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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS POR AGENTES


SOCIOEDUCATIVOS AO FENÔMENO DA
PRIVAÇÃO DE LIBERDADE FEMININA

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Mariana Dal Castel Lopes

Santa Maria, RS
2013
SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS POR AGENTES
SOCIOEDUCATIVOS AO FENÔMENO DA PRIVAÇÃO
DE LIBERDADE FEMININA

por

Mariana Dal Castel Lopes

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia,


Área de Concentração em Psicologia da Saúde, Linha
de Pesquisa: Saúde, desenvolvimento e contextos sociais da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Psicologia

Orientador: Profª Drª Dorian Mônica Arpini

Santa Maria, RS
2013
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Ciências Sociais e Humanas
Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,


Aprova a Dissertação de Mestrado

SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS POR AGENTES


SOCIOEDUCATIVOS AO FENÔMENO DA PRIVAÇÃO
DE LIBERDADE FEMININA

elaborada por
Mariana Dal Castel Lopes

como requisito parcial para obtenção do grau de


Mestre em Psicologia

Comissão Examinadora:

Dorian Mônica Arpini, Drª


(Presidente/Orientador)

Carmen Silveira de Oliveira, Drª (GHC)

Aline Cardoso Siqueira, Drª (UFSM)

Ana Cristina Garcia Dias, Drª (UFSM)


(suplente)

Santa Maria, 12 de março de 2013.


Dedicamos este trabalho aos adolescentes brasileiros institucionalizados
para cumprimento de medidas socioeducativas e aos trabalhadores das
instituições que se propõem a oportunizar processos de ressocialização.
Desejando que futuramente estas relações estejam menos pautadas pelas
diferenças.
Agradecimentos

Á Deus e meus Gurus;

À Mônica, mais do que grande professora e mestre, uma das pessoas mais importantes
da minha vida, que me ensinou coisas que realmente é preciso saber;

Ao CASEF, seus funcionários e diretora, que acolheram a pesquisa e abriram as portas


da instituição com boa-vontade e disponibilidade, dividindo conosco suas trajetórias e
percepções com honestidade e verdade;

À FASE-RS que autorizou a realização deste estudo;

Aos adolescentes brasileiros privados de liberdade, especialmente às meninas.

Aos meus colegas de Mestrado, turma querida de quem sentirei saudades;

Ao nosso grupo de trabalho, acima de tudo afetivo, com quem ri e chorei, dividi
angústias, projetos, viagens, discussões, aprendizado e que também fará
uma enorme falta;

Aos professores do Mestrado e ao Secretário Rui que sempre auxiliaram em tudo quanto
possível;

Aos meus amigos, de longe e de perto, que foram essenciais.

À minha família amada, que é a base de tudo e origem dos anseios pelos vôos altos em
busca de conhecimento e sentido. Incluo aí meus pais, irmão, tios, primos, vovó.
Obrigada pelos chás quentinhos, correções de abstracts,
incentivos incansáveis;

MUITO OBRIGADA!!
“Enquanto houver vida, há esperança de mudança, mesmo que ações não
sejam mais possíveis e que a liberdade só possa ser experimentada no
plano da consciência. [...] Se, do ponto de vista racional, uma hipótese
positiva não pode ser excluída, do ponto de vista ético, ela deve ser
adotada. É nisso que acredito, quando está em jogo a vida humana, sua
trajetória individual. Ou seja, a esperança é um imperativo ético, quando
não desautorizada pela razão. [...] O poeta Mallarmé dizia: ‘Um lance de
dados não abolirá jamais o acaso.’ Nós poderíamos dizer: um ato não
abolirá jamais a incerteza, a liberdade humana e a possibilidade de
mudança. [...] Por mais violento que seja o crime perpetrado, o sangue
derramado não mancha irreversivelmente todo o ser de quem o cometeu.
Isso porque esse ser, esse sujeito não é uma coisa, um objeto pronto e
acabado, fechado, nem uma máquina, mas uma fonte, uma fonte sempre
pulsante e aberta, imprevisível, inconstante, surpreendente, problemática,
indecifrável, de treva e luz, de vida e morte, amor e ódio, grandeza e
perversão, civilização e barbárie”.

Luiz Eduardo Soares, em Cabeça de Porco (2005).


RESUMO

Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Universidade Federal de Santa Maria

SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS POR AGENTES SOCIOEDUCATIVOS AO


FENÔMENO DA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE FEMININA

Autora: Mariana Dal Castel Lopes


Orientadora: Dorian Mônica Arpini
Data e local da defesa: Santa Maria, 05 de abril de 2013

Este estudo buscou investigar quais as percepções dos agentes socioeducativos de uma
instituição de privação de liberdade feminina sobre o local onde trabalham e suas
funções laborais. Para atingir os objetivos propostos, optamos por um viés qualitativo.
A coleta de informações foi realizada a partir de entrevistas individuais, semi-
estruturadas, com dez socioeducadores do Centro de Atendimento Socioeducativo
Feminino (CASEF) no RS. A análise dos dados revelou um impacto inicial marcante
dos participantes ao ingressarem no quadro funcional da instituição. Este choque auxilia
sua descrição do local – nesta época de ingresso – como próximo a uma unidade
estritamente prisional. Entretanto, desde o princípio, os entrevistados ressaltam a
percepção da instituição onde trabalham como diferenciada e seu desempenho
qualitativamente superior. Descrevem a história e a trajetória do CASEF como variáveis
essenciais para resultados atuais que consideram mais efetivos em comparação aos das
unidades masculinas e às suas próprias conquistas no passado. Crêem que suas funções
estão ligadas à educação e que esta teria relação estreita com a estipulação de limites –
através da disciplina – assim como do vínculo afetivo, a ser construído entre
adolescentes e socioeducadores. Enfatizam a importância de seu trabalho
compreendendo que cabe à sua categoria a maior parte da responsabilidade pelos
processos de ressocialização. Por fim, sugerimos a necessidade de se investir mais em
estudos que demonstrem experiências que possam ser seguidas, exemplos replicáveis de
relações, métodos, ferramentas que alavanquem os processos de ressocialização, para
além da pura denúncia. Compreende-se que é preciso, sobretudo, conhecer e destacar o
humano existente por trás dos estigmas relacionados a todos os envolvidos com o
fenômeno da privação de liberdade em adolescentes.

Palavras-chave: Delinqüência Juvenil; Institucionalização; Agentes


Socioeducadores
ABSTRACT

Master’s Thesis
Postgraduate Program in Psychology
Universidade Federal de Santa Maria

SOCIAL EDUCATORS AND THE MEANINGS ATTACHED TO THE


PHENOMENON OF DEPRIVATION OF FREEDOM OF WOMEN

Author: Mariana Dal Castel Lopes


Advisor: Dorian Mônica Arpini
Date and place of defense: Santa Maria, April 5, 2013.

This study aimed to investigate the perceptions of social educators of an feminine


detention institution about where they work and their work functions. To achieve the
proposed objectives, we chose a qualitative bias. Data collection was conducted from
individual semi-structured interviews with ten social educators of the Centro de
Atendimento Socioeducativo Feminino (CASEF) in RS. Data analysis revealed a
marked initial impact of the participants as they enter the workforce of the institution.
This shock helps your place description - in the period of admission - as close to a strict
prison unit. However, from the outset, respondents highlighted the perception of the
institution where they work as distinct and qualitatively superior performance. They
describe the history and trajectory of this unit like essential variables for acquiring
current results more effective compared to the results of male units and the results
achieved in the past. They believe that their functions are linked to education and that
education has a close relationship with the stipulation of limits - through discipline - as
they believe in the relationship with affective bond built between adolescents and
socioeducadores. They Emphasize the importance of their work, and understand that it
is for their category most of the responsibility for processes of socialization. Finally, we
suggest the need to invest more in studies that demonstrate experiments that can be
followed, replicable examples of relationships, methods, tools that leverage processes of
socialization. It is understood that one must, above all, know and highlight the human
aspect behind the existing stigmas related to all involved with the phenomenon of
deprivation of liberty in adolescents.

Keywords: Juvenile Delinquency; Institutionalization; Social Educators;


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO........................................................................................................10

CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO.................................................................................15
1.1. O nascimento das prisões.........................................................................................20
1.2. Os processos institucionais.......................................................................................23

CAPÍTULO 2 – PERCURSO METODOLÓGICO...................................................31


2.1. Participantes da pesquisa..........................................................................................35
2.2. Local da pesquisa: a FASE e o CASEF...................................................................37

CAPÍTULO 3 – MERGULHANDO NA INSTITUIÇÃO: SOCIOEDUCADORES


E OS PROCESSOS DE APRENDIZAGEM DE SUAS FUNÇÕES........................42
Resumo............................................................................................................................42
Abstract...........................................................................................................................42
3.1. Introdução.................................................................................................................43
3.2. Método......................................................................................................................46
3.3. Resultados e discussão..............................................................................................50
3.4. Conclusões................................................................................................................65
3.5. Referências...............................................................................................................67

CAPÍTULO 4 – DE MONITOR A EDUCADOR: AS FUNÇÕES


INSTITUCIONAIS NA PERCEPÇÃO DE AGENTES SOCIOEDUCATIVOS....69
Resumo............................................................................................................................69
Abstract............................................................................................................................70
4.1. Introdução.................................................................................................................71
4.2. Método......................................................................................................................75
4.3. Resultados e discussão..............................................................................................77
4.4. Conclusões................................................................................................................94
4.5. Referências...............................................................................................................96

CAPÍTULO 5 - “AQUI É DIFERENTE, AQUI FUNCIONA”:


ESPECIFICIDADES DE UMA UNIDADE FEMININA DE PRIVAÇÃO DE
LIBERDADE.................................................................................................................98
Resumo............................................................................................................................98
Abstract...........................................................................................................................99
5.1. Introdução...............................................................................................................100
5.2. Método....................................................................................................................105
5.3. Resultados e discussão............................................................................................107
5.4. Conclusões............................................................................................................. 118
5.5. Referências.............................................................................................................120

CAPÍTULO 6 – CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................122

REFERÊNCIAS...........................................................................................................128
APRESENTAÇÃO

Este estudo é fruto não só de uma pesquisa, mas de aproximações anteriores com o
universo de instituições voltadas ao atendimento de crianças e adolescentes em situações de
vulnerabilidade. Nestes locus especializados torna-se impossível não se mobilizar com os
dramas humanos mais intensos e, assim, afrontar nossa própria vulnerabilidade. Esse
exercício, que invariavelmente ganha fôlego, pode propiciar a ampliação da capacidade
empática, tornando mais fácil visualizar ou imaginar o que é difícil em cada tarefa
institucional. Trabalhei durante três anos em uma instituição de privação de liberdade de
adolescentes em Florianópolis, SC. Cheguei ali depois de vivências e sensibilização com a
causa das crianças e jovens pouco reconhecidos (também pelas políticas públicas) e alvos de
muitos enganos e indiferença. Diante da intensidade daquelas angústias, da complexidade das
relações, da extremidade das violências, dos olhares tão cheios de uma raiva tão grande (como
nunca tinha visto), de dramas familiares tão emaranhados e de tamanha desesperança, percebi
que são necessários outros tipos de suprimentos, além dos acadêmicos, para confrontar tais
situações.
Entretanto, uma das questões mais inquietantes suscitadas foi notar o quanto as formas
violentas de se relacionar faziam parte do contexto daquela instituição de internação. A
violência, objetiva e simbólica, permeava toda a Unidade. Os jovens para ali expedidos, em
geral advinham de contextos demarcados pela violência. Não raro haviam cometido atos
infracionais pautados pela perpetração de dor ao outro. Quando apanhados pelos órgãos
policiais, recebiam surras e nossos primeiros encontros eram marcados pela presença de seus
machucados, inclusive físicos. Na instituição, por diversos motivos, os trabalhadores
igualmente demonstravam suas cicatrizes, expressando-as muitas vezes através da
disseminação de seu sofrimento. Alguns pareciam pessoalmente atacados pelos atos dos
adolescentes e apenas superficialmente aceitavam não poder fazer justiça com as próprias
mãos. Quando encontravam brechas, portavam-se como justiceiros. Outros, que não
demonstravam uma posição explicitamente agressiva, resistiam em compreender o jovem
infrator como um sujeito para além de uma vítima ou de um delinquente.
Todos estes elementos dificultavam a comunicação, o entendimento, a
contextualização e aprofundamento das questões com as quais lidávamos diariamente. Apesar
de a tarefa institucional ter relação com a superação da violência, não parecíamos ter
mecanismos eficientes para lidar com ela. E isso era extremamente inquietante. Sensação de
que todos se sentiam feridos de alguma forma e compelidos a valer-se daquele espaço para

10
lançar o sofrimento para fora de si, jogando-o para o outro, projetando os seus algozes
fantasmáticos na instância ao lado, distante, porque diferente, mas próxima e perigosa, porque
nem tão diferente assim.
Nesse ínterim, deixei-me capturar primeiramente pelo conflito entre monitores1 e
adolescentes. Apeguei-me ao trecho de Martin Luther King que expõe o quanto o ódio não
pode suprimir o ódio, a escuridão não pode suprimir a escuridão, apenas a luz pode
assumindo postura militante entre os corredores institucionais pela paz e pelo direito dos
jovens de serem atendidos por profissionais que soubessem qual o seu papel e o
desempenhassem de forma eficiente. Com poucos resultados, as estratégias mudaram algumas
vezes, mais tarde admitindo que meus recursos tinham limites. Assim, era possível observar o
quanto a equipe técnica2, ao notadamente assumir a função de defensora dos direitos dos
internos, muitas vezes usava dos mesmos artifícios que condenava, valendo-se de
preconceito, negação dos direitos do outro, métodos talvez escusos para obter os resultados
que acreditava justos. Caíamos na falaciosa tentação de que os fins justificavam os meios.
Mas a violência também estava presente nestas relações e às vistas mais uma contradição. Os
direitos dos adolescentes jamais poderiam ser mais bem atendidos se não houvesse coerência
e justiça na própria forma de reivindicá-los. Só a luz poderia combater a escuridão. E aqui,
não se trata da luz que representa o que alguns entendem como o “bem” (em contraposição ao
“mal”), mas a luz que ilumina a própria subjetividade e faz reconhecer em si o que se
“combate” no outro.
Desta maneira, partindo de uma nova premissa, agora considerando a agressividade na
sua condição inerente ao ser humano, pôde-se pensar em ouvir e enxergar inclusive o colega
monitor. Estas pareciam tarefas indispensáveis para que se pudesse começar a dialogar e
trabalhar de forma eficaz. Entretanto, três anos em confronto com a delicadeza e
complexidade da profissão neste contexto são capazes de afetar a saúde e a determinação de
qualquer trabalhador. Também por isso nesta e em tantas outras Unidades deste tipo as
licenças para tratamento médico são tão frequentes, indicando igualmente que há algo aí a ser
melhor observado. Talvez o mais importante seja o termômetro interno, que indica quando é
hora de parar e quando é hora de recomeçar. Após este período, ficou evidente que precisava
distanciar-me daquela realidade a fim de não ser tragada por ela. Mais uma lição: todos temos
limites e melhor é respeitá-los.

1
Era este o termo usado naquela instituição para os atuais socioeducadores.
2
Termo usado para designar os profissionais técnicos, como assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, entre
outros.

11
Por estas razões, esta instituição ficou para trás, mas a inquietação tornou-se mola
propulsora de uma busca, agora teórica (e também emocional), de estruturação de tudo que foi
vivido. Em tempos de relevância da produção acadêmica rápida, quantificável e de
excelência, parece ser uma honra poder fazer um trabalho também por motivações pessoais.
Por isso mesmo, é preciso valorizar e explorar bastante bem esta oportunidade de um estudo
qualitativo, pessoalmente importante, que, espero, possa também levar a outros acadêmicos,
profissionais e sujeitos a alguma reflexão que faça sentido. No fim das contas, isso é o que
importa.
Outro ponto a ser desde já esclarecido refere-se à possível controvérsia causada pelas
afirmações que podem ser depreendidas dos resultados que serão indicados. Pois o estudo é
um recorte de uma realidade muito específica. Mas, além disso, é também uma opção que
deve ser bem expressa por questões éticas e metodológicas. Explico: simplificadamente, sabe-
se que todas as instituições de caráter prisional (dentre as quais encaixam-se as de privação de
liberdade de adolescentes), mesmo hoje, são expressões de práticas de exclusão social,
pautadas em justificativas que embasam a existência e necessidade das mesmas. Apesar dos
avanços legislativos, das transformações concretas e paradigmáticas nas unidades desta
ordem, bem se sabe que, enquanto existirem nestes moldes, farão parte de processos de
reprodução e legitimação de mecanismos de poder de uns sobre outros, obstaculizando a
verdadeira inserção social e, por que não dizer, a ressocialização. Em verdade, estas
instituições são elas mesmas produtos do modus operandi da nossa sociedade, a qual, por sua
vez, pauta-se por uma organização que, para considerar alguns inseridos, incluídos, parece
dever forjar outros nos papéis de relegados, excluídos. Os primeiros não existem sem os
segundos. Assim, partindo da ideia da instituição como locus privilegiado de manifestação e
exercício intensificado dos mecanismos sociais de poder, pode-se optar por encontrar nela o
que ainda não se vê (tanto).
Isto implica dizer que é também uma escolha partir da crítica ao modelo vigente e
acabar em uma busca – dentro da realidade ainda nem perto da ideal – do que sinaliza as
modificações já concretas que, por sua vez, podem dar bons indícios para o futuro e
esperança. Bem se sabe da perversidade que sentimentos como a esperança podem abarcar, no
sentido de que podem indicar uma eterna espera, resignação com o presente insatisfatório e
troca do incômodo do agora pela expectativa de um momento posterior melhor. Entretanto, a
desesperança pode igualmente carregar perversidade, já que deixa de possibilitar ao sujeito a
motivação necessária quando o hoje não satisfaz. Nestes casos, de sofrimento do qual não se
pode escapar, de injustiças, cristalização, impotência, não raro a esperança tem um papel

12
importante, pois diz de um movimento perene e imutável que faz com que nada dure como
está. Luiz Eduardo Soares (2003) fala ainda da esperança como imperativo ético, quando se
trata do veemente dever de se acreditar no ser humano, enquanto ele estiver vivo, pois
havendo vida, pode haver transformação.
Então, não a partir da ideia da pesquisa, mas a partir dos primeiros pontos de parada
no caminho reflexivo e do status da unidade especificamente estudada aqui (o Centro de
Atendimento Socioeducativo Feminino – CASEF, instituição modelo no país), notamos que
seria interessante privilegiar o que nela aparece de novo, de diferente, que contradiz o que se
esperaria explorar neste contexto. Para clarificar, optamos por compreender a parcela humana,
de sofrimento, sensibilidade, esforço real e consciente pelo desempenho de uma função a
priori complexa por parte dos agentes socioeducadores e também de coragem em ver o si
mesmo real. Esta população foi escolhida como foco, a princípio, porque se julgava que
pudesse ter relação com as práticas coercitivas e essencialmente punitivas e repressoras das
unidades de internação juvenis. Pretendíamos verificar suas representações sobre seu trabalho,
para melhor compreender a violência física e psicológica perpetrada nos contextos
institucionais (delatadas pelos estudos atuais). Entretanto, desde as entrevistas percebemos
que o discurso neste contexto e os significantes desta instituição em específico eram
diferentes das hipóteses e pontos preconcebidos como de partida. Surpreendentemente a
palavra vínculo foi tanto ou mais citada que a palavra disciplina. E algo aí nos indicou que
nossas pré-concepções teriam de passar por um trabalho de desconstrução.
Determinam-se assim as justificativas e pontos de partida que constituem os pilares
deste trabalho. Em termos teóricos, justamente por isso, foram procurados autores clássicos
que trazem as críticas essenciais aos modelos institucionais vigentes e que poderiam
contextualizar as práticas sociais que embasam estes modelos. Também autores
contemporâneos, com vieses sociológicos e psicanalíticos, bem como da Psicologia Social. A
apresentação da pesquisa dar-se-á através de blocos de resultados, em formato de artigos
abordando temas circunscritos. Antes deles, há um capítulo introdutório, o qual contextualiza
o tema, demarcando-o com conceitos imprescindíveis para a base do estudo. Já o segundo
capítulo traz o primeiro artigo, que trata das questões que abarcam a instituição no que ela tem
de mais duro e pesado, aproximando-a dos modelos prisionais através do olhar dos agentes
quando do seu ingresso como funcionários nas unidades da Fundação de Atendimento
Socioeducativo (FASE) do RS. O terceiro capítulo (segundo artigo) trata de outro ponto, que
pode inclusive ser considerado inverso ao primeiro, pois diz respeito ao olhar dos agentes
socioeducadores voltado às suas funções. Este olhar chama a atenção por conter em si indícios

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de contraposição à dureza institucional, deixando permear-se por sensibilidade, afeto e
vínculo. Este, por sua vez, ao ser considerado como peça-chave para o alcance do objetivo
institucional de ressocialização, traz à tona novas configurações relacionais que, em certa
medida, contradizem as críticas clássicas aos modos de intervenção pautados pelo
distanciamento e evitação da afetividade e objetalização do sujeito. Apesar da polêmica que
pode ser suscitada a partir de afirmações como essa, pelo hábito de se presenciar injustiças
invizibilizadas prioritariamente contra os adolescentes, são inegáveis aspectos ainda não bem
explorados concernentes às relações mais horizontais e potencializadoras também existentes,
ao que tudo indica. E o quarto capítulo ou terceiro artigo trata das especificidades então
vislumbradas nesta instituição, o CASEF. Desta maneira, parte-se para a apresentação do
estudo propriamente.

14
CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO

Segundo Foucault (1987, p. 14), “é indecoroso ser passível de punição, mas pouco
glorioso punir”. Assim, revelam-se a contradição e complexidade inerentes ao tema proposto
neste estudo, que abarca não só a realidade da privação de liberdade em idade ainda de
desenvolvimento, como também a dificuldade em cumprir o papel de agente que executa a lei
e lida diretamente com suas consequências.
O comportamento delinquente em jovens é um termo advindo da literatura
psicológica. Visa contemplar as ações delituosas que, infringindo as leis sociais, podem
acionar os dispositivos atuais de responsabilização dos infratores juvenis. Em nosso país, o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990) estipula um sistema não
criminal, mas de Medidas Socioeducativas, considerando como penalmente inimputáveis os
indivíduos menores de 18 anos. Com estas determinações, tem-se o entendimento de que
crianças e adolescentes encontram-se em condição peculiar, pois em desenvolvimento, sendo
dever da sociedade zelar por seus direitos e deveres (BRASIL, 1990).
Este mesmo entendimento, ampliado pelo paradigma da complexidade
(VASCONCELOS, 2002) e pelo escopo de conhecimentos da Psicologia, ampara a opção
pelo termo “comportamento delinquente”. Trata-se de enfatizar o caráter temporal da ação
transgressora, situada em um momento e em condições contextuais específicas. Mesmo a
transgressão perpetrada por autores em maioridade não poderia determiná-los, definindo-os.
Assim, para quem ainda não é adulto, mas já foi capaz de ato socialmente ilegal,
ameaçador e/ou violento, resta o chamado Sistema Terciário 1 do ECA (BRASIL, 1990). Ele
prevê uma série de Medidas Socioeducativas, dentre as quais a mais rigorosa e excepcional
deve ser a de privação de liberdade, aplicada em caráter de brevidade e desde que respeitados
diversos fundamentos específicos e direitos do indivíduo. Segundo Saraiva (2008),
defendendo a Doutrina do Direito Penal Mínimo, existe um reconhecimento sobre a
necessidade da privação de liberdade em situações específicas assim como da viabilidade da
construção de penas alternativas. O autor afirma que em algumas circunstâncias tal medida é
mesmo “uma necessidade de retribuição e educação que o Estado deve impor a seus cidadãos
que infringirem certas regras de conduta” (SARAIVA, 2008, p.11). Todavia deve-se garantir
que esta retribuição seja justa e proporcional.

1
O Sistema Terciário diz respeito às medidas socioeducativas aplicáveis a adolescentes em conflito com a lei,
autores de atos infracionais.

15
Porém, mesmo com os avanços brasileiros em termos de legislação, sabe-se que o
desenvolvimento dos jovens não tem sido plenamente considerado segundo suas
especificidades, nem as vulnerabilidades a que têm sido expostos têm, de fato, sido
diminuídas. Pesquisas apontam que, em geral, a forma como as medidas protetivas e
socioeducativas vem sendo concretizadas dão esparsas garantias de (re) investimento no
desenvolvimento do adolescente, como prevê o ECA (BRASIL, 1990). Ao que tudo indica,
no caso das unidades de privação de liberdade, a perspectiva repressiva-punitiva ainda tem
estado presente em muitas delas (ASSIS et al., 2002, OLIVEIRA, 2001, SOARES, 2004,
ZAMORA, 2005). Assim como parece haver uma tendência de que as causas e critérios para a
institucionalização no passado mantenham-se, mesmo atualmente, devido à persistente
continuidade de uma cultura de exclusão (LOPES; ARPINI, 2009).
Outros aspectos igualmente precisariam ser revistos nas instituições. A separação
pelos critérios de idade e natureza do delito, a estrutura física, os recursos humanos e as ações
pedagógicas que devem possibilitar a reinserção social do jovem são elencados por diversos
estudos como deficitários. Também se diz que as instituições não raro fracassam em
promover a reconstrução do projeto de vida do adolescente, não alcançando frutos positivos
nos índices de reincidência (ARPINI; QUINTANA, 2009, BRASIL, 2006, OLIVEIRA;
ASSIS, 1999, ZAMORA, 2005, ZAPPE; DIAS, 2011).
Esta perspectiva contrapõe-se à legislada. A internação do adolescente que infraciona
é prevista normativamente como meio de garantir que tenha oportunidades tanto no que tange
à educação, profissionalização, como aos aspectos sociais, à saúde e às relações como um
todo. A ressocialização deve abarcar esforços no sentido da integração familiar, da
participação no sistema de ensino, da ocupação de um lugar na comunidade e, se for o caso,
do exercício de uma atividade profissional, pois, ainda que a medida de privação seja
cumprida em regime fechado, a instituição não deve ter caráter de fechamento total. Sabe-se
também que a ressocialização deve estar baseada em relações afetivas passíveis de auxiliar os
processos identificatórios (OLIVEIRA; ASSIS, 1999, ZAPPE; DIAS, 2011). Acrescenta-se
ainda que, mais importante que se valer de processos educativos firmados em rígida
disciplina, seria preciso que as instituições investissem no potencial dos adolescentes,
incrementando sua auto-estima e sentimentos de valor pessoal (ARPINI; QUINTANA, 2009;
SOARES, 2004).
Sobre as razões que obstaculizam uma abordagem mais eficiente por parte das
instituições pode-se dizer que são inúmeras. Contudo é preciso citar os modelos de

16
atendimento predominantemente baseados em uma formação menorista2 (ZAMORA, 2005).
Da mesma forma, percebe-se a escassez de planejamentos que busquem contemplar não só a
formação profissional e em termos escolares, mas também em termos afetivos e de cidadania.
Outros fatores dizem respeito à dificuldade em se efetivar capacitações específicas para os
funcionários nas unidades de atendimento, em se estabelecer trabalhos multidisciplinares
entre os técnicos e a se introjetar as bases que dão sustentação ao entendimento dos Direitos
Humanos por parte do corpo social.
Nesse sentido, vários autores discorrem em uníssono sobre a necessidade premente da
absorção social dos conceitos que culminaram na implementação de leis de proteção
específicas. Autores como Arpini e Quintana (2009), Oliveira (2001), Saraiva (2008), Soares
(2004), Takeuti (2002) e Zamora (2005) apontam que o preconceito, o estereótipo de
“elemento perigoso” projetado no adolescente pobre reforça e serve de barreira para a
assimilação da Doutrina da Proteção Integral. Contudo, tal transformação não dependeria
apenas de leis ou gestores melhores: resultaria do “irreversível processo de construção de
direitos humanos conquistados e afirmados pela marcha civilizatória da humanidade”
(SARAIVA, 2008, p. 4).
Desta forma, constata-se que a violência não se encontra exclusivamente nas
instituições. Nem é uma questão especialmente contemporânea. E também não se pode dizer
que os jovens estejam mais envolvidos com a criminalidade do que os adultos. Estas
falaciosas crenças apenas distorcem uma realidade desconhecida ou ignorada pela maior parte
da população. A verdade é que a violência, apesar de tornar-se mais visível e, por vezes, mais
extrema nas unidades de privação de liberdade (FOUCAULT, 1987, ARPINI; QUINTANA,
2009), está presente, sobretudo, nas relações e estruturas sociais humanas. No caso do
comportamento delinquente, pode-se dizer que invariavelmente tem ligação com a exposição
a fatores de risco e situações de vulnerabilidade (ASSIS; CONSTANTINO, 2001, MARIN,
2002, DELL’AGLIO; SANTOS; BORGES, 2004, SOARES, 2004, ZAMORA, 2005,
VILHENA et al., 2009, NARDI; DELL’AGLIO, 2010, ZAPPE; DIAS, 2011). Segundo Nardi
e Dell’Aglio (2010), apropriando-se do conceito de Antoni e Koller (2000), os fatores de risco
são aqueles aspectos que servem como obstáculos para a vida do sujeito, podendo ainda
influenciar o aparecimento de outros problemas e dificuldades. Em geral, dizem respeito a
elementos constitutivos do próprio indivíduo e/ou a características do meio onde vive e se
desenvolve.

2
Referência feita por Zamora (2005) ao pensamento base da Doutrina da Situação irregular que diferenciava
“criança” e “menor”, pois associava pobreza, vulnerabilidade e criminalidade;

17
As autoras, em revisão teórica sobre o tema, elencaram estudos com os principais
resultados encontrados em termos de riscos para delinqüência juvenil. Dentre os aspectos
individuais podem ser apontados: características de gênero; características psicológicas;
menor empatia; menor capacidade de controle das emoções; dificuldades em internalizar
normas e limites; ausência de sentimento de culpa. Quanto aos elementos contextuais destaca-
se: relações familiares pautadas por problemas de comunicação, coesão, hierarquia,
violências; baixas condições socioeconômicas; contexto extrafamiliar violento; influência de
pares/grupos; uso de drogas; baixo rendimento e/ou evasão escolar (NARDI; DELL’AGLIO3,
2010).
O que se pode depreender daí é que o jovem que chega às instituições privativas de
liberdade, independentemente de gênero, traz consigo um problema que vai além de sua
história particular de vida (ZAMORA, 2005). Não são questões que se resumem às suas
características pessoais ou a falhas morais. Além dos fatores de risco influentes, entra em jogo
também a estrutura social e trajetória histórica, longa e intensa, de políticas de atendimento
assistencialistas, paternalistas, negligentes e/ou ausentes. Investimentos em educação e
cidadania foram, por muito tempo (se não são até hoje), vistos como perigosos, já que um
povo educado possui força e consciência, dínamos para viabilizar transformações na ordem
social. Assim, “construindo a imagem da infância perigosa, tornou-se fácil justificar o
tratamento moralizador e saneador dado às crianças pobres” (ZAMORA, 2005, p.92). E tal
construção marca ainda muitas vidas.
Inequivocamente, não se pode concluir que todas as relações que se criam
institucionalmente nem todas as suas vicissitudes sejam perversas. Estudos apontam inclusive
as medidas de internação como possíveis fatores de proteção na trajetória de adolescentes
(COSTA; ASSIS, 2006, NARDI; DELL’AGLIO, 2010). Alguns autores sugerem a
possibilidade da promoção da saúde e resiliência durante a internação dos jovens. Isto porque
se diz que a formação dos vínculos afetivos, na medida em que se dê positivamente, pode
servir como base para o fortalecimento do adolescente no enfrentamento das situações
desafiantes (COSTA; ASSIS, 2006). De qualquer modo, a condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento, sem dúvida nenhuma, deixa o adolescente que chegou às vias de transgredir
a lei (com toda complexidade que vem antes disso) especial e perigosamente vulnerável ao

3
Alguns dos estudos revisados pelas autoras que trouxeram estes dados foram: Paludo & Koller (2005); Pinho et
al. (2006); Shoemaker (2000); Loeber & Dishion (1983); Patterson, DeBaryshe & Ramsey (1989); Gehring
(1993); Wood (1985); Pedersen (1994); Branco, Wagner & Demarchi (2008); Assis & Constantino (2005);
Assis, Pesce & Avanci (2006); Castro (2006); Gallo & Williams (2005); Silva & Hutz (2002) entre outros.

18
que se pensa e se espera dele nas instituições, estas ilhas de “mortificação do eu”
(GOFFMAN, 1999) e “de docilização de corpos” (FOUCAULT, 1987).
Ao trabalhador das unidades de internação e seus gestores, embora em geral restem
essencialmente as acusações pela manutenção dos eventuais processos de desprestígio dos
internos, devem-se também análises mais aprimoradas. O fenômeno da violência é visto
comumente como algo localizado e externo, distante e contrário a uma moral tida como
impecável (CALLIGARIS, 2008, ROSA, 2007, SOARES, 2004, TAKEUTI, 2002). Criam-se
teorias baseadas no senso comum para explicar a natureza humana e a violência, que
responsabilizam a genética, a moral e o caráter pelo “mal”, que estaria sempre
prioritariamente no outro. Muitos dos profissionais das unidades de internação, incluindo
aqueles com formação técnica, invariavelmente entrelaçam-se nas malhas deste entendimento
falacioso. Torna-se difícil esquivar-se totalmente de ações violentas ou violadoras do direito
alheio. Entretanto, ou, talvez por isto mesmo, entende-se como urgente a necessidade de
desmistificação também do papel dos profissionais e de renovação dos olhares que se voltam
para a complexidade institucional. Mais do que nunca, anseia-se por soluções e estratégias ao
invés de velhos modos de encontrar novos bodes expiatórios.
Sobre a especificidade das instituições femininas, justifica-se que são apontadas como
locais menos visados pelos estudos atuais e que, em alguns casos, alcançam resultados mais
positivos (BRASIL, 2001). Cabe ressaltar que em Levantamento feito pela Secretaria
Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNPDCA/SDH/PR), em
2010, sobre o Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em conflito com a lei, constatou-
se que apenas 5% das internações em regime fechado contemplam o sexo feminino (BRASIL,
2011). Assis et al. (2002), em pesquisa, identificaram a instituição feminina existente no Rio
de Janeiro, em comparação com as masculinas, como mais dinâmica. Existe a possibilidade
de que unidades femininas tendam a possuir um caráter menos agressivo, repressivo e
carcerário, sinalizando questões de gênero envolvidas nessa realidade.
Assim, este trabalho pretende abordar questões emblemáticas envolvidas na
institucionalização juvenil, especificamente feminina. Almeja partir da ótica dos trabalhadores
institucionais, os quais, se entende, concretizam as relações que poderão contribuir
positivamente ao retorno à sociedade por parte dessas jovens. E para abarcar a complexidade
do processo, parte-se da contextualização histórica do fenômeno da privação de liberdade,
principalmente através do entendimento crítico que vê na exclusão social a forma adotada
para se lidar com os comportamentos indesejáveis na sociedade.

19
1.1. O nascimento das prisões4

Para Michel Foucault (1987), historiador e filósofo francês, a punição de


comportamentos considerados prejudiciais ao corpo social está intimamente ligada ao poder e
tem acompanhado a história da humanidade. Ela foi exercitada de diversas formas. A mais
remota delas, conhecida através de documentos primordialmente franceses que remontam a
Idade Média, se dava através de rituais públicos de suplício. Nestes predominavam ações de
tortura aos condenados, frente a uma platéia a qual se objetivava dominar e atemorizar. As
punições eram dadas extrapolando o próprio delito cometido, geralmente com requintes de
crueldade. Além disso, o aparelho judiciário funcionava de acordo com a vontade do soberano
local, no seu representante, o magistrado, e o processo criminal comumente era secreto. Podia
se desenrolar sem que o acusado ou o público soubessem das imputações, provas ou
depoimentos de testemunhas: “Na ordem da justiça criminal, o saber era privilégio absoluto
da acusação” (FOUCAULT, 1987, p. 33).
Desta maneira, os suplícios eram mais do que formas cruéis de vingança, mas métodos
de dominação, sustentação e intensificação da relação de poder soberano-súditos através do
terror que visavam gerar nestes últimos. Esperava-se que, assistindo ao espetáculo de
sofrimento físico causado ao sentenciado, os potenciais criminosos e demais populares se
submetessem ao poder monárquico e suas ações ou reações fossem coibidas.
Entretanto, tais formas de punição produziram efeitos negativos para sua manutenção.
Com a aproximação do século XIX, por toda Europa espalharam-se argumentos a favor de
maior “humanização” nas práticas punitivas. Verificou-se impossível não aproximar a figura
do carrasco com a do criminoso, dos magistrados com a dos assassinos, pela semelhança de
suas atitudes. Uma nova moral do ato de punir tornou-se crescente. O incremento dos modos
de produção capitalistas também modelou transformações sociais, políticas e econômicas.
Tais mudanças resultaram em tipologias criminais diferentes e penas igualmente
diversificadas. “O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos
da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos
direitos suspensos”. Evidencia-se a “vergonha” de punir que dá lugar à necessidade de
“educar” e o objetivo transforma-se, não para punir menos, mas para punir melhor
(FOUCAULT, 1987, p.15).

