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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Linha de Pesquisa: EDUCAÇÃO, CONSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS E
PRÁTICAS EDUCATIVAS
GRUPO DE ESTUDOS DA COMPLEXIDADE
MARIA JOSE RIBEIRO DE SÁ

NA ESCOLA DA FLORESTA: PEDAGOGIAS TENTEHAR

NATAL/RN
2021
Revisão
Fagner França

Capa e Imagens
Wanessa Ribeiro Ferreira
Janaína Almeida Aquino

Projeto Gráfico da Capa


Patrícia Régia Nicácio Freire

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN


Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Moacyr de Góes - CE

Sá, Maria José Ribeiro de.


Na escola da floresta: pedagogias Tentehar / Maria José Ribeiro de sá. - Natal, 2021.
204 f.: il.

Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Educação, Programa


de Pós-Graduação em Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida.

1. Educação - Tese. 2. Complexidade - Tese. 3. Memórias Ancestrais - Tese. 4. Povo


Tentehar - Tese. I. Almeida, Maria da Conceição Xavier de. II. Título.

RN/UF/BS/CE CDU 376-054.57(=1-82)

Elaborado por Rita de Cássia Pereira de Araújo - CRB-804/15


MARIA JOSE RIBEIRO DE SÁ

NA ESCOLA DA FLORESTA: PEDAGOGIAS TENTEHAR

Tese apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Educação, da
Universidade Federal do Rio Grande
do Norte para fins de obtenção do
título de Doutora em Educação.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria da


Conceição de Almeida.

NATAL/RN
2021
MARIA JOSÉ RIBEIRO DE SÁ

NA ESCOLA DA FLORESTA: PEGAGOGIAS TENTEHAR

Tese apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Educação, da
Universidade Federal do Rio Grande
do Norte para fins para obtenção do
título de Doutora em Educação.

Aprovada em: ____ /____/____

BANCA EXAMINADORA

______________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria da Conceição de Almeida
Orientadora
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

______________________________________
Prof. Dr.ª Josineide Silveira de Oliveira
Examinador Interno
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

_________________________________________________
Prof. Dr. Walter Pinheiro Barbosa Júnior
Examinador Interno
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

______________________________________
Prof. Dr. Carlos Aldemir Farias
Examinador Externo
Universidade Federal do Pará

______________________________________
Prof. Dr. Daniel Monteiro Costa
Examinador Externo
Instituto UK’A – Casa dos Saberes Ancestrais

______________________________________________
Prof. Dr.ª Eugênia Maria Dantas – Examinadora Suplente Interna
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

_______________________________________________________
Profª. Drª. Patrícia Limaverde Nascimento
Examinadora Suplente Externa
Universidade do Estado do Ceará
DEDICATÓRIA

Aos guerreiros e resistentes povos indígenas,


em especial aos Tentehar.

Aos meus pais (in memorian) atiçadores do


fogo da justiça e do bem comum na minha
formação.

À querida professora Marta Maria Pernambuco


(in memorian).
AGRADECIMENTOS

Conta uma das narrativas tentehar que há muito, muito tempo não
havia separação entre o céu e a terra. Certo dia, os pássaros se reuniram
e decidiram levantar o céu para que ficasse mais longe do chão. Então,
todos juntos levaram o céu lá para cima. A narrativa nos faz lembrar que
na vida ninguém se levanta ou se constrói só. No caminho do viver, muitas
pessoas se tornam pedras fundamentais, “pois se vi mais longe foi por estar
sobre os ombros de gigantes”. A frase célebre de Isaac Newton nos remete
à importância da gratidão, de reconhecer as pessoas que nos cederam suas
asas para nos ensinar a chegar mais perto das estrelas.
O meu sentimento de gratidão à grande e inesquecível professora
Marta Maria Castanho Pernambuco, por ter acolhido uma estrangeira de
terras maranhenses no tão bem conceituado Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Essa
inesquecível paulista de alma nordestina transformou um sonho em
realidade para mim. Como grande educadora foi acolhedora e, logo após
minha chegada em Natal, já se preocupou em me ajudar nos trâmites
burocráticos para conseguir a bolsa de doutorado pelo Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Agradeço, portanto, a
confiança de Marta e ao CNPq pela concessão da bolsa de estudos.
A Conceição, agradeço a oportunidade de ser sua aluna, ouvir seus
relatos e suas indicações de leituras e filmes. Me nutrir com tamanha
sabedoria e experiência foi sem sombra de dúvidas um dos maiores
presentes recebidos por mim nos últimos anos. Quando ela fala encanta e
nos faz viajar por lugares jamais imaginados. Minha eterna gratidão a essa
grande cientista das ciências da complexidade.
No Grupo de Estudos da Complexidade – Grecom, ninguém voa
sozinho. Sob o signo da amizade, o conhecimento é de fato tecido em
conjunto e alicerçado com parcerias intelectuais de profissionais de
diferentes áreas. Assim, também foram muito valiosas as contribuições das
professoras Josineide Silveira de Oliveira e Maria Eugênia Duarte, duas
mulheres competentíssimas com quem pude aprender em diferentes
vivências no GRECOM. Desde já agradeço imensamente às duas professoras
bem como ao professor Walter Pinheiro Barbosa Júnior, por ter aceitado
gentilmente compor a banca de examinadores internos.
Agradeço ao professor Carlos Aldemir pela preocupação e carinho
demonstrados ao me sugerir leituras significativas no Seminário de
Formação Doutoral e por ter aceitado compor a banca examinadora do
trabalho. Estendo meus agradecimentos ao professor e escritor indígena
Daniel Munduruku. Sinto-me muito honrada por tê-lo como um dos
arguidores da tese.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande Norte pela oportunidade em cursar o
doutorado, como também à coordenação e secretaria do Programa pela
dedicação constante para o êxito da nossa formação.
Agradeço ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Maranhão/Campus Imperatriz pela dispensa para cursar o doutorado.
Aos amigos da Aldeia Juçaral, agradeço. Em especial, os professores
Antônio Gomes Guajajara e José Amorim Filho Guajajara pela confiança e
parceria ao longo dos anos, pois sem a colaboração de vocês o trabalho não
estaria como se apresenta.
Aos amigos do GEPEM e GRECOM, em especial Cadu Araújo, Felinto
Gadelha, Gustavo Alencar, Helry, Manoel Romão, Jeane Lopes, Umberto e
Tatiane, que dividiram momentos de aprendizagens em congressos, aulas
e leituras aos sábados, além dos bons bate-papos e das boas risadas
regadas a feijoadas e churrasquinhos. Minha eterna gratidão pelo
companheirismo de todos.
Aos amigos do trabalho, em especial a professora Daniela de Sousa
Cortez e o professor Rivelino Cunha Vilela. Obrigada pelo carinho e
companheirismo em dividir comigo trajetórias de aprendizados na educação
pública brasileira. Certamente, o incentivo e a parceria de vocês nos últimos
dez anos foi um divisor de águas para a minha formação.
Aos bolsistas de extensão e pesquisa do curso de Licenciatura em
Física e Ciência da Computação do IFMA, em especial Janaína Almeida
Aquino, que de bolsista em 2013 se transformou na minha companheira de
idas para aldeia até recentemente. Obrigada por seu amor e sintonia com
o mundo indígena. A Wallace Castro da Silva e Diego Borges da Silva pelo
empenho em fazer acontecer o projeto de documentação do ritual da
menina-moça mesmo na minha ausência.
Agradeço o carinho e disponibilidade de Fagner França em fazer a
revisão do texto e a Mônica Reis por ter aceitado normalizá-lo.
Agradeço a dona Cleide Pereira Marinho e sua família pela acolhida
maternal em todos esses anos de andanças para a aldeia Juçaral.
Um agradecimento especial para minha família, meus queridos filhos
e meu companheiro pelo incentivo e compreensão nas minhas ausências
em função da vida acadêmica. Também aos meus irmãos, em especial a
irmã Luzia por ser uma grande árvore em minha vida.
Ensinarão vocês às suas crianças o que ensinamos às
nossas? Que a terra é nossa mãe? O que acontece à terra
acontece a todos os filhos da terra. (Chefe Seattle,
1852).
RESUMO

As monoculturas da mente vêm a cada dia destruindo a floresta e a


sociobiodiversidade existente em muitas terras indígenas brasileiras.
Vivendo em um estado de violência física e simbólica se encontram os
Tentehar (Guajajara) da área indígena Arariboia no estado do
Maranhão/Brasil. Um dos maiores desafios desse povo atualmente é manter
o restante da floresta em pé. Ultrapassar a uniformidade do saber e poder
instalados é fundamental para a diversidade biocultural da Arariboia
continuar existindo. Por isso, neste estudo me propus a descrever sobre
saberes, narrativas míticas e celebrações rituais do universo cultural
Tentehar, sobre as memórias ancestrais vividas no quintal dos moradores
da Aldeia Juçaral e/ou em narrativas dos heróis Maíra, dos rituais da
menina-moça, do mel e dos rapazes. Em tais histórias identificamos
pedagogias do bem viver, da resistência, do cuidado com a vida, da cura e
da celebração da diversidade florestal. São pedagogias que nos ensinam a
cuidar de todos os seres e agradecer pela diversidade existente. Hoje,
conscientes que os seus saberes e educação ancestrais são fontes de
riquezas e alternativas para as futuras gerações este povo mantêm o
combate resistente contra a produção social da escassez e da pobreza
instalada no seu território. Aprender com quem nos ensinou ancestralmente
a viver em meio a biodiversidade é fundamental para ultrapassar
monoculturas mentais instaladas pelo modo de vida capitalista.

PALAVRAS-CHAVE: Educação. Complexidade. Memórias ancestrais. Povo


Tentehar.
ABSTRACT

Monocultures of the mind are destroying the forest and the existing
sociobiodiversity in many Brazilian indigenous lands. Living in a state of
physical and symbolic violence are the Tentehar (Guajajara) of the Arariboia
indigenous area in the state of Maranhão/Brazil. One of the greatest
challenges of these people today is to keep the rest of the forest standing.
Overcoming the uniformity of knowledge and installed power is fundamental
for the Arariboia's biocultural diversity to continue to exist. For this reason,
in this study I proposed to describe about knowledge, mythical narratives
and ritual celebrations of the cultural universe tentehar, about the ancestral
memories lived in the backyard of the inhabitants of Juçaral Village and/or
in narratives of the Maíra heroes, the rituals of the girl young woman, the
honey and the boys. In these stories we identify pedagogies of good living,
resistance, care for life, healing and the celebration of forest diversity. They
are pedagogies that teach us to take care of all beings and to thank for the
existing diversity. Today, aware that their ancestral knowledge and
education are sources of wealth and alternatives for future generations,
these people maintain the resistant fight against sources of scarcity and
poverty installed in their territory. Learning from those who taught us
ancestrally to live in the midst of biodiversity is fundamental to overcome
mental monocultures installed by the capitalist way of life.

Keywords: Education. Complexity. Ancestral memories. People Tentehar.


RÉSUMÉ

Des monocultures de l'esprit viennent chaque jour détruisant la forêt


et la socio-biodiversité existant dans de nombreuses terres indigènes
brésiliennes. Vivant dans un état de violence physique et symbolique sont
les Tentehar (Guajajara) de la zone indigène Arariboia dans l'état de
Maranhão / Brésil. L'un des plus grands défis pour ces personnes
aujourd'hui est de maintenir le reste de la forêt sur pied. Surmonter
l'uniformité des connaissances et du pouvoir installés est fondamental pour
que la diversité bioculturelle d'Arariboia continue d'exister. Pour cette
raison, dans cette étude j'ai entrepris de décrire les connaissances, les récits
mythiques et les célébrations rituelles de l'univers culturel Tentehar, sur les
souvenirs ancestraux vécus dans l'arrière-cour des habitants d'Aldeia
Juçaral et / ou dans les récits des héros Mayra, des rituels de la “menina-
moça”, du “miel” et des “garçons”. Dans telles histoires, nous avons
identifié des pédagogies du bien-vivre, de la résistance, du soin de la vie,
de la guérison et de la célébration de la diversité forestière. Ce sont des
pédagogies qui nous apprennent à prendre soin de tous les êtres et à
remercier pour la diversité existante. Aujourd'hui, conscients que leurs
savoirs ancestraux et leur éducation sont des sources de richesse et
d'alternatives pour les générations futures, ces personnes continuent de
lutter contre la production sociale de la rareté et de la pauvreté installée
sur son territoire. Apprendre avec des ceux qui nous ont appris
ancestralement à vivre au milieu de la biodiversité est essentiel pour
surmonter les monocultures mentales installées par le mode de vie
capitaliste.

Mots clés: Éducation. Complexité. Mémoires ancestraux. Les gens Tentehar.


LISTA DE FOTOGRAFIAS

Fotografia 1. Vicinal de acesso a Terra Indígena Arariboia......... 61


Fotografia 2. Paisagem em época de estiagem........................ 62
Fotografia 3. Riacho Faveira e buritizeiros.............................. 63
Fotografia 4. Caminhão madeireiro queimado na estrada.......... 64
Fotografia 5. O pasto invade a floresta................................... 64
Fotografia 6. Lírios do caminho............................................. 65
Fotografia 7. Povoado Campo Formoso.................................. 65
Fotografia 8. Entrada da Terra Indígena Arariboia e Aldeia
Juçaral............................................................ 66
Fotografia 9. Entrada da aldeia Juçaral................................... 66
Fotografia 10. Aldeia Juçaral.................................................. 67
Fotografia 11. Arara no cajueiro.............................................. 67
Fotografia 12. Veado criado livre nos quintais............................ 68
Fotografia 13. Extração do óleo de andiroba no quintal............... 68
Fotografia 14. A biodiversidade no quintal................................ 69
Fotografia 15. Plantas medicinais, a maconha e o cumaru........... 69
Fotografia 16. Aula com a mestra de cestarias no quintal............ 70
Fotografia 17. Mestre ensinando como trançar o guarumã........... 70
Fotografia 18. Rio Buriticupu próximo a aldeia Nova Canaã.......... 71
Fotografia 19. Tàmui João Tawi nos conta histórias do céu na
aldeia Mucura.................................................. 98
Fotografia 20. Mulher tentehar tecendo rede no tear.................. 98
Fotografia 21. Ensinando e aprendendo a arte de tecer redes....... 99
Fotografia 22. Confecção do fuso no quintal.............................. 99
Fotografia 23. Novas gerações aprendem a tecer....................... 100
Fotografia 24. Fala do prof. Antonio Gomes Guajajara no
lançamento do livro Histórias do céu contadas
por Zahy e Tatá................................................ 100
Fotografia 25. Fala do Cacique Zapu’y Guajajara em reunião....... 101
Fotografia 26. Fala do prof. Ezequiel Guajajara na comemoração
do dia das crianças........................................... 101
Fotografia 27. Guerreiros mirins............................................. 102
Fotografia 28. Um dos símbolos da resistência indígena.............. 102
Fotografia 29. Primeiro ritual da infância.................................. 146
Fotografia 30. Jenipapo......................................................... 147
Fotografia 31. Tintura de jenipapo........................................... 147
Fotografia 32. Construção da tocaia por familiares..................... 148
Fotografia 33. Noite de cantoria para a saída da menina-moça da
tocaia............................................................. 148
Fotografia 34. As mulheres cantam e pulam abraçadas na
cantoria.......................................................... 149
Fotografia 35. Menina-moça................................................... 149
Fotografia 36. A avó banha a neta às 5:00 horas da manhã........ 150
Fotografia 37. Preparo do caldo da mandiocaba......................... 151
Fotografia 38. Pintura aberta.................................................. 152
Fotografia 39. A avó conduz o ritual da mandiocaba................... 152
Fotografia 40. Caranguejo de água doce................................... 153
Fotografia 41. As meninas-moças distribuem os bolos de uhá..... 153
Fotografia 42. Moqueamento e preparo das caças...................... 154
Fotografia 43. Preparativos para a festa das meninas-moças....... 155
Fotografia 44. Cantores e avós aguardam a menina-moça........... 156
Fotografia 45. Celebração das meninas-moças.......................... 156
Fotografia 46. Meninas-moças com a decoração do por sol.......... 157
Fotografia 47. Decoração do amanhecer................................... 158
Fotografia 48. A nova mulher é desencantada........................... 159
Fotografia 49. Bolos de moqueado para a distribuição................ 159
Fotografia 50. Maracá e cocar................................................. 183
Fotografia 51. Bancos e esteiras dos rapazes tentehar................ 184
Fotografia 52. Festa dos rapazes............................................. 184
Fotografia 53. O choro e o abraço ao final do ritual.................... 185
Fotografia 54. Mestre de cantorias Zé Maria Guajajara................ 185
Fotografia 55. Com Zapu’y Guajajara....................................... 191
Fotografia 56. Profs. José A. Filho Guajajara e Antonio Gomes
Guajajara........................................................ 192
Fotografia 57. Com Davi Kopenawa na Conferência da Terra....... 192
Fotografia 58. Com mestre Francisquinho Kanela, Aldeia 193
Escalvado - Território Kanela..............................
Fotografia 59. Palestra de Ailton Krenak................................... 193
Fotografia 60. Abertura do projeto Guardiões de Saberes de
Ceará-Mirim/RN com Josineide Silveira, Daniel
Munduruku e Ceiça Almeida............................... 194
Fotografia 61. Colheita da tiririca............................................ 194
Fotografia 62. Trabalho com as mãos das mulheres artesãs......... 195
MOVIMENTO DE IDEIAS (SUMÁRIO)

APRESENTAÇÃO................................................................... 16
PARTE I – A MONOCULTURA DA MENTE DEVORA A
FLORESTA............................................................................ 24
Bricolando ideias, memórias e saberes................................. 30
Ilhas de resistências: Terra Indígena Arariboia, Aldeia
Juçaral................................................................................. 35
Os cheiros e as cores do caminho à Aldeia Juçaral............... 37
Pedagogias da diversidade em uma ilha de saberes
ancestrais............................................................................ 41
A diversidade botânica ensina a cuidar da vida no quintal... 44
Pedagogias do bem viver..................................................... 53
PARTE II - MEMÓRIAS ANCESTRAIS E HISTÓRIAS DA
TRADIÇÃO........................................................................... 72
Maíra de passagem no mundo.............................................. 76
Um povo em busca de liberdade e pedagogia da resistência 89
PARTE III - CICLOS E METAMORFOSES: A FORMAÇÃO DA
PESSOA TENTEHAR.............................................................. 103
Metamorfose e educação: a formação da mulher tentehar... 110
A natureza que renova e alonga a vida: o rito da mandiocaba
e uhá................................................................................... 117
Kuzà urauhaw: o nascimento da mulher tentehar................. 124
Espíritos da floresta, caça e ancestralidade animal.............. 125
Deusas vermelhas: a ornamentação do entardecer.............. 132
Da sinfonia dos pássaros aos cantos do ritual....................... 135
O encontro entre o dia e a noite: inicia o ritual..................... 137
Entre bençãos e proteção: as avós e a tradição de cuidar da
vida..................................................................................... 138
O nascer do dia e o renascer da vida.................................... 142
PARTE IV - NA TERRA DOS HOMENS-ONÇAS: APRENDENDO
A CANTAR, CURAR E AGRADECER......................................... 160
Guardiões da memória ancestral.......................................... 164
Do mundo dos encantados: a pajelança e a sabedoria da
cura..................................................................................... 171
Esquecendo o canto, matando a natureza............................ 175
PARTE V – CELEBRANDO OS SABERES INDÍGENAS............... 186
CONSTELAÇÕES DE IDEIAS (REFERÊNCIAS)......................... 196
16

APRESENTAÇÃO

Nos últimos sete anos a minha convivência com o povo indígena


tentehar (Guajajara) da aldeia Juçaral no Maranhão, com outras
experiências pontuais com os povos Krikati, Gavião e Kanela, além de
leituras sobre outros povos originários brasileiros promoveram uma
aproximação com suas realidades atuais e problemas vividos. A partir de
tais experiências, se descortinavam para mim diferentes modos de ver,
compreender e se relacionar com o mundo, práticas ricas em valores para
pensar a nossa educação, a nossa condição humana. Desde então, a minha
responsabilidade de pesquisadora-educadora me move a não deixar tais
aprendizagens guardadas num cofre particular.
Algumas memórias felizes da minha infância de menina do interior,
por ora adormecidas pela conturbada e poluída vida da cidade, iam sendo
recordadas em diferentes paisagens e cenas vividas pelos caminhos da
aldeia Juçaral. Em meio a um cenário com tensões e contradições eu fui
reencontrando o belo em paisagens naturais; no ir e vim despreocupado
das crianças; na engenhosidade das mulheres para tecer com as mãos uma
rede; na vida desapressada; nas movimentações para realizar em sua
plenitude um ritual ancestral; ou ainda, no respeito a tradição e a palavra
dos anciãos. Enfim fui me reencantando com a beleza da vida simples.
Não tenho dúvidas de que minhas aprendizagens com a cultura
tentehar ampliaram significativamente minha visão de mundo, pois cada
novo encontro me provocava a sair da minha zona de conforto profissional
e pessoal. Quando decidi cursar o doutorado para aprofundar meus
conhecimentos sobre esse povo e difundi-los no mundo acadêmico, fui
movida por um sentimento de gratidão e profundo respeito por um modo
de viver que muito tem a ensinar às sociedades atuais. Assim, o principal
propósito dessa tese é poder compartilhar, por meio de narrativas sobre o
mundo dos Tentehar, as contribuições intelectuais que reconheço como
uma potência criadora de uma regeneração da cultura e da humanidade.
17

É importante mencionar que cursar um doutorado para mim foi muito


mais que um meio para a obtenção de um título acadêmico, uma vez que
representou um momento profícuo para exercitar um diálogo com
pesquisadores, autores e sabedorias ética e politicamente comprometidas
com a construção de uma nova ciência, menos arrogante, mais aberta ao
diálogo com saberes adormecidos pela cultura científica. Por meio de tal
impulso cognitivo meu doutorado acabou sendo uma iniciação nas ciências
da complexidade. Aos poucos fui consolidando uma perspectiva científica
que religa saberes científicos e saberes tradicionais, ciência e mito, ética e
estética de viver e que, de fato, já intuía na minha trajetória anterior. A
minha vontade de trilhar por este caminho me fez ter coragem e ousadia
para sair 1200 kms da minha residência para viver no estado do Rio Grande
do Norte, na cidade de Natal. Desejava ser orientada por uma de duas
grandes pesquisadoras do Centro de Educação da UFRN, as professoras
Marta Maria A. C. Pernambuco e Maria da Conceição de Almeida, conhecidas
por mim apenas por intermédio de livros e lattes. De fato, consegui.
Inicialmente estive no Grupo de Estudos de Práticas em Movimento
(GEPEM), sob a orientação de Marta Pernambuco. Com sua partida
inesperada, alguns meses depois fui acolhida generosamente por Conceição
Almeida no Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM). Lá posso
afirmar ter encontrado práticas científicas que dialogam com a diversidade
de sabedorias humanas esquecidas pela a academia.
No GRECOM, sobretudo nos ateliês de Complexidade e Educação e
nos Seminários de Pesquisa somos provocados a ultrapassar um estilo de
cultura científica que adestra a construção do pensamento por meio de uma
métrica unilateral e simplificadora que reduz ou fragmenta a complexidade
do existir. Nesse ambiente acadêmico pude perceber que enquanto artesãos
do pensamento complexo é preciso fazer do método uma criação do
pensamento, não um roteiro pré-definido nos manuais de metodologia e a
ser desenvolvido durante uma pesquisa. Nessa direção, o texto inteiro
possui uma característica própria, pois foi escrito a partir das minhas
18

observações na aldeia Juçaral; também se vale de uma certa forma de


conceber a ciência aprendida por mim no interior do GRECOM.
Por intermédio de textos e discussões nos ateliês eu aprendi que
ciência, arte, poesia e mitos são linguagens do conhecimento
complementares, por isso, indispensáveis na aventura cientifica. Nesse
espaço de elaboração de ideias polifônicas somos desafiados a construir
nossas próprias narrativas a partir de atitudes como ousadia e
estranhamento; a usar nossa criatividade; a duvidar das verdades; a
reconhecer a importância do erro; a compreender o inacabamento do
conhecimento. Enfim, fazer uso da intuição e manifestar nossa afetividade
na construção dos nossos trabalhos.
Desde a minha entrada na academia fui familiarizada com trabalhos
que geralmente separam a parte teórica e a pesquisa em si. De uma forma
convencional a maioria dos trabalhos apresentam uma parte teórica para,
em seguida, expor suas experiências de campo, entrevistas e observações.
Por fim, chegam a uma conclusão no sentido de tecer conexões entre teoria
e pesquisa. No GRECOM, pensando na ideia de ciências da complexidade,
foi me apresentada uma outra forma de fazer ciência a partir dos trabalhos
de Edgar Morin, Ilya Prigogine e outros pensadores.
No livro Ciência, Razão e Paixão de Prigogine (2009) e ao longo dos
livros de Edgar Morin, sobretudo quando tratam da “sociologia do presente”,
na obra Sociologia (1998), é interessante notar como esses autores não
cindem, fracionam, separam nem opõem o que é da ordem da reflexão
teórica ou emana da pesquisa de campo. As dissertações e teses orientadas
no GRECOM ilustram bem a arte de interrelacionar conhecimentos.
Para a construção deste texto também quero destacar a importância
das observações, sugestões e críticas feitas pela banca quando expus
publicamente pela primeira vez o trabalho para ser discutido nos Seminários
de Pesquisa e Formação Doutoral. Nessa direção, foram seminais as
contribuições dos professores Carlos Aldemir Farias, Maria Eugênia Dantas,
Conceição Almeida e Josineide Silveira. Na oportunidade a banca chamou a
atenção para a riqueza do material que eu dispunha face ao meu tempo de
19

atuação junto aquela comunidade e sugeriu a principalidade que deveria ser


dada às narrativas míticas bem como àquelas que se detinham aos rituais
de passagens dos ciclos sociais da população.
A partir de tais deslocamentos, principalidade e destaque de lugares
narrativos entendi muito bem, conforme ensinam Ilya Prigogine e Edgar
Morin, que as informações, observações e narrativas a que tive acesso junto
aos Tentehar da aldeia Juçaral contêm em si próprias o âmago de certa
cosmologia do pensamento daquela cultura. Por isso, a cultura Tentehar
representa para mim muito mais que uma referência empírica que constata
uma teoria. O que tenho aprendido com esse povo nos últimos sete anos
me fez perceber um conjunto de princípios que iluminam uma forma de
viver, ser e atuar no mundo. De forma alguma eu poderia tomar suas
narrativas, ritos e mitos como material de demonstração de uma teoria.
De tal modo, os indivíduos da comunidade Tentehar são para mim
interlocutores preciosos e não simplesmente informantes, expressão
lamentável contida nos trabalhos acadêmicos. Os Tentehar são para mim
referências que me fizeram acessar sabedorias ancestrais. Na sua
educação, medicinas, mitos e ritos estão expostos uma concepção da
espécie humana de viver em sociedade. A cultura Tentehar como tantas
outras originárias brasileiras são um exemplo claro de que é possível viver
de forma diferente daquilo que a civilização ocidental escolheu para si
enquanto modelo hegemônico. Além do mais, as culturas indígenas
demonstram uma forma mais equilibrada, generosa e sustentável de viver.
Nessa direção, a presente tese não se insere no paradigma da
disjunção entre teoria e pesquisa, sujeito e objeto, razão e emoção, vidas
e ideias inerente ao fazer científico marcado pelo paradigma considerado
vitorioso, padronizado. De maneira mestiça, o texto abriga a fala de
intelectuais da tradição, de autores das ciências e as minhas próprias
experiências constituídas em diferentes ciclos de produção. O texto aqui
apresentado expõe e intercambia vivências em rituais, atividades de
extensão na escola local, pesquisas e outras colaborações. Com esta
polifonia de ideias busquei privilegiar um diálogo simétrico ou paritário entre
20

autores consagrados no universo científico e sábios ou “intelectuais da


tradição” (ALMEIDA, 2017b) reconhecidos pelos Tentehar da Terra Indígena
Arariboia.
Nos últimos anos vivenciei uma relação de parceria mais intensa pelo
cultivo de amizades com várias pessoas da Aldeia Juçaral. Algumas das
pessoas mais próximas se tornaram minhas amigas, outras considero
mestres. É importante mencionar que as mais diferentes conversas e
situações vividas na terra indígena Arariboia sempre funcionaram para mim
como uma espécie de lente de aumento progressivo, pois pude enxergar,
comparar, conectar peças não visíveis ou audíveis para mim. Com esses
aprendizados venho mudando a minha forma de pensar e
consequentemente de atuar no mundo. Tais transformações alimentam, em
mim, um novo espírito científico.
Diga-se de passagem, foi também na convivência com diferentes
povos originários que Claude Lévi-Strauss (2012b) deu um passo
significativo para compreender o pensamento científico complexo ao
reconhecer a existência de uma ciência primeira, mais próxima de uma
“intuição sensível” no pensamento de tais povos.
A cada conversa com os Tentehar ou leituras sobre tal cultura galhos
novos foram brotando dessa grande árvore de conhecimentos. Por isso
considero minha tese como um trabalho inacabado, em construção. Como
na vida, as ideias mudam ou são ampliadas e reorganizadas. Uma pesquisa
que ilustra bem a situação de inacabamento do conhecimento é a
coordenada por Conceição Almeida na Lagoa Piató/RN. Tal experiência já
acontece há quase 35 anos e se desdobrou em várias dissertações de
mestrado e teses de doutorado. Ao falar sobre o Piató e suas aprendizagens
– fruto do intercâmbio com o intelectual da tradição Chico Lucas - Conceição
é enfática ao reconhecer que cada deslocamento de suas interpretações é
sempre movido por novas compreensões a respeito dos cenários vividos por
ela na comunidade durante todos esses anos de pesquisa. Em síntese, a
partir de uma nova concepção do que é a ciência, da compreensão científica
de Claude Lévi-Strauss quando esteve diante de diferentes culturas
21

indígenas e de autores afinados com a noção de complexidade escolhi


alguns operadores cognitivos para tratar do que entendo como pedagogias
do povo Tentehar.
Destaco aqui a ideia defendida por Edgar Morin (2011) no texto
intitulado Para um Pensamento do Sul, quando observa não ser suficiente
operar uma religação entre ciências humanas, ciências da vida e do mundo
físico. Para o autor é urgente observar quais são as reservas de
complexidade que o planeta apresenta como uma forma de regenerar a
civilização humana. Daí porque o livro Memória Biocultural de Vitor Toledo
e Narciso Barrera-Bassols (2015) é importante para tal reconhecimento.
Nesse livro, os dois autores defendem a ideia de que a industria da
agropecuária e monoculturas agrícolas intensivas comprometem um modo
de viver característico das populações originárias retirando de cena as
culturas indígenas ancestrais ou originárias. Para Toledo e Barrera-Bassols
(2015), a exclusão dessas culturas comprometem não só a existência da
memória desses povos, mas a memória da espécie humana – daí o conceito
de “memória biocultural”, conforme observaremos ao longo o texto.
No mundo acadêmico fui aprendendo sobre o poder que tem a ciência
oficial para validar sentidos e significados. A compreensão defendida por
Edgar Morin em seu texto “Para um Pensamento Sul”, e de Conceição
Almeida em “O pensamento do Sul como reserva antropológica” (2012) nos
incita aqui a uma politização do pensamento e a reescrever uma nova
narrativa da ciência. Tais propósitos foram abraçados por mim neste
estudo.
O diálogo com sabedorias e pedagogias indígenas é uma das vias para
regenerar o estilo de vida ocidental marcado lamentavelmente pela
monocultura da mente da qual fala Vandana Shiva (2003). A mesma
constatação está presente nos trabalhos de Daniel Munduruku (2010),
quando fala do pensamento quadrado, e de Ailton Krenak (2019), ao
identificar a “civilização” como um pequeno clube de humanos que impõem
a sua ordem às demais pessoas do planeta.
22

Dessa forma espero ter contribuído com alertas para a importância


de se fazer uma celebração das culturas originárias. O exercício de cantá-
las foi feito por mim a partir da cultura do povo Tentehar. Usei alguns
fragmentos de seus mitos de origens enquanto operadores cognitivos que
moveram meu pensamento para aprender e ensinar sobre uma outra forma
de ser e viver no mundo. São fragmentos de mitos de origem e dos seus
rituais; releituras dessas histórias feitas por narradores tentehar;
fragmentos de mitos de origem de vegetais como a mandioca; fragmentos
de tratamentos do corpo da mulher entre outros saberes. Por vezes tais
narrativas se apresentam longas. Ao registrá-las na sua forma inteira
intencionei fazer o exercício de repetição dos mitos. Além do mais a
repetição oral é um dos princípios de método para se aprender e ensinar
nessa cultura.
A escrita da tese foi uma das maneiras encontradas por mim para
contribuir com a resistência desse povo. Com isso espero que este trabalho
não se limite a ficar guardado nos arquivos digitais da Capes e de programas
de pós-graduação, mais que de alguma maneira possa chegar às escolas
Guajajara, suas crianças e à juventude, além de outros espaços formativos
maranhenses. Agindo ao modo de um pássaro mensageiro, se aqui escrevi
ou transcrevi algum conhecimento desconhecido por parte deste povo
acredito ter feito a minha parte.
Na sua organização a tese está dividida em cinco partes, a saber: Na
parte I, intitulada A monocultura da mente devora a floresta, trago as
ideias centrais do trabalho, depois remeto o leitor ao lugar do estudo e suas
peculiaridades. Também falo das pessoas, identificando em seguida saberes
e pedagogias do bem viver em espaços de suas vivências cotidianas.
Na parte II, Memórias Ancestrais e Histórias da Tradição, evoco
memórias ancestrais do povo Tentehar a partir de um de seus mitos de
origem; registro também algumas histórias de suas lutas e modos de
organização e identifico pedagogias da resistência.
Na parte III, Ciclos e Metamorfoses: A formação da pessoa
tentehar, falo da educação para a vida e o papel dos mitos nessa formação.
23

Depois apresento uma pedagogia do cuidado com a vida a partir do mito de


origem do ritual da menina-moça para em seguida descrever os diferentes
momentos e personagens centrais do processo de formação das mulheres
a partir do mesmo ritual. Também reflito sobre como os impactos
ambientais sofridos na Terra indígena Arariboia vêm afetando este ritual.
Na parte IV, Na terra dos homens-onças: aprendendo a cantar,
curar e agradecer, abordo as narrativas míticas da festa do mel e a de
origem da festa dos rapazes tentehar para tratar de uma pedagogia que
ensina a cantar a floresta e agradecer por sua diversidade. Ainda trato de
como a monocultura da mente instalada na floresta vem afetando saberes
e práticas culturais. Por fim identifico ações locais de resistência a esse
movimento de uniformização do pensamento.
Na parte V, Celebrando os saberes indígenas, encerro o trabalho
com a voz de autores indígenas apresentando alguns princípios filosóficos
norteadores de modos de educar em suas culturas.
Ao final de cada parte faço uma exposição de algumas fotografias
relativas às minhas vivências na aldeia Juçaral.
24

PARTE I - A MONOCULTURA DA MENTE DEVORA A FLORESTA

[...] Toda história é contada a partir de referenciais


culturais e traz a visão de quem a conta.
(DANIEL MUNDURUKU).

Um retorno ao início da travessia é precisamente, ao mesmo


tempo, a evidência da distância do início. É a revolução da
aprendizagem.
(JORGE WERTHEIN)

Não convém olhar para outros lugares, alargar os quadros


tradicionais em que se fechavam nossas reflexões sobre a
condição humana?
(LÉVI-STRAUSS)
25

[...] toda a monocultura destrói as associações vegetais,


proveitosas para cada um e para todos, reduz a fauna, empobrece
e esteriliza a terra. A partir daí, o processo de degradação da
complexidade está em marcha onde quer que progrida a
homogeneização cultural.
(EDGAR MORIN)

A monocultura é uma prisão. A diversidade, ao contrário, liberta!


(EDUARDO GALEANO)

Seus antepassados não descobriram essa terra, não! Chegaram como visitantes! Porém,
logo depois de terem chegado, não pararam mais de devastá-la e de retalhar sua
imagem em pedaços.
(DAVI KOPENAWA)

Nessa tese narro sobre o que vi, vivi, senti, aprendi, na minha
convivência com os povos Tentehar1 (Guajajara) da Aldeia Juçaral. Uma
trajetória iniciada efetivamente em 2013, a partir de um trabalho de
extensão intitulado “Diálogos Interculturais sobre Astronomia com Crianças
Indígenas” (DIA)2 junto com essa comunidade. Em tal período, nós nos
lançamos a conhecer sobre a etnoastronomia Tupi/Tentehar da terra
indígena Arariboia, no Maranhão. A partir de tal experiência escrevi a
dissertação de mestrado Saberes Culturais Tentehar e a Educação Escolar
Indígena na Aldeia Juçaral, pela Universidade do Estado do Pará, na linha
de pesquisa Saberes Culturais e Educação Amazônia do Programa de Pós-
Graduação em Educação (PPGED/UEPA) (SÁ, 2014).
No último trabalho narrei sobre saberes e práticas culturais originados
do modo de vida ancestral Tentehar. Agora, no doutorado, volto meu olhar
novamente para tais sabedorias, cosmovisão, com um novo horizonte de
trabalho, dessa vez com uma lente mais ampliada.
Um vasto, rico e complexo imaginário sociocultural conheci ouvindo e
lendo narrativas míticas que contam histórias dos rituais tradicionais, dos
heróis culturais, dos espíritos das florestas, por exemplo. A partir dessa

1
Existe uma variação na escrita da palavra tentehar, na literatura existente encontramos
ainda tenetehara, tenetehar, tenetehára.
2
O projeto DIA foi realizado entre os anos de 2013 e 2014, e sobre o relato de tal
experiência lançamos em 2016 o livro paradidático “Histórias do Céu contadas por Zahy e
Tatá”, e em 2018 a mesma versão escrita na língua tentehar.
26

coleção de histórias e práticas culturais entendi a importância desse modo


de pensar e viver tradicional, de valores que educam na visão do mundo
indígena tentehar. Hoje, compreendo esses conhecimentos da tradição,
modos de se relacionar com a natureza como necessários à formação geral
para se pensar a condição humana (LÉVI-STRAUSS, 2012a; MORIN, 2011;
MUNDURUKU, 2017; ALMEIDA, 2017a, b).
A cada encontro na aldeia também tomava ciência dos problemas que
os tentehar e outros povos indígenas, em nível de Brasil e América Latina,
enfrentam diariamente para permanecer com seu modo de vida tradicional.
Não há como excluir das narrativas desse povo suas histórias de lutas,
reivindicações para existirem no espaço de seus territórios originários com
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições culturais
específicas. Diga-se de passagem, especifidades socioculturais
reconhecidas na legislação nacional somente a partir da Constituição de
1988.
Do elenco de problemas vivenciados atualmente por esse povo
originário no seu dia a dia, um dos mais expressivos certamente é manter
a mata ou a floresta em pé no território em que habitam. No contexto local,
a crescente perda dessa biodiversidade catalisa graves prejuízos ao seu
modo de vida tradicional, pois sua sobrevivência e a dos conhecimentos que
acumularam milenarmente para manter a vida ficam comprometidos.
Conforme afirmei

[...] as matas e a sua biodiversidade, constituem-se em um


espaço vital para os Tentehar, visto que é nelas que residem
os sentidos existenciais desse povo. Nelas estão fincados os
múltiplos saberes [...] que desenvolvem no seu cotidiano
como: saber caçar, saber cantar, saber adornar-se, saber
tecer redes, cestarias, saber curar-se através de plantas por
intermédio ou não da pajelança. (SÁ, 2014, p. 204).

