dos direitos humanos, bem como das
redes internacionais de juristas e de juízes, que passam a ser importantes personagens para a
mudança do paradigma de impunidade para o paradigma da responsabilidade, a força das
coisas impõe limites de realidade à aplicação do princípio da competência universal.
Indubitavelmente o reconhecimento, por parte tanto do jus cogens, como de normas
provenientes de tratados internacionais, de que existem crimes que ultrapassam a esfera dos
indivíduos e dos Estados, afetando a humanidade como um todo, atualiza a máxima kantiana
de que a infração de um direito em um lugar da Terra é sentida por todos e em todos os
demais cantos do globo.
O dever de proteção da humanidade e de solidariedade transnacional encoraja o
surgimento de uma das expressões contemporâneas da cosmopolitização da justiça, a
deslocalização judiciária, apresentada aqui como jurisdição ou competência universal. A
pretensão de intensa desterritorialização em relação ao local dos fatos em que os crimes
internacionais contra os direitos humanos ocorrem esbarra em problemas de ordem política,
econômica, jurídica e processual, corroborando para o entendimento de que, embora o dever
35
Em 2007 passou a se chamar Corte Constitucional.
122
4 CONCLUSÃO
das bases dessa justiça, a jurisdição universal, é vista como um princípio capaz de auxiliar na
transposição do paradigma da impunidade ao da responsabilidade. Desta maneira, ancorando-
se filosoficamente em premissas do cosmopolitismo e, juridicamente nas normas do jus
cogens, a jurisdição universal, em sua forma absoluta, é vista como uma forma de dever ser
capaz de romper com a impunidade e reparar as violações de direitos humanos cometidas
contra um sem número de vítimas, a partir do momento em que, os Estados que reconhecem o
princípio passam a ter o dever de aplicá-lo diante da inércia dos Estados em que os fatos
ocorreram.
Sendo assim, é possível afirmar que ao exercer a jurisdição universal em sua forma
absoluta, determinado Estado é visto como competente para julgar atos cometidos em outro
Estado, sem qualquer elemento de ligação territorial ou nacional. Observa-se unicamente,
portanto, a natureza do delito e, a jurisdição é exercida com vistas a tutelar a humanidade e
responsabilizar os sujeitos ativos, sejam eles indivíduos, Estados ou mesmo empresas
transnacionais.
No entanto, a realidade do ser afasta-se das pretensões universalistas e aproxima-se do
particularismo das práticas. Isso porque, a sociedade mundial se cosmopolitiza muito mais
através do partilhamento dos riscos sociais, do que por meio da valorização do homem.
Vivem-se tempos de constantes atentados aos direitos humanos e aos direitos ambientais, por
exemplo, e os jogos de poder da política e da economia internacionais tornam a realidade em
um campo recheado de entraves à proteção da humanidade.
No objeto de estudo deste trabalho, a presença de entraves jurídicos e políticos ao
exercício da jurisdição universal não retiram a legitimidade ou a importância do princípio,
mas reduzem de modo drástico o seu espectro de aplicação. De dever de punir, por meio da
aplicação da jurisdição universal absoluta, os Estados passaram a somente poder punir se
houver a assunção de algumas condições, em geral estipuladas pela legislação interna de cada
Estado.
O apego às estruturas nacionais de compreensão dos processos judiciais, a ainda
incipiente cooperação entre os Estados na busca pela punição de sujeitos ativos de crimes
contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra, bem como os jogos de interesse nos
campos político e econômicos nas relações internacionais, enfraquecem o princípio jurídico
em questão, de modo a afastá-lo de uma ideia de universalidade da proteção da humanidade e
aproximá-lo das premissas de conveniência, oportunidade e possibilidade de julgamento e
punição.
125
REFERÊNCIAS
ALLAN & OVERY. The alien tort claims act of 1789. Disponível em:
https://www.globalpolicy.org/international-justice/alien-tort-claims-act-6-30.html. Acesso 21
ago 2016.
BAEZ, Narciso Leandro Xavier; BARRETO, Vicente. Fundamentos teóricos de uma doutrina
dos direitos humanos universais. Revista do Direito. Revista do Programa de Pós-
Graduação, Mestrado e Doutorado da UNISC. Nº. 31, janeiro/junho 2009. p.77-99.
Disponível em: http://online.unisc.br/seer/index.php/direito/article/view/1176/875. Acesso 01
set 2016.
BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.
Tradução Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
ESPIELL, Héctor Gros. Droit de l’homme et droits de l’humanité. In: Organisation des
Nations Unies pour l’éducation, la science et l aculture. René Jean Dupuy: une oeuvre au
service de l’humanité. 1999. Disponível em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0011/001177/117755Fo.pdf. Acesso em 04 abril 2016.
FALK, Richard. Uma revisión del cosmopolitismo. In: NUSSBAUM, M. C. Los limites del
patriotismo: indentidad, pertinência y “ciudadanía mundial”. Compilado por Joshua Cohen.
Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1999.
GARAPON, A. Crimes que não se podem punir nem perdoar: Para uma justiça
internacional. Tradução de Pedro Henriques. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
SUPIOT, A. La Solidarité: enquête sur um principe juridique. Paris: Odile Jacob – Collège
de France, 2015a.
__________. La Gouvernance par les nombres. Nantes: Fayard: Poids et mesures du
monde, 2015.
WALDRON, J. What is cosmopolitan? In: The jornal of political philosophy, 8/2, 2000, p.
228-229. Disponível em:
http://www.worldhistory.pitt.edu/DissWorkshop2011/documents/JeremyWaldronWhatisCos
mopolitan.pdf . Acesso em 22 abril 2016.