4
Nesta sessão será usado particularmente um autor como referência (Michel Foucault), devido à importância e
originalidade de sua obra, sobretudo para a compreensão do uso dos mecanismos de punição e vigilância ao
longo da história.

20
Assim, constitui-se um novo sistema penal a partir do século XVIII na Europa,
espalhando-se por todo Ocidente. A partir dele, o espetáculo da punição deve ser suprimido e
a dor do condenado anulada. Chega-se à conclusão de que é preciso que a justiça criminal
puna ao invés de se vingar. E a melhor punição se daria não através do castigo ao corpo, mas
à “alma”. Por isso pode-se perceber a suavização das penas e a complexificação dos
inquéritos. Os julgamentos aparentemente extrapolam a verificação da verdade sobre o crime,
deixando entrar em cena elementos externos, diagnósticos técnicos. Estes tornam a sentença
algo maior do que o simples julgamento da culpa, mas uma análise que aprecia a normalidade
e prescreve a partir de um conhecimento técnico uma normalização possível. “A execução da
pena vai-se tornando um setor autônomo, em que um mecanismo administrativo desonera a
justiça, que se livra desse secreto mal-estar por um enterramento burocrático da pena”
(FOUCAULT, 1987, p.14).
Os mecanismos que se desenvolvem são condizentes a uma sociedade que Foucault
(1987) chama de disciplinar. Pensa-se em uma economia de poder e, a partir desta, vigiar,
observar e controlar são ações mais viáveis e tão efetivas quanto a sujeição física e a coerção.
Assim, o modelo prisional vai se definindo como a pena por excelência, mas apenas porque a
forma-prisão de alguma maneira já existia. Ela teria surgido quando se elaboraram e
disseminaram processos, por todo corpo social, de repartição, fixação e distribuição dos
indivíduos. Quando se tornou importante o corpo útil e dócil e, para tanto, se constituíram
dispositivos visando tirar dos sujeitos o máximo de tempo e de força, treinar seus corpos,
torná-los expostos para que pudessem ser observados e para que se constituísse sobre eles um
saber que retroalimentasse este processo. “A forma geral de uma aparelhagem para tornar os
indivíduos dóceis e úteis, através de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-
prisão, antes que a lei a definisse como a pena por excelência” (FOUCAULT, 1987, p.195).
A disciplina, portanto, serviria como uma tecnologia de poder com o objetivo de
individualizar e controlar os sujeitos, estando intimamente ligada às instituições. Não seria
possível discipliná-los sem uma delimitação espacial, e o encarceramento representa bem os
ideais de não aglomeração, visibilidade total e espaço para treino dos internos. Os corpos
“seqüestrados” pelas instituições disciplinadoras seriam encorajados a despirem-se do que
lhes constitui como tais para reconstruírem-se conforme o que seria necessário e útil
socialmente.
Prova disso seriam as semelhanças existentes entre as prisões e as instituições com
outros fins que não penais. Os antigos sanatórios para doentes mentais, os reformatórios
juvenis, internatos, quartéis, conventos, entre outras organizações, foram reconhecidos como

21
próximos por diversos autores justamente por compartilharem algumas especificidades
(BASAGLIA, 1985, FOUCAULT, 1987, GOFFMAN, 1999). Estas seriam condizentes aos
ideais disciplinares: promovendo o “fechamento” dentro do locus institucional, potencializam
o controle das muitas necessidades humanas, organizando-as burocraticamente e submetendo-
as a um poder total.
Além disso, suplantando as técnicas disciplinares, Foucault (1987) argumenta que
desde o final do século XVIII teríamos entrado na era do biopoder. Foram se desenvolvendo
técnicas concomitantes que, somadas às de sujeição dos corpos, visam à gestão da vida
(controle de natalidade, mortalidade, entre outros). Os indivíduos, dentro e fora das
instituições, são perpassados por mecanismos de regulação ou de segurança que interferem
em suas vidas (VICENTIN, 2004).
Por este motivo torna-se fácil compreender o caráter de obviedade que a prisão
assumiu na sociedade contemporânea. Mesmo em se conhecendo todos os seus
inconvenientes, apesar das denúncias e estudos que ressaltam seu insucesso, parece
impossível pensar em algo para substituí-la. Para Foucault (1987, p.196) ela seria vista como
“a detestável solução, de que não se pode abrir mão”. Paralelo a isto, Oliveira (2001, p. 132)
afirma que “a prisão continua sendo proposta como seu próprio remédio e única maneira de
reparar seu permanente fracasso”.
Esta naturalidade com que se enquadra a instituição-prisão em nossa sociedade diria
respeito ao fato de ela parecer uma pena justa e igualitária, na medida em que retira do sujeito
um bem de posse e valor, a princípio, universais: a liberdade. Por outro lado, a detenção
parece não fazer mais do que reproduzir todos os mecanismos que são encontrados no corpo
social, embora possa os acentuar, não parecendo diferente, qualitativamente, do viver fora dos
seus muros. Esta combinação de aspectos “jurídico-econômicos” e “técnico-disciplinares”
teria feito a prisão aparecer como a forma mais “imediata e mais civilizada de todas as penas”,
concretizando-a e solidificando-a (FOUCAULT, 1987, p. 196).
Outro aspecto que parece bastante claro nos mecanismos prisionais se refere à
condição que se objetiva e supõe que tenham, superando a mera privação de liberdade: a de
transformar os sujeitos. Goffman (1999, p. 22) argumenta que as instituições deste tipo são
“estufas para mudar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao
eu”. Oliveira (2001, p. 139), por sua vez, ressalta que nestes locais, não se espera mais que o
corpo seja supliciado como no passado, mas que possa ser corrigido e (re) formado,
perpassado pela “normalização” que promoveria uma “experiência de conversão, em que se
busca destruir os hábitos antigos dos sujeitos devolvendo-os, transformados, ao Estado que os

22
perdera”. A partir desta faceta institucional, pode-se ingressar em outro ponto de discussão,
plausível de menção particular: os processos que se dão dentro das instituições prisionais.

1.2. Processos institucionais

Goffman (1999), em estudo sobre o funcionamento de instituições e o comportamento


de seus membros, buscou definir o que categorizou como “instituições totais”: locais de
moradia e trabalho onde pessoas seriam reunidas por encontrar-se em situação semelhante,
permanecendo apartadas da sociedade mais ampla. Tal estadia haveria de ser por período de
tempo considerável e os vários âmbitos de suas vidas organizados e administrados
formalmente.
Basaglia (1985, p.101), por sua vez, debruçou-se sobre o que chamou de “instituições
da violência”, referindo-se a todas as organizações que em seu funcionamento estabelecem ou
se valem de uma divisão das funções exercidas, a qual estaria baseada na divisão entre os que
têm poder e os que não têm. Tal dinâmica traduziria “uma relação de opressão e violência
entre poder e não poder, que se transforma em exclusão do segundo pelo primeiro”.
Já Oliveira (2001, p. 151), em obra sobre a violência juvenil na contemporaneidade,
analisa também as instituições responsáveis pela privação de liberdade dessa população. Aí
destaca o que chama de “pedagogia da punição” como aquela que embasa o funcionamento e
os objetivos, mesmo que implícitos, destes locais.
Assim, parece haver certa convergência entre as ideias e conceitos mencionados por
Goffman (1999), Basaglia (1985), Foucault (1987) e Oliveira (2001). O que parece reuni-los
diz respeito aos processos que se dão dentro das instituições que teriam como objeto o
indivíduo e como tarefa, mesmo que velada, sua transformação.
Os processos de transformação, correção, modelação, treinamento, e – por que não
dizer? –, de reeducação dos sujeitos são descritos pelos autores, divergindo quase que
exclusivamente em seus termos.
Goffman (1999, p. 20) defende que existe um caráter binário nas instituições que
diferencia dois grupos: o dos internos e o dos dirigentes. Entre eles, é essencial que se
mantenha a distância e a tensão necessárias para o controle dos primeiros pelos segundos.
Assim, constituem-se “dois mundos sociais e culturais diferentes, que caminham juntos com
pontos de contato oficial, mas com pouca interpenetração”. No mundo do internado, torna-se
importante o processo de admissão ou, como o autor define: “as boas vindas”. Neste contexto

23
de iniciação, há a crença de que se a “vontade puder ser dobrada” inicialmente, a resistência
se quebra e o resultado é a almejada submissão e facilidade de controle. Assim, os atores
institucionais lançarão mão de alguns dispositivos que visam desapropriar, padronizar, expor,
isolar, desfigurar o sujeito recém institucionalizado.
Para tanto, serão tomadas providências bastante específicas no sentido de afastar o
indivíduo cada vez mais do que poderia lhe manter identificado com sua condição anterior.
Por esta razão seria comum o isolamento inicial do interno, o afastamento dos familiares, de
qualquer contato com o mundo externo. Além disso, seriam desencorajados os antigos papéis
desempenhados e recolhidos os bens ou propriedades. Goffman (1999) refere este como o
processo de “mutilação” ou “mortificação do eu”, a “perda do equipamento de identidade”,
através do qual a equipe dirigente procura alcançar senão os objetivos explícitos, os implícitos
da instituição. Não raro, o interno perderia inclusive seu nome, podendo ser chamado por um
apelido, concretizando ainda mais profundamente sua condição de objeto.
Outro ponto importante, também abordado por Foucault (1987), tem relação com a
construção de um saber sobre o detento. Goffman (1999) neste sentido alega que, dado o
ingresso do novo interno, partir-se-ia para a coleta de informações a seu respeito, as quais
possibilitariam categorizações e enquadramentos. Aqui, ao ser “arrumado” e “programado”, o
novato estaria sendo submetido à “máquina administrativa” e adaptando-se ao poder
institucional.
Entretanto, para Foucault (1987, p. 210), esse mecanismo tem razões mais complexas.
Afirma, da mesma forma, que “o delinquente torna-se indivíduo a conhecer” e a prisão o local
para formar esse saber. Justamente por isto os processos panópticos encontraram espaço
privilegiado nas instalações penitenciárias: possibilitavam “vigilância e observação, segurança
e saber, individualização e totalização, isolamento e transparência” (idem, p.209). Mas alega
que esse conhecimento acessado serviria como dispositivo para regulação, manutenção,
sustentação e justificação da prática penitenciária, da autonomia carcerária e da modulação
das penas. A medida penal pode, assim, ser transformada em uma “operação penitenciária,
que fará da pena tornada necessária pela infração uma modificação do detento, útil para a
sociedade” (ibidem, p. 210). Diz-se então que na instituição o que é alvo é o delinquente e não
o infrator. Eles distinguem-se porque este seria caracterizado por um ato, e aquele por sua
vida, que lentamente vai transparecendo na investigação biográfica.
Não se pode deixar de ressaltar a relevância desta característica institucional. Dir-se-ia
que se a inserção do aspecto “biográfico” não vem para “melhor fundamentar a sentença”
(FOUCAULT, 1987, p. 210). Vem para justificar os mecanismos já utilizados, as teorias já

24
formuladas, para retroalimentar os processos instaurados. Nesse sentido que se afirma que a
biografia “faz existir o criminoso antes do crime e, num raciocínio-limite, fora deste” (idem,
p. 211). Ou, o que se poderia denominar de “profecia autocumprida” (SOARES, 2004): a
delinqüência seria o único resultado passível de ser encontrado em uma busca pelo
“perigoso”, o “anormal, o “anômalo”, que “o próprio aparelho do castigo fabricou como
ponto de aplicação do poder de punir e como objeto do que ainda hoje se chama a ciência
penitenciária” (FOUCAULT, 1987, p. 213). Este autor (1987, p. 213) acrescenta:

Dizem que a prisão fabrica delinquentes; [...] Mas ela os fabrica no outro
sentido de que ela introduziu no jogo da lei e da infração, do juiz e do
infrator, do condenado e do carrasco, a realidade incorpórea da delinqüência
que os liga uns aos outros e, há um século e meio, os pega todos juntos na
mesma armadilha.

Zamora (2005, p. 97), sobre este mesmo aspecto, destaca que a instituição juvenil pede
ao profissional justamente para investigar a história de vida, buscar situações e motivações
que pudessem ser apontadas como causas para os delitos. Seria um pedido para “farejar”
possíveis tendências e pendores, partindo do infrator para encontrar o delinqüente. Oliveira
(2001) igualmente corrobora com Foucault (1987) ao dizer que o aprisionamento não visa o
corpo que deveria ser supliciado como nos séculos anteriores, mas a essência do sujeito que
deve ser transformada.
Entretanto, a mudança exigida institucionalmente objetiva um ideal por vezes tão
inalcançável para o interno quanto seria para qualquer cidadão livre. Espera posturas e
virtudes dentro do que Oliveira (2001) chama de um “código de boas maneiras” que são
difíceis de ser adotadas em qualquer contexto (p.139). Em uníssono, Campos (2005) ressalta a
exigência institucional de um “princípio de respeitabilidade” baseado na filosofia franciscana:
“Respeite para ser respeitado”. Porém, esta máxima serviria apenas em caráter unilateral, já
que deve ser atendida pelos internos, mas não necessariamente pelo trabalhador da casa.
Todos os mecanismos de controle e de “mortificação do eu” descritos por Foucault
(1987), Goffman (1999) e Oliveira (2001) dentro das unidades de privação de liberdade
(exigência de deferências verbais, proferir xingamentos e humilhações, exigir pedir permissão
para tudo, expor a intimidade) parecem servir para deixar claro que apesar da competência do
interno para viver, ele não tem autorização para fazê-lo da forma como quer. Justamente o
jovem, aquele que se encontra em busca de autonomia e independência.
Assim, a partir de Oliveira (2001), ficam nítidos alguns pontos bastante contraditórios
no funcionamento institucional. Um deles seria a exigência por parte dos educadores de uma

25
conduta regrada, moral, educada, honesta e convertida dos internos, enquanto, na prática,
funcionários e gestores muitas vezes portam-se sem “refinamento”5 e agem sem atenção à
ética e justiça. Outro ponto seria o foco extremo no controle dos jovens, justificado pela
necessidade de primar pela segurança do local. Entretanto, as estruturas físicas pecam pela
precariedade justamente nesse sentido. Também se ressalta a atenção e cuidado para
manutenção da distância e mesmo da rivalidade entre trabalhadores e internos. Contudo em
geral ambos os grupos pertencem a um mesmo estrato social ou localidade, podendo
compartilhar “práticas e códigos culturais”. Há ainda a crença na possibilidade de
aprendizagem por parte de infratores “novatos” das práticas dos mais experientes, através de
um efeito de contágio. Em contrapartida, os próprios funcionários muitas vezes agenciam uma
série de delitos dentro das instituições, dando, por si só, o mau exemplo (OLIVEIRA, 2001).
Seguindo no apontamento das contradições institucionais, tem-se que a distância e
escassa comunicação entre internos e direção é justificada freqüentemente pela necessidade de
fazer uso da autoridade em casos de intervenções mais sérias. Acredita-se que esta autoridade
estaria comprometida se houvesse maior contato entre esses dois mundos. Porém, tal
percepção implica que, se não houver necessidade de intervenção, a direção não precisa
conhecer os internos, o que parece suficientemente incoerente. Outro fator a ser levado em
conta diz respeito ao discurso progressista encontrado em meio aos funcionários. No entanto,
concomitantemente vê-se a ação repressora que inclusive denuncia e desconfia do colega que
trabalha de maneira diferente, conversando com os adolescentes, trazendo materiais não
permitidos sem autorização (OLIVEIRA, 2001).
Pode existir também um sistema de regras as quais vão sendo criadas
convenientemente, dependendo das circunstâncias. Ao mesmo tempo, as reações adversas a
essas regras podem ser consideradas sintomas, retroalimentando a justificativa para a criação
de novas e mais severas regras, sem espaço para questionamento do sistema. Outra realidade
incongruente tem relação com o fato de os internos muitas vezes serem acusados de
“vagabundos”, sendo que as atividades profissionalizantes ou educacionais não são
estimuladas. Em alguns casos, inclusive, existe a opinião corrente de que “se o guri está
dormindo, não incomoda” (OLIVEIRA, 2001, p.152). Tal atitude gera ociosidade e insônia
noturna, que por sua vez, pode ser tratada com remédios tranqüilizantes. Isto porque não raro
entende-se que o aprisionamento surgiu não para educar, mas para punir. O objetivo, nesse

5
Em alusão à Goffman (1999).

26
ínterim, seria justamente que nada se aprendesse durante este tempo, contrariando exatamente
a base das legislações atuais.
Tais problemas trazem à tona uma realidade importante. Oliveira (2001) afirma que,
na prática, o entendimento corrente é de que o objetivo institucional é o de fazer o adolescente
sofrer, para, deparando-se com o horror da punição, não voltar a cometer infrações. Muito
similar ao sentido dos suplícios da Idade Média. Entretanto, a evolução do entendimento
social definiu atualmente outra lei, a qual entende e estabelece a privação de liberdade como
medida socioeducativa. Segundo a autora, por educação, na prática institucional, talvez se
entenda que “o homem é um aprendiz e a dor é seu mestre”. Definição que se contrapõe
expressivamente ao conceito e percepção que embasa a literatura e teorias científicas que se
debruçam sobre a juventude, a violência e as formas de se trabalhar eficientemente para
superá-la.
Basaglia (1985) aproxima-se da visão crítica até aqui exposta quanto aos mecanismos
sociais e institucionais presentes nos ambientes restritivos de liberdade. Compreende o
interno6 como foco de uma violência social e institucional que visa mantê-lo nesta situação,
adaptado e inconsciente, sem poder para reagir à sua exclusão. O autor, em sua análise, passa
a considerar a institucionalização como o cumprimento de um mandato de exclusão do outro
através do saber especializado, que pode estar mais a serviço do mantenimento do status quo
e da negação das contradições do que ao verdadeiro bem estar dos indivíduos.
O que o conjunto desses estudos parece demonstrar é que existiria um mandato social
a ser cumprido pelas instituições “totais”, de “violência”, que se valem da “pedagogia da
punição” e que têm por objetivo a “vigilância, o controle e a normalização” (BASAGLIA,
1985, FOUCAULT, 1987, GOFFMAN, 1999, OLIVEIRA, 2001). Mesmo que os
profissionais que aí atuam sejam caracterizados como responsáveis pelas intervenções
pautadas por violações de direitos básicos, a própria estrutura social ratifica processos de
exclusão similares e igualmente violentos. O “trabalho sujo” fica localizado em determinados
meios, viabilizado por algumas cabeças e mãos. Contudo, o processo que mantém e
fundamenta o sistema vigente de combate às condutas infracionais é reforçado por todo corpo
social.
Takeuti (2002) também exemplifica de que forma a estrutura social seria pano de
fundo para os processos institucionais. A autora afirma que as periferias urbanas são os
espaços para onde são projetados e onde então podem ser testemunhados alguns dos

6
Muito embora Basaglia refira-se à institucionalização psiquiátrica, o paralelo entre o interno desta e o
prisioneiro parece poder ser feito sem maiores prejuízos.

27
principais dramas humanos, como violência e desigualdade social. Tais questões estariam
diretamente relacionadas à exacerbação de uma racionalidade capitalista onde a riqueza, ao
ser gerada, produz concomitantemente a pobreza, a miséria e a exclusão de pessoas do
mercado formal de trabalho e da possibilidade de consumo. Assim, a violência simbólica ou
subjetiva que projeta – principalmente nos jovens de baixa renda – a identidade virtual de
delinquente, estigmatizando-os desde antes de seu nascimento, engendra um ciclo bastante
complexo (do qual pode derivar a violência objetiva juvenil instaurando a retroalimentação do
sistema). Tal argumentação inverteria a ordem do entendimento da opinião pública, que
coloca a justificativa para ações rígidas e corretivo-repressivas por parte dos organismos
policiais e judiciais na existência do comportamento delinqüente e desajustado.
Entretanto, para a compreensão ampliada do tema, é importante também mapear o
sistema atual que executa as chamadas medidas socioeducativas. Neste sentido, sabe-se que
no Brasil, em novembro de 2010 havia 17.703 adolescentes em restrição e privação de
liberdade, sendo 12.041 em internação, 3.934 em internação provisória e 1.728 em medida de
semiliberdade. Os números nos apresentam um aumento de 763 adolescentes em relação ao
ano de 2009, o que representa crescimento de 4,50%. Este percentual interrompe uma redução
que vinha ocorrendo desde 2007. Contudo, com relação aos anos anteriores, este crescimento
representa tendência à estagnação das taxas (SNPDCA/SDH, 2010). Cabe ressaltar ainda que,
destes índices, apenas cerca de 5% dizem respeito às medidas cumpridas por adolescentes do
sexo feminino. No Rio Grande do Sul, estes percentuais são ainda menores. Do total de
jovens cumprindo medidas restritivas e privativas de liberdade (incluindo internação,
internação provisória, internação por outros motivos e semiliberdade), apenas 2,5% são
meninas. E entre aqueles que cumprem medida de internação, somente 2% são do sexo
feminino (SNPDCA/SDH, 2010).
Entende-se que a forma como se estrutura o sistema de responsabilização de jovens
que cometem atos considerados delitivos no Brasil é relativamente recente e pode ser
considerada ainda em construção. Talvez por isso mesmo as pesquisas venham apontando que
a maneira como as medidas socioeducativas são concretizadas dá esparsas garantias de
desenvolvimento sadio e harmonioso, como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) (BRASIL, 1990). Ao que tudo indica, a perspectiva repressiva-punitiva ainda
prevalece na maioria (ASSIS et al., 2002, OLIVEIRA, 2001, SOARES, 2004, ZAMORA,
2005).
Em estudo quantitativo, Zappe e Dias (2011) constataram que 64% dos jovens que
ingressaram em uma instituição de cumprimento de medidas socioeducativas de internação no

28
interior do RS, retornaram a este local. Além disso, 52,9% dos adolescentes pesquisados
haviam sido presos depois de sua desinstitucionalização. Assim, segundo as autoras, tais taxas
corroboram com os achados que afirmam que as internações não têm sido eficazes em auxiliar
o jovem na reconstrução de seus projetos de vida. Muitas vezes, tornar-se-iam obstáculos à
ressocialização, por não conseguirem incrementar as relações interpessoais significativas que,
estas sim, serviriam de referências para a construção de sua identidade e para internalização
dos valores e normas sociais.
Neste ínterim, cabe ressaltar que as instituições voltadas ao cumprimento das medidas
socioeducativas de privação de liberdade têm como objetivo a ressocialização dos jovens de
que se ocupam e não sua punição. Porém, como já expostos, a detenção como forma de
castigar sujeitos considerados socialmente desajustados é das formas mais antigas usadas para
mantenimento do status quo. Nos interstícios das leis e com os modos de pensar pautados na
vanguarda dos Direitos Humanos coexistem velhos padrões e crenças, camuflados nas
relações complexas que são estabelecidas atualmente.
Estas instituições atuais, de paradigmas complexos e, ao mesmo tempo, conformadas a
estruturas antigas, obedecem a diretrizes específicas, em conformidade com o que se
convencionou chamar de Doutrina da Proteção Integral. O Estatuto da Criança e do
Adolescente (BRASIL, 1990), o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE)
(Lei 12.594/2012) e outros dispositivos regulamentares estaduais têm servido como aporte
teórico. Neles é reafirmada a importância de medidas protetivas e educacionais as quais
devem transcender ações meramente repressivas ou paliativas no trato com o jovem infrator.
Entretanto, para realização eficaz de projetos educativos e de reconstrução de cidadania, as
instituições brasileiras ainda precisariam organizar-se em direção ao reordenamento
institucional apontado no art. 259 do ECA (ZAMORA, 2005).
Assim, a compreensão dos processos de ressocialização, bem como de suas falhas e
sucessos, não pode se restringir à busca de heróis e vilões. Nem se pode acreditar que as
instituições que ainda apresentam aspectos do velho modelo prisional devam somente a seus
trabalhadores tais características. Contudo, compreende-se que os reordenamentos
institucionais passam pelo aprofundamento do entendimento, pela particularização, pela
escuta minuciosa daqueles que participam da concretização do cotidiano institucional dos
jovens. Nenhuma mudança pode ocorrer sem a inclusão e interlocução com esta “peça-chave”
no sistema.

29
30
CAPÍTULO 2
PERCURSO METODOLÓGICO

Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade Federal de


Santa Maria (UFSM)1 bem como à autorização institucional da Fundação de
Atendimento Socioeducativo do RS (FASE).
Utilizou-se o referencial qualitativo, que tende a comportar uma posição
epistemológica não positivista, permitindo a análise detalhada e flexível das
informações colhidas. Esta abordagem parece ajustada quando o objetivo é
compreender as experiências e significados que os indivíduos constroem em inter-
relações. O pressuposto subjacente é o construtivista, que entende o conhecimento
científico do mundo como aquele produzido e construído pelos seres humanos em
contextos de relações sociais, históricas e culturais (HENWOOD; NICOLSON, 1995).
Assim, enfatiza-se a impossibilidade de independência do sujeito conhecedor no
processo de produção de conhecimento, constatando-se que o mesmo incorpora e
assume nos estudos que faz a sua própria subjetividade. Esta perspectiva ressalta, ainda,
que os relatos não são isentos de valores e, por isso, não podem ser objetivos
(FERNANDES; MAIA, 2001, p.50).
A pesquisa foi fundamentada teoricamente em autores da Sociologia e
Psicologia Social/Institucional, bem como da Psicanálise. Foi realizada em uma
instituição de cumprimento de medidas socioeducativas restritivas de liberdade de
adolescentes do sexo feminino do RS. Esta instituição é uma das Unidades da Fundação
de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASE-RS). O primeiro contato
com a Fundação se deu no sentido de apresentar o Projeto de Pesquisa e buscar sua
autorização. Passado o período de avaliação por parte da instituição à proposta de
pesquisa, foi obtida a autorização. Com isto, o contato com a unidade passou a ser
construído, a princípio através de emails e telefonemas, e, mais adiante, foi realizada
uma reunião com a Diretoria da casa e funcionários. Buscou-se explicitar os objetivos
da pesquisa e propor a participação dos trabalhadores, que concordaram, a partir da
indicação positiva da Direção.

1
A pesquisa foi aprovada em 11/10/2011 sob o registro nº 1. 0282.0.243.000-11 pelo CEP.

31
Cabe ressaltar, neste ponto, que a diretora pareceu bastante aberta, estimulando a
realização da pesquisa e a adesão dos funcionários à mesma. Ela contou que antes de
assumir o cargo, trabalhara com o atual Secretário dos Direitos Humanos do Estado,
politicamente. Soube-se, posteriormente, que esta Secretaria é conhecida no RS por
atuar fortemente em prol dos direitos básicos, sobretudo em algumas instituições
historicamente demarcadas pela violação dos mesmos. Tal fato pode ajudar a explicar a
preocupação da instituição não só em externalizar a abertura à universidade, como em
garantir na unidade o cumprimento das normativas legais, constituindo um ambiente
que pudesse servir de exemplo e “vitrine” de direitos humanos garantidos. O que não
seria ruim, diga-se de passagem, já que todos tendem a beneficiar-se.
Quanto ao método propriamente, a técnica escolhida foi de entrevistas
semiestruturadas, que propõem a combinação de perguntas abertas e fechadas, onde o
entrevistado tem liberdade e flexibilidade para falar sobre o tema sem necessariamente
se prender à ordem e à pergunta formulada. Esta técnica permite obter informações
construídas a partir da interação entre entrevistador e participante e ligadas à reflexão do
sujeito sobre sua própria realidade, revelando sua representação da mesma (MINAYO,
2012). Os objetivos do estudo foram investigar os significados atribuídos por
socioeducadores ao papel que a instituição onde trabalham cumpre na sociedade e à
função que executam neste local, bem como ao público que atendem. Os eixos que
nortearam o protocolo da conversação ficaram assim definidos: 1) tempo de trabalho na
instituição e processo de ingresso na mesma; 2) percepções sobre papéis e funções
laborais e institucionais; 3) cotidiano institucional e relações de trabalho; 4) dificuldades
experimentadas e 5) fontes de gratificação e satisfação no trabalho.
As visitas à instituição foram realizadas entre março e maio de 2012. É preciso
destacar que, pelo fato de a instituição pesquisada não se localizar na mesma cidade de
residência das pesquisadoras, buscou-se concentrar o período de entrevistas em três dias
e noites. Apesar de se ter abarcado os diferentes plantões de agentes socioeducadores,
estas circunstâncias devem ser explicitadas no sentido de tornar transparentes às
variáveis presentes na coleta de informações. As entrevistas se deram dentro da
instituição, em salas disponibilizadas pela equipe técnica, durante o turno de trabalho.
Esta opção deve-se ao fato de que os trabalhadores passam bastante tempo na unidade,
em regime de plantões2. Ocupar seu período de descanso ao retornar à instituição para

2
Não só nesta unidade, mas em geral os agentes socioeducadores trabalham em plantões. Nesta casa, por
cada grupo de adolescentes (os quais são divididos conforme a medida socioeducativa estipulada), ficam

32
conceder a entrevista poderia servir como motivo de resistência à participação no
estudo. Assim, em horários em que as atividades laborais ficaram um pouco menos
intensas (devido alguma ocupação das adolescentes em oficinas, aulas, etc), os agentes
puderam ser entrevistados, um a um, conforme sua disponibilidade. Ademais, buscou-se
pinçar agentes socioeducadores que representassem cada um dos plantões, tomando-se o
cuidado de não ficarem plantões sem representantes no rol das entrevistas. Outro ponto
importante a ser mencionado é que, apesar de existirem homens no quadro funcional
desta Unidade, a maior parte dos socioeducadores são mulheres (por volta de 55%)
(GRECO, 2011). O diálogo foi gravado, mediante esclarecimento e autorização prévios
dos participantes; posteriormente foram transcritos para a análise das informações.
Deve-se destacar que a diretora, bem como alguns chefes de plantão3 (a partir do
estímulo da primeira), reforçaram o convite aos agentes para aceitarem ser
entrevistados. Mais tarde, a dirigente confidenciou4 seu desejo de que os participantes
revelassem o perfil institucional como realmente é, ou seja, com suas diferenças de
opiniões e de entendimento institucional. Por isso, declarou que gostaria que se
disponibilizassem não só os que “falariam bem da instituição”, mas também aqueles que
revelassem suas contrariedades. Embora esta atitude não tenha impedido as negativas
por parte de alguns trabalhadores, considera-se que o grupo de sujeitos que se constituiu
atendeu ao objetivo de mesclar opiniões favoráveis e desfavoráveis, com perspectivas
críticas, argumentos e exemplos que levam a crer que se montou de fato um panorama
próximo (ou fidedigno ao) do cotidiano institucional. Neste sentido, Gomes (2012, p.79)
afirma que a pesquisa qualitativa

[...] não precisa abranger a totalidade das falas e expressões dos


interlocutores porque, em geral, a dimensão sociocultural das opiniões e
representações de um grupo que tem as mesmas características costumam ter

responsáveis alguns funcionários e em determinados turnos. Existem dois plantões para o turno da manhã,
um para o turno da tarde e outros dois para o turno da noite. Apesar de existir flexibilidade para trocas,
em geral esta é a estrutura de trabalho. Para mais informações sobre a dinâmica institucional consultar
Fachinetto, 2008.
3
Cada plantão possui um chefe de plantão, que o representa, orienta e também media as relações com a
diretoria. Em geral, trata-se de um agente socioeducativo que se destaca e/ou que é indicado pela diretoria
para ascender a este cargo.
4
A diretora da unidade, apesar de não atender ao critério de participação da pesquisa (ser – por cargo –
agente socioeducadora), emitiu suas opiniões, relatando suas percepções sobre a instituição em conversa
com a pesquisadora. Estes momentos foram considerados na analise do contexto das entrevistas, em razão
de se entender que pode ser considerado parte do trabalho de campo. Uma agente socioeducadora, apesar
de não aceitar participar da pesquisa, conversou durante 1 hora aproximadamente, porém com a condição
de não ser gravada nem transcrita, ou seja, que não contasse no rol das entrevistas concedidas. Suas
representações da unidade, instituição e da própria FASE-RS ajudaram a compreender a dinâmica do
contexto, constituindo-se igualmente como parte do trabalho de campo.

33
muitos pontos em comum ao mesmo tempo que apresentam singularidades
próprias da biografia de cada interlocutor. Por outro lado, também devemos
considerar que sempre haverá diversidade de opiniões e crenças dentro de
um mesmo segmento social e a análise qualitativa deve dar conta dessa
diferenciação interna aos grupos.

Para a análise dos resultados utilizou-se a análise de conteúdo temática


(GOMES, 2012). Como Bardin (1979, p. 84) propôs, o foco da análise de conteúdo é
“caminhar na descoberta do que está por trás dos conteúdos manifestos, indo além das
aparências do que está sendo comunicado”. Assim, ter-se-ia como objetivo uma
interpretação mais profunda da comunicação, não pela verificação da freqüência com
que falas e palavras aparecem, mas pela compreensão dos significados no contexto da
fala (MINAYO, 2006). A análise de conteúdo temática, por sua vez, é aquela que tem o
tema como conceito central, buscando desvelar as unidades ou núcleos de sentido que
compõem a comunicação (GOMES, 2012, BARDIN, 1979). Os procedimentos
metodológicos utilizados são basicamente categorização (ou classificação), inferência,
descrição e interpretação, não necessariamente seguindo esta trajetória. Desta forma,
através da exploração do material foram definidas as categorias trabalhadas. Para se
chegar às categorias, as entrevistas foram analisadas primeiramente de forma individual
e posteriormente em conjunto. Então partiu-se para os elementos presentes nas mesmas,
considerando-se a força discursiva, os sentimentos manifestados, os silêncios ou os
conflitos em relação à temática. Na discussão dos resultados, o material apresentado por
cada profissional será identificado através da letra “E” (de entrevistado) seguida de um
número (por exemplo, E.1).
A escolha desta instituição também não foi aleatória. Muitos estudos têm
indicado as instituições de ressocialização como ineficientes e, mesmo, a inadequação
dos meios de restituição dos jovens à sociedade como têm sido executados até aqui
(MARIN, 1999, OLIVEIRA, 2001, ZAMORA, 2005, CAMPOS, 2005, SOARES, 2004,
ZAPPE; DIAS, 2011). As metas e estratégias institucionais, ao que tudo indica, não
têm previsto, em sua maioria, a capacidade e capacitação para este olhar amplo, apto a
propor novos sentidos e alternativas, alcançando objetivos que vão além do
disciplinamento, indiferença e punição. Porém, é necessário explorar mais e melhor os
contextos institucionais. Muitas vezes a instituição é colocada no lugar de bode
expiatório social, justamente de onde se luta para que saiam os jovens estigmatizados
antes e após seu ingresso no sistema socioeducativo. Além disso, instituições femininas

34
podem se opor às estatísticas negativas comuns, revelando alcançar resultados positivos
em muitos casos (ASSIS et al., 2002, BRASIL, 2001).
Esta Unidade em especial, o Centro de Atendimento Socioeducativo Feminino
(CASEF), foi citada como a melhor entre as instituições brasileiras visitadas pela
Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, quando esta realizou a IV
Caravana Nacional de Direitos Humanos mostrando a situação dos adolescentes
privados de liberdade no Brasil, em 2001 (BRASIL, 2001). Assim, a partir da grave
situação identificada na maioria das organizações que se ocupam com a ressocialização
de jovens, optou-se por buscar uma que pudesse dar sinais de mudança nos resultados.
Deve ser destacada a organização e eficiência da instituição FASE-RS nos
procedimentos para obtenção da Autorização Institucional para esta pesquisa, bem
como a receptividade e abertura já citadas por parte da Direção da Casa. Estas ressalvas
são feitas justamente pelo conhecimento de que instituições como esta, em sua maioria
de caráter “total”5, tendem a ser fechadas mesmo a pesquisadores e outros
representantes da sociedade civil. Além disso, acredita-se que apesar de restarem
persistentes os mecanismos repressivo-punitivos inclusive nas instituições consideradas
“modelo”, sabe-se que coexistem aspectos indicativos das mudanças de paradigma e
que devem ser explicitados. Entende-se que este deva ser também o papel dos estudos:
apontar as brechas e vetores instituintes, reforçar as possibilidades e oportunidades de
transformação, desconfiar dos resultados homogêneos que apontam apenas as falhas.

2.1. Participantes da Pesquisa

Em reunião com Direção, equipe técnica e agentes socioeducadores da Unidade,


estes últimos foram convidados a participar da pesquisa. Os critérios para inclusão dos
participantes eram: a) ser profissional que se insere no quadro funcional da instituição
como agente socioeducativo; b) estar atuando na instituição feminina de privação de
liberdade; c) ter disponibilidade e interesse em participar do estudo. Apesar de ser
explicitado o desejo de se manter a proporcionalidade na participação entre homens e
mulheres, respeitou-se o caráter de participação voluntária. Assim, foram realizadas 10

5
Referência ao conceito de “instituição total” de Erving Goffman, referência que será mais amplamente
citada posteriormente.

35
entrevistas, sendo nove com agentes do sexo feminino e uma com um agente masculino.