É importante mencionar que os povos da tradição são aqueles que


conservaram valores tradicionais ou não modernos-industriais, como
seringueiros, camponeses, caboclos, caiçaras, pantaneiros, quilombolas,
pescadores artesanais, indígenas.
27

Enquanto povos da tradição, os indígenas, podem ser melhor


reconhecidos a partir dos seguintes critérios: a) são descendentes dos
primeiros habitantes de um território; b) povos intimamente ligados à
natureza por suas cosmovisões, conhecimentos e atividades produtivas,
tais como agricultores permanentes ou nômades, pastores, caçadores e
coletores, pescadores ou artesãos; c) adotam uma estratégia de uso
múltiplo de apropriação da natureza com produção de pequena escala e
baixo consumo de energia; d) sem organizações políticas centralizadas,
organizam sua vida em nível comunitário e tomam decisões por consenso;
e) geralmente compartilham língua, valores morais, crenças e outros
critérios de identidade, estabelecendo profunda relação material/espiritual
com o território que vivem; f) têm visão de mundo diferente da
prevalecente no mundo moderno; g) são compostos por pessoas auto-
identificadas como indígenas (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015).
O direito constitucional em viver autonomamente em seus territórios
conforme suas tradições culturais não se concretizou de fato para os povos
indígenas brasileiros. A lamentável e triste história de genocídio iniciada em
1500 e/ou etnocídio continua em franca expansão nos dias de hoje. É o que
constatamos nos relatos de renomados autores e lideranças indígenas,
entre os quais: o cacique Raoni Metuktire, Davi Kopenawa, Sônia Bone
Guajajara, Ailton Krenak, Daniel Munduruku, além de órgãos de apoio à
causa indígena, como por exemplo a APIB (Articulação dos Povos Indígenas
do Brasil), o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), o Instituto
Socioambiental (ISA), entre outros, manifestados em diferentes espaços
midiáticos.
Com modos de vida a cada dia mais ameaçados, vidas e terras
ceifadas, os povos indígenas se sentem encurralados em seus próprios
territórios. Sentimentos de ira e preocupação são expressos nas vozes do
cacique Zapu’y Guajajara e dos filósofos indígenas Davi Kopenawa (2015)
e Ailton Krenak (2020), por exemplo. Para o cacique Zapu’y, os karaiw (não
indígenas) só pensam em destruir. Para Davi Kopenawa isso acontece
porque o pensamento dos homens brancos está “concentrado em seus
28

objetos o tempo todo. Não param de fabricar e sempre querem coisas


novas”, pois o nosso de desejo de não indígenas de possuir objetos “é
infinito, [...] não tem limites, então vamos comer o planeta todo”,
reconhece Ailton Krenak (2020, p. 97).
A física indiana Vandana Shiva (2003, p. 15) nomeou de
monoculturas mentais a visão de desenvolvimento e crescimento baseada
na uniformidade que faz “[...] a diversidade desaparecer da percepção e,
consequentemente, do mundo”. Atuando semelhante à introdução de
monoculturas, destroem as próprias condições de existência e de diversas
outras espécies.
No contexto brasileiro, o modo de vida dos povos originários choca-
se de frente com a visão de monoculturas mentais representadas pelos
setores econômicos da mineração, da eletricidade, do agronegócio, da
pecuária extensiva e da biopirataria. Eles representam a ideologia
dominante, o modo de vida ocidental e seu sistema moderno industrial de
saber e poder. Com modelos de produção insustentáveis, se utilizam da
tecnologia e ciência para destruir a diversidade e legitimar “[...] a
destruição como progresso, crescimento e melhoria”, argumenta Vandana
Shiva (2003, p. 17). Ao primar por uma produção sempre mais acelerada e
em maior quantidade, tais setores agem como verdadeiras ervas daninhas,
devoram a biodiversidade e fazem desaparecer os sistemas locais de saber.
Em meio ao extermínio da sociobiodiversidade dos territórios
indígenas maranhenses, os habitantes da terra indígena Arariboia convivem
em meio à biopirataria instalada na floresta. A cada ano é crescente o
desmatamento provocado pela extração ilegal de madeira ou pelas
queimadas decorrentes deste e de outros processos de degradação
socioambiental. É notório que essas monoculturas violentam não só as
florestas, mas a integridade de seus habitantes (SHIVA, 2003).
Diz Vandana Shiva (2003): no lugar de a floresta servir de modelo à
fábrica (respeito aos ciclos naturais), no projeto capitalista é a fábrica que
serve de modelo à floresta. O modelo da fábrica, por sua vez, ao suprimir
setores chave da nossa própria memória, da nossa consciência histórica,
29

devorando sabedorias locais, acaba com os principais componentes do


complexo biocultural da espécie humana, argumentam Toledo e Barrera-
Bassols (2015). Não por menos, uma floresta é vista apenas como fonte de
madeira industrial para uma dada monocultura. A artificialidade e a
efemeridade vivida nas sociedades industriais alimentam um estado
patológico de amnésia coletiva, acreditam estes pesquisadores.
Ancorada nos valores do individualismo, da competição exacerbada,
da exploração desmedida, do pensamento fragmentado, nós da sociedade
capitalista conseguimos, na mesma proporção dos nossos avanços
tecnológicos, alavancar paradoxalmente lixos artificiais e existenciais. Os
crescentes índices de desigualdade, de pobreza, violência, extinção da
diversidade biocultural escancaram necroses de um modo de vida que
perdeu o vínculo com suas raízes históricas mais profundas.
Para a cultura tentehar uma floresta representa muito mais que
satisfação de necessidades de alimentos e moradias. Como em muitas
culturas indígenas amazônicas, uma “[...] floresta nasce de uma semente
que brota no útero da terra. Uma floresta é também uma plantação de
símbolos” germinada pela diversidade biocultural (LOUREIRO, 2008, p.
359). Foi plantando sonhos e símbolos em círculos sincrônicos e diacrônicos
que os indígenas emprenharam cosmologias com práticas, saberes,
tecnologias e ciências irrigadas por uma memória ancestral. (MUNDURUKU,
2010; TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015).
Diante de um cenário catastrófico de erosão da vida neste planeta
compartilho da ideia de pensadores complexos sobre a necessidade
fundamental de “reabilitar emergências de humanidades esquecidas”
(ALMEIDA, 2018, p. 12), para ultrapassar este estado de monoculturas
mentais e amnésia coletiva. O progresso só pode vir do retorno às fontes,
“não do esquecimento da Arkhè” (MORIN, 2012, p. 294). Para progredir, é
preciso reencontrar a fonte geradora, defendem Conceição Almeida
(2011;2018), Vitor Toledo e Barrera-Bassols (2015), Lévi-Strauss (2012b),
Davi Kopenawa e Bruce Albert (2015), Daniel Munduruku (2010), Ailton
Krenak (2020).
30

No mundo do desencanto é seminal encontrarmos outros alfabetos,


conhecer uma profusão de ideias impressas em diversas formas de educar.
As culturas dos povos indígenas, dos tentehar, em particular, umidificaram
o pensamento humano e a vida. Por meio de suas memórias, aprenderam
a dar vida à diversidade, contando e cantando uma floresta de histórias
ancestrais.
Me inspiro na ação livre dos pássaros em dispersar sementes da
diversidade florestal para fazer polinizar boas ideias e práticas das tradições
indígenas brasileiras mundo adentro e afora. Por isso, ao descrever sobre
saberes, narrativas míticas e celebrações rituais do universo cultural
Tentehar, busco ressaltar o valor e a importância de tal sabedoria para a
diversidade continuar a brotar na nossa mãe-terra.
Na minha compreensão a morte da floresta, o esquecimento de
histórias e/ou saberes ancestrais e o ressecamento do imaginário são
fenômenos relacionados entre si. Por isso, ao registrar o estado de violência
simbólica e física vivida pelos tentehar da terra Arariboia intenciono
evidenciar que a morte da floresta, além de retirar a autonomia e liberdade
desse povo para viver, também pode corroer valores e saberes da sua
educação ancestral. (SHIVA, 2003; ALMEIDA, 2017a; TOLEDO; BARRERA-
BASSOLS, 2015).
O encontro com histórias e vivências nessa cultura me permitiu
identificar pedagogias, modos de pensar e educar na ancestralidade
tentehar. Adentrando no imaginário tentehar degustei um “referencial
cultural que tem perdurado durante milênios e que tem dado certo como
método pedagógico” e que apresento ao longo dessa tese (MUNDURUKU,
2010, p. 11).

Bricolando ideias, memórias e saberes

A compreensão de mundo desespecializada presente na linguagem


mítica, na cosmovisão dos tentehar está mais “próxima da noção de
complexidade”, pois o pensamento indígena opera aproximando o vivo do
31

não-vivo, conectando o físico e o metafísico, o simbólico e o racional. Por


isso, confesso a minha dificuldade em descrever essa cultura: as palavras
as vezes nos falta para expressá-la em toda sua complexidade. (ALMEIDA,
2017b; ARAÚJO; SÁ; ALMEIDA, 2020, p. 10).
O diálogo com autores indígenas foi um dos artifícios por mim
utilizado para diminuir o efeito lacunar, sempre parcial e incompleto do
olhar de uma não-indígena educada sob a égide de um pensamento
notadamente racionalista e fragmentador. Hoje tenho a compreensão de
que, analogamente a nossa vida, o ato de conhecer comporta o erro, a
incerteza, o inacabamento e a incompletude. Por isso buscamos nos despir
das verdades absolutas.
O encontro com autores indígenas e não-indígenas nos possibilitou
operar a complementariedade entre distintas visões de mundo. Religar
conhecimentos, mais que exercitar a retórica é uma atitude ética a ser
assumida por uma ciência da inteireza, do afeto. As sementes desta reflexão
foram amorosamente plantadas no Ateliê de “Educação e Complexidade” e
germinadas à luz da disciplina intelectual de Conceição Almeida. Uma
ecologia das ideias e da ação tem sido o desafio pensado e vivido pelo Grupo
de Estudos da Complexidade da UFRN há mais de 25 anos.
O nosso método de estudo foi inspirado no trabalho da mulher
tentehar, grande bricoleur da vida, artesã do mundo. Em Lévi-Strauss
(2012b, p. 35) o bricoleur é uma espécie de artesão que usa materiais
disponíveis ao alcance das mãos para renovar e enriquecer, ou mesmo
manter resíduos de construções anteriores. Ao executar seu trabalho, que
inicialmente é retrospectivo, o bricoleur “volta-se para um conjunto já
constituído formado por utensílios e materiais”, e faz ou refaz seu
inventário. Aqui, os materiais bricolados foram: livros, fotografias, falas e
fatos marcantes, lembranças, impressões, desejos, débitos, dúvidas,
medos, cenários de vida e de morte, histórias narradas que resultaram em
compreensões epistemológicas, políticas, éticas e afetivas em mim.
Como se fosse uma tecelã tentehar religando texturas e linhas de
cores diversas no seu tear para dar forma a redes, tipoias e mocós, essa
32

tese se valeu de alguns materiais: educação na ancestralidade indígena, a


partir do pensamento dos pensadores indígenas Daniel Munduruku e Davi
Kopenawa; a epistemologia de uma ciência neolítica em Claude Lévi-
Strauss; Saberes da tradição e pensamento complexo em Conceição
Almeida e Edgar Morin; e memória biocultural em Vitor Toledo e Narciso
Barrera-Bassols. São esses alguns dos fios que constituem a narrativa da
tese.
Na cultura ancestral tentehar as narrativas míticas alimentam o
processo formativo entre esse povo. É por seu intermédio que são
transmitidos valores que educam na sua cosmologia3, pois “os valores locais
encontram sua raiz no mundo mítico e nos rituais que reorganizam tais
mitos” (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015, p. 138). Então, usamos a
narrativa de origem dos tentehar e as de seus rituais para compor a espinha
dorsal do estudo. São elas: a narrativa dos heróis culturais dos Tentehar
(Mayra) e seus filhos gêmeos (Mayra-yr) e (Mikura-yr); a que trata da
origem do ritual da menina-moça e o espírito sedutor dono das águas
(Y’zar); a de origem da festa do mel; e, por fim, a narrativa do Tentehar e
a filha do Gavião, explicando a origem da festa dos rapazes.
Na articulação entre narrativas míticas e a memória biocultural dos
interlocutores do estudo pudemos rememorar a história dos tentehar,
encontrar ethos, princípios e valores fundadores que orientam o
pensamento e a pedagogia no mundo indígena tentehar. Todo o enredo foi
produzido coletivamente, por homens e mulheres que compartilharam
conosco saberes, modos de vida e problemas da sua existência cotidiana.
Tais participações ocorreram em projetos de pesquisas e extensão já
desenvolvidos e ainda em curso na aldeia Juçaral. Portanto, este texto foi
tecido a partir das narrativas de:

3
“Cosmologia é entendida aqui como visão de mundo, da maneira como pensamos que o
nosso mundo está organizado” (DESCOLA, 2016, p. 47).
33

▪ João Tawi4, 101 anos, natural da TI Arariboia, e que viveu mais de


30 anos na aldeia Mucura. Bom caçador, dele ouvi narrativas do
seu ancestral Caipora e de algumas constelações simbólicas
indígenas no ano de 2013;
▪ Maria Parazawu, 51 anos, é natural da TI Arariboia, morada da
aldeia Juçaral. É hoje a única mulher da Arariboia que ainda
trabalha com a arte das cestarias, e a sua participação foi relativa
a este saber.
▪ Zezé Zapu’y Guajajara, 67 anos, é o cacique da aldeia da Juçaral,
onde vive há mais de 40 anos. Sua família extensa é uma das
duas maiores dentro da aldeia; suas falas aparecem ao longo de
todo o texto tratando de diferentes assuntos, desde
conhecimentos tradicionais aos problemas relacionados a
depredação do patrimônio biocultural da terra indígena Arariboia.
É casado com Angelina Carlos Guajajara (78 anos), tecelã que nos
relatou sobre sua arte e aprendizagens de menina-moça.
▪ Antonio Gomes Guajajara (Toinho Guajajara), 41 anos, vive há
mais de 20 anos na aldeia Juçaral. Pertence a uma família de
cantores tradicionais, e hoje é cantor tradicional em graduação
para função de mestre. É atualmente professor de Língua Indígena
na escola local. Também é missionário evangélico e coordena
cultos religiosos na aldeia. É um dos principais parceiros do nosso
trabalho. Nos falou sobre todos os rituais e narrativas míticas,
cantores e cantorias. Foi o tradutor responsável por diálogos
proferidos na língua tentehar pela maioria dos interlocutores;
▪ Ana Cleide Pereira da Silva, 54 anos, nasceu na aldeia Mucura,
mas mora há 26 anos na aldeia Juçaral. É casada, mãe de três
filhos, avó de 4 netos e 1 bisneto. Foi uma das primeiras
professoras da aldeia, função exercida na escola local. Nos contou
sobre saberes medicinais;

4
Falecido este ano por complicações do COVID-19.
34

▪ José Maria Paulino Guajajara (Zé Maria Guajajara), 52 anos, mora


na aldeia Mucura. É hoje o principal mestre de cantorias
tradicionais, além de profundo conhecedor dos rituais e narrativas
míticas, especialmente do ritual da menina-moça.
▪ Deusdete Santos Kapi Guajajara (80 anos) – é a matriarca da
segunda maior família da aldeia Juçaral. Casada com seu Oseas
Sousa Guajajara (80 anos), os dois participaram falando sobre o
ritual da mandiocaba, menina-moça e dos incêndios vividos nos
últimos anos na terra indígena Arariboia.
▪ Maria de Lourdes Guajajara (76 anos), moradora da Aldeia
Ingarana. Falou sobre seus conhecimentos a respeito do ritual da
mandiocaba e a festa da menina-moça.
▪ Frederico Matimu Guajajara (Fred Guajajara), 38 anos, é uma das
lideranças representante da Aldeia Juçaral na luta pelas causas
indígenas junto ao movimento indígena organizado. Nos falou
sobre a técnica de pinturas corporais e de problemas relacionados
a instalação de igrejas evangélicas nas aldeias.
▪ Tàmui Vicente Ramu’i (107 anos), morador da Aldeia Arariboia,
reconhecidamente a maior biblioteca viva dos conhecimentos
ancestrais tentehar na TI Arariboia, um grande mestre de
cantorias. Partiu recentemente para a terra dos encantados
acometido por morte natural. Em 2014 o entrevistamos e ele nos
falou sobre a extinção dos grandes pajés na Arariboia.
▪ Pedro Carlos Guajajara (44 anos), filho da Aldeia Juçaral, trabalha
na escola local exercendo a função de professor indígena no ensino
fundamental menor. A sua participação foi sobre a narrativa mítica
da festa dos rapazes.

Em diálogos com esses e outros interlocutores evocamos


conhecimentos bioculturais e resistências em seu habitat no território da
Arariboia.
35

Ilhas de resistências: Terra Indígena Arariboia, Aldeia Juçaral

A Terra Indígena (TI) Arariboia é uma entre as 20 terras indígenas


demarcadas e localizadas em 23 munícipios do estado do Maranhão. É uma
reserva tradicionalmente ocupada. Foi homologada e registrada pelo
Decreto 98.852 de 22/01/1990 com área de 413.288,00 hectares.
Atualmente é administrada sob custódia regional da Fundação Nacional do
Índio (FUNAI) de Imperatriz-Maranhão, e da Fundação Nacional de Saúde
– Distrito Sanitário Especial Indígena (FUNASA – DSEI) do Maranhão.
A área da TI Arariboia, outrora conhecida como Awá-Gurupi,
compreende a área dos cinco munícipios maranhenses seguintes:
Buriticupu (9,13%), Bom Jesus das Selvas (4,53%), Arame (10,10%),
Santa Luzia (0,88%) e Amarante do Maranhão, onde consta sua maior
concentração (46,31%). Está localizada nas mesorregiões Oeste e Centro
maranhense, microrregião de Imperatriz (MARANHÃO, 2011).
Em informações constantes do relatório do Plano de Ação para a
Prevenção e o Controle do Desmatamento e das Queimadas no Estado do
Maranhão (PPCD-MA), a TI Arariboia possui caracterização ambiental com
97,56% de bioma amazônico e 2,44% de cerrado; pertence 100% a bacia
hidrográfica do rio Mearim (MARANHÃO, 2011).
Atualmente esse bioma sofre constantes pressões pela biopirataria
instalada em meio a floresta, sobretudo pela exploração e comercio ilegal
de madeira. A isto se somam outras agressões, como: aluguel de pasto
nativo para a pecuária extensiva; instalação de carvoarias; morte de
nascentes; e o desmatamento de margens de rios e barramentos,
sobretudo em propriedades fronteiriças, conforme descrito no Plano de
Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena Arariboia
(SANTOS; SANTOS, 2017).
Observando imagens de um mapa de alertas de desmatamento e
mesmo em etnomapas desenhados pelo próprios tentehar no PGTA, é
visível que a floresta vem sendo consumida de fora para dentro, ou seja,
quanto mais próxima das cidades, dos “civilizados”, maior a sua
36

degradação. Nas regiões de fronteiras com as cidades se concentram os


ramais madeireiros e trilhas de arrastes. Hoje, os 50% restantes de área
preservada encontram-se mais ao centro da terra indígena. (SANTOS;
SANTOS, 2017), (ISA, 2018).
Nessa terra vive uma população de 7.329 pessoas, de acordo com
registros do censo de indígenas de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE). No entanto, de acordo com a Coordenação Técnica
Local (CTL) da Funai em Amarante, eram 13.000 pessoas em 2017.
Envoltos nessa ilha territorial, os Tentehar dividem esse espaço com karaiw
(não indígenas5) e dois grupos nômades isolados Awá-Guajá com
aproximadamente 80 pessoas, acreditam os tentehar. (IBGE, 2012;
SANTOS; SANTOS, 2017).
São 151 aldeias com população flutuante de 50 a 800 pessoas cada
uma. Em um zoneamento feito por caciques e lideranças o território foi
dividido em seis regiões, a saber: a) Canudal; b) Arariboia; c) Zutiwa; d)
Angico Torto; e) Lagoa Comprida; f) Bom Jesus; g) e reserva Awá. Nos
etnomapas dessas micro regiões o verde ainda aparece preponderante
apenas nas regiões de Lagoa Comprida e Bom Jesus. Lá se concentra a
maior diversidade de árvores nobres e animais silvestres, onde também
perambulam dois grupos Awá. Sem muitas interferências externas, aldeias
mais espaçadas, nessas duas pequenas ilhas os moradores ainda vivem
mais ao estilo tradicional, dependendo exclusivamente da floresta e roças
de subsistência. (SANTOS; SANTOS, 2017).
A região do Canudal enfrenta a maior intrusão de madeireiros e
caçadores. A de Angico Torto concentra o maior número de aldeias. Nessas
regiões são identificados registros de caso de violência física e preconceito,
com invasão de aldeias, assassinatos e ameaças de morte. As regiões

5
O número pode estar associado ao casamento entre não indígenas e indígenas Tentehar.
Em função de disseminarem valores ocidentais, a união entre homens não indígenas
(karaiw) e mulheres Tentehar é identificado como um problema pela Comissão dos
Caciques e de Lideranças Indígenas da terra indígena Arariboia (CCOCALITIA). Como
explicou Zapu’y, os maridos se sentem donos da terra (SÁ, 2014; SANTOS; SANTOS,
2017).
37

Zutiwa e Arariboia vivem processos semelhantes. A aldeia Juçaral está


situada na região da Arariboia, compreendendo 24 aldeias situadas ao longo
do rio Buriticupu. É nessa pequena ilha da ancestralidade tentehar, a
Juçaral, onde sempre aportamos. (SANTOS; SANTOS, 2017).
A aldeia Juçaral está localizada na zona rural do município de
Amarante-MA6. O acesso é feito pela rodovia MA 275, partindo desse
município em direção a cidade de Sitio Novo-MA, quando entramos à
esquerda na primeira estrada vicinal. Daí percorre-se por uma estrada
piçarral que se estenderá por volta de 35 quilômetros até chegarmos a
Juçaral, cartão postal de entrada na Arariboia por esse munícipio.
O espaço biocultural que constitui o trecho entre Amarante do
Maranhão e a aldeia Juçaral é marcado por conflitos em função dos
interesses socioeconômicos díspares dos moradores que atualmente
ocupam esse espaço. Nele encontramos fazendas cuja atividade principal é
a pecuária extensiva; a TI Governador7, pertencente ao povo Gavião
Pykopjê; e um pequeno povoado, de nome Campo Formoso, habitado
principalmente por famílias de pequenos agricultores.
Percorrendo esse trajeto até a aldeia Juçaral sempre nos acompanha
uma mistura de sensações que, por vezes, alegra a alma, por outras,
entristece e causa medo. Na solidão que marca o trajeto, ouvir o canto e
assistir os voos rasantes dos pássaros ou mesmo ver a variedade de
espécies de flores que embelezam a paisagem rasteira anima a viagem.
Nada como contemplar um florido jardim de pequenos lírios selvagens
rosados, com nuances que se aproximam da cor salmão, ao longo da
estrada, em meio aos inúmeros pequizeiros que dão um cheiro
característico e inconfundível as matas de cerradão existentes na região.

Os cheiros e as cores do caminho à Aldeia Juçaral

6
O município de Amarante do Maranhão tem a segunda maior população indígena do
Maranhão. Sua área abrange parte da TI Arariboia, TI Governador e TI Krikati.
7
A TI Governador possui área de 41.644 ha, situada no município de Amarante, teve
demarcação homologada pelo decreto 88.001 de 28/12/82.
38

Os ipês floridos nas cores rosa, branca e amarela são um espetáculo


à parte digno de uma parada para fotografias. A floração do ipê parece falar
do grande poder natural do cerrado, de como a fênix regenera-se e renasce
das cinzas. O fenômeno acontece depois de um longo período de mais ou
menos seis meses de estiagem, de maio a outubro. Entre os meses de
agosto a outubro o bioma respira o cheiro de gás carbônico em função de
queimadas naturais próprias da estação ou mesmo provocadas, para citar
como exemplo a prática da caça ilegal. O chocante ipê amarelo, os belos
ramalhetes de flores selvagens de cor lilás fazem a mente esquecer por
alguns minutos de possíveis transtornos e dificuldades do caminho.
No seu livro Tristes Tópicos Lévi-Strauss (1996) narra com riqueza de
detalhes a sua trajetória de chegada ao Brasil, bem como a grande e
audaciosa incursão que fez na região Centro-Oeste do país para conhecer
diferentes povos originários. Nas suas impressões, antes da chegada ao
Brasil, por exemplo, inconscientemente associou as palavras Brésil e
grésiller que o fez pensar no Brasil como num perfume queimado. No
entanto, foi no seu convívio com as estações de chuva e de estiagem no
cerrado, narrada com imensa riqueza de detalhes, criando uma imagem
quase palpável, que o antropólogo franco-belga pôde sentir na pele o peso
que a vida é capaz de suportar nos extremos das duas estações com os
seus cheiros, belezas e perigos inerentes às épocas.
Na estação chuvosa, o caminho é marcado pela formação de
pequenas lagoas na cor vermelho barro que temos que atravessar, onde a
água da chuva se acumula. Nos aclives o desafio é conseguir controlar o
carro no barro grudento e deslizante. O solo totalmente irregular e cheio de
pequenos buracos faz o coração bater mais rápido e o corpo gelar por alguns
minutos. Já na estação seca a paisagem muda, muitos dos buracos
permanecem, mas ficam escondidos, em muitos trechos, embaixo de uma
fina camada de poeira, que deixa até a alma da vegetação pintada com a
cor da puaca (poeira fina) que mais parece fumaça provocada por um
grande incêndio. A nuvem de poeira encobre por alguns minutos totalmente
a visão.
39

Enquanto nós parecemos sofrer nesse trajeto, os povos originários e


os posseiros passam voando em seus pequenos foguetes, motocicletas com
100 ou 150 cilindradas, que em boa parte das vezes vai carregada com a
família inteira. Hoje a moto é o principal meio de transporte usado por essas
populações para seus deslocamentos diários. Com suas motos os habitantes
do local conseguem atravessar sem grandes dificuldades bancos de areia
que se formam em alguns trechos. Posicionamos o carro em marcha de
força e rezamos em silêncio para não atolarmos na densa areia.
Avistar uma família inteira numa moto, quase sempre sem o uso do
capacete, impressiona pelo perigo que aparentemente se apresenta. No
entanto, cruzar com um caminhão madeireiro nos faz franzir a testa de
preocupação. Esses caminhões, que mais se parecem uma caveira humana,
assumem literalmente a identidade da morte. Seu aspecto visual resume-
se a uma cabine, um volante e um motorista sentado sobre um chassi e
uma carroceria de madeira lisa, apoiados sobre quatro pneus. Em cima da
carroceria são amarradas as almas dos espíritos da floresta, o restante das
árvores que ainda não foram levadas pelos assaltantes da chamada
civilização. Geralmente os avistamos quase sempre vazios, pois o furto
parece acontecer depois que anoitece. Alguns indígenas Gavião e Tentehar,
mais conscientes da situação, parecem ter tomado as rédeas da situação e
começaram, por conta própria, a fiscalizar seu território, e criaram um
grupo de proteção que denominam “guardiões da floresta”.
Uma outra paisagem que compõe o cenário de conflitos do trajeto são
as fazendas destinadas a pecuária extensiva. Os largos pastos para a
plantação de capim; os rebanhos bovinos que avistamos nestes cercados;
ilhotas de resto de reservas, compõem o desenho das monoculturas, que
“[...]ocupam primeiro a mente e depois são transferidas para o solo” [...].
(SHIVA, 2003, p. 17).
Quando os ânimos se acirram e o conflito latente emerge do
subterrâneo das memórias adormecidas, os Gavião fecham a estrada
principal e impedem que os transeuntes passem, fato que presenciei uma
única vez. Os Gavião Pykopjê reivindicam na justiça o direito de ampliação
40

das suas terras. Tal reivindicação gera permanente conflito entre posseiros,
fazendeiros e os Gavião. E até mesmo entre os Tentehar que vivem nessa
terra. Em função de conflitos relacionados à posse da terra essa área é
conhecida como “faixa de gaza maranhense” (SÁ, 2014).
A poesia da natureza se reestabelece quando atravessamos uma
pequena ponte, debaixo da qual corre um pequeno riacho envolto aos pés
de buriti ao nos aproximarmos da terra Arariboia. No riacho Faveira, situado
na aldeia Faveira, ainda em terra Gavião, contudo uma aldeia Tentehar,
quase sempre as crianças estão tomando banho enquanto uma mãe lava
seus utensílios domésticos ou roupas. Curiosas, as crianças costumam parar
o banho para olhar quem passa na estrada.
Uma das últimas paisagens é um pequeno povoamento rural, de
nome Campo Formoso. Esse povoado funciona como um ponto de
abastecimento para várias aldeias do entorno. Nele é possível comprar
carvão vegetal, gasolina, mantimentos e bebidas em pequenos
estabelecimentos como mercearia, açougue e bares, e ainda servir-se de
estabelecimentos públicos como escola, posto de saúde e igreja. Na
memória local, a formação do povoado está associada ao início da
exploração ilegal dos recursos naturais da Arariboia, visto que, segundo
Toinho Guajajara, “o primeiro morador do povoado se fixou no local para
contrabandear espécies vegetais e animais” (SÁ, 2014, p. 32).
Mais à frente, logo após uma fazenda, ao lado esquerdo, o encontro
com o rio Buriticupu e uma ponte para atravessá-lo sinalizam a nossa
chegada à TI Arariboia e à aldeia Juçaral. Ao redor do leito do rio há ainda
sobras de vegetação nativa. Os altos buritizeiros demarcam a passagem do
rio. Um banho de água fria, que desamina qualquer desavisado da cidade,
não causa qualquer estranhamento em jovens e crianças, que mergulham
com a ligeireza de aproveitar ao máximo o banho no rio. Um dos principais
usos, atualmente, devido ao uso de água encanada nas moradias.
A arte tradicional de cestarias brota de área alagadiça das palmeiras
de guarumã e dos buritizeiros que margeiam o rio Buriticupu. Foi no fundo
do quintal da sua casa, por onde corre este rio, com uma faca afiada na
41

mão, que Maria Parazawu me mostrou como se colhe a palmeira guarumã


para confeccionar artefatos diversos como cestos, balaios, tapitis. “Pois a
natureza é feita de maneira a ser mais vantajosa para a ação e o
pensamento agir como se uma equivalência que satisfaz o sentimento
estético correspondesse também a uma realidade objetiva” (LÉVI-
STRAUSS, 2012b, p. 32).

Pedagogias da diversidade em uma ilha de saberes ancestrais

Numa recôndita ilha de saberes e memórias ancestrais, que teima em


sobreviver em meio à pilhagem dos seus recursos naturais: é como nos
sentimos ao chegar na TI Arariboia. Um povo com um rico universo
cosmológico que ancestralmente não separou homem-natureza, natureza-
cultura, natureza-sobrenatureza, pois a sabedoria ancestral é como “o lodo
que mantem viva a lagoa”. Esse é um jeito de viver e sentir o pensamento
e uma maneira de falar da vida que associa simplicidade e sentimento de
parentesco com o mundo (ALMEIDA, 2016, p. 15).
A aldeia Juçaral é uma dessas pequenas ilhas em que uma ou mais
famílias extensas tentehar costumam viver na Arariboia. O nome Juçaral
decorre da abundância da palmeira que no Maranhão chamamos por Juçara.
Os juçarais acompanham o curso do rio Buriticupu. “A diversidade biológica
e cultural são construções mutuamente dependentes enraizadas em
contextos geográficos definidos” (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015, p.
15).
Construir moradias ou aldeias nas proximidades de um rio ou de um
igarapé é uma tradição que permanece. “Porque o costume do Guajajara
sempre é morar perto de onde tem água, [...] onde tiver água ele faz
moradia”, disse Fred Guajajara (SÁ, 2014, p. 165). Todas as 24 aldeias da
microrregião da Arariboia estão localizadas ao longo do percurso do Rio
Buriticupu. O desmatamento de suas margens acelera processos erosivos.
Produtos tóxicos de propriedades vizinhas contaminam as suas águas frias
(SANTOS; SANTOS, 2017).
42

As casas estão distribuídas ao longo de uma grande rua, como num


pequeno povoado rural. São aproximadamente 70 famílias e 400
moradores. Juçaral é uma das maiores aldeias da Arariboia em população.
As moradias em sua maioria são construídas de barro e pau a pique,
popularmente conhecida como casa de taipa, com chão de barro batido e
cobertas com palhas de babaçu, embora seja crescente o número de
residências construídas com tijolos e cobertas com telhas, sobretudo por
moradores que possuem emprego público nas áreas da saúde e educação.
Uma característica peculiar que diferencia suas casas das demais é
que não possuem janelas. Não faz muito tempo, me relatou seu Ozéas
Guajajara (2019), “as casas não tinham nem paredes”, eram altas com uma
espécie de andar, onde os moradores se abrigavam contra possíveis
ataques de animais selvagens, relatou Zapu’y (SÁ, 2014).
Os cômodos das casas são divididos em sala, quarto e cozinha, com
uma área coberta aberta ligada a mesma estrutura aos fundos, onde
geralmente tem o fogão de barro, o tanquinho de lavar roupas, o jirau com
torneira, o tear tradicional. A residência dos Tentehar é um espaço híbrido,
em que coexistem tecnologia milenar e industrial. Eletrodomésticos, como
televisão, aparelho de som e geladeira dividem o cenário com objetos
tradicionais como cuias, cestos, tapiti, maracá, roupas e colares usados em
festas tradicionais. Os últimos adornam salas e cozinhas, ao que parece
como uma espécie de reverência a sua ancestralidade.
Se a cultura material está à vista dos olhos, adornando a vida, a
imaterial nem tanto assim. O uso da energia elétrica apagou a chama das
fogueiras que aguçava os ouvidos e alimentava a memória com as histórias
do imaginário cultural Tentehar. A fogueira noturna, um elo entre avós,
filhos e netos, lugar antigo que favorecia uma pedagogia indígena para
transmissão de valores e filosofias de vida, atualmente só costuma ser
acesa em noites frias e em dias de ritual para aquecer o corpo na passagem
da madrugada. No contexto atual, como me relatou Toinho Guajajara,
assistir a uma novela as vezes é mais atraente que ir a uma festa
tradicional, ou a uma cantoria (SÁ, 2014).
43

Hoje, a preocupação é com a chegada da internet à aldeia, fato que


ocorreu em outubro de 2019. As tecnologias modernas são necessárias para
os contatos externos, o trabalho de lideranças e funcionários públicos, e
mesmo para o acesso a notícias, bens e serviços gerais. No entanto, há a
preocupação que seus valores tradicionais sejam ainda mais impactados
com o uso de smartphones pela juventude e mesmo pelos adultos. Na visão
de Toinho Guajajara (2019), a chegada da internet representa “o fim das
tradições”. Esse tom aparentemente pessimista refere-se à preocupação
com o tipo de uso, menos do que uma rejeição às tecnologias atuais.
O sentimento de desconfiança de Toinho Guajajara tem sentido, pois
a ocidentalização, funcionando como uma máquina impessoal de
desenraizamento, promove o enfraquecimento cultural, cujo etnocídio é o
seu grau supremo, explica o economista e filósofo francês Serge Latouche.
Para este autor

Feridas no coração, as sociedades não ocidentais só podem


girar no vazio. A perda de sentido que as atinge e as consome
progressivamente como um câncer não é uma aculturação. O
simples fato de que o Ocidente está aí, presença insuprimível
e inassimilável, não implica que se incorporem seus recursos
e seus segredos. Essa presença, sem qualquer violência física,
sem tentativa de espoliação e de exploração, é em si mesmo
cataclísmica. O bicho está na fruta... (LATOUCHE, 1994, p.
68).

As duas igrejas cristãs evangélicas que existem na aldeia engrossam


o caldo da invasão dos valores do mundo ocidental. A disseminação da
religião cristã afeta crenças e práticas culturais da sua cosmologia
originária. Afinal, “[...] que lhes resta quando seus deuses estão mortos,
seus mitos são fábulas, suas proezas são impotentes e inúteis?”, o
desencanto literalmente falando, responde Latouche (1994, p. 68) e Joseph
Campbell (1990).
A escola e o posto de saúde são as instituições oficiais que empregam
parte dos moradores locais. Há, também um posto do Ibama de combate e
prevenção de incêndios, funcionando apenas em época de estiagem.
44

Na saúde, as funções ocupadas por moradores locais se dividem entre


dois agentes de saúde e uma parteira tradicional. Os cargos de nível
superior como médico, enfermeira e dentista ainda são ocupados por não-
indígenas. A contratação recente de uma parteira, enquanto profissional da
tradição, é um importante reconhecimento para a valorização dos saberes
tradicionais.
A educação formal existe na aldeia desde 1995. Há atualmente duas
salas de aula na escola. Os professores indígenas trabalham com turmas do
ensino infantil ao fundamental maior. No ensino médio a maioria dos
professores ainda são não-indígenas. A educação escolar funciona num
contexto de dificuldades estruturais com restrita presença assistencial dos
órgãos educacionais responsáveis. Quanto aos conteúdos, ainda
prevalecem aqueles dos livros didáticos convencionais e escritos em língua
portuguesa (SÁ, 2014).
Se na escola local prevalece o saber do não-indígena (karaiw), nos
quintais das moradias locais é possível acessar uma sabedoria botânica a
serviço da vida.

A diversidade botânica ensina a cuidar da vida no quintal

A composição da biodiversidade da qual os saberes da tradição fazem


uso em seus quintais expressa o tom heterogêneo dos cheiros, cores,
sabores e curas. Na sua vasta extensão podemos encontrar flores, plantas
medicinais, plantas mágicas, fruteiras, diferentes sementes usadas para
produção de adornos corporais, além da criação de animais domésticos e
silvestres. Esses múltiplos usos de um ecossistema foi possível graças a
capacidade da espécie humana em se adaptar às peculiaridades de cada
habitat, tirar proveito das particularidades e das singularidades do entorno
local (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015).
Nesses quintais há uma diversidade paisagística de flores silvestres e
domesticadas, de diferentes tamanhos e cores, roseiras, hibiscos
vermelhos, vincas, entre outras. Umas das lideranças femininas da aldeia,
45

a parteira Imaíra Guajajara, parece ter herdado o mesmo gosto que seu
homônimo, o parente ancestral Maíra-Yr, que pediu a sua mãe que colhesse
flores para ele cheirar ainda no seu ventre, como veremos a seguir. A
variedade de espécies vegetais que há em seu jardim é digna de uma
parada para apreciar (SÁ, 2014).
Os quintais também abrigam diferentes espécies frutíferas com
destaques para cajueiros, mangueiras, jaqueiras, cajazeiras, cacau do mato
e mesmo árvores medicinais como o cumaru, a quina e a copaíba, além de
pequenas roças onde se cultiva principalmente mandioca, milho e
mandiocaba. “A conversão de florestas naturais em florestas humanizadas
tem sido uma prática antiga nas regiões tropicais do mundo” (TOLEDO;
BARRERA-BASSOLS, 2015, p. 35).
Plantas como a mandiocaba e o tingui possuem uso ambivalente na
medicina tradicional Tentehar, pois podem ser usadas como remédio ou
veneno. O cacique Zapu’y Guajajara, que cultiva o tingui em seu quintal,
usa a planta para curar diarreias, extraindo a sua água e misturando ao
leite. A professora indígena Ana Cleide Pereira da Silva me explicou que,
tradicionalmente, as folhas são usadas também como veneno em pescarias.
Os peixes que se alimentam da folha morrem, boiam na superfície da água
e são recolhidos no pacará. Portanto, o domínio da quantidade é que
determina o uso ambivalente da substância, pois

[...] Os conhecimentos sobre a natureza... refletem a


sagacidade e a riqueza de observações sobre o entorno
realizadas, guardadas, transmitidas e aperfeiçoadas no
decorrer de longos períodos de tempo, sem as quais a
sobrevivência dos grupos humanos não teria sido possível.
(TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015, p. 33).

Ao descrever sobre o caráter científico do conhecimento indígena,


Lévi-Strauss (2012b, p. 31) reconhece que

[...] para transformar grãos ou raízes tóxicas em alimentos


ou ainda utilizar essa toxicidade para a caça, a guerra ou o
ritual, não duvidemos de que foi necessária uma atitude de
46

espírito verdadeiramente científico, uma curiosidade assídua


e sempre alerta, uma vontade de conhecer pelo prazer de
conhecer.

