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CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Linha de Pesquisa: EDUCAÇÃO, CONSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS E
PRÁTICAS EDUCATIVAS
GRUPO DE ESTUDOS DA COMPLEXIDADE
MARIA JOSE RIBEIRO DE SÁ
NATAL/RN
2021
Revisão
Fagner França
Capa e Imagens
Wanessa Ribeiro Ferreira
Janaína Almeida Aquino
NATAL/RN
2021
MARIA JOSÉ RIBEIRO DE SÁ
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria da Conceição de Almeida
Orientadora
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
______________________________________
Prof. Dr.ª Josineide Silveira de Oliveira
Examinador Interno
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
_________________________________________________
Prof. Dr. Walter Pinheiro Barbosa Júnior
Examinador Interno
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
______________________________________
Prof. Dr. Carlos Aldemir Farias
Examinador Externo
Universidade Federal do Pará
______________________________________
Prof. Dr. Daniel Monteiro Costa
Examinador Externo
Instituto UK’A – Casa dos Saberes Ancestrais
______________________________________________
Prof. Dr.ª Eugênia Maria Dantas – Examinadora Suplente Interna
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
_______________________________________________________
Profª. Drª. Patrícia Limaverde Nascimento
Examinadora Suplente Externa
Universidade do Estado do Ceará
DEDICATÓRIA
Conta uma das narrativas tentehar que há muito, muito tempo não
havia separação entre o céu e a terra. Certo dia, os pássaros se reuniram
e decidiram levantar o céu para que ficasse mais longe do chão. Então,
todos juntos levaram o céu lá para cima. A narrativa nos faz lembrar que
na vida ninguém se levanta ou se constrói só. No caminho do viver, muitas
pessoas se tornam pedras fundamentais, “pois se vi mais longe foi por estar
sobre os ombros de gigantes”. A frase célebre de Isaac Newton nos remete
à importância da gratidão, de reconhecer as pessoas que nos cederam suas
asas para nos ensinar a chegar mais perto das estrelas.
O meu sentimento de gratidão à grande e inesquecível professora
Marta Maria Castanho Pernambuco, por ter acolhido uma estrangeira de
terras maranhenses no tão bem conceituado Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Essa
inesquecível paulista de alma nordestina transformou um sonho em
realidade para mim. Como grande educadora foi acolhedora e, logo após
minha chegada em Natal, já se preocupou em me ajudar nos trâmites
burocráticos para conseguir a bolsa de doutorado pelo Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Agradeço, portanto, a
confiança de Marta e ao CNPq pela concessão da bolsa de estudos.
A Conceição, agradeço a oportunidade de ser sua aluna, ouvir seus
relatos e suas indicações de leituras e filmes. Me nutrir com tamanha
sabedoria e experiência foi sem sombra de dúvidas um dos maiores
presentes recebidos por mim nos últimos anos. Quando ela fala encanta e
nos faz viajar por lugares jamais imaginados. Minha eterna gratidão a essa
grande cientista das ciências da complexidade.
No Grupo de Estudos da Complexidade – Grecom, ninguém voa
sozinho. Sob o signo da amizade, o conhecimento é de fato tecido em
conjunto e alicerçado com parcerias intelectuais de profissionais de
diferentes áreas. Assim, também foram muito valiosas as contribuições das
professoras Josineide Silveira de Oliveira e Maria Eugênia Duarte, duas
mulheres competentíssimas com quem pude aprender em diferentes
vivências no GRECOM. Desde já agradeço imensamente às duas professoras
bem como ao professor Walter Pinheiro Barbosa Júnior, por ter aceitado
gentilmente compor a banca de examinadores internos.
Agradeço ao professor Carlos Aldemir pela preocupação e carinho
demonstrados ao me sugerir leituras significativas no Seminário de
Formação Doutoral e por ter aceitado compor a banca examinadora do
trabalho. Estendo meus agradecimentos ao professor e escritor indígena
Daniel Munduruku. Sinto-me muito honrada por tê-lo como um dos
arguidores da tese.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande Norte pela oportunidade em cursar o
doutorado, como também à coordenação e secretaria do Programa pela
dedicação constante para o êxito da nossa formação.
Agradeço ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Maranhão/Campus Imperatriz pela dispensa para cursar o doutorado.
Aos amigos da Aldeia Juçaral, agradeço. Em especial, os professores
Antônio Gomes Guajajara e José Amorim Filho Guajajara pela confiança e
parceria ao longo dos anos, pois sem a colaboração de vocês o trabalho não
estaria como se apresenta.
Aos amigos do GEPEM e GRECOM, em especial Cadu Araújo, Felinto
Gadelha, Gustavo Alencar, Helry, Manoel Romão, Jeane Lopes, Umberto e
Tatiane, que dividiram momentos de aprendizagens em congressos, aulas
e leituras aos sábados, além dos bons bate-papos e das boas risadas
regadas a feijoadas e churrasquinhos. Minha eterna gratidão pelo
companheirismo de todos.
Aos amigos do trabalho, em especial a professora Daniela de Sousa
Cortez e o professor Rivelino Cunha Vilela. Obrigada pelo carinho e
companheirismo em dividir comigo trajetórias de aprendizados na educação
pública brasileira. Certamente, o incentivo e a parceria de vocês nos últimos
dez anos foi um divisor de águas para a minha formação.