Nome Idade Tempo de FEBEM ou FASE Tempo de CASEF


(em anos) (em anos)
E.1 35 10 8
E.2 39 12 11
E.3 54 21 21
E.4 70 44 15
E.5 30 10 8
E.6 54 20 4
E.7 51 27 12
E.8 55 26 18
E.9 55 10 7 meses
E.10 31 8 7
Tabela 1. Quadro de participantes

Como se pode observar os participantes têm idade entre 31 e 70 anos, e todos


eles possuem tempo significativo de trabalho na FASE-RS. O interlocutor com menos
tempo de trabalho na instituição encontra-se há 8 anos no local e o mais antigo, está há
44 anos. Destaca-se ainda que o período de exercício da função no CASEF, excetuando
um dos agentes que tem apenas 7 meses, oscilou entre 7 e 21 anos de trabalho. Pode-se
inferir a partir destes dados que os participantes tinham experiência e vivência
considerável para tratar do tema, sobretudo para falar das mudanças identificadas ao
longo deste período no sistema de atendimento ao jovem em conflito com a lei.
Levando em conta que os últimos anos foram importantes no que diz respeito às
transformações legislativas e reorientações das práticas ressocializadoras, esta
informação torna-se favorável para a pesquisa.
O número de entrevistas também obedeceu ao critério de fechamento amostral
por saturação. Esta ferramenta metodológica é usada no sentido de o pesquisador
avaliar, à medida que as informações vão sendo coletadas, determinado ponto onde a
inclusão de novos participantes parece tornar-se dispensável pela percepção de certa
redundância ou repetição dos conteúdos (FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008).
Segundo Gaskell (2002) e Gomes (2012), o objetivo da pesquisa qualitativa não é
contar opiniões ou pessoas, mas descobrir a variedade delas dentro do tema, apresentar
uma amostra do espectro de opiniões, assim como os fatores que embasam e explicam
estas diferenças. Deve-se levar em conta também que existe um “ponto de saturação do
sentido” (GASKELL, 2002, p. 71), onde um número maior de entrevistas não parece
ampliar o entendimento do fenômeno, pois se percebe que as representações do tema já
foram abarcadas.

36
2.2. Local da Pesquisa: a FASE e o CASEF

O CASEF é uma das unidades da Fundação de Atendimendo Socioeducativo do


RS. A FASE é o órgão responsável pela execução das medidas socioeducativas
restritivas de liberdade no Estado (Internações e Semiliberdade), aplicadas a
adolescentes que cometem atos infracionais. É ligada à Secretaria da Justiça e dos
Direitos Humanos do RS. Foi criada em 2002, pela Lei Estadual nº 11.800, no sentido
de consolidar os reordenamentos institucionais necessários a partir do advento dos
dispositivos legais e conceituais do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069 de
1990). Segundo a própria Fundação, o atendimento prestado norteia-se pelo Programa
de Execução de Medidas Socioeducativas de Internação e Semiliberdade (o PEMSEIS),
documento gaúcho que coloca como central o Plano Individual de Atendimento (PIA)6,
seguindo as disposições do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE7).
Já sobre a instituição hoje nominada CASEF, é importante contextualizar sua
fundação. Fachinetto (2008), em pesquisa de mestrado, realizou estudo de caso na
unidade feminina, trazendo diversas informações relevantes sobre a mesma. Dentre elas,
destaca-se primeiramente um relatório de 1965, produzido pela Secretaria de Estado dos
Negócios do Trabalho e Habitação, do Governo do Estado do RS, consultado a partir
dos arquivos históricos da FASE. Tal documento, entre outros dados, revela que
somente a partir do Código Penal de 1940 os menores de 18 anos foram declarados
sujeitos à “pedagogia corretiva de legislação especial”, não mais podendo ser
submetidos ao direito penal (FACHINETTO, 2008, p. 170). Assim, tem-se que o
Juizado de Menores do RS foi criado em 1933 e em 1945 criou-se o SESME – Serviço
Social de Menores, que estaria vinculado ao SAM (Serviço de Atendimento ao Menor),
de abrangência nacional. Em 1959 instaurou-se a DAS (Divisão de Assistência Social) e
em 1964 fundou-se o DEPAS (Departamento de Assistência Social) no sentido de
unificar os serviços que existiam na época, voltados ao atendimento de crianças e
adolescentes das classes populares considerados em “situação irregular” (abandonados,

6
Fonte: site da FASE-RS: www.fase.rs.gov.br/portal/index.php?menu=secretaria&subitem=1, acesso em
01/12/12.
7
O SINASE foi regulamentado a partir da Lei 12.594 de 18 de janeiro de 2012. Disponível em:
http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=244798&norma=264590

37
órfãos, carentes, infratores). Cabe ressaltar que foi em 1969, em decorrência dos estudos
que eram realizados nestes departamentos em nível nacional, que foi criada a FEBEM
(Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) seguindo as diretrizes da FUNABEM
(Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor).
Assim, percebe-se que tanto as políticas de atendimento quanto as respectivas
instituições que davam conta destes serviços eram baseadas na doutrina da situação
irregular, que entendia como “menores” apenas os indivíduos provenientes de classes
populares. Diferenciava crianças e adolescentes de outras classes destes “menores”,
contribuindo para uma visão que criminalizava a pobreza, conformando-se estigmas
voltados a esse segmento populacional.
Já o CASEF foi inaugurado em 19 de abril de 1962, sendo chamado
primeiramente de Lar Santa Marta. Sua meta inicial era “receber menores com
distúrbios de conduta para que fossem triadas. Também menores abandonadas e
algumas com sintomatologia psicótica” (FASE, 1984, apud FACHINETTO, 2008, p.
172)8. Até a década de 70 não havia contenção. Mas aos poucos a clientela foi se
tornando mais homogênea, firmando-se como de “menores perturbadores de conduta” 9.
Em 1975 instaurou-se o Centro de Recepção e Triagem Feminino e desde essa época
havia preocupação com o ensino e a profissionalização das jovens, que eram
encaminhadas a cursos e empregos. Aparentemente a instituição adquiriu uma imagem
negativa perante à comunidade e, em razão disto, em 1979, o Lar Santa Marta foi
substituído pelo Instituto Educacional Feminino. Mudam-se os nomes, permanecem os
objetivos. De acordo com relatório produzido em 198410, a unidade atendia jovens de 11
a 18 anos, em geral advindas do interior do Estado e dos arredores da capital. Os
motivos que as levavam até o local eram prostituição, furto, uso de tóxicos e fugas do
lar, por exemplo.
Já em 2002, com a criação da FASE11, fez-se necessária também a reordenação
desta instituição e então foi criado o Centro de Atendimento Socioeducativo Feminino
(CASEF). Esta é a única instituição feminina no Estado do RS para execução de
medidas socioeducativas restritivas de liberdade. Localiza-se na cidade de Porto Alegre
e tem capacidade atualmente para atender 33 jovens oriundas dos 10 Juizados da

8
FEBEM – Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor. Dinâmica Institucional – Instituto
Educacional Feminino. FASE – Fundação de Atendimento Socioeducativo. Porto Alegre, 1984.
9
Idem, 1984.
10
Ibidem, 1984.
11
Em cumprimento ao princípio de estadualização do atendimento, preconizado pelo ECA, em vigor
desde 1990.

38
Infância e da Juventude do RS. Estas meninas podem estar cumprindo medidas
socioeducativas de Semiliberdade, Internação com Possibilidade de Atividade Externa
(ICPAE), Internação sem Possibilidade de Atividade Externa (ISPAE) e Internação
Provisória e são direcionadas a espaços específicos dentro da casa conforme tais
diferenciações. Atualmente existem 4 espaços (ou grupos), sendo 2 grupos para as
jovens em ISPAE (grupo I e II), um grupo de meninas em Semiliberdade e ICPAE e,
desde 2000, um grupo denominado Berçário12.
Vale ressaltar que o CASEF possui um apelido que o torna conhecido como
“Casa de Bonecas”, sobretudo entre os próprios internos da FASE13. Esta expressão
pode sugerir diversas interpretações. Para Fachinetto (2008, p. 2), o apelido surgiu pelas
comparações feitas entre as unidades masculinas e femininas. Em alusão à clientela da
unidade, comparam-se as adolescentes às “bonecas”. E também se refere à estrutura do
local, pois a instituição assemelha-se com uma casa muito mais do que com os modelos
prisionais comuns às instituições masculinas. Entretanto, a autora também afirma que
“do mesmo modo que na brincadeira, as atividades realizadas remetem
predominantemente aos trabalhos domésticos, ou seja, saber cuidar bem de uma casa,
que deve estar sempre limpa e organizada”.
Para fins de contextualização, é importante destacar os elementos que, na
prática, diferenciam esta instituição da maioria das unidades que compõem o sistema
brasileiro de execução de medidas socioeducativas. Desta forma, reuniram-se as
percepções do ambiente, colhidas durante o tempo de permanência na unidade, a outros
trabalhos de campo mais detalhados de estudos que se debruçaram sobre a mesma
unidade. Primeiramente, parece importante o relato da IV Caravana Nacional de
Direitos Humanos (BRASIL, 2001, p.116):

[...] a casa de internação feminina da Febem gaúcha – foi a melhor


instituição visitada pela IV Caravana (...). Trata-se de uma instituição
pequena e eficiente onde formou-se, efetivamente, um clima de recuperação
e confiabilidade. Os investimentos afetivos da direção, dos funcionários e do
corpo técnico são evidentes e aparecem naturalmente na fala das internas.
Uma delas, ao referir-se à diretora, afirmou: „Sabe, ela parece uma mãe pra
gente‟. (...) O instituto possui dois tipos de alojamento: as meninas privadas
de liberdade possuem um quarto individual. São peças simples e pequenas,

12
O Berçário é destinado àquelas adolescentes que possuem filhos e os estão amamentando. O ingresso
desta criança à instituição, mesmo em grupo especial, deve ser acordado com a adolescente, sua família e
precisa de aprovação judicial. Se a avaliação constata que o afastamento entre mãe e filho seria ainda pior
para a criança do que o prejuízo de conviver com a mãe em privação de liberdade, ela pode continuar na
instituição, permanecendo até o desligamento da mãe/adolescente. Para mais informações sobre a
dinâmica de funcionamento deste grupo consultar Ramos, 2007.
13
Fachinetto, 2008.

39
porém decentes, limpas e decoradas. Nada que lembre o confinamento e a
segregação. Os outros alojamentos são quartos maiores – usados pelas
meninas em semiliberdade – que mais parecem suítes. Esses quartos
possuem, inclusive, um pequeno vestíbulo. Dentro da unidade, tem-se a
impressão de se estar no interior de uma grande casa de família. Os
ambientes internos, a existência de áreas comuns de lazer, etc., contribuem
para que a própria instituição adquira esse ar „doméstico‟. Por óbvio, uma
estrutura do tipo à qual se agrega uma política adequada só pode produzir
resultados muito superiores àquelas condicionadas pelo padrão de
encarceramento. Ao fundo da unidade, em uma área gramada utilizada para
recreação (...) a direção organiza festas e, mesmo, reuniões dançantes com
adolescentes da FEBEM que possuem autorização para atividades externas.
Segundo uma das meninas, nessas oportunidades, „dá até pra namorar‟.

A partir desta avaliação, é importante ter em conta dois aspectos fundamentais.


O primeiro diz respeito ao período em que esta Caravana foi realizada, ou seja, há mais
de 10 anos atrás. Por isso, não necessariamente esta se configure a realidade atual,
embora seja difícil crer na regressão em termos de direitos garantidos às adolescentes. O
segundo ponto relaciona-se às condições sob as quais se fez a análise desta unidade.
Pela leitura de todo material produzido, percebe-se a dura realidade testemunhada ao
longo do trajeto desta Caravana. Seria, então, fácil compreender que a unidade menos
fechada, de melhor apresentação, com elementos “decorativos” e relatos favoráveis por
parte das adolescentes, fosse sinalizada como bastante boa, ou, neste caso específico,
como a melhor do Brasil. Entretanto, deve-se ter em mente que os critérios de
comparação eram outras instituições bastante comprometidas.
O estudo de Ramos (2007) também estrutura algumas características marcantes
do CASEF (sendo aqui elencadas apenas aquelas que podem denotar avanço em termos
de garantias de direitos):
1) a estrutura física, semelhante a de uma casa, com cortinas, quartos individuais
para as jovens (com acessórios pessoais, enfeites, cortinas, colchas para a cama, etc),
espaços limpos e organizados com algumas portas abertas.
2) a estrutura para os trabalhadores, com salas para os membros da equipe
técnica, direção, salas de reunião, descanso, refeitório.
3) as regras bem definidas, claras, sistematizadas e que são cobradas e
cumpridas a partir de diversos mecanismos institucionais.
4) proibição ao tabagismo;
5) o número considerável de atividades, sejam elas educativas, laborativas ou de
outra ordem, indicando a característica da instituição de pouca ociosidade das
adolescentes. Existem, inclusive, atividades que são remuneradas, seja dentro da

40
unidade (atividade de lavanderia, por exemplo) ou fora dela (para as que estão em
medida de ICPAE, como estágios).
6) todas as jovens são estimuladas e cobradas a freqüentar a escola e ter bom
rendimento (seja dentro ou fora da unidade). Os resultados são visíveis a partir de casos
onde adolescentes ingressaram no ensino superior (BELTRAME, 2012).
7) a existência de espaços e momentos previstos no PEMSEIS no sentido de
fomentar a participação e diálogo tanto de funcionários como de adolescentes. Um
exemplo disso são os “grupos operativos” que ocorrem, via de regra, semanalmente.
8) as normas institucionais e situações de indisciplina são tratadas conforme as
prerrogativas legais (SINASE14 e PEMSEIS), sendo classificadas como faltas leves,
médias e graves. A partir daí apela-se para o Atendimento Especial (ou isolamento) em
caso de situações graves. E deve ser instaurada uma Comissão de Atendimento
Disciplinar (CAD), que define o tempo de isolamento da adolescente e deve informar os
detalhes do caso e as suas decisões à 3ª Vara do Juizado da Infância e Juventude. De
qualquer forma, mesmo nestes casos a adolescente não pode deixar de receber visitas
familiares e freqüentar a escola.
Desta forma, é possível compor o cenário onde se inserem as práticas
socioeducativas desta unidade. Sabe-se que em muitos pontos o CASEF aproxima-se às
instituições fechadas do sistema prisional e se tem claro que estruturas bem organizadas
e elementos decorativos também podem disfarçar objetivos implícitos de controle e
normalização. Entretanto, ainda sim se deve dar destaque aos pontos incomuns desta
unidade ante a realidade de grande parte das instituições brasileiras, denotando possível
avanço. Estas características dizem respeito à conformidade, em vários aspectos, com os
marcos legais sistematizadores do funcionamento ideal. É corrente que a lei não basta
para garantir o reordenamento institucional. Como argumenta Rolim (2001, p.12),
“Suspeito inclusive, que o fundamental a ser conquistado não guarda qualquer relação
com a lei”. Mas se a lei é a alavanca que permite pensar e engendrar as reformas na
prática, é mesmo possível que explique o alcance de resultados diferenciados e
positivos.

14
Lei 12.594/2012

41
CAPÍTULO 3
MERGULHANDO NA INSTITUIÇÃO: SOCIOEDUCADORES E OS PROCESSOS
DE APRENDIZAGEM DE SUAS FUNÇÕES

RESUMO

O presente estudo objetivou tornar audíveis os discursos de agentes socioeducadores de uma


instituição feminina de restrição de liberdade do RS. Compreende-se que, pelo
relacionamento mais próximo e frequente com as jovens, os agentes seriam os profissionais
que exerceriam maior influência sobre as internas, influindo em seus processos de
ressocialização. Assim, através de um viés qualitativo, 10 trabalhadores foram entrevistados a
respeito de suas percepções sobre o momento de ingresso institucional, as capacitações
iniciais e quanto à aquisição de conhecimento da função e tarefas do socioeducador. Acredita-
se que o impacto causado pelo contato inicial com a estrutura prisional ainda persistente,
apesar de forte, não delimita que a vivência institucional se dará somente em um viés de
aprisionamento. Apesar de existirem dispositivos físicos e simbólicos próximos às instituições
prisionais nas unidades juvenis, coexistem também movimentos de mudança, de apreensão e
transformação de novos métodos e tarefas frente a adolescente restrita em sua liberdade.

Palavras-chave: institucionalização feminina; agentes socioeducadores; instituição

ABSTRACT

The present study aimed to make audible the speeches of educators agents at a female
institution of RS. It is understood that, by frequent and closer relationship with the young
actors, this professionals are who exert greater influence on the young, influencing the
processes of socialization. Thus, through a qualitative bias, 10 workers were interviewed
about their perceptions of the institutional point of entry, the initial training and acquisition of
knowledge as to the role and tasks of social educator. It is believed that the impact caused by
the initial contact with the prison structure still persistent, though strong, does not define that
experience will occur only in a imprisonment bias. Although there are physical and symbolic
devices that make similar the juvenile units with the correctional institutions, also coexist
movements for change, apprehension and processing of new methods and tasks in front of
adolescent restricted in their freedom.

Keywords: female institutionalization; social educators agents; institution

42
3.1. INTRODUÇÃO

As instituições brasileiras de privação e restrição de liberdade de jovens, pela sua


existência e situação atual, desvelam os complexos modos de produção de subjetividade
contemporâneos. Com eles, são revelados os processos de exclusão e a persistência da lógica
de aprisionamento existentes em nossa sociedade.
A instituição-prisão tornou-se algo tão naturalizado que parece difícil imaginar a vida
social sem ela. Esta naturalidade com que se enquadra ao modo de viver vigente diria respeito
ao fato de ter a aparência de uma pena justa e igualitária, na medida em que retira do sujeito
um bem de posse e valor, a princípio, universais: a liberdade. Por outro lado, a detenção
parece não fazer mais do que reproduzir os mecanismos encontrados no corpo social, embora
possa os acentuar, não inserindo elementos diferentes, qualitativamente, dos já existentes fora
dos seus muros (FOUCAULT, 1987). Neste sentido, percebe-se convergência entre as ideias e
conceitos elencados por autores como Basaglia (1985), Foucault (1987), Goffman (1999) e
Oliveira (2001) sobre estes locais. O que parece reuni-los diz respeito à forma como entendem
os processos institucionais.
Assim, tais autores destacam um aspecto que parece bastante claro nos mecanismos
prisionais e se refere à condição que se objetiva e supõe que tenham, superando a mera
privação de liberdade: a de transformar os sujeitos. Goffman (1999, p. 22) argumenta que as
instituições deste tipo são “estufas para mudar pessoas; cada uma é um experimento natural
sobre o que se pode fazer ao eu”. Oliveira (2001, p. 139), por sua vez, ressalta que nestes
locais, não se espera mais que o corpo seja supliciado como no passado, mas que possa ser
corrigido e (re)formado, perpassado pela “normalização” que promoveria uma “experiência
de conversão, em que se busca destruir os hábitos antigos dos sujeitos devolvendo-os,
transformados, ao Estado que os perdera”. Assim, mesmo após a instauração de novos
paradigmas nas dimensões teórico-conceituais, ainda subsistiriam nas instituições processos
que teriam como objeto o indivíduo e como tarefa, mesmo que velada, sua transformação,
correção, conversão, disciplinamento.
Entretanto, mesmo sendo emblemáticas, as unidades de institucionalização causam
mobilização apenas episodicamente, quando se tornam pautas da mídia (ROLIM, 2001,
OLIVEIRA, 2001). Nestes casos, geralmente aparecem somente para evidenciar seu fracasso
e reforçar a cultura de medo1 e os estigmas que pairam sob a juventude das periferias,

1
Takeuti, 2002.

43
principal alvo da institucionalização. Reabastece-se assim o sistema prisional: “a prisão
continua sendo proposta como seu próprio remédio e única maneira de reparar seu
permanente fracasso” (OLIVEIRA, 2001, p. 132).
Takeuti (2002) também exemplifica de que forma a estrutura social seria pano de
fundo para os processos institucionais. A autora afirma que as periferias urbanas são os
espaços para onde são projetados e onde então podem ser testemunhados alguns dos
principais dramas humanos, como violência e desigualdade social. Tais questões estariam
diretamente relacionadas à exacerbação de uma racionalidade capitalista onde a riqueza, ao
ser gerada, produz concomitantemente a pobreza, a miséria e a exclusão de pessoas do
mercado formal de trabalho e da possibilidade de consumo. Assim, a violência simbólica ou
subjetiva que projeta – principalmente nos jovens de baixa renda – a identidade virtual de
delinquente, estigmatizando-os desde antes de seu nascimento, engendra um ciclo bastante
complexo (do qual pode derivar a violência objetiva juvenil instaurando a retroalimentação do
sistema). Tal argumentação inverteria a ordem do entendimento da opinião pública, que
coloca a justificativa para ações rígidas e corretivo-repressivas por parte dos organismos
policiais e judiciais na existência do comportamento delinqüente e desajustado.
Contudo, a compreensão dos processos de ressocialização, bem como de suas falhas e
sucessos, não pode se restringir à busca de heróis e vilões. Nem se pode acreditar que as
instituições que ainda apresentam aspectos do velho modelo prisional sejam as únicas
carentes de investimentos. O imaginário social, no seio do qual despontam as subjetividades e
relações em tempos de globalização, pautadas em fortes preconceitos e relegação social2,
também precisa ser revisto. No mais das vezes, é ele que alimenta as demandas sociais às
quais as instituições respondem (TAKEUTI, 2002). Como ressaltam Arpini e Quintana
(2009), a superação da violência não é possível a não ser através da problematização das
relações tão intensamente identificadas como violentas em nosso cotidiano.
Assim, a realidade, as diretrizes atuais e muitos estudos apontam a necessidade de
reformas inclusive nas instituições (OLIVEIRA, 2001, TAKEUTI, 2002, SOARES, 2004,
ZAMORA, 2005, BRASIL, 2006, ZAPPE; DIAS, 2011). Estas são formadas por diversos
atores, dentre os quais alguns foram forjados dentro de suas próprias estruturas. Não raro,
aprenderam sobre suas funções a partir de modelos anteriores, como o da doutrina da situação
irregular3. Tais especificidades tornam complexa a mudança de paradigmas e inevitáveis os

2
Takeuti, 2002.
3
Refere-se ao paradigma da Situação Irregular, sustentáculo do antigo Código de Menores – Lei nº 6.697, de 10
de outubro de 1979.

44
conflitos de alguma ordem. Alguns trabalhadores encontram-se comprometidos com práticas
repressivas e punitivas enquanto outro número significativo deles está desgastado pela
depressão, ansiedade e, acima de tudo, pelo medo e descrença no trabalho (ROLIM, 2001,
GRECO, 2011). Menicucci e Carneiro (2011), ao entrevistarem profissionais da área
socioeducativa de Minas Gerais, constataram que as lógicas coercitivas e de socialização
coexistem nestes espaços, variando conforme a estrutura física, o perfil dos internos e a visão
dos implementadores sobre as normativas legais. Segundo as autoras, não havia ali
entendimento e compartilhamento dos princípios norteadores do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990) ou do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE) (BRASIL, 2006). Notaram ainda que muitos trabalhadores permanecem em defesa
do discurso repressivo, mantendo obstáculos à aceitação das normas, já que elas diminuiriam
a possibilidade de controlar os jovens. Os mesmos resultados foram encontrados por estudo
de Ferrão e Zappe (2011) em pesquisa com socioeducadores de uma cidade no interior do RS.
Já no universo da academia, houve incremento das pesquisas e problematizações sobre
a institucionalização juvenil, sendo a voz dos jovens, aparentemente, priorizada como fonte
básica de analise. Não sem razões e de forma muito oportuna, diga-se de passagem. Além
disso, a categoria “instituição” adquiriu uma série de significados possíveis, incluindo um
bastante freqüente, como o de representação do que Goffman (1999, p.20) chamava de “a
equipe dirigente”. Assim, quando as argumentações se referem “às interpretações e aos
interesses „da instituição‟, implicitamente se referem às interpretações e aos interesses da
equipe dirigente”.
Baseado nisso, o presente estudo objetivou tornar audíveis os discursos “da
instituição”, mais especificamente dos agentes socioeducadores, compreendendo que é
preciso ouvi-los e inseri-los nos debates. Diz Campos (2005) que, pelo relacionamento mais
próximo e frequente com os jovens acautelados, os agentes de disciplina seriam os
profissionais que exerceriam maior influência sobre os internos.
Assim, acredita-se que os processos de ressocialização mais ou menos eficazes dentro
das unidades atuais não podem ser percebidos ou transformados a não ser pelas suas
interconexões com as percepções, crenças, opiniões e ações destes atores institucionais. Além
disto, quais as instâncias que os têm notado e escutado, tirando-os da invisibilidade ou das
malhas dos estigmas – os mesmos estigmas aqueles tão preocupantes no caso dos jovens
“infratores”? De que forma as desconstruções paradigmáticas podem tornar-se reais, sem
incluir em seus processos precedentes todos os envolvidos?

45
Portanto, optou-se por pesquisar o modo como os profissionais socioeducadores4 de
uma unidade feminina de privação de liberdade do RS perceberam seu ingresso à instituição,
suas primeiras impressões e opiniões a partir do impacto de chegada. Neste momento inicial,
antes de possuírem compromisso e filiação institucional, portam-se em geral como quaisquer
novatos5 institucionais, a não ser pelo seu caráter de membros da equipe dirigente e não de
internos. Por isso mesmo, conjectura-se que existam aí maiores chances de captura dos pontos
de aproximação de todos os sujeitos ligados à instituição, embora em papéis diferentes,
enquanto seres dotados de humanidade. Isto porque se acredita que o encontro entre a
humanidade do servidor e a humanidade do interno pode ser produzido6.

3.2. MÉTODO

Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa


Maria (UFSM)7 bem como à autorização institucional da Fundação de Atendimento
Socioeducativo do RS (FASE). Foi escolhido um caminho qualitativo, que em geral é usado
para responder a questões específicas, dentro de “um nível de realidade que não pode ou não
deveria ser quantificado” por se tratar de aspectos da subjetividade humana, dificilmente
traduzido por indicadores quantitativos (MINAYO, 2012, p.21). Cabe ressaltar que este artigo
é parte de uma pesquisa maior, que teve por objetivo levantar os significados atribuídos por
agentes socioeducadores ao fenômeno da privação de liberdade feminina. Aqui serão
destacadas as percepções do momento de ingresso institucional, das capacitações iniciais e
quanto à aquisição de conhecimento sobre a função e as tarefas do socioeducador. As
justificativas para este estudo são a necessidade de dar voz aos atores institucionais que
possuem mais contato com os jovens institucionalizados, compreendendo que nas
experiências de iniciação em suas atividades laborais como membros da FASE-RS,

4
Existem duas formas para se referir à função, segundo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE), que seriam “agente socioeducativo” e “socioeducador”. Porém neste trabalho usaremos as
nomenclaturas utilizadas pelos entrevistados para o cargo ocupado: “agentes socioeducativos”, “agentes”,
“socioeducadores” e “profissionais socioeducadores”.
5
Tais como os referidos por Goffman, 1999.
6
Em referência ao trecho de Rolim na apresentação do livro “Sobrevivendo no inferno”, de Carmem Oliveira
(2001, p. 13) que aponta a estrutura institucional da FEBEM (já que diz respeito a esta época) como aquela
“onde o encontro entre a humanidade do servidor e a humanidade do interno simplesmente não deve ser
produzido”, pois “as instituições totais, afinal, são esses espaços onde a própria ideia de humanidade é suspeita”.
7
A pesquisa foi aprovada em 11/10/2011 sob o registro nº 7. 0282.0.243.000-11 pelo CEP.

46
aproximam-se dos adolescentes, por também notarem-se como novatos e passarem por uma
série de iniciações.
Para alcançar os objetivos propostos optou-se pela técnica de entrevista
semiestruturada, que propõe a combinação de perguntas abertas e fechadas, onde o
entrevistado tem liberdade e flexibilidade para falar sobre o tema sem necessariamente se
prender à ordem e à pergunta formulada. Esta técnica permite obter informações construídas a
partir da interação entre entrevistador e participante ligadas à reflexão do sujeito sobre sua
própria realidade, sendo sua representação da realidade (MINAYO, 2012).
A pesquisa foi fundamentada teoricamente em autores da Sociologia e Psicologia
Social/Institucional, bem como da Psicanálise. Foi realizada em uma instituição de
cumprimento de medidas socioeducativas restritivas de liberdade de adolescentes do sexo
feminino do RS. Esta instituição é uma das Unidades da Fundação de Atendimento
Socioeducativo do RS (FASE-RS). Os primeiros contatos com a Fundação e com a Unidade
em si foram feitos e, mais adiante, foi realizada uma reunião com a Diretoria da casa e
funcionários. Buscou-se explicitar os objetivos da pesquisa e propor a participação dos
trabalhadores, que concordaram, a partir da indicação positiva da Direção. A técnica escolhida
foi de entrevistas semiestruturadas constando em seu roteiro perguntas nos seguintes eixos: 1)
tempo de trabalho na instituição e processo de ingresso na mesma; 2) percepções sobre
funções laborais e institucionais.
As aproximações e visitas à instituição foram realizadas no período entre março e
maio de 2012. As entrevistas foram concentradas em três dias e noites, devido a unidade
localizar-se em cidade diferente da de residência das pesquisadoras. Mesmo assim, foi
possível abarcar representantes dos diferentes plantões, o que contribui para a
representatividade das informações obtidas. Os diálogos foram realizados na própria
organização governamental, em salas disponibilizadas pela equipe técnica, durante o turno de
trabalho. Esta opção deve-se ao fato de que os trabalhadores passam bastante tempo na
unidade, em seus plantões8. Ocupar seu período de descanso para retornar à instituição
conceder a entrevista poderia ser um motivo de resistência à participação na pesquisa. Assim,
em horários em que as atividades laborais ficaram um pouco menos intensas (devido alguma

8
Os agentes socioeducadores trabalham em plantões. Isto significa que por cada grupo de adolescentes (os quais
são divididos conforme a medida socioeducativa estipulada, que pode ser desde internação provisória até
internação e semiliberdade), ficam responsáveis alguns funcionários e em determinados turnos. Existe dois
plantões para o turno da manhã (manhã A e B, por exemplo) e um para o turno da tarde e outros dois para o
turno da noite. Apesar de existir flexibilidade para trocas, em geral esta é a estrutura de trabalho. Para mais
informações sobre a dinâmica institucional vide Fachinetto, 2008.

47
ocupação das adolescentes em oficinas, aulas, etc), os agentes puderam ser entrevistados, um
a um, conforme sua disponibilidade, voluntariamente.
A análise dos resultados foi a de conteúdo temática, que tem o tema como conceito
central, buscando desvelar as unidades ou núcleos de sentido que compõem a comunicação
(GOMES, 2012, BARDIN, 1979). Os procedimentos metodológicos utilizados são
basicamente categorização (ou classificação), inferência, descrição e interpretação, não
necessariamente seguindo esta trajetória. Para se chegar às categorias, as entrevistas foram
analisadas primeiramente de forma individual e posteriormente em conjunto. Então se partiu
para os elementos presentes nas mesmas, considerando-se a força discursiva, os sentimentos
manifestados, os silêncios ou os conflitos em relação à temática. Na discussão dos resultados,
o material apresentado por cada profissional será identificado através da letra “E” (de
entrevistado) seguida de um número (por exemplo, E.1).
Quanto aos sujeitos da pesquisa, como explicitado acima, foram agentes
socioeducadores da única unidade feminina de privação e restrição de liberdade do RS. Em
reunião com Direção, equipe técnica e agentes socioeducadores da Unidade, estes últimos
foram convidados a participar da pesquisa. Os critérios para inclusão dos participantes eram:
a) ser profissional que se insere no quadro funcional da instituição como agente
socioeducativo; b) estar atuando na instituição feminina de privação de liberdade; c) ter
disponibilidade e interesse em participar do estudo. Apesar de ser explicitado o desejo de se
manter a proporcionalidade na participação entre homens e mulheres, respeitou-se o caráter de
participação voluntária. Assim, foram realizadas 10 entrevistas, sendo nove com agentes do
sexo feminino e uma com um agente masculino.

Nome Idade Tempo de FEBEM ou FASE Tempo de CASEF


(em anos) (em anos)
E.1 35 10 8
E.2 39 12 11
E.3 54 21 21
E.4 70 44 15
E.5 30 10 8
E.6 54 20 4
E.7 51 27 12
E.8 55 26 18
E.9 55 10 7 meses
E.10 31 8 7
Tabela 1. Quadro de participantes

Como se pode observar os participantes têm idade entre 31 e 70 anos, e todos eles
possuem tempo significativo de trabalho na FASE-RS. O interlocutor com menos tempo de

48
trabalho na instituição encontra-se há 8 anos no local e o mais antigo, está há 44 anos.
Destaca-se ainda que o período de exercício da função no CASEF, excetuando uma das
agentes que tem apenas 7 meses, oscilou entre 7 e 21 anos de trabalho. Pode-se inferir a partir
destes dados que os participantes tinham experiência e vivência considerável para tratar do
tema, sobretudo para falar das mudanças identificadas ao longo deste período no sistema de
atendimento ao jovem em conflito com a lei. Levando em conta que os últimos anos foram
importantes no que diz respeito às transformações legislativas e reorientações das práticas
ressocializadoras, esta informação torna-se favorável para a pesquisa.
O número de entrevistas, cabe ressaltar, obedeceu ao critério de fechamento amostral
por saturação. Esta ferramenta metodológica é usada no sentido de o pesquisador avaliar, à
medida que as informações vão sendo coletadas, determinado ponto onde a inclusão de novos
participantes parece tornar-se dispensável pela percepção de certa redundância ou repetição
dos conteúdos (FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008). Segundo Gaskell (2002), o
objetivo da pesquisa qualitativa não é contar opiniões ou pessoas, mas descobrir a variedade
delas dentro do tema, apresentar uma amostra do espectro de opiniões, assim como os fatores
que embasam e explicam estas diferenças. Deve-se levar em conta também que existe um
“ponto de saturação do sentido” (GASKELL, 2002, p. 71), onde um número maior de
entrevistas não parece ampliar o entendimento do fenômeno, pois se percebe que as
representações do tema já foram abarcadas.
A escolha desta instituição também não foi aleatória. O Centro de Atendimento
Socioeducativo Feminino (CASEF), foi citado como a melhor entre as instituições brasileiras
visitadas pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, quando esta
realizou a IV Caravana Nacional de Direitos Humanos mostrando a situação dos adolescentes
privados de liberdade no Brasil, em 2001 (BRASIL, 2001). Assim, a partir da grave situação
identificada na maioria das organizações que se ocupam com a ressocialização de jovens,
optou-se por buscar uma que pudesse dar sinais de resultados diferentes. Além disso, acredita-
se que apesar de restarem persistentes os mecanismos repressivo-punitivos inclusive nas
instituições consideradas “modelo”, sabe-se que coexistem aspectos indicativos das mudanças
de paradigma e que devem ser explicitados. Entende-se que este deva ser também o papel dos
estudos: apontar as brechas e vetores instituintes, reforçar as possibilidades e oportunidades
de transformação, desconfiar dos resultados homogêneos que apontam apenas as falhas.

49
3.3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Mergulhando na instituição: Primeiras impressões


As primeiras impressões reveladas pelos agentes participantes deste estudo dão
mostras de como se sentiram ao ingressar na instituição. São as primeiras sensações e
opiniões, constituídas com base em um arcabouço de vivências (em geral) forjadas até então
fora deste contexto tão específico de institucionalização e aprisionamento. A descrição das
mesmas ajuda a entrever que imagem foi construída desde o seu ingresso, que mensagens
foram captadas, a partir da estrutura física, das ações de acolhida aos novatos (ou falta delas),
da observação das relações e do trabalho que deveria ser feito. São observadas ainda quais
parecem ser as crenças e mandatos implícitos e os objetivos manifestos e latentes (BLEGER,
1981). Isto serve para os iniciantes posicionarem-se frente às expectativas institucionais
quanto ao desempenho de suas tarefas. A importância de se buscar apreender estas impressões
de chegada diz respeito ao fato de que elas ainda podem ser contrastadas, pelo próprio
trabalhador novato, com as percepções e concepções anteriores, constituídas “no mundo lá
fora”. Por isso mesmo o que se percebe parece ser um impacto inicial forte, um “choque” que,
por mais que se desvaneça paulatinamente, revela a dimensão objetiva e subjetiva da
instituição. Com o tempo, a adaptação vai acontecendo na maioria dos casos, mesmo que o
trabalhador possa não se sentir confortável ou satisfeito com a situação. Mas ocorre que a
capacidade de olhar criticamente para o contexto pode ir se perdendo à medida que ele se
torna corriqueiro. Este pode ser resultado da “tendência dominadora da instituição total”
(GOFFMAN, 1999, p. 22).
Neste caso, as impressões iniciais em geral referem-se ao impacto do socioeducador
ao chegar às unidades masculinas da FASE-RS, pois a maioria dos entrevistados não foi
trabalhar diretamente na Unidade feminina (CASEF).