Um vasto e minucioso inventário na classificação de espécies vegetais


e animais de diferentes povos primitivos demonstra que elas são conhecidas
não porque são úteis, mas são consideradas úteis ou interessantes porque
são primeiro conhecidas, conclui Lévi-Strauss em O pensamento selvagem
(2012b).
Essa tradição científica dos povos indígenas também foi reconhecida
por D’Evréux (2007) e Abbeville (2008) ao conviverem com diferentes
povos no Maranhão no início do século XVII. Os autores narram com riqueza
de detalhes a abundância de árvores, ervas e raízes que colaborava para a
disposição do corpo saudável, quando falam do rio Mearim: “As margens
deste rio estão cobertas por árvores medicinais, muito melhores das que se
achavam comumente, [...] certas composições são excelentes laxantes, e
assim conservam o corpo para o seu benefício [...]” (D’EVRÉUX, 2007, p.
20-21).
Aprender com a natureza, a partir de uma relação muito próxima,
aprendendo a ver, ouvir, sentir e observar os seus sinais, é o modo
costumeiro dos intelectuais da tradição de ler o mundo. Daí porque faz
sentido as palavras do sábio Francisco Lucas da Silva, pois “tudo quanto a
ciência descobre, a natureza já ensinou há muito tempo” (ALMEIDA;
SEVERO, 2016, p. 18; ALMEIDA, 2017b).
A diversidade botânica alimenta uma pedagogia fitoterápica em prol
da vida, utilizada para cura e sobretudo na prevenção de muitas doenças,
um costume que vem de longe e se mantêm:

[...] Eu fui tomando remédio caseiro, do mato, casca de pau,


cantareno, tem outras cascas de pau que a gente faz remédio,
mangabeira da chapada, [...] casca de aroeira também, casca
de candeio, tem casca de quina, de jatobá para dor na coluna
(SÁ, 2014, p. 136).

Vi tirar-se da casca de certa árvore uma espécie de almecega,


semelhante à que cresce nos jardins da Europa, e dizem os
47

selvagens que serve para toda moléstia, e assim a empregam.


Contam mais, que todos os animais ferozes, quando se
sentem feridos ou doentes, recorrem a esta árvore para
curarem-se, e por isso raras às vezes se encontra uma só com
toda a sua casca, por ser roída constantemente [...].
(D’EVRÉUX, 2007, p. 126).

A própria natureza nos ensina. Ao falar da indicação do leite do pinhão


para curar picada de cobra, Chico Lucas se vale de uma analogia: “Na luta
do tejo com uma cobra venenosa, quando o tejo é picado de cobra, ele
corre para o pé de pinhão, morde caule, chupa o leite e volta para continuar
a luta” (ALMEIDA; SEVERO, 2016, p. 45).
A resina da almesca (ihik) ou almecega (Protium heptaphyllum), é
utilizada para grudar as penugens de gavião no peito de rapazes e moças
nos seus rituais de passagem. É também indicada para dores de cabeça. A
resina defumada em um pedaço de algodão ou pano afasta os maus
espíritos, as doenças, protege a casa e reverencia os antepassados. O seu
incenso também é usado pelo pajé para purificar o ambiente, pois tem
poder de conexão espiritual. Entre os Pataxó, possibilita entrar em contato
com seus ancestrais para tomar decisões acertadas (ZANNONI, 1999; SÁ,
2014; PATAXÓ, 2012).
Além da almesca, encontramos outras plantas de uso medicinal, como
o frondoso e cheiroso cumaru (Dipteryx odorata); a quina (Cinchona
officinalis); a andiroba (Carapa guianensis); a copaíba (Copaifera
langsdorffii); o jaborandi (Pilocarpus microphyllus) o urucum (Bixa
orellana); e a maconha (Canabis sativa). Boa parte dessas plantas são bem
apreciadas pela indústria farmacêutica e de cosméticos.
Na memória dos tentehar o assalto aos produtos da floresta da terra
indígena Arariboia iniciou com a exploração de óleo vegetais, sobretudo a
copaíba. De modo que o direito pela posse da terra foi trocado por inúmeras
latas de óleo de copaíba, nos relatou Zapu’y Guajajara. Conforme descrito
no Plano de Gestão Territorial e Ambiental da Terra Indígena Arariboia,

“[...] Foram muitas lutas e negociações. Pretensos


fazendeiros, comerciantes, empresas... se instalavam
48

próximo à área ocupada, para se apropriar de parte da terra.


Conseguimos expulsar alguns, outros compramos a área
ocupada com óleos vegetais”. (SANTOS; SANTOS, 2017, p.
21).

A exploração iniciada no ano de 1925 com a copaíba se estendeu a


outros bens valorizados pela indústria farmacêutica, como a resina de
jatobá, sementes de cumaru, a folha de jaborandi, a casca de quina e peles
de animais, me explicou Toinho Guajajara. A biopirataria e a apropriação
científica das sabedorias locais é um problema, pois “[...] a ciência, com
sua obsessão em traduzir tudo e se apropriar das sabedorias para torná-las
mercadorias, agora promove uma biopirataria sem precedentes na
história”, enfatiza Conceição Almeida (MUNDURUKU, 2010, p. 25).
De acordo com Toinho Guajajara o processo de espoliação acontecia
mais ou menos assim: a indústria enviava um funcionário à cidade mais
próxima. Lá o funcionário contratava um atravessador, o qual se se dirigia
ao território indígena com mercadorias, sobretudo espingardas, muito
valorizadas pelos tentehar para caça. Houve um tempo que foi montado em
uma aldeia uma oficina para fabricação de armas artesanais para trocar
pelos produtos da floresta, afirmou Toinho.
De acordo com Vandana Shiva (2003), um dos processos que o saber
dominante ocidental usa para o desaparecimento dos saberes locais é fazer
o saber local desaparecer negando a sua existência, atribuindo-lhe adjetivos
como “primitivo” e “anticientífico”. Para Daniel Munduruku, “o saber do
indígena é tido como domínio público, mas o do cientista é tido como um
saber próprio”. A sociedade do “progresso” tem a tecnologia, mas não
dispõe de matéria-prima para produzir seus inúmeros produtos, esclarece
o autor. (MUNDURUKU, 2010, p. 26).
A Cannabis sativa, o cânhamo ou maconha, uma planta de origem
asiática, é cultivada em boa parte dos quintais da aldeia. De uso milenar
pela sabedoria tradicional, segundo a literatura histórica, chega ao nosso
território pelos africanos no período. Não se sabe quando, mas a erva foi
49

incorporada ao cotidiano dos tentehar e é hoje um dos principais remédios


da sua medicina tradicional.
Conta a narrativa de origem da maconha que o cheiro forte e
marcante da fumaça despertou a curiosidade de um tentehar em conhecê-
la. Certo dia um indígena percebeu em suas caçadas que os porcos do mato
usavam a erva cheirosa. Sua curiosidade o levou a se encantar para
conviver com os porcos do mato a fim de descobrir mais sobre a planta. Na
sua metamorfose, vivendo entre os porcos do mato (os donos naturais da
erva, nessa cultura), o indígena descobriu o lugar de colheita, conseguiu as
sementes e ainda aprendeu sobre seus efeitos colaterais: “[...] Rapaz teu
fumo é tão cheiroso! Rapaz meu fumo aqui não é para todo mundo que
pode não. Se fumar só uma fumaça, ou duas fumaças, depois ele vai ficar
triste pensando, com pouco vai rir à toa, depois fica desanimado, outro não
quer comer [...]”, narrou Zapu’y Guajajara (SÁ, 2014, p. 141).
Desde então passaram a plantar e usar a erva no cotidiano. Com o
domínio prático das propriedades terapêuticas da maconha aprenderam a
usá-la ainda na forma de leite, óleo, chá e pomada, todas as indicações são
usadas para curar diferentes enfermidades. Imaíra Guajajara aprendeu a
produzir o óleo da maconha com a mãe. Nos últimos anos produz o óleo
para revendê-lo. Em 2019 sentiu a necessidade de desenvolver uma
pomada a partir do óleo. Por meio de várias tentativas desenvolvidas na
sua cozinha conseguiu produzir a pomada que ela indica para dores.
A estratégia de pensamento usada pela sabedoria milenar para a
manipulação da maconha está mais próxima da percepção e da imaginação.
É o que Lévi-Strauss (2012b) chama de ciência primeira ou neolítica. Para
esse pensador, há duas estratégias de pensamento a partir das quais a
natureza é abordada: a neolítica, mais próxima a uma lógica do sensível, e
a científica, mais distante dessa lógica. As duas estratégias de pensamento
constituem juntas uma mesma ciência.
Em estudos recentes, muitas das doenças que a sabedoria milenar
tradicionalmente trata a partir do uso da cannabis têm sua eficácia
50

comprovada pela técnica científica moderna8. No entanto, não somos


ensinados nas escolas e nas universidades a reconhecer a importância e o
valor das experiências de sabedorias tradicionais, de saberes que acumulam
a experiência de seus antepassados. Muito dos conhecimentos dos quais
nos valemos atualmente foram sendo gestados por meio de inúmeras
experimentações e aprendizagens das populações humanas ao longo dos
séculos. Homens e mulheres que consolidaram, transformaram e
acresceram conhecimentos que chegaram até nós como um presente,
ressalta Almeida (2012).
Daí compreendermos que o diálogo e a complementariedade entre os
saberes da tradição e os acadêmicos facilitam uma ecologia das ideias e da
ação, aumentam a variedade, alimentam a criatividade, e mantêm a
diversidade. No entanto, o seu contrário, promovido pela monocultura do
saber moderno em laboratórios industriais e universidades está nos
conduzindo ao empobrecimento em todas as dimensões da experiência
humana.
Assim, é importante a desconstrução da ideia de que o pensamento
mítico-mágico é um rascunho,

“[...] um começo, um esboço, parte de um todo ainda não


realizado; ele forma um sistema bem articulado;
independente, nesse ponto, desse outro sistema que constitui
a ciência” [...]. Portanto, em lugar de opor magia e ciência,
seria melhor colocá-las em paralelo, como dois modos de
conhecimento desiguais quanto aos resultados teóricos e
práticos [...]. (LÉVI-STRAUSS, 2012b, p. 29).

8
Atualmente estudada pela ciência moderna, a maconha é considerada uma planta
altamente complexa. Contêm mais de 60 substâncias, e a produção de canabinóides,
moléculas instáveis, são produto de degradação. De acordo com o dr. Wolfgang Harand
(2018), qualquer que seja o método de extração da cannabis, a sua composição será
sempre uma mistura, que dependerá de vários fatores que vão desde o plantio e trato
cultural a métodos de extração e armazenamento. Considerada um presente dos deuses
para os hindus é hoje uma espécie de santo graal para a medicina científica, indicada para
o tratamento de mais de 50 tipos de doenças, conforme registra o site
ghmedical.com/diseases.
51

Uma “ciência neolítica”, mais próxima da intuição sensível, exerce


uma pedagogia voltada para a educação dos sentidos. Essas tradições
científicas primeiras de “[...] origem pré-moderna encontra-se em mais de
6 mil culturas não ocidentais, [...] conservam valores civilizatórios
tradicionais ou não modernos em contínua interação com a natureza”, e
continuam permanentes e atuais (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015, p.
85), (ALMEIDA, 2012), (LÉVI-STRAUSS, 2012b).
Os valores e saberes que sobressaem da interação com a natureza
podem ser encontrados nos terrenos alagadiços das residências situadas ao
lado esquerdo da aldeia, cujo fundos encontram o rio Buriticupu. Lá
avistamos palmeiras nativas, como a juçara (açaí), o buriti, o guarumã, o
inajá, a bacaba e a buritirana. Palmeiras, árvores de médio e grande porte,
cipós, uma rica biodiversidade que a artesã de cestarias Maria Parazawu faz
questão de preservar em seu quintal.
Foi lá que presenciei a técnica artesanal de extração do óleo de
andiroba. Nesses espaços da tradição indígena, os Tentehar aprenderam
“[...] a realizar uma produção não especializada, explorando o princípio da
diversidade de recursos e das práticas produtivas” (TOLEDO; BARRERA-
BASSOLS, 2015, p. 73).
Entrançando palhas de boa parte dessas palmeiras Maria Parazawu
dá vida a cestarias e objetos diversos como pacará, abanos, esteiras,
peneiras, panacu, quibano, tápiti e balaio. Sua mãe lhe ensinou a fazer uma
simples oferenda a Tupàn, Deus do trovão na mitologia tupi-guarani. Essa
simpatia lhe renderia a habilidade para tecer cestarias, como de fato se
concretizou a partir de experiência realizada com sucesso. Atualmente,
somente Maria, seu esposo e o irmão se dedicam a esta atividade em toda
a Arariboia (SÁ, 2014).
Além de servirem à nutrição e terapia, algumas plantas podem ser
classificadas como mágicas ou poderosas. O jenipapo, a pira ka á e o
mukamuka, por exemplo, são plantas usadas como armas para proteção,
cura e combate de males físicos e espirituais (SÁ, 2014; SILVA, 2012).
52

O mukamuka é um cipó que os mais velhos acreditam proteger dos


possíveis infortúnios em caso de encontro com algum inimigo ou rival em
uma viagem. Foi o que Zapu’y aprendeu com sua mãe Santarena Kapi:

[...] meu filho tem um mato que a gente planta, que quando
tu viajar, porque tem muito inimigo. Tem muita gente ruim
que nu gosta de ti. Tem gente que te persegue. Ai, tu anda
com esse mato, tu nu encontra briga nenhuma. Tu encontra
só amizade. Tu nunca acho briga. Eu nunca achei briga [...].
É um cipó mukamuka. Quando eu saio pra minha viagem eu
pego aqui, boto no meu bolso e vou embora (SÁ, 2014, p.
144).

Ao aprender com a mãe sobre os poderes mágicos da planta


mukamuka, a partir dessas narrativas tradição, Zapu’y foi constituindo o
seu catálogo natural de árvores, cipós, animais, minerais e crenças. Por isso
o seu quintal se parece mais com uma botica natural biodiversa. A partir
do convívio com a diversidade biológica do entorno e as sabedorias locais,
individual e coletivas, foi nomeando, classificando todos os seres. De fato,
todas as coisas nessa cultura podem ser classificadas e têm um dono, um
espírito ou uma pessoa que é responsável por cuidar de algo, como veremos
a frente.
Catálogos da diversidade biocultural foram se constituindo milênios
após milênios, com os diferentes personagens e cenários naturais que
podem ser acessados a partir de narrativas míticas. Transmitidas de
geração a geração, por meio dessas histórias acessamos a memória
biocultural da espécie, podemos conhecer valores, sabedorias e
cosmologias que nos revelam “[...] as relações que a humanidade tem
estabelecido com a natureza, sua base de sustentação e referencial de sua
existência ao longo da história” (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015, p.
23). Inclusive, muitos povos originários “contam histórias de um tempo
antes do tempo” (KRENAK, 2020, p. 70).
Para Toledo e Barrera-Bassols (2015), a memória da espécie humana
se divide em três dimensões: genética, linguística e cognitiva, que
expressam a diversidade cultural humana. Já a diversidade biológica é
53

expressa em quatro níveis: das paisagens naturais, dos habitats, das


espécies e dos genomas. Diversidade biocultural é como denominam o
complexo biológico-cultural originado da interação entre as culturas e os
ambientes naturais. Assim, os autores concluem que “[...] o processo
biocultural de diversificação é a expressão da articulação e amálgama da
diversidade humana e não humana e representa, em sentido estrito, a
memória da espécie” (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015, p. 40).
Nas histórias plantadas nos quintais de uma família tradicional
indígena podemos colher mais do que remédios e artefatos diversos.
Podemos saber sobre inteligências muito antigas que aprenderam a
conhecer e a manejar a biodiversidade silvestre e domesticada com base
em uma pedagogia do cuidado necessário em “satisfazer as suas
necessidades e aspirações sem diminuir as chances das gerações futuras”
(CAPRA, 2006 p. 13).

Pedagogias do bem viver

Os animais domésticos e silvestres, dividem os espaços dos quintais


e pátios. Aves como galinhas e guiné são criadas soltas. Os principais
animais domésticos são cachorros e gatos. Os cachorros colaboram na
prática da caça e segurança das casas. São vistos por todos os lados em
grande quantidade. São geralmente desnutridos e se achegam a qualquer
cheiro de refeição.
Os Tentehar creem que matar um cachorro pode causar perturbação
psíquica duradoura ao matador, ou ainda a morte de um filho. As duas
consequências são provocadas diretamente pelo espírito do cachorro morto.
Animais silvestres como macaco, periquito, papagaio, arara e veado são
criados nesses quintais e cuidados com muito zelo e mimo. Todos esses
animais têm o seu valor e importância na teia da vida, por isso, como
veremos adiante, são reverenciados em seus rituais.
Essa hibridação entre homem e animal é colocada de forma alegórica
quando Chico Lucas fala do cachorro filósofo:
54

[...] um caçador que saia para caçar todo os dias com seu
cachorro para caçar, a fim de garantir a alimentação de sua
família. Um dia, durante a caçada, esse homem foi picado de
cobra e morreu na hora. O cachorro voltou para avisar a
família [...]. A partir daí todos os dias o cachorro saia para
caçar a fim de trazer o alimento para mulher e as crianças.
(ALMEDA; SEVERO, 2016, p. 84).

No final da narrativa Chico Lucas pergunta: “esse cachorro não era


filosofo?” Há uma pedagogia do cuidado com a vida, sentimento de
fraternidade, parceria e responsabilidade entre animais e humanos
(ALMEDA; SEVERO, 2016, p. 84).
Divididos lateralmente por cercas, os fundos dos quintais se perdem
no horizonte. Por isso, é possível facilmente contemplar o nascer e o pôr do
sol, assim como contar as estrelas, ver o “caminho da anta beber água no
céu” (a nossa via láctea), e outras constelações que é possível identificar
em noites frias da estação seca, como presenciei em julho de 2019,
enquanto nos aquecíamos à beira de uma fogueira. Os animais do
ecossistema local também são protagonistas celestes. Os pontinhos
brilhantes no céu contornam as formas das constelações do jabuti, da ema,
da onça, do tamanduá, por exemplo. Os saberes da tradição reconhecem e
fazem correlações entre os eventos naturais e o cotidiano:

[...] o trânsito do Sol, da Lua, das estrelas, dos planetas e das


constelações é registrado de maneira detalhada pelos
observadores tradicionais e correlacionado a eventos do tipo
climático, agronômico, biológico, produtivo e ritual. [...] a
observação dos corpos celestes permite que o agricultor
tradicional faça o registro do tempo (TOLEDO; BARRERA-
BASSOLS, 2015, p. 99).

A aurora e o crepúsculo são marcados pela quietude diária, as casas


geralmente estão abertas, não há a preocupação em colocar grades e
fechaduras resistentes como ocorre na cidade. O dia passa com a força do
presente, sem qualquer preocupação com o porvir. Em frente às casas, uma
tábua estendida acima de dois pequenos troncos é um lugar de encontros,
55

das pessoas se sentarem para conversar no fim do dia, descansar, catar


piolhos.
O trabalho na roça parece ser calculado na medida de garantir o
necessário para o sustento diário. É preciso destacar que a subsistência dos
povos indígenas se baseia mais em uma sabedoria que valoriza as trocas
ecológicas e usos múltiplos da diversidade natural do que em trocas
econômicas com o fim utilitarista do lucro financeiro, como ocorre nas
sociedades capitalistas a partir da produção de excedentes para o mercado.
É importante notar aqui a diferença entre a concepção nas filosofias
indígenas e a de base ocidental que nos educamos. Diferentemente das
sociedades ocidentais, nas quais nos educamos, a filosofia indígena prioriza
o viver o presente e a garantia do sustento diário, sem se preocupar em
acumular para o dia seguinte. O que à primeira vista pode parecer
passividade ou preguiça para o modo de vida ocidental, para o indígena é
viver com o que o presente lhe dá, pois

Na concepção do tempo indígena, o presente é o único tempo


real. O passado é memorial e o futuro uma especulação que
quase não entra na esfera mental dos povos indígenas. Isso
serve para refletir como isso se choca frontalmente com a
concepção linear, histórica que o Ocidente desenvolveu. Para
o indígena, o tempo é circular, holístico, de modo que vez ou
outra os acontecimentos se encontram sem, no entanto, se
chocarem. O passado e o presente ganham dimensões
semelhantes e se autorreforçam mutuamente. (MUNDURUKU,
2012, p. 70).

Viver o agora é produzir o necessário para a existência do dia a dia.


Os povos indígenas não costumam amarrar o tempo presente ao futuro,
como fazemos nós ocidentais, lembra Daniel Munduruku (2010). Ao falar
da concepção de tempo na filosofia ancestral do seu povo, diz que o futuro
não existe, só existe o agora, o presente, e nele é que vale a pena viver.
Nas sociedades ocidentais a política do “desenvolvimento” e da
modernização, disseminadas pelos valores do mercado, do lucro e da
competição ditam o ritmo apressado e descompassado da vida das pessoas
56

nas grandes cidades. Elas seguem a hora GMT9, que representa “[...] uma
extraordinária uniformização dos modos de vida e de pensamento, e uma
mimesis generalizada” (LATOUCHE, p. 1994, 32).
O ritmo da vida na aldeia ainda acompanha os ciclos naturais. Viver
o presente significa acompanhar os ciclos da natureza vivendo um dia de
cada vez, sem pressa. O trabalho para o sustento diário é sintonizado com
os ritmos naturais, pois combinam de forma articulada e cíclica as práticas
da agricultura, da caça, da pesca e da coleta, um sistema ecológico
complexo que integra roça-mata-rio-igarapé-quintal (LOUREIRO, 1992).
Um mosaico de culturas, agricultura, caça, pesca, extração florestal,
artesanato, favorece o aproveitamento máximo dos produtos que cada
estação oferece ao longo do ciclo anual. Por isso,

O povo Guajajara vive na aldeia com os costumes dos


antepassados, vive de caça, pesca e de roça! Planta
mandioca, arroz, feijão, fava, milho, batata etc. Coleta o mel
e frutos como a bacaba, juçara, buriti, bacuri, cajá, inajá,
tucum, pequi. Caça anta, veado, queixada, caititu, cutia,
jabuti, paca. (SÁ, 2014, p. 77).

Nesse corpo múltiplo, a agricultura é uma das principais fontes de


alimentos das famílias extensas da aldeia Juçaral. Para cultivar o seu
roçado, que denominam por cento10, cada núcleo familiar escolhe um lugar
mais afastado da sede da aldeia. Lá plantam tipos diferentes de cereais e
batatas, como: mandioca, arroz, feijão, fava, milho, batata, inhame, cará,
amendoim, abóbora, entre outros. “Os sistemas de cultivo incluem uma
relação simbiótica entre solo, água, plantas e animais domésticos” (SHIVA,
2003, p. 56).
Na roça, os membros de uma família extensa, pai e mãe, filhos, filhas,
genros e noras trabalham coletivamente, rateando a produção entre si. No

9
Sigla em inglês para Greenwich Mean Time, que em português significa Tempo Médio de
Greenwich, medida a partir da qual são estabelecidos os fusos horários do mundo.
10
Expressão local usada para denominar o lugar mais afastado da aldeia onde cultivam
suas roças, fazem a farinha e geralmente também constroem uma pequena casa para se
acomodar.
57

seio familiar, o trabalho é dividido de acordo com sexo e idade, por isso se
valem do conhecimento acumulado por cada pessoa. A produção da farinha
é um momento significativo, que ilustra bem o encontro entre três ou mais
gerações de um mesmo grupo familiar compartilhando saberes entre si. As
diferentes gerações ensinam e aprendem saberes e técnicas, enquanto
alimentam ao mesmo tempo a memória individual e coletiva. As crianças
em volta observam e aprendem. É da farinha de mandioca imersa na água
que se produz o chibé11, um dos seus alimentos tradicionais.
Não livre de alterações, crises e turbulências, o conhecimento
intergeracional nas sabedorias tradicionais vai se constituindo em um
cenário duplamente cíclico (ciclo diário e anual), de tal maneira que nesse
cenário giratório vão se acumulando as experiências, memorizadas
individual e coletivamente em círculos cada vez mais amplos, formando
aspirais ascendentes, como explicam Vitor Toledo e Narciso Barrera-Bassols
(2015).
Nas suas raízes míticas o desenvolvimento da agricultura está
associado ao cultivo da mandioca. Parece ter sido a curiosidade, a dúvida
de uma jovem mulher que possibilitou aos Tentehar o desenvolvimento de
tal prática, ampliando o cardápio de opções para sua subsistência. Em três
narrativas provenientes de fontes diferentes, com algumas variações, a
história é contada mais ou menos assim:

Quando Maíra andava neste mundo, os Tentehar não


precisavam ir à roça. O machado e o facão trabalhavam por
si mesmos. Sem que ninguém os levassem. As varas de
mandiocas caminhavam para os roçados. Era plantar num dia
e colher no outro.

Maíra mandava a mulher buscar mandioca plantada na


véspera. A mulher encontrava muita mandioca que trazia para
casa e preparava mingau. Quando a companheira caiu
doente, Maíra arranjou outra mais nova. Mandou que fosse
buscar a mandioca plantada na véspera, como sempre tinha
feito. Mas a jovem mulher duvidou de que estivesse crescida,
o que fez Maíra, zangada, falar: agora você vai esperar todo

11
A farinha azeda imersa na água se transforma no chibé, um dos principais alimentos dos
Tentehar.
58

inverno (estação chuvosa) até a mandioca, arroz, milho,


batata e feijão crescer (WAGLEY; GALVÃO, 1961, p. 136).

A jovem mulher parece não ter se contentado com o que a natureza


lhe oferecia, resolveu por si mesma investigar, explorar, ir além. Um
tesouro cultural feminino foi se frutificando no decurso de milênios. Uma
verdadeira enciclopédia sobre a arte da caça, sobre o ambiente, o tempo,
as estações, os animais, as plantas, os peixes, os afrodisíacos, ervas
perigosas, medicina, modos de cozimentos, receitas culinárias, cuidados a
recém-nascidos faziam parte da realidade paleocultural (MORIN, 1973).
Baseada em redes culturais de reciprocidade, os povos indígenas
ensinam uma sabedoria de uso múltiplo e manejo dos recursos locais. Essa
é a estratégia ensinada para se prevenirem de riscos, incertezas climáticas,
distúrbios sagrados e concretos. Manter e enriquecer a diversidade
biocultural parece ser seu horizonte coletivo (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS,
2015).
Diz Edgar Morin (2015, p. 70) que “[...] quanto mais um ecossistema
é complexo, mais ele é rico em diversidade, mas ele é flexível, mas contém
o impreciso, o incerto [...]”. De acordo com Toledo e Barrera-Bassols (2015,
p. 67), as agriculturas indígenas são sistemas de alta complexidade, já que
suas principais características “são a diversidade de culturas, o uso bastante
reduzido de insumos externos, a predominância do trabalho manual e o uso
de tecnologias adaptadas in-situ voltadas para a conservação dos recursos
locais”.
A conservação dos conhecimentos bioculturais aprendidos é um dos
valores caros da educação ancestral dos povos indígenas. Tal perspectiva
também tem a ver com um sentimento de fraternidade entre todos os seres,
uma pedagogia que integra homem e cosmos. Podemos perceber esse valor
na fala do pajé yanomami Davi Kopenawa, quando tece críticas ao decreto
de morte aos povos das florestas imputado pelo espírito espoliador dos
homens brancos:

Todas as mercadorias dos brancos jamais serão suficientes


em troca de todas as suas árvores, frutos, animais e peixes.
59

As peles de papel de seu dinheiro nunca bastarão para


compensar o valor de suas árvores queimadas, de seu solo
ressequido e de suas águas emporcalhadas. Nada disso
jamais poderá ressarcir o valor dos jacarés mortos e dos
queixadas desaparecidos. Os rios são caros demais e nada
pode pagar o valor dos animais de caça. Tudo que cresce e se
desloca na floresta ou sob as águas e também todos os xapiri
e os humanos têm valor importante demais para todas as
mercadorias e o dinheiro dos brancos (KOPENAWA; ALBERT,
2015, p. 355).

Essa sensibilidade e preocupação também é a base da sabedoria que


educa na pedagogia do povo Okanagan da América do Norte. Segundo a
indígena Jeannette C. Armstrong (2006, p. 41) seu povo reconhece que “a
terra sustenta todas as formas de vida e seu esgotamento tem que ser
evitado para que ela possa manter-se saudável e capaz de prover o sustento
de uma geração após a outra”.
Em função das suas práticas pedagógicas tracionais os povos
indígenas, em muitos casos, vivem em territórios com níveis elevados de
biodiversidade. Dessa forma, ocupam uma porção dos ecossistemas menos
perturbados do planeta, como florestas tropicais e boreais, as montanhas,
as savanas, tundras e desertos, e ainda grandes áreas ribeirinhas do
mundo, incluindo manguezais e recifes de corais. A título de exemplo, os
povos indígenas reúnem juntos 60% de todas as florestas tropicais do
mundo (DURING, 1993, apud TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015).
A diversidade biocultural que os povos indígenas administram em
seus territórios decorrem de práticas ecológico-econômicas orientadas pelo
respeito e a preocupação de não abusar do que a natureza lhe oferece. Em
tais cosmovisões a natureza não é um produto a ser consumido à exaustão,
mas cada ser que nela habita é portador da vida, necessitando do cuidado
necessário para a permanência de todos. Há a compreensão que o padrão
básico da vida é o de rede ou teia (CAPRA, 2006).
Uma pedagogia do bem viver é uma filosofia presente nas
cosmologias indígenas, com base na lembrança da sua ancestralidade, no
equilíbrio, na harmonia e na convivência entre os seres. Esse modo de viver
60

refere-se à “vida em pequena escala, sustentável e equilibrada como meio


necessário para garantir uma vida digna para todos e a própria
sobrevivência da espécie humana e do planeta” (TURINO, 2016, p. 15).
O El buen vivir (sumak kawsay), termo de origem kíchwa12,
correspondente a suma qamanã (aymara) e nhandereko (guarani) e diz
respeito ao “[...] reconhecimento del derecho universal de las personas a
vivir em um ambiente sano y ecologicamente equilibrado que garantisse la
sostentabilidad.), no Brasil a tradução da expressão é bem viver (AGUIRRE,
2011, p. 28; ACOSTA, 2016).
Estaríamos nós, educadores, nos centros educacionais onde
trabalhamos, fomentando uma pedagogia do bem viver, estimulando um
olhar holístico, complexo e fraterno, como tem feito as sabedorias
ancestrais indígenas? Hoje, na aldeia Juçaral, reconhece o professor Antonio
Gomes Guajajara existir um afastamento dos jovens em relação aos
ensinamentos tradicionais quando afirma que “[...] os velhos não tinham
estudo, mas sabiam preservar bem a natureza e os mais novos estudando
não sabe”. (SÁ, 2014, p. 194).
Em um passado não muito distante os mais velhos não usavam nada
da natureza sem antes pedir permissão aos espíritos, nos informou Zapu’y.
Na aldeia Juçaral eu ouvi histórias de que os tàmui (velhos) de algumas
gerações atrás antes de cortar uma árvore, como o cedro, por exemplo,
abraçavam-na e choravam sua morte. “Embora essa prática de pedir
permissão aos espíritos não esteja mais arraigada entre as novas gerações,
sua filosofia educacional ancestral as orienta a usar o que cada ciclo natural
oferece” (SÁ, 2014, p. 76).
Conservando e respeitando saberes, crenças e práticas ancestrais os
povos indígenas do planeta

[...] são os verdadeiros atores ou agentes sociais a quem


coube a tarefa de interagir com os mais ricos acervos da

12
Kíchwa, quíchua, ou quéchua é uma família de línguas indígenas da América do Sul falada
por aproximadamente 10 milhões de pessoas de diversos grupos étnicos ao longo dos
Andes, passando por Argentina, Bolívia, Chile, Equador e Peru.
61

diversidade biológica do planeta. São eles que manejam e


conservam a diversidade agrícola e que, juntos, falam mais
de 6 ml idiomas, representando a maior parte da diversidade
cultural da espécie. (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015, p.
57).

Para conhecer, inovar, diversificar e manter a diversidade biocultural


as inteligências indígenas configuram uma memória arquetípica com um
importante método educativo. Alimentando uma memória individual e
coletiva pela linguagem oral, os povos indígenas criaram coleções de
narrativas míticas. Afinal, “contar histórias para exercitar a memória é um
instrumento efetivo, bastante necessário para que as crianças possam
guardar em si os elementos da tradição” (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS,
2015; MUNDURUKU, 2010, p. 33).

Fotografia1. Vicinal de acesso a Terra Indígena Arariboia

Fonte: Acervo da autora (2019).


62

Fotografia 2. Paisagem em época de estiagem

Fonte: Acervo da autora (2019).


63

Fotografia 3. Riacho Faveira e buritizeiros

Fonte: Acervo pessoal da autora (2019).


64

Fotografia 4. Caminhão madeireiro queimado na estrada

Fonte: Acervo de Rivelino Cunha Vilela (2018).

Fotografia 5. O pasto invade a floresta

Fonte: Acervo da autora (2019).


65

Fotografia 6. Lírios do caminho

Fonte: Acervo de Janaína Almeida Aquino (2018).

Fotografia 7. Povoado Campo Formoso

Fonte: Acervo da autora (2019).


66

Fotografia 8. Entrada da Terra Indígena Arariboia e Aldeia Juçaral

Fonte: Acervo da autora (2019).

Fotografia 9. Entrada da aldeia Juçaral

Acervo: Acervo da autora (2019).


67

Fotografia 10. Aldeia Juçaral

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2019).

Fotografia 11. Arara no cajueiro

Fonte: Acervo pessoal da autora (2019).


68

Fotografia 12. Veado criado livre nos quintais

Fonte: Acervo de Janaína Almeida Aquino (2019).

Fotografia 13. Extração do óleo de andiroba no quintal


69

Fonte: Acervo da autora (2019).


Fotografia 14. A biodiversidade no quintal

Fonte: Acervo do projeto de Valorização dos Saberes Tentehar (2020).

Fotografia 15. Plantas medicinais, a maconha e o cumaru


70

Fonte: Acervo da autora (2020).


Fotografia 16. Aula com a mestra de cestarias no quintal

Fonte: Acervo do projeto de Valorização dos Saberes Tentehar (2020).

Fotografia 17. Mestre ensinando como trançar o guarumã


71

Fonte: Acervo do projeto de Valorização dos Saberes Tentehar (2020);


(2019).

Fotografia 18. Rio Buriticupu próximo a aldeia Nova Canaã

Fonte: Acervo da autora (2020).


72
73

PARTE II - MEMÓRIAS ANCESTRAIS E HISTÓRIAS DA TRADIÇÃO

Quanto mais avançarmos no conhecimento, mais aparecerão mistérios insondáveis.


(MORIN)

O cosmo nos criou a sua imagem.


(MORIN)
74

O homem, oriundo dessa aventura cósmica, tem a singularidade de ser cerebralmente


sapiens-demens, ou seja, carregar, ao mesmo tempo, a racionalidade, o delírio, a hubris,
a destrutividade.
(MORIN)

E o que serei? Pó, apenas que juntará ao universo e alimentará a fantasia de nossa
própria humanidade.
(MUNDURUKU)

O mundo de verdade, é onde mora nossos antepassados que jamais morrem.


(MUNDURUKU)

Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da


criatividade e da poesia que inspirou a resistência
(AILTON KRENAK)

A memória é o que há de mais cultivado entre os diferentes povos


indígenas. É ela que norteia a construção do ser pessoal e cria uma relação
de resistência que vai além do desejo individual (MUNDURUKU, 2017).
Assim, ao alimentar a memória individual e coletiva através dos tempos, os
povos indígenas mantêm o vínculo com o passado, compreendem como
viver o presente e se conectam permanentemente com a sua tradição.
A capacidade de recordar, lembrar, iniciou provavelmente quando
nossos primeiros ancestrais contaram histórias uns aos outros, “a respeito
dos animais que eles matavam para comer, e a respeito do mundo
sobrenatural” (CAMPBELL, 1990, p. 10). Articulava-se uma memória
cognitiva, quando diferentes povos ao redor do mundo passaram a usar a
técnica de contar histórias para ensinar aos mais novos saberes aprendidos.
Então, a diversidade de histórias que conhecemos são frutos de uma única
e primeira narrativa que foi contada em algum lugar do mundo há milênios
de anos atrás.
As migrações e nomadismos dos primeiros povos, as bifurcações que
ocorrem na humanidade contribuíram para a matização dessas histórias e
saberes. Contadas de boca em boca, entre diferentes populações,
75

ganharam ou perderam personagens, acréscimos de situações, outros


cenários, absorvendo a visão de mundo e valores do contador de histórias.
Então, dentro de uma história, “há, diversas histórias que, como bonecas
matrióchkas, se encaixam umas dentro das outras” (ESTÉS, 1998, p. 7). As
narrativas míticas parecem descender de uma matriz única que

[...] é por natureza uma tradução, origina-se de outro mito


proveniente de uma população vizinha, mas estrangeira, ou
num mito anterior de mesma população. [...] Encarando do
ponto de vista empírico, todo mito é ao mesmo tempo
primitivo em relação a si mesmo, derivado em relação a outro
[...]. (LÉVI-STRAUSS, 2011, p. 7-8).

As várias versões encontradas sobre as narrativas de Maíra e seus


filhos gêmeos, como a “desaninhador de pássaros”13, por exemplo, entre
povos tupi-guarani ou mesmo sul e norte americanos ilustram bem essas
traduções. Todas as versões pertencem ao mito, esclarece Lévi-Strauss
(2017) sobre a ideia de que não existe uma versão verdadeira nem falsa.
Segundo Campbell (1990), essas histórias provêm de todas as culturas com
temas atemporais, e a inflexão cabe a cada cultura.
Com o passar dos milênios, parte da humanidade desenvolveu outras
técnicas e valores culturais, se distanciou da oralidade enquanto tecnologia
para registrar e transmitir conhecimentos acumulados, cortando seus
vínculos com suas raízes históricas. Essa maneira de agir vê a memória
como algo sem importância, ultrapassado, o que caracteriza o modo de
viver moderno ocidental. Por isso que atualmente vivemos um dilema
capital na escala da espécie, que também representa a luta entre os que
lembram (as sociedades tradicionais do planeta) e a parte da humanidade
que faz questão de esquecer (as sociedades moderno-industriais)
(TOLEDO; BARRERA-BASSOLS 2015).
Os povos indígenas do planeta valem-se de uma constelação de
narrativas culturais que povoam seu imaginário, alimentam seu sistema de

13
Nome dado por Lévi-Strauss para uma das centenas de narrativas das sociedades
indígenas sul e norte americanas por ele estudadas.
76

crenças, práticas culturais, o saber-fazer do cotidiano, enfim, a educação


da sua gente.
A constelação de narrativas culturais geralmente é contada por velhos
e velhas, sábios pajés que a mantêm gravada em suas memórias. Tal
atribuição a esses personagens parece ser invariante entre os diferentes
povos. Nessas sociedades, os anciãos e anciãs surgem como uma espécie
de biblioteca viva, que guarda o patrimônio de saberes e valores construídos
ao longo dos séculos. “Porque os mais velhos que são a nossa biblioteca,
eles têm muitas histórias”, relatou-me Toinho Guajajara. Os mais antigos
já sentiram a passagem do tempo pelos seus corpos, e assim trazem
consigo para o presente esse passado memorial. Eles são os guardiões da
memória (MUNDURUKU, 2012).
Enquanto colecionadores de histórias culturais, os velhos14 são
fundamentais para manter viva a tradição. Porque trazem consigo a
generatividade, são os possuidores do fio que “[...] nos remete ao princípio
de tudo, às origens” (MUNDURUKU, 2017, p. 116). Por isso, os
compreendemos não apenas enquanto guardiões de uma tradição cultural
em específico, mas também, como guardiões da memória da espécie, pois
guardam consigo histórias que ensinam sobre a diversidade cultural e
biológica (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015).
Ao considerarmos que a memória retém a matriz da espécie, não
reduzimos o estudo ao entendimento de uma identidade fechada,
autossuficiente. Compreendemos as identidades étnicas como sabedorias
ecodependentes, em relação complexa de abertura “simultaneamente
organizacional, ecológica, ontológica, existencial” (MORIN, 2012, p. 254).
Essas memórias revelam relações que a humanidade estabeleceu “[...] com
a natureza, sua base de sustentação e referencial de sua própria existência,
ao longo da história, que remonta a uns 200 mil anos (TOLEDO; BARRERA-
BASSOLS, 2015, p. 18).