Quando eu entrei [...] eu achei horrível, sujo, fedorento. E.1

Segundo autores clássicos, a lógica do aprisionamento é herança dos primórdios das


práticas de inibição de comportamentos considerados prejudiciais e infratores das normas. E
por isso prevê um ambiente coercitivo, visando não só a punição, mas a prevenção dos crimes
através da ameaça da sentença (FOUCAULT, 1987, GOFFMAN, 1999). Assim, é possível
compreender o discurso corrente nas instituições que argumenta que a unidade não pode ser
agradável, pois estimularia os indivíduos a perderem o medo de ingressar ou o desejo de sair

50
dela. Por outro lado, atinge igualmente qualquer sujeito que se vê envolvido em seu cotidiano,
podendo passar a mensagem ameaçadora, de estímulo à sua evitação, também aos
trabalhadores.
Outro, dentre os fatores que chamaram atenção dos agentes em um primeiro momento,
refere-se ao impacto com as estruturas físicas. Compostas por grades, portões, trancas e
chaves, os ambientes demonstram estar preocupados com o enclausuramento. Apesar das
inegáveis atualizações e modificações arquitetônicas nas organizações de todo país com o
advento do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo, ainda restam muitas das características das instituições totais. Objetivando
promover a ruptura dos laços com o mundo externo, as construções dos prédios institucionais
seguem padrões que, dentre outras metas, podem visar a destituição do sujeito de sua
identidade anterior, de fora de seus muros.

[...] foi muito difícil no começo. [...] tinha dias que eu olhava assim, era um, dois,
três, quatro portões gradeados, iam todos de lá assim, só tinha uma janelinha, eu
pensava: „Meu Deus, o que eu tô fazendo aqui dentro?‟ E.2

Como dito, na atualidade são inegáveis os avanços em termos de direitos humanos e a


ampliação do entendimento da condição específica de jovens que chegam às vias da
transgressão. Não só estes, mas a infância e a juventude como um todo passaram a ser
consideradas condições especiais, de desenvolvimento. Constituiu-se dever da família e do
Estado protegê-los e zelar pela garantia de seus direitos. Igualmente, foram notabilizados os
aspectos extrínsecos, culturais, sociais, econômicos que, inter-relacionados, influenciam os
processos de expressão das condutas delitivas. O reconhecimento do papel da sociedade como
co-responsável obrigou os aparelhos e políticas públicas a repensarem o atendimento
dispensado àqueles considerados em situação de risco e vulnerabilidade. Entretanto, são os
relatos dos próprios funcionários que denotam a continuidade de estruturas “superadas” de
pensamento e intervenção (ao menos nas unidades masculinas), atingindo internos e
funcionários de formas muito semelhantes.

[...] quando eu cheguei [...] eu me sentia presa, literalmente presa. E.2

As falas revelam também as consequências destes primeiros impactos, para a


formação das opiniões sobre o que seria trabalhar neste local. A desqualificação do espaço
aparentemente foi uma das primeiras lições funcionais.

51
[...] Eu achei tudo muito abandonado, eu achei tudo assim um desleixo. [...] por que
era tudo muito sujo, tudo muito quebrado, tudo muito estragado. [...] Que é até
hoje. Se for ver até hoje, é tudo meio abandonado. E.9

As sensações experimentadas pelos agentes não seriam fruto do acaso. Apesar de a


institucionalização juvenil embasar-se em propostas pedagógicas, com os objetivos
educacionais declarados, coexistem outros também expressivos, de dominação,
amedrontamento, controle, exclusão. Neste sentido Oliveira (2001) argumenta que, muito
embora circule um discurso progressista sobre a “pedagogia da presença” nas instituições, na
prática prevalece majoritariamente a “pedagogia da punição”. Zamora (2005), em curso de
capacitação para “monitores” no RJ, igualmente presenciou declarações confessando a tortura
aos adolescentes. Takeuti (2002), da mesma forma, relata que casos de espancamentos e
abuso de poder por parte de órgãos de segurança ocorrem inclusive frente a determinada
platéia, seja de outros jovens, de cidadãos ou de profissionais. Estes “espetáculos de horror”
não por acaso assemelham-se aos antigos suplícios da Idade Média e, mesmo estando menos
presentes, outros elementos seguem mantendo a aura ameaçadora das instituições.

[...] um pouco de medo né, a casa era totalmente cheia de grades. Tinha grade na
entrada, um, dois, três, quatro portões de ferro chaveado e daí eu trabalhava lá
dentro né... chaveada, um grupo cheinho. [...] Bom,quando eu entrei, [...] o que me
surpreendeu foi aquele monte de portão de ferro, né?! E.8

Mas os trabalhadores também se impactavam com as regras da unidade, neste caso, do


próprio CASEF.

Então eu sentava naquele banheiro [...] e chorava, e dizia: „Eu não vou agüentar
tudo essas regras! Meu Deus, essas mulheres são loucas, elas numeram até o
absorvente das gurias, como é que eu vou guardar tudo isso? E.2

Aparentemente, estas normas e procedimentos eram vistos criticamente a priori, como


insustentáveis, talvez irracionais. Também poderiam ser lidos pelos funcionários como
reflexo de rigidez e controle institucionais, possíveis dispositivos causadores da angústia que
acaba levando ao choro.
Outro ponto importante diz respeito às relações institucionais, que, no período de
ingresso, também impactaram os agentes socioeducadores em algum grau.

Ah, foi de prisão, né?! A primeira sensação foi de falta de ar, de não conseguir
respirar dentro do lugar assim; de muita coisa pra fazer, de muita desorganização,
de muita gente „se fazendo‟, pouca gente trabalhando [...] E.2

52
[...] então quando eu cheguei o banheiro era podre, era muito sujo, eu nunca tinha
visto um lugar tão sujo na minha vida, e se a gente quisesse fazer uma limpeza,
eles, os outros monitores, dificultavam, né, por que se não, eles iam ter que fazer
também. [...] Então tu te sentia meio perseguida assim, pelos monitores [...] E.2

Goffman (1999) descreve este tipo de relação como característico das instituições
totais. O controle se dá não só dos dirigentes em relação ao público atendido, mas também
entre a equipe de trabalhadores. A quebra das regras no sentido de transformar o que já está
instituído em geral tende a ser vista como ameaçadora àqueles que estão comprometidos com
a manutenção do status quo na instituição. Segundo Baremblitt (1992), em todas as
organizações existiriam duas tendências que seriam como forças, chamadas instituídas e
instituintes. O conflito entre elas seria natural, pois as primeiras tenderiam à cristalização e as
segundas à transformação. A instituição exprime assim uma dinâmica, cabendo sempre a
provocação quanto aos padrões que são repetidos e as possibilidades de mudança.
Existe ainda outro fator que parece ter causado impacto aos trabalhadores recém
chegados. Trata-se das características do público atendido. Alguns revelam ter sentido medo,
pavor, sentimentos que revelam a dificuldade de se ver o sujeito por trás do criminoso, pelo
menos em um primeiro momento.

Entrei com medo, né, lógico. Porque tu não conhece, tu não sabe [...] E.3

Quase morri, eu lembro que eu voltei pra casa chorei, chorei horas em casa assim
[...]. E ai eu lembro que eu cheguei, vi aqueles marmanjos enorme, grades, me
apavorei. E.5

Como se sabe, o jovem que predominantemente acaba internado no cenário brasileiro


atual das instituições é o jovem de periferia urbana (OLIVEIRA, 2001, SOARES, 2004). Este,
desde mesmo antes de nascer, carrega consigo uma bagagem forjada pelo olhar social que
mescla estigmas, indiferença e vitimização. É Soares (2004, p. 175) quem afirma:

Uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre ele ou
ela um estigma, um preconceito. Quando o fazemos, anulamos a pessoa e só vemos
o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que distingue a pessoa,
tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é singular, desaparece. O estigma
dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a
classificação que lhe impomos.

Quando os jovens são expedidos ao cumprimento de medidas socioeducativas que


atingem sua liberdade, em geral chegam com o estereótipo do delinquente, sustentando tal
imagem para a instituição e, muitas vezes, para si mesmos. Eles “compram” a identidade

53
projetada sobre eles, os papéis a eles destinados pelo imaginário social (TAKEUTI, 2002).
Por isso, não se trata de moralmente classificar as condutas dos funcionários como
preconceituosas, mas denunciar a dificuldade de compreender e enxergar o sujeito por trás do
estereótipo. O obstáculo é significativo para o próprio indivíduo em questão e pode delinear-
se inclusive como a tarefa da instituição: desmistificar os sentidos por ele adotados até então,
para sua identidade e para sua vida.
Estas primeiras construções, baseadas nas sensações impactantes ao contato com a
instituição, talvez tenham relação com o fato de que muitos dos trabalhadores não conheciam
a FASE-RS anteriormente. Por isso, também não poderiam imaginar quais funções seriam as
de um socioeducador.

[...] a primeira frase que eu ouvi assim quando eu entrei [...] foi: „Tu é muito
novinha e bonitinha pra trabalhar aqui‟... Que eu não ia durar, entendeu? [...] mas
pra mim foi um choque quando eu entrei [...], quando eu fiz o concurso eu nem
imaginava a dimensão do que era a FASE [...] E.5

Por outro lado, mesmo informações prévias sobre a instituição talvez não fossem
suficientes para minimizar as impressões inicialmente impactantes.

Sabia, sabia [qual era o público atendido], mas uma coisa é tu saber outra coisa é tu
vivenciar, né? E.3

Nas falas dos agentes é possível notar que os primeiros “avisos” cuidadosamente
dados por alguns integrantes da instituição foram no sentido de prepará-los para a
desqualificação. Uma desqualificação do trabalho em si e/ou do público atendido, das
questões e situações presentes neste contexto, algo que de alguma forma não comportava a
juventude e a beleza de uma funcionária, por exemplo. Mais uma vez pode-se pensar que
estas falas corroboram com o discurso de invisibilidade (SOARES, 2004) e proscrição social
(OLIVEIRA, 2001, TAKEUTI, 2002) voltados aos jovens suburbanos. A instituição (ou parte
dela), ao tentar preparar o funcionário, talvez dê pistas do que entende que acontece em seu
interior. Compreende que lida com o lixo social (OLIVEIRA, 2001, ROSA, 2007) ou com o
suspeito perigoso (TAKEUTI, 2002) e, por isso, para trabalhar ali é preciso despir-se de
maiores investimentos, de maiores expectativas, entrar sem o que possa se estragar pelo
contato ou minimizando os riscos de se ferir.

Aí quando eu entrei [...] eu fui bem „maloqueira‟ [...] porque eu já sabia o que me
esperava, aí eu lembro que o diretor falou assim: “esse teu casaquinho bom, tu não
vai usar lá dentro. Tu tem que vir com roupas que possam ser descartadas”. E eu
pensei: “Mas é exatamente o que eu vim!” E.1

54
Parece que, ao invés de se exigir que o funcionário ingresse portando bagagens de
conhecimento técnico ou pessoal (afetivo, emocional) específicos que possam agregar
qualidade ao trabalho com uma clientela tão única, pede-se e instrui-se que o funcionário
entre nu, com o mínimo possível, para não estragar, ferir ou perder o que carregou consigo
para dentro da instituição.
Entretanto, a instituição não se constitui como um bloco uniforme de pensamentos e
ações integrados. Nem as primeiras impressões e conclusões sobre o trabalho feito ali
determinaram por si só a postura adotada a posteriori. Até porque este posicionamento não
pode ser estanque, jamais se constituindo como simples repetição automática e autômata dos
exemplos aceitos como modelos. Por isso investigou-se também outros elementos
possivelmente importantes para compreensão da postura de trabalho adotada e formada dentro
das instituições.

Caminhos que levam à socioeducação


Um destes fatores diz respeito às razões destes sujeitos para tornarem-se
socioeducadores. Os motivos descritos não são vistos como determinantes para uma postura
de trabalho mais ou menos condizente com a proposta educacional da ressocialização.
Contudo, servem para investigação das expectativas com relação ao trabalho. Dentre as razões
apontadas, talvez a mais freqüente seja a busca por estabilidade no serviço público.

[...] eu acho que de maneira geral o serviço público, né? Porque tu tem estabilidade,
tem essa coisa de todo mês tu ter teu dinheiro certinho [...] E.5

[...] o que me levou a fazer o concurso foi a minha idade [...]. A minha preocupação
maior é que eu não tivesse estabilidade, então quando eu fiz o concurso, eu fiz
vários concursos. E a minha preocupação com relação ao concurso público era a
estabilidade que eu precisava. E.9

[...] eu fiz mais por que tinha que trabalhar [...], nem pensei o que que era. Eu nem
sabia ao certo; eu sabia que era com adolescente [...], mas não tinha ideia assim do
que era [...] E.8

Um dado importante que surge nestas descrições diz respeito ao desconhecimento


anterior sobre a natureza do trabalho. Muitos entrevistados afirmaram ingressar “às cegas”,
sem saber ao certo com quem iam lidar e, menos ainda, de que forma fariam isso.

[...] eu até me inscrevi pela estabilidade, né? Mas eu jamais, nunca pensei que
existisse esse tipo de clientela, de gente. E.7

55
Este desconhecimento pode ajudar a forjar situações de despreparo frente o público a
ser atendido e mesmo de insatisfação pelo confronto da realidade com as expectativas do
funcionário. Se se busca essencialmente estabilidade ou um trabalho de cunho mais
assistencialista, com “crianças abandonadas”, certamente há um choque no momento em que
se compreende que a tarefa a ser exercida será diferente da que se esperava realizar. Além
disso, apesar de ser fato dado a estabilidade a partir do cargo público, também é bem verdade
que as especificidades das tarefas de socioeducador implicam, em certa medida, saber lidar
com a instabilidade inerente à instituição e mais ainda às que atendem o público em questão.

[...] não, nem sabia que existia. Pra mim achava que eram os abandonados,
coitados... que os pais não queriam [...] E.7

Em contrapartida, também existem aqueles que apesar de não terem previamente o


conhecimento sobre a FASE-RS, parecem ter adaptado suas expectativas à realidade.

Na verdade quando eu entrei, eu vi uma possibilidade de trabalho, [...] seria uma


renda, [...] mas eu me identifiquei muito com o trabalho. E.3

Em alguns casos, contudo, mesmo com o desconhecimento, ou talvez mesmo “graças a ele”,
os entrevistados manifestaram que havia o desejo de trabalhar neste local.

Eu fiz o concurso porque era de ensino médio, porque era ligado, de certa forma, à
área da educação [...] E.10

[...] [quando era menor, a professora da escola] organizou, dividiu a gente em


grupos e eu caí num grupo que ia visitar a FEBEM na zona sul, mas eram abrigos,
não eram infratores. [...] Então nós começamos indo lá e a gente ia toda semana
fazer teatro, lia história, conhecia um monte de criança, bebê, educação infantil, os
outros, grandes, lia história coisa e tal. E daí desse tempo até eu fazer o concurso se
passaram 10 anos, pelo menos, e eu sempre dizia: „Um dia eu vou trabalhar na
FEBEM‟. E.2

Por estes relatos percebe-se, no entanto, que praticamente nenhum dos entrevistados tinha real
noção do que tratava a função de socioeducador em um contexto de privação de liberdade antes de
ingressar na instituição. E, apesar de muitos deles atualmente considerarem-se bons profissionais, que
passaram por um processo de adaptação, a afirmação de uma das socioeducadoras exprime talvez o
que seja corrente não só para os sujeitos pesquisados, mas no imaginário social contemporâneo
(TAKEUTI, 2002).

Trabalhar com criança e adolescente infrator vamos combinar que não é uma coisa
que tu sonha desde pequena, né? E.10

56
Essa afirmação parece demonstrar o entendimento de que o trabalho com jovens com
comportamento delinquente não poderia ser algo sonhado, desejado, mas uma tarefa que
alguns acabam desempenhando por diversas razões. A desqualificação desta clientela – seja
pelos motivos que forem, consciente ou inconscientemente – possivelmente é estendida à
desqualificação do trabalho com esta clientela.
Entretanto, há que se ressaltar que tanto as impressões iniciais quanto as motivações
para ingressar na FASE-RS não dizem respeito ao que estes sujeitos foram delineando como
profissionais a partir da vivência cotidiana na instituição. Além disso, é imprescindível
separar as opiniões e crenças relacionadas à Fundação de Atendimento Socioeducativo e à
unidade feminina, o CASEF. Os próprios funcionários procuram demarcar as disparidades
entre estas duas organizações9. Em razão deste fato, buscou-se investigar também as
transformações ocorridas no dia-a-dia institucional, depois do contato e impacto iniciais. A
partir disso, revelou-se que muitos profissionais consideram-se bem adaptados e capazes de
desempenhar suas funções com preparo e satisfação.

Trajetória de adaptação
Nos discursos dos agentes, evidencia-se uma trajetória que partiu de um ponto de
choque inicial, pelo caráter fechado (GOFFMAN, 1999) e de desqualificação (TAKEUTI,
2002) apresentado pela instituição, para outro, de adaptação a ela. Contudo, a adaptação
poderia ser de diversos níveis e representar tanto resignação frente às forças institucionais (e a
desistência de investir em novos paradigmas), quanto significar que se encontraram meios de
atuar de forma criativa neste espaço. Este tipo de adaptação diria respeito às brechas
encontradas para a vazão das forças instituintes (BAREMBLITT, 1992). Ao que tudo indica,
aqui existem diversos casos de adaptação deste último tipo, que, junto consigo, trouxeram
satisfação aos socioeducadores.

[...] então era outra realidade, mas assim eu fui me adaptando [...] E.1

[...] No começo, eu tremia, eu lembro de sentir minhas pernas bambas de atravessar


de um lado pra outro da ala. [...] Um mês depois eu colocava toda a ala sozinha pra
dentro dos quartos. E os guris respeitavam. Só no respeito. E.1

[...] me desmanchava [chorando] a cada intervalo que eu conseguia ir no banheiro.


E hoje eu faço isso com tanta tranqüilidade, que de vez em quando até me esqueço
de como é complicado tu guardar tudo essas coisas [memorizar as regras]. E.2

9
Mais adiante este ponto será melhor explorado.

57
Evidentemente, há que se fazer ressalvas quanto à conexão entre a satisfação dos
trabalhadores e autonomia para criar novas formas de intervenção institucional. Em alguns
casos, a adaptação e satisfação advindas dela são justamente porque os valores e crenças do
sujeito aproximam-se do que já está instituído como prática na unidade. Por exemplo, não
raro, os funcionários sentem-se satisfeitos por fazer valer o cumprimento das regras, a
cobrança das faxinas na casa, porque possuem crenças pessoais que valorizam condutas de
disciplina, organização e limpeza como positivas. Porém, nem todos os funcionários teriam os
mesmos valores, podendo sofrer para acomodar-se a este tipo de prática institucional, criando
obstáculos para sua satisfação.
Por outro lado, muitas situações descrevem adaptação no sentido de construção de
oportunidades de fazer modificações na própria dinâmica institucional através de seu trabalho,
quando não há concordância com determinadas ações e tarefas.

[...] eu entrei na observação, observando e aprendendo com as pessoas que já


estavam e eu te digo [...] que eu acho que eu faço parte da transformação. Quando
eu entrei tinha um monte de coisa que eu não concordava, que acontecia, da forma
de tratar as meninas, que não era com o respeito que é tratado hoje. E.3

Algumas dificuldades que são relatadas como superadas teriam a ver com a
insegurança inicial pelo despreparo ou desconhecimento das ferramentas eficazes de trabalho.

[...] acho que em seguida eu consegui ter domínio da situação. No começo eu tinha
muito receio (...), porque tu não sabe como que é as gurias, não sabia na época
como é que elas reagiam, como é que eu tinha que chegar nelas, como é que eu ia
me aproximar, como é que eu ia fazer aquela coisa do vínculo, né? Não tinha
experiência. Hoje eu tiro de letra, hoje a gente já sabe (...). A guria chega e eu já
faço a leitura, já sei exatamente como ela vai ser, as dificuldades que vai ter, já
consigo perceber. E.3

Parece que entra aqui o conhecimento da especificidade que os jovens e, mais ainda,
os que chegaram a infracionar a lei e ser “pegos” pelas malhas do sistema judicial,
apresentam. A funcionária explicita não se sentir preparada para lidar com estas
especificidades, revelando o quanto esta tarefa exige conhecimentos de diversas ordens,
destacando o relacional ao mencionar o “vínculo”. Além do mais, seu relato deixa entrever
talvez estigma ou preconceito anteriores, que poderiam ser as causas de certo receio ao
trabalhar com esse público. Dizer que não sabia como elas reagiriam coloca a crença na
existência de uma categoria (“elas”) e de uma resposta característica a essa categoria (“como
elas reagiam”). Interessante pensar que assim como a socioeducadora não tinha experiência,
provavelmente também as adolescentes que chegam, na maioria pela primeira vez internadas,
58
também não têm experiência. É neste ínterim que se constroem as relações institucionais,
entre expectativas e confronto com a realidade e individualidade, permeando entre elas o afeto
e as limitações pessoais.
Importante também destacar que os motivos para adaptar-se neste emprego não
necessariamente passam por falta de outras oportunidades ou de outros planos, projetos,
expectativas em termos profissionais.

Isso, é mais ou menos o cálculo de todo mundo, sabe? Todo mundo [diz]: „Não, eu
vou ficar tanto tempo, só até me ajeitar...‟. [...] A maioria são colegas com vinte e
poucos anos [de FASE]. [...] E uma coisa que me chama muito a atenção [...]: tem
muita gente formada [...]. Nós temos pessoas formadas em Direito, Licenciatura de
vários tipos, Serviço Social. [...] e trabalhando não necessariamente na sua área de
atuação e sim como monitores. E eu não entendia, pensava assim: „Nossa, como é
louco! Como é que não vai trabalhar na sua área? Vai ficar aqui dentro‟. E tu vê,
né? Faz dez anos que eu me formei [e trabalha como socioeducadora no CASEF].
E.5

Às vezes, como dito anteriormente, assumir a função de socioeducador é mesmo algo


que não foi planejado, distante do que se desejava e até do que se entendia que era sua
vocação. Entretanto, muitos dos funcionários ativos nesta instituição feminina de fato estão
trabalhando há tempo significativo no mesmo local e função. E os relatos dos sujeitos
entrevistados podem ser compreendidos como majoritariamente de satisfação com sua
adaptação à função.

[...] eu gosto muito do que eu faço, não tenho intenção nenhuma de abandonar. E.2

Estes fatos são de suma importância para o processo de ressocialização. E outro


elemento igualmente relevante diz respeito aos treinamentos e capacitações, por também
influírem no processo de acomodação como profissional de uma instituição tão específica
como a de privação e restrição de liberdade de adolescentes. Com essa justificativa, também
estes aspectos foram investigados nesta pesquisa.

Treinamentos e capacitações
De acordo com o SINASE (BRASIL, 2006, p. 49), uma das diretrizes pedagógicas do
sistema socioeducativo seria a formação continuada dos atores institucionais.

[...] a periódica discussão, elaboração interna e coletiva dos vários aspectos que
cercam a vida dos adolescentes, bem como o estabelecimento de formas de
superação dos entraves que se colocam na prática socioeducativa exigem
capacitação técnica e humana permanente e contínua considerando, sobretudo o
conteúdo relacionado aos direitos humanos.

59
Além disso, o SINASE ainda define minimamente quais devem ser as estratégias de
formação de Recursos Humanos, incluindo: a) uma capacitação introdutória (anterior à
inserção do funcionário), b) formação continuada (para melhoria da qualidade dos serviços) e
c) supervisão externa e/ou acompanhamento das Unidades e/ou programas por especialistas
extra-institucionais (espaço de exposição das dificuldades e conflitos). Segundo o documento
(idem, 2006, p. 54):

Incluem-se também o acompanhamento e a participação dos conselhos


profissionais (das diferentes áreas do conhecimento que atuam no atendimento),
dos governos federal, estadual, distrital e municipal, dos diversos Conselhos de
controle social e das universidades para a garantia, apoio e a participação na
formação, na capacitação, na elaboração de pesquisas, no monitoramento e na
avaliação institucional.

Mas a forma como são estruturadas e levadas a cabo as capacitações servem ainda
para dar indicações de como a própria instituição entende sua significação social e como
descreve a tarefa que executa, ou quais seriam suas metas menos declaradas. As percepções
dos socioeducadores sobre estes espaços tornam-se informações úteis para compreensão
ampliada das renitentes discrepâncias perceptíveis entre práticas institucionais e
fundamentações legislativas e teóricas. Nestes lugares que, segundo Oliveira (2001, p.189)
são um misto entre “um quartel meio bagunçado, uma escola sem educadores, uma senzala
sem trabalho”.
Assim, os sujeitos entrevistados apontam experiências diferentes com as capacitações
dependendo do período de sua contratação. Algumas foram mais longas, outras mais sucintas.
Sobre os conteúdos, houve casos em que foram considerados inapropriados por diversas
razões.

[...] Eu tive capacitação de 30 dias. [...] até com o BOE10 na época. [...] era uma
capacitação pra segurança [...] e umas coisas enfeitadas assim que eles diziam.
Claro, quando nós chegamos nas casas nós descobrimos que o BOE exagerou pra
um lado e os funcionários da FEBEM diminuíram pra outro. Eles tavam assim no
meio termo. E.2

Torna-se especialmente interessante esta fala, pois ela pode trazer à tona alguns
aspectos dicotomizados presentes no olhar voltado aos sujeitos institucionalizados. A
funcionária parece dizer que, com a experiência e a prática, compreendeu que não se tratavam
10
BOE significa Batalhão de Operações Especiais da Brigada Militar do RS.

60
exclusivamente de infratores perigosos (com os quais se lida a partir de ferramentas de
segurança e contenção), nem de produtos de uma cultura que os transformou em vítimas (com
as quais se lida com compaixão, pura e simples, como dispositivo). Nesta elaboração,
possivelmente a socioeducadora esteja resumindo sua percepção dos indivíduos com os quais
trabalha e de sua tarefa perante eles, que não seria nem no sentido de “exagerar” (repressão),
nem de “diminuir” (assistencialismo), mas de encontrar um “meio termo”11.
As falas dos socioeducadores ressaltam ainda incongruências entre as demandas
específicas da unidade e as capacitações oferecidas pela FASE-RS. Esta seria uma crítica feita
à instituição por parte da unidade.

[...] Sempre o CASEF reclama porque ele não é contemplado com as capacitações
que a gente precisa, sempre as capacitações são direcionadas pro público
masculino. Então se fala muito da violência, da segurança, e o CASEF não tem
muito isso. E.2

[...] O que a gente queria mesmo era que fossem capacitações de psiquiatras, de
psicólogos: „O que fazer? Como tratar aquela menina, de que jeito falar?‟ Não
como fazer o manejo mecânico, por exemplo, a contenção. Isso a gente sabe. E.2

[...] teria que ser uns cursos de capacitação assim que pudéssemos usar no nosso dia
a dia... tipo assim, [...] logo quando saiu o HIV, ninguém sabia. Ninguém sabia o
que fazer, todo mundo tinha medo, claro. E.7

Estes argumentos em prol de diferentes temas para as capacitações do CASEF podem


trazer à tona entendimento diverso sobre os públicos feminino e masculino. E/ou denotar
simplesmente a visão diferenciada desta unidade, como um local que se beneficiaria mais com
conhecimentos técnicos que ajudassem a incrementar as relações do que com aqueles que
visam manter a segurança e o controle. Desta forma, para além das críticas, também haveria o
reconhecimento de cursos oferecidos que trouxeram conhecimentos considerados
aproveitáveis, instrumentalizando suas práticas neste sentido, o das relações.

[...] teve um pós [graduação] que veio da Universidade de Santa Maria, [...] tava
bem bom ele, era „Sociedade, Violência e Juventude em Risco‟. [...] Esse era um
curso bom, é o tipo de curso que o CASEF gosta, não outras coisas. E.2

[...] que antes aqui na FASE, todos que entravam [...] sempre foi dado [...] várias
capacitações [...] Era dividido por grupos [...], sempre ia um psicólogo falar,
sociólogo, ia assistente social, e pessoas da área, né, que já trabalharam...o trabalho
foi imenso... pra facilitar o trabalho, tipo das revistas [fazer revista nos visitantes],
essas coisas assim, né. E.8

11
Estes aspectos serão mais bem explorados no próximo capítulo desta dissertação, constituído por um artigo
que trata especificamente deste tema, nomeado “De monitor a educador: as funções institucionais na percepção
de agentes socioeducativos”.

61
Margeando o tema das capacitações, é impossível não chamar atenção a postura da
unidade (CASEF) em relação à FASE, como se fosse diferente em suas especificidades,
inclusive de demanda de cursos, devido ao público que atende. Mas talvez também por se
colocar de outra forma, vê-se que os socioeducadores mencionam o CASEF como uma
unidade a parte12.
Quanto à importância e valor das capacitações segundo a opinião dos funcionários,
tem-se que são percepções igualmente variadas. Enquanto umas consideram que aproveitaram
as oportunidades considerando válido ainda participar das que forem propostas no futuro,
outras acreditam que o trabalho eficiente independe ou depende menos dos treinamentos
oferecidos.

[...] sempre que tu faz uma capacitação alguma coisa tu colhe né, alguma coisa te
dá de subsídio para o teu trabalho, mas eu acho que tem também do perfil da
pessoa, da pessoa dar pra essa tarefa [...]. E.3

[...] Tivemos, uma semana, ridícula assim [...]. Não, bem fraca... É mais tipo
palestras assim, e conversa sabe? Mostrava um pouco eu acho como era feita uma
contenção, as coisas bem básicas assim, que não adianta, tu aprende a trabalhar só
no dia-a-dia. E.5

Através dos discursos é possível perceber críticas à instituição FASE por se entender
que ela é quem deveria compreender a demanda das unidades (ou simplesmente ouvi-las) e
oferecer mais oportunidades de aperfeiçoamento. Também se nota que existe um
reconhecimento de seu trabalho como especialmente amplo, demandando vários tipos de
habilidades e aportando diversas formas para essa transmissão aos trabalhadores.
Aparentemente, profissionais e adolescentes teriam possibilidade de empreender mais tempo
para o processo de aprendizado, segundo alguns entrevistados.

[...] teria que tá sempre tendo curso, sabe? [...] Tipo, contenção mecânica, por
exemplo, tem monitor que nem sabe fazer porque nunca pegou uma contenção
mecânica [...] E não é dado curso [...] Poderia ter bem mais coisas, poderiam ter
seminários, poderiam ter palestras, poderia ter muita coisa e não tem [...]. Mesmo
pros adolescentes também. E.5

Entretanto, será mesmo possível que a maior freqüência ou qualidade das capacitações
preparem melhor um colaborador para uma tarefa que possui especificidades e complexidades
como as do sistema socioeducativo? Afinal, o material de trabalho é material humano

12
Este tema será mais bem explorado no terceiro capítulo desta dissertação, em artigo intitulado: “„Aqui é
diferente, aqui funciona‟: Especificidades de uma unidade feminina de privação de liberdade”.

62
(GOFFMAN, 1999) e para aprender a lidar com ele talvez não existam cursos que prescindam
da vivência como as próprias entrevistadas referem.
Desta maneira, a questão primordial parece ser apontar que a aprendizagem depende
de um processo que é ativo, e não passivo. Dependeria da desconstrução de conceitos
internos, assimilação e acomodação em seu arcabouço pessoal de novas informações, de
observação, enfim, de abertura e disponibilidade. E certamente também da instituição, para
dar suporte e oferecer oportunidades de aquisição de ferramentas e saberes atualizados.
Assim, investigou-se o processo de aprendizado da função.

Aprendendo a ser socioeducador


Algumas falas apontam que o aprendizado mais concreto sobre suas tarefas não seria
efetivado em cursos, mas no cotidiano institucional, no contato com os funcionários mais
antigos e pela experiência prática por si mesma.

Quando começaram a capacitação tinham várias pessoas que falavam sobre


diferentes assuntos, mas, tecnicamente, ninguém diz o que é, qual é a função do
agente, né, eles falam sobre serviço social, eles falam sobre psicologia, eles falam
sobre o manejo com o adolescente, eles falam sobre questões de segurança, sobre
vestimenta [...], mas assim, dizer pra ti – „as funções do monitor são essas, essas', e
essas‟ – nunca ninguém diz. A gente tem as nossas funções na normativa interna
né, mas a normativa interna foi distribuída, nem sei, há uns dois anos atrás e nunca
mais distribuíram [...] E.2

Verifica-se que os entrevistados esperam indicações objetivas sobre seu papel na


instituição. Não se pode afirmar que a FASE-RS não esteve preocupada com este aspecto nem
mesmo que não o repassou. Deve-se levar em conta que estas são as percepções dos
socioeducadores, não necessariamente o que de fato tenha ocorrido. Mas de qualquer maneira,
é um ponto bastante interessante, já que se não foi durante as capacitações que aprenderam
sobre suas funções, se supõe que tiveram de fazê-lo em outros momentos e de outras maneiras
(talvez mais informais).

Quando tu entra na instituição tu acaba tendo que aprender meio que na marra
assim [...] E.5

Uma das vias de aprendizado seriam os colegas de trabalho mais experientes. Esta
seria inclusive uma providência da própria instituição, de possibilitar que alguém acompanhe
o novo membro. Aparentemente, estas práticas podem dar resultados positivos, já que passam
segurança ao funcionário que ingressa e reconhecimento ao que é incumbido da tarefa de
demonstrar como faz.
63
As outras pessoas que trabalhavam aqui nessa casa foram que me ensinaram. [...]
Aqui no CASEF tinha, quando eu cheguei, tinha alguém que era o meu orientador.
Então eu fiquei no grupo com uma pessoa e aquela pessoa me passou tudo que eu
tinha que fazer. [...] foi minha mãe na FEBEM, porque foi com ela que eu aprendi
né, as primeiras coisas. E.2

[...] eu entrei na observação, observação, observando e aprendendo com as pessoas


que já estavam [...]. E.3

De qualquer maneira, a forma como se aprende a trabalhar fica à mercê do


conhecimento e entendimento dos mais antigos, que ganham autonomia para transmitir o que
compreendem ser a expectativa institucional. Pode-se dizer que é um caminho indireto e/ou
informal.

[...] eu tive bastante problema nesses dois primeiro anos, mas aí aprendi, entre
aspas, a trabalhar, com os colegas, com algumas poucas pessoas que realmente são
sinceras e querem te ajudar, porque a maioria não. E.5

Mas não se pode depreender que não exista autonomia também para o novato. Este irá
observar, receber as informações e instruções fornecidas e poderá estruturar seus próprios
mecanismos e ferramentas de trabalho.

Foi meus colegas que me ensinaram, eu aprendi com eles. O dia a dia e eles
falando, olha não pode fazer isso, não pode fazer aquilo... e fui ajeitando conforme
eu achava. Aqui posso ser mais um pouquinho mais maleável, aqui tenho que puxar
mais. E.7

O que se pode verificar é que, através desta forma de aprendizado, existem brechas
que permitem que seja dito, de alguma forma, o que a instituição jamais diria formalmente.
Percebe-se que os socioeducadores encontram seus meios de compreender sua função,
conforme suas habilidades e possibilidades, seus conhecimentos prévios e entendimento da
realidade. Ao repassarem aos colegas o que sabem sobre seu trabalho, encontram metáforas,
simplificam, e para os que estão aprendendo, em muitos casos, isto é o suficiente.

[...] entrei com medo né lógico, porque tu não conhece, tu não sabe, daí eu
perguntei para esta colega que estava me mostrando a casa: „Tá, mas qual é o meu
papel? Qual é a minha função aqui?‟; daí ela – eu nunca me esqueço assim –: „Ah,
tu tem filhos?‟, eu disse: „Tenho‟; ela disse: „é o mesmo papel, tu vai ter que fazer a
mesma coisa que tu faz com os teus filhos‟ [...]. E.3

64
Assim, aquele que aprendeu com alguém acaba por “ensinar” pelos mesmos moldes, com
algumas alterações individuais. Não é difícil imaginar que dependendo da dimensão dessa
transmissão, a instituição pode adquirir uma forma de trabalhar bastante similar.

Foram muitos anos de trabalho e dedicação, aprendi muito e procuro passar o que
eu aprendi também pra quem ta chegando né? E.3

3.4. CONCLUSÕES

Neste estudo foram abordadas as primeiras impressões dos socioeducadores no seu


contato inicial como trabalhadores nas unidades da Fundação de Atendimento Socioeducativo
(FASE-RS). Além disso, foram exploradas as percepções sobre o público atendido, sobre os
treinamentos e capacitações, os processos de adaptação à tarefa, de aprendizagem da mesma,
entre outros fatores que apareceram justamente ao serem focalizados. Nota-se
primordialmente o impacto causado a partir dos dispositivos físicos implantados pela
necessidade de manutenção da segurança, controle e do aprisionamento dos jovens. As
grades, portões, a quantidade significativa de regras, são todos elementos que causam um
estranhamento inicial no novo funcionário. A partir disto, são possíveis as comparações entre
as sensações dos trabalhadores e dos adolescentes assim que ingressam nestes locais. Se os
socioeducadores novatos se impactam negativamente e sofrem com os dispositivos
institucionais, que se poderá dizer dos recém internos, que enfrentarão sanções e restrições
ainda maiores? Pode-se pensar em tais reflexões como passíveis de servir para ampliação da
capacidade empática do trabalhador com relação ao jovem, já que ambos compartilham o
ingresso mais ou menos traumático em um ambiente aparentemente pouco acolhedor.
Outro ponto percebido pelos agentes seria a mensagem passada pela instituição de
desqualificação do público atendido. Estaria se lidando com uma espécie de “lixo social” e
esta não se trata majoritariamente de uma opinião isolada, nem mesmo de algo compartilhado
apenas por esta classe de trabalhadores. A instituição revela o que a sociedade tenta mascarar.
Mas ao ingressar nestes espaços, a realidade aparece e causa choque, pois muitas vezes, até
então, o recente funcionário passa a lidar com estas questões pela primeira vez.
A fala de socioeducadores demarcando sua posição crítica e reivindicatória frente ao
caráter prisional da instituição, pontuando exigências por maior respeito no trato com as
adolescentes e instaurando novas práticas mais conectadas aos objetivos educacionais, deve
ser ressaltada. Tais ações e discursos – embora exista possibilidade de que se tornem

65
incipientes no cotidiano – revelam que o pensamento crítico não deixa de ser fortalecido nos
ambientes que visam enclausurar. As reflexões e analises sobre o sistema e sobre si mesmo,
enquanto sujeitos e enquanto profissionais, corroboram para práticas humanizadas, com
possibilidade de expressão e vivência do afeto, determinando relações afetivas e processos
identificatórios que podem, estes sim, auxiliar a ressocialização.
Fica evidente também, desde já, o entendimento de que esta unidade seria
particularmente diferente. As demandas por capacitações técnicas que instrumentalizem as
relações entre socioeducadores e jovens podem demonstrar compreensão de que tais
dispositivos são mais efetivos do que os de controle e segurança comumente ensinados. Os
profissionais também demonstram posições críticas frente à FASE, embora admitam que suas
funções só podem ser bem aprendidas na prática, na vivência no cotidiano institucional. Com
isso, revelam igualmente as formas de aprendizagem das tarefas, sendo estas relatadas como
basicamente informais, repassadas pelos funcionários mais antigos, cabendo aí mensagens
talvez jamais ditas formalmente pela instituição. Os métodos utilizados são metáforas,
simplificações, mas a maioria dos entrevistados descreve sentir-se bem adaptado e satisfeito
ao desempenhar seu papel.
A partir dos aspectos levantados, nota-se ser imprescindível a desmistificação do papel
do socioeducador. Ele, assim como o adolescente que transgride, merece status mais amplo e
profundo do que o de bode expiatório, depositário das injúrias pela manutenção ou
dificuldade de superação do comportamento delinquente. Aqui, através destes discursos,
revela-se a incoerência dos argumentos que apontam críticas apenas a alguns sujeitos e setores
institucionais, livrando-se da co-responsabilidade pelos sistemas de prevenção, proteção e
garantia de direitos de crianças e adolescentes.
Neste estudo notou-se a importância de se evitar aprisionamentos inclusive com
relação a uma única forma de se aprender, viver e sentir a instituição. Apesar das primeiras
impressões de certa forma homogêneas, apontando seu impacto com a estrutura institucional,
torna-se importante perceber os movimentos existentes. Idas e vindas de apreensão de
conhecimento e exercício da função desempenhada por cada ator institucional. Assim, podem-
se vislumbrar mudanças, ao mesmo tempo em que são identificados aspectos historicamente
presentes na trajetória destas instituições. Estes parecem seguir cumprindo uma função social.
Porém, para além desta, outras se revelam ao longo da vivência. O novo e o velho, a
criatividade e a paralisação coexistem nestes espaços.

66
3.5. REFERÊNCIAS

ARPINI, D. M.; QUINTANA, A. M. Cenários violentos: as instituições e os adolescentes em


situação de rua. Psicologia, Educação, Cultura. Vol. XIII, n. 1, 91-102, 2009.

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.

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68
CAPÍTULO 4
DE MONITOR A EDUCADOR: AS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS NA PERCEPÇÃO
DE AGENTES SOCIOEDUCATIVOS

RESUMO

A privação de liberdade, sobretudo de jovens, é um tema complexo que vem ganhando


destaque nas discussões em nosso país. Nestas interlocuções, as instituições não raro são
vistas como persistentemente repressivo-punitivas em sua tarefa de ressocializar. Algumas
exceções, entretanto, existem e há casos de instituições femininas servindo como exemplos
disto. Na pesquisa realizada, buscou-se captar a percepção de agentes socioeducadores sobre
quais seriam suas funções dentro do processo de ressocialização. A técnica utilizada foi de
entrevistas semi-estruturadas com 10 socioeducadores de uma instituição feminina de
privação de liberdade do RS. Dentre os resultados alcançados, tem-se que os profissionais
ressaltaram entender suas funções como bastante amplas, buscando basicamente manter o
equilíbrio entre o “vínculo” com a adolescente e a disciplina e imposição de limites. Foi
citada também a aproximação da função socioeducativa com a maternal, trazendo à discussão
os aspectos fronteiriços entre relações profissionais e relações familiares. Fica evidente a
dificuldade de definição da ação ressocializadora na prática. Por isso mesmo, existem visões
contraditórias sobre o tema dentro da Unidade. Entretanto, chama atenção o discurso uníssono
dos participantes no que tange ao entendimento do “vínculo” com a adolescente como parte
fundamental de um processo satisfatório de ressocialização. Aprofundar a escuta e o
entendimento da posição de trabalhadores que cotidianamente constroem os processos ditos
de ressocialização parece ser imprescindível para alavancar mudanças nas estruturas
institucionais arcaicas e ineficazes.

Palavras-chave: institucionalização feminina; agentes socioeducadores; funções de


ressocialização

69
ABSTRACT

The deprivation of liberty, especially in youth, is a complex issue that has been
gaining attention in the discussions in our country. In these dialogues, the institutions are
often seen as persistently repressive-punitive in its task of re-socialize. Some exceptions,
however, and there are cases of some female institutions which can be examples of this. In
the research, we attempted to capture the perception of agents socioeducadores about what are
their roles within the process of socialization. The technique used was semi-structured
interviews with 10 socioeducadores in a female institution of deprivation of liberty of RS.
Among the conclusions, it was noticed that professionals understood their roles as quite
broad, seeking primarily to maintain the balance between the "bond" with the teen and
discipline and imposing limits. They also cited about the approach of their socio function with
a maternal function, bringing the discussion aspects between professional relationships and
family relationships. It is evident the difficulty of defining the action resocializing in practice.
Therefore, there are contradictory views on the issue within the unit. However, it is
noteworthy speech unison of the participants regarding the understanding of the "bond" with
the teenager as a fundamental part of a satisfactory process of socialization. Listening and
deepen understanding of the position of workers who daily build processes sayings of
rehabilitation seems to be essential to leverage changes in institutional structures archaic and
ineffective.

Keywords: female institutionalization; social educators agents; functions resocialization

70
4.1. INTRODUÇÃO

As instituições atuais de cumprimento de medidas socioeducativas de internação são


pensadas e estruturadas a partir de diretrizes específicas, nacionais e internacionais, das quais
o Brasil é signatário. A doutrina da proteção integral embasa os marcos legais existentes,
sendo fruto de mudanças na forma de compreender e encarar a infância e adolescência em
nosso país. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) (BRASIL, 1990), o
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE1) (Lei 12.594/2012) (BRASIL,
2006) e, no Rio Grande do Sul, o Programa de Execução de Medidas Socioeducativas de
Internação e Semiliberdade (PEMSEIS2) (FASE, 2002) têm servido como aporte legislativo e
teórico. Neles é reafirmada a importância de medidas protetivas e educacionais as quais
devem transcender ações meramente repressivas, de “cura” ou paliativas no trato com o
jovem que transgrediu a lei. Entretanto, para realização eficaz de projetos ético-pedagógicos e
de reconstrução de cidadania, as instituições brasileiras ainda precisariam organizar-se em
direção ao reordenamento institucional apontado no art. 259 do ECA3 (BRASIL, 2006,
ZAMORA, 2005).
Pesquisas apontam uma aproximação indesejada e renitente entre unidades de
internação juvenil e unidades prisionais para adultos (ARPINI; QUINTANA, 2009,
CAMPOS, 2005, ZAMORA, 2005). Aparentemente elas compartilham parte de seus
principais problemas. São comuns superlotação, falhas no atendimento jurídico e de saúde,
instalações físicas inadequadas, precariedade no sistema educativo e profissionalizante,
violência física e psicológica (BRASIL, 2006, OLIVEIRA, 2001, ZAMORA, 2005, ZAPPE;
DIAS, 2011). Mesmo o texto do SINASE confirma a tendência de incremento da imputação
da medida de internação para adolescentes assim como sua “eficácia invertida”, já que se tem
constatado que o aumento do rigor das medidas não tem melhorado de fato a inclusão social
dos egressos do sistema socioeducativo (BRASIL, 2006, p. 14). Além disso, o

1
“O SINASE é o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico,
financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de
medida socioeducativa. Esse sistema nacional inclui os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como
todos as políticas, planos, e programas específicos de atenção a esse público” (BRASIL, 2006, p.22)
2
Instrumento elaborado pela Fundação de Atendimento Socioeducativo do RS (FASE-RS). Consiste na
sistematização da intervenção institucional junto aos adolescentes, contemplando aspectos técnicos e
operacionais, de modo a configurar um trabalho pedagógico-terapêutico centrado na subjetividade de cada
adolescente.
3
Art. 259 - A União, no prazo de noventa dias contados da publicação deste Estatuto, elaborará projeto de lei
dispondo sobre a criação ou adaptação de seus órgãos às diretrizes da política de atendimento fixadas no art. 88 e
ao que estabelece o Título V do Livro II. Parágrafo único. Compete aos estados e municípios promoverem a
adaptação de seus órgãos e programas às diretrizes e princípios estabelecidos nesta Lei (Lei 8.069/90) (BRASIL,
1990)

71
comportamento por parte de muitos trabalhadores, por vezes com ações policialescas ou
preconceituosas, estimula que os adolescentes arremedem as situações das instituições
prisionais (OLIVEIRA, 2001, CAMPOS, 2005). Nestas circunstâncias, argumenta-se que a
internação estaria cumprindo majoritariamente e de forma excessiva seu papel de
responsabilizar o adolescente por sua infração, punindo-o sem se ocupar suficientemente em
viabilizar novos projetos de vida que possibilitem sua ressocialização (ZAPPE; DIAS, 2011).
É sabido que o sistema socioeducativo é composto por várias instâncias, com a
previsão de que cada uma delas cumpra atribuições específicas dentro das dimensões que lhe
são cabíveis. A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 227º, bem como o Estatuto da
Criança e do Adolescente, em seu artigo 4º, esclarecem e determinam o poder público, mas
também a família, comunidade e sociedade em geral, como co-responsáveis por assegurar, por
meio de promoção e defesa, os direitos de crianças e adolescentes. Entretanto, também é sabido que
para se alcançar a eficiência, eficácia e efetividade das medidas socioeducativas, os atores
institucionais são de suma importância. Campos (2005) afirma que seriam os agentes socioeducadores,
por manter o relacionamento mais próximo e freqüente com os internos, o elemento que exerceria
maior influência sobre os mesmos. Zappe e Dias (2011), por sua vez, sem ingressar no mérito de quais
profissionais seriam mais influentes, abordam a questão das relações interpessoais e sua relevância no
desenvolvimento e fomento às potencialidades dos jovens. As autoras alegam que na maioria dos
casos, o perfil dos internos revela relações precedentes marcadas por abandono, desrespeito, violações
e violências. Estas marcas constituem-se os modelos até então utilizados para construção da identidade
juvenil. Por isso, as pesquisadoras entendem que para que a experiência de internação seja efetiva,
teria que propiciar relações outras, que oferecessem modelos novos calcados em valores positivos,
auxiliando os processos de identificação.
Levando-se em conta estas argumentações, infere-se que as relações estabelecidas entre
agentes socioeducadores e adolescentes teriam grande impacto na vivência da medida socioeducativa
privativa de liberdade. Estes profissionais, na prática, possuem contato direto com os jovens e,
dependendo de como se dão suas relações – se pautadas por modelos violadores ou por outros,
baseados nos valores implícitos da doutrina da proteção integral – podem ter influência bastante
significativa para o resultado final da institucionalização.
O SINASE compreende e estabelece que as funções laborais dos profissionais
socioeducadores devem ser regulamentadas pelas Unidades de atendimento, em seus
regimentos internos. Entretanto, o Sistema norteia estes documentos autônomos com algumas
diretrizes. Em princípio e acima de tudo, esclarece e reafirma o valor intrínseco da criança e do
adolescente como ser humano, bem como a natureza pedagógica da medida socioeducativa. As
diferenças mais determinantes em relação aos paradigmas do antigo Código de Menores (1979), dizem

72
respeito justamente às formas de encarar e lidar com a infância e adolescência. Atualmente a
juventude é considerada fase crucial do desenvolvimento humano e, por isso mesmo, condição
peculiar que merece atenção e respeito pelo valor prospectivo que possui como portadora de
continuidade do seu povo. Além disso, há o reconhecimento da sua situação de vulnerabilidade, o que
não implica, contudo, a negação da condição de sujeito de direitos ou uma posição de inferioridade.
Ao contrário, estabelece-se o reconhecimento da primordial necessidade de proteção e suprimento das
condições sociais adequadas à consecução de todos os direitos atribuídos às crianças e jovens
(BRASIL, 2006).
Desta forma, qualquer política pública que vise a criança ou o adolescente, deverá estar atenta
aos seus direitos: à vida e à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e
comunitária, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer e à profissionalização e proteção no trabalho
(BRASIL, 1990, BRASIL, 2006). E incluem-se aí as políticas públicas voltadas ao jovem que chegou
às vias de transgredir a lei. Nestes casos, o adolescente deve ser alvo de uma série de ações no sentido
de auxiliá-lo a se tornar um cidadão autônomo e solidário, levando em conta seu bem-estar e o bem
comum, potencializando suas competências. De fato, os objetivos do Sistema Socioeducativo são
inspirados pelo Paradigma do Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) (apud BRASIL, 2006, p. 52) que acredita que:

[...] toda pessoa nasce com um potencial e tem direito de desenvolvê-lo. Para
desenvolver o seu potencial as pessoas precisam de oportunidades. O que uma
pessoa se torna ao longo da vida depende de duas coisas: as oportunidades que tem
e as escolhas que fez. Além de ter oportunidades as pessoas precisam ser
preparadas para fazer escolhas.

Assim, a meta principal do estabelecimento de medidas socioeducativas a serem


cumpridas em instituições restritivas de liberdade seria propiciar ao adolescente acesso ao que
lhe cabe por direito, incluindo aí oportunidades de superação da situação de exclusão social
em que majoritariamente se encontram os internos. Além disso, deve-se possibilitar sua
ressignificação de valores e acesso a outros, que melhor se adequem a sua necessidade de
participação na vida em sociedade. Diz-se, portanto, que as medidas socioeducativas possuem
duas dimensões distintas: uma “jurídico-sancionatória” e uma “ético-pedagógica” (BRASIL,
2006). No que tem relação com a unidade de atendimento especificamente, tem-se que a
sanção que concretiza afeta o direito ao convívio familiar e comunitário dos jovens, muito
embora seja de sua ciência que o ambiente familiar e social é elemento fundamental para o
pleno desenvolvimento do sujeito. Por estas razões, visando minorar os danos dessa distância
imposta e para garantir os direitos à cidadania, é dever da unidade primar pelo acesso aos
demais direitos do adolescente. Por isso mesmo justifica-se a indicação de que os centros de

73
internação sejam locais reduzidos, comportando um número não muito expressivo de internos
no sentido de ampliar a qualidade e individualizar a assistência. Assim, o acompanhamento
pode ser mais bem realizado e os efeitos adversos da privação de liberdade podem ser
amenizados. Pelo SINASE (BRASIL, 2006, p. 51), a Unidade de atendimento seria então:

[...] o espaço arquitetônico que unifica, concentra, integra o atendimento ao


adolescente com autonomia técnica e administrativa, com quadro próprio de
pessoal, para o desenvolvimento de um programa de atendimento e um projeto
pedagógico específico.

Entretanto, dentro destes espaços de assistência ao jovem, os profissionais tornarão ou


não viáveis os objetivos institucionais através de suas práticas cotidianas. Deste modo, no
plano legal e normativo são definidos alguns parâmetros no sentido de maximizar as chances
de que os atores que ingressam ou que já estão incorporados ao sistema levem a cabo as
propostas conceituais. São estabelecidos, inclusive, alguns requisitos tidos como
indispensáveis para se trabalhar na socioeducação. Mais uma vez, se enfatiza a inter-relação
entre os trabalhadores como aspecto primordial para a efetividade da medida. Diz-se que seria
inviável que não houvesse, portanto, um perfil profissional adequado, sobretudo no que diz
respeito às qualidades e habilidades pessoais nas relações com os adolescentes, pautadas nos
princípios dos direitos humanos. Reafirma-se que a composição do quadro de pessoal dos
locais de atendimento deve considerar (BRASIL, 2006, p.47):

[...] que a relação educativa pressupõe o estabelecimento de vínculo, que por sua
vez depende do grau de conhecimento do adolescente. Portanto, é necessário que o
profissional tenha tempo para prestar atenção no adolescente e que ele tenha um
grupo reduzido destes sob sua responsabilidade. [...] A presença construtiva,
solidária, favorável e criativa representa um passo importante para a melhoria da
qualidade da relação estabelecida entre educadores e adolescentes.

Existem ainda outros pontos de interesse, os quais inserem na discussão os


instrumentos recomendados para se efetivar o processo educativo a serem usados por parte
dos funcionários. Entre eles estão a importância de se “dar o exemplo”, atuando com ética e
coerência e também de se ter sensibilidade às singularidades dos jovens, respeitando sua fase
de desenvolvimento. A imprescindibilidade do vínculo, já citada, também pode ser
compreendida como uma ferramenta de trabalho, já que na construção da relação de confiança
que o pressupõe, constrói-se também um campo de interação significativo, que poderá
alavancar os sentidos e motivações para a mudança de atitude e comportamento perante a
sociedade e a si mesmo pelo jovem. Nesse sentido, contextualiza-se a previsão de estruturação

74
dos Planos Individuais de Atendimento (PIA) nas unidades. Eles devem ser elaborados e
pactuados junto ao adolescente e sua família, servindo para o acompanhamento da sua
evolução pessoal e social e no alcance de metas e compromissos. A instituição, no papel de
seus atores, teria co-responsabilidade neste momento, para estabelecer os PIAs, mas acima de
tudo, para levá-los a sério, auxiliando o jovem a igualmente fazê-lo. Por esses motivos,
retorna-se à fundamental participação dos agentes socioeducadores. Entretanto, suas funções
vão além dos planos de atendimento. De fato, é possível dizer que suas atribuições estariam
focadas basicamente em três eixos principais, os quais estariam entrelaçados: segurança,
educação e cuidado. Segundo o SINASE (BRASIL, 2006, p. 45):

As atribuições dos socioeducadores deverão considerar o profissional que


desenvolva tanto tarefas relativas à preservação da integridade física e psicológica
dos adolescentes e dos funcionários quanto às atividades pedagógicas. Este enfoque
indica a necessidade da presença de profissionais para o desenvolvimento de
atividades pedagógicas e profissionalizantes específicas.

A educação remete-se às funções pedagógicas previstas, a segurança à preservação da


integridade física de adolescentes e funcionários e, quando se fala de preservação da
integridade psicológica dos internos, toma-se a liberdade de traduzi-la como necessidade de
cuidado. Que outra ferramenta poderia alcançar este objetivo senão as relações pautadas no
“cuidar”? Desta forma, pretendeu-se investigar as percepções dos profissionais
socioeducadores sobre suas funções laborais e sobre os processos de ressocialização. Entende-
se que são estas representações que subsidiam as posições adotadas frente às jovens privadas
de liberdade e sua vivência institucional, as quais, por sua vez, serão impactadas pelas
relações com estes atores, configurando-se mais ou menos eficazes, eficientes e efetivas em
termos de ressocialização.

4.2. MÉTODO

Participantes
O estudo foi realizado na Unidade de restrição de liberdade feminina do RS, o Centro
de Atendimento Socioeducativo Feminino (CASEF). O local foi citado como o melhor entre
as instituições brasileiras visitadas pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados, quando esta realizou a IV Caravana Nacional de Direitos Humanos mostrando a
situação dos adolescentes privados de liberdade no Brasil, em 2001 (BRASIL, 2001).

75
Participaram da pesquisa 10 agentes socioeducadores, sendo 9 mulheres e 1 homem4, com
tempo de trabalho variando de 8 a 44 anos e idade de 31 a 70 anos (conforme tabela abaixo).

Nome Idade Tempo de FEBEM ou FASE Tempo de CASEF


(em anos) (em anos)
E.1 35 10 8
E.2 39 12 11
E.3 54 21 21
E.4 70 44 15
E.5 30 10 8
E.6 54 20 4
E.7 51 27 12
E.8 55 26 18
E.9 55 10 7 meses
E.10 31 8 7
Tabela 1. Quadro de participantes

Dentre os entrevistados, oito deles já tiveram experiência de trabalho também com o


público masculino. No que tange ao período de ingresso, três participantes foram admitidos
antes da implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e outros três antes da
desmobilização da antiga Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor (FEBEM-RS) em 2002.
Quando esta foi desativada, em seu lugar estruturaram-se duas Fundações, separando-se o
público que era assistido. Constituiu-se a Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE),
voltada a jovens em conflito com a lei, e a Fundação de Proteção Especial (FPE), a crianças
em situação de risco e vulnerabilidade. Estas disparidades tornaram possível, ao que se crê,
que os discursos dos participantes contemplassem as possíveis diferenças de visões do
atendimento institucional, pautado em paradigmas que foram se transformando ao longo do
tempo.

Instrumentos e Procedimentos
Este estudo, de caráter qualitativo, foi baseado nas percepções de socioeducadores que
trabalham em uma instituição juvenil feminina de privação e restrição de liberdade. Foram
realizadas entrevistas individuais com o objetivo de investigar, entre outros aspectos 5, as
representações dos agentes socioeducadores sobre suas funções laborais e as ações de
ressocialização institucionais, descrevendo qual seria seu papel e como fariam para atingir os
objetivos de trabalho.

4
O número total do quadro de funcionários da instituição no período da pesquisa era de 41 sujeitos, porém, aí
estavam incluídos aqueles que estavam em férias, licenças, entre outras razões que os impediam de estar
efetivamente trabalhando.
5
Este estudo é parte de um projeto de pesquisa de Mestrado que investigou também outros elementos a partir das
representações dos socioeducadores deste contexto.

76
As entrevistas foram realizadas na própria unidade de atendimento, sendo tomados os
cuidados éticos relativos a este tipo de estudo. Foram obtidas as autorizações não só pelo
Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Maria6, como também pela Fundação de
Atendimento Socioeducativo (FASE-RS). Igualmente os participantes assinaram termos de
consentimento livre e esclarecido, sendo-lhes garantido sigilo e confidencialidade das
informações. Os mesmos foram claramente informados de que sua participação no estudo era
voluntária e poderia ser interrompida em qualquer momento, sem nenhum prejuízo. Os nomes
dos funcionários apresentados neste estudo são fictícios para preservar suas identidades. As
informações obtidas nas entrevistas foram analisadas através da análise de conteúdo temática.
Esta tem o tema como conceito central, buscando desvelar as unidades ou núcleos de sentido
que compõem a comunicação (GOMES, 2012, BARDIN, 1979).

4.3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

De monitor a agente socioeducativo: a transformação de paradigma


As funções atuais dos agentes socioeducadores são descritas pelos regulamentos,
estabelecendo que suas diretrizes devem ser demarcadas pela segurança, educação e cuidado,
conforme apresentado anteriormente. Entretanto, nem sempre se teve tais elementos como
pilares. E comparações foram elaboradas pelos participantes que indicaram algumas
diferenças entre o trabalho desta categoria na atualidade e há anos atrás, quando eram
chamados de “monitores”. Aparentemente, nos dias de hoje, a função abarca mais tarefas do
que em outras épocas. Isto nem sempre é visto sem desagrado7.

[...] antigamente o monitor fazia só a parte da segurança, e acompanhava e tal. Hoje


em dia, tu faz tudo né?! Se faltar o professor de artesanato, se faltar a costura, hoje
tu é tudo. [...] Aí tu vira advogado, psicólogo, assistente social, tudo. Se tu deixar,
vira tudo. [...] E.2

Aí nós tínhamos o cargo [e foi extinto] [...] que é o técnico em recreação. A pessoa
deveria ser formada em educação física, e aí a partir do momento que ele é o
técnico em recreação ele tem que criar atividades recreativas pra essas
adolescentes. Só que isso também [atualmente] tá lá dentro do cargo do agente
socioeducador: que ele tem que disponibilizar, ter criatividade pra fazer isso. Então,
qual é o significado que tem essas coisas todas? E.10

6
Aprovação em 11/10/2011 sob o registro nº 6. 0282.0.243.000-11 pelo CEP (UFSM).
7
Neste artigo, optou-se por usar trechos grandes das falas dos participantes, por se entender que o tema abordado
necessitava da exposição das ideias o mais completas e fidedignas possíveis ao discurso dos entrevistados.
Assim, torna-se mais fácil ao leitor compreender a origem das argumentações e reflexões feitas no decorrer do
texto.

77
A mudança de nomenclatura, de “monitor” passando a “agente socioeducador”, esteve
inserida na transformação de paradigmas, antes mais restritos ao risco – que demandava
segurança e vigilância – e, agora, passando a abarcar os aspectos ético-pedagógicos da medida
socioeducativa. Algumas falas expressam críticas dos agentes quanto à amplitude angariada
pelo cargo do atual socioeducador, que teria se tornado responsável por muitas tarefas,
algumas para as quais não possuiria habilidades (e estas não estariam previstas nem seriam
exigidas nos processos seletivos). Outros discursos, sem ver tais mudanças com
descontentamento, sinalizam igualmente a ampliação das funções que lhes competem. Estas
novas tarefas estariam ligadas à necessidade de se estar atento aos adolescentes, percebendo-
os, avaliando inicialmente sua demanda e tomando decisões quanto a agir e/ou encaminhá-los
para outras instâncias. Tais atribuições parecem estar relacionadas ao fato de se constituírem
como grupo que está na “linha de frente” institucional, em contato direto com as jovens, a
partir de uma noção diferente da de outros tempos.

[...] a tua função é essa: é tu ficar atento a todas as movimentações e todas as


necessidades dos adolescentes. [...] a gente tem que perceber o que tá faltando. E.1

A nossa missão é educar e refazer o tempo que elas estão perdendo com problemas
de drogas, dessas coisas todas, e estar sempre orientando elas em tudo. Orientando
em tudo: no procedimento [dentro da instituição], no trabalho, no estudo, tudo isso
é a nossa função. E.4

[...] Porque elas trazem as situações pra ti e tu tem que dar um retorno, tu tem que
dar uma resposta. Tem muita coisa que é da área da assistente social [...]. Claro que
tu não vai fazer o trabalho da assistente social, mas tu vai procurar ver com a
assistente social como as coisas estão sendo conduzidas para dar uma resposta pra
guria, e tu vai ajudar no trabalho da assistente social baixando a ansiedade delas, as
expectativas também, né?! [...] É isso que eu digo: a gente faz de tudo um pouco. A
gente faz também a parte da psicóloga, de tá ouvindo as queixas, as choradeiras,
[...] aconselhando. E.3

Pode-se perceber que entendem como sua não somente a responsabilidade pela
avaliação inicial da demanda e posterior decisão sobre a melhor atitude a ser tomada, como
também a necessidade de clareza dos limites de atribuição de cada cargo. Neste caso, os
limites parecem tênues, tornando as fronteiras flexíveis, não por falta de conhecimento ou
atenção a elas, mas talvez porque de certa forma se interpenetram e interconectam
invariavelmente. Ouvir a adolescente, dar a ela algumas respostas, talvez não seja função
estanque da equipe técnica. Ao contrário, pois muito provavelmente a adolescente não possa
nem deva suportar a espera pelos atendimentos individuais para expressar suas emoções e
demandas. O “cuidado” torna-se parte das diretrizes de trabalho de todos. Por esta razão,

78
parece que viabilizar o trabalho em equipe, sinalizado aqui implicitamente, também seria
entendida como parte das responsabilidades do grupo de socioeducadores. Trabalhar em
conjunto, “baixando ansiedades”, lidando diretamente com a necessidade de se esperar
resultados, visitas, respostas que dependem de terceiros. As emoções despertadas pelos
acontecimentos impactam o relacionamento adolescente-socioeducador e este último teria
também como função conter e direcionar.
Estes trechos dos diálogos também serviriam para sinalizar o risco de se assumir um
papel quase onipotente, tentado a corresponder e buscar suprir as demandas, ultrapassando os
limites de cargo e éticos.

[...] que daí confunde a questão das funções, né?! Porque minha função é cuidar da
parte disciplinar, a função do psiquiatra é cuidar a parte psiquiátrica. Então se a
menina tiver um problema, um surto e se agredir, é com ele, já não é mais comigo.
E a gente tem que cuidar isso o tempo inteiro na casa, porque senão tu vai na rotina,
na correria, daqui a pouquinho tu tá fazendo o que não é pra ti fazer. E.2

Porém, parece natural a existência de diferentes interpretações e opiniões sobre as


funções exercidas. Variam conforme as singularidades dos atores envolvidos, a época em que
ingressaram na instituição, com quem aprenderam sobre suas tarefas, entre outros fatores. A
despeito disso, os próprios agentes socioeducadores percebem as disparidades de opiniões
sobre o tema, mas acreditam em uma linha de trabalho comum, que nortearia e daria limites
para sua autonomia profissional.

Eu sempre costumo dizer nas nossas reuniões, eu acho que cada um tem a sua visão
e a sua maneira de trabalhar, até porque o ser é único assim, eu não faço exatamente
igual a você faria. Mas existe uma linha de trabalho e pras coisas funcionarem
todos teriam, deveriam seguir essa linha. Que é igual pra todo mundo e que é de
conhecimento de todo mundo. E.5

Esta linha de trabalho comum poderia ser concretizada através da construção do


regimento interno da unidade, por exemplo. Ao ser definida coletivamente, auxiliaria a
convergência no trabalho das diferentes áreas de conhecimento envolvidas. E assim, denotaria
a capacidade institucional de criar espaços de exposição de demandas e discussão e de
estabelecer consensos. Ao mesmo tempo, seria capaz de fortalecer a diretividade no processo
socioeducativo, sendo esta uma das diretrizes pedagógicas previstas no SINASE.
Distanciando-se do autoritarismo, a diretividade pressupõe os trabalhadores como
responsáveis pelo direcionamento das ações (BRASIL, 2006). O regimento pode servir ainda
para redução das margens de atuações profissionais pautadas na negligência ou
desconhecimento da doutrina de proteção integral ou de formas mais efetivas de educar nestes
79
contextos. Assim, fortalece a proteção aos adolescentes contra abusos ou responsabilização
inadequada e também aos profissionais, que se pautam em um documento consensual e
legitimado.

[...] as regras e as normas tem que estar muito claras, é a nossa parte disciplinar, é o
instrumento que a gente tem pra trabalhar com a disciplina e com limites, né? Que
são de conhecimento das meninas também, elas também sabem, então é tudo muito
transparente, muito claro, né? Elas sabem que se elas fizerem vai dar isso. E.5

Por outro lado, existem também demandas de trabalho para as quais a casa não pode
precocemente prever as intervenções a ser realizadas. Até pelo fato de se tratar de
necessidades de outras ordens, sobretudo afetivas e emocionais. Tais aspectos são
fundamentais, pois bem se sabe que o perfil das jovens que ingressam no sistema
socioeducativo é, majoritariamente, marcado por históricos de violações anteriores de seus
direitos. Muitos autores apontam as adolescentes internas como tendo sido vítimas de abusos
físicos, sexuais, negligência, abandono, ausência paterna, rupturas de laços afetivos,
exposição direta ou indireta à violência familiar e comunitária, entre outros fatores de risco
(ASSIS; CONSTANTINO, 2001, OLIVEIRA, 2001, DELL‟AGLIO; SANTOS; BORGES,
2004). Estes episódios comuns às vidas das adolescentes que são institucionalizadas, mesmo
não sendo marcas indeléveis, afetam a constituição de sua subjetividade. O cumprimento de
uma medida socioeducativa, por sua vez, prevê justamente atuar sobre as potencialidades
desta jovem. Isto implica dizer que não há como ressocializar sem lidar com a sua dimensão
subjetiva, a qual abarca suas emoções, modelos atuais de identificação, traumas, sofrimentos,
faltas, dentre outros aspectos carentes de simbolização.

[...] é que tu tem que saber perceber em que aspecto ela tem que evoluir: se vai ser
dentro da postura dela, se vai ser só cognitivamente, se vai ser em relação ao delito
mesmo. Porque tem guria que entra e sai sem ter crítica sobre seu delito e tem
gurias que não, que tu vê que sofrem, e quando a guria começa a sofrer e a entrar
em crise tu diz: “graças a Deus” E.1

A técnica que serve com uma não serve com a outra, então às vezes eu ainda me
pergunto: Como fazer? E.2

[...] na verdade, o que exige o concurso? Que tu acompanhe as atividades. Tu pode


só acompanhar e ficar inerte. E tem gente que é assim. [...] Mas tu pode fazer
diferente, tu pode conseguir conversar [com as adolescentes] e tu pode conseguir
fazer a pessoa enxergar, e tu pode conseguir dar atividades que façam a guria
perceber que existe outro caminho, que existe outra vida. As atividades culturais
que a gente leva, quando a gente coloca em estágio, em cursos específicos pra
aquela dificuldade que ela tenha ou pra potencializar alguma coisa boa que ela
tenha. E.1

80
Estas falas expõem primeiramente a sensibilidade ao aspecto singular das jovens,
compreendendo que a ressocialização não seria um processo uniforme, mas sim flexível, que
precisa ser modelado conforme as exigências impostas pela vida e identidade da menina como
forjadas até então. Aqui, contrariamente às características essenciais das instituições fechadas
ou “totais”8, o interno não está sendo homogeneizado a partir da supressão de seus aspectos
pessoais (GOFFMAN, 1999). Ao invés disso, destacam-se suas especificidades como o que
determinará o “norte” a ser seguido no seu plano de atendimento individual. É importante,
obviamente, se ter claro que só isto não basta para se acreditar que os processos de
despersonalização ou estigmatização não persistam nesses ambientes, pelo simples fato de
que as instituições continuam atendendo um número expressivo de jovens conjuntamente e
tendem a unificá-los pelas suas características comuns. Mesmo assim, é digno de nota a
transformação paradigmática que parece explícita a partir de entendimentos como os expostos
acima.
Ao mesmo tempo, esta transformação também seria visível através da consciência de
que, apesar de o cargo prever determinadas tarefas, caberia ao profissional ainda a
compreensão da dimensão ética inerente a seu trabalho. Esta comportaria a já citada
necessidade de se estar atento à adolescente, às suas singularidades e à carência de
investimentos em suas potencialidades. O agente socioeducador faria parte desta soma de
esforços ressocializadores, e não mais somente vigilantes, com uma visão diferenciada do
indivíduo que está sob seus cuidados.
Outro elemento a ser destacado no processo de mudança paradigmática conecta-se
com o que se vinha argumentando sobre a dimensão subjetiva da adolescente a qual deve
mesmo vir à tona dentro da instituição. O fato de se prever espaço e, mesmo, se estimular que
o sofrimento tome corpo no momento do cumprimento da medida, não implica sadismo ou
crueldade necessariamente. Ao contrário, demonstra talvez a consciência – por parte do
agente – da importância de se lidar com esse conteúdo e de sua parcela de responsabilidade
em fazê-lo.

[...] eu acho que tu ouvir o que elas têm pra te falar é importante, mesmo que elas
estejam fazendo um teatrinho, enrolando, mas é importante, porque daí tu tá no
mínimo avaliando o crescimento [...]. E.3

8
Goffman (1999, p. 22) argumenta que as instituições deste tipo são “estufas para mudar pessoas; cada uma é
um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu”. Nelas, os internos passam por experiências forjadas no
sentido de “mortificar seu eu”. Busca-se despi-los de suas características de identificação, pois se acredita que o
controle sobre os mesmos se dê mais facilmente desta forma.

81
Como observa Vicente (1994), “elaborar o passado é uma das maneiras de livrar-se da
mera repetição” (apud ARPINI, 2003, p. 182), auxiliando a compreensão de que é mesmo
importante ouvir para propiciar oportunidade de elaboração por parte da jovem. Além disto,
bem se sabe que historicamente as instituições vinham se sobressaindo justo pela sua aparente
incapacidade de encarar os fatos mais tristes ligados às trajetórias daqueles que atendiam.
Marin (1999) argumenta inclusive que talvez residisse aí o problema da Instituição FEBEM
nos idos dos anos 80. Por negar a falta vivida pela criança tentando substituir a família da
mesma, impedia a vivência da demanda e sua consequente elaboração. A autora afirma
(MARIN, 1999, p. 49):

Não se deve preencher totalmente a criança, mas também permitir que ela questione
sua origem, fale de seu abandono, entenda quem, no momento, está ocupando os
lugares de proteção e apoio e, ao mesmo tempo, de limite e ordem e para onde deve
seguir seu destino (qual o futuro possível colocado para ela). Estas são as
possibilidades de lhe dar condições para ser um sujeito autônomo.

Arpini (2003), por sua vez, afirma que as instituições de assistência, em geral, não
conseguiriam abrir espaço para manusear as histórias de vida, dores, sofrimentos e violências
inerentes ao seu público. Assim, silenciam a visível frustração e raiva das crianças e
adolescentes ou mesmo defendem-se desses seus sentimentos e passado, produzindo um
efeito ainda mais negativo. Por essas razões, parece necessário representar como positivo o
comportamento institucional que se comove e mobiliza ao se deparar com a crise da interna.
Desta forma, é possível que os socioeducadores observem e atuem sobre demandas
emocionais, assumindo conjuntamente com a equipe técnica, parte da responsabilidade pela
continência essencial ao pleno desenvolvimento do indivíduo.