14
Ao longo dos próximos capítulos teceremos mais detalhes sobre a importância dos velhos
para manter viva as tradições culturais do povo Tentehar, sobretudo seus rituais.
77

Os fragmentos das narrativas de origem dos Tentehar, inicialmente


descritas, falam de si e de nós, “contam quem somos nós, de onde viemos”.
A partir então, buscaremos revisitar as aventuras de seus heróis culturais
Maíra e seus filhos Maíra-yr e Mikura-yr, sua Mãe, os demais seres
habitantes da história com olhares da multidimensionalidade existencial que
envolve a espécie humana no cosmo (MUNDURUKU, 2010, p. 33).
Acrescentamos que tais narrativas, descritas a partir da linguagem e
reflexão mitológica, não devem ser entendidas no seu sentido mais
corriqueiro, que atribui ao mito o caráter de um conto fictício, lenda ou
fábula. Como argumenta Fares (2008, p. 102), não se pode atribuir caráter
ficcional às narrativas mítico-lendárias amazônicas, visto que implicam nas
histórias de vidas dos seus narradores, mas vê-las “como uma construção
em que os saberes simbólicos e imaginários se misturam e se sobrepõem”.
Contudo as narrativas indígenas não devem ser ouvidas apenas pela
lógica racional, pois assim deixaremos escapar toda a sua magia e
encantamento, como nos orienta Daniel Munduruku. É necessário escutá-
las com o coração. Se elas adormecerem no coração ao acordar teremos
uma história nova, a ser “[...] contada a partir do sonho do contador”
(MUNDURUKU, 2009, p. 16).
As narrativas dos heróis culturais dos tentehar Maíra (o criador), e
seus filhos Maíra-Yr, Mikura-Yr, além de outras histórias que contaremos,
narram sobre a origem dos Tentehar, de como aprenderam a viver e ser
um Tentehar. A história desse povo se iniciou quando os homens não se
distinguiam de animais.

Maíra de passagem no mundo

[...] Os homens não se distinguiam dos animais. Eram uma


só coisa, homens-animais. Um dia Maíra, o Divino, aparece a
uma mulher, em forma de um rapaz bonito, ou de uma árvore
formosa, lhe faz amor e gera um filho no seu ventre. Logo
essa criança, Maíra-yr ([-yr] é sufixo para "filho"), começa a
falar e pede à mãe para levá-lo ao pai. A mãe acata o pedido
do filho que do seu ventre vai indicando o caminho para a
morada de Maíra. De tempos em tempos ele pede para a mãe
78

colher flores para ele cheirar. De certa feita a flor está com
marimbondos que picam a mãe, ela se zanga e bate na
barriga. Maíra-yr se ressente e cala. Chegando a uma
encruzilhada a mãe não sabe qual caminho tomar, pergunta
ao filho e ele não lhe responde. Ela segue por uma via que vai
dar na morada de Mykura, o Gambá. Este a acolhe em sua
acanhada casinha feita de folha de banana-brava, lhe dá
comida e uma rede para dormir. Depois faz chover e a chuva
cai na rede onde a índia grávida dorme. Ela se levanta e arma
sua rede em outro lugar, mas Mykura vai com uma vara e
afasta as palhas do teto e novamente cai água na rede da
mãe de Maíra. Isso acontece duas, três vezes até que Mykura
a convida para dormir na sua rede, que está enxuta e quente,
e aí lhe gera outro filho, Mykura-yr, o filho do Gambá.

A mãe segue caminho até chegar na aldeia dos homens-


onças. Uma velha, chamada Zary, que quer dizer avó, a
acolhe e a manda se esconder, pois seu filho, que foi caçar e
volta a qualquer momento, é muito feroz. Ao chegar, o filho-
onça, que também é pajé, acende um charuto, sente cheiro
de gente, espanta a índia grávida, que se transforma numa
veada e foge, sendo caçada pela onça e seus companheiros.
Quando a esquartejam para comer, descobrem os dois
filhotes. Zary pede para comer esses fetos (como convém aos
velhos). Tenta espetá-los para assar e o espeto resvala e lhe
fere a mão. Tenta botá-los numa panela de água fervente,
mas eles saltam e a água lhe queima a mão. Daí resolve
deixá-los num cesto para ver o que fazer no dia seguinte. Ao
amanhecer, vai ver os filhotes e eles estavam vivos e
transformados em dois quatizinhos. Aí resolve criá-los como
animais de estimação. No outro dia já são duas cotiazinhas,
depois duas paquinhas, dois papagaiozinhos, e assim a cada
dia vão se transformando em animaizinhos diferentes.

Passados uns anos já são dois jovens, Maíra-yr e Mykura-yr,


o primeiro com poderes especiais, o segundo como
coadjuvante desajeitado. Vão no mato, Maíra-yr pega uma
flor, envolve-a na mão, sopra e a transforma no corrupião,
outra no xexéu assim nos demais pássaros canoros. Zary lhes
adverte para não irem adiante das capoeiras, pois há uma ave
faladora por lá. Eles vão e escutam o jacu cantar e contar a
história deles, da morte de sua mãe nas garras das onças.
Mykura-yr chora muito, Maíra-yr menos, e resolvem se
vingar. Zary pergunta por que estavam chorando. Eles se
zangam, Maíra-yr sopra marimbondos que ferroam a cabeça
dela, Mykura-yr arranca-a, pratica tiro ao alvo na cabeça da
velha, depois põe piolho nela e bota-a de volta nos ombros de
Zary. E assim fazem suas artes e malas-artes.

Resolvem fazer um brejo, do outro lado de um rio bonito, com


as palmeiras diversas, buriti, buritirana, açaí, bacaba, anajá.
Fazem abanos com as palhas, jogam-nos na água e os
79

transformam em piranhas e outros peixes. Com um quibano


largo fazem a arraia. Fazem um tipiti e o transformam em
cobra jiboia, nas cobras d'água, sucuri e sucuriju. Fazem uma
labareda de fogo e a transformam em poraquê, o peixe-
elétrico. Da casca da árvore jatobá fazem o jacaré. Assim
fazem os animais dos rios e brejos, todos em casais. Depois
derrubam uma árvore sobre o rio para servir de ponte. Voltam
à aldeia trazendo os frutos das palmeiras, cantando uma
canção especial, quase uma oração, e as onças lhes pedem
para que as levem a ver o que fizeram. Só Zary fica na aldeia.
Para atravessar o rio as onças sobem na ponte, e os irmãos
em combinado deslocam o tronco da árvore, fazendo-as cair
no rio onde são devoradas pelas piranhas e jacarés. O espírito
do pajé-onça começa a gemer dentro do rio. Eles enfiam uma
taboca, o espírito entra dentro dela e eles arrolham a taboca.
Transformam Zary no corujão da noite. Se sentem vingados.

Daí resolvem partir em busca do pai, Maíra, e depois de


caminhar muito o encontram numa casa grande e bonita.
Maíra não os reconhece como filhos, eles insistem que são, e
Maíra os submete a uma série de provas de arrojo, coragem
e esperteza. Essas provas são contra os Azàng, que são
bichos-espíritos, cupelobos, os duendes malévolos da
floresta. Nessas provas, os irmãos aprontam alguma
traquinagem contra um Azàng, primeiro Maíra-yr, que se livra
da perseguição do Àzàng, depois Mykura-yr, seu irmão sem
poderes, que quase sempre é pego e Maíra-yr tem que
resgatá-lo de alguma forma. Há o Àzàng da bunda vermelha,
que os irmãos, virando beija-flores o picam, mas Mykura-yr
não consegue se esconder num cupinzeiro. Há o Àzàng da
rede de dormir bem larga, com cuja mulher os irmãos, como
beija-flores, copulam, mas Mykura-yr fica preso na rede. Há
o Àzàng que lava o pênis na lagoa, dentro da qual os irmãos
jogam pimenta macerada que o faz arder muito. Há o Àzàng
que faz arcos para os matar, mas Mayra-yr transforma os
arcos em cobras e o Azàng no bacurau. Há uma Zary Àzàng
velha, dos cabelos longos, na qual os irmãos tocam fogo, e o
fogo seca a lagoa onde ela mora e eles quebram cabeça da
velha. Daí esse lugar passa a ser conhecido como Cumbuca
Quebrada. Há o Àzàng que anda com quatis, que prende
Mykura-yr e o mete no pucará (cesto que se carrega nas
costas) cheio de quatizinhos, mas Maíra-yr sopra e faz o
pucará ficar cheio de pedras, e Mykura-yr consegue escapulir.
Há o Azàng alto da canela comprida que cantava no alto de
um morro. Mykura-yr vai lá e lhe quebra as pernas, que viram
cipó. O lugar vai se chamar Cipó Quebrado. Há o Azàng
pescador, que fisga o Mykura-yr, o assa e o come, e Maíra-yr
se transforma em formigão, junta os ossos (exceto um, que
mais tarde é encontrado), sopra neles e faz Mykura-yr
reviver.
80

A cada episódio, os irmãos voltam a Maíra e este lhes dá um


novo desafio. Afinal, os irmãos voltam para a morada do pai,
que não lhes exige mais nada e os aceita como seus filhos"
(GOMES15, 2002, 54-56).

Esclarecemos que não é nossa intenção fazer uma decomposição


analítica dessa narrativa. Longe de tentar decifrar os mistérios que contém
ou realizar um trabalho de tradução, abordaremos alguns meta princípios
que nos remetem à educação, ao jeito de ser tentehar, à condição humana.
Como já afirmamos, a história dos Tentehar inicia em um tempo16 em
que os homens não se distinguiam dos animais. Essa é uma das primeiras
afirmações que costumamos ouvir em uma narrativa tentehar. Observei
essa concepção na fala do cantor tradicional Zé Maria Guajajara, ao me
relatar sobre os resguardos alimentares por que passam a menina-moça
tentehar: “[...] Naquele tempo todos se comunicavam entre si, gente e
bicho [...]”. Também ouvi de João Tawi, ao contar histórias de Caipora, que
“gente virava bicho, bicho falava como gente” Ou ainda na história que
Zapu’y Guajajara quando me explicou que um índio curioso descobriu a
maconha ao se transformar em um porco do mato e passar a viver com
eles.
A aproximação entre humanos e animais, ou mesmo o trânsito mágico
entre as condições, numa seção de pajelança, demonstra que os povos
indígenas reconhecem e fazem questão de explicitar as suas raízes e de
onde partiram; como desde sua gênese, em um meio ambiente hostil, nas
florestas ou no cerrado, com os diversos seres que dividiam o território e a
existência, usando os diferentes sentidos, buscaram aprender e inovar suas
técnicas, habilidades e poderes.
No complexo narrativo tentehar transparece uma relação de forte
proximidade deste povo com os outros seres que compartilham a vida, que

15
O autor não cita de quais interlocutores extraiu a narrativa. Acreditamos ser uma
composição surgida a partir da bricolagem de histórias narradas e escritas sobre os irmãos
gêmeos no imaginário Tentehar e Tupi-Guarani.
16
Sobre a temporalidade dos mitos, Lévi-Strauss (2017) fala que o mito se define em um
sistema temporal, e mesmo se referindo a eventos passados, tem um valor intrínseco que
provém do fato de os eventos formarem uma estrutura permanente que os faz referir-se
simultaneamente ao passado, presente e futuro.
81

os faz “compreender a linguagem dos animais e dos pássaros”, disse


Kaiboting Guajajara (ZANNONI, 1999, p. 139).
Exemplos desses compartilhamentos são os acordos alimentares
estabelecidos entre os Tentehar, os deuses e as espécies animais em
tempos remotos. Eles impuseram regras ecológicas que possibilitam a
sobrevivência de todos os seres, como nos explicou o cantor tradicional Zé
Maria Guajajara:

[...] Houve um tempo que faltou alimento para todos


consumir. Ai, Deus dividiu as caças e os homens, e os
Tentehar passaram a se alimentar das caças. As caças, por
sua vez passaram as regras alimentares para os Tentehar. O
porcão do mato, por exemplo, orientou que a sua carne
deveria ser comida bem assada, e o recém-nascido e/ou a
moça que saiu da tocaia não poderiam comer a sua carne.
(SÁ, 2014, p. 83).

Como explica o mitólogo Joseph Campbell (2015), o que as mitologias


antigas fazem é relacionar o ser humano com o seu ambiente. Embora
respeitados, o animal e o vegetal são mortos e comidos. O pacto entre o
mundo animal e o mundo humano é celebrado para resolver o problema
fundamental de matar e comer a vida. É preciso lembrar a mente desse ato
contínuo de matar e consumir animais. Para essas sabedorias arcaicas,
animais e vegetais brotam para o nosso sustento.
Por isso, se tornam energias reverenciadas. Arcaica, longe de
significar resíduo ou entulho de um domínio cognoscente passado, atém-
se, conforme lembra Edgar Morin, ao sentido original do vocábulo arkhè, e
significa, ao mesmo tempo, o que é fundador, anterior, subterrâneo,
soberano, subconsciente, persistente, permanente e comum a todos os
homens (ALMEIDA, 2017a). Os Mbuti, que condicionam sua vida ao culto à
floresta, por exemplo, punem com a morte os indivíduos que transgridam
a cooperação nas atividades de caça, cantos e dança, abandonando os
infratores na floresta (CARVALHO, 1981).
Hoje os estudos da ecologia e etologia mostram claramente que uma
sociedade é uma organização complexa de indivíduos diversos, portanto,
82

não restrita a espécie humana. Baseada simultaneamente na competição e


solidariedade, comportando um rico sistema de comunicações, é um
fenômeno espalhado na natureza. As hierarquias e conflitos, a
sentimentalidade e a curiosidade são características das sociedades dos
nossos irmãos símios. Somos animais humanos numa sociedade natural,
nossa evolução decorreu do que aprendemos com as espécies com quem
dividíamos o nosso território (MORIN, 1973).
Embora nossa visão de mundo antropocêntrica e fragmentada tenha
nos distanciado da constatação de que somos filhos do cosmo, de um
mundo vivo e animal, em todas as mitologias está claramente esboçado
nosso parentesco com outros seres vivos, pois “como um ponto no
holograma, carregamos em nossa singularidade, não apenas toda a
humanidade, toda a vida, mas também todo o cosmo, inclusive seu mistério
[...]” (MORIN, 2012, p. 36).
Em uma época, em que os Tentehar “[...] ainda não sabiam nada,
eram bestas”, não se diferenciavam dos animais, Maíra ensina a cultura aos
Tentehar (WAGLEY; GALVÃO, 1961, p. 108). Já que “privado de cultura, o
sapiens teria sido um débil mental, incapaz de sobreviver a não ser como
um primata de categoria mais baixa” (MORIN, 1973, p. 86). Nas narrativas
tradicionais é Maíra quem ensina como fazer, e porque fazer. Na memória
tentehar Maíra simboliza o sujeito sábio, aquele que angaria habilidades,
conhecimentos, perspicácia suficiente para ensinar. Configurando-se como
um primeiro educador, foi ele que ensinou os Tentehar a colher a mandioca
e fazer a farinha; a plantar o algodão e a fazer rede; a roubar o fogo dos
urubus e a moquear a carne; ensinou as famílias como fazer o ritual da
primeira menstruação da menina-moça Tentehar e cuidar do seu corpo para
receber a vida.
Maíra simboliza o desenvolvimento da cultura entre os homens.
Enquanto, sistema generativo de alta complexidade, a cultura devia ser
ensinada, aprendida e reproduzida para se perpetuar. Explica Morin (1973)
que o grande cérebro do sapiens só veio a triunfar após a formação de uma
cultura já complexa, operacionalizada pela educação sociocultural. Esse
83

desenvolvimento da complexidade social estabelece relações cada vez mais


profundas com o ecossistema natural.
Na aventura humana a cultura, a linguagem de dupla articulação, o
choro e o riso surgem como amplificadores que permitem ao homem
aprender, conhecer, inovar, e elevar a inteligência humana ao nível do
pensamento e da consciência. Desse processo de complexificação, surgiu o
espírito. Um espírito polifônico se forma (pensamento, alma, consciência) e
promove o homem reflexivo. Um ser que deseja, que é curioso, que
questiona e quer saber mais sobre si e o seu mundo (MORIN, 2012).
Maíra simboliza o homem dotado de um grande saber sensível, que
angaria um vasto conhecimento dos mundos físico e espiritual, encarna a
figura do sábio e do guerreiro na cultura Tentehar. Por tais habilidades é
tido entre esse povo não apenas como o herói civilizador, mas também
como um grande sábio, um pajé extraordinariamente poderoso (pazé-
maíra), capaz de se comunicar com a natureza (WAGLEY; GALVÃO, 1961).
As histórias de Maíra e seus filhos gêmeos ocorreram em um tempo
em que o sábio-pajé viajou pela Terra em busca da terra-bonita (Ywi-
Porang), ou a terra sem mal que, segundo Unkel Nimuendaju (1987), em
Guarani significa a terra sem doença, maldade, calúnia, luto, tristeza etc.
Cansado de andar pela terra e/ou decepcionado com os humanos volta para
aldeia dos sobrenaturais, o karowara-nekwahawo (WAGLEY; GALVÃO,
1961).
Nesse caminho, deixou uma mulher grávida de seu filho primogênito,
Maíra-Yr17. Maíra estava encantado na forma de um rapaz bonito ou de um
galho de árvore ao copular com uma mulher. Em uma outra versão,
narrada por Pedro Marizê Riwara, a concepção ocorre por forças
germinativas da própria natureza, que impulsionada pelo belo, deixa seu
corpo se contaminar pela emoção ao sentir o prazer do gozo: “Tinha uma

17
De acordo com o estudioso da mitologia Joseph Campbel (2015) o tema dos heróis
gêmeos aparece em inúmeras mitologias. Na mitologia Navaja, por exemplo, o primeiro,
o nascido do sol representam o chefe guerreiro (é o matador de inimigos); e o segundo, o
nascido a lua, o seu sacerdote mágico (o filho da lua, o curandeiro, o xamã).
84

índia bonita e um pau na beira da roça. Era pauzão bonito. Nele tinha uma
forquilha, como se fosse um galho, mas não era. Ela pegou a brincar
(copular), até quando o destino a fez gestante” (ZANNONI, 1999, p. 206).
Após gerar o primeiro filho, ao chegar na casa do Gambá a mulher
novamente não contém seus impulsos sexuais, se deita com Mykura e
engravida de seu segundo filho, Mikura-Yr. Em outra narrativa, a mulher
esquece das regras e convenções e, movida pela sensibilidade estética do
espírito sedutor das águas (Y’zar), deixa-se conduzir para o gozo, para o
êxtase, mesmo sabendo das sanções sociais que o ato podia ocasionar.

[...] Sem saber por que, o homem tinha o pênis sempre ereto.
A mulher: foi lavar a roupa de Maíra no igarapé, quando lhe
apareceu o Espírito da Água (Y’zar) que a cortejou e a atraiu
para copular. A mulher achou aquilo bom e, daí por diante,
voltava todos os dias para o igarapé.
Batendo numa cuia que emborcava na água, chamava o Y’zar
e com ele de ia deitar-se.

[...]Durante todo esse tempo o homem, querendo relaxar a


ereção do pênis, derramava mingau sobre ele, sem conseguir
resultado algum. A Mulher, incapaz de resistir ao impulso
sexual, aproximou-se do homem que derramava mingau
sobre o pénis. Ela disse que o ensinaria como amortecê-lo.
Sentou-se em cima dele para o coito. Mais tarde, quando
Maira chegou e viu que o rapaz já não tinha o pénis ereto,
indagou o que acontecera, O rapaz tudo contou. Maira falou-
lhe: De agora em diante o seu pénis ficará mole, você fará um
filho e morrerá; mais tarde, quando seu filho crescer, fará
outro filho e morrerá. (WAGLEY; GALVÃO, 1961, p. 135-136).

A rede geralmente é o lugar simbólico do descanso, do amor, da vida.


A rede é um dos símbolos mais fortes da cultura material ancestral
Tentehar. Ainda hoje são tecidas no tear18 com todo esmero, paciência e
inteligência dessas mulheres-mães. Conforme identifiquei, as suas redes
ainda são tecidas com o mesmo instrumental utilizado pelas mulheres
Tupinambá desde 1614. Hoje, no entanto, deixaram de plantar e beneficiar

18
Armação de paus dispostos lateralmente, que parte de cima se abre em dois ramos,
assumindo a forma da letra Y, uma forquilha. Nas forquilhas são presos dois pedaços de
pau na horizontal, um em cima outro em baixo. No entanto, há outras estruturas mais
simples para confecção de redes e tipoias (SÁ, 2014).
85

o algodão e compram a linha na cidade. No tear fazem redes, mocós,


mochilas, porta notebook, estrutura que recebe as penas nos capacetes e
as tipoias. Quando a rede envelhece, as mães tecelãs levam-na novamente
ao tear, tiram os fios estragados e a refazem novamente, garantindo,
assim, maior tempo de uso (SÁ, 2014; ABBEVILLE, 2008).
As tipoias são a expressão maior da poética do amor e do cuidado das
mães tentehar. Elas nunca desgrudam dos filhos até os dois anos de idade,
sempre os trazem consigo, seja cozinhando, lavando, passeando e mesmo
pulando nos rituais.
As redes também se configuram como o lugar do sexo e da
procriação. É muito comum vê-las em suas narrativas. Como uma das
multifaces que permeiam a vida, o sexo permite não só a reprodução
humana, mas, sobretudo, levam o homem a provar estados de satisfação e
exaltação decorrentes do gozo (MORIN, 1973).
O caráter sísmico do gozo humano é uma das aptidões desenvolvidas
pelo Homo sapiens. Na espécie humana o orgasmo é muito mais violento,
e as mulheres em particular “experimentam um gozo muito mais profundo
e espasmódico”, discorre Edgar Morin (1973, p. 106). Explica o autor que
o sapiens se caracteriza pela erupção psicoafetiva, que vai desde a sua
aptidão para o gozo, a embriaguês e o êxtase até os sentimentos de raiva,
furor e ódio. O onirismo, o eros, a afetividade e a violência extravasam-se
no sapiens, afirma Morin em O paradigma perdido (1973).
No imaginário cultural tentehar o espírito das águas (Y’zar) simboliza
a sedução, a paixão desenfreada que invade a alma feminina por completo
levando as amantes ao delírio, inclusive à morte. Sua ação sedutora leva
as mulheres ao agir desmedido. No meio social a sedução de Y´zar
desencadeia diferentes sentimentos como a tristeza, a cólera e o ódio;
situações instáveis passam a ser vividas entre os amantes, maridos e
esposas.
A relação de afetividade entre mãe e filho também marca a narrativa.
Ela inicia ainda com Maíra-Yr no ventre da mãe. Ao colher flores para o filho
cheirar, estimula a sua curiosidade e inventividade, proporciona o
86

desenvolvimento de uma inteligência sensitiva extremamente necessária à


vida no ambiente de floresta. Tal inteligibilidade caracteriza fortemente a
educação no mundo indígena, como veremos a seguir.
As dificuldades, desordens, sofrimentos que aparecem no caminho da
mãe e do filho acionam os medos, afloram sentimentos intensos como a
tristeza, o ressentimento e a raiva que promovem o desequilíbrio pessoal.
O ressentimento e a raiva são dois sentimentos que marcam não só a
narrativa dos irmãos gêmeos, ao planejar e executar a vingança contra os
homens-onças pela morte de sua mãe. Tais sentimentos também aparecem
em praticamente todas as narrativas que contam do relacionamento entre
Maíra e os Tentehar.
O caminho dos irmãos Maíra-yr e Mikura-yr ao longo da narrativa é
marcado pelas indeterminações naturais e sociais, situações catastróficas,
violências vividas, como a morte da mãe, e a luta constante para sobreviver
aos embates contra os irmãos-onças. A vida humana, como imagem da
aventura cosmológica, explica Morin (2012), é feita de desordens e acasos,
uma aventura submetida a desafios ecológicos, acidentes, conflitos entre
espécies.
Para vencer as adversidades naturais e/ou sobrenaturais, os irmãos
gêmeos demonstram serem originários de um povo destemido, guerreiros
sem medo e com determinação, que lutam não apenas com a força física,
mas sobretudo a partir de atributos atinentes a uma inteligência possuidora
de uma sabedoria sagaz e trampolina, desdobrada na arte de negociar com
aptidão para se adaptar a situações adversas, como mudanças,
concorrências e competições. Os Tentehar carregam consigo uma coleção
de experiências ancestrais que os fazem enfrentar situações novas com o
uso de diferentes táticas bricoladoras para jogar com o dominador, mas não
se conformar ao seu jogo (LÉVI-STRAUSS, 2012b; CERTEAU, 1994; SÁ,
2014).
Essa métis trampolina explícita no comportamento dos irmãos
gêmeos, capazes de enganar para vencer até mesmo os poderosos pajés-
onças, foi determinante para a sobrevivência dos Tentehar frente ao
87

invasivo e violento processo histórico de contato com os màzàn


(portugueses), quando se deslocaram do litoral do Rio de Janeiro e
embrenharem-se nas matas do interior do Maranhão, de acordo com as
narrativas do velho Cipriano (GOMES, 2002).

Os portugueses vêm, tomam conhecimento do lugar e voltam


ao seu país. Depois retornam, pedem licença para fazer
morada, mas não são aceitos. Uma vez mais aparecem para
brigar. Os Tenetehara lutam e perdem a disputa pelo Rio de
Janeiro [...] Os Tenetehara ficam com os arcos e sua cultura
e se retiram do Rio de Janeiro [...]. Então, os Tenetehara vêm
para o Maranhão. Sua nova morada é também como se fosse
uma ilha, com um rio grande ou um lago grande ao seu redor.
Passados muitos anos, os Karaiw começam a chegar de novo,
pedem terra para morar e começam a incomodar. Um índio
faz uma balsa de buriti e atravessa o rio, onde acha uma terra
muito bonita, com muita caça, sem morador. Convida seus
parentes para situar essa nova terra e aos poucos todos
mudam. (GOMES, 2002, p. 57).

Na narrativa imbricam-se fatos históricos e míticos, pois o impacto


sofrido pela colonização acabou por reforçar entre os Tupi a busca da terra
bonita, da morada de Maíra, explica o historiador Ronaldo Vainfas (1995).
A pregação dos pajés profetas fortaleceu o ímpeto guerreiro de várias
nações tupi a enfrentarem os portugueses, ou deles fugirem, no rumo dos
“sertões”. “O paraíso tupi se deslocaria lentamente do mar para o interior,
pois era no litoral, sem dúvida, que se achava os males e campeava a
morte” (VAINFAS, 1995, p. 50).
Astutamente os Tentehar perceberam, ao chegar nas florestas do alto
Pindaré, que lá era uma terra que continha o que necessitavam, os
remédios, os adornos, as caças etc. Além de diminuir o interesse dos
colonizadores face às barreiras naturais que a floresta representava. Assim,

As aldeias tenteharas se localizavam desde o médio até o alto


Rio Pindaré, uma zona de difícil acesso por canoa devido à
estreiteza do rio e à consequente profusão de árvores caídas
em travessa, bem como pela presença de uma erva aquática
chamada mururu. Havia barreiras naturais que dificultavam o
fluxo de grandes canoas, assim era sempre mais dificultoso.
(GOMES, 2002, p. 145).
88

Conforme registros historiográficos, foram mencionados pelos


franceses pela primeira vez em 1613 como “Les Pinariens”, “os habitantes
do rio Pindaré”. Em 1616 foram chamados pelo genocida Bento Maciel
Parente de “Guajajara”, designação pela qual são conhecidos até os dias de
hoje. Guajajara (wazay – cocar; zara – dono), “os donos do cocar” é o nome
que teriam recebido dos Tupinambá da Ilha de São Luís (GOMES, 2002).
Quanto ao seu autodesignativo Tentehar, palavra composta pelo
verbo ten/”ser” mais o qualificativo /ete/(“intenso, verdadeiro”) e o
substantivador (har)/“(aquele, o”), exprime o orgulho de ser a encarnação
perfeita da humanidade. De acordo com Daniel Munduruku (2017, p. 52),
se tivéssemos acesso aos mais de 250 povos indígenas do nosso país
iríamos perceber que todos se autointitulam “gente verdadeira” (GOMES,
2002).
Nas longas reuniões que participei entre esse povo, é constante uso
do seu autodesignativo para argumentar, tentehar é assim, porque tentehar
faz assim, surge como um grande marcador intracultural que até hoje os
faz se reconhecerem um povo diferente dos demais.
Além dos Guajajara se auto reconhecerem tentehar os povos Tembé
do estado do Pará. De acordo com Gomes (2002), por volta da terceira
década do século XIX, desencadeou-se uma outra migração entre os
Tentehar para o Rio Gurupi, nos altos cursos dos Rios Capim e Guamá, onde
receberam por lá o nome Tembé. A motivação foi a contínua busca da
morada de Maíra, o karowara nekwahawo, local onde os seus habitantes
podiam viver magnificamente com muito pouco para o sustento diário
(ZANNONI, 1999).
Como não há nenhuma narrativa que mencione o uso do seu
autodesignativo tentehar, a hipótese de Gomes (2002) é que
provavelmente os tentehar passaram a usá-la antes do início do século XIX,
período em que se viram obrigados a viver misturados entre diferentes
povos originários nas missões religiosas maranhenses. À época, a estratégia
dos jesuítas era juntar dois ou mais povos com o fim de destruir a coesão
89

cultural destes. Assim, para se distinguirem entre os demais, os tentehar


passaram a usar a sua autodenominação. Ora eles se comportavam como
subservientes, reconhecidos por padres e autoridades como
“[...]obedientes, sensatos” aptos a “civilizarem-se”, ora jogavam com os
acontecimentos e arquitetavam fugas individuais, e sempre que possível
voltavam às matas do Pindaré” (GOMES, 2002, p. 179).
Atualmente no Maranhão os Tentehar vivem em onze terras
indígenas. Em seis delas - Bacurizinho, Cana Brava Guajajara, Lagoa
Comprida, Morro Branco, Rodeador, Urucu-Juruá - possuem o usufruto
exclusivo. Nas terras indígenas Caru, Rio Pindaré e Arariboia dividem
usufruto com povos Awá-Guajá e Guarani. Em consequência das suas
constantes migrações, famílias tentehar também habitam nas TI
Governador e Krikati, territórios tradicionais dos povos Gavião e Krikati
respectivamente.
A mobilidade permanente é intrínseca ao jeito de estar e se relacionar
com o mundo dos tentehar. A aldeia Faveira, situada em terra Gavião, é
um exemplo que ilustra bem uma característica que é peculiar aos Tentehar,
o nomadismo. É comum saírem de um lugar para outro, levarem suas
famílias extensas e se fixarem em algum local que lhes pareça melhor para
viver, não levando em consideração possíveis posses e limites territoriais
estabelecidos. Um jeito de viver que fazem questão de reconhecer quando
por diversas vezes ouvi dizer: “Tentehar, é assim, hoje tá aqui, amanhã se
muda para outro lugar, constrói uma aldeia, depois derruba, se muda
novamente, a gente não para quieto”.
Acredita Daniel Munduruku que o movimento que anima o nomadismo
dos povos Tupi em seus mitos não é apenas espacial. Ele é antes uma
maneira de se relacionar com mundo sem apegos a posses. Ser livre é
fundamental para um povo nômade que sabe estar de passagem “[...] Não
por estar mudando de lugar, mas porque, dentro de si, ele está de
passagem, assim como todas as pessoas” (MUNDURUKU, 2010, p. 35). Por
isso, não podem acumular coisas. De modo que o caminhar sem rumo,
andar pelo mundo enfrentando as mais diversificadas dificuldades “é uma
90

constante simbólica e real que caracteriza a mitologia e a história do povo


guajajara” (UBBIALI, 1998, p. 50).

Um povo em busca de liberdade e pedagogia da resistência

Século após século os tentehar vão sendo encurralados pela pressão


exercida pelos povos estrangeiros que invadiam e invadem seus lugares de
morada e sua cultura. Já não era possível gozar da “liberdade” outrora
experimentada sem a interferência do estrangeiro karaiw.
Envoltos em um processo histórico de opressão sociocultural marcado
por derrotas e vitórias, baixas e crescimentos populacionais, idas e vindas,
fugas, negociações e por vezes rebeldia e morte, a história de resistência
dos tentehar é exitosa, pois hoje são o maior contingente populacional
indígena no Maranhão e um dos maiores do Brasil. Uma das explicações
para tal êxito decorre da sua organização sócio-político-econômica em
famílias extensas. Esse tipo de organização social simples favorece a
flexibilidade cultural e, consequentemente, a sobrevivência cultural desse
povo (GOMES, 2002; UBBIALI, 2005).
Na organização social dos Tentehar a negação a um poder
institucionalizado é marcada pela contraditória necessidade de um líder ou
chefe que possa estabelecer uma ordem frente aos conflitos internos ou
externos. O chefe representa a segurança que o povo necessita. Afinal, a
desordem é natural, está na constituição física do universo, na nossa
constituição biológica, psicológica. A cultura com suas regras possibilita
uma certa ordem no sistema social. Enquanto que num universo de pura
ordem não há criação, inovação, e não seria possível vida nenhuma, em um
de pura desordem não haveria estabilidade para instituir a organização.
Ordem e desordem não se excluem, mas se complementam (MORIN, 2015).
O espírito coletivo dos Tentehar é movido “essencialmente pelo
sentido da democracia e pelo gosto da igualdade que distingue a maioria
das sociedades indígenas da América” (CLASTRES, 2017, p. 40). Assim, de
maneira autônoma, cada aldeia tentehar é formada por uma ou mais
91

famílias extensas, chefiada por um cacique, representante político da


aldeia. Cada família extensa possui um chefe, geralmente o patriarca, e nas
aldeias com ausência de chefia masculina a matriarca da família assume a
função. São os chefes e ou lideranças locais que decidem coletivamente o
que lhes parece mais acertado para o bem comum dos moradores. E, hoje,
é crescente o número de aldeias chefiadas por mulheres.
A consulta aos velhos antes de qualquer decisão muito importante é
ainda uma prática na aldeia Juçaral. Na concepção de Zapu’y ouvir os mais
antigos assegura maiores chances de acertos em razão de suas experiências
de vida. Assim, o ancião nunca é desprezado quando a necessidade os
obrigar a pensar o novo, trazer para dentro do sistema o diferente. Há um
encontro intergeracional para acertar as decisões.
Ao falar sobre filosofia das chefias indígenas o antropólogo Pierre
Clastres (2017) destaca, conforme Robert Lowie, três características
essenciais de um chefe indígena: 1) ser a instância moderadora do grupo,
“um fazedor da paz”; 2) ser generoso com seus bens; 3) e ser um bom
orador, pré-condição para ter acesso à chefia. A primeira e a terceira
características são indispensáveis para ser um chefe tentehar. Conforme
me explicou Zapu’y, o seu cacicado se caracteriza pelo trabalho voluntário,
em que o cacique se compromete em defender os interesses e os direitos
da comunidade fora da aldeia. Internamente, é um conselheiro que com o
uso da palavra resolve conflitos.
Externamente, a oratória é fundamental para estabelecer uma rede
de relações que visam beneficiar os seus representados. Por isso, o número
de famílias extensas dentro de uma aldeia dependerá do poder de
representatividade e prestígio do seu chefe. Quanto maior for a habilidade
de um chefe para fomentar alianças e beneficiar os seus, mais chances de
ter um maior número de famílias sob seu controle. Tal situação gera um
tenso jogo de poder e disputas entre os pares (WAGLEY; GALVÃO, 1961;
ZANNONI, 1999).
Embora seja uma cultura “igualitária”, já que não aceita o domínio
político e econômico de uns sobre os outros, “mesmo nas sociedades de
92

floresta, que são menos hierarquizadas, existe um antagonismo latente


entre o grupo central dominador e o grupo marginal” (MORIN, 1973, p. 42).
Ao conviver com os Tentehar durante anos, o historiador Claudio
Zannoni (1999) chegou à conclusão de que o conflito está presente na vida
econômica, política, religiosa, ecológica e mítica, constituindo a dinâmica
cultural da vida social desse povo. Assim, embora o conflito represente uma
ameaça de desintegração, ambiguamente e de maneira complementar é
esse fenômeno que promove o equilíbrio nesse sistema social.
Ao explicar a contradição e a complementaridade que nos constituem
como seres complexos Edgar Morin, parafraseando Heráclito, afirma que
vivemos de morte e morremos de vida. “À imagem e semelhança do cosmo
que nos constitui, a partir de uma desordem extraordinária e de princípios
de ordens, o cosmo se faz destruindo-se, desfaz-se construindo-se”. A
nossa ascendência cósmica está em nós, assim como estamos nas nossas
organizações sociais e elas em nós. De maneira análoga, a partir de uma
reorganização permanente “uma sociedade autoproduz-se sem parar
porque se autodestrói sem parar” (MORIN, 2012, p. 28; MORIN, 1973, p.
43).
O contato e a presença cada dia mais intensa dos valores culturais
ocidentais, por intermédio do processo de globalização, têm intensificado
desde a década de 1970 na Amazônia tensões e conflitos que impactam
diretamente a organização social e o modo tradicional de vida dos tentehar.
Como lembra Munduruku (2017), a década de 1970 foi a época de grandes
projetos econômicos na Amazônia. Foi o período em que a FUNAI passou a
gerenciar políticas indigenistas no Estado oferecendo projetos de
desenvolvimento e a inserção desses povos no mundo dos ditos civilizados.
Na dimensão territorial e ecológica, que não deixa de ser espiritual e
também educacional, a retirada ilegal da madeira, a biopirataria dos
produtos da floresta, as queimadas naturais e criminosas, o arrendamento
das terras para a pecuária extensiva são alguns dos problemas
cotidianamente agravados ano após ano, dividindo opiniões e atitudes.
93

No dia 04 de novembro de 2019, por exemplo, presenciei na câmara


municipal de vereadores de Imperatriz uma audiência pública com
representantes do Ministério da Agricultura para decidir sobre a entrada do
agronegócio em terras indígenas maranhenses. Houve um princípio de
conflito entre integrantes do movimento indígena organizado defensores da
floresta, do modo de vida ancestral e outros indígenas defensores da
entrada do agronegócio em terras indígenas.
Eram três dias após o assassinato do guardião da floresta Paulo
Paulino Guajajara. Iraci Guajajara, mãe de um dos indígenas baleado e tia
de Paulo, muito emocionada, concedeu seu depoimento na tribuna se
manifestando contra a entrada do agronegócio na Arariboia. Na ocasião, a
representante dos povos indígenas no Maranhão, Marcilene Guajajara,
também falou da invasão dos territórios indígenas por madeireiros, da
ganância que está por detrás da ideia do agronegócio, da violência sofrida
pelos parentes.
Na concepção de Toledo e Barrera-Bassols a globalização, enquanto
processo homogeneizador, tem consequências em diferentes campos da
vida política, social, cultural, educativa, ecológica e biológica. Por ser um
fator que ameaça cada vez mais a expressão da diversidade, da
heterogeneidade e da variedade, “[...] a globalização é um fenômeno que
atenta contra a própria memória da espécie humana” (2015, p. 237).
Hoje, as diferentes terras indígenas podem ser consideradas ilhas de
resistências envoltas