Eu acho que mais ainda, mais é ficar ouvindo, ouvindo, às vezes elas estão falando,
tu nem tá dando muita atenção, mas tu tá ali, ouvindo [...]. E.3

Eu acho que hoje as gurias exigem mais que a gente fique conversando né.
Antigamente elas não falavam muito com a gente, contavam assim por cima as
coisas, hoje elas são mais detalhistas nas conversas, vão mais a fundo nas coisas.
E.2

[...] seguido elas te chamam pra conversar e choram e... Que a mãe não quer saber
ou não tem ninguém, que o tio violentou, o pai pegou (...). Porque ajudava bastante,
elas se sentiam importantes, sentiam que alguém dava atenção. E todo mundo gosta
de atenção, quem é que não gosta? E elas, ainda mais elas, que acho que nunca... a
maioria nunca teve ninguém. E.7

Pelo reconhecimento das demandas emocionais e a necessidade de se lidar com elas é


que se pode afirmar que ocorreu a transformação de “monitor” a “agente socioeducador”. Esta

82
mudança ampliou a dimensão de “cuidado” dentro de suas tarefas, mas, sobretudo, alavancou
a desmistificação do caráter assistencialista ou repressivo comuns às instituições em tempos
anteriores ao ECA. E, no sentido de ampliar ainda mais o debate, se faz importante também a
compreensão das metáforas utilizadas para definir a função dos socioeducadores. Uma delas é
a que compara a tarefa destes profissionais com as de “mães e pais”.

“É que nem pai e mãe”: representações familiares da função socioeducativa


Segundo Marin (1999), um dos elementos apontados pela Psicanálise como essenciais
para a estruturação da identidade seria justamente a possibilidade de ser contido (no sentido
de continência). Assim, a constatação de demandas emocionais nos jovens poderia fazer
surgir a representação do papel maternal para supri-las, tornando-o central nas metáforas
explicativas das funções laborais da categoria dos socioeducadores.

[...] daí eu perguntei para esta colega que estava me mostrando a casa: „Tá, mas
qual é o meu papel? Qual é a minha função aqui?‟ Daí ela – eu nunca me esqueço
assim: „Tu tem filhos?‟ Eu disse: „Tenho‟. Ela disse: „é o mesmo papel, tu vai ter
que fazer a mesma coisa que tu faz com os teus filhos‟. [...] E eu acho que é um
pouco isso, um papel de mãe aqui. E.3

Não é de agora que o papel de “mãe” é evocado, sobretudo, em instituições de caráter


assistencial a crianças e jovens. Marin (1999) traz também tal representação como usual, no
entendimento de funcionários da antiga FEBEM de São Paulo, em estudo realizado neste
contexto a partir de 1979. A pesquisadora atuou junto a instituições de Abrigo e
Encaminhamento de crianças “abandonadas” e debruçou-se sobre as possibilidades de
constituição de identidade autônoma e de desenvolvimento de potencialidades de forma ativa
e criativa dentro destes espaços. Para tanto, verificou que os discursos dos atendentes –
absorvendo valores da estrutura social – estavam impregnados pela ideologia do modelo
familiar. Assim, muitos adquiriam a postura de “mães”, porém mães “com o pai ausente”, no
sentido de que buscavam suprir todas as demandas infantis, sem preocupar-se com os limites
necessários. Estes limites estariam no reconhecimento institucional – ao invés da negação –
das faltas, das carências, das histórias reais com suas lacunas incluídas.
Na especificidade do Centro de Atendimento Socioeducativo Feminino (CASEF), o
fato de se tratar de outro período histórico definido por outros paradigmas e atendendo um
público diverso talvez explique diferenças na forma de se entender o papel vivenciado como
“materno”. Não parece haver nesta instituição a mesma representação explicitada por Marin

83
(1999) na antiga FEBEM. Mas, de qualquer maneira, seria essencial expor os riscos corridos
quando se trata do desempenho de papéis entendidos como próximos aos familiares. Nestes
casos, o Estado pode ser tentado a se portar como protetor absoluto. E o que precisa ser
combatido, por não ser benéfico para a formação da identidade juvenil, seria justamente
assumir uma referência materna como aquela que é provedora máxima e somente aplacadora
de conflitos. Ao que tudo indica, os participantes são cientes destes riscos ao pensar e atuar
em suas atribuições.
[...] E eu acho que é um pouco isso, um papel de mãe aqui. Mas a mãe aquela mãe
que sabe dar limite, que mostra o certo e o errado, né? Que consegue demonstrar
pra elas: „Olha, nisso tu tá errada, tu tem que ter crítica dessas tuas deficiências‟. De
conseguir falar de uma forma sem ser agressiva, de uma forma natural. É o que eu
tento fazer com elas, sem passar a mão por cima, não repetir o que muitas vezes
acontece com os pais que são permissivos, que não conseguem mostrar as
deficiências, dizer „não‟. A gente tem que dizer „não‟ e dizer porque que tá sendo
dito „não‟. E eu acho que é isso, nosso trabalho é esse. E.3

Assim, se a grande questão da FEBEM referia uma representação de “mãe com o pai
ausente”, pela dificuldade de se deixar espaço para a falta obstaculizando, assim, a
simbolização e a formação de uma identidade autônoma, aqui a questão parece diferente.
Neste contexto, a metáfora abarcaria uma “mãe” que assume a função também do “pai”.
Neste caso, a função paterna, refere-se a de “ordenador, que traz a lei, que marca a
impossibilidade de viver plenamente todos os desejos”9, preocupando-se em instaurar o que
pode e o que não pode, o limite. Vale lembrar que, além da continência, o outro elemento
apontado pela Psicanálise como fundamental para a estruturação da identidade seria
justamente a possibilidade de não se ter tudo (de vivenciar a falta)10. Por isso mesmo, os
socioeducadores entrevistados intuitivamente se preocupariam em ensinar às jovens a lidar
com limites.

[...] o limite é o principal [da função]. Porque elas entram aqui totalmente sem
limite. E não é fácil, é uma coisa bem trabalhosa, mas só que eu acho assim, que
esse „estabelecer limites‟ não pode ser uma coisa assim muito: „Ah, tu vai fazer isso
porque se tu não fizer tu vai ter que fazer aquilo, porque acontece isso, tem que
acontecer aquilo‟. Entende? Eu acho que tem que ter muito carinho, tem que ter
muita atenção, tem que ter amor, tudo que a gente faz tem que ter amor. E.6

[...] É tipo pai e mãe, sabe? Tu tem que dar os limites, tu tem que cobrar, tu tem que
exigir as coisas, mas tu tem que dar o afeto, tu tem que saber dar o carinho, tu tem
que ter o vínculo com o teu filho porque senão ele vai passar a te... A te respeitar
não, ele vai passar a te obedecer [...] E.5

9
Marin, 1999, p. 94.
10
Idem, 1999.

84
Desta maneira, vão ficando claras as diretrizes que sustentam a visão de educação
neste contexto. O processo pedagógico parece estar calcado aqui em pilares bem definidos.
Um deles teria relação ao ensino dos limites, à instauração da sanção e restrição aos hábitos
de comportamento e entendimento das jovens até então, pautados muitas vezes pelo “fazer o
que se tem vontade”. O outro pilar seria o do vínculo, da relação significativa
emocionalmente, que equilibraria o peso da disciplina recém imposta e daria sentido e
motivação à introjeção das regras sociais (e institucionais, primeiramente). Pode-se notar
como os agentes vêem estes dois elementos como complementares e indissociáveis ao se
almejar a educação para ressocializar.

Então eu acho que a gente só consegue ressocializar a partir do momento que ela [a
jovem] consiga perceber a gravidade do que ela fez, de que ela fez tá errado, saber
o que que é certo e o que é errado, pelo menos pelos padrões... sociológico né? [...]
Matar é errado. [...] Traficar não pode, é um delito. Se elas continuarem achando
que traficar é normal, não adianta, não adianta: [a menina fala] „Ah, tu acha que eu
vou trabalhar o mês inteiro pra ganhar trezentos pila, se eu vou numa noite ali no
tráfico eu ganho trezentos?‟ Se tu não conseguir mudar esse conceito na cabecinha
delas, de que isso é errado, que isso pode levar a outras conseqüências com o meio
que elas vivem, nesse meio é de alto risco pra elas, se ela não consegue perceber
isso, não adianta nada. Pra mim ressocializar ela tem que ter consciência de certo e
errado, né? Sair daquele meio ocioso que elas tão e criar novos projetos de vida, pra
mim ressocializar é isso, junto com a família [...]. E.3

[...] eu dizia pras gurias, „tu pode ter certeza de uma coisa: a partir do momento que
o funcionário não te cobrar nada, ele não tá nem aí pra ti‟. Porque dá muito mais
trabalho a gente cobrar uma guria, [...] botar limites, todo o dia falar a mesma coisa,
é muito mais trabalho. „Se a gente faz isso é pro bem de vocês, vocês podem ter
certeza. Na hora vocês não vão gostar, vão ficar indignada, vão ficar louca da vida‟.
É que nem uma mãe faz com a gente: a gente briga com a mãe, xinga [...]. Mas a
mãe cobra a gente é pro bem da gente, por que ela já teve uma vida, uma vivência
muito maior que a gente, quando a gente é adolescente ou criança, que ela sabe o
que é bom e o que não é bom pra gente. E.7

Um dos pontos que pode ser destacado com estas reflexões é o que revela a
desnaturalização do ato infracional, a não aceitação irrefletida do mesmo, como se fosse
preciso negá-lo para que o vínculo com a adolescente pudesse ser formado. Ao contrário, o
afeto estaria presente. E justamente por conta disso é que haveria a preocupação com a jovem,
que mobiliza investimento por parte dos funcionários a ponto de suportarem a função
“paterna” de limitador. Este papel só pode ser desempenhado se ele se sente capaz de
instaurar ou re-situar o “não”. Assim, sobra espaço para a menina perceber que não é seu ato,
que é mais do que isso. Ela pode refletir sobre o que fez, escapar da tendência à repetição,
pensar sobre sua trajetória e planejar seu futuro. Além disso, tratando do delito, não ignorando
que algo aconteceu e que foi isso que motivou a entrada da jovem ali, o socioeducador a
auxilia a dar sentido a sua institucionalização. Se se permitisse que ela ficasse simplesmente

85
confinada, esperando o tempo passar, não se poderia atribuir significados plausíveis à
aplicação da medida.
É importante compreender também que, com a confiança do vínculo, passa-se a
estabelecer o que parece ser um resgate da violência fundamental que muitas vezes foi negada
a esses jovens. Esta seria aquela violência necessária ao desenvolvimento do sujeito, que em
geral se dá ao longo do crescimento da criança, através da relação entre a mãe e o bebê. Marin
(2002) discorre sobre esse conceito comentando que, enquanto a criança recebe tudo que
deseja, a questão do Outro não se coloca para ela. Então, em algum momento sua satisfação
irá ser estancada pela mãe, que irá falhar em atender todas as demandas infantis. Esta
experiência será vivida, pela criança, como uma catástrofe, ou, uma violência, configurando-
se a violência fundamental que insere o Outro nesta vida. Esta ocorrência impede o
“transbordamento pulsional”, o excesso de excitação que pode irromper mais tarde através de
atos violentos. Mas nem sempre essa “catástrofe” necessária ocorre. Ou porque os genitores
(ou substitutos) não suportam estar nesse papel de “violentadores”, ou porque negligenciam as
tarefas educativas, inclusive esta. Nestes casos, o que ocorreria senão a perpetuação da busca
e expectativa de satisfação sempre? E não seria essa busca familiar que estaria em cena
quando se está tratando do tema da juventude que infraciona a lei? De fato, diz-se que esta é
uma questão da contemporaneidade, do homem desta era. Segundo a autora “Para esse
indivíduo, a ideia de submissão ao outro é insuportável. Rompem-se os laços sociais. Estar só
acaba por tornar-se modelo ideal da maturidade” (MARIN, 2002, p. 138).
Estas conceituações parecem oportunas no sentido de que permitem visualizar o
aspecto positivo presente na disposição dos agentes em se colocar neste papel de suportar ser
“violento” e dizer os “nãos” que entendem necessários às internas. Ao negar-lhes sua
satisfação narcísica e interpretar suas condutas como de desamparo, concomitantemente as
auxiliam, pois aliviam sua tensão pulsional. Por isso mesmo, Marin (2002) ainda coloca o
quão importante é a capacidade do adulto de tolerar ser colocado no papel do “representante
do ódio”, do portador da violência, assumindo o lugar do “feio”, do “mau”. Se não o fizer,
frente uma criança ou adolescente desamparado (no sentido de entregue às excitações
pulsionais), o estará abandonando mais uma vez a seus fantasmas. E, neste caso, na tentativa
de amenizar a tensão pulsional, só pode restar a destruição do outro, aniquilá-lo, violentar. Por
isso,

Interpretar a necessidade do outro, buscar as possíveis formas de satisfazê-las, ir ao


encontro das leis de regulação social, já implica em enunciar a falta, em relembrar a
catástrofe da perda da estabilidade. É assumir a Violência Fundamental, que

86
permite a relação com o Outro, de forma criativa e não fusionada, massificada,
como muitas vezes se faz em nome do amor e da felicidade. É a condição do
aparecimento do sujeito. (MARIN, 2002, p.142)

Mas educação, como se pressupõe no CASEF, parece ir além da restrição para


imposição dos limites. Alguns entrevistados revelam entender como sua função a de repassar
aspectos de sociabilidade, como os relativos às formas de se relacionar com os outros e
consigo mesmas.

[...] Pra que a guria não chegue ao ponto de agredir outra, ela precisa conseguir
dizer aquilo que não tá agradando ela, porque se ela for indo, indo, indo, daqui um
pouco ela avança [agride a outra]. Então tu ensina daí a menina a conseguir [se
expressar] [...]. Então eu acho que isso é um pouco socializar, né? Tu consegue
fazer com que ela viva em grupo ou sem ser agredida o tempo inteiro, sem se deixar
agredir o tempo todo ou sem agredir o tempo todo. E.2

[...] a gente tem que tá sempre mostrando que as coisas não são resolvidas no tapa
toda hora. Toda hora se agarrando, quê isso?! A gente tem que ir conversando, né?!
Como vai ser na sociedade lá fora? Tudo que não gostar vai se avançar nas
pessoas? E.8

[...] A gente sempre valorizou muito isso, tem um salãozinho de beleza aqui que
elas podem fazer a unha, arrumar o cabelo, pintar o cabelo [...]. E.3

Mesmo que ainda se esteja tratando da descoberta do lugar e dos limites do outro para
definição do seu próprio lugar e limite, ingressam no debate elementos que sugerem o
reconhecimento da importância de auto-cuidado, da relação saudável consigo mesma por
parte da jovem. Neste ponto, talvez seja conveniente estabelecer um paralelo com as
instituições analisadas e descritas por autores como Foucault (1987), Goffman (1999) e
Oliveira (2001) como instituições “totais”. Se se levar em conta que suas preocupações e
objetivos diziam respeito, sobretudo, à vigilância e normalização, e que se valiam de
mecanismos de despersonalização e objetalização dos sujeitos, parece que temos aqui
aspectos sugerindo outras posturas. Sabe-se que

[...] instituições não são coisas, são rotinas, procedimentos, relações regulares,
normas respeitadas no cotidiano de sociedades. Suspendendo-se as rotinas, deixam
de existir. Evaporam. São efêmeras e voláteis. Expressam pactos sociais e os
sustentam, representam-nos e os perpetuam. Cessando os pactos, cessam suas
expressões (SOARES, 2004, p.187).

Por isso, é possível inferir que nem esta instituição pesquisada é totalmente diferente
(visto que os pactos sociais pautados na exclusão social ainda permeiam a sociedade), nem as
instituições totais são coisas do passado que foram substituídas por outras. Contudo, também
não é totalmente falso aceitar que são viáveis estruturas e procedimentos dentro de um local
87
sancionador que conseguem dar conta de não objetalizar o sujeito, mas lidar com sua
subjetividade e individualidade. O que se tem percebido até aqui parece dar conta dessa
dimensão particular, que compreende que existe um perfil que uniformiza as jovens que
chegam a este local, mas que se deve dar atenção às singularidades e criar um plano voltado a
cada uma delas. Também é um espaço onde o limite é entendido como uma necessidade ao
desenvolvimento e se usa o tempo para suportar estar no papel de quem “violenta” (a
violência fundamental) para que o sujeito não fique abandonado à própria sorte, imerso em
um mundo que só cabe sua satisfação e não abre espaço para o convívio salutar com o outro.
Ao mesmo tempo, este mesmo local, através da manifestação dos agentes que integraram este
estudo, parece entender que nenhuma regra será atrativa enquanto não se estabelecer uma
relação no seio da qual faça sentido abdicar de alguns prazeres narcísicos. Todas estas
dimensões e demandas do desenvolvimento infanto-juvenil, apesar de dizerem respeito a um
conhecimento técnico, aparentemente são conhecidas pela instituição. Talvez produto da
prática e da experiência, talvez pelo percurso histórico muito particular deste centro de
atendimento, talvez pelo conjunto de todas as especificidades desta casa, não se pode saber. O
fato é que parece haver, no CASEF, mais espaço para a aparição do sujeito (e não mais a
redução a objeto) do que se poderia prever.

[...] é um conjunto de tudo isso aí. É o educar, na disciplina, no entender elas,


tudo... Nós temos que ter tudo isso aí se não, não conseguimos a trabalhar. E.4

[...] quem vê de fora [pensa]: „não, ela é louca! Quer dizer que a guria tá presa, vai
namorar e ainda vai ser incentivada [pelo socioeducador]?!‟. Vai, vai ser
incentivada, porque faz parte do processo educativo. Tu não vai avaliar o delito, tu
vai avaliar o que que trouxe, tu não vai condenar o delito, o trabalho da gente aqui é
outro, é saber o que que fez essa guria chegar até o delito e aí tu vai mudar todo o
caminho inverso [...]. E.1

Por isso mesmo, parece importante voltar ao aspecto do vínculo e do equilíbrio


aparentemente almejado entre disciplina e essa dimensão de cuidado.

[...] eu acho que as gurias elas sabem qual é nossa função [a da disciplina e
orientação], mas o vínculo se cria e ele é mais forte (...) uma pessoa quer conversar
contigo. Tu não pode negar, dizer pra ela que não, agora não. Quanto muito tu diz:
„Olha, hoje não vai dar, pode ser no próximo plantão? Dá pra esperar no outro
plantão?‟. „Dá, tia, dá pra esperar‟. „Se não dá a gente vai agora‟. „Não, dá pra
esperar‟. Então é impossível tu negar a uma pessoa que te pedir pra conversar e tu
dizer que não. Não tem como tu fazer isso, né?! O que a gente tem que fazer é
escutar, orientar o que tá dentro da sua área, mas daí encaminhar o que não ta [...].
E.2

88
Zappe e Dias (2011, p.225), neste sentido, argumentam que o indivíduo, por ser uma
construção social, se desenvolve a partir do estabelecimento de relações significativas,
encontrando nestas as referências que necessita para construção de sua identidade e de
projetos de vida. É a partir destas relações, caras a ele, que se dará a internalização dos
valores e normas sociais, formando a estrutura que “popularmente se descreve como sendo a
„consciência‟, e que a psicanálise denomina como superego”.

[...] o sócio educador ta aqui pra ajudar a pessoa a se reeducar né?! [...] Reeducar
elas pra que elas voltem [para a sociedade] e fazer com que volte a autoestima, por
que tem uns que tem a autoestima muito baixa. Mostrar que têm condições que nem
os outros. O que fez, tá feito, tá pagando e tem que se reconstruir de novo, levantar
a cabeça e levar o barco pra frente. E.8

Aqui cabe destacar a figura do socioeducador como aquele que percebe e atua sobre a
baixa autoestima da jovem. Compreende que também é parte de seu trabalho se ocupar com o
modo como a adolescente se vê, auxiliando-a a encontrar meios de superar sentimentos
autodepreciativos, por exemplo. Por trás dessa visão, talvez esteja a noção de que tais
sentimentos podem servir como trampolins para que se instaurem outras condutas
autodestrutivas, mais palpáveis e que concretamente afetem a jovem e talvez outros
indivíduos, vitimizados por ela diretamente ou não. Se o socioeducador consegue se colocar
nesse papel de suporte, de motivador, de quem aceita a jovem como ela é, inclusive
reconhecendo suas ações nefastas do passado, talvez sirva como referência a auxiliar em seu
processo identificatório. Por outro lado, é preciso mencionar a tênue linha divisória entre a
aceitação – que motiva a passar uma borracha no passado para seguir em frente – e a
dificuldade de lidar com os “erros” alheios, a intolerância que não prevê espaço e escuta para
isso, propondo a mesma solução, de se passar uma borracha no que passou. A mesma
proposta, portanto, pode indicar posturas completamente diferentes e os adolescentes
certamente reagirão também de formas bastante diversas conforme o ponto de partida
implícito.
De qualquer forma, estudos apontam mesmo a possibilidade das medidas de
internação efetivarem-se como fatores de proteção na trajetória de adolescentes (COSTA;
ASSIS, 2006, NARDI; DELL‟AGLIO, 2010). Alguns autores sugerem inclusive a viabilidade
da promoção da saúde e resiliência durante a institucionalização. A formação dos vínculos
afetivos, na medida em que se dê positivamente dentro destes espaços, pode servir como base
para o fortalecimento do jovem no enfrentamento das situações desafiantes (COSTA; ASSIS,
2006).

89
É ainda imprescindível revelar pontos de vista que destoaram da maioria dos
entrevistados, cabendo-lhes o papel de contraponto importante a todas as interpretações até
aqui costuradas. Existem, portanto, visões diferentes quanto ao processo socioeducativo e,
sobretudo, às ferramentas utilizadas para se alcançar os objetivos comuns à instituição. Se
prevê, da mesma forma, uma representação da mãe que explica as funções do agente, mas as
tarefas desta seriam exercidas de outra maneira.

Mas tem uma hora que tu tem que gritar com o filho, tem que dar umas palmadas,
pedagógica – que agora não pode também. Mas também tu tem que ser mais
ríspida, por que tu fala uma vez, fala duas, fala três, e chega uma hora que tem que
tomar outra atitude. De cobrança né, de deixar de castigo, de tentar... A criança ou
adolescente ver, se eles conseguem enxergar né, explicar, se eles conseguem
enxergar, o que tá acontecendo. Pra eles verem que eles, se sentirem que estão
fazendo a coisa errada. Se consegue... Alguns conseguem enxergar e ter a
autocritica que eles realmente estão fazendo aquilo errado. Tem muitos, a maioria
não enxerga [...]. E.7

A fala acima nos remete ao Código de Menores. Percebem-se aí as questões dos limites, mas
subjacente a elas, pode-se pensar numa certa depreciação do público atendido, que parece ser visto
como incapaz de enxergar seu erro. Logo, culpado perante seu erro e não simplesmente responsável
por ele. Também causa certo impacto a “defesa” da palmada pedagógica e do grito, não porque não
existam e não sejam mesmo aceitos por parcela considerável da população. Mas porque de fato
destoam das concepções da doutrina da proteção integral e podem revelar dificuldades para conhecer e
atender as especificidades do público atendido nesses locais. Porém, tais atitudes são compreensíveis.
Trabalhar em instituições desta natureza envolve, segundo Arpini (2003, p. 183) “lidar com todas as
dificuldades das relações afetivas, com o que de pior as pessoas podem viver e fazer sofrer aos demais,
o que é doloroso para qualquer um”. Já Soares (2004, p.177), buscando analisar o que faz a
“indiferença” perante a dor alheia existir, afirma:

A gente não precisa ser insensível aos dramas humanos e sociais para atingir este
estado de consciência que eu chamo indiferença, na falta de uma palavra melhor.
Pelo contrário, quanto mais sensível, mais chance a gente terá de bloquear a
percepção, entorpecer os sentidos, anestesiar a sensibilidade e turvar a visão,
seletivamente. Trata-se de um mecanismo adaptativo. Ele funciona sem a nossa
autorização e às vezes contra nossa vontade consciente. Serve para proteger-nos.
Para salvar-nos do que é doloroso. Para livrar-nos da dor alheia e poupar-nos do
sofrimento. (...) A gente deixa de ver os meninos [de rua, por exemplo] porque, se
visse, não conseguiria tocar a vida. Como seria entrar num restaurante, numa noite
fria, e levar consigo, dentro de você, a imagem do menino na rua, com frio e fome,
desamparado? (...) Como compatibilizar esta presença perturbadora, constante
dentro de você, com seus pequenos prazeres cotidianos? Como divertir-se, amar,
celebrar a vida, usufruir as amizades? Seria inviável.

90
Entendendo, portanto, a atitude que muitas vezes desqualifica o sujeito quando este se
encontra em situação vulnerável como fruto de mecanismos defensivos, ainda outros autores
podem ser de grande valia para ampliação da análise. Rosa (2007), por exemplo, debruça-se
sobre a resistência na clínica com pacientes institucionalizados por infracionar a lei. Ela
conclui que a resistência do terapeuta, nestes casos, seria produzida por questões defensivas.
A mesma resistência e as razões que a autora entende justificarem tal postura poderiam ser
ampliadas para outros profissionais, talvez também para os socioeducadores. Ela argumenta
(ROSA, 2007, p. 189):

O que observo nesses atendimentos é que a resistência serve para evitar a escuta do
sujeito, desse estrangeiro sem pátria de origem. Isso porque essa escuta esbarra no
horror do confronto com o estranho, tal como tematizado por Freud, como o
encontro com algo estranhamente familiar e conhecido do próprio sujeito, que se
alienou pela repressão. O efeito de estranho é provocado quando o reprimido
retorna, e torna-se ansiedade. Confrontado com sua própria estrutura fantasmática,
sobrevém a resistência e o analista [que também pode ser comparado ao
socioeducador] sai do lugar de escuta. Um outro movimento se instala. [...] A
escuta do discurso desses sujeitos fica insuportável não só pela situação em si ou
pelos atos que cometeram, mas porque tomar esse outro como um sujeito do desejo,
atravessado pelo inconsciente e confrontado com situações de extremo desamparo,
dor e humilhação, situações geradas pela ordem social da qual o psicanalista
[profissional] usufrui – é levantar o recalque que promove a distancia social e
permite-nos conviver, alegres, surdos, indiferentes ou paranóicos, com o outro
miserável. [...] Nessas situações, a escuta supõe romper com o pacto de silêncio do
grupo social a que pertencemos e do qual usufruímos; usufruto que supõe a
inocência, a ignorância sobre as determinações da miséria do outro e a reflexão
sobre a igualdade entre os homens, quando, de fato, o que fazemos é excluí-los.
Excluí-los e usufruir do gozo da posição imaginária de estar do lado do bem, da lei.

E, para finalizar, Marin (2002, p. 142) também contribui para o tema da mesma forma
ao afirmar que “se não formos capazes de assumir nossa própria violência, que é reativada em
toda experiência de relação com o Outro (...), abandonaremos nós mesmos e o Outro ao
desamparo”.
Neste sentido, os próprios agentes socioeducadores explicitam razões para ver neste
adolescente interno mais do que um criminoso em potencial, uma futura estatística das
prisões.

[...] a função do monitor, na verdade é maior do que dar normas ou ter que cuidar
da disciplina, eu vejo assim, o nosso trabalho bem educativo mesmo, sabe? A gente
tem uma parcela muito grande assim com essas adolescentes porque pode ser que
tudo o que tu falar entra pelo um ouvido e sai pelo outro, mas pode ser também que
alguma coisa, uma delas guarde, entendeu? Isso já vai ser maravilhoso... Eu acho
que a nossa função é... Apesar de eu achar que não acontece, infelizmente, mas a
nossa função é educativa, é socializadora mesmo, é tentar passar a imagem de que
um outro mundo, um outro caminho, são possíveis pra elas, eu particularmente

91
procuro muito através da conversa, converso muito assim com elas e de contar
coisas, e trocas e tal [...]. E.5

Outros segredos apontados pelos socioeducadores como os que viabilizam um bom


trabalho neste cargo seriam a coerência entre discurso e prática, a opção consciente pelo
trabalho por gostar do que faz e o manejo verbal. A educação pelo exemplo foi, inclusive,
elencada como uma das diretrizes pedagógicas para o Sistema socioeducativo, de acordo com
o SINASE (BRASIL, 2006). No dia-a-dia institucional, alguns profissionais notaram a
importância desses dispositivos.

[...] tu educa muito mais pela tua postura do que pelo que tu diz. Teu discurso é blá-
blá-blá. O que faz elas realmente te respeitarem é pela tua postura, elas observam
tudo, elas observam quem entra, quem sai, como age, como come, o que come [...].
E.1

Se tu não faz teu serviço, se tu não trabalha no que tu gosta, tu não faz ele direito,
tu faz ele sempre cansando, sempre com implicância, ou de mau humor, tem que
gostar do que tu faz. E.2

É a condução... O manejo verbal é a palavra chave pra um bom trabalho. É a


palavra chave pro trabalho de qualquer agente socioeducativo. É tu conversar, e
conversar e ouvir. Porque dentro do manejo verbal tu tem que ouvir também, né? E
ouvir, e ouvir, e ouvir. E.1

Estes elementos, assim como outros já explorados acima, demonstrariam, portanto,


compatibilidade entre as práticas socioeducativas neste contexto específico e os parâmetros indicados
nas normativas para a área. Entretanto, mesmo com uma visão mais próxima aos paradigmas
estabelecidos pelo ECA, a missão institucional pode não ser totalmente efetiva.

Eu digo que aqui no CASEF a gente ensina a menina a voar. Então a gente dá um
parzinho de asas pra ela voar. O problema é que quando ela chega lá fora ela sabe
que as asas que a gente deu é de papel. Sabe? Porque tudo que tem aqui, lá fora não
vai ter. Sabe? A gente não vai continuar cuidando dela lá fora, ela não vai ter esses
cuidados, ela não vai ter essa atenção. E.10

Mas novamente são os próprios agentes que, com seu tempo de experiência
institucional e pela vivência de situações das mais diversas nesses contextos, tiveram de
encontrar soluções e estratégias para aprender a fazer seu trabalho e encontrar satisfação
nisso.

Eu costumo dizer pra mim [...] teve três momentos [...] no CASEF [...]. Quando eu
comecei, eu acreditava em utopias, assim, eu achava que era possível, né? [...] eu
achava que com nossa força, trabalho, nós poderíamos mudar o mundo, e logo, eu
acreditava nas meninas, eu achava que se eu me dedicasse, mostrasse pra elas as
coisas, eu ia ter uma resposta, um resultado. Não, eu vi que não... Aí eu me frustrei,
eu me decepcionei. Aí eu ia pra casa me martirizando: „mas por que que aquela

92
guria fez aquilo? Eu tava apostando nela e ela não fez, ela errou, ela pisou na bola‟.
Ou uma menina [...] que tu tá apostando e foge, sabe? E não volta mais. E aí eu me
impressionava, me martirizava... Aí, num segundo momento, eu passei a odiar tudo.
Eu achava que era um bando de marginal, um bando de sem vergonha, que a gente
não tinha que ter vínculo coisa nenhuma, que a gente tinha que vir aqui, bater o
nosso cartão, fazer o nosso trabalho, cobrar o que tinha que ser cobrado e era isso.
Sabe? Meio cadeeira assim. E no terceiro momento que, graças a Deus já faz alguns
anos, eu acho que eu consegui achar um equilíbrio, sabe? Entre esses dois
momentos [...] Porque não é nem o primeiro, nem o segundo. Eu consegui pensar:
„Não, eu não sou uma cadeeira, eu não tenho que só abrir portas, só cobrar coisas,
não. Eu posso passar muito da minha experiência, eu posso ter muitas trocas e
diálogos com elas, ter o vínculo sim e cobrar também‟. Mas eu não tenho mais
aquela idéia utópica de que: „Não, eu vou mudar o mundo‟, de que essas meninas
que estão aqui vão mudar. Então, se a gente consegue com uma, tá muito bom,
entendeu? Às vezes são os pequenos detalhes. E eu acho que isso que as pessoas de
maneira geral meio que se frustram [...]. Porque na verdade é muito pequeno o
resultado perto do que a gente tá acostumado na nossa vida. [...] Aqui é muito sutil
[...]. E.5

[...] o monitor que entra na unidade, [...] achando que vai cobrar faxina da
adolescente [...] e isso é suficiente, não cumpre o objetivo do trabalho, não forma
vínculo com a menina [...]. Tu pode só acompanhar e ficar inerte. [...] Mas tu pode
fazer diferente, tu pode conseguir conversar e tu pode conseguir fazer a pessoa
enxergar. E tu pode conseguir dar atividades que façam a guria perceber que existe
outro caminho, que existe outra vida, as atividades culturais que a gente leva,
quando a gente coloca em estágio, em cursos específicos pra aquela dificuldade que
ela tenha ou pra potencializar alguma coisa boa que ela tenha. E.1

Talvez o verdadeiro segredo para o trabalho seja conseguir enxergar o sujeito e não
meramente um objeto quando se está tratando com cada uma das internas. E também,
conseguir exercer suas funções mantendo a satisfação no trabalho. Para tanto, levando em
conta todos os aspectos institucionais até aqui explorados e ainda outros não cabíveis neste
estudo (como perfil dos adolescentes internos), aparentemente é necessário regular
expectativas conforme a realidade que se apresenta. E para se enxergar esta realidade, muito
provavelmente seja imprescindível ter clareza de que vemos o que podemos, a partir de nossas
limitações e nossa própria subjetividade, a partir do que já trouxemos à luz de nossas
obscuridades e nossa capacidade de lidar com o que há em nós de violento, impotente,
desamparado.
Neste sentido, Soares (2004, p.173) contribui afirmando:

[...] o olhar transporta para a imagem daquilo que é olhado um pouco da pessoa que
olha [...], transporta para a imagem a relação entre o que vê e o que é visto, deduz-
se que ver é relacionar-se. [...] não há pureza nem objetividade no olhar. Nossa
visão das coisas e das pessoas é carregada de expectativas e sentimentos, valores e
crenças, compromissos e culpas, desejos e frustrações.