[...] em processos de organização social que provocam a


criação de novas unidades socioculturais mediante a interação
com agentes regionalizados e com características próprias.
Neste sentido, os Tentehar adquiriram ao longo das últimas
décadas particularidades em cada uma das terras indígenas
que ocupam, assumindo estratégias de sobrevivência
distintas, com alegorias próprias que envolvem desde
aspectos rituais até modificações linguísticas, tornando-se um
todo heterogêneo. (MESQUITA ALMEIDA, 2012, p. 33).
94

Face às forças destruidoras externas que historicamente enxergam


nos sistemas organizacionais indígenas potenciais ameaças aos seus
interesses socioeconômicos, situamos o Movimento Indígena Organizado
como forças de regeneração do ideário indígena. Haja vista que se tornou
importante instrumento político de luta em favor dos direitos e modos de
vida tradicionais indígenas. Ao estudar sobre o Movimento Indígena
Brasileiro Daniel Munduruku destaca o seu caráter educativo como “um
instrumento legítimo na defesa dos direitos indígenas, estruturado em
processo de autoformação e servindo também [...] para mudar o olhar da
sociedade brasileira, mesmo do Estado, sobre os povos indígenas” (2012,
p. 12).
No Maranhão, foi a partir de 1980 que o movimento indígena começou
a se organizar para discutir problemas como “a demarcação das terras
Guajá e Krikati, a retirada de madeira da área indígena Arariboia, e a
retirada de invasores das áreas indígenas” (GOMES, 2002; ZANNONI, 1999,
p. 182). Entre os anos de 1975 a 1985, com a luta pela defesa da
demarcação de suas terras, os Tentehar, situados em diferentes terras
indígenas maranhenses retomam a consciência como povo único para lutar
em prol dos seus direitos (GOMES, 2002; ZANNONI, 1999).
A organização das associações não governamentais nas aldeias, em
cada área indígena e regionalmente para lutar pelos direitos conquistados
fez surgir novas figuras identitárias, como as lideranças indígenas, para
interfaciar as relações no âmbito das famílias extensas com a exterioridade.
Antes, o cacique liderava a sua aldeia exclusivamente. Atualmente, pode
também liderar mais aldeias. Ou seja, uma grande liderança indígena, que
pode ser um cacique ou não, têm sob seu controle muitas aldeias.
Entre os Tentehar, a liderança é uma pessoa capaz de articular uma
extensa rede de relacionamentos intra e interculturais. Uma pessoa pode
se destacar enquanto liderança local nas áreas da educação, saúde,
território, por exemplo, e alcançar projeções políticas em nível regional,
nacionalmente e até mundialmente. Citamos como exemplo a liderança
feminina Sônia Bone Guajajara, que disputou a vice-presidência da
95

República nas eleições de 2018 e movimenta uma extensa rede de


relacionamentos nacionais e internacionais em prol do modo de vida
indígena. Com família natural da terra indígena Arariboia, Sônia se projetou
nacionalmente depois de ter ocupado funções em organizações indígenas
como a COAPIMA, APIB e COIAB.
O caso de Sônia Guajajara revela alguma das mudanças ocorridas no
âmbito da organização social Tentehar nas últimas décadas. Outrora as
chefias das famílias extensas eram ocupadas tradicionalmente por homens,
grandes caçadores, depois trabalhadores que poderiam manter mais de
uma mulher. Hoje, são as lideranças que desfrutam de um certo poder
econômico e político, me explicou Fred Guajajara.
Assim, “a política era uma atividade eminentemente masculina”
(ZANNONI, 1999, p. 162). Mas o cacicado exercido por mulheres é
crescente entre esse povo e em outros estados brasileiros. Os processos de
educação não formal e formal, que credencia para o exercício em empregos
públicos nas áreas da educação e saúde, Ongs e órgãos públicos como a
FUNAI, têm crescido entre mulheres indígenas.
O que parece não variar é a tradicional arte requerida pelos povos
tupi para se tornar um líder. O fascínio e o respeito que o discurso exerce
sobre os Tentehar é notório, em qualquer reunião para se debater algum
assunto é dado o direito a todos os presentes falarem e serem ouvidos,
quando um fala todos escutam, e se não prestam atenção pelo menos ficam
calados. Um discurso só tem hora para começar, muitas das vezes uma só
pessoa pode falar até mais de uma hora, por isso as reuniões são sempre
muitas longas.
De acordo com Daniel Munduruku (2010, p. 33) a oralidade, “[...] é
importante porque passa ser instrumento para que a tradição continue
viva”. A repetição reafirma quem são: as reponsabilidades assumidas
perante os valores do povo, as lutas dos antepassados, os direitos
conquistados. Os brancos ou não-indígenas enquanto usurpadores são
tônicas que permeiam assuntos discutidos em diferentes reuniões que
presenciei.
96

Como lembra Munduruku (2010, p. 29) as pessoas da cidade criaram


a falsa ideia de que os indígenas vivem cem anos porque estão rodeados
de natureza, mas os povos urbanos não fazem ideia dos perigos que as
comunidades indígenas enfrentam diariamente: “[...] viver perto da
natureza acarreta muito sofrimento ansiado ou procurado, somos obrigados
a aprender a lidar com ele como uma forma de afugentar uma vida triste,
composta de choro e depressão”.
Aprender a viver em um mundo repleto de dificuldades e marcado por
incertezas faz com que o povo Munduruku precise se ajustar o tempo todo
para que possa viver plenamente. Por isso, viver o presente é a forma que
o seu povo encontrou para não pensar no que vem depois. A angústia
gerada em função de afugentar uma vida difícil marca também o eu
psicológico Tentehar. O “ihé (eu) Guajajara ‘sente’ muito e profundamente,
e experimenta, às vezes, de forma ilimitada e desesperadora, qualquer tipo
de sentimento: uma dor, uma tristeza, uma alegria...” destaca Ubbiali
(1998, p. 37).
Hoje talvez uma das grandes angústias vivenciadas por esse povo é
manter a floresta em pé, garantir uma vida digna para futuras gerações,
ter a liberdade para respirar e sentir o cheiro e os sons da mata, pois tem
a consciência que estão presos a este território.
As desordens e incertezas naturais fazem com que Maíra-Yr e Mikura-
Yr se metamorfoseiem em toda a história para enfrentar e ultrapassar as
dificuldades do percurso vivido. Afinal, a função pedagógica do mito é nos
ensinar “[...] como viver uma vida humana sob qualquer circunstância”
(CAMPBELL, 1990, p. 45). Por isso, na visão de Joseph Campbell (1990),
todas as pessoas deviam tentar se relacionar com essa pedagogia, que
chamo de pedagogia da resistência indígena.
Nas narrativas míticas ou históricas dos tentehar é notória uma
pedagogia da resistência, em que a metamorfose é um fenômeno constante
e fundamental para continuarem a existir. Tal transformação é sempre
irrigada pela afetividade e a reverência aos seus antepassados. Nas suas
memórias continuam vivas muitas histórias de sofrimentos vivenciados por
97

seus ancestrais para terem chegado até aqui. A memória irriga a lembrança
que todos somos um fio na teia da vida, pois o

o indígena se sente como pertencente à natureza, como uma


espécie entre outras [...]. Ao pensar assim, o indígena
compreende que sua participação na grande teia da vida, é
basicamente, fortalecê-la para que todos os seres vivos
possam usufruir das dádivas que ela oferece. Dessa maneira,
[...] acreditam que estão contribuindo para manter o “céu
suspenso” e que são partícipes na cocriação dos cosmos, em
parceria direta com todos os outros viventes. (MUNDURUKU,
2017, p. 53).

A corresponsabilidade entre os diferentes seres é bem percebida no


universo cosmológico tentehar. Nesse sistema os seres são geralmente
considerados responsáveis por alguma função específica no mundo dos
Tentehar. Em uma esfera transcendente, os karowara19 assumem as
seguintes responsabilidades: Maíra, Maíra-yr, Mukura-yr, Tupàn (heróis
culturais, humanos-animais, primeiros ancestrais poderosos); Diferentes
espíritos são os donos das florestas (Ka´a zar), das águas (Y’zar), das caças
(Mia’i’zar, o caipora), das árvores (Wira’zar), da noite (Pitun’zar); os azang
são espíritos errantes dos mortos; há ainda, os espíritos dos animais
(piwara) (WAGLEY; GALVÃO, 1961; ZANNONI 1999; UBBIALI, 2005).
Esses espíritos habitam do mundo natural dos Tentehar. São os
encantados, agem e somem conforme a sua função, pois transitam
constantemente entre homens, animais e vegetais, se comunicam e
relacionam com todos de forma constante e intensa. Sua presença resulta
numa significativa interferência na vida dos Tentehar, desde atividades
produtivas, culturais e relações sociais, pois

De uma certa forma é a vida espiritual que fundamenta a vida


material da sociedade Guajajara de maneira que ela, é regida
e direcionada por princípios metafísicos que incidem
diretamente na vida dos seus membros (UBBIALI, 1998, p.
35).

19
Encantados, espíritos, ou sobrenaturais, como nós não indígenas nomeamos.
98

Atuantes no imaginário cotidiano desse povo, os encantados regulam


a prática da caça; a produção do roçado; estabelecem tabus e regimes
alimentares; comandam rituais tradicionais; e são responsáveis também
pelo aparecimento da doença e mesmo da morte (SÁ, 2014).
O deslumbramento diante do mundo; a consciência de um tempo-
espaço, vida-morte desencadeia a angústia ou o horror diante do fim: ”[...]
esse homem não só recusa essa morte, [...] a rejeita, transpõe e resolve,
no mito e na magia”. Para Edgar Morin (1973, p. 95), o mito nasce de
alguma experiência profunda no espírito humano. É inflamado pelo mistério
da existência e pelo abismo da morte. A função mística dos mitos é dar
conta do espanto vivido diante do mistério, para a consciência do mistério
que subjaz a todas as formas (CAMPBELL, 1990).
Como nós humanos de forma genérica, enquanto espécie, nos pomos
diante da morte? Por um lado, sabemos que a morte é um fenômeno cíclico,
que todos serão acometidos; por outro, duplicamos a vida por meio dos
mitos, das religiões, das crenças, da criação de mundos sobrenaturais,
extraterrestres. Para citar um exemplo, na cosmologia judaico-cristã os
espaços do paraíso e do inferno são lugares de duplicação da vida.
Na visão cosmológica dos Tentehar o fluído da vida alcança todos os
seres. Ou seja, todos tem a sua função e a sua corresponsabilidade na
constituição do universo. Essa energia

[...] se comunica desde os seres sobrenaturais até os astros


celestes, passando pelos seres minerais, vegetais, animais e
humanos. Todos são atingidos pelo fluído vital! Não existe
nada sem vida, não há mortos nesse mundo! É um mundo em
que o princípio e o poder da vida fazem com que todos esses
seres heterogêneos tenham condição de comunicar entre si.
(UBBIALI, 2005, p. 49).

Em síntese, a importância da vida que se manifesta em todos os


seres reverbera na maneira de educar segundo os valores ancestrais, dada
a importância de cada ser no ciclo da vida no universo. Talvez por isso, na
cultura tentehar, desde o nascimento a pessoa se torne o centro e objeto
de toda comunidade (UBBIALI, 1998).
99

Fotografia 19. Tàmui João Tawi nos conta histórias do céu na aldeia
Mucura

Fonte: Acervo do projeto DIA (2013).

Fotografia 20. Mulher tentehar tecendo rede no tear

Fonte: Acervo do projeto de valorização de saberes Tentehar (2020).


Fotografia 21. Ensinando e aprendendo a arte de tecer redes
100

Fonte: Projeto de Valorização dos Saberes Tentehar (2020).

Fotografia 22. Confecção do fuso no quintal

Fonte: Acervo de Janaína Almeida Aquino (2018).


101

Fotografia 23. Novas gerações aprendem a tecer

Fonte: Acervo do Projeto de Valorização dos Saberes Tentehar


(2020).

Fotografia 24. Fala do prof. Antonio Gomes Guajajara no lançamento do


livro Histórias do céu contadas por Zahy e Tatá

Fonte: Acervo do projeto DIA (2016).

Fotografia 25. Fala do Cacique Zapu’y Guajajara em reunião


102

Fonte: Acervo do projeto de Valorização dos Saberes Tentehar (2020).

Fotografia 26. Fala do prof. Ezequiel Guajajara na comemoração do dia


das crianças

Fonte: Acervo da autora (2019).

Fotografia 27. Guerreiros mirins


103

Fonte: Acervo da autora (2019).

Fotografia 28. Um dos símbolos da resistência indígena

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2020).


104

PARTE III - CICLOS E METAMORFOSES: A FORMAÇÃO DA PESSOA


TENTEHAR
O todo alimenta-se de cada um, cada um alimenta-se de tudo, e a vida recomeça, em
um fervilhar de heterogeneidade, desmedidas, dispersões... na ‘união da união e da
105

desunião’. É isso que devemos conceber, o que suscita o problema do pensamento


complexo.
(EDGAR MORIN)

A memória tem que ser a granel porque tudo o que guardamos dentro da gente gera
emoções, sentimentos, alegrias e dores. Nossa memória é seletiva para proteger-nos de
nós mesmos.
(DANIEL MUNDURUKU)

Acontecimentos bons ou ruins, alegres ou tristes passam a fazer parte da nossa história.
São marcas que vão morar dentro da gente como uma tatuagem ancestral.
(DANIEL MUNDURUKU)

Os contos de fadas, os mitos e as histórias proporcionam uma compreensão que aguça


nosso olhar para que possamos escolher o caminho deixado pela natureza selvagem
(CLARISSA PINKOLA ESTÉS)

No tempo em que os animais sabiam falar, um menino que seguia


o caminho da roça, acompanhando a mãe, distraiu-se a flechar
passarinhos. Perseguindo um bacurau, distanciou-se do caminho,
perdendo o turno. Foi dar a um lugar que, subitamente cercado
pelas águas de um rio, o deixou ilhado. Muito triste, o menino não
via jeito de atravessar toda aquela água. Nisto, passou um bacurau
a quem o menino que o levasse para outra banda, onde havia terra
firme. O bacurau não se importou e disse que ele era muito pesado.
Avistando um pica-pau, o mesmo renovou o apelo, “deixa-me ir em
tuas costas”. O pica-pau pousou e disse ao menino que montasse
em suas costas. A muito custo levantou voo, porém, desistiu. Não
aguentava o peso. Wiraí, assim se chamava o menino, procurou
dessa vez o auxílio de um paturi (pequeno pássaro). O paturi foi
incapaz de levantá-lo do solo...

Nesse pequeno trecho da narrativa que conta as aventuras do menino


Wiraí, ele se perde na mata por se distrair flechando passarinhos em sua
106

volta. Caçar passarinhos, seja com flechas ou baladeiras20, com seu mocó21
atravessado ao peito com algumas pedras ou coquinhos dentro é uma
prática aprendida no universo masculino tentehar. É comum ver os meninos
em agrupamentos de dois ou três passarinhando pelos quintais da aldeia
Juçaral. Tal recreação é uma espécie de preparação para as aprendizagens
que levam o menino a se destacar como um bom caçador nessa cultura.
Depois de um longo tempo perdido na mata, Wiraí conseguiu retornar
ao seio de sua família. É importante notar que todas as narrativas míticas
geralmente surgem de algum sofrimento terrível por que passa um grupo
ou pessoa, ou seja, elas derivam de momentos vívidos de aflição. E, por
mais paradoxal que seja, acrescenta Clarissa Pinkola Estés (1998), essas
“histórias que brotam do sofrimento profundo podem fornecer as curas mais
poderosas para os males passados, presentes e futuros” (p. 10-11). Por
isso a autora as nomeia de histórias medicinais, pois servem para
“[...]ensinar, para corrigir erros, para iluminar, auxiliar a transformação,
curar ferimentos, recriar a memória. Seu principal objetivo consiste em
instruir e embelezar a vida da alma e do mundo” (p. 10).
No livro “Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha)
memória”, o escritor Daniel Munduruku (2005) narra uma dessas
experiências medicinais que viveu com seu avô, um sábio pajé Munduruku.
Narrando histórias sobre a sabedoria de um rio ou ainda lhe proporcionando
observar o canto dos pássaros embaixo de uma mangueira, seu avô lhe
ensinou lições que funcionaram como um bálsamo para cicatrizar na sua
alma as feridas abertas pelo preconceito vivido na escola por ser um
indígena. Com essas histórias ele pode recriar a memória da sua
ancestralidade e ter orgulho das suas raízes.
A educação na memória ancestral tentehar começa cedo e se
concretiza nos diferentes momentos rituais de iniciação tentehar. Em tais
celebrações que marcam ciclos e metamorfoses, ou seja, o fim e o início de

20
Objeto de disparo de projeteis composto de liga, madeira em formato y e couro,
também conhecido como estilingue e badogue.
21
Pequena sacola de palha ou de tecido usada pelos caçadores para guardar suas
munições.
107

uma nova fase de vida, as pessoas são incentivadas a “amadurecer sua


personalidade e a aperfeiçoar suas qualidades” (UBBIALI, 1998, p. 38).
O primeiro ritual de iniciação acontece por volta dos nove meses de
idade. Nesse período a criança já consegue sentar-se e engatinhar sozinha,
e poderá se alimentar de outros alimentos além do leite materno e mingaus.
Para introdução de alimentos temperados e carne em sua dieta alimentar a
criança é preparada previamente. Por isso, a avó se encarrega de preparar
com a mãe seu primeiro ritual de iniciação.
Os preparativos da celebração consistem em enfeites para
ornamentação da criança, alimentação específica e presentes. Antes do
ritual, a avó materna providencia os enfeites: plumas de gavião, tufinhos
de penas de tucano e arara e instrumentos de trabalho conforme o sexo da
criança, como o arco e a flecha para o menino e o maniá22 para a menina.
Um dia antes da cerimônia a família já preparou os bolinhos com a
caça permitida, a carne da ave jaó ou lambu-tona é a mais indicada. Na sua
falta pode ser substituída por uma outra não reimosa. A carne cozida é
socada em um pilão com farinha de puba, a mistura recebe o formato de
bolinhos redondos na quantidade para encher um tupé ou bacia. A tintura
de jenipapo também é previamente preparada.
No dia marcado, por volta das seis horas da manhã, a avó passa a
tintura preto azulada de jenipapo no corpo da criança, as plumas de gavião
são postas na cabeça e tórax e as penas de arara ao redor da cabeça.
Ornamentos como capacete, braçadeiras para os meninos e colares para as
meninas também podem ser colocados em seus corpos (ZANNONI, 1999).
Após ornamentação e com os presentes à mão, a criança é sentada numa
esteira feita de tranças da palha de babaçu para receber bençãos de saúde
e proteção da avó. Os tupés com os bolinhos são colocados à frente da
criança e distribuídos para familiares logo após a benção. A partir de então,
a criança poderá se alimentar normalmente. Encerra-se, assim, o ritual.

22
Rede.
108

Celebrações semelhantes, porém, com maiores detalhes, regras e


tabus alimentares se repetirão na fase da puberdade. No mês de março de
2020 aconteceu esse ritual para duas crianças da aldeia Juçaral. Por ser um
ritual mais restrito a familiares da criança, perguntei a alguns pais e mães
se eles continuam comemorando essa passagem. As famílias locais têm em
média cinco filhos ou mais. Parte disse que sim, pois o respeito a tradição
é que garante uma vida longeva. Outros, entretanto, disseram não ter
realizado o ritual para nenhum dos filhos.
Embora algumas famílias não celebrem essa passagem, é notório que
as crianças vivem sua meninice com a liberdade para andar e/ou correr por
todos os lados. Elas parecem viver livres como pássaros. Por isso, estão
sempre a brincar, nos pátios, quintais, rua, roça, rio, campo de futebol ou
na escola. Podemos avistá-las quase sempre brincando em pequenos
grupos. Assim, brincar não é apenas brincar,

Andar pela mata é mais que um passeio de distração ou


diversão; que subir numa árvore é mais que um exercício
físico; que nadar no rio é mais que uma brincadeira; [...]. A
criança vai entendendo aos poucos que o sentido ganha vida.
Suas ações são norteadas pela ausência que mora no seu
corpo e que precisam ser completadas por aquilo que dá razão
a sua existência. (MUNDURUKU, 2012, p. 69).

As ausências do corpo e mente serão preenchidas nas muitas


experiências do cotidiano pois, para aprender, as crianças têm trânsito livre
e sempre querem participar de tudo que acontece na aldeia, não resistem
a curiosidade em ver os que os adultos fazem e ficam sempre observando
do lado de fora ou de dentro o que está acontecendo. Onde seus pais estão
elas se fazem presentes, e os pais reciprocamente estão sempre por perto
observando o que os filhos estão a fazer. De maneira semelhante, as
crianças Munduruku “vivem a vida a partir do que elas observam nos
adultos. Os adultos, dessa forma, são objeto de imitação para crianças”
(MUNDURUKU, 2010, p. 29).
Essa maneira de partilhamento da aprendizagem, com pessoas em
diferentes fases da vida, crianças, jovens, adultos e velhos presentes num
109

mesmo espaço, como se aprende numa casa de farinha ou num ritual, por
exemplo, foi algo desafiador para nós sujeitos da cidade, representantes da
cultura escolar assentada sob suas muitas regras inflexíveis e que têm na
figura do professor o detentor de um saber especializado. Essa foi a
constatação que fizemos quando nos deslocamos para aldeia Juçaral para
partilhar momentos de ensino-aprendizagem em astronomia intercultural.
O mundo quadrado da sala de aula, um espaço domesticado e
fechado, com hora exata para começar e terminar, restrito a professores,
alunos e coordenação pedagógica caía por terra para nós na aldeia. Todos,
sem exceção, avós, avôs, mães, pais, jovens, crianças desde as mais novas
queriam saber, aprender ou se inteirar sobre o que ensinaríamos ali, pois
assim se ensina e aprende numa comunidade indígena. Entendemos na
época a necessidade em abraçar o movimento circular de vidas a nossa
frente. E em cada ida a aldeia fomos aprendendo que nenhum encontro
teria hora pra começar ou terminar, ou seja, não acontecia na hora marcada
no nosso relógio, mas em outro tempo, no tempo em que a maioria podia
estar presente. Além disso, as atividades deveriam envolver todas as
gerações, velhos, adultos e crianças.
Não aprisionados ao relógio artificial, na escola também os
professores indígenas e o diretor conduzem as atividades no seu tempo ou
até o momento em que todos demonstram estar confortáveis, embora haja
um calendário e horários oficiais estabelecidos a cumprir.
Essa maneira de aprender dialoga com ciclos da vida e o tempo em
que corpo e mente se permitem viver sem a violência do aprisionamento
ao ritmo de vida capitalista e sua domesticação. No entanto, a condição de
viver o que o corpo-mente permite é geralmente entendida pelos órgãos
oficiais de ensino como desorganização, preguiça e enrolação.
Com horários menos extensos em relação aos regimes de tempo
convencionados pela cidade as pessoas de fora estranham e questionam o
fato do prédio escolar está quase sempre solitário. Também se vive a
contradição de se ter uma escola na aldeia, mas muitos pais matricularem
os filhos na escola do povoado e não na da aldeia. Em que pese a
110

necessidade de dominar o saber dos karaiw, a escola indígena é considerada


por muitos moradores como “fraca”. Um fator alegado para tal desempenho
é justamente a comparação do ritmo de trabalho de uma escola indígena
com a dos karaiw, a primeira considerada aquém em relação à última.
A escola é vista pelas lideranças locais como um mal necessário, pois
conhecer como pensam e se organizam os karaiw funciona como uma
espécie de arma indispensável na luta pela conquista e manutenção dos
seus direitos. No entanto, valer-se desses códigos representa ao mesmo
tempo ameaça para seus valores e saberes tradicionais.
Na escola local, por exemplo, as crianças e jovens são alfabetizadas
e ensinadas com uso preponderante do português em detrimento da sua
língua materna falada em casa. Outra preocupação é o distanciamento da
juventude dos seus conhecimentos tradicionais.
Ambiguamente, a escola representa uma ameaça para a organização
social de um povo, uma vez que cria categorias dissonantes da educação
regida por princípios indígenas, acredita Daniel Munduruku (2010). Por
outro lado, o movimento indígena ao conquistar na carta Magna da nação
Brasileira o direito a escolas específicas e diferenciadas indígenas, também
iniciou de maneira proposital um processo longo e necessário de tatuagem
da sua ancestralidade na sociedade brasileira.
Não perder de vista princípios e valores formadores da pessoa em sua
educação ancestral é vital para que os povos indígenas não sucumbam à
monocultura mental representada pela instituição escolar. Nas palavras de
Daniel Munduruku,

Quase todos os grupos têm problemas com a manutenção de


sua cultura tradicional e de seu patrimônio imaterial causados
pela debandada de jovens para as cidades em busca de novos
horizontes. Parte disso e consequência da presença da escola
nas comunidades, que traz novas percepções e desejos ao
coração dos jovens indígenas (MUNDURUKU, 2017, p. 2017).

Na minha concepção, o ritual de iniciação da primeira infância e os da


puberdade, que trataremos a seguir, são efetivos momentos educacionais
111

na tradição. Revive-los ano após ano, como fazem os tentehar da aldeia


Juçaral, é indispensável para essa comunidade continuar a imprimir na alma
sua ancestralidade.

Metamorfose e educação: a formação da mulher tentehar

Um certo dia, Maíra

[...] andava nesta terra fazendo seus ensinamentos para


todos que aqui habitavam. Ma’ira achando a menina estranha,
sozinha e com os olhos inchados, fez a pergunta para ela:
- O que está acontecendo com você?
Ela não quis responder. Ma’ira disse a menina que ajudaria
com o problema que estava. A menina contou que tinha vista
uma coisa muito estranha a descer das suas pernas e que era
avermelhada.
- Por que você está rindo?
Ma’ira respondeu dizendo que ela tinha menstruado e que isso
ia acontecer com todas as meninas que chegassem na fase
que ela estava. A menina perguntou novamente a ele se isso
faria mal. Ma’ira disse que não e que ela contasse a sua
família. E que não ficasse com medo de voltar para casa.
Então, ela voltou para casa junto com Ma’ira que acompanhou
até a aldeia, chegando à aldeia, os pais perguntaram a ela o
que tinha acontecido. Ela falou para os pais que tinha
menstruado pela primeira vez e que sempre que fosse na fase
da menstruação ela tornaria a menstruar.
Os pais da menina ficaram muito alegres e fizeram uma
pergunta ao Ma’ira:
O que vamos fazer agora?
Vocês vão até os baixões apanhar jenipapo, que é uma das
árvores que a menina havia sentado embaixo durante a tarde,
fruto que ela estava comendo.

[...] Ma’ira pediu ainda aos pais que a colocassem numa tocaia
até ser pintada com jenipapo. O pai então falou a filha que
fosse deitar enquanto eles fossem buscar o jenipapo. Eles
foram aos baixões junto com Ma’ira, que logo mostrou o pé
de jenipapo e disse a eles que toda vez que uma menina
menstruasse pela primeira vez, seria pintada com jenipapo
[...].

[...] Ma’ira pediu ainda que passassem todo o líquido do


jenipapo no corpo da menina e que cortasse um pouco do
cabelo dela na frente e atrás, logo depois o corpo da menina
ficou todo preto e pediu Ma’ira, a mãe que a levasse para
112

dentro da tocaia enquanto não sair todo o jenipapo do corpo


dela, assim fez a mãe.
E todo o dia a mão levava um pacará cheio de algodão para
ela tirar semente para que assim a menina não ficasse sem
fazer nada. [...] (MARANHÃO, 2010a, p. 26-27).23

A narrativa acima descreve como as famílias tentehar aprenderam a


cuidar da saúde física, mental e espiritual da menina-moça ao menstruar
pela primeira vez. O início da história é marcado pela atenção dada por
Maíra a uma menina que se encontra desnorteada num canto da floresta.
Como todo bom indígena Maíra logo se sentiu responsável para ajudá-la.
Na sua filosofia ancestral indígena todos são corresponsáveis pela educação
das crianças e jovens. Embora tal incumbência seja uma tarefa direta de
seus pais e avós ela pode ser assumida por outra pessoa da aldeia caso
necessário.
Com sua sabedoria ancestral Maíra ensinou as famílias tentehar a
cuidar do corpo e espírito da menina após sua primeira menstruação, que
ocorre geralmente na idade de 10 a 12 anos. Na cosmovisão tentehar, logo
após a sua menarca a menina-moça ficará encantada, ou seja, encontra-se
extremamente vulnerável à ação de espíritos como Ywán, azangs entre
outros. O período de encantamento, iniciado logo após a menstruação da
menina, dura até a sua festa do moqueado. Desde então, a família
dispensará cuidados especiais a fim de garantir para a nova mulher uma
vida saudável e longeva.
A primeira menstruação para as meninas, e a mudança de voz entre
os meninos, anunciam a chegada da vida adulta. O momento exige das suas
famílias maior atenção e cuidados com a saúde e a educação dos jovens,
pois eles assumirão novos papeis sociais e responsabilidades. Afinal,
aprender a conduzir a vida com suas próprias mãos, se tornar uma pessoa

23
Essa história é mais extensa e foi escrita pelo professor Augusto R. Guajajara da Aldeia
Januária, terra indígena Pindaré, para a coleção de livros didáticos indígenas e indigenistas.
As narradoras foram sua avó e uma mulher de nome Maria Pindaré (MARANHÃO, 2010a,
p. 24).
113

inteira é fundamental nessas sabedorias ancestrais. Pois “todos esses


rituais são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel que você
passa a desempenhar, com o processo de atirar fora o que é velho para
voltar com o novo, assumindo uma função responsável” (CAMPBELL, 1990,
p. 25). Conforme afirmou Zannoni (1999, p. 48):

A vida do Tenetehara é marcada por fases bem definidas


dentro do universo social ao qual cada família pertence.
Podem ser definidas como algo determinante da
personalidade, que é estruturada a partir de etapas
relacionadas com cerimônias próprias, a fim de permitir a
inserção do indivíduo na sociedade.

Por isso, logo após a sua menstruação a menina-moça entrará em


reclusão ou ficará presa na tocaia24, como dizem os tentehar. No período
de sete dias a atenção da família estará voltada para a formação da jovem
mulher. A partir de então a menina passará a ter a consciência da nova
fase que se inicia por meio de novas aprendizagens sobre a vida, em
diferentes momentos do ritual da menina-moça.
O nascimento de uma nova mulher entre os tentehar é celebrado com
orgulho e importância. A notícia do fato corre de boca em boca por toda a
aldeia, mas também nas próximas e distantes, onde vivem parentes e
amigos. Dada a importância do acontecido é comum a menina receber
visitas enquanto estiver na tocaia.
A família da menina-moça, por sua vez, providencia a colheita de
jenipapos para produção de uma tintura que cobrirá todo o seu corpo. A
avó materna é a pessoa responsável pela pintura. A mãe observa e
acompanha, pois futuramente assumirá o papel de avó e assim conduzirá
os rituais de seus netos. A menina, como veio ao mundo, com sua nudez,
recebe um banho da tintura de jenipapo que vai dos pés à cabeça, chamada
de pintura fechada. A função do jenipapo é fechar o corpo-espírito da

24
Uma pequena casa construída de palhas/galhos de árvores de nome tokasa/tocaia, é a
representação da itakuara (literalmente “buraco na pedra”, caverna onde vivem os
karuara. É como, também os tentehar denominam o lugar que os caçadores constroem
para abrigar a si, enquanto esperam pela presa. (LARAIA, 2005, p. 9).
114

menina contra a interferência dos espíritos. Na sequência, toda a família


também se pinta.
O jenipapo25 é um dos principais produtos da floresta para cuidar e
manter a saúde corporal e espiritual nesse sistema biocultural. Usado na
forma de uma tintura de cor preto azulada impressa no corpo, o fruto é
colhido ainda verde e passa por um processo químico natural para chegar
a essa tonalidade. O uso da tintura é intenso no cotidiano, e é comum vê-
la guardada nas geladeiras dos moradores da aldeia Juçaral.
Na tradição ancestral dos Tentehar a tintura do jenipapo, uma planta
ao mesmo tempo medicinal e mágica, é usada para prevenção, proteção e
cura de doenças físicas e espirituais. O jenipapo funciona como uma espécie
de cobertura protetora para o corpo, como nos relatou o mestre de
cantorias José Maria Paulino Guajajara (SÁ, 2014). Por isso, desde o
primeiro mês de vida eles fazem uso dessa tintura:

A criança pode usar porque sempre vai estar com saúde [...].
E tem um crescimento saudável. Se não usar jenipapo não
vive com saúde. Jenipapo é só pra isso, pra gente viver com
alegria e com saúde. Por isso toda vida usa jenipapo.
[...]Desde o começo. Porque o bicho tinha medo dele, do
jenipapo. Até mesmo criança pode ser pintado e pode
carregar ele para qualquer lugar, até mesmo pra roça de
manhã. [...] Criança que é pintada você pode andar com ele
em qualquer lugar, não pega nada. (Entrevista concedida por
Zé Maria Guajajara, 2018 e traduzida pelo professor Antonio
Gomes Guajajara).

Esse guardião da memória tentehar nos explicou que o jenipapeiro


está sempre verdejante, esbanja saúde e vitalidade, pois nenhum bicho
encosta nessa árvore. O uso do jenipapo é uma prática repetidas séculos a
fio, de geração em geração. Como disse Lévi-Strauss (2012b, p. 30) “cada
uma dessas técnicas supõe séculos de observação ativa e metódica,

25
O Jenipapeiro (Genipa americana), é uma planta pertencente à família Rubiaceae, a
mesma do café. Seu fruto possui formato ovoide, com tamanho que varia de 9 a 13 cm de
comprimento com até 9 cm de diâmetro. Possui casca rugosa de cor marrom quando
maduro.
115

hipóteses ousadas e controladas, a fim de rejeitá-las ou confirmá-las


através de experiências incansavelmente repetidas”. Por este motivo o
autor afirma ser inadmissível compreender o pensamento mítico-mágico
como uma forma balbuciante da ciência ou um esboço.
No oitavo dia, familiares e comunidade reunidos num pátio sob a voz
de cantores tradicionais cantam e pulam26 para anunciar a primeira saída
da menina-moça da tocaia. Nos sete primeiros dias de reclusão, a menina-
moça é iniciada em tarefas do universo feminino que desempenhará a partir
de então. Receberá orientações de sua mãe e avó de como cuidar de si, da
sua saúde, das comidas e sobre as ações permitidas e proibidas segundo a
tradição para o período. Conforme me relatou a anciã Angelina Guajajara,
no período em que esteve presa na tocaia sua mãe lhe ensinou todo o
processo de fiação do algodão, e depois da sua saída lhe ensinou a
confeccionar as redes no tear (SÁ, 2014).
Por volta das cinco horas da manhã a menina sairá da tocaia.
Simbolicamente a tocaia representa o casulo, a crisálida, ou seja, um
espaço de recolhimento de quem se prepara para um processo de
transformação psicossocial. Um estopim de foguetes anuncia no céu para
toda a comunidade a hora de saída da menina. Afinal, ela despertará
internamente para sua nova vida.
Ao ar livre, um pouco distante da cantoria e da tocaia, sua avó lhe
aguarda com um balde de água contendo folhas de mandioca ou
mandiocaba, deixado na noite anterior no sereno. Os cantores anunciam:
“Oioioi vamos soltar a menina que menstruou”, jovens rapazes batem na
tocaia e dizem: “acorda, chegou o dia de você sair. Ai a menina vai sair
onde vai ser banhada. Assim, que solta a menina desde os antepassados”,
nos relatou o cacique da Aldeia Ingarana e sua esposa Maria de Lurdes
Guajajara (2018).
A menina corre com as pernas juntas até o local onde está a água.
Sua avó inicia o ritual do banho, esfregando por todo o corpo as folhas

26
O pular dos tentehar é o que nós concebemos por dançar.
116

preparadas, benze sua neta, afirmando que será uma mulher “[...] formosa,
musculosa, forte e sadia” (ZANNONI, 1999, p. 66). Porque “lavar alguma
coisa é um ritual de purificação atemporal. [...] Também significa o batismo,
do latim empapar, impregnar com uma força e um mistério numinosos”
(ESTÉS, 2018, p. 114). Fazendo uso de uma expressão de Estés, trata-se
de um processo de “lavagem das fibras do ser” (2018. p. 78). No seu dia a
dia a mulher precisa ter um espírito forte para resistir às dificuldades, aos
perigos físicos e psíquicos existentes, por isso a menina corre e não pode
cair.
Na pedagogia da ancestralidade indígena não se cuida apenas da casa
física, mais inclusive da casa psíquica habitada por todos nós, pois na
cosmovisão indígena não há separação entre corpo, mente e espírito,
ressalta Daniel Munduruku (2010).
A formação psíquica da menina-moça é percebida em um trecho da
narrativa em que surge Ywán (o espírito sedutor das águas). Esse espírito
desperta nas mulheres tentehar a paixão descontrolada, como já dissemos.
Na continuação da narrativa

A mãe pediu muito a ela (a moça) que não conversasse com


ninguém e nem saísse da tocaia sem passar nos pés um pano
queimado e mastruz. E todo dia ela fazia isto, até que um dia
ela ficou chateada e saiu de dentro da tocaia sem que a mãe
a percebesse, ao sair ela viu atrás da tocaia um lindo rapaz
que a convidou para uma conversa.
Conversaram muito e disse que namoraria com ela, aí eles
começaram a se relacionar durante um bom tempo, sem que
os pais soubessem do caso.
Todo dia eles se encontravam no mesmo lugar. Até que um
dia seu pai desconfiou do comportamento da filha e da sua
aparência.
Sem que a menina soubesse que aquele rapaz era uma cobra
que se transformava num homem, que chupava todo o seu
sangue, a menina começou a adoecer e ficar bastante
amarelada e passou muito mal e morreu [...]. (MARANHÃO,
2010a, p. 28-29).

A história termina com Ma’ira revelando aos pais o motivo da morte


da jovem: o espírito das águas chupou todo o sangue dela. A perda de
sangue representa o “[...] o extermínio dos aspectos mais profundos e
117

íntimos da vida criativa e da alma” (ESTÉS, 2018, p. 70). Ma’ira se despede


orientando aos pais que repassem às outras famílias esses ensinamentos,
e que o caso se tornasse um exemplo para todas as meninas que
menstruarem pela primeira vez.
Segundo Clarissa Pinkola Estés (1998), no mundo inteiro há muitas
histórias antigas que giram em torno da ideia de uma ironia amarga, porém
instrutiva. Embora algumas tratem de ironias banais, outras lidam com
questões de vida e morte. As histórias funcionam como uma espécie de
farol, pois iluminam a vida. Nessa direção, estão ligadas à pedagogia do
indivíduo, pois fornecem pistas que servem de guia (CAMPBELL, 2015).
Na trágica história da menina-moça que morre sem sangue o sábio
Maíra busca demonstrar que nem tudo que parece ser é, como aparenta à
primeira vista. A ingenuidade da menina não lhe deu condições de
reconhecer o perigo, a ponto de não perceber que se tratava de Ywán, o
espírito sedutor das águas, um predador natural da psique feminina que
consome toda sua vida. Ao comentar sobre a mulher ingênua como presa,
citando o conto do barba-azul, Estés diz:

No início de nossas vidas, nosso ponto de vista feminino é


muito ingênuo, o que quer dizer que nossa compreensão
emocional do que está oculto é muito tênue. [...] Não ser
iniciada nos detalhes dessas questões significa estar num
estágio da nossa vida em que somos propensas a perceber
apenas o que está às claras. (ÉSTES, 2018, p. 63).

Ao descumprir as orientações dos seus pais, a jovem menina assumiu


os riscos da sua inexperiência. Seduzida pelos prazeres do seu ego e da
envolvente beleza de Ywán, a menina acabou se isolando da sua natureza
intuitiva. Incapaz de identificar as más intenções do seu predador, faltou a
menina uma “[...] mente afiada, os olhos astuciosos, a audição apurada”
(ESTÉS, 2018, p. 78).
A história do “Tenetehara comedor de gente”, narrada pelos tentehar
da terra indígena Pindaré para Wagley e Galvão (1961), é idêntica ao conto
do barba-azul utilizado por Estés (2018). Em essência, a história fala de um
118

homem que casa com mulheres somente para depois matá-las e devorá-
las.
Aguçar o olhar, manter os ouvidos bem abertos e observar o que está
em volta. Contando essas histórias iniciáticas a cultura tentehar resguarda
e prepara as jovens mulheres para reconhecer a existência de predadores
da alma. Enquanto estava presa na tocaia a menina ouviu a narrativa de
Ywán pela boca de sua avó, mãe ou pai. O fato explica o porquê de ela não
poder se afastar de casa para tomar banhos em rios enquanto não cumprir
o último resguardo, me relatou Zapu’y Guajajara. De acordo com Estés
(2018), nestas histórias arquetípicas estão incrustadas instruções que nos
orientam a respeito da complexidade da vida.
Um sistema complexo de saberes, formado por conhecimentos
medicinais e espirituais, regras culturais e tabus alimentares compõem
etapas do rito da menina-moça. Com a cerimônia da mandiocaba e uhá as
mulheres envolvidas ensinam e aprendem uma pedagogia do cuidado com
a vida.

A natureza que renova e alonga a vida: o rito da mandiocaba e uhá

O ritual da mandiocaba27 inicia quando a tintura do jenipapo sumir


completamente do corpo da menina-moça. No dia do ritual, os homens
colhem o tubérculo e entregam para a avó, que prepara o mingau da
mandiocaba e os beijus28. É importante mencionar que o mingau de
mandiocaba é preparado por pessoa que domine o seu preparo, pois fora
do ponto é um veneno. Enquanto, isso mãe e tias ajudam ralando e
espremendo a mandiocaba para que não falte, e preparam a tintura do
jenipapo. As crianças ficam sempre em volta ao mesmo tempo brincando e
observando o que acontece.

27
É o nome que designa um tubérculo, que a exemplo da mandioca é bem comum na Terra
Indígena Arariboia. Uma de suas características está no sabor, ela é mais adocicada que a
mandioca, além de ser mais macia.
28
No Maranhão denominamos por tapioca a goma do polvilho de mandioca, e chamamos
de beiju o bolo preparado numa chapa quente.
119

É uma cerimônia mais restrita ao universo feminino e familiar. Logo


após o preparo do mingau, a mãe ou a tia fará a decoração corporal da
menina. Antes, como ocorreu na primeira pintura, é quase totalmente
despida, pois traja apenas uma peça íntima. Agora, recebe uma pintura
aberta, linhas paralelas desenhadas com um palito de canajuba29
contornam ombros, tórax, as articulações de braços, mãos e pés. A região
do tórax frontal dividida em duas partes simétricas e as pernas recebem
internamente marcações que lembram a pelagem da onça pintada ou
rastros de animais na mata, conforme relatou Toinho Guajajara.
Como me explicou Fred Guajajara, eles transplantam as formas
impressas no corpo dos animais para os seus, como por exemplo: o desenho
da pelagem da cobra jiboia, de peixes, pássaros e diferentes caças do seu
sistema biocultural. As inscrições com tipos e formas específicas, marcam
as metamorfoses corporal e social que os Tentehar vivem em seus rituais
de passagens. O antropólogo Viveiros de Castro (2002, p. 388), ao estudar
a etnologia e mitologias amazônicas diz que a decoração corporal e exibição
ritual representam ao mesmo tempo a “objetivação social máxima dos
corpos” e a sua “máxima animalização” (SÁ, 2014).
A pintura do corpo da menina é finalizada quando ela coloca suas
mãos dentro da bacia com a tintura até os pulsos, a mesma cobertura se
repete dos pés até o tornozelo, os espaços entre joelhos e cotovelos
também são preenchidos.
No meio do quintal em uma mesa panelas e pratos postos continham
bolinhos (paçoca) da carne de caranguejo. Os bolinhos feitos da farinha de
mandioca molhada são pisados com a carne de um caranguejo dulcícola de
nome uhá30. A cerimônia do uhá ocorria antes do ritual da mandiocaba,
como explicou o mestre de cantorias tàmui31 Vicente Ramu’i à Souza
(2017), logo após sumir a pintura fechada. De acordo com o registro da
autora o ritual acontecia assim:

29
Um tipo de bambu, comum na região, cujo principal uso é a fabricação de flechas.
30
Dilocarcinus pagei stimpson ou Dilocarcinus septemdentatus.
31
Tàmui é tradução da palavra velho.
120

A avó, tia, primos da moça vão buscar/caçar caranguejos que


vivem próximos à beira das lagoas e brejos da região.
Chegando à casa, a avó lava e cozinha ou assa os caranguejos
e tira um pedaço para o Tàmui passar nas mãos, juntas das
pernas, nas juntas dos braços e na parte frontal da cabeça da
menina-moça e também dá um pequeno pedaço para ela
comer. Os outros caranguejos a moça entrega para que Tàmui
e outros familiares presentes no momento comam.
Atualmente, pode ser realizada com apenas um, devido a
diminuição desse tipo de crustáceo na região. (SOUZA, 2017,
p. 28-29).

E como nos disse o mestre de cantorias Zé Maria Guajajara (2018):


“Aquela que menstruava a primeira vez só comia caranguejo! Então matava
caranguejo e trazia. Fazia paçoca, passa na menina pra depois comer.
Assim, pode comer caranguejo, não faz mal, mas tem que passar assim”,
demonstrou o cantor.
Na aldeia Juçaral, no ano de 2018, os dois rituais (mandiocaba e uhá)
foram celebrados ao mesmo tempo e dirigido pela avó Deusdete Santos
Kapi Guajajara, uma das matriarcas da Aldeia. Na ocasião, nós fazíamos o
registro documental32 e visual do ritual da menina-moça, conforme projeto
de pesquisa aprovado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Maranhão
(FAPEMA). A diminuição do crustáceo em função da morte de nascentes de
riachos e lagoas tem ocasionado a diminuição do crustáceo, conforme
menção do tàmui Vicente Ramu’i acima. Celebrar coletivamente esse ritual,
como foi feito, com três meninas, mostra que a cultura reage e se adapta
em função dos impactos ambientais sofridos nas últimas décadas.
Quando o rito inicia a menina é posta de cócoras para seu órgão
reprodutor possa absorver o vapor do caldo da mandiocaba por alguns
minutos. Depois, a avó pressiona sobre sua cabeça e estômago por alguns
segundos um beiju. Uma pequena mistura do caldo com tapioca é esfregada
em diferentes partes do seu corpo como cotovelos, axilas e cabeça. A

32
Nesse período eu me encontrava em Natal-RN cursando as disciplinas do doutorado. O
registro foi feito pelo bolsista Diego Borges, estudante do curso de Ciência da Computação
do IFMA/Campus Imperatriz, auxiliado pelos professores indígenas Antonio Gomes
Guajajara e José Filho Amorim Guajajara.
121

menina é servida com o caldo da mandiocaba e paçoca. Em seguida,


distribui as paçocas de uhá para as pessoas presentes.
Na sabedoria da tradição local, as comidas, bebidas e vapores
mencionados combatem as doenças ginecológicas ou do órgão reprodutor
feminino e os odores indesejáveis do corpo; combatem o envelhecimento
precoce, pois mantém a pele elástica, sem flacidez, para o corpo não
enrugar fácil, além de evitar o aparecimento prematuro de cabelos brancos.
De acordo com o relato do mestre de cantorias José Maria Guajajara
(2018), antigamente as mulheres tinham por costume receber o vapor,
andavam sem calcinhas, não tinham mau cheiro e nenhum problema
acontecia com elas, porque tinham resguardo, enfatizou. Para ele, os
resguardos conferem saúde e longevidade:

Aqui, a gente Tentehar né. Como nós, as mulheres têm todo


aquele resguardo. Não comer aquela coisa de qualquer jeito.
Por isso que Tentehar não tem cabelos brancos, mesmo
ficando velho, porque tem resguardo. Ela quando vai comer
caranguejo tem que passar nela assim [...]. Ou até passar
assim pra custar criar cabelos brancos. Porque caranguejo,
ele se renova. (José Maria Guajajara traduzido por Toinho
Guajajara).

Se tornar um velho e morrer nessa condição é algo buscado e


desejado na cultura ancestral tentehar. Cumprir com todos os resguardos
ensinados pela tradição é o meio para se chegar a velhice, daí a importância
do ritual de um filho. É como se existisse uma corrente energética que os
conecta com todos os seres e não pode ser cortada ou esquecida. Na visão
Yanomami, morrer velho é também um privilégio desejado: “queremos nos
extinguir só quando tivermos nos tornados velhos de cabeça branca, já
encolhidos, descarnados e cegos”, explica Davi Kopenawa (2015, p. 251).
Entre os Munduruku, a educação recebida por meio de cantos e
danças exprime o pedido para morrerem velhos. Então, educam para “[...]
que uma criança seja plenamente criança, pois ela pode não alcançar a
velhice, mas pedimos o tempo todo para morrer velhos, para ver as
gerações crescendo e se reproduzindo” (MUNDURUKU, 2010, p. 30).
122

É preciso viver o bastante para experienciar cada fase da vida


plenamente. Tornar-se velho é uma espécie de distinção, por alcançar a
reconhecida posição do sábio, uma referência, aquele que fala com
propriedade. Eis um ponto em comum nas filosofias indígenas. Para que
uma afirmação sobre a cultura ancestral seja considerada verídica é
necessário fazer uma consulta prévia aos velhos para só depois confirmar
a informação.
Se nas culturas indígenas as pessoas são educadas para reconhecer
no velho um ser admirável por toda a comunidade, por sua sabedoria
acumulada ao longo da existência, nas culturas de base capitalista a velhice
representa um fardo pesado de carregar, pois enquanto categoria
improdutiva e portadores de doenças adquiridas ao longo da vida, os velhos
são tidos com um peso para a sociedade que os mantêm, por isso muitos
são descartados em asilos.
Nos arquivos da memória do casal Maria de Lourdes Guajajara e
Ernesto Pazezu Guajajara, os velhos são a referência dos ensinamentos
sobre os rituais tentehar e sobre os valores da tradição. Como exemplo,
eles reconhecem ter obtido esses conhecimentos com a sua avó Zumira, o
casal de velhos Canuta e Zezin da aldeia Arariboia, o mestre de cantorias
Chicão, ou o centenário Vicente33, reconhecido como maior autoridade na
Arariboia em conhecimentos tradicionais.
Na continuação da explicação sobre a importância do caranguejo nos
resguardos da menina-moça, o mestre fala:

Então, a menina que vai comer caranguejo, aquela que ficou


moça, tem que primeiro passar nela o caranguejo, então pra
poder comer aquele caranguejo, não pode comer de qualquer
jeito. Se comer de qualquer jeito não vai dar certo pra ela.
Porque isso é resguardo pra quem ficou moça. Porque há
vários tipos de resguardo para aquela que ficou moça. (José
Maria Guajajara traduzido por Toinho Guajajara).

33
Possivelmente a maior biblioteca viva dessa cultura, Mestre Vicente partiu dessa
existência para terra dos encantados no dia 05 de novembro 2020.
123

Como é possível perceber na explicação do mestre de saberes,


cumprir todos os resguardos de práticas ancestrais representa vitalidade
para permanecer com saúde e chegar à velhice. A renovação biológica
comum aos crustáceos, conhecido como muda, permite que este animal se
renove após se livrar da carapaça antiga. Desta forma, quando troca a
carapaça, renova-se. De maneira análoga, a primeira menstruação indica
que o corpo-mente de menina não cabe mais no corpo-mente da mulher.
Portanto, é preciso tirar a carapaça de menina e vestir a de mulher.
Reconhecendo o mito como uma reserva poético-estética da condição
humana, diz Almeida (2017a, p. 140):

A construção mítica é dotada de plasticidade cognitiva.


Transpõe domínios, duplica realidades, opera por bricolagem,
antropomórfica e recorre abundantemente às analogias e
metáforas como uma forma de expandir, duplicar, inverter ou
deformar objetividades do mundo vivido.

O ciclo de renovação do caranguejo é a fonte inspiradora da


renovação humana, da sua metamorfose. Se recolher ou parar por um
determinando tempo é fundamental para prosseguir e manter uma vida
sadia e longeva nessa cultura. O ato de comer da carne de uhá e beber o
caldo de mandioca potencializa no corpo da menina-moça uma troca
energética homem-animal que fortalece o seu corpo-espírito, e assim se
manterá fértil para ser mãe e dar prosseguimento ao ciclo da vida. Nos
adultos e velhos os sinais da velhice são postergados, o resguardo garante
vida longa, conforme depoimento da avó Maria de Lourdes Guajajara
(2018):

Caranguejo dura muito porque o caranguejo também


menstrua, Tâmui contava assim. Eu também vejo assim,
porque quando caranguejo menstrua, cava um buraco e
entra, fecha e fica de reclusão. Quando entra passa muitos
dias não sei quantos dias fica lá pra poder sair pra fora, só vai
sair no inverno. Se alguém vê daquele jeito, não vai pegar
porque sabe que está de reclusão, mas muitos não diz isso,
porque quer pegar. E, outra coisa também, [...] o caranguejo
[...] se renova né, ele dura muito tempo e não envelhece.
Quando chega o tempo, o tempo de envelhecer ele se renova.
124

Então, ele fica bem novinho de novo [...]. Nunca acaba. Por
isso, [...] a menina que comeu paçoca de caranguejo não fica
doente, sempre é sadia. Porque fez e cumpriu resguardo com
paçoca, tanto pros outros e também pra ela mesma.

A sabedoria de velha da avó Maria de Lourdes é notada quando fala


minuciosamente do ciclo de vida do caranguejo, da época do ano em que é
própria ou não para o consumo do crustáceo, do seu processo de renovação,
imitado pelos tentehar. Já na voz da avó Deusdete Santos Kapi Guajajara
pudemos imaginar como era viver em um cenário de abundância do
crustáceo para se alimentar:

Antigamente quando era mata virgem, nesse tempo tinha


muito caranguejo [...] porque era bom para chover. Por isso,
os buracos dos caranguejos ficavam cheios de água da chuva,
por isso os caranguejos saíam.
Sssssssssssssssshhhhhhhhhhhhhhhhhhh caranguejo também
cantam assim. O local era vermelho, só caranguejo, assim eu
vi quando era criança. Naquela mata da Jurema e a mata do
Barriguda, [...] debaixo da mata era escuro chovendo e eu
andava por lá quando era criança matando caranguejo.

De acordo com Joseph Campbell (2015), essas cerimônias ou rituais


cíclicos não pretendem controlar a natureza, sua finalidade é harmonizar a
pessoa com a natureza, pois quando se está em harmonia com a natureza
ela entrega as duas dádivas. Segundo a matriarca Deusdete Kapi, hoje a
realidade do seu povo é mais difícil, pois

[...] não tem mais caranguejo, porque o fogo queimou toda


mata! por isso, agora diminuiu muito a quantidade nunca
mais eu vi [...] antigamente era muito bom, porque era só
mata [...]. Mas agora quando veio as queimadas acabando
com a mata, [...] queimando, fazendo medo pra todos.

O nosso pedido para a avó Deusdete foi que nos falasse sobre o ritual
da menina-moça, entretanto, essa sábia mulher de 80 anos, astutamente,
preferiu comparar a época da sua infância com os dias de hoje. E, com seu
doce e calmo semblante, denunciar as agressões ambientais vividas na
terra indígena Arariboia. A sua aula de ecologia, poderia ser assim
125

interpretada por nós: sem grandes árvores ou mata virgem diminuíram as


chuvas, sem chuvas não há um ambiente úmido propício a reprodução do
caranguejo, morrem caranguejos porque morreram lagoas e rios. Hoje, a
escassez existe em função da desarmonia entre homem e natureza.
Nas memórias dos velhos a floresta era densa, úmida e escurecia
cedo, como nos contou seu Oseas Guajajara:

A noite essa hora ficava era escuro, a mata escura, tinha


muita caça! até mesmo aqui perto tinha muita caça, aqui
pertinho quase no terreiro. Porcão andava por aqui, Caititu,
depois que o fogo entrou queimou a mata todo e as caças
todo, guariba, macaco, cutia, veado, caititu, anta, todo, todo,
todo queimou. Tatu.

Com a floresta em chamas e os valores ocidentais a cada dia mais


presentes nas aldeias, os rios assoreados, o espaço de vivências das
crianças e a aprendizagem mais completa pela diversidade natural e cultural
podem estar sendo esquecidos da memória.
Encerrada a distribuição da paçoca de uhá a menina-moça recebe um
colar de miçangas, reconhecido por toda a comunidade como símbolo da
menarca.

Kuzà urauhaw: o nascimento da mulher tentehar

O ritual da menina-moça, popularmente conhecido como festa do


moqueado é, entre todos os rituais da cultura tentehar, o mais praticado e
a sua maior celebração ancestral. Ano após ano se repete no mês de
setembro, às vezes se prolongando até outubro devido à grande quantidade
de celebrações em diferentes aldeias. No mesmo período acontece também
o ritual dos rapazes em algumas aldeias, e a festa do mel, celebrações bem
menos frequentes34.

34
Em que pesem fatores econômicos, logísticos, ecológicos e sagrados para a não
realização permanente dos demais rituais, a festa do mel e dos rapazes mantêm a sua
importância para esse sistema cosmológico. Na minha ótica, a festa da menina-moça é a
mais celebrada porque conjuga sob sua órbita mais elementos que falam do milagre da
126

Uma grande celebração coletiva reúne as famílias das moças que


menstruaram no período de um ano. Juntas, as famílias dividem entre si as
despesas necessárias à realização da festa, tais como a compra da pólvora
que abastecerá as espingardas e o combustível que levará os caçadores
para áreas mais afastadas do território; gastos com a compra e o preparo
de uma grande quantidade de alimentos para servir aos parentes vindos
de várias aldeias e outras terras indígenas, além da construção de barracões
para alojamento; alimentação e bebida dos cantores tradicionais durante o
ritual; confecção de adornos e indumentárias usados pelas moças,
familiares e cantores durante o ritual. A família (mãe, pai, avó, avô) que
toma para si a iniciativa de organização do ritual é reconhecida como a dona
da festa.
A celebração encerra os resguardos vividos pela menina-moça, e a
sua dimensão política e econômica consiste na apresentação das novas
mulheres à sociedade tentehar. Em sua dimensão espiritual, a celebração
pode estar associada ao poder mágico das mulheres. Elas, em muitas
mitologias agrárias, são consideradas deusas porque, como a terra, dão
origem, alimentam e protegem a vida (ZANNONI, 1999; CAMPBELL, 1990).
Conforme mencionado anteriormente os resguardos vividos em
diferentes ciclos da vida dos tentehar fazem parte de acordos alimentares
estabelecidos com os animais. Para mantê-los, regras culturais foram
criadas pelas próprias espécies animais e/ou espíritos donos. Em
determinadas fases da vida pais e filhos ficam proibidos de consumir
alimentos e caças do seu ecossistema, que comumente consomem35.

Espíritos da floresta, caça e ancestralidade animal

vida, dos sentidos existenciais que nos constitui, e não apenas do peso socioeconômico da
mulher nessa sociedade.
35
A relação das caças e alimentos proibidos e permitidos podem ser consultadas em
Zannoni (1999).
127

Como explicou o mestre de cantorias Zé Maria Guajajara, no acordo


do ritual da menina-moça

O pássaro lambu tona se intitulou a dona da festa do


moqueado. A regra do lambu tona foi que sua carne deve ser
passada no corpo da menina, também ingerida, para ser
verdadeiramente a festa do moqueado, e caso a menina-moça
não cumpra a regra poderá ficar perturbada. (Cantor Zé Maria
Guajajara, tradução de Toinho Guajajara).

Como explica Campbell (2015, p. 16):

O sistema de crenças típico dos povos caçadores – que


passam o tempo todo matando e comendo animais e não
sentem, como nós, que o animal é uma forma inferior de vida
– admite ser o animal uma forma equivalente à humana, só
que sob um aspecto diferente; o animal é reverenciado
(CAMPBELL, 2015, p. 16).

O ritual da menina-moça é um momento especial de rememorar esses


acordos, de agradecer, reverenciar esses animais por ofertar a sua vida aos
tentehar. Por isso, as festividades de apresentação da menina-moça iniciam
com uma grande caçada ritual, como uma forma de recontar toda a história
vivida pelos seus ancestrais. O animal entrega sua vida que transcende sua
entidade física voluntariamente por meio de algum ritual de restauração.
Assim, diz Campbell (1990, p. 86) “[...] esse ritual de restauração se
associa ao animal, que na caça, ocupa a posição mais elevada”.
O animal que ocupa a posição mais elevada do ritual da menina-moça
é a ave lambu-tona36, considerada a dona da festa37 segundo a narrativa
do mestre Zé Maria Guajajara. Essa ave tem o poder de desencantar a
menina-moça, “porque enquanto não passar lambu nela, não pode comer
qualquer tipo de carne”, só depois de passar a carne moqueada da lambu,
a moça poderá comer outras caças como o porcão do mato e o macaco

36
Crypturellus parvirostris, popularmente conhecido como inhambu-chororó, lambu,
nambu, lambu-pé-roxo.
37
A Jaó de pé de roxa (Crypturellus undulatus), também da família dos Tinamidea, foi
descrita por Zannoni (1999), como a ave principal do ritual, por ser usada para
desencantar a moça.
128

guariba. Caso não cumpra tais resguardos poderá passar mal, ficar doida
ou perturbada, disse a lambu-tona segundo a narrativa desse guardião do
saber ancestral. Dessa forma, a festa da menina-moça é caracterizada do
início ao fim pela preparação e distribuição das carnes de caças moqueadas
(ZANNONI, 1999; SÁ, 2014).
No entanto, está cada dia mais difícil cumprir tais acordos de
cooperação, prestar reverência aos animais da festa do moqueado, como à
lambu-tona e outros. A caçada, prática cultural primeva, muito presente
no dia a dia dos tentehar, está a cada dia mais ameaçada em função da
morte da biodiversidade local. Antes, uma única caçada era realizada nos
dias que antecedia a festa. No ano de 2018, por exemplo, para o ritual com
9 meninas acontecer na aldeia Juçaral foram necessárias três caçadas, e
ainda assim não conseguiram caça em quantidade suficiente, obrigando as
famílias a usarem carne de frango no preparo das paçocas moqueadas. De
acordo com seu Oseas, “o moqueado que a gente fazia não era pouquinho
como tá sendo hoje, moqueado que dava pra todos os parentes que vinham
pra festa, agora hoje em dia não tem mais, pouca caça agora. Cada vez
mais, tá ficando difícil a caça do mato”!
Ainda na década de 1990, a escassez de caças e a compra de chumbo
e pólvoras para se caçar o suficiente para alimentar os convidados da festa
foi descrita por Zannoni (1999) como alguns dos motivos para o ritual da
menina-moça se tornar uma celebração coletiva. Hoje, é consideravelmente
maior a escassez de caças no território Arariboia. Se antes, com o resultado
da caçada, alimentavam todos os convidados, hoje não se consegue o
necessário para encher a panela de cada menina-moça.
Conforme relato do professor José Amorim Filho Guajajara, os
homens da aldeia quando vão para a mata fechada ficam aproximadamente
5 (cinco) dias fora e chegam a percorrer até 80 km em direção ao centro
da reserva à procura das caças. Tal escassez deve-se em grande parte aos
incêndios acontecidos na TI Arariboia na última década.
O incêndio de 2015, por exemplo, está marcado na memória dos
moradores da aldeia. Além do terror de presenciá-lo, até hoje sofrem com
129

suas consequências. Foi um dos maiores incêndios florestais já registrados


em uma área de florestas contínuas em TIs na Amazônia. Em dois meses,
53,2% da área da reserva foram consumidos, causando significativa
diminuição de várias espécies de plantas e animais. O fogo alcançou a aldeia
Juçaral e muitas outras, destruindo moradias e roças inteiras (BARROS,
2016; ARAYA, 2015).
A narrativa da avó Deusdete Kapi Guajajara dá conta do poder de
destruição do incêndio por ela presenciado:

[…] O fogo zoava igual um trovão quando estava na mata


virgem, porque era muito fogo, fazendo medo pra todos,
derrubando muitas árvores grossas. Por onde o fogo ia
passando só ouvia árvores caindo. Era só madeira de lei como
jatobá, muito ipê caindo, que dava pra ouvir. Nós já
estávamos aqui quando veio o primeiro incêndio, foi pouco
tempo atrás que começou esse incêndio, assim, agora nesse
tempo destruiu toda a mata.

Frente à destruição do seu território os moradores da aldeia Juçaral


se adaptam às dificuldades, improvisam e criam táticas para manter seus
ritos. Entre os Tentehar, a caça é uma prática mais afeita aos homens.
Então, para cumprir o ritual, os caçadores, adultos e rapazes, se preparam
para ir à mata na data marcada. Na noite anterior à saída, a aldeia realiza
uma cantoria “[...] para pedir bons auspícios para os espíritos
encantados”38. Isso porque, nas culturas originárias, à arte de caçar é
atribuído um peso cosmológico, que decorre da “subjetivação espiritual dos
animais, e à teoria que o universo é povoado de intencionalidades extra-
humanas” (ZANNONI, 1999; VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 357).
Para os Tentehar a prática da caça, como bem explicitou Zannoni
(1999, p. 131), está “estritamente ligada ao sobrenatural e repleta de
regras culturais”. A mata, enquanto espaço da caçada, é um ambiente
perigoso e imprevisível, visto que espíritos bons e maus da floresta podem

38
Para que a caçada seja exitosa, uma série de regras são cumpridas por todos da aldeia
no período em que os caçadores estiverem na mata, conforme descrito por Zannoni (1999).
130

se transformar em gente e animal. A imprevisibilidade, as incertezas do que


está por vir, em virtude dos diferentes espíritos da floresta, como explica
Ubbiali (2005, p. 49), faz com que o Tentehar não possa se distrair, “pois
qualquer omissão pode ser fatal”. O caçador precisa aprender a lidar com o
natural e o sobrenatural; o improvável, o incerto é o seu caminho. Por isso,
caça e xamanismo são práticas associadas e recorrentes na Amazônia
(CAMPBELL, 1990; VIVEIROS DE CASTRO, 2002).
Cada caçada é diferente da anterior. Uma alta dose de educação
sensitiva, conhecer em detalhes a geografia do lugar ou como um espírito
se manifesta, suas necessidades e desejos, são pré-requisitos fundamentais
para o sucesso da atividade. Entretanto, a maior de todas elas é ter a
aprovação de caipora. Caipora é o grande xamã das florestas, o espírito
protetor e controlador do uso dos animais. Em diferentes mitologias
originárias amazônicas, caipora ou curupira39 é o espírito protetor das
matas e caças. Para satisfazer o maior desejo de caipora e para amansar
as caças os caçadores precisam ter o fumo (tabaco) em seus mocós, me
explicou seu João Tawi (SÁ, 2014).
No cenário da caçada,

[...] a vigilância, a atenção, a manha tornam-se vitais; é


preciso conseguir interpretar os movimentos mais sutis como
sinais, os traços mais delicados como indicações, é preciso
estar preparado individual e coletivamente para defesa, e
quando é necessário caçar, para o ataque. (MORIN, 1973, p.
58).

Não é de se espantar que “[...] às raças caçadoras do milênio


paleolítico, [...] devemos a própria forma dos nossos corpos e a estrutura
das nossas mentes” (CAMPBELL, 1999, p. 82). Com o ato de caçar o
hominídeo espevitou sua inteligência e adquiriu consciência da sua
natureza, ou seja, contraditoriamente a vida se alimenta da morte (MORIN,

39
De acordo com Cascudo (2012, p. 158) o “Curupira é um caipora, residindo no interior
das matas, nos troncos das velhas árvores. De defensor das árvores passou a protetor da
caça [...] Do Maranhão para o Sul o Caipora é o tapuia escuro e rápido”.
131

1973). Ou, como fala, Estés (2018, p. 152) “a irmã gêmea da vida é uma
força chamada morte”.
Então, uma caçada é uma boa aula para o desenvolvimento de
habilidades e capacidades especiais. Nas caçadas do ritual da menina-moça
de 2018, os rapazes aprenderam entre outras coisas a limpar as caças e
espetá-las para facilitar o moqueio e o transporte de volta à aldeia. Após o
preparo, ali mesmo desidratam a carne numa fogueira e depois a levam
para o moquém40. Para os rapazes é um momento significativo de interação,
diversão e de educação na tradição regada a um acervo oral de histórias
envolvendo essa prática ancestral.
Na sabedoria ancestral tentehar a caça pode ser surpreendida por três
diferentes técnicas de apreensão, a saber: varrida (miar haro haw), tocaia
(tukaz) e mutá (ywyra pytakwar), como aprendi em uma das oficinas de
caçadas tradicionais do projeto de extensão de Valorização dos Saberes
Tentehar na escola local41.
De acordo com o velho Ernesto Pazezu Guajajara, cacique da aldeia
Ingarãna, um dos segredos para realizar uma boa caçada é não anunciar
que vai matar a caça. Quando se sai para a caçada o certo é dizer “vamos
dormir” na mata, pois se avisarem, mesmo em um lugar bom de caça, os
bichos desaparecem porque antes foram alertados.
Depois de estudar diferentes mitologias de povos caçadores,
Campbell imaginou que o imenso e cacofônico coral de histórias que temos
“[...] começou quando nossos primeiros ancestrais contaram histórias uns
aos outros, a respeito dos animais, que eles matavam para comer, e a
respeito do mundo sobrenatural [...]” (MOYERS, 1990, p. 10).
De acordo com seu Oseas, seus antepassados quando iam para mata
caçar para a festa da menina-moça sempre cantavam antes de sair, e
quando chegavam no mato disparavam tiros de espingarda. Quando os

40
O moquém é uma espécie de jirau (grelhas de pau) para assar a carne em fogo lento.
41
Este projeto é financiado pela FAPEMA, e acontece atualmente na escola da local
coordenado pelo prof. Antonio Gomes Guajajara, pelo prof. José Amorim Filho Guajajara e
por mim, Maria José.
132

caçadores chegavam à aldeia disparavam as espingardas para as mulheres


irem ao seu encontro levar água. À noite iniciavam a cantoria, fazendo o
primeiro ensaio da festa, até meia noite ou mesmo a noite toda, explicou.
No entanto, afirma, hoje o ritual não é mais organizado da forma como era
antes.
Às vésperas do ritual, quando chegam da caçada na aldeia, os
caçadores reverenciam e agradecem caipora pelas caças concedidas,
cobrindo todo seu corpo com galhos de árvores. Tornam-se pequenas
réplicas lembrando a mata fechada, uma lembrança sempre presente nas
festividades escolares.
Com a chegada dos caçadores a comunidade prepara uma casinha
retangular e debaixo dela faz um moquém. Fornos de barro e grandes
pedras são o suporte das panelas nas fogueiras que cozinham a carne. Na
ocasião, o cacique da Aldeia Zapu’y guajajara, com ajuda de um ancião,
corta as caças e mistura algumas delas para depois distribui-las entre as
avós.
De agora em diante, as avós pegam a cena para si, pois, como no
cotidiano, estão entre as personagens mais importantes do ritual. Com sua
previdência e conhecimento as avós sentem a textura e o cheiro da carne.
Não provam nenhum pedaço, pois é proibido comer da carne antes de
encerrar o ritual. De acordo com Zannoni (1999), há exceção apenas para
avó dona da festa, do contrário a menina poderá adoecer e cair o cabelo.
Com suas panelas na mão, as avós recebem a carne. Elas e suas
netas tomarão conta do alimento no fogo até a hora de ser usado no ritual.
No momento da distribuição das caças, face a sua escassez, as avós foram
orientadas a moquear carne de frango para fazer os bolinhos que são
distribuídos no fim do ritual. A priori, elas não concordaram. Acredito não
ser fácil desrespeitar uma tradição tão antiga, mais no final as anciãs foram
obrigadas a aceitar.
133

Deusas vermelhas: a ornamentação do entardecer

Na manhã em que aconteceu o ritual, os homens preparam


novamente uma tocaia, nas proximidades da casa de um cantor tradicional,
considerado um local sagrado, pois

Toda a concepção de solo sagrado dos homens, a caverna dos


homens, é continuada nas cabanas cerimoniais, associadas ao
renascimento. Penetra-se, pela portinha estreita como por
uma vulva, ingressa-se, no corpo da mãe e ali dentro tudo é
mágico (CAMPBELL, 2015, p. 23).

Por volta das 14h horas do ano de 2018, na aldeia Juçaral, as


meninas-moças adentraram na tocaia com suas mães, tias, avós para
receberam a primeira decoração do ritual. Em cima de uma esteira de palha
confeccionada para esse fim, a menina tem seu corpo despido para receber
a tintura do jenipapo até a altura do pescoço.
Com os cabelos presos recebe uma decoração facial, os lábios são
contornados com finas linhas intercaladas com minúsculos pontos
desenhados com a tintura de jenipapo. Linhas paralelas no centro do nariz
e a partir do canto dos lábios atravessam todo o rosto, preenchido com a
tintura vermelha do urucum. De acordo com o sábio da tradição Zé Maria
Guajajara sua avó costumava pintar o rosto com o urucum, pois não havia
batom à época. Com urucum as mulheres costumavam desenhar rastros de
lambu, sapo e outros bichos da fauna local no rosto para se enfeitarem.
Ao finalizar a decoração, cada uma das moças recebe um talo de
canajuba para se coçar sem danificar a pintura. Recebem ainda um corte
de cabelo. Na frente é feita uma franja e atrás as pontas são retiradas,
deixando o cabelo reto na frente e atrás.
Então, vestidas apenas com saias rodadas na altura dos joelhos, as
meninas foram levadas por suas avós para a casa das carnes onde as
panelas, com água e carne, já se encontravam em ebulição. A cada menina
foi entregue um abano feito de palha de babaçu (cuité) cuidar das panelas.
Assim, assumiram a responsabilidade de abanar o fogo para que não
134

apagasse. É um momento para a psique instintiva aprender a se controlar,


a fixar prioridades e a concentrar a atenção. Para não apagar o fogo ela não
pode ser distraída, mas determinada (ESTÉS, 2018). Manter o fogo aceso
pode indicar que

[...] a mulher precisa estar disposta a arder, arder de paixão,


arder com as palavras, com as ideias, com o desejo por não
importa o quê que ela realmente aprecie. É de fato essa
paixão que provoca o cozimento, e as ideias significativas da
mulher são o alimento que é preparado (ESTÉS, 2018, p.
116).

A paixão pela vida pode ser percebida nos exuberantes e volumosos


colares de miçangas vermelhas que envolve seus pescoços. Após saírem da
casa do moqueado retornam a tocaia para finalizar a decoração. Recebem
o colar e uma longa saia vermelha que vai do umbigo até os pés. As bordas
das saias recebem fitas com renda de cetim e/ou desenhos com padrões
geométricos indígenas. O vermelho, alaranjado ou amarelo vibrante
simboliza o céu ao pôr do sol, o crepúsculo, nos informou o professor Toinho
Guajajara. Estés (2018) há muitos anos vem estudando o vermelho na
mitologia, e segundo a autora muitos dos fragmentos das narrativas são
derivadas

[...] das antigas “deusas vermelhas”, que eram divindades


regentes de todo o espectro de transformação feminina – os
acontecimentos “vermelhos” – a sexualidade, o parto e o
erótico, e que originalmente faziam parte do arquétipo das
três irmãs do nascimento, morte e ressureição, além de fazer
parte do mito do sol nascente e poente em todo mundo.
(ESTÉS, 2018, p. 532)

Como deusas vermelhas, as meninas-moças recebem em suas


cabeças coroas vermelhas ou alaranjadas. As coroas ou coifas são ornadas
com várias fileiras verticais de fitas cobertas com pequenas penas de arara
que cobrem toda a extensão do cabelo nas costas. Já na frente vão até a
altura do nariz. A finalização da decoração é feita com plumas de gavião
135

real, fixadas com resina de almesca no peito e topo da cabeça, pois a planta
confere proteção espiritual.
Mesmo que a tese não tenha elegido como argumento principal a
demonstração do princípio cosmológico feminino nessa cultura, o ritual da
menina-moça em todos os momentos de sua exibição demonstra a
centralidade da mulher nessa cultura. Ele nos remete ao culto do princípio
feminino, da mulher geradora da vida conforme lembrado por Estés (2018)
e Campbell (2015) nos seus estudos.
O vermelho também é a cor predominante em rituais do povo Gavião
Pukobyê, fato observado quando fotografei uma encenação de um dos seus
rituais para um trabalho do programa Saberes Indígenas na Escola no ano
de 2017, na aldeia Governador. Se entre os Tentehar o preto azulado está
no corpo e o vermelho nos adornos corporais, o vermelho molhado do
urucum se destaca no corpo de homens e mulheres Gavião.
Não só as meninas, mas avós, mães e tias também se adornam com
coroas, colares, pulseiras, saiotas e sutiãs ornados com sementes e penas
variadas. Boa parte das joias e ornamentos tem uma composição heteróclita
com sementes nativas e minúsculas miçangas industrializadas 42. Uma
diversidade de formatos e imagens impressas são tecidas com mãos e a
mente bricoleur dessas mulheres artistas (SÁ, 2014).
Nas diferentes criações de adornos, visualizamos o potencial inovador
do trabalho de mulheres. Elas não se limitam a cumprir ou executar um
roteiro ou manual pré-estabelecido. O seu trabalho bricoleur “[...] não “fala”
apenas com as coisas, [...], mas também através das coisas: narrando,
através das escolhas que faz entre os possíveis limitados, o caráter e a vida
de seu autor. [...] o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si” (LÉVI-
STRAUSS, 2012b, p. 38).
Para Almeida (2017a, p. 141) o mito

42
Nas lembranças de Ana Cleide Pereira Marinho, o uso de miçangas artificiais iniciou com
a distribuição feita pelos frades capuchinhos na região da cidade de Barra do Corda-MA.
Eles doavam sacos inteiros para as índias, relatou (SÁ, 2014).
136

é uma linguagem de modelização poética da construção do


mundo. [...] alimenta a pulsão estética. Não na concepção de
estética como arte, mas na concepção de estética como
sentimento de simpatia universal, como acoplamento sensível
do homem com o mundo [...].

Na combinação de cores contidas nas penas de uma arara, por


exemplo, se destaca a matiz azul celeste com nuances violeta de sua longa
cauda dispostas em filas nos capacetes ou cocás que os homens usam. No
centro do cocar, duas penas maiores fixadas pelo seu lado vermelho
realçam não só a beleza do adorno, mais toda simbologia contida. A arara
é um dos pássaros homenageados no ritual. A indumentária e os cantos do
ritual parecem refletir a emoção sentida com a beleza e admiração originada
no espetáculo da natureza, pois “sentir” é aisthèstikos, o sentido original do
termo estética (MORIN, 2012).