93
4.4. CONCLUSÕES

Neste estudo, buscou-se trazer à luz as reflexões, concepções, crenças, visões de


socioeducadores de uma instituição feminina de restrição de liberdade. Instigou-se que os
entrevistados discorressem sobre suas tarefas dentro do centro de internação, posicionando-se
sobre quais seriam suas funções, como as levariam a cabo, e o que considerariam importante
para desempenhar bem seus papéis. O que ficou primeiramente evidente foi a ampliação do
rol de tarefas concernente ao cargo em foco. A substituição da nomenclatura, de monitores
para socioeducadores, denotou não só a mudança de paradigmas e embasamento conceitual
subjacente à instituições de atendimento a adolescentes, mas também aparentemente maior
responsabilidade para este profissional. Pelos relatos dos entrevistados, seu entendimento é de
que antes eram exigidos em termos de manutenção da ordem, segurança e controle. O que
justamente foi alvo das mudanças ocorridas, pois atualmente devem lidar diretamente com
aspectos pedagógicos previstos no cumprimento de medidas socioeducativas.
Os participantes vêem de formas diversas tais transformações. Assim como existem
aqueles que revelam satisfação e identificação com as tarefas atuais, outros demonstram sentir
que não foram preparados para abarcar outras responsabilidades. Entretanto, revelam existir
uma linha de trabalho comum, que os une apesar das diferenças de entendimento e aceitação
quanto às especificidades do cargo. Outros pontos que parecem mais homogêneos em termos
do entendimento dos entrevistados seria com relação às suas tarefas propriamente ditas. É
notável o quanto todos suplantam em seus discursos a visão de seu trabalho como
basicamente de segurança. Apesar de entenderem que a exigência formal seria esta,
concordam que o bom profissional deve superar esta visão.
São assumidas, então, tarefas concernentes à escuta das adolescentes, à compreensão
de suas circunstâncias, à lida com seus aspectos subjetivos, emocionais. Apesar de colocarem
seu conhecimento sobre os limites de seu cargo com relação a outros profissionais técnicos da
unidade, ressaltam também que se vêem como a linha de frente, que deve estar atenta às
demandas das jovens, encaminhando-as conforme sua avaliação inicial. Não por acaso
colocam-se então comparativamente à função de mães. Entretanto, ressaltam que seriam mães
e também pais, pois aliariam o afeto e a imposição de limites.
Aqui cabe também mencionar a pontuação bem demarcada dos dois principais pilares
compreendidos como igualmente essenciais para a ressocialização das jovens. Citam a
importância do vínculo da mesma forma como seriam fundamentais os limites. Aceitam,
portanto, acolher como tarefas suas o estabelecimento de relações baseadas em certo nível de

94
afetividade e cuidado, assim como o papel de instaurar o “não” fundamental, aquele
necessário para que o adolescente compreenda que existe um “outro” para além dele e que
pode-se e deve-se abrir mão da satisfação plena em prol do convívio social.
Os agentes socioeducadores, pode-se pensar, acabam por servir de modelos
identificatórios em muitos casos, se assim de fato procedem, deixando coexistir em suas
práticas a relação afetiva e o disciplinamento. Por outro lado, existiriam profissionais com
pontos de vista diferentes, que compreenderiam alguns dos elementos citados como
desfavoráveis aos processos educacionais das adolescentes. Autores revelam que tais posturas
são comuns e mesmo compreensíveis, frente à complexidade da tarefa destes profissionais.
Estariam embasados em mecanismos defensivos que protegeriam o sujeito de entrar em
contato com seus próprios conteúdos a custo reprimidos.
Neste ínterim, é possível ressaltar que os depoimentos dos atores da instituição
estudada parecem contradizer as principais características das unidades “prisionais”. Nestas,
em geral, existiria a tendência ao fechamento e à despersonalização e objetalização dos
internos, para melhor controlá-los. Aqui, alguns elementos, tais como atenção e
reconhecimento da necessidade de autoestima, da singularidade e individualidade das jovens,
que determinaria o estabelecimento de um plano individual de atendimento, entre outros
fatores, demonstram que talvez a principal transformação institucional tenha sido no sentido
de se passar a ver um sujeito onde antes só se via um objeto.
O socioeducador possui um trabalho que, inegavelmente, lhe exige capacidades e
habilidades especiais, tanto em termos técnicos, quanto pessoais, emocionais, em geral
adquiridas através de uma trajetória de vida substancial. Por isso mesmo, os entrevistados
parecem entender que é preciso se identificar com o trabalho, gostar de fazê-lo, adequando
igualmente suas expectativas à realidade dos resultados possíveis. Compreendem que o
retorno é sutil, mas deve ser capaz de satisfazer e motivar para continuar. Reconhecem que
existem limites e que cada um deve saber o seu. E enfatizam que as principais ferramentas de
trabalho são o manejo verbal, a educação a partir da coerência entre o que se fala e o que se
faz e a satisfação pelo desempenho do seu papel.
Talvez este seja um trabalho não só de ressocialização das adolescentes, mas que
também exige esforço por alcançar discernimento e maturidade emocional do próprio agente
socioeducador. Tais reflexões levam a ainda outras ligadas à pesquisa nesses meios e as
opções interpretativas dos resultados. Talvez o principal desafio, de todos os atores, aí
incluindo os estudiosos, seja o de olhar para uma realidade repleta de outras realidades
entendidas como capengas e desafiar-se a ver os pequenos pontos luminosos, as pequenas

95
resistências do aspecto resiliente do ser humano. Ver os esforços e lutas banais como degraus
de um processo que infalivelmente culminará em algo melhor do que o que se tem, muito
embora isso contrarie as expectativas habitualmente pessimistas, tidas como realistas.
Em pesquisa e ciência, prova-se hoje que mais que retratar, representar realidades é
primordial intervir e mudá-las. Uma das formas mais simples de fazê-lo pode ser auxiliar o
processo de correção da miopia social, que se configura a partir de uma visão que teima em
ver repetições e borrões, sem se dar conta de que existem, em cada sujeito, em cada
organização, nitidez e sucessivas tentativas de sucesso no caminho da vida. Viver é melhor
que sonhar, já dizia o “poeta”. E viver no completo, levando em conta o mundo como é,
inclusive com o que tem de forte e belo, é melhor que limitar-se ao conhecido desgosto pela
lentidão que se vê no passo da humanidade.

4.5. REFERÊNCIAS

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de julho de 1990. Brasília-DF, 1990.

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96
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97
CAPÍTULO 5
“AQUI É DIFERENTE, AQUI FUNCIONA”: ESPECIFICIDADES DE UMA
UNIDADE FEMININA DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

RESUMO

À FEBEM e às instituições de restrição de liberdade juvenis que dela descendem em geral


restam estigmas e a imagem de ineficiência e violação de direitos humanos. Os agentes
socioeducadores têm importante papel nestes contextos, sendo responsabilizados em grande
parte pela execução das intervenções institucionais. Ao se buscar resultados positivos em tais
contextos, nota-se que podem ser descritos a partir de algumas experiências em unidades
femininas. O presente estudo investigou as representações de socioeducadores de uma
unidade deste tipo na cidade de Porto Alegre, RS. As informações foram obtidas através de
entrevistas semi-estruturadas com o objetivo de conhecer suas opiniões, conceitos e crenças
sobre o público que atendem, suas funções e sobre a instituição onde trabalham. Os resultados
apontaram o entendimento desta instituição como especialmente eficiente nas tarefas de
ressocialização. As razões que explicariam sua diferenciação positiva com relação a outras
unidades diriam respeito, principalmente, a uma gestão competente no passado que
determinou as diretrizes do atendimento atual. Outros fatores importantes para seu
desempenho seriam o tamanho reduzido da unidade, sua preocupação em executar as
recomendações legisladas e a especificidade de seu público (feminino). Nisto, os participantes
revelam a compreensão de que trabalhar com meninas seria melhor do que com meninos.
Apontam ainda um sentimento de auto-eficácia, percebendo-se como funcionários que sabem
como contribuir para a ressocialização. Conclui-se que, na visão destes trabalhadores, a
instituição possui especificidades preciosas as quais concorrem para que o cumprimento das
medidas socioeducativas se dê de forma satisfatória. Ademais, a percepção valorativa do local
de trabalho, de sua própria capacidade de desempenhar bem seu papel e do público que
atendem tende a auxiliar a instauração de relações benéficas ao desenvolvimento das
adolescentes que necessitam ser reinseridas à sociedade.

Palavras-chave: Delinqüência juvenil feminina; Instituições femininas de privação de


liberdade; Agentes socioeducadores;

98
ABSTRACT

In geeneral, stigmas and the image of inefficiency and human rights violations are directed to
FEBEM and restriction of juvenil freedom institutions which are descended from her. Social
educators play an important role in these contexts, being largely responsible for the execution
of institutional interventions. When it gets positive results in such contexts, it is observed that
may be described from some experiences in female units. The present study investigated the
representations of social educators of such a unit in the city of Porto Alegre, RS. The
information was obtained through semi-structured interviews in order to ascertain their
opinions, beliefs and concepts about serving the public, its functions and the institution where
they work. The results showed an understanding of this institution as especially efficient in
the tasks of socialization. The reasons that could explain their positive differentiation with
respect to other units would relate mainly to competent management in the past has
determined that current care guidelines. Other important factors in its performance would be
the small size of the unit, its concern to implement the recommendations legislated and
specificity of your audience (female). Herein, participants reveal the understanding that it
would be better to work with girls than with boys. Also indicate a sense of self-efficacy,
perceived themselves as employees who know how to contribute to the resocialization. We
conclude that, in view of these workers, the institution has precious specificities which
contribute to the fulfillment of social and educational measures to occur satisfactorily.
Furthermore, the perception of evaluative workplace, their own ability to perform their role
well and serving the public tends to assist the establishment of beneficial relationships to the
development of adolescents who need to be reintegrated into society.

Keywords: Female juvenile delinquency; female institutions of deprivation of liberty;


social educators;

99
5.1. INTRODUÇÃO

À FEBEM e às instituições de privação e restrição de liberdade juvenis que


descendem dela, em geral restam estigmas e a imagem de ineficiência e violação de direitos
humanos. Segundo Costa (2006), a trajetória construída historicamente sobre equívocos de
regulamentação e execução de políticas públicas para adolescentes em conflito com a lei fez
com que grande parte da população perdesse a confiança nas instituições. Sua imagem passou
a ser conectada com arbitrariedade, propostas pouco educativas, ineficazes ou omissas frente
à complexidade e magnitude do problema.
Entretanto, assim como outras crenças do imaginário social, construídas com base em
conhecimento parcial dos fatos, também estas concepções podem ser revisadas à luz da
história e das evidências. Estudos, avanços legislativos, atores institucionais e políticos
engajados, entre outros elementos, servem como provas vivas para atestar que esforços
também vêm sendo feitos em busca dos reordenamentos estruturais e paradigmáticos
necessários. O Sistema Socioeducativo do Rio Grande do Sul pode ser citado como exemplo,
senão do ideal alcançado, da busca pela aproximação cada vez maior com as prerrogativas
instauradas pela Doutrina da Proteção Integral. Índices decrescentes de internações e
internações provisórias1, a preocupação em estruturar um Programa de Execução de Medidas
Socioeducativas de Internação e Semiliberdade (PEMSEIS) são apenas alguns dos objetivos
almejados e de certa forma já alcançados. Longe de se fazer defesa de uma ou outra instância
ou de negar aspectos obscuros persistentes no sistema, a pretensão aqui seria não cair nos
perigosos tentáculos da resistência, da sensação de impotência, “reforçando o sintoma
institucional de não reconhecimento de sua própria potência de transformação” (OLIVEIRA,
2001, p. 207).
Contudo, muito trabalho ainda deve ser feito. Começando, talvez, pela notabilização
do trabalhador institucional e da importância que adquirem seus níveis de conhecimento e
capacitação para o trabalho. Estes devem outorgar-lhe noções que os inclinem em direção às
opções primordialmente pedagógicas e pelo caminho da pedagogia da presença. Esta seria
uma atitude básica que implicaria na doação de “tempo, presença, experiência e exemplo ao
seu educando, visando exercer sobre ele uma influência construtiva, significativa e marcante”

1
No Levantamento Nacional da Secretaria de Direitos Humanos e Secretaria Nacional de Proteção dos Direitos
das Crianças e dos Adolescentes de 2010, os índices do Estado do RS para internação baixaram 21,02% e para
internação provisória 11,67%. Os índices concernentes à semiliberdade aumentaram em mais de 100%,
representando o aceite da indicação legislativa de aplicação de medidas socioeducativas menos extremas para
atos infracionais menos graves, como são a maioria cometida, segundo Volpi (1997).

100
por parte do educador (COSTA, 2006, p.44). Sabe-se que o indivíduo é resultante de um
processo de construção social, que só é possível a partir do estabelecimento de relações
significativas, encontrando nestas as referências e motivações para erigir sua identidade e seus
projetos de vida. Assim, valores e normas sociais são internalizados através da vivência destas
trocas com pessoas importantes para si. Tal ponto deixa claro quão essenciais se tornam as
relações institucionais para o desenvolvimento dos adolescentes em conflito com a lei. Zappe
e Dias (2011, p. 226) acrescentam:

[...] a experiência de internação, para ser efetiva, deveria propiciar outros tipos de
relações, sendo estas principalmente marcadas pelo respeito e outros valores
positivos, oferecendo novos modelos de identificação. Se não, como esperar que
estes jovens assumam uma postura que nunca assumiram com relação a ele?

Ao mesmo tempo, é inegável o comprometimento de muitos funcionários com a


cultura do desamparo2, que se dedica às queixas e cristalização sob as inúmeras demandas,
obstaculizando uma postura ativa, reflexiva, receptiva e co-responsável. Ou, por outro lado, a
filiação de grande parcela dos atores aos parâmetros correcionais-repressivos que vêem uma
falaciosa conexão entre a rigorosidade das medidas e a sua eficácia (ASSIS et al., 2002,
OLIVEIRA, 2001, SOARES, 2004, CAMPOS, 2005, ZAMORA, 2005). Este seria, inclusive,
o componente principal do que Oliveira (2001) chama de histeria penal, responsável pelas
ondas intermitentes de aprovação e conclamação nacional pela redução da maioridade penal.
Outras questões influentes nas relações estabelecidas pelos trabalhadores dentro das
instituições juvenis dizem respeito a sua saúde, já que muitos se vêem comprometidos pelo
contato intenso e freqüente com um público que carrega consigo dramas humanos de alta
complexidade. Estas especificidades exigem dos funcionários mais que qualificação técnica,
mas sobretudo preparo e habilidades emocionais difíceis de ser tangíveis e forjadas. Greco
(2011), em pesquisa que objetivou estudar a relação entre Distúrbios Psíquicos Menores3 e o
trabalho dos socioeducadores do RS, trouxe a informação de que 68% dos trabalhadores do
Estado já haviam necessitado afastamento das atividades laborais por razões de saúde de nove
a 365 dias no último ano. Segundo o estudo, algumas das características do trabalho do agente
contribuem para os altos níveis de demanda psicológica (tais como pressão do tempo, alto

2
OLIVEIRA, 2001, p. 206.
3
Este distúrbio caracteriza-se pela aparição de sintomas ansiosos, depressivos ou psicossomáticos e que não
satisfazem totalmente os critérios da doença mental. São comuns também em indivíduos que sofrem com DPM
tristeza, fadiga, ansiedade, redução da concentração, irritabilidade, insônia e redução da capacidade funcional
(GRECO, 2011).

101
nível de concentração, constante estado de alerta, necessidade de esperar pelas atividades
realizadas por outros trabalhadores, entre outros).
Além disso, o índice de prevalência de Distúrbio Psiquiátrico Menor (DPM) nos
socioeducadores gaúchos atingiu o percentual de 50,1%. Aliado a estes números, a autora
chama atenção ainda para o fato de 6,6% dos trabalhadores terem respondido afirmativamente
a questão “Tem tido a idéia de acabar com a vida?”. Segundo ela esta informação demonstra o
grau de sofrimento desses colaboradores e a necessidade urgente de se pensar em meios de
minimizá-lo.
Tais achados podem também auxiliar a compreensão da situação em que se encontram
os trabalhadores institucionais, influindo em sua conduta por vezes não condizente com as
prerrogativas éticas e legisladas. Campos (2005), nesse sentido, afirma que apesar das
mudanças e avanços no sistema socioeducativo, a relação internos-monitores4 ainda baseia-se
freqüentemente em autoritarismo e hostilidade. Por este motivo o autor acredita que neste
âmbito encontra-se um grave desafio a ser enfrentado, já que a implantação das novas
diretrizes depende da efetivação da boa relação entre estes atores institucionais. O mesmo
estudioso argumenta ainda que, seriam os agentes socioeducadores, por manter o relacionamento
mais próximo e freqüente com os internos, o elemento que exerceria maior influência sobre os
mesmos
Partindo dessa premissa, sabe-se o quão valoroso se torna o profissional que se dispõe
e consegue primar pela construção de uma relação suficientemente boa com o jovem
institucionalizado. Para compreender o que seria o desempenho adequado das funções, pode-
se buscar auxílio em estudos, documentos e experiências. Para Rocco (2010), outros
elementos além da capacidade técnica ou saúde psíquica do trabalhador entram em jogo
quando ele deve executar suas tarefas. Diz a autora que é fundamental também levar em conta
aspectos de sua personalidade, verificando as possibilidades concretas que o profissional
possui para ser ético, solidário, tolerante e paciente, o que definiria o que realmente importa,
ou seja, sua capacidade de acolhimento.
Além disso, outro parâmetro importante seria a capacidade de desvencilhar-se de
preconceitos comumente associados ao adolescente em conflito com a lei. Isto pela
necessidade de minimizar os efeitos dos estigmas, buscando propiciar espaços de valorização
dos jovens em relação a si mesmos e aos outros, impedindo que a imagem negativa do autor
de atos infracionais seja empecilho à sua inclusão social. Sabe-se que enquanto o jovem

4
As terminologias variam, dependendo do local.

102
infrator for depositário de uma imagem negativa será difícil sua reinserção social e
reabilitação, já que ele não terá motivos para empreender os esforços necessários nem terá
receptividade por parte da comunidade a que pertence (SPOSATO, 2004).
Costa (2006), em documento sobre os possíveis parâmetros para a formação do
socioeducador, discorre sobre as quatro dimensões consideradas constitutivas do ser humano
e para consequente necessidade de se atentar e promover seu desenvolvimento igualmente
durante o cumprimento das medidas socioeducativas. Seria preciso trabalhar não só com a
razão do jovem, mas com seus sentimentos, corporeidade e espiritualidade. Segundo o autor
(COSTA, 2006, p. 92):

Na socioeducação – mais do que na aquisição de conhecimentos –, importa a


mudança de atitude básica (fonte de atos) do educando diante da vida. Nesse
contexto, portanto, trabalhar os sentimentos, a dimensão da corporeidade e as
crenças, valores e convicções profundas é tão importante (talvez até mais) quanto a
transmissão de conteúdos intelectuais (enteléquias) ou o desenvolvimento de
habilidades que capacitem os educandos para o exercício de uma ocupação, serviço
ou profissão no mundo do trabalho, embora essas aquisições, de forma alguma,
possam ser desdenhadas ou colocadas em segundo plano.

Por estas considerações, torna-se interessante analisar experiências positivas, buscando


compreender os elementos presentes e potencialmente encorajadores de processos de
ressocialização mais efetivos. As unidades femininas de atendimento a adolescentes em
conflito com a lei demonstram resultados satisfatórios principalmente se comparados aos das
unidades masculinas. Assis et al. (2002), em estudo no Rio de Janeiro, revelaram que na
instituição feminina visitada as adolescentes bem como suas mães afirmaram ter havido
mudanças positivas voltadas à melhoria da assistência na Unidade. Segundo as pesquisadoras,
as meninas relataram experiências positivas referentes ao período de internação, bem como
descreveram sua rotina como mais dinâmica, explicitando que são estimuladas e cobradas a
estudar e possuem tempo para ver televisão, descansar, entre outros lazeres. As internas
afirmaram ainda possuir oportunidades na instituição que não possuíam fora dela, inclusive a
de “parar para refletir”. Aparentemente, o público atendido neste local não identificou
episódios negativos, além do fato de estar sem liberdade e longe da família.
Outra instituição identificada por possuir melhores resultados em termos de garantia
de direitos aos adolescentes em conflito com a lei é a unidade feminina do estado do Rio
Grande do Sul (Centro de Atendimento Socioeducativo Feminino – CASEF). Segundo relato

103
da IV Caravana Nacional de Direitos Humanos5 esta foi a melhor casa visitada em todo país,
pelo reconhecimento de uma atmosfera de “recuperação e confiabilidade” (BRASIL, 2001,
p.116). Além disso, foram destacadas as falas das internas referindo-se aos investimentos
afetivos por parte do corpo de funcionários, incluindo a direção. O relatório também faz
menção aos alojamentos, descrevendo-os como quartos individuais “decentes, limpos e
decorados”, fato que os distanciaria da ideia de “confinamento e segregação”. Segue ainda a
impressão positiva do ambiente (BRASIL, 2001, p.116):

Dentro da unidade, tem-se a impressão de se estar no interior de uma grande casa


de família. Os ambientes internos, a existência de áreas comuns de lazer, etc.,
contribuem para que a própria instituição adquira esse ar „doméstico‟. Por óbvio,
uma estrutura do tipo à qual se agrega uma política adequada só pode produzir
resultados muito superiores àquelas condicionadas pelo padrão de encarceramento.
Ao fundo da unidade, em uma área gramada utilizada para recreação (...) a direção
organiza festas e, mesmo, reuniões dançantes com adolescentes da FEBEM que
possuem autorização para atividades externas. Segundo uma das meninas, nessas
oportunidades, „dá até pra namorar.

O estudo de Ramos (2007) também estrutura algumas características marcantes do


CASEF (sendo aqui elencadas apenas aquelas que podem denotar avanço em termos de
garantias de direitos): 1) a estrutura física, semelhante a de uma casa, com cortinas, quartos
individuais para as jovens (com acessórios pessoais, enfeites, cortinas, colchas para a cama,
etc), espaços limpos e organizados com algumas portas abertas; 2) a estrutura para os
trabalhadores, com salas para os membros da equipe técnica, direção, salas de reunião,
descanso, refeitório; 3) as regras bem definidas, claras, sistematizadas e que são cobradas e
cumpridas a partir de diversos mecanismos institucionais. 4) proibição ao tabagismo; 5) o
número considerável de atividades, sejam elas educativas, laborativas ou de outra ordem,
indicando a característica da instituição de pouca ociosidade das adolescentes (existem,
inclusive, atividades que são remuneradas, seja dentro da unidade – atividade de lavanderia,
por exemplo – ou fora dela, para as que estão em medida de ICPAE6, como estágios); 6)
todas as jovens são estimuladas e cobradas a freqüentar a escola e ter bom rendimento, seja
dentro ou fora da unidade. Os resultados são visíveis a partir de casos onde adolescentes
ingressaram no ensino superior (BELTRAME, 2012); 7) a existência de espaços e momentos
previstos no PEMSEIS no sentido de fomentar a participação e diálogo tanto de funcionários

5
IV Caravana Nacional de Direitos Humanos: uma amostra da situação dos adolescentes privados de liberdade
nas FEBENS e congêneres: o Sistema FEBEM e a produção do mal (BRASIL, 2001).
6
ICPAE significa a medida socioeducativa de Internação Com Possibilidade de Atividade Externa, determinada
pelo Poder Judiciário.

104
como de adolescentes, como os “grupos operativos” que ocorrem, via de regra,
semanalmente.
A partir deste rol de informações e da aproximação, neste estudo, com os funcionários
justamente da instituição supracitada, percebeu-se a importância de se dar atenção às
especificidades descritas pelos mesmos quanto a seu ambiente de trabalho. Talvez se torne
possível elucidar parte dos pilares que ajudam erigir as relações institucionais neste local,
estas sim, essenciais aos processos de ressocialização. Cabe aqui o pensamento expresso por
Clare Winnicott (1983, apud ROCCO, 2010, p.13) ao destacar o enunciado de Winnicott
acerca da importância do respeito aos direitos humanos na atenção integral ao jovem em
conflito com a lei:

Hoje, como sempre, a questão prática é como manter um ambiente que seja
suficientemente humano, e suficientemente forte, para conter os que prestam
assistência aos destituídos e delinqüentes que necessitam desesperadamente de
cuidados e pertencimento, mas fazem o possível para destruí-los quando o
encontram.

5.2. MÉTODO

Participantes
Participaram do estudo 10 agentes socioeducadores, sendo 9 mulheres e 1 homem7,
com tempo de trabalho variando de 8 a 44 anos e idade de 31 a 70 anos (conforme tabela
abaixo).

Nome Idade Tempo de FEBEM ou FASE Tempo de CASEF


(em anos) (em anos)
E.1 35 10 8
E.2 39 12 11
E.3 54 21 21
E.4 70 44 15
E.5 30 10 8
E.6 54 20 4
E.7 51 27 12
E.8 55 26 18
E.9 55 10 7 meses
E.10 31 8 7
Tabela 1: Quadro de participantes

7
O número total do quadro de funcionários da instituição no período em que o estudo foi realizado era de 36,
porém, aí estavam também aqueles em férias, licenças, entre outras razões para não efetivamente estarem
trabalhando.

105
Dentre os entrevistados, oito deles já tiveram experiência de trabalho com o público
masculino. No que tange ao período de ingresso, três participantes foram admitidos antes da
implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) e outros três antes da
desmobilização da antiga Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor (FEBEM-RS) em 2002.
Quando esta foi desativada, em seu lugar estruturaram-se duas fundações, separando-se o
público que era assistido. Constituiu-se a Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE),
voltada aos jovens em conflito com a lei, e a Fundação de Proteção Especial (FPE), para
crianças em situação de risco e vulnerabilidade. Estas disparidades tornaram possível, ao que
se crê, que os discursos dos participantes contemplassem as possíveis diferenças de visões do
atendimento institucional, pautado em paradigmas que foram se transformando ao longo do
tempo.

Instrumentos e procedimentos
Este estudo, de caráter qualitativo, foi baseado nas representações de socioeducadores
que trabalham em uma instituição juvenil feminina de privação e restrição de liberdade.
Foram realizadas entrevistas individuais com o objetivo de investigar, entre outros aspectos 8,
as suas concepções sobre as adolescentes privadas ou restritas de liberdade e sobre a
instituição onde trabalham.
As entrevistas foram realizadas na própria unidade de atendimento, sendo tomados os
cuidados éticos relativos a este tipo de estudo. Foram obtidas as autorizações não só pelo
Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Maria9, como também pela Fundação de
Atendimento Socioeducativo (FASE-RS). Igualmente os participantes assinaram termos de
consentimento livre e esclarecido, sendo-lhes garantido sigilo e confidencialidade das
informações. Os participantes foram claramente informados de que sua participação no estudo
era voluntária e poderia ser interrompida em qualquer momento, sem nenhum prejuízo. Os
nomes dos funcionários apresentados neste estudo são fictícios para preservar suas
identidades. As informações obtidas nas entrevistas foram analisadas através da análise de
conteúdo temática. Esta tem o tema como conceito central, buscando desvelar as unidades ou
núcleos de sentido que compõem a comunicação (GOMES, 2012, BARDIN, 1979).

8
Este estudo é parte de um projeto de pesquisa de Mestrado que investigou também outros elementos a partir da
escuta dos socioeducadores deste contexto.
9
Aprovação em 11/10/2011 sob o registro nº 9. 0282.0.243.000-11 pelo CEP (UFSM).

106
5.3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Especificidades do CASEF
Levando em conta as evidências apontadas nos estudos sobre a institucionalização, se
poderia pensar que os relatos dos socioeducadores viriam a corroborar com representações
pautadas pelo viés correcional-repressivo. Poderiam ser esperadas falas que expressassem
posturas queixosas ou defensivas ou ainda a insatisfação de desempenhar um ofício pouco
reconhecido, alvo de acusações de violação dos direitos humanos, com alta demanda
psicológica e baixo retorno, por exemplo10. Entretanto, os agentes entrevistados contrariaram
quaisquer destas expectativas obscuras. Em verdade, foram praticamente unânimes em
afirmar o quanto a instituição onde trabalham lhes parece diferenciada, dando um caráter
positivo a essa distinção.

[...] eu acho que na verdade o CASEF é uma ilha [...] É uma ilha, é tudo diferente.
Existe o continente e existe o CASEF [...]. E.10

[...] aqui é diferente, aqui funciona. Funciona mesmo, sabe? Não é só hipocrisia,
agora aqui funciona [...] E.5

Para alguns, as diferenças estariam no fato de que a instituição é eficiente, acreditando


que o local alcançou melhor patamar em termos de atendimento ao adolescente. Outros
indivíduos, entretanto, apesar de sinalizar igualmente a assistência prestada como sendo
pautada por cuidados, vêem justamente aí um problema. Criticam o atendimento por acreditar
que ele oferece benefícios que instigariam a irresponsabilidade ou a desvalorização das
oportunidades dadas e não favoreceriam seu processo de ressocialização.

Se elas têm uma espinhasinha e pedem pra ir no médico, num dermatologista pra
fazer um tratamento da espinha, elas vão. Eu acho que isso aí [...] não é realidade
delas. É que nem eu digo pra elas: „vocês querem que eu acredite que vocês na rua,
tu vai ir no „oftalmo‟ pra ver se...?‟ Elas nem param em casa, se é que tem casa.
Então, tu quer que eu acredite....? [...] Então isso aí, pra elas é tudo fácil, é muito
fácil pra elas. Então acho que isso aí não é bom. É que nem ter um filho, dar, dar,
dar e não cobrar nada. O que que vai virar? E.7

10
Estas hipóteses foram levantadas baseando-se nas experiências das autoras com outras instituições de privação
de liberdade juvenis, onde o discurso dos funcionários continha tais elementos. Também baseia-se em Zamora
(2005) e Oliveira (2001).

107
A crença expressa nesta fala, apesar de não representativa do grupo como um todo,
serve de contraponto para reflexão. Primeiramente, igualmente reforça a presença de
elementos de cuidado com os adolescentes, fazendo crer que realmente existam de forma
consistente ou mais consistente que em outras unidades, pois são ressaltados. Por outro lado,
parece implicar a existência de correntes internas contrárias ao modo como esta instituição
tende a funcionar. Em tal caso, o trecho revela o entendimento de que suprir todas as
demandas das jovens não seria necessariamente favorável ao processo educativo. Em algum
grau, esta compreensão é, inclusive, a principal argumentação de Marin (1999) em livro que
discutia a FEBEM. A autora afirmava, a partir de sua vasta experiência naquela organização,
que havia tendência institucional de portar-se como uma “mãe de pai ausente” na relação com
a criança. Notabiliza a dificuldade institucional de aceitar e lidar com as histórias,
sofrimentos, demandas das crianças e adolescentes que atendiam, sem supri-las totalmente,
pela aparente impotência sentida frente seu sofrimento. Por outro lado, Marin (1999) localiza
justamente no enfrentamento e trabalho com a “falta” existente na vida dos sujeitos atendidos
– no sentido de possibilitar sua significação e dar condições para a simbolização – as chances
de se propiciar ambiente favorável ao desenvolvimento de um indivíduo autônomo. Ou seja, o
problema da instituição não estaria necessariamente no fato de existir a perda, as demandas
não atendidas, as lacunas nas trajetórias desses jovens. Estaria sim na impossibilidade de se
propiciar espaço e ferramentas adequadas para a simbolização destas “faltas”. Forgearini e
Arpini (2009), neste sentido, encontraram a mesma tendência em instituições de acolhimento
de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
Entretanto, há que se ressaltar outro ponto importante à discussão. Não se pode
argumentar que, pela realidade anterior dessas jovens não ter comportado a garantia e
proteção de seus direitos, agora estaria o Estado liberado para igualmente negligenciá-los.
Ademais, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) (BRASIL, 2006, p.
51) afirma ser exatamente esta a indicação às unidades de atendimento:

A privação do ambiente familiar e social traz mais problemas do que benefícios


àqueles que são submetidos a ela. Não é possível desconsiderar que historicamente
foi construído um ideário de que a institucionalização era apropriada para
determinado grupo de crianças e adolescentes, aqueles considerados em situação
irregular, justificando a separação da família e da sociedade dentro do modelo
institucional correcional-repressivo. O ECA consagra a doutrina de proteção
integral sendo, a convivência familiar e comunitária um dos direitos fundamentais e
imprescindíveis para o pleno desenvolvimento de toda criança e adolescente. O
adolescente em cumprimento de medida socioeducativa de internação recebe como
sanção a privação da liberdade do convívio com a sua família e comunidade.
Entretanto, para que se assegure o seu direito de cidadania e os danos não sejam

108
ainda maiores, a entidade e/ou programa de atendimento deve garantir que o
adolescente tenha acesso aos seus demais direitos.

De qualquer forma, o ponto controverso nestas diferentes opiniões talvez esteja no


grau em que se pretende atender às demandas das jovens, indicando a necessidade de
equilíbrio entre a assistência acolhedora e a responsabilização. Ademais, como já dito, parece
ser opinião de todos os entrevistados que a instituição produz resultados positivos visíveis e
palpáveis na vida das meninas.

A gente queria que as meninas fossem fotografadas quando entram no CASEF e


quando saem. Porque até a questão física é completamente diferente. O cabelo, a
pele, tudo fica diferente. E.2

Inclusive, aparentemente as discordâncias de pontos de vista são tratadas pelos


próprios participantes como parte do processo, sendo aspectos que não interfeririam na crença
de sua capacidade de ser efetivo.

[...] Às vezes a gente briga, discute uma coisa, não concorda. Tudo isso é normal,
assim. Mas (...) pensando no CASEF, dentro de uma instituição como a FASE,
dentro do que ele se propõe, eu sempre falo, eu acho que funciona muito bem. E.5

Mas a situação atual do CASEF foi conquistada a partir de transformações e esforços


neste sentido. Na concepção dos funcionários ouvidos neste estudo, estas mudanças passam
pela via da ampliação do cuidado, do olhar à subjetividade, da percepção da complexidade
que carrega consigo o adolescente que infracionou a lei.

[...] que era o antigo Santa Marta, que daí as gurias só faltavam se matar, né?!
Comiam até com as mãos, eram tipo bichos. E.8

As meninas tinham um perfil mais agressivo, talvez em função de como que


trabalharam com o indivíduo também, né? Hoje não tem espaço para elas ficarem
assim porque tem todo. Eu acho assim, as gurias são super bem acolhidas aqui
quando chegam [...]. E.3

Demonstra-se por estes trechos que as diferenças reconhecidas entre o que era e o que
é hoje o CASEF encontram-se nas relações estabelecidas entre a casa e as jovens internas.
Ademais, fica evidente a constatação da ligação existente entre o que se oferece por parte da
instituição e o comportamento das jovens, em resposta a isso. Parece ser da compreensão dos
funcionários que a agressividade e as reações mais extremas estariam relacionadas com a

109
forma como se trabalhava anteriormente. O uso do conceito de acolhimento pode demonstrar
o entendimento do papel que este momento tem na construção do processo ressocializador.
Tais noções, apesar de potencialmente óbvias, são, ao contrário, difíceis de ser vislumbradas
na prática. Como Goffman (1999, p. 40) relata, a respeito das instituições totais, muitas vezes
a unidade se vale de algo chamado pelo autor de circuito. Este seria um mecanismo que “cria
uma resposta defensiva do internado e que, depois, aceita essa resposta como alvo para seu
ataque seguinte”. Assim, “embora essa resposta expressiva de autodefesa a exigências
humilhantes ocorra nas instituições totais, a equipe diretora pode castigar diretamente os
internados por essa atividade, e citar o mau humor e a insolência como bases para outros
castigos”. Qualquer semelhança desta descrição com os estudos, mesmo atuais, das
instituições voltadas à ressocialização não é mera coincidência.
Este modelo próximo ou mesmo idêntico ao prisional parece ter sido também a
realidade da antiga unidade feminina, conforme o relato de socioeducadores que inclusive
estiveram presentes neste período. Outros profissionais, mais recentes no ingresso ao CASEF,
igualmente estão cientes dessa história e das modificações que foram sendo feitas ao longo do
tempo. A transformação parece ser uma entidade presente e viva neste local.

[...] antes do nome dessa casa, era tipo um presídio assim feminino. Só que era
com adolescente, era mais tipo um presídio. E.8

[...] as gurias tinham muito menos atividades, e não tinha aquele grupo de ingresso,
eram dois grupos homogêneos [...]. E.2

[...] tu vai pegar monitoras mais antigas – que pegaram o tempo que as gurias não
tinham: era colher de plástico, prato, caneca, tudo de plástico, então depois elas
foram mudando. E.2

As mudanças teriam relação com os preceitos que foram sendo incutidos


legislativamente como inerentes ao processo agora pedagógico e responsabilizatório. Teriam
relação com a necessidade de atividades educativas, profissionalizantes e de lazer e também
com a dignidade, a atenção aos cuidados e direitos que não devem ser suprimidos juntamente
com a restrição à liberdade. Estas reformas que culminam no modo de operar atual, são
compreendidas como fruto dos esforços coletivos, os quais incluem alguns dos entrevistados.
Sua participação revelaria e reforçaria a implicação com o trabalho, a apropriação dele e a
assunção da capacidade de ser ativo, construindo-o através das modificações propostas e
levadas a cabo na estrutura e nas relações. Estas parecem ter atingido também e, sobretudo, o
olhar voltado às jovens atendidas, que talvez tenham mesmo sido alvo da mudança

110
paradigmática, passando de “menores em situação irregular” a “sujeitos de direitos pela
peculiar condição de pessoa em desenvolvimento”.

[...] E tinha umas coisas que eu não concordava e eu sei que eu faço parte dessa
mudança entendeu? Teve uma técnica aqui que eu gostava muito [...] que ela
começou esse trabalho assim junto comigo [...], porque iniciou um grupo novo [...]
na época. E a gente começou devagarinho essa mudança e eu tenho consciência que
eu faço parte disso, sabe? [...] e foi muito legal essa mudança assim de um maior
respeito pelas meninas, de o trato, o próprio trato de tu dizer para a guria fazer
alguma coisa com educação, aprender [...]. Porque [...] se tu quer ser respeitada, tu
tem que respeitar, é esse o nosso discurso o tempo todo, então tem que ser de duas
vias, não pode ser de uma só. Como é que tu quer ter o respeito das gurias se tu não
respeita as meninas? Então isso eu acho que a gente evoluiu um monte desde que
eu entrei. E.3

[...] super fechada quando eu vim pra cá. Mas depois foi mudando [...], foi tirando
os portões, foi caindo [...], a gente foi pedindo pra tirar. E.8

Aparentemente o que ocorreu foi uma mudança que passou pela quebra da
objetalização dos jovens internos e pela co-responsabilização por parte de alguns atores, que
se engajaram em erigir novos métodos e ferramentas para transformar o que a instituição tinha
de mais rígido. As mudanças foram ficando visíveis e palpáveis não só pela troca das grades
pelas portas, mas talvez pela reserva de espaços para o exercício de escuta, diálogo, etapas
essenciais para o desenvolvimento de cidadania, valores e outras formas de se vincular. O
SINASE (BRASIL, 2006) prevê, por exemplo, a participação dos adolescentes na construção,
no monitoramento e na avaliação das ações
Socioeducativas, como uma das diretrizes pedagógicas do atendimento. Já o Programa de
Execução das Medidas Socioeducativas de Internação e Semiliberdade do RS (PEMSEIS)
(FASE-RS, 2002, p. 47)11, sustenta a necessidade de se propiciar atividades grupais dentro da
instituição, “por considerar-se a vida social cotidiana, a convivência e os relacionamentos
interpessoais como importantes conteúdos que possibilitam o desenvolvimento de vínculos
baseados na relação solidária”. Estas seriam as razões para este tipo de espaço ter sido criado
no CASEF fazendo parte do processo de reestruturação pelo qual a unidade passou. Os
chamados “grupos operativos” (G.O.) seriam momentos semanais em que as adolescentes
juntamente com os agentes tratariam de alguns assuntos relevantes na perspectiva da
instituição para as suas relações dentro da unidade.

[...] ou colocam no próprio G.O., o grupo operativo, que são elas, pra tratar
problemas em grupo da ala: „tu me disse tal dia que ia fazer isso‟ [...] E.8

11
O PEMSEIS é um documento elaborado pela FASE-RS e constitui-se em um instrumento norteador das ações
dos programas de atendimento e da prática dos profissionais da socioeducação do RS.

111
Aparentemente, nos atendimentos técnicos, mas também nestes momentos de grupo
seria possível, inclusive, tratar das relações entre internas e agentes socioeducadores.

[...] às vezes elas se queixam no atendimento técnico [do relacionamento entre elas
e agentes]: „[...] A tia me deu uma norma que eu não merecia, a tia tá pegando no
meu pé...‟ Mas se elas trabalharem no grupo [trouxerem o assunto da relação com
as agentes para o grupo operativo], a gente tá sempre dizendo que o monitor tem
que tá preparado pra ouvir o que ela tem que dizer. [...] Por que se elas vão tratar no
meu espaço [no meu plantão], querem tratar sobre fulana e a ciclana [agentes]...
não. O que a gente faz? A gente vai convidar ela pra assistir então o grupo e tu vai
colocar o que tu tem pra colocar. Se ela não tiver junto, não se coloca. [...] É que
nem uma adolescente da outra, se ela não tá, tu não vai colocar. Tu vai colocar
perante ela, por que tu tem direito de falar, mas ela tem o direito de defesa. E
também de se colocar. [E isso] Funciona tranqüilo [...]. No G.O. elas parecem
adultos falando. Elas se colocam bem, se respeitam (...). É que isso tudo é muito
trabalhado [...], levou muitos anos pra que chegasse no que tá. [...] Que a gente tem
que tá sempre mostrando que as coisas não são resolvidas no tapa toda hora. Toda
hora se agarrando, quê isso? A gente tem que ir conversando... Como vai ser na
sociedade lá fora? Tudo que não gostar vai se avançar nas pessoas? E.8

Em termos de PEMSEIS, as indicações de grupos operativos prevêem a intermediação


de técnicos da instituição e o tratamento de outras questões pertinentes, envolvendo inclusive
a família. Além disso, é possível pensar que da forma como parece ser realizado no CASEF, o
G.O. poderia cumprir funções de controle, buscando uma harmonização através da exposição
dos conflitos tirando a autonomia das jovens para eleger os momentos de tratar das questões
problemáticas. Entretanto, a despeito disso, a existência de um espaço e momento somente
para as jovens, nos quais elas têm vez e voz, já determinaria flexibilização e consideração da
subjetividade de forma muito mais ampla e efetiva do que anteriormente.
Constatando-se as especificidades que tornam esta unidade diferenciada em relação ao
seu passado, podem-se explorar quais as razões citadas que justificariam este processo.

Razões para as especificidades do CASEF


Dentre as mais apontadas, estaria a história diferenciada do CASEF, a qual teria sido
fortemente marcada por uma gerência especialmente eficiente e, na visão da maior parte dos
funcionários, competente. Esta diretora teria sido elemento crucial na instauração de
processos pedagógicos, aliando à disciplina, coerência e humanizando, ao mesmo tempo, as
relações institucionais.

[...] teve um motim aqui e as gurias demoliram tudo. Foi então quando a XXX
[referindo-se a uma antiga direção] veio pra essa casa, com a casa toda demolida
[...]. Aí elas pegaram o lixo dessa casa (...). Aí foi feito a construção, quando a

112
XXX já... [ingressou], ela já dividiu. Ela viu que do jeito que era, não dava.
Separou em grupos e já foi trabalhando [...]. E.8

[...] quando eu entrei aqui (...) as gurias brigavam todos os dias, todos! De manhã e
de tarde, tinha que conter elas [...]. E daí foi feito todo um trabalho psicológico [...],
com ajuda da equipe técnica, dos médicos, a direção muito, a XXX sempre foi
muito firme, e, bom, deixou essa casa aqui como é o que é hoje [...]. Se as gurias
hoje são assim é porque a XX [referindo-se a direção atual] mantém o mesmo
padrão da XXX. Não mudou nada assim, nem na casa, nem nada... nem mesmo nos
grupos [...]. E.8

[...] Porque é um trabalho muito antigo. A forma como se foi construindo isso e
como se foi cobrado eu acho que isso tem muito, sinceramente, o nome de uma
pessoa: na XXX. É uma diretora que a gente teve aqui e ela pegou isso aqui quando
ainda era Presídio Santa Marta, entrou aqui pra dentro e fez isso aqui – uma das
formas como ele é conhecido pros outros né – é uma casinha de boneca, é a casa da
XXX, mesmo a XXX não estando mais aqui. Porque ela tinha um olhar totalmente
diferente, inclusive com os funcionários. Muitas vezes ela era tachada de mão de
ferro, nazista, todas as palavras que se pode usar. Mas, ao mesmo tempo, ela
constituiu isso que aqui dentro é uma casa. A cobrança de respeito que se tem aqui
é de casa. Não é uma instituição. Aqui a gente não tem olhos de instituição. E aí é
que tá: a gente não tá aqui pelo dinheiro. Nem extra tem. A gente não ganha mais
pra trabalhar no CASEF. E o funcionário do CASEF trabalha muito mais que o da
casa masculina. Porque aqui, na nossa hora, a gente tá cuidando o adolescente, é
isso – teoricamente – é isso que o monitor faz: é cuidar o adolescente no horário
dele: O que que ele [o adolescente] tá fazendo, o que que ele tá falando, o que tá
assistindo? A monitora, aqui no CASE feminino, se ela tá dentro do grupo cuidando
uma menina, ela tá ensinando ponto cruz, ela tá ensinando crochê, ela tá ensinando
bordar, ela tá ensinando a cozinhar, ela tá ensinando a falar direito, a menina fazer
faxina, ela se cuidar, a pentear o cabelo... é um outro olhar. E.10

O fato de vários entrevistados citarem este episódio da história do CASEF como


determinante para seu atual estado, tido como positivamente diferenciado, demonstra que de
fato esta diretoria parece ter sido marcante. Por alguma razão, os funcionários parecem
compreender ter existido um momento anterior a esta direção, onde o funcionamento
institucional pautava-se mais por um caráter repressivo e paliativo no trato com a menina e
um momento posterior.
Além disso, também aparecem alguns dos prováveis objetivos implícitos das
atividades que são ensinadas às internas, sendo listadas basicamente atividades voltadas aos
cuidados pessoais, às habilidades manuais e à atenção ao lar. Faltariam aqui elementos de
estímulo à autonomia e à igualdade de gênero por puro acaso? São questões que não podem
ser respondidas a partir deste estudo, mas que podem e devem ser levantadas.
Outra das motivações citadas pelos entrevistados que explicariam resultados mais
eficientes desta unidade, seria o tamanho reduzido da mesma. Embora não seja uma opinião
de todo grupo, aparece como tendo um peso importante que a diferenciaria das unidades
masculinas em geral superlotadas.

113
[...] Então acho que a gente oferece muita coisa que a casa masculina não oferece. E
eles não têm condições de oferecer para um grupo muito grande, várias atividades...
não tem, é difícil. Por que teria que ter uma parceria muito grande com o... por que
é muito, é um número muito grande e isso ai também não ajuda né. [...] Quem
trabalhou aqui e depois trabalha numa casa masculina vê que na casa masculina é
muito adolescente e também ajuda que não ande né. Não vai pra frente muita coisa,
eles tentam pôr coisas, mas é difícil, é muito guri. E.8

Assim, o número elevado de adolescentes iria contra as prerrogativas legais e as


indicações teóricas para o bom andamento dos processos de ressocialização, que prevêem um
plano individual de atendimento e atenção às demandas dos jovens. Além disso, a presença de
regras claras também auxiliaria a introjeção de limites por parte dos internos, o que poderia
ser proveitoso em seu futuro reingresso social.

E aí, seguindo isso, me parece [...] que as coisas estão funcionando e funcionam.
Nós temos aqui regras escritas, definidas, que foram pensadas... E agora atualmente
até a gente tá reformulando. E.5

Porque as meninas aqui elas têm toda uma questão de normas, de regras, tem um
livro de normas. O que elas podem, o que que elas não podem, o que é certo, o que
que não é certo [...] E.10

[...] eu acho que aqui no CASEF se trabalha de uma maneira diferente, [...] a gente
tem regras muito claras, essas regras são escritas [...] nós temos assim normas
escritas e a gente segue isso, sabe? E tudo é muito conversado e discutido, a gente
tem reuniões periódicas, reuniões mensais de cada grupo onde é tratado todos os
assuntos, tipo, aconteceram coisas no grupo, a monitoria trata esses assuntos junto
com a direção e com a equipe técnica, são tratadas, existem estudos de caso
específicos de uma adolescente, por exemplo, se uma adolescente tá cheia de
problemas, tá mais complicada dentro do grupo, bom, tu estuda esse adolescente, os
técnicos fazem um acompanhamento mais intensivo, né? E. 5

Com isto, percebe-se a preocupação não só com o estabelecimento de regras que


tornem os limites entre direitos e deveres mais transparentes, mas também com a discussão
destas regras, dos casos específicos. Entra em jogo outra das características institucionais
consideradas positivas que seria a preocupação em executar as prerrogativas legisladas, tornar
as decisões coletivas, deixando margem para problematizações e resoluções individuais,
dependendo das situações enfrentadas. Assim, se poderia perceber uma linha de trabalho que
embasa esta forma da instituição funcionar. E, a partir destas bases conceituais e diretivas,
postulam-se as diferenças entre os funcionários em termos de adaptação. Alguns se sentem
plenamente confortáveis com as transformações que parecem ter se delineado ao longo do
tempo, auxiliando, inclusive, sua implantação. Outros, em contrapartida, vêem ai obstáculos
para o desempenho de seu trabalho da forma como acreditam que deveriam agir.

114
[...] muitos colegas vem de outros lugares, né, vem das casas masculinas, e não
conseguem ficar. Raríssimos são os que se adaptam [...] E.10

[...] Se todos os monitores, todos os agentes socioeducadores, tivessem o cuidado


que um agente socioeducador do case feminino, (aquele de origem assim, que eu
digo assim, aquele que tem a camisa do case feminino) tivesse, a Fundação eu acho
que ela daria um salto qualitativo, eu acho assim, de 200% [...]. E.10

Como se pode entrever por este trecho, os participantes também explicitam a crença
em sua eficácia como profissionais.

E ai aqui, eu tive exemplos de algumas monitoras mais velhas que eu te falei, essas
que estão a vinte e cinco anos, vinte anos, e que eu pude pegar assim, sabe? Que eu
pude ficar do lado e aprender realmente a trabalhar... E aí acho que agora [...] eu te
diria que eu sei trabalhar muito bem. Consigo assim pelo menos trabalhar bem [...]
E.5

[...] se o CASEF é o que ele é hoje é graças à monitoria, totalmente à monitoria [...]
As monitoras aqui tem muitas habilidades, né? Tipo eu trabalho com teatro, com
literatura porque eu gosto, e aí eu procuro sempre incentivar as meninas, tem
monitora que faz crochê, bordado, artesanato, sabe? Todo mundo aqui tem umas
habilidades e as gurias aprendem [...]. O CASEF é o que é, todo lindinho, [...]
porque a monitoria faz acontecer, a gente tem uma direção, né? Que enfim, claro
que cuida de tudo, né? E que coloca as coisas nos seus devidos lugares, mas se nós
não tivéssemos os monitores ali, né? Fazendo o trabalho, a comissão de frente
como se diz, não teria como acontecer, né? E.5

Desta forma, o senso de auto-eficácia torna-se peça fundamental para motivação no


trabalho, satisfação com os resultados, vontade de investir energia e atenção no desempenho
de suas funções. É fácil inferir que a concepção de que se é bom no que faz e se sabe fazer
bem determinado trabalho leve a resultados realmente positivos e maior investimento no
ambiente laboral. Justaposto a estes elementos, fica evidente a relação de investimento
também no que tange à instituição. Os participantes demonstram não só sentirem-se bons
profissionais, como também sentirem que seu local de trabalho é exatamente onde desejariam
estar.

Quando eu me formei em pedagogia eu já tava aqui, as pessoas diziam pra mim


assim: “Tá, e que tu vai fazer, aonde é que tu vai trabalhar?”– “Aqui”. Por quê as
pessoas tem essa implicância com a FASE? alguém tem que tratar de fazer esse
serviço. [...] Não vou pra lugar nenhum vou ficar bem aqui onde eu tô, eu gosto
muito desse trabalho. E.2

Eu acho [...] que nosso trabalho aqui tem qualidade e eu me sinto orgulhosa disso
porque eu tenho consciência que eu tenho a minha parcela de contribuição nisso
[...]. [...] e eu me identifiquei muito com o trabalho, eu gosto de trabalhar aqui,

115
estou aqui há tanto tempo já. [...] eu acho o nosso trabalho... eu sou apaixonada, tu
pode ver que eu falo com paixão né, eu acho muito bom o nosso trabalho [...]. E.3

[...] eu acho que o trabalho daqui, não é porque eu trabalho aqui, mas ele realmente
é um trabalho muito bonito, eu percebo assim muito, eu percebo a dedicação das
colegas [...] E.6

Nota-se que os participantes crêem também na eficácia da instituição, sentindo, de


alguma forma, que são especiais como trabalhadores e que podem dar uma contribuição
importante. Aparentemente percebem que seu trabalho tem valor e que sua presença na
unidade pode fazer a diferença12. Expressam isso através de exemplos de seu
comprometimento, satisfação, paixão, dedicação.
Entretanto, o fato destacado com maior ênfase pelos entrevistados para a diferenciação
da casa em relação às demais unidades seria a especificidade do público atendido, o feminino.

[...] Eu acho que é questão de gênero também, pelas nossas questões culturais,
entendeu? O menino não chora, a menina chora. Mesmo que a gente tenha meninas
aqui que não chorem. Entende? Então, a gente vai aceitar de alguma forma que a
menina se fragiliza, que elas façam um banzé, que não sei o que, por coisas
mínimas, a gente aceita isso. Um menino, tu não vai...: “pára de te fresquear!” e é
isso, sabe?! Não é dada aquele espaço todo. O CASEF tem essa coisa assim da
mulher, a questão da beleza, de cuidar de si. O olhar que a gente dá pra essa menina
de quando ela chega, a questão estética dela, é muito forte. A menina, em uma
semana que ta aqui, é outra menina. Outra menina! Porque ela já ta com material de
risco então ela já fez sobrancelha, ela já cortou as unhas, se tinha piolho já não ta
mais com piolho, já passei um lenço, ela já ta com uma roupa limpa, asseada,
costurada e [...] E.10

[...] eu acho que o monitor homem, a casa masculina, ela tem um outro olhar pro
adolescente totalmente diferente porque ele é menino. Porque aqui ainda tem a
questão assim ó: a menina é – como é que eu vou dizer assim – ela é frágil da
sociedade. A mulher ainda tem aquele espaço de doçura, de aceite, ela é a mazela,
sabe? Aquilo aconteceu com ela porque ela é a coitadinha [...] E.10

O que parece estar sendo admitido aqui seria a diferenciação cultural feita entre
meninos e meninas que traz implicações, inevitavelmente, ao atendimento em instituições
voltadas ao masculino e ao feminino. Parecem concordar com a ideia de que existiria uma
tendência a vislumbrar a mulher como sexo frágil, vitimizada pelas circunstâncias, carente de
cuidados, doce, entre outros adjetivos. Assim, são evidenciados resultados diferenciados com

12
É importante ressaltar que estes argumentos parecem, a princípio, contraditórios com o que foi abordado no
primeiro artigo, apresentado no capítulo 3. Entretanto, destaca-se que as primeiras impressões e o choque inicial
que forjaram uma imagem da instituição como prioritariamente de caráter repressivo e pouco convidativa
transforma-se, juntamente com a história da casa. Os funcionários que se adaptaram passaram por mudanças que
deixaram paulatinamente o afeto influir na experiência de institucionalização. Ademais, o CASEF parece sempre
ser lembrado como uma unidade diferenciada.

116
meninas, mas também são admitidos investimentos diferenciados entre os dois públicos que
poderiam ajudar a explicá-los.

[...] até que as meninas dão tanto retorno assim,eu acho que elas dão muito mais
retorno que os guris. ...melhoram muito mais do que eles... Elas podem não ficar,
né, 100% que nem a gente diz, mas elas melhoram muito mais.. aprendem coisas,
crescem muito mais que os guris.. eu não trabalharia com guri hoje, nunca mais [...]
E.2

[...] não sei... as gurias, acho que a guria [se recupera em maior número] pelo fato,
sei lá por que é mulher, acho que se ela formar a personalidade, ela vai embora né.
O guri ele volta muito pelo meio, ele não consegue se desprender muito do grupo
de amigos, aquela coisa assim. Então é bem complicado, por que com as gurias a
gente consegue muito até com que os familiares se mudem de cidade, de lugar, pra
ajudar... né. E os guris, com o tempo que eu tava na casa dos guris, eu me lembro
que, dois ou três casos assim só, o familiar se mudou. A maioria o familiar não quer
sair, acham que ele que tem que mudar, não sei o que. Eles voltam pra lá e voltam
de novo e infringir né, os guris no grupo é muito mais difícil [...] E.8

Como se pode perceber, também existem pontos de vistas que localizam na diferença
de gênero, de influência por parte do meio, de capacidade dos familiares implicarem-se no
processo ressocializatório do jovem as razões para resultados diferentes e melhores em
unidades femininas como o CASEF.

Mas existem ainda outros elementos considerados característicos do gênero feminino


que facilitariam a socioeducação em seu caso, dando-lhes vantagens com relação ao sexo
masculino. Estariam no fato de se conectar a capacidade afetiva ao feminino; a passividade
que intimida menos os educadores, facilita a aproximação e a aceitação e introjeção de regras;
o menor envolvimento com a vida do crime;

[...] tem diferença é uma coisa muito próxima de se relacionar com ela, da
afetividade. [...] essa coisa do abraço, as gurias vêm, abraçam, dão beijo e sabe? Da
afetividade eu acho que é básica assim que é bem diferente de como se lida com os
meninos, com os meninos não dá, não daria entendeu? E.3

[...] eu acho que com a menina ela é mais cobrada, assim né, quanto a higiene,
limpeza, educação, é feito uma rotina de trabalho... isso sim. E nos guris isso não se
percebe essa rotina de trabalho é muito mais... a guria aceita, é mais fácil de tu
impor essa rotina de trabalho pra guria do que pra guri. E.8

Agora é muito comum a adolescente ter se envolvido no delito em função do


namorado. Ou estava junto, ou acompanhou, ou foi ela quem ligou, ou entrou no
presídio com droga, sabe? Sempre tu vai ver... tem um homem [...] E.1

117
A partir destes apontamentos e crenças, pode-se inferir facilmente que existiriam
razões para se crer que os investimentos podem ser maiores quando se trata de uma instituição
feminina. E, em havendo maior investimento, menos medo e preconceito, maior crença na
possibilidade de ressocialização da menina, automaticamente a adolescente perceberia tais
concepções e poderia responder a elas positivamente.

5.4. CONCLUSÕES

Soluções rápidas e mágicas, bem se sabe, não podem ser esperadas no enfrentamento
dos paradigmas persistentemente violadores dos direitos básicos dos seres humanos. A
transposição de leis e palavras expressas em folhas de papel para a prática e o cotidiano de
ações das pessoas exige não só tempo, mas esforço, vontade, conhecimento, coragem, e
também capacidade de reconhecimento dos paulatinos e vagarosos avanços em direção às
mudanças sonhadas. Se poderia pensar esta discussão como parte de uma estratégia de defesa
e mascaramento de pontos perversos e ainda distantes das prerrogativas legais do sistema.
Porém, o objetivo foi simplesmente dar espaço às crenças que enfatizam aspectos pouco
abordados atualmente, aqueles que valorizam o trabalho feito nas instituições, que o
defendem por vê-lo como pleno de qualidade e que advém de atores implicados no dia-a-dia
dos processos de ressocialização.
Os agentes socioeducadores do Centro de Atendimento Socioeducativo Feminino
entendem que trabalham em um local diferenciado, tanto em relação a outras unidades –
principalmente às masculinas – quanto em comparação a seu passado. Descrevem sua
trajetória a partir das transformações ocorridas. Estas são elencadas tanto no que tange ao
antigo comportamento das adolescentes, visto como mais agressivo e carente de continência
física do que atualmente, quanto em relação às próprias intervenções institucionais. Existiria a
compreensão, por parte dos funcionários, de que a forma como acolhem e assistem às
adolescentes hoje influenciaria suas reações, menos extremadas e mais conformes às regras.
Os participantes também explicitam uma visão educacional que abarca afetividade e vínculo
com as jovens, muito mais do que no passado, embora coabitem concepções contrárias a este
ponto de vista no CASEF.
Entretanto, o que não é passível de contradição seria a crença de que o atendimento à
menina institucionalizada prevê cuidados com sua saúde, educação, entre outras demandas
que fazem parte de seus direitos e que de fato parecem provocar mudanças em seu aspecto

118
logo após seu ingresso na instituição. Estas seriam em nível físico, mas também
subjetivamente. Tais constatações inequívocas ajudam a causar nos trabalhadores a sensação
de tarefa bem desempenhada, reforçando sua crença de auto-eficácia.
Uma das razões apontadas para a diferenciação existente no CASEF seria a existência
no passado de uma gestão marcante, notadamente preocupada com a instauração de valores
menos repressivo-punitivos e atentos à educação pelo exemplo. Por conta disso, até hoje a
instituição leva o apelido de “casa de bonecas”, por ter se destacado em determinado
momento, pela sua aparência de “casa” e também pela visão que compreendia de certa forma
as meninas atendidas (e talvez também os funcionários – predominantemente do sexo
feminino) como próximas à imagem de “bonecas”. Assim como se pode discutir as questões
de gênero implícitas nesse apelido, aqui apenas se pode destacar o incremento de qualidade no
atendimento a partir desta gestão específica. Entende-se inclusive que até hoje esta marca
permanece nas demais gestões, tendo sido este período um divisor de águas que delimitou
uma linha de trabalho até hoje vista como eficiente.
Outras razões que explicariam os resultados do CASEF seriam o tamanho menor da
unidade, a preocupação em seguir as normativas legais, compreendendo a importância de se
basear as relações em respeito e democracia e também as especificidades do gênero feminino,
a partir da ótica destes trabalhadores. Para eles, as meninas seriam menos violentas, mais
passivas e capazes de corresponder e aceitar as regras, limites e atividades propostas, seriam
vistas como mais frágeis, sendo, portanto, compreendidas suas necessidades afetivas e
previstas formas de atende-las e também como menos comprometidas com a vida do crime.
Muitos foram os relatos que vêem conexão entre o ato infracional das adolescentes com suas
relações amorosas com meninas, estes sim comprometidos com atos ilícitos. Por estas
concepções, haveria talvez maior investimento e expectativas mais positivas com relação às
adolescentes. Neste contexto, é impossível e desnecessário buscar o que viria primeiro, o que
provocaria qual reação. Nota-se que são processos simultâneos que retroalimentam o sistema
que toma corpo dentro desta instituição. As meninas sentem o olhar voltado a elas como
investido de afeto e expectativas, que lhes passam a mensagem de que elas possuem
capacidades e valor. Por outro lado, correspondendo positivamente a estes olhares, reforçam
os mesmos, pois preenchem a lista de casos bem sucedidos que motivam os trabalhadores a
continuar investindo e acreditando.
Da mesma forma que se sabe que uma profecia pode se autocumprir quando prevê
resultados negativos por parte de um sujeito, também pode vir a ocorrer quando as previsões
são positivas. Assim, este trabalho pode servir para desmistificar a visão de ambientes

119
institucionais de privação de liberdade como necessariamente contraditórios e falidos. A
socioeducação deve prever investimentos nas quatro dimensões constitutivas dos sujeitos
adolescentes, quais sejam: dimensão da razão, dos sentimentos, da corporeidade e da
espiritualidade. Igualmente, parece que esta pesquisa traz à tona pistas indicando que os tão
ansiados reordenamentos institucionais talvez passem pela mesma consideração com relação
aos sujeitos educadores. Levar em conta todas as suas dimensões nos processos de
capacitação e de aquisição de conhecimento pode influir em suas práticas e estas
automaticamente influenciarão nos processos ressocializadores eficazes, eficientes e efetivos.

5.5. REFERÊNCIAS

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Perspectiva de jovens do Rio de Janeiro e seus familiares. Rio de Janeiro, 2002.

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120
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Programa de Execução de Medidas Socioeducativas de Internação e Semiliberdade –
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institucionalização na reconstrução do projeto de vida do adolescente. Psico, 42(2), 220-227,
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121
CAPÍTULO 6
CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste percurso teórico e esforço científico, ocorreram diversas


constatações, algumas mais outras menos surpreendentes. Percebe-se que a vivência das
medidas socioeducativas na prática é influenciada pelas relações que são construídas
nestes contextos. Estas trocas entre trabalhadores e internas, por sua vez, dependem em
grande parte das representações que os primeiros possuem de três aspectos,
primordialmente: das adolescentes que apresentam comportamento delinquente; das
instituições que as atendem e das funções que socioeducadores executam. Dependendo
de quais são suas percepções, tendem a facilitar ou, por outro lado, servir de obstáculos
às potencialidades desenvolvimentais das jovens.
Os conceitos, crenças, opiniões, bem se sabe, são construídos ao longo da
trajetória profissional destes atores, mais do que a partir de capacitações e aprendizados
teóricos. Os sujeitos e suas expectativas com relação à socioeducação passam de uma
posição exterior (comum à sociedade civil) à uma posição desde o interior das unidades,
a partir de vivências nas mesmas. A experiência dentro de tais locus específicos poderia
prejudicar ou auxiliar a construção de representações mais ou menos positivas sobre a
institucionalização e processos ressocializadores. É isso que se quis investigar.
Primeiro, o impacto desta mudança de posição, partindo de um lugar de cidadão
comum, alheio às ações governamentais frente à infração da lei, para outro de membro
organizacional, responsável e ativo nestas intervenções.
O impacto com a realidade das instituições é interessante, pois dimensiona a
transformação de paradigmas. O que muda nesta visão é interessante de ser conhecido,
pois também pode ser aproximado às mudanças que se dão para os jovens que se tornam
institucionalizados. Antes, pertenciam a um mundo exterior, depois, passam a pertencer
a outro mundo, desempenhando outros papéis. Ambos os grupos (equipe de
funcionários e internos) ingressam na instituição e sentem o peso de seus mecanismos.
Ouvir o adolescente sobre esse ingresso é tarefa importante e pode-se dizer que vem
sendo realizada. Ouvir o agente sobre o mesmo processo não é algo tão comum. Ambos
sentem o estranhamente deste período, pois são “novatos” e têm de aprender a
compreender as normas institucionais. Podem optar, ambos, por aceitá-las ou combatê-
las. Neste último caso, sofrerão as conseqüências.

122
Outro ponto importante diz respeito às representações profissionais sobre suas
funções neste contexto. O que acham que devem fazer? Como fazer? O que seria
importante para poder alcançar tais metas? Os resultados indicam que percebem a
ampliação das tarefas abarcadas por sua classe. A mudança de nomenclatura
evidenciaria as transformações nos conceitos teóricos e pilares sustentadores do que
passa a ser uma função pedagógica. Portanto, compreendem que devem buscar educar
as jovens internas, mais do que mantê-las sob controle, minimizar riscos, garantir a
segurança e punir comportamentos desajustados. Em suas concepções, notam a
evolução pela qual a unidade passou. Entendem que a atenção aos processos de
acolhimento das internas recém chegadas, o cuidado com suas dimensões emocionais,
afetivas, os investimentos no vínculo relacional e a firmeza na postulação de regras e
cobrança das mesmas seriam as chaves para os processos eficientes alcançados.
Revelam ainda compreender a importância do manejo verbal, da escuta, do
encaminhamento da demanda percebida, do trabalho de baixar ansiedades, de
demonstrar a relevância de se aproveitar o período de cumprimento da medida
socioeducativa para refletir, desnaturalizar seus atos, procurar novos sentidos e aceitar
novos valores.
Não por acaso, comparam sua tarefa à de mães e pais, demarcando a noção de
que se deve buscar equilíbrio entre disciplina e afeto, a imposição de regras e a
explicitação das razões pelas quais seria importante cumpri-las, deixando claro que a
relação que se estabelece é com um sujeito singular e não com um objeto, passível de
mortificação e homogeneização. Além disso, dentro de uma relação de respeito, cuidado
e educação, compreende-se que seriam criadas as motivações para a adolescente desejar
mudar seu comportamento e aprender novas formas de se relacionar, tanto com os
outros, quanto consigo mesmo. Intuitivamente, os entrevistados parecem saber que a
educação se daria prioritariamente através do exemplo, da coerência entre o que se faz e
o que se fala. Este tipo de entendimento abre espaço para a consciência das implicações
do comportamento do profissional nas atitudes das jovens.
Por outro lado, existiriam opiniões que servem de contraponto, explicitando
resistências ao entendimento de que atualmente a instituição apresentaria melhores
resultados e que para educar é preciso restringir mais do que faz a unidade o
atendimento às demandas das adolescentes. Entretanto, alguns atores vêem tais crenças
como fruto de mecanismos defensivos, compreensíveis pela complexidade inerente às
tarefas do socioeducador.

123
Um dos elementos bastante significativos pontuados nos discurso dos
participantes foi a crença em especificidades do CASEF que o destacariam e fariam dele
uma unidade com resultados mais eficientes em comparação com unidades masculinas e
com seu próprio histórico. Os profissionais delimitaram um momento marcante, que
ajudaria a explicar tais diferenças. Devido a uma gestão, majoritariamente percebida
como um divisor de águas, a casa hoje teria um perfil mais comprometido com o
trabalho de ressocialização. Tendo recebido o apelido de “casa de bonecas”, seria
exemplo de funcionamento condizente com as normativas legais, afastando-se da
imagem de instituição fechada e autoritária e enfatizando as relações pautadas na
garantia e promoção de direitos humanos.
Percebe-se que os socioeducadores foram se adaptando, aprendendo com os
colegas mais experientes a trabalhar e desempenhar suas funções. Ao não concordarem
com o modo de funcionar institucional no passado, somaram esforços para fazer
modificações paulatinas. Por se tratar de uma unidade pequena, que compartilha uma
visão do gênero feminino dotada de valor e alvo da possibilidade de investimentos
(tanto afetivos quanto de ordem mais objetiva), o CASEF parece ter, de fato, se tornado
uma instituição pode satisfazer seus funcionários. Existe a crença na eficácia
institucional, assim como na eficácia profissional. Os entrevistados em geral mostraram
sentir-se suficientemente bons desempenhando suas tarefas e acreditar saber fazer o que
devem fazer. Tais variáveis podem auxiliar a compreensão das razões pelas quais outros
estudos apontaram a unidade também como diferenciada, fazendo menção às melhorias
implementadas neste local.
Assim, as transformações pelas quais a infância e a adolescência passaram em
termos da ótica sob a qual vem sendo analisadas e atendidas ao longo do tempo,
passando de alvos de uma Doutrina da Situação Irregular para outra da Proteção Integral
talvez também sirva para se pensar nas modificações sofridas pelas e nas instituições.
Ainda hoje se percebem elementos que remetem aos antigos paradigmas, entretanto as
instituições já não são iguais, não são as mesmas se comparadas há outras de 10 anos
atrás.
A complexidade da questão da infração juvenil demarcada fortemente pelos
estudos e pesquisas atuais também deve ser apontada no que tange ao funcionamento
dos sistemas institucionais. Como em qualquer sujeito, também nos socioeducadores
coexistem razões e motivações que os levam ora a infringir as barreiras dos direitos
daqueles que atendem, assim como a proteger e garantir que sejam respeitados e bem

124
assistidos. Negligenciar a complexidade humana e as contradições inerentes a qualquer
indivíduo apenas faz distorcer ou simplificar as discussões que devem ser rotineiras em
se tratando dos esforços por reordenamentos.
Esta dissertação pode servir para demonstrar os movimentos em direção a
mudanças ocorridos ao longo da história da instituição. Muitas vezes os participantes
pontuaram as diferenças existentes entre as formas de agir e se relacionar institucionais
no passado e na atualidade. Pontuaram seu papel e o esforço coletivo realizado em favor
destas modificações, que visavam “retirar as grades”, tanto objetiva quanto
metaforicamente. Os socioeducadores, antes monitores, compreendem que fazem parte
destes processos que ocorreram e vêem estas novas maneiras de funcionar como mais
positivas e benéficas a todos. Incluem como técnicas e métodos de trabalho o vínculo, o
espaço democrático, a escuta, os cuidados com a autoestima, a atenção às necessidades
emocionais e pessoais, de beleza e de aquisição de novos valores, limites, sentidos. Esta
compreensão denota mudanças na visão da adolescente, conscientes até mesmo para os
socioeducadores. Talvez essa ampliação de sua função, agora capaz de abarcar aspectos
menos tangíveis e repressivos e mais pedagógicos e éticos seja a concretização visível
das reformas teóricas e legisladas nos papéis dos documentos e normas. Cabe aqui
também levantar a hipótese de que sejam apenas blefes ou discursos progressistas, não
sustentados por práticas igualmente modernas em termos de direitos humanos. Mas há
que se deixar margem para a confiança e se confiar no que se viu para além das falas.
Nada permanece estático. Isto também conta a favor do que relataram estes
profissionais. E eles relataram especialmente o que crêem torná-los diferentes.
Surpreendentemente, talvez, estes funcionários estão majoritariamente satisfeitos.
Encontraram modos de se adaptar – concomitantes às suas investidas por
transformações – e hoje acham-se identificados com o público que atendem, com suas
tarefas amplas (comparadas às de mães e pais) e com o local onde trabalham.
Entendem-se cruciais para o bom andamento institucional e para os processos de
ressocialização. Vêem-se como profissionais que sabem desempenhar bem suas funções
e vêem as meninas como jovens com mais ou menos potencial, mas depositárias de um
futuro merecedor de seus investimentos. Colocam-se disponíveis à escuta, ao
atendimento às demandas, ao papel de “carrascos” que não raro, pela primeira vez,
sujeitam limitações às vontades de satisfação plena das jovens. Não se importam em ser
portadores da violência fundamental tardia, muito embora exista uma fronteira tênue
entre o desempenho desse papel por compromisso com o progresso das adolescentes ou

125
por simples vontade de controle e crença na repressão como mecanismo de inibição de
comportamentos indesejáveis. Em realidade, é difícil crer que se possa fazer tal
separação das motivações humanas. Mas deve-se aos socioeducadores o olhar que os vê
a partir de seus esforços e vínculos reais.
De qualquer forma, pode-se refletir no fato de que todos nós estamos presos,
mais ou menos fortemente, à pré-concepções, crenças, imagens distorcidas por
conhecimentos parciais, que determinam classes de coisas do mundo vistas por nós
como mais ou menos importantes, superiores ou inferiores, boas ou más. Evidentemente
sujeitos, classes, setores, locais entram no rol de nosso sistema classificatório. Por outro
lado, inconscientes, na maior parte das vezes, desta forma de funcionar, nos tornamos
reféns de nossa ignorância e incapacidade de comportar as incoerências da vida e dos
homens em um mesmo ponto. Eis as razões que nos fazem acreditar e sustentar
processos de exclusão, separação, estigmatização. E também aí se localizam as
explicações para nossa ânsia pela compreensão do mundo, que nos impulsiona a
descobrir o que não sabemos, a reconhecer nossa incompletude e desconhecimento.
Este estudo não fala somente de instituições, nem só de trabalhadores e suas
concepções. Fala, sobretudo, da parcialidade com que encaramos o que nos rodeia,
incapazes de ampliar o olhar a ponto de compreender o outro como espelho de nós, a
violência do outro, a limitação do outro e a ignorância do outro como as nossas próprias
marcas de humanidade. Também fala da beleza e complexidade encontradas na relação
mais difícil e na mais harmoniosa, pois se pode pensar que toda relação é expressão da
tentativa mais nobre de se comunicar e entender.
As conclusões a que se chega, apesar de bastante específicas, surpreendentes e
interessantes, não podem ser totalmente distanciadas ou diferenciadas dos pontos que
serviram de partida. O que se almejava ao iniciar o estudo era o encontro com a
verdade, com um ou mais fatos esclarecedores sobre as razões que levam o humano a se
comportar com empatia ou indiferença na presença do outro, principalmente quando
está imbuído de poder para agir conforme desejar. Buscava-se, no fundo, algo que
confirmasse a ideia de que sempre há razões, motivos, explicações que nos aquietem
quanto à nossa humanidade e boa vontade primordiais. Não se sabe se porque se
esperava encontrar tais elementos ou porque sempre se encontram tais elementos, foram
estes os achados.

126
As verdadeiras e mais rígidas prisões a ser transformadas estão em nosso modo
de pensar e agir. Todos somos prisioneiros e os liames dos estigmas e preconceitos
prendem com mais eficiência do que grades e portões. Não é por acaso que se diz que
grades não prendem pensamentos. Nem pensamentos estão realmente livres apenas
porque não existem grades visíveis. Da mesma forma, até o mais vil dos homens é
capaz de ser bom para consigo mesmo, sempre existindo o desejo de ser livre. Por isso,
também é verdade que todos somos potencialmente livres. É sempre possível quebrar as
próprias correntes. E eis a contribuição almejada a partir deste estudo.

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