Da sinfonia dos pássaros aos cantos do ritual

Esses mesmos pássaros que com suas penas e plumas enfeitam os


adornos são os grandes homenageados nas principais composições
musicais do ritual. A natureza inspira as letras. As melodias cantadas no
ritual, a musicalidade vem dos sons da própria natureza.
O fascínio ou a admiração diante das habilidades de aves e animais
alimentam a poesia das canções dos rituais tentehar. Nas narrativas de
Maíra-Yr e Mikura-Yr, o jacu é reconhecido como ave faladora, pois é quem
conta a verdade para os gêmeos sobre a morte da mãe; pássaros canoros
como o papagaio, corrupião e xexéu são chamados de passeadores pelos
tentehar, e são considerados importantes por anunciarem muitas notícias
(ZANNONI, 1999).
Na madrugada os cantos do ritual homenageiam os seguintes
pássaros: zapi’izu (xexéu); terepuwir (corrupião); azuruhu, azuruxo,
azuru’i (espécies de papagaios); ánákázu (curica); piripipi; warizu
(papagaio amarelo); arar’ete (arara de peito amarelo); ararun (arara azul
escuro); arar kariné (ararinha); arar kág (arara vermelha); tukánuhu
137

(tucano de peito branco); tukánzu (tucano de peito amarelo); tukáni


(tucano do peito listrado); ywname (pássaro encontrado no cerrado e mata
atlântica); warataimir (pássaro que imita todos os pássaros); zawxi
(jabuti43); tururizu (lambu tona), descreveu o cantor tradicional Antonio
Gomes Guajajara.
As espécies de gavião urutaw da mata virgem, zawato, urutawi, são
cantados de madrugada logo antes da chamada da menina-moça. Logo
após se canta wirahaw (plumas de gavião) em referência aos enfeites
brancos usados pela manhã. Quando já amanheceu o dia, cantam os
pássaros zapuhu (recongo) e wiriri (andorinha), me relatou o cantor
tradicional Antonio Gomes Guajajara. Assim, uma cantoria também pode
ser considerada uma grande aula da biodiversidade local.
Na cultura Munduruku, também os pássaros são considerados porta-
vozes da mãe-natureza. “[...] Eles sempre nos contam algo [...]. O canto
do pássaro pode ser um pedido para que você aja com o coração. Sonhar
com um pássaro significa que uma presença ancestral está mostrando a sua
força, ressalta Daniel Munduruku (2010, p. 12) ao falar dos ensinamentos
aprendidos com seu avô. O pássaro também é um “símbolo da libertação
do espírito em relação a seu aprisionamento à terra”, infere Joseph
Campbell (1990, p. 29).
De acordo, o pajé Davi Kopenawa no mundo espiritual dos yanomami,
os espíritos das aves japim (xexéu) e gralha acompanhados por uma
multidão de espíritos arara, papagaio, tucano e mutum são os
companheiros e ajudantes do espírito da fertilidade (Ne roperi), sendo
responsáveis por espalhar a fertilidade pela floresta. Dada aproximação
entre as duas cosmologias é possível estabelecer a relação entre a
fertilidade buscada durante todo o ritual da menina-moça e a homenagem
aos pássaros cantados. Ao cantá-los, lembram da importante função das
aves enquanto semeadoras da fertilidade na floresta. Afinal, uma floresta

43
Na tradição ancestral Tentehar o jabuti é considerado um pássaro que não voa, me
explicou o professor e cantor tradicional Toinho Guajajara (2020).
138

fértil mantém o ciclo alimentar dos seus habitantes, pois somos todos
interdependentes (KOPENAWA; ALBERT, 2015).

O encontro entre o dia e a noite: inicia o ritual

O fim do dia, o pôr do sol próximo, demarca o início do ritual. No fim


da tarde, ornados com o capacete na cabeça e com o maracá a mão, em
pé, os cantores formam uma grande fileira. Ao centro, o mestre de
cantorias dá as primeiras chacoalhadas neste instrumento musical. Os
demais cantores o acompanham até pegarem o mesmo ritmo e formarem
um uníssono cada vez mais alto. Rojões estouram no céu.
Para iniciar o ritual as cantoras, mulheres animadoras da festa, se
põem frente aos cantores, iniciando o primeiro canto. O canto de abertura,
intitulado zanerukar chama a menina reclusa ao pátio para sair e animar a
aldeia.
Após o canto inicial, um cantor vai até a tocaia avisar as mães para
trazerem suas filhas. Segurando a mão das meninas-moças, mães e avós
guiam-lhes o caminho. Cada mãe entrega sua filha a um cantor, que por
sua vez enlaça seu braço esquerdo ao direito dela, e assim pularão o ritual.
A mãe e/ou tia se posicionam atrás da menina. Além de acompanhar os
cantos, cabe a ela manter os adornos e os cabelos da menina-moça
alinhados.
O terceiro canto wazay fala dos adornos da tarde. Depois do por sol,
o canto principal da festa, o da menina-moça, de nome uname kuzá é
cantado, um canto vindo dos encantados que, em respeito à sua
sacralidade, não pode ser modificado.
O próximo cântico, ánákázu wyra, fala dos enfeites da cabeça,
menciona os pássaros da sua coroa. De cabeça baixa as menina-moças se
mantêm com o olhar fixo para o chão, sem falar ou esboçar qualquer
sentimento durante o ritual. Reza a tradição que é para não se tornarem
mulheres enxeridas ou mexeriqueiras
139

Entre bençãos e proteção: as avós e a tradição de cuidar da vida

A avó pulará durante todo o ritual em frente à sua neta. Essas velhas
sábias, que formam suas filhas e netas para a vida, tem ainda o poder de
protegê-las, como nos explicou a avó Maria de Lourdes Guajajara: “Porque
a mãe vai ficar atrás dela, para arrumar quando ela roda e o enfeito desce
para o peito. A avó fica na frente, pulando, [...] protegendo a neta. É assim
que está protegendo a neta de verdade, exclamou!”
Essas matriarcas são responsáveis por iniciar e transmitir as suas
filhas, netas e bisnetas o legado matrilinear aprendido com suas mães,
avós, tias ancestrais, repetindo, ano a ano, gestos e movimentos do ritual
da menina-moça. A energia, experiências de vida que uma avó transmite
às suas netas e filhas por meio de histórias ou ações cotidianas ou de um
ritual pode ser comparada com a natureza de uma grande árvore, pois a
árvores filhas crescem direto da raiz da avó sabia (ESTÉS, 2007).
Segundo Estés (2018, p. 18) há muitos tipos de veneráveis grandes
avós na mitologia e na realidade consensual. Nela a grande avó representa
o arquétipo da mulher sábia, tem uma tarefa crucial que é intimidante,
ousada, desafiadora e alegre. Nas histórias, geralmente “ela é a anciã ‘que
sabe’ e surge de repente para ajudar a mulher mais jovem”.
Na cultura tentehar a avó representa o saber cuidar da vida ou do seu
milagre. Com amor e paciência, é a acolhedora, ou ainda a “velha perigosa”,
expressão que Clarissa Pinkola Estés (2007) cunhou a partir do sentido mais
arcaico da palavra dangerous [perigosa], que significava proteger, ser
cuidado, ser protegido.
A admiração pelas avós tentehar surgiu por observá-las durante todo
o ritual da menina-moça, por conviver ou conhecer algumas delas, e com
suas filhas e netas. Elas formam futuras sábias em preparação e mantêm
uma “ciranda de mulheres sábias”, pois a neta acabará incorporando algo
do jeito e do estilo da avó (ESTÉS, 2007; 2018).
A escritora indígena Eliana Potiguara, no seu livro “O Pássaro
Encantado”, reconhece que todos os povos indígenas do Brasil têm uma
140

relação sagrada com os avós e antepassados, pois são os responsáveis por


transmitir suas culturas, tradições e línguas. Em um trecho ela

reconhece na Avó a Grande Mãe Terra, aquela que tudo sabe


e protege, a que tem a intuição como estrada e anda com a
guerreira à sua frente contra qualquer perigo à sua espécie.
É a mulher que detém o conhecimento da história daquele
povo e que tem o dom de curar a todos: a mulher sábia! A
mulher que todos respeitam! (POTIGUARA, 2014, p. 18).

A única cordelista indígena do Brasil e escritora Auritha Tabajara


(2020) relata também a importância da avó na sua formação, com quem
diz ter aprendido a poesia dos cordéis e a contar histórias, uma sábia
benzedeira e guardiã das histórias do povo Tabajara. Em uma estrofe do e-
book “A lenda do Juracê”, assim poetisa:

...É uma das muitas lendas


Contadas por minha avó,
Fala sobre um curumim,
Filha de dona Jacó.
Ele chorou na barriga
E inspirou essa cantiga
Que desata nó...

O escritor Daniel Munduruku (2014) no livro Catando piolhos,


contando histórias fala das avós como mulheres especiais, experientes e
bondosas, possuidoras de um carinho especial pelas crianças. São elas que
ouvem e dão conselhos para todas as pessoas. A catação de piolhos é ao
mesmo tempo uma forma de acarinhar netos e filhos, e um dos métodos
para contarem muitas histórias, afirma o autor.
Aqui faço menção há três avós, matriarcas de famílias extensas da
aldeia Juçaral. Elas são: Angelina Carlos Guajajara, Ana Cleide Pereira
Marinho e Deusdete Santos Kapi Guajajara. São mulheres que já
atravessaram a casa dos 60 anos e já são bisavós. Com Angelina Carlos
Guajajara aprendi sobre o saber das mulheres guajajara na confecção de
redes, tipoias, saiotas e mochilas no tear tradicional, bem como sobre a
antiga e hoje não mais praticada técnica de fiar o algodão para produzir a
141

linha. Com Deusdete Guajajara, me chamou a atenção seu olhar sereno e


concentrado, os gestos calmos e sem pressa na condução do ritual da
mandiocaba.
Com Ana Cleide Marinho, uma indígena branca, viúva do antigo
cacique, vivenciei o saber acolher com um sorriso no rosto as pessoas que
chegam a sua casa. Como uma grande matriarca, acolhe a todos com uma
xícara de café quente ou um copo de água gelado. O seu feijão cozido no
fogo à carvão tem o sabor inigualável de quem tempera com o sal do amor,
pois sempre é feito em quantidade suficiente para alimentar a sua extensa
família, filhos, netos, bisnetos, amigos, parentes e visitantes. Entre os
serviços de casa e o aguar das plantas e canteiros, sem pressa, ela faz uma
pausa para de cócoras fumar o seu cigarro contemplando o horizonte.
Enquanto estou por lá, é ela quem me atualiza sobre as novidades e
problemas vivenciados no cotidiano da aldeia. Minha gratidão a essa “grand
mère”, a avó “[...] que pode ser compreendida como “grande mar aberto”,
como em mer, mar, mara, ma, mãe... a fonte da vida, o mar” (ESTÉS,
2007, p. 122).
Essas grandes mães, há um bom tempo dançam com a vida, agora
ensinam as suas filhas a dançar nos ciclos da vida.
As novas mulheres são a fonte de continuação da vida humana, da
existência dos tentehar. O ritual prossegue, todos cantam e dançam ao som
do maracá. Conforme segue a sequência de cantos, as meninas
acompanham o ritmo da dança coreografada pelos cantores. Os passos são
distintos entre os gêneros, os homens batem o pé direito no chão, enquanto
as mulheres levantam juntas os dois calcanhares acompanhando o ritmo de
cantos. Já as cantoras tradicionais variam em suas performances, algumas
pulam com as mãos levantadas girando o corpo nos dois sentidos, horário
e anti-horário, às vezes pulam de cócoras aos pés dos cantores e meninas,
outras vezes pulam em sentido horizontal indo do começo ao fim do espaço
reservado a elas.
As demais pessoas da comunidade dançam atrás das cantoras e avós,
formando pequenos grupos de três, quatro, cinco ou mais pessoas. Elas
142

dançam abraçadas e olhando por trás visualizamos o braço direito da


primeira pessoa estendido até o ombro direito da segunda, esta por sua
vez, contorna a cintura da primeira com o braço direito. As formações
grupais são variadas, algumas são constituídas por moças e rapazes, ou
somente moças; as mulheres casadas geralmente dançam com velhas e
crianças, e há também aqueles formados só por crianças.
Com exceção das cantoras que exibem performances por vezes
individuais, todos os demais passos são coreografados em sincronia
coletiva. As pessoas em volta são convidadas a abraçar um dos grupos e
participar da dança da vida. As danças do povo Munduruku também são
coletivas. Observa Daniel Munduruku que entre o seu povo também não
existe dança individual e o costume de dançar em grupo reforça a memória
de que não são melhores que ninguém. “Nossa dança tem um sentido
coletivo, só acontece quando dançamos juntos, batendo os pés no chão. A
batida dos pés, por sua vez recorda a criação do mundo: foi batendo os pés
no chão que Kairu Sakaibê fez nascer todas as coisas”, acrescenta o autor
(MUNDURUKU, 2010, p. 40).
O movimento de nascer e morrer que subjaz aos ciclos existenciais
são sempre lembrados e protagonizam as narrativas míticas e os rituais.
Após o por do sol os passos encenados mudam. Encerrada esta etapa da
cantoria, que se estende por aproximadamente duas horas, por volta das
20h30, cada mãe leva a filha para descansar em casa até o momento de
serem ornadas para última etapa da celebração. Os cantores se revezam,
alguns vão descansar enquanto outros permanecem a noite inteira
cantando.
Por volta das duas horas da madrugada as mães das meninas iniciam
o preparo da paçoca de carne moqueada para o encerramento do ritual. Na
tarde do dia anterior elas separaram as carnes dos ossos e desfiaram-nas.
Então, elas se reúnem no quintal de uma das casas para socar num pilão44
de madeira rústica a mistura de carne desfiada, farinha de mandioca e

44
Utensílio doméstico feito de tronco de madeira cujo interior foi desbastado por dentro
no formato concha.
143

água. Depois de retirar a massa do fundo do pilão elas dão forma com as
mãos a pequenos bolinhos e, com muito cuidado, cada uma enche o seu
tupé45.

O nascer do dia e o renascer da vida

Por volta das quatro horas da madrugada, em meio ao vento fresco


da manhã que se avizinha, as mães despertam as filhas, cobrem-lhes a
cabeça com um pano e retornam para a tocaia para enfeitá-las com a
segunda ornamentação do ritual.
O branco se destaca na decoração do amanhecer. Agora as moças
vestem longas saias na cor branca com detalhes em fitas em suas bordas
na cor vermelha. Os seus pescoços são envoltos por belos colares de
miçangas brancas, alguns com pequenas medalhas douradas. As coroas
com três tiras de aproximadamente 4 cm são cobertas com a plumagem
branca do peito do gavião, adornadas com pequenos arranjos de penas de
arara nas cores laranja, vermelha e verde, simetricamente dispostos em
alguns pontos da cauda. Sobre o rosto, a coroa pode ser coberta com penas
amarelas ou alaranjadas dos pássaros tucano e xexéu, com penas
vermelhas do corrupião ou ainda com as penas na cor azul anil, lembrando
as cores de uma espécie de uirapuru. No peito e cume de suas cabeças
foram novamente fixadas plumas de gavião.
O branco preponderante em toda ornamentação está associado ao
clarear do dia, explicou o cantor tradicional Toinho Guajajara, podendo
simbolizar a renovação ou renascimento do novo dia surgindo no horizonte.
É preciso renascer para a nova fase da vida.
Segundo o que Estés (2018) ouviu de diversas velhas contadoras de
histórias da Europa Oriental e do México o simbolismo do branco, vermelho
e negro se origina do ciclo reprodutivo e menstrual das mulheres. O negro
representa o revestimento que solta do útero sem gravidez. O vermelho

45
Pequeno vasilhame trançado da palha de guarumã semelhante a uma bacia.
144

simboliza tanto a retenção do sangue no útero durante a gravidez quanto a


mancha de sangue que anuncia o início de trabalho de parto e, portanto, a
chegada da nova vida. O branco é o leite materno que brota para alimentar
o novo rebento.
A meninice encerrou na cantoria do pôr do sol. No clarear do dia, se
levanta uma mulher tentehar, explicou o cantor tradicional Toinho
Guajajara. Ao final, concluída a ornamentação, fecha-se um ciclo. As avós
se posicionam em frente as suas netas e de maneira serena proferem
conselhos e bençãos as novas mulheres, é um momento ao mesmo tempo
sagrado e educativo. O cantor ali presente também emite seus conselhos
para as novas mulheres. o objetivo é garantir um melhor resultado para a
vida dessas mulheres, o que significa abençoar, na concepção de Estés
(2007), pois

Uma benção não faz com que você ganhe alguma coisa, mas
na verdade, faz com que você use alguma coisa – “algo que
você já possui” -, o dom que nasceu junto com você no dia
em que você chegou à Terra. Uma benção é para que você se
lembre totalmente de quem é, e faça bom uso da magnitude
que nasceu embutida no seu eu precioso e indomável.
(ESTÉS, 2007, p. 22).

Na aurora, adornadas de branco, as novas mulheres são mais uma


vez levadas ao pátio e entregues aos cantores. No primeiro momento da
cantoria os passos coreografados pelos cantores se repetem como na
cantoria do início do crepúsculo do entardecer. É iniciado o segundo ato, o
ápice da cantoria, momento em que é entoado o canto principal do ritual,
depois o canto em que os cantores se despedem dos encantados e
convidados (oroho putar ure) e o de encerramento da festa (xuá’ir).
O mestre de cantorias vai ao centro do pátio e a partir desse ponto
imaginário todos o acompanham formando um grande círculo em sentido
anti-horário. É um momento mágico e ao mesmo tempo emocionante.
Todos cantando o acompanham e formam uma espiral humana cada vez
mais comprimida. Com os corpos pressionados e o suor escorrendo pelos
rostos, o canto é repetido inúmeras vezes.
145

O estado de exaltação vivido nos momentos finais da cantoria é


comandado pela vibração sempre mais forte dos maracás e das vozes
femininas. Quando o mestre balança pela última vez seu maracá no alto e
o move para baixo as pessoas em volta se abraçam, se cumprimentam,
muitas choram; as mais eufóricas, muitas vezes totalmente embriagadas
continuam a pular e cantar em pequenos grupos abraçadas. Nesse
momento as rivalidades são esquecidas, os elos e vínculos reestabelecidos.
Pois,

Tanto nas sociedades arcaicas como nas históricas, existe, por


meio das ervas e/ou licores, por meio da dança e/ou do rito,
por meio do profano ou sagrado, uma procura, uma
expectativa, de estados de embriaguez, de paroxismo, de
êxtase no espasmo ou na convulsão com a ordem suprema da
plenitude de uma integração com o outro, com a comunidade,
com o universo. Estes estados parecem expurgar as
sociedades, transformar as violências e brincadeiras em
alegrias, as alegrias em delírios e beatitudes. Estes estados
extraordinários precários em certos aleatórios e apesar disso
fundamentais são vividos pelos sapiens como com seus
estados ótimos ou supremos. (MORIN, 1973, p. 106).

Após a finalização do último canto, de braços dados as moças


aguardam a cerimônia de desencantamento. Nesse momento as novas
mulheres são contempladas como verdadeiras deusas pelas pessoas
presentes. Existe uma espécie de encantamento inexplicável, pois as
pessoas não param de admirá-las. Na sequência, as avós, mães e as tias
chegam trazendo consigo a esteira da palha de babaçu, as panelas com a
carne moqueada e os tupés com os bolinhos de moqueado.
Cada esteira é disposta lado a lado no chão, a moças sentam e puxam
suas saias até a altura dos joelhos. Já as panelas ficam abaixo dos pés de
cada uma delas. A ave desencantadora, à lambu-tona ou o jaó é retirado
da panela pela mãe. A avó abre a carne em vários pedaços e a entrega ao
mestre da cantoria. O mestre abaixa-se perto de cada moça e, uma a uma,
esfrega os pedaços da carne em suas articulações professando saúde a fim
de que não sejam acometidas de doenças neurológicas, distúrbios mentais
ou complicações na gravidez ou no parto. Um pedaço da carne é entregue
146

a moça para que coma. Desse momento em diante os resguardos


alimentares cessam e ela já pode se alimentar normalmente.
De acordo com a explicação do cantor Antonio Gomes Guajajara, se
a carne utilizada no desencantamento não for da tona ou do jaó a menina
permanece encantada, e não aconteceu um ritual, mas uma simples
cantoria. Foi o que lhe ensinou o seu tio Zé Maria Guajajara atual mestre
da cerimônia na região da Arariboia.
Após o desencantamento da moça o mestre, em pé, informa aos
presentes que daquele momento em diante as moças são consideradas
mulheres tentehar. As novas mulheres se levantam, pegam os tupés e
distribuem os bolinhos de carne moqueada. Os bolinhos são muito
disputados pelas pessoas presentes. O restante da carne é distribuída,
muitas pessoas trazem vasilhas de casa, preenchem com o moqueado e a
farinha e ali mesmo se alimentam.
Nos rituais tentehar todos se juntam para comer ou beber, ou seja,
na festa do moqueado, na festa do mel ou ainda no ritual de mesada, como
o próprio nome indica, o desfecho das celebrações acontece com a
distribuição de alimentos entre todas as pessoas. O espírito de partilha, de
celebrar e provar da mesma comida, forma a consciência de que são parte
de uma coletividade. Afinal, na experiência dos rituais a pessoa vai
percebendo o seu pertencimento a uma comunidade, adquire uma visão
particular de mundo que o coloca no coração do seu povo (MUNDURUKU,
2019a).
De acordo com Joseph Campbell (1990) para uma cultura se manter
homogênea por algum tempo, há uma quantidade de regras não escritas
pelas quais as pessoas se norteiam. Há um ethos ali, um costume, um
entendimento segundo se age ou não de uma certa maneira. Na minha
compreensão, o mel bebido e ou moqueado saboreado nos rituais tentehar,
“[...]contêm em essência, o fluído vital, que dá[...] sentido [...]
ao ethos tentehar”, a busca de uma relação harmoniosa para si e os seus no
mundo em que habitam (SÁ, 2014, p. 93).
147

As narrativas de origem da festa do mel (zemuishiohaw) e da festa


dos rapazes evocam as lembranças de como os tentehar aprenderam a
celebrar seus rituais; a contar e cantar como meio para arquivar
conhecimentos ancestrais; ou ainda, das punições para os imprudentes ou
impulsivos semeadores do egocentrismo no seu sistema biocultural. É o
tema que vamos abordar no próximo capítulo.

Fotografia 29. Primeiro ritual da infância

Fonte: Acervo do prof. José Amorim F. Guajajara (2020).


148

Fotografia 30. Jenipapo

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).

Fotografia 31. Tintura de jenipapo

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar, 2018.


149

Fotografia 32. Construção da tocaia por familiares

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).

Fotografia 33. Noite de cantoria para a saída da menina-moça da tocaia

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).


150

Fotografia 34. As mulheres cantam e pulam abraçadas na cantoria

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).

Fotografia 35. Menina-moça

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).


151

Fotografia 36. A avó banha a neta às 5:00 horas da manhã

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).


152

Fotografia 37. Preparo do caldo da mandiocaba

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).


153

Fotografia 38. Pintura aberta

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).

Fotografia 39. A avó conduz o ritual da mandiocaba

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).


154

Fotografia 40. Caranguejo de água doce

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).

Fotografia 41. As meninas-moças distribuem os bolos de uhá

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).


155

Fotografia 42. Moqueamento e preparo das caças

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).


156

Fotografia 43. Preparativos para a festa das meninas-moças

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).


157

Fotografia 44. Cantores e avós aguardam a menina-moça

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).

Fotografia 45. Celebração das meninas-moças

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).


158

Fotografia 46. Meninas-moças com a decoração do por sol

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).


159

Fotografia 47. Decoração do amanhecer

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).


160

Fotografia 48. A nova mulher é desencantada

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).

Fotografia 49. Bolos de moqueado para a distribuição

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).


161

PARTE IV - NA TERRA DOS HOMENS-ONÇAS: APRENDENDO A


CANTAR, CURAR E AGRADECER

Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos
tempos. [...] Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o eterno,
compreender o misterioso, descobrir o que somos.
(CAMPBELL)
162

Contar ou ouvir histórias deriva da energia de uma altíssima coluna de seres humanos
interligados através do tempo e do espaço, sofisticadamente trajados com farrapos,
mantos ou com a nudez da sua época, e repletos a ponto de transbordarem de vida
ainda sendo vivida. Se existe uma única fonte das histórias e um espírito das histórias,
ela está nessa longa corrente de seres humanos. (ESTÉS)

Aruwê, caçador tentehar, buscava na mata uma espera, onde


a caça fosse proveitosa. Encontrou uma faveira com muitas flores,
que pelas araras aí pousadas lhe pareceu um bom local. Construiu
uma tocaia sobre um dos galhos e foi tão feliz que nesse primeiro
dia matou muitas araras. Entretanto, ainda não descera da árvore
quando percebeu a aproximação de onças. Escondido, observou que
elas vinham a essa árvore colher mel. Com cabaças dependuradas
ao pescoço para juntar o mel, elas espremiam a flor para juntar o
mel, pois tinham mão de gente. Somente após as onças se retirarem
é que Aruwê desceu da árvore e voltou maloca. No dia seguinte,
retornando à faveira, Aruwê matou outras araras, porém, como na
véspera, cuidou para que as onças não o percebessem.
Entusiasmado com o sucesso de Aruwê, seu irmão pediu-lhe
o deixasse usar a tocaia, pois queria fazer um grande akangatára
(cocar) com penas vermelhas de arara. Aruwê consentiu e
aconselhou ao irmão que esperasse pelas onças e ficasse quieto,
retirando-se após elas abandonarem o local. O irmão, porém, após
matar muitas araras, viu que as onças chegavam e decidiu enfrentá-
las. Flechou primeira sem resultado. Disparou novas flechas sem
que ferisse qualquer uma das onças. Uma delas trepou na árvore e
matou o rapaz.
Aruwê esperou um dia e uma noite pelo irmão. Como ele não
voltou, teve a certeza de que as onças o haviam matado. Foi até a
faveira, onde construíra o esconderijo, e aí descobriu sinais de luta;
a tocaia esbandalhada e muito sangue nos galhos e na terra.
Seguindo o rastro de sangue, andou muito até chegar a um
formigueiro, onde os rastros desapareciam. Aruwê voltou para a
maloca. Ele era pajé e preparou um cigarrão com fumo e tawari para
puxar karowára. Voltou novamente ao local, onde os rastros
desapareciam e, transformando-se em uma formiga, penetrou no
163

buraco46 grande túnel que se alargava cada vez mais. Ali havia
muitas casas, muita gente, tal como numa grande aldeia. Era a
Maloca das Onças (zawarehú nekwaháo). Aruwê tomou forma de
gente e começou a procurar o irmão. Encontrou uma cunhã que dele
se agradou e o convidou para morar com ela e seus parentes. Estes
gostaram muito do rapaz. O pai da cunhã fora o matador do irmão
de Aruwê.
O Tenetehara observou que, durante dias seguidos, as onças
deixavam a maloca, para voltar à tarde com cabaças cheias de mel,
que eram penduradas nos esteios de uma casa. A noite entoavam
canções muito bonitas junto à casa onde era guardado o mel. Aruwê
maravilhou-se com essas canções. Quando já havia um bom número
de cabaças cheias de mel, as onças se reuniram para uma grande
festa — A Festa do Mel. Chegaram cantadores pintados de urucu e
jenipapo, enfeitados com penas de arara e gavião. Dançavam e
cantavam, bebendo mel misturado com água. As canções tinham
início ao amanhecer e cessavam com o pôr-do-sol, quando todos se
retiravam para suas casas a fim de descansar, reiniciando a festa
no dia imediato. A festa só terminou ao acabar o mel. Aruwê
aprendeu as canções e todo o cerimonial conhecido pelos
Tenetehara.
Com muitas saudades do filho e da mulher que deixara na
maloca tenetehara, o caçador pediu às onças que o deixassem
partir. Sua mulher-onça o guiaria de volta à maloca das onças.
Acompanhado da mulher, saiu pelo mesmo buraco de formigas por
onde entrara. Dirigiram-se para a aldeia e, ao aproximar-se, Aruwê
recomendou à mulher-onça que o esperasse nas imediações. A
esposa Tenetehara o recebeu com muita festa e foi preparar-lhe um
mingau de mandiocaba. Demorou muito, e Aruwê, ao voltar para
procurar a mulher-onça não mais a encontrou. Cansada de esperar,
ela voltara para a maloca, tomando o cuidado de tapar o buraco do
formigueiro para que o Tenetehara não mais a encontrasse. Após
procurar em vão pela maloca das onças, Aruwê voltou a viver com
os seus, ensinando aos companheiros tenetehara as canções que
aprendera com as onças. Desde então, os Tenetehara passaram a

46
Esse buraco de formiga é conhecido por orelha de tatu ou tatu nami, nos explicou o
cantor Zé Maria Guajajara (2018).
164

celebrar a festa do mel, a dos rapazes, a da menina-moça, a do


milho, a da mandiocaba47... (texto adaptado de WAGLEY; GALVÃO,
1961, p. 148)

A narrativa acima trata da origem da festa do mel entre os tentehar,


o ritual mais importante e considerado o mais sagrado, pois envolve uma
série tabus cujo cumprimento é obrigatório sob pena da aldeia cair em
desgraça caso infrinja as regras conhecidas por todos.
O encontro com o mundo dos homens-onças promoveu uma relação
profícua e duradoura de conhecimentos para os tentehar, pois acresceu ao
seu universo cultural todos os rituais já praticados até então, como a festa
da menina-moça, dos rapazes, da mandiocaba e do milho, solidificando um
vasto rol de práticas espirituais-materiais-científicas entre esse povo. Em
seu Mitológicas 2: do mel às cinzas, Lévi-Strauss48 (2004) reconhece entre
os tentehar a passagem definitiva da natureza à cultura na narrativa da
festa do mel. A relação foi tão acertada que o

[...] o herói se deixa convencer facilmente de que o jaguar,


assassino de seu irmão, encontrava-se numa situação de
legítima defesa ou ainda se deixa cativar pelos cantos e
danças da festa do mel, a ponto de esquecer o motivo de sua
visita aos jaguares, que era encontrar seu irmão ou vingá-lo.
(LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 35).

Como dissemos anteriormente, os tentehar são reconhecidos na


literatura a seu respeito como povo muito inteligente e astuto nas suas
relações e costumam reverter ao seu favor situações aparentemente
desvantajosas (SÁ, 2014).
Antes das comemorações da festa do mel os tentehar era apenas um
povo eminentemente caçador-coletor, com grandes guerreiros-caçadores.

47
A narrativa foi colhida por Wagley e Galvão (1961) e adaptada por mim com acréscimo
de informações do cantor Antonio Gomes Guajajara relatadas a este cantor pelo tàmui
Vicente Guajajara (SÁ, 2014, p. 99-100).

O autor estudou diferentes variações da narrativa entre os povos originários sul-


48

americanos e norte-americanos e as intitulou de “o desaninhador de pássaros”.


165

Após a festa do mel enriqueceram a prática espiritual da pajelança. O


hidromel, mel diluído em água, alimento sagrado, é servido durante o todo
o ritual. A bebida fortalece a imunidade de “quem participa da festa desde
criança [e que] dificilmente contrai doenças”. Entre os yanomami o mel
selvagem é o alimento preferido dos espíritos, por isso é uma bebida de
preferência usada na iniciação xamânica para satisfação dos xapiri
(espíritos) “bebedores de néctar das flores [...]”. Os yanomami, por
exemplo, consomem mais de 40 tipos de mel selvagem (SANTOS e
SANTOS, 2017, p. 22; KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 617).
Também junto com a pajelança acresceram uma outra função
especializada, a de cantores. Desde então os cantores dos rituais e os pajés
cantores estão entre os mais importantes guardiões da memória ancestral
tentehar, pois o canto expressa todo o ideário cosmológico desse povo
(UBBIALI, 2005).

Guardiões da memória ancestral

Aruwê foi o primeiro cantor tentehar. Convivendo com os homens-


onças o herói aprendeu a narrar e cantar histórias para ensinar
conhecimentos, saberes e práticas ancestrais. Até hoje, cantores e cantoras
carregam consigo, arquivados na memória, um repertório musical
explicando a origem de cada ritual. O conteúdo do acervo mnemônico
expressa o conhecimento desse povo sobre diferentes espécies vegetais,
animais, paisagens, práticas de agricultura e manejo do ecossistema do seu
território. Assim, encontramos uma valorosa memória biocultural nos
cantos tentehar.
Enquanto condutores dos rituais, os cantores da tradição guardam na
memória a narrativa, a letra da música, os sons, as encenações do ritual.
De acordo com o cantor da tradição Toinho Guajajara, para cada narrativa
mítica há um canto, ou seja, uma história é sempre cantada ao final. Há
um arquivo histórico dos tentehar registrado não em livros, mas em
mentes.
166

Nas culturas que tem por base a oralidade a repetição é fundamental


para a construção de uma memória ao mesmo tempo individual e coletiva.
A capacidade de recordar é fundamental para a espécie humana. Somos a
única espécie capaz de remontar recordações das relações estabelecidas
com a natureza, nossa base de sustentação e referencial de existência ao
longo da história (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015).
Na festa do mel só poderá beber do mel quem inventar na hora um
cântico e cantá-lo para um dos pássaros ou animais cantados no ritual.
Devido a sua sacralidade, os cantos da festa do mel só são entoados no
momento do ritual. A narrativa data do tempo em que os animais se
comunicavam com os homens e participavam da festa: a anta, o jabuti, o
quati, o macaco cuxiu, o mutum, o jacamim, a lontra, o porcão, o caititu, a
curica, a abelha tiúba, a onça etc., me explicou Toinho Guajajara.
Ao cantar o cenário cíclico da vida natural esse povo compartilha suas
experiências a cada nova geração, o conhecimento se aperfeiçoa a partir de
três fontes de informação: o que lhe disseram (experiência histórica
acumulada); o que lhe dizem (experiência social compartilhada) e o que
uma pessoa observa por si mesma (experiência individual). Com a
transmissão de narrativas orais “[...] cada indivíduo vai formando uma
memória num processo que conhecemos como educação” (MUNDURUKU,
2012, p. 71; TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015).
A criatividade, a inventividade e a inovação são incentivadas nesse
método de aprendizagem ancestral, pois os cantores podem compor novos
cânticos e/ou modificá-los se desejarem. No vasto repertório, os cantos
sagrados são inalteráveis pois vieram dos encantados. Dessa forma, a
educação indígena fortalece a memória coletiva e atualiza o presente sem
se desconectar das suas raízes. Uma pedagogia da ancestralidade é
concreta nas várias narrativas e se fortalece em seus rituais.
O pensamento analógico é usado para apreensão de inúmeros
conteúdos na memória. É comum, por exemplo, associarem as
características da pessoa com a do animal para o qual o canto será criado.
A uma pessoa comilona, por exemplo, pode ser atribuído o canto da anta,
167

“e cantar as frutas que a anta se alimenta, como o cajá, inajá, tatajuba,


tucum, maçaranduba”, ao criar um canto na festa do mel, explicou Antonio
Gomes Guajajara.
Uma boa memória, voz e saber ouvir constituem atributos
indispensáveis para cantar um ritual, relatou o cantor Antonio Guajajara:
“Tem que ter memória boa. E ter voz também. São vários cânticos. [...]
quando os velhos tão cantando, [...] o aluno acompanha, espera eles
cantar. Eu aprendi assim: só quando eles falavam agora é sua vez, eu
continuava os cânticos” (SÁ, 2014, p. 112).
A responsabilidade em cantar um ritual é dividida entre cantores e
cantoras. Os homens iniciam o cântico chocalhando o maracá com sua voz
grave. As mulheres pulam cantando em frente aos cantores, sua
participação se destaca com a emissão do som agudo de alta frequência, o
refrão hahehehe, hahehehe, hahehehe. Daí por diante, os dois sons são
simultâneos, a alta vibração emitida pelas vozes femininas deixa as vozes
masculinas por vezes inaudível, e se dissemina por todo ambiente uma
energia de poder indescritível.
Durante os refrões é comum cantores e cantoras travarem diálogos
cantados. Em uma espécie de embate oral, ambos enaltecem qualidades do
animal cantado, conforme o seu gênero, lambu macho e lambu fêmea, por
exemplo. A disputa oral pode se alongar, vai depender da criatividade e
interesse demostrado por cada um. No diálogo um clima de atração pode
surgir entre os cantores. Atenta, a esposa do cantor pode até sentir ciúmes
do seu marido, ressaltou o cantor Toinho Guajajara.
Nos cânticos as estrofes e refrões se repetem sucessivas vezes até o
mestre de cantoria decidir encerrá-lo, como visto em um dos cânticos da
festa da menina-moça abaixo:

Umuáruwàm katu tuwe karuk winu wi


Umuáruwàm katu tuwe karuk winu wi
He wyrazu wyra hehehe
168

hahehe
hahehe
hahehe

Umuáruwàm katu tuwe karuk winu wi


Umuáruwàm katu tuwe karuk winu wi
He wyrazu wyra hehehe
hahehe
hahehe
hahehe

Umuáruwàm katu tuwe karuk winu wi


Umuáruwàm katu tuwe karuk winu wi
He wyrazu wyra hehehe

Num caso hipotético de um cantor ou cantora participar apenas de


cinco rituais da menina-moça em um ano, e considerando na menor das
hipóteses cantarem apenas 50 músicas em cada ritual, repetir as três
estrofes ou os três refrões de cada canto por 12 vezes consecutivas, eles
repetem 36 vezes por música cantada e 180 vezes nos cincos rituais do ano
o mesmo refrão. Por isso, considerei os cantores tentehar verdadeiros
“homens memória", pois são mais de 100 cantos para cada ritual (SÁ,
2014).
As cantoras, com sua potência vocal, animam o ritual. Aquelas não
evangélicas mantêm a tradição de pular com bebidas embriagantes levada
consigo em uma tipoia, com um cigarrão à boca, quase sempre
compartilhados com as outras. É necessário resistência física e espiritual
para pular cantando por doze horas seguidas emitindo uma energia
vibracional em favor da vida cósmica. Algumas trazem um facão a mão
“[...] a fim de cortar os maus espíritos [...] durante o ritual. Outras pulam
balançando o maracá como fazem todos os cantores. O maracá simboliza a
169

voz dos espíritos ou encantados, por isso é considerado um instrumento


sagrado (ZANNONI, 1999; SÁ, 2014).
A iniciação dos rapazes para pegar o maracá acontece na sua festa,
os iniciados ou as pessoas autorizadas pelo mestre podem usar o
instrumento nos rituais. Depois desta celebração o rapaz poderá assumir
responsabilidades, se tornar uma liderança, guerreiro, cantor, pajé e casar.
A narrativa “O Tentehar e a filha do Gavião” (Tentehar Wiraru Imemyr Kury)
traz a memória da preparação dos rapazes, ressalta a importância do saber
cantar aprendido na festa do mel para esta tradição, entre outras questões.

Um Tenetehara descobriu um ninho de gavião e


convidou o irmão casado para irem roubar o filhote.
Construíram um muitakwára (andaime) para poder subir na
árvore. O rapaz propôs que o irmão casado subisse em
primeiro lugar e ficou esperando em baixo com a cunhada.
Enquanto o outro subia, a mulher se ofereceu ao rapaz. O
marido percebeu. Desceu da árvore e disse ao irmão que
subisse na frente dele. Estava muito zangado mesmo. Ao
chegarem junto ao ninho do gavião, no topo da árvore, o
marido desceu, mas desta vez cortando os cipós que
prendiam o muitakwára. O irmão ficou preso no alto da
árvore.
O rapaz estava chorando, muito triste por ter sido
abandonado, quando chegou o gavião, trazendo nas garras
uma preguiça para dar de comer ao filhote. O gavião ouviu a
história do Tenetehara e ficou penalizado. Chamou a mulher
e ambos decidiram que o Tenetehara teria que criar e mais
tarde se casar com o gaviãozinho que era fêmea. No dia
seguinte trouxeram um guariba e ensinaram ao rapaz como
devia abrir a caça e alimentar o gaviãozinho. Faltava bico e
garras ao Tenetehara e ele não pôde rasgar os guaribas. Os
gaviões começaram a bater as asas em redor do Tenetehara
e o transformaram num gavião igual a eles. Ele foi caçar e deu
de comer à sua jovem companheira. Quando ela cresceu, os
170

dois se casaram. Os dois voaram para sua aldeia, lá no céu,


deixando o jovem casal.
Um dia o Tenetehara estava voando com a Mulher-
Gavião avistou sua antiga maloca. Decidiu matar o irmão que
o abandonara no topo da árvore. Transformou-se num
gaviãozinho e pousou pau junto à casa do irmão. A mulher
deste, ao avistar o gaviãozinho chamou o marido para flechá-
lo. Apesar da excelente pontaria porque era conhecido, o
marido errou o alvo. Retornando à sua forma primitiva, o
gavião levantou vôo e carregou o irmão nas garras, levando-
o para os seus cunhados-gaviões que o reduziram a pedaços
e os ossos sobre a maloca.
Os pais tenetehara ficaram muito tristes por ter perdido
os filhos. O Tenetehara-gavião voltou à maloca, tomou forma
de gente e apresentou-se a eles, e mandou que chamassem
todos os moradores da aldeia para o acompanharem até um
lugar de que só ele sabia.
De manhãzinha ele começou a cantar e insistiu em que
todos o acompanhassem nas cantigas. Somente os pais o
fizeram. Ao pôr do sol a casa ergueu-se do chão, levando-os
em direção à aldeia dos gaviões, lá no céu. A maloca foi
inundada por uma enchente e os Tenetehara que se tinham
recusado a cantar foram transformados em passarinhos para
serem caçados pelos gaviões. (WAGLEY; GALVÃO, 1955, p.
151)

E todos os dias eles cantam:


wyrawaxo azo uhapukaz terez nuàm
uwyrawaxo azo uhapukaz terez nuàm ahe
hehehe (2x)
uhapukaz terez nà, uhapukaz terez nà ahe
hehehe (3x) (DUARTE et. al., 2018, p. 26)

A narrativa acima é mais uma das que ouvi na aldeia Juçaral. Em um


certo final de tarde do ano 2014 o professor Pedro Carlos Guajajara, ao
171

contá-la para mim, se emocionou. Ao final as lágrimas escorriam dos seus


olhos. Ao relembrar a história ele disse ter sentido o sofrimento e a solidão
vivida por seu ancestral abandonado em cima da árvore pelo próprio irmão.
Dessa forma, é importante identificar a existência de uma memória afetiva
entre os tentehar ao reviver todas essas histórias ancestrais.
A vida testa constantemente esse povo. Reza a história terem sido
Maíra-yr e Mykura-yr novamente postos à prova em uma festa do mel. Eram
ainda garotinhos quando chegaram a esta celebração. Os tâmui pediram
para eles cantarem, não suspeitavam se tratar dos sábios irmãos Maíra. Na
ocasião, o irmão mais velho começou a cantar, relembrando o episódio em
que o pássaro Jacu lhes contou da morte da mãe e que estavam vivendo
com os parentes daqueles que lhes tiraram a vida.
Como é prática para beber o mel na festa as pessoas recebem
safanões nas orelhas, cabelos e corpo, com os pequenos irmãos Maíra não
aconteceu nada. Resistentes, saíram ilesos. Os anciãos à época deduziram
tratar-se dos poderosos irmãos tentehar. Depois da festa, os irmãos Maíra
armaram uma rede em cima de uma árvore e dormiram ali. Antes de ir
embora entoaram um cântico de despedida. O mestre Chicão, já falecido,
sabia cantá-lo. Já Toinho, seu neto, disse não lembrar mais do canto.
O sentimento de abandono vivido pelos irmãos Maíra e Mykura se
repete na narrativa do rapaz. Nas duas narrativas os tentehar conseguem
vencer seus medos, se mantêm resistentes e intrépidos em superar
dificuldades e dilemas existenciais. O choro incontrolável ao final de cada
ritual parece se constituir numa efusão de sentimentos e emoções
contraditórios evocados dessa psique arquetípica. Aliás, todas essas
recordações contam uma “única história, a dos sábios Maíras, ou seja, dos
próprios tentehar, um povo criador”, ressaltou o cantor Toinho Guajajara.
De fato, segundo Lévi-Strauss (2004; 2011), a narrativa do Tentehar
e a Filha do Gavião é apenas mais uma variação da história da festa do mel.
Este autor nomeou de “o desaninhador de pássaros” todas as variações de
uma sinfonia de mitos aparentados estudados por ele no Brasil Central e
172

Meridional, e também encontrados entre os povos Salish e os Nez-Percé,


situados entre os rios Klamath e Fraser na América do Norte.
Os tentehar agregaram no seu universo cultural duas variações da
narrativa do desaninhador de pássaros, uma mais comumente encontrada
entre os povos originários sul-americanos (a da festa do mel) e a outra mais
próxima da versão norte-americana (o Tentehar e a filha do Gavião). As
semelhanças entre o modo de vida dos Salish e dos Tentehar, além de
algumas invariâncias nas duas narrativas, nos faz pensar não só na provável
relação de parentesco entre ambos, mas sobretudo no poder da oralidade
para transmitir conhecimentos, cujo método de aprendizagem consiste em
contar e cantar histórias de vida repetidas vezes em um mesmo ritual para
não serem esquecidas.
O gavião é o dono da festa dos rapazes. A mudança de voz indica
que o menino poderá participar da sua celebração de passagem. Na mata
os gaviões são excelentes caçadores, dotados de uma voz pujante,
habilidades muito valorizadas nessa cultura. No dia da festa os rapazes são
pintados com urucum e jenipapo e, formando uma camisa, as penugens de
gavião adornam seu peito e as cabeças. A decoração é completada quando
vestem tornozeleiras, braceletes e capacetes de penas.
Entre os yanomami o gavião é reverenciado por motivos semelhantes.
De acordo com Davi Kopenawa, os grandes homens, que têm no peito a
imagem do gavião kãokãoma sabem proferir exortações longas e potentes
dos discursos hereamuru que acontecem no reahu, seu principal ritual. Por
isso ele pediu para seu sogro, um grande xamã yanomami, lhe enviar o
espírito do gavião (KOPENAWA; ALBERT, 2015).

Do mundo dos encantados: a sabedoria da cura e pajelança

No mundo cultural dos Yanomami todos os animais possuem uma


imagem utupë. Essas imagens os xamãs chamam e fazem descer após
173

beber yãkoana49. São elas que, ao se tornarem xapiri (espíritos), executam


seus cantos e danças de apresentação para os xamãs. Sobre a cantoria de
todos os xapiri da floresta Kopenawa e Albert (2015, p. 114) afirmam: “[...]
dessas bocas inumeráveis saem sem parar cantos belíssimos, tão
numerosos quanto as estrelas no peito céu”.
O líder indígena yanomami Davi Kopenawa, conhecido
internacionalmente por denunciar o extermínio da floresta e do seu povo50
no seu território, é também um grande xamã. Na sua autobiografia, ao
narrar suas experiências de aprendiz xamânico, disse Kopenawa que a
iniciação ocorre durante o tempo do sonho. Os xapiri costumam aparecer
aos rapazes que passam boa parte do tempo caçando na floresta, como
explica:

[...] os rapazes começam perdendo a consciência de tanto


perseguir caça na floresta. Sentem-se muitos fracos e vão se
tornando fantasma [...]os animais de que se aproximam
olham bem para eles e começam a rir, como humanos [...] as
árvores falam com eles e as folhas tocam neles com a mão.
Então, as mulheres das águas, aproveitando-se de sua
fraqueza, chamam-nos e levam suas imagens até sua casa.
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 102).

O chamado de um espírito da floresta ocorre por meio da atividade


onírica, aspecto comum encontrado em etnografias da Amazônia indígena,
a exemplo dos povos Araweté, Yawalapití, Bororo, Yanomami (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002; LÉVI-STRAUSS, 1996; KOPENAWA; ALBERT, 2015). De
acordo Krenak (2019, p. 53), entre diferentes povos o sonho está
relacionado com a formação, é tido como “... um caminho de aprendizado,
de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na
sua interação com mundo e com as outras pessoas”.

49
Virola elongata, ucuuba-vermelha; árvore cuja resina é fabricada o pó alucinógeno
yãkoana usada no xamanismo Yanomami. (KOPENAWA; ALBERT, 2015).
50
Na visão de Kopenawa não existe distinção entre seu povo e a floresta, eles formam
com os outros seres a floresta.
174

Entre os tentehar o pajé também recebe o chamado dos encantados


por meio do sonho, é um ser escolhido por estes seres para curar. Em uma
entrevista com o pajé tentehar Paraipé, da Aldeia Januária, área indígena
Pindaré, este falou sobre sua experiência inicial com a pajelança: “[...]
sonhei com a mãe d’água. É peixe...Falou que estava querendo gostar de
mim, pelo sonho. [...] Mãe d’água é cobra, tu vês cobra d’água, a sucuri,
mas ela não é cobra, aquilo ali é gente” (UBBIALI, 2005, p. 52).
Curiosamente, o canto proferido por mãe d’água relatado por
Kopenawa, he, he, he, he é idêntico ao refrão dos cânticos tentehar ha, he,
he. (KOPENAWA; ALBERT, 2015).
Em cosmologias indígenas é constante o relacionamento com
vegetais, animais, minerais, entendidos não apenas enquanto seres
biológicos e mortais ou acidentes geográficos, mas espíritos dotados de
poderes e vontades, de modo que “[...] a árvore é tratada como gente, o
ser humano vira bicho ou casa com bicho, e o sobrenatural vira natural”
(UBBIALI, 2005, p. 46). Determinados vegetais, como o tauari (petymirer),
a ayahuasca51, a cannabis sativa, e o pó de yãkoana são psicodélicos.
Quando ingeridos, fumados ou cheirados levam as pessoas a provar de
diferentes espaços sensoriais, expandir a consciência. De modo que
diferentes grupos humanos, quando querem aprender alguma coisa,
consultam fungos, cipós, raízes, cascas ou folhas enquanto fonte de
conhecimento para a vida prática (ALBUQUERQUE, 2011).
Em diferentes culturas indígenas a ciência da pajelança é exercida por
homens e mulheres que usam práticas de curas sem separar as dimensões
física, psíquica e espiritual, portanto, é uma prática ancestral de caráter
complexo. Também conhecidos como os médicos do mato, os pajés
tentehar usam plantas e substâncias como: a cera de almesca; o tabaco
associado ao tauari; o tanarístico, um pó feito a partir de uma substância

51
“[...] é uma beberagem de origem indígena amazônica, preparada a partir de três
elementos naturais: O cipó (Banisteriopsis caapi, a folha (Psycotria viridis) e água”.
(ALBUQUERQUE, 2011, p. 130).
175

extraída do sapo ou rã; folhas de cedro. O alvo de suas curas são doenças
tais como: o quebranto, fraqueza ou moleza no corpo, sol na cabeça e
sobretudo o karowara (feitiço). (MARANHÃO, 2010b; ZANONNI, 1999).
Na narrativa da festa do mel o irmão imprudente, impulsivo, quis
caçar mais do que o permitido. Após tentar matar homens-onças recebeu
como recompensa a morte. Desde então, os tentehar vivem guiados pela
consciência de uma ordem natural do universo, como seres
interdependentes, e caçar, plantar, colher mais do que o necessário é pôr
em risco a existência de todos. Por isso, criaram suas próprias regras
culturais. Não as cumprir implica conviver com a doença e/ou a morte, pois
o espírito entra no corpo da pessoa e se manifesta como doença. De modo
que o desequilíbrio provocado pelo tentehar é controlado por ação de
espíritos animais, donos de minerais e vegetais e os azang. Nesse caso, só
um pajé pode devolver o equilíbrio ao sistema, intervindo juntos aos
espíritos em prol do doente.
Durante todo o ritual a menina-moça segura na sua mão direita um
cigarro enrolado na entrecasca de tauari para sua proteção espiritual e para
ter bons reflexos. O tawari52 é uma árvore sagrada usada de forma geral
para a conexão com o mundo espiritual, a sua entrecasca, combinada com
o tabaco, forma um cigarro usado pelo pajé para curar, e o incenso é usado
para sarar dores de cabeça. Já seu fruto serve de isca para caçar diferentes
espécies animais.
Na sessão de pajelança o pajé canta e dança balançando o maracá,
defuma o ambiente com fumaça do seu cigarro, faz massagens e sucções a
fim de extrair e vomitar o ymaé, objeto que o espírito fez entrar no corpo
do doente. Zapu’y, por exemplo, quando foi acometido de feitiço por inveja,
adoeceu e quase morreu. A cura aconteceu numa sessão com dois pajés

52
São árvores de grande porte incluindo as espécies Couratari stellata e Cariniana
micranta, dentre as Lecythidaceae estão entre as mais altas alcançando até 60 m de altura,
reconhecidas pelas folhas simples e alternas, casca fibrosa e fissurada, com madeira de
cores vermelha a rosada em Cariniana e branca a amarelada em Allantoma e Couratari
(PROCOPIO et al., 2010).
176

durante a noite. No final da sessão ele viu duas baratas, e após sacudi-las
da sua camisa, elas sumiram como um encantado (SÁ, 2014; ZANNONI,
1999; WAGLEY; GALVÃO, 1961).
No imaginário tentehar o pajé é o ser misterioso capaz de acessar um
mundo inacessível às pessoas comuns. Também, representa a contradição
e o conflito existencial de viver entre o bem e o mal, entre a vida e a morte,
a ordem e a desordem, o equilíbrio e o desiquilíbrio. Ele é necessário, pois
cura, porém é perigoso, pode enfeitiçar e matar, por isso é temido. Por
vezes, eliminá-lo foi a alternativa usada pela sociedade para ter de volta o
controle da situação, reequilibrar novamente o sistema, em função de
mortes ocorridas e atribuídas ao pajé. (ZANNONI, 1999; UBBIALI, 2005).
Antes de iniciar o processo de cura o pajé realiza um inquérito para
identificar na fala do seu paciente a origem do mal. As dores de estômago
ou barriga que provoquem diarreia e vômitos podem ser atribuídas ao dono
da noite, tumuzu’hu. O pitwora, dono das fruteiras pode provocar desmaios.
Na cosmologia tentehar o piwára (espírito animal) do gavião, onça,
anta e sapo-cururu estão entre os mais poderosos e temidos, pois são
capazes de provocar a morte rápida de um caçador. Só os grandes pajés
conseguem controlar a doença desencadeada por ação de um desses
piwára. Afinal, para poder curar e cantar é preciso conhecer tudo a respeito
dos espíritos, da natureza e dos rituais (UBBIALI, 2005; ZANNONI, 1999;
WAGLEY; GALVÃO, 1961).

Esquecendo o canto, matando a natureza

Na pajelança tentehar, o poder de um pajé é mensurado pelo número


de encantados que consegue controlar. Entre os anos de 1941, 1942 e 1945
quando Wagley e Galvão estiveram entre os tentehar da região do Pindaré,
identificaram que: “poucos eram os pajés capazes de chamar o piwára do
gavião ou sapo-cururu”, e disseram já não existir pajés que controlassem o
piwára da onça e de miar’i’zar.
177

Ao perguntar sobre a prática da pajelança na região da Arariboia para


o mais velho cantor, o mestre Vicente Guajajara disse não acreditar mais
na existência de pajés, pois os atuais não sabem nem a metade do que os
grandes pajés de antes sabiam, afirmou o tàmui. Ele disse ter visto alguns
pajés incorporar o espírito do sapo-cururu, colocar brasa de fogo na língua,
cuspir e não sentir nada (SÁ, 2014; WAGLEY; GALVÃO, 1961).
Podemos correlacionar a expressão os atuais pajés não sabem nem a
metade a um processo de instauração de monoculturas mentais, associado
aos valores ocidentais cada dia mais presentes nas aldeias e intimamente
ligado a consumação das florestas, erosão de saberes e valores ancestrais.
Por volta do ano de 1955, em uma aldeia do Alto Pindaré

Certo dia alguns jovens tomaram a iniciativa de iniciar as


danças e canções da Festa do Milho. Camirang, o chefe da
aldeia demonstrou abertamente o seu desagrado, uma vez
iniciada a festa, [...] teriam de continuá-la [...] até o milho
amadurecer (cerca de dois meses). Se não prosseguissem
com a festa, sobrenaturais causariam ventos malignos que
destruiriam as colheitas e trariam doenças [...] Camirang
havia planejado utilizar esse tempo para a extração do óleo
de copaíba [...] (WAGLEY; GALVÃO, 1961, p. 106).

Embora a narrativa acima tenha acontecido em outra terra indígena,


podemos ver como os pajés tentehar passaram de atores principais a
coadjuvantes do processo, como a floresta passou inicialmente a ser
consumida. A festa do milho se tornou um tropeço à exploração do óleo de
copaíba, o tempo longo do ritual era incompatível com trabalho apressado
exigido na extração do óleo. Hoje, a festa do milho (awashire-wehuhau)
realizada antigamente para garantir uma boa colheita e proteger o milho
não é mais realizada entre os tentehar da Arariboia, e provavelmente nos
demais territórios também. A festa do milho era palco de demonstrações
de pajelança, uma espécie de escola para formação de novos pajés, mas
foi esquecida, e por isso não é mais celebrada, me explicou Toinho
Guajajara (WAGLEY; GALVÃO, 1961).
Hoje, os pajés tentehar não estão mais sós nas suas práticas de cura,
pois existem os médicos e os remédios de farmácia para curar. A Quando a
178

cura de uma doença não acontece por meio da ciência médica, os tentehar
abandonam o tratamento e recorrem ao remédio do mato e aos pajés. A
espiritualidade é devotada ao Deus cristão, Tupàn. O filme Ex-pajé (2018)
retrata situação semelhante vivida nessa TI. Um pajé Pater-Suruí é
transformado em ex-pajé após um pastor evangélico afirmar ser a
pajelança coisa do diabo. No desfecho da história o pajé tem seu lugar
restituído, e é levado ao hospital para curar uma moradora da aldeia que
se encontrava ali em coma há várias semanas.
O problema abordado no filme é bem comum em terras indígenas
maranhenses. Ao visitar os povos Gavião, Krikati e Kanela, vi que
missionários evangélicos estrangeiros residem com suas famílias há
bastante tempo nas principais aldeias. Um dos primeiros registros escritos
na língua tentehar, por exemplo, foram cartilhas e a bíblia (Tupàn Ze’Eg),
traduzidos por linguistas missionários do Summer Institute of Línguistics
(SIL) que viveram na Arariboia. Atualmente, muitos indígenas recebem
formação em missões. Convertidos, gravam CDs com músicas evangélicas.
Nos cultos semanais participam ativamente, cantam e dançam (SÁ, 2014).
Nas estratégias de convencimento à conversão ao credo cristão,
festas e práticas culturais indígenas são tidas como demoníacas. Em
algumas aldeias as pessoas já não se pintam, falam sua língua ou cantam
com o maracá, registrou Fred Matimu Guajajara. Para resistir à monocultura
da mente e o consequente esquecimento da sua ancestralidade na aldeia
Juçaral foi estabelecido um pacto interno: a religião de fora pode entrar,
mas ninguém pode impedir os tentehar de realizar seus rituais, pinturas
corporais e falar em sua língua. (SÁ, 2014).
Em uma atitude ousada, e consciente do poder dos pajés na tradição
ancestral Yanomami, Davi Kopenawa e o seu sogro, por exemplo, criaram
um centro de formação permanente de novos xamãs. A ação visa diminuir
os prejuízos ocasionados por grandes epidemias que dizimou parte de seu
povo e junto levou seus maiores xamãs. Na visão Yanomami a morte dos
xamãs representa também a morte da floresta, pois os xamãs cantam para
proteger e curar a floresta. Desse modo, todos nós sucumbiremos quando
179

“[...] os cantos dos xamãs deixarem de ser ouvidos na floresta”, revela o


sábio (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 491).
Diz Edgar Morin (2018, p. 101): “é preciso saber começar, e o começo
só pode ser desviante e marginal”. Na Arariboia curiosamente os cantores
tradicionais estão à frente de ações de proteção das áreas de floresta ainda
preservadas no território. O cantor tradicional Olímpio Guajajara é o atual
líder de um grupo de 48 agentes ambientais, conhecidos como guardiões
da floresta (Wazayzar). Com seu corpo e armas próprias, e desviando as
inoperantes leis do Estado, os guardiões da floresta tentam acabar ou
desacelerar a contínua invasão para retirada ilegal de madeira em áreas
preservadas, que ameaça a sobrevivência dos seus habitantes e provoca
erosões nos seus saberes e valores ancestrais, diminuindo as possibilidades
de uma vida digna para as próximas gerações.
O sentimento dos guardiões floresta é semelhante ao esboçado por
Gaúcho da Fronteira e Vainê Darde na música “herdeiro da pampa pobre”.
Em um trecho, dizem:

Que pampa é essa que eu recebo agora


Com a missão de cultivar raízes
Se dessa pampa que me fala a estória
Não me deixaram nem sequer matizes?
Passam as mãos da minha geração
Heranças feitas de fortunas rotas
Campos desertos que não geram pão
Onde a ganância anda de rédeas soltas
Se for preciso, eu volto a ser caudilho
Por essa pampa que ficou pra trás
Porque eu não quero deixar pro meu filho
A pampa pobre que herdei de meu pai....
180

Uma floresta saqueada pela ganância da ação garimpeira em busca


de metais preciosos em terras yanomami preocupa também Davi
Kopenawa. O que restará para as futuras gerações? Pois,

“[...] se eles não a protegerem, seus filhos não terão lugar


para viver felizes. Vão pensar que a seus pais de fato faltava
inteligência, já que terão deixado para eles uma terra, nua e
queimada, impregnada de fumaças, de epidemia e cortada
por rios de águas sujas! (KOPENAWA; ABLERT, 2015, p. 65).

Os povos indígenas resistem em deixar para seus descendentes


desertos ao invés de florestas. Uma pedagogia do cuidado com vida, da
união e da resistência ressurge nas vozes afetadas por meio dos guardiões
da floresta tentehar. Não queremos tecer um julgamento, mais o que tudo
indica, o seu canto, é novamente um canto de guerra pela vida, contra a
uniformidade, o esquecimento das suas memórias e modos de educar
ancestrais e a favor da diversidade biocultural. Afinal, toda transformação,
mudança de caminho, projeção de futuro, começa pelo hoje. Geralmente
sujeitos insatisfeitos, mobilizadores, começam no âmbito microscópico,
local, para depois expandir sua ação, explica Almeida (2017a). Hoje,
segundo me informaram os moradores da aldeia Juçaral a experiência dos
guardiões da floresta, iniciada na Arariboia, se espalhou para as demais
terras indígenas maranhenses e brasileiras.
Os guardiões lutam sobretudo contra o desmatamento crescente das
duas últimas décadas, iniciado por volta do ano de 1984, quando a indústria
madeireira se instalou nos arredores da TI. Atualmente, os constantes
incêndios vivenciados em épocas de estiagem, sempre maiores, são
atribuídos aos desmatamentos. Nas áreas mais degradadas, onde vivem a
parte das aldeias e famílias, se concentram os maiores focos de calor
segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). A cada
período de estiagem o fogo vai transformando em cinzas espécies vegetais,
animais, experiências ricas, modos ancestrais de educar e viver. (SANTOS;
SANTOS, 2017).
181

Hoje, memórias de morte, tristeza, desolação, vão sendo substituídas


por tradições da alegria, do celebrar a vida e dividir a fartura. Os frangos
de granja já substituem parte das fartas caçadas que alimentavam muitos
parentes no ritual da menina-moça; os alimentos orgânicos colhidos na
floresta ou plantados nas roças são substituídos pelos industrializados da
cidade. As monoculturas vão provocando uma dupla perda: são fonte tanto
de escassez e pobreza, por destruir a diversidade, quanto por destruir o
controle e a autonomia das pessoas na produção da sua existência (SHIVA,
2003).
Devido ao empobrecimento da biodiversidade já é difícil colher mel
em quantidade o suficiente para realizar a festa do mel. Quando decidem
fazer o ritual, os moradores colhem o mel encontrado em colmeias presas
nas árvores. No período de seis a oito meses, o mel colhido por todos é
armazenado em garrafas, solidariamente amarradas na cumeeira de uma
casa aberta a vista dos moradores. Desde então, até data marcada para a
festa acontecer, todas as noites acontecem cantorias. O ritual deve ser
celebrado por dois anos consecutivos. Infringir tal regra corresponde a viver
tempos difíceis para todos da aldeia.
Conscientes do problema que os afetam os guardiões da floresta de
maneira autônoma e independente se transformaram em escudos humanos
para enfrentar a morte da floresta. Paulo Paulino Guajajara engrossa a lista
dos muitos guerreiros indígenas que tombaram nesta e noutras terras
indígenas. Assassinado no dia 01 de novembro 2019 em um posto de
batalha, em depoimento gravado pela Ong Survival anterior a sua morte,
ele falou emocionado:

[...] Eu não tenho medo! Deixa, eu lutar, [...] porque eu tenho


um filho. Ele vai precisar da floresta, se não cuidarmos da
nossa terra, vai acabar. [...] O que faremos sem a nossa
floresta e as nossas caças? Nós todos do território temos que
se unir para expulsar os madeireiros. Vamos juntar todos para
que acabe essa invasão. Quando acabar tudo isso, nós todos
seremos felizes. (SURVIVAL, 2020).
182

A possibilidade de salvar e cantar a floresta foi interrompida para


Paulo Paulino Guajajara. Ele pertencia a uma família de cantores
tradicionais, um aspirante a cantor já acompanhava o pai em cantorias para
aprender os cantos do ritual da menina-moça. Atualmente, poucos são os
jovens interessados em aprender a cantar, e o mestre de cantorias só
ensina a quem demonstra interesse em aprender, relatou Toinho Guajajara.
Em toda TI Arariboia há poucos cantores e a maioria vive nas aldeias
Juçaral, Lagoa Quieta e Mucura (SÁ, 2014).
A diminuição de cantores é também uma preocupação dos velhos,
expressa no relato da anciã Deusdete Santos Kapi Guajajara:

Agora no futuro não sei o que vai acontecer, se os jovens vão


da continuidade esse ritual. Não tem mais cantor! isso está
quase desaparecendo. Quem ainda sabe um pouco só meu
genro, o Zé Maria, o tio dele. Também o Davi, irmão dele. São
eles os atuais cantores, são netos do tàmui, tio Chicão.

Menos cantores, menos pajés, menos biodiversidade, representa


menos sábios ou guardiões do conhecimento ancestral, das tradições, da
sua educação ancestral. Com a morte da floresta, dos seus mitos, os mais
novos poderão não degustar de experiências, histórias e memórias tão
antigas, como hoje ocorre entre nós ocidentais. Não temos mais a
lembrança que nós somos apenas mais uma espécie e não o centro do
mundo, perdemos a nossa consciência de espécie. Enquanto os povos
indígenas com seus acordos alimentares, regras e rituais se reconhecem
apenas “[...] como uma forma particular de vida, que participa de uma
comunidade mais ampla de seres vivos [...]” (TOLEDO; BARERRA-
BASSOLS, 2015, p. 72).
Para as novas gerações a perda da diversidade significa a extinção da
experiência biológica e cultural, implica a erosão do ato de descobrir e a
redução da criatividade” (ALMEIDA, 2017a; TOLEDO; BARRERA-BASSOLS,
2015, p. 236);
Na realidade, o que nós ocidentais temos hoje é um mundo
desmitologizado, desritualizado, a nossa espiritualidade está ressequida, os
183

rituais são para cumprir apenas formalidades. Não temos ethos porque não
aprendemos com as sabedorias de vida expressa nos mitos. “O que estamos
aprendendo em nossas escolas não é sabedoria de vida. Estamos
aprendendo apenas sobre tecnologias, acumulando informações”
(CAMPBELL, 1990, p. 22). Perdemos em sabedoria, nos esquecemos da
nossa memória histórica de médio e longo prazos, pois só recordamos de
processos históricos imediatos (ALMEIDA, 2018; MORIN, 2018; TOLEDO;
BARRERA-BASSOLS, 2015).
Irmanados em uma pedagogia da resistência e do cuidado com a vida
a maioria dos tentehar decidiu coletivamente continuar a luta por
salvaguardar a sociobiodiversidade existente no seu território. No Plano de
Gestão Territorial e Ambiental da Arariboia a Comissão dos Caciques e de
Lideranças Indígenas da terra indígena Arariboia (CCOCALITIA) reconhece
a força de seu modo de vida ancestral. Sem negar o apoio logístico e
tecnológico de várias instituições e órgãos governamentais parceiros, os
tentehar das várias regiões desse território, por meio deste documento,
optaram por viver a partir dos seus conhecimentos e saberes. Portanto,
continuam contrários à uniformidade imposta pelo pensamento moderno
industrial como único fundamento para existência.
Mesmo depois de cinco séculos de sucessivas tentativas para fazê-los
esquecer suas memórias, seus valores ancestrais, os povos indígenas
resistem. Experiências e pedagogias do bem viver indígena continuam
presentes nos seus quintais, nas suas celebrações rituais, nas suas práticas
de curas, nos seus sonhos, nos seus lugares de morada. Onde quer que
vivam, seja em pequenas aldeias, agrupamentos, vilas, povoados, a
margem de rodovias, e/ou em cidades, aldeias urbanas, agrupados ou não,
não esquecem de se pintar, enfeitar o corpo e o espírito para cantar um
modo de vida que não esqueceu o valor da mãe-terra.
184

Fotografia 50. Maracá e cocar

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).


185

Fotografia 51. Bancos e esteiras dos rapazes tentehar

Fonte: Acervo da autora (2014).

Fotografia 52. Festa dos rapazes

Fonte: Acervo da autora (2014).


186

Fotografia 53. O choro e o abraço ao final do ritual

Fonte: Acervo da autora (2014).

Fotografia 54. Mestre de cantorias Zé Maria Guajajara

Fonte: Projeto rituais tentear (2018).


187

PARTE V – CELEBRANDO OS SABERES INDÍGENAS

Vivemos um tempo histórico difícil, presenciamos a degradação da


humanidade, atravessamos uma crise ecológica e atualmente um vírus
invisível retira em pouco tempo a nossa autonomia para respirar. Urge
reencontrarmos nossa essência, alimentar a espiritualidade, acessar o
sublime.
Para finalizar nossa conversa sobre pedagogias da tradição indígena
Tentehar proponho uma ecologia das ideias a partir de algumas reflexões
dos sábios Daniel Munduruku, Ailton Krenak e Davi Kopenawa. Além desse
diálogo faço uma ode às mulheres Tentehar a partir do seu trabalho de
artesãs. Alguns valores identificados nas pedagogias do povo Tentehar,
como a partilha, o sentimento de parentesco com outros seres, o trabalho
188

para o sustento necessário, também reverberam em outras culturas


indígenas. Ao fazer ecoar o som da diversidade de pensamento talvez
possamos colaborar para “desentortar o pensamento”, expressão de Daniel
Munduruku (2019a). Ou ainda compartilhar a mensagem de outros mundos
possíveis.
São 305 povos indígenas brasileiros, falantes de 274 línguas, e
aproximadamente 300 milhões de indígenas mundo a fora. Além de abrigar
a maior sociobiodiversidade existente, os indígenas podem ser considerados
os últimos socialistas, argumenta Daniel Munduruku (2019b) no artigo “Os
últimos socialistas ou por que perseguir os povos indígenas?”. Tais povos
constituem a última fronteira jamais vencida pelo liberalismo econômico, o
derradeiro muro de contenção, resistindo além do tempo, o que explicaria
a perseguição crescente a estes guardiões da diversidade biocultural.
O espírito comunista está intrincadamente nas filosofias indígenas
reconhece Daniel Munduruku. Atestam esse diferencial os sistemas políticos
indígenas autônomos e os rituais coletivos. No ritual reahu dos yanomami,
por exemplo, existe um sistema de trocas intercomunitário movimentado
pelos sentimentos de generosidade e amizade, também conhecido como o
“caminho das pessoas generosas”. Ao se deslocar para uma casa de pessoas
desconhecidas ou recepcionar em sua aldeia convidados para o ritual reahu
os yanomami trocam ou dão aos visitantes todos os objetos desejados por
estes. E, segundo Davi Kopenawa, dizem assim: “Leve estas mercadorias e
sejamos amigos! [...] leve-as [...] e mais tarde, não deixe de dá-las por
sua vez aos que vierem visitar sua casa” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.
414).
Com tal gesto de solidariedade as amizades são construídas,
consolidadas. Neste caso, os bens materiais não existem para serem
trancados ou vendidos, mas trocados ou doados. Além do mais, a cada nova
troca os bens passam de mão em mão, e poderão ser realmente
aproveitados durante sua vida útil. Já a gratidão correrá solta de boca em
boca, e a reputação de pessoa generosa do doador andará sempre mais
longe. Na filosofia yanomami as pessoas generosas e amigas são
189

reconhecidas como inteligentes e valentes. A generosidade é sinal de


bravura e coragem, os grandes guerreiros são pessoas generosas. “Nós,
habitantes da floresta, só gostamos de lembrar dos homens generosos. Por
isso, temos poucos bens e estamos satisfeitos assim”. (KOPENAWA;
ALBERT, 2015, p. 420).
Ser reconhecido como pessoa generosa e amiga tem valor inestimável
para o povo Yanomami. O apreço a tais valores desestimula o apego à posse
e ao acúmulo de bens materiais. A avareza, uma das práticas para se obter
riqueza material na sociedade capitalista é abominada pelos yanomami. De
que adiantará passar a vida acumulando bens materiais se a vida humana
é breve e você não os levará consigo, pois as

As mercadorias não morrem. É por isso que não as juntamos


durante a nossa vida e nunca deixamos de dá-las a quem as
pede. Se não as déssemos, continuariam existindo após a
nossa morte, mofando sozinhas, largadas no chão de nossas
casas. Só serviriam para causar tristeza nos que sobrevivem
e choram nossa morte. Sabemos que vamos morrer por isso
cedemos nossos bens sem dificuldade. (KOPENAWA; ALBERT,
2015, p. 409).

As premissas de uma vida sem apego à posse material destacadas


acima por Davi Kopenawa de fato se concretizam no ritual reahu. Além de
ser uma grande festa intercomunitária de aliança política é também um rito
funerário. Logo depois da morte da pessoa yanomami seus bens
patrimoniais e seu corpo são queimados e transformados em cinzas do
esquecimento. A sabedoria yanomami compreende que o sopro da vida dos
humanos é muito curto. Não podemos esquecer: vivemos pouco tempo! A
pessoa generosa dissemina felicidade por onde passa, ser lembrada após
sua morte enquanto tal é o maior patrimônio deixado por si aos seus.
Não aprisionados ao peso das mercadorias, os yanomami mantêm o
pensamento liberto das amarras da visão acumulacionista e predadora da
base da vida. Na concepção de Kopenawa, o nosso desejo ou paixão
desmedida por conquistar mercadorias nos excita tanto que é provável que
acabemos enredados nelas até o caos.
190

Definitivamente nós não somos a humanidade que imaginamos ser,


argumenta Ailton Krenak (2020). Tanto na cosmologia yanomami quanto
na krenak, a perspectiva humana não é a referência para filiação
existencial. Seguindo as pegadas deixadas por seus ancestrais, é preferível
aprender a partir do diálogo com o movimento dos astros celestes, o ritmo
dos rios e dos ventos, o temperamento das montanhas, o canto dos
pássaros, gozar da sombra de uma árvore e dos seus frutos, explica o autor.
Na compreensão de Ailton Krenak a humanidade e sua técnica têm
deixado marcas a cada dia mais profundas no planeta, exterminando
diferentes espécies. Nossa abstração civilizatória vem suprimindo a
diversidade e negando a pluralidade das formas de existências. Escolhemos
o caminho do nosso total desligamento com o organismo da Terra, pois
passamos a pensar que a Terra é uma coisa e a humanidade é outra. No
entanto, “tudo é natureza. O cosmo é natureza. Tudo o que eu consigo
pensar é natureza”, indaga (KRENAK, 2020, p. 83).
“Não somos o sal da terra, não fazemos falta na biodiversidade”,
abandonemos nosso antropocentrismo, propõe Krenak. Seríamos capazes
de ouvir o comando de parar de predar o planeta? De parar de destruir os
rios e as florestas? Eis um valor transcendente, é vida. Argumentando
acerca de uma espécie de equilíbrio entre o nosso mover na terra e a
permanente criação do mundo Krenak nos convida a parar de nos
desenvolver e começar a nos envolver, pois “cada um de nós – não a
economia, [...] pode atuar positivamente para uma auto harmonização,
ouvindo a voz dos outros seres”, irmanados.
Uma das trilhas educacionais sugeridas por Krenak para reencontrar
um mover no mundo em prol da nossa essência é experimentar ter uma
relação cósmica com o mundo. De maneira idêntica ao ocorrido no
movimento educacional da vida tentehar, como demonstrado ao longo da
tese, o autor indica momentos de silêncio e de recolhimento.
De fato, as culturas indígenas não perderam o hábito de se recolher,
de saber ouvir a ordem do dia. Um ritual é um momento significativo de
parada, do ouvir o tempo, os sons do universo, ouvir com os sonhos, por
191

exemplo. No dia a dia as mulheres tentehar também exercitam, nas suas


atividades de tecelãs de redes e cestarias e ou artesãs de biojoias, rituais
de isolamento consigo e seu material de trabalho, vivem momentos de
solitude e pura criação ao mesmo tempo.
Com uma destreza inconfundível com as mãos, a mente atenta ao
momento de mudar a cor da linha, o trançado da palha, e ou a minúscula
conta de tiririca ou miçanga elas tecem as simetrias das formas geométricas
dos triângulos, quadrados, retângulos, hexágonos e losangos impressos nos
objetos desenhados.
Experienciando o silêncio, no chão, sentadas em frente ao seu tear,
duas hastes de pau enfiadas no solo, as tecelãs tentehar desenrolam e
enrolam linhas, cores, desenhos, vidas acolhidas. Em conciliação com
outros afazeres do cotidiano, no momento oporturno, materializam peças
únicas, pode ser uma rede, uma tipoia, uma bolsa. Não há produção em
série, estoques, desperdícios de materiais.
Um exemplo da aliança entre as mulheres artesãs tentehar e o baile
cósmico da natureza é a colheita de tiririca. Entre os meses de agosto e
outubro, as mulheres tentehar colhem sementes de um capim chamado
tiririca e as lapidam em etapas diversas até transformá-las em pequenas
contas. Enfrentando o sol, confiando na parceria com uma das habitantes
do lugar, elas adentram sem medo em terrenos embrejados. Com os pés
submersos, as mãos puxam as minúsculas sementes, lançadas em um
balde. Após a colheita, em casa, a tiririca passará por processos químicos
que a deixarão no ponto para ser ralada e surgir dois furos laterais. As
pequenas contas na cor marrom são enfiadas em cordões de
aproximadamente um metro. Com a colheita feita na estação seca no
decorrer do ano as artesãs transformam as pequenas miçangas naturais em
belos colares, pulseiras e brincos de diferentes formatos e tamanhos.
A economia da tiririca, ou ainda de cestarias e outras artes movidas
por mulheres tradicionais, deixa o nosso mundo mais belo, e “não vende o
amanhã”, pois não promove graves perturbações ecológicas em outros
sistemas de vida. Tecendo com as mãos as filosofias indígenas continuam
192

a nos ensinar a “suspender o céu e ampliar o horizonte de todos”, só para


ilustrar com o mito tupi-guarani relatado por Krenak (2020).
Por fim, um desejo e uma pergunta:
O desejo: que inspirados nos pássaros da mitologia tupi-guarani,
possamos colaborar para ampliar os céus das nossas crianças e jovens e
ajudá-los a voar alto, a pintar a vida com tons da diversidade de sabedorias
e filosofias indígenas do nosso país. Plantemos hoje sementes para
liberdade!
A pergunta: O que uma pedagogia de base complexa poderia acionar
desses princípios e valores ao ter como horizonte uma sociedade plural,
mais igualitária, mais justa, capaz de viver o presente sem vender a ideia
de futuro?

Fotografia 55. Eu com Zapu’y Guajajara

Fonte: acervo da autora (2019).


193

Fotografia 56. Profs. José A. Filho Guajajara e Antonio Gomes Guajajara

Fonte: Acervo do projeto Rituais Tentehar (2018).

Fotografia 57. Com Davi Kopenawa na Conferência da Terra

Fonte: Acervo da autora (2019).


194

Fotografia 58. Eu com mestre Francisquinho Kanela, Aldeia Escalvado -


Território Kanela

Fonte: Acervo da autora (2017).

Fotografia 59. Palestra de Ailton Krenak

Fonte: Acervo da autora (2017).


195

Fotografia 60. Abertura do projeto Guardiões de Saberes de Ceará-


Mirim/RN com Josineide Silveira, Daniel Munduruku e Ceiça Almeida.

Fonte: Acervo da autora (2019).

Fotografia 61. Colheita da tiririca

Fonte: Acervo da autora (2020).


196

Fotografia 62. Trabalho com as mãos das mulheres artesãs

Fonte: Acervo da autora (2020).


197

CONSTELAÇÕES DE IDEIAS (REFERÊNCIAS)

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