Aos bolsistas de extensão e pesquisa do curso de Licenciatura em
Física e Ciência da Computação do IFMA, em especial Janaína Almeida
Aquino, que de bolsista em 2013 se transformou na minha companheira de
idas para aldeia até recentemente. Obrigada por seu amor e sintonia com
o mundo indígena. A Wallace Castro da Silva e Diego Borges da Silva pelo
empenho em fazer acontecer o projeto de documentação do ritual da
menina-moça mesmo na minha ausência.
Agradeço o carinho e disponibilidade de Fagner França em fazer a
revisão do texto e a Mônica Reis por ter aceitado normalizá-lo.
Agradeço a dona Cleide Pereira Marinho e sua família pela acolhida
maternal em todos esses anos de andanças para a aldeia Juçaral.
Um agradecimento especial para minha família, meus queridos filhos
e meu companheiro pelo incentivo e compreensão nas minhas ausências
em função da vida acadêmica. Também aos meus irmãos, em especial a
irmã Luzia por ser uma grande árvore em minha vida.
Ensinarão vocês às suas crianças o que ensinamos às
nossas? Que a terra é nossa mãe? O que acontece à terra
acontece a todos os filhos da terra. (Chefe Seattle,
1852).
RESUMO
Monocultures of the mind are destroying the forest and the existing
sociobiodiversity in many Brazilian indigenous lands. Living in a state of
physical and symbolic violence are the Tentehar (Guajajara) of the Arariboia
indigenous area in the state of Maranhão/Brazil. One of the greatest
challenges of these people today is to keep the rest of the forest standing.
Overcoming the uniformity of knowledge and installed power is fundamental
for the Arariboia's biocultural diversity to continue to exist. For this reason,
in this study I proposed to describe about knowledge, mythical narratives
and ritual celebrations of the cultural universe tentehar, about the ancestral
memories lived in the backyard of the inhabitants of Juçaral Village and/or
in narratives of the Maíra heroes, the rituals of the girl young woman, the
honey and the boys. In these stories we identify pedagogies of good living,
resistance, care for life, healing and the celebration of forest diversity. They
are pedagogies that teach us to take care of all beings and to thank for the
existing diversity. Today, aware that their ancestral knowledge and
education are sources of wealth and alternatives for future generations,
these people maintain the resistant fight against sources of scarcity and
poverty installed in their territory. Learning from those who taught us
ancestrally to live in the midst of biodiversity is fundamental to overcome
mental monocultures installed by the capitalist way of life.
APRESENTAÇÃO................................................................... 16
PARTE I – A MONOCULTURA DA MENTE DEVORA A
FLORESTA............................................................................ 24
Bricolando ideias, memórias e saberes................................. 30
Ilhas de resistências: Terra Indígena Arariboia, Aldeia
Juçaral................................................................................. 35
Os cheiros e as cores do caminho à Aldeia Juçaral............... 37
Pedagogias da diversidade em uma ilha de saberes
ancestrais............................................................................ 41
A diversidade botânica ensina a cuidar da vida no quintal... 44
Pedagogias do bem viver..................................................... 53
PARTE II - MEMÓRIAS ANCESTRAIS E HISTÓRIAS DA
TRADIÇÃO........................................................................... 72
Maíra de passagem no mundo.............................................. 76
Um povo em busca de liberdade e pedagogia da resistência 89
PARTE III - CICLOS E METAMORFOSES: A FORMAÇÃO DA
PESSOA TENTEHAR.............................................................. 103
Metamorfose e educação: a formação da mulher tentehar... 110
A natureza que renova e alonga a vida: o rito da mandiocaba
e uhá................................................................................... 117
Kuzà urauhaw: o nascimento da mulher tentehar................. 124
Espíritos da floresta, caça e ancestralidade animal.............. 125
Deusas vermelhas: a ornamentação do entardecer.............. 132
Da sinfonia dos pássaros aos cantos do ritual....................... 135
O encontro entre o dia e a noite: inicia o ritual..................... 137
Entre bençãos e proteção: as avós e a tradição de cuidar da
vida..................................................................................... 138
O nascer do dia e o renascer da vida.................................... 142
PARTE IV - NA TERRA DOS HOMENS-ONÇAS: APRENDENDO
A CANTAR, CURAR E AGRADECER......................................... 160
Guardiões da memória ancestral.......................................... 164
Do mundo dos encantados: a pajelança e a sabedoria da
cura..................................................................................... 171
Esquecendo o canto, matando a natureza............................ 175
PARTE V – CELEBRANDO OS SABERES INDÍGENAS............... 186
CONSTELAÇÕES DE IDEIAS (REFERÊNCIAS)......................... 196
16
APRESENTAÇÃO
Seus antepassados não descobriram essa terra, não! Chegaram como visitantes! Porém,
logo depois de terem chegado, não pararam mais de devastá-la e de retalhar sua
imagem em pedaços.
(DAVI KOPENAWA)
Nessa tese narro sobre o que vi, vivi, senti, aprendi, na minha
convivência com os povos Tentehar1 (Guajajara) da Aldeia Juçaral. Uma
trajetória iniciada efetivamente em 2013, a partir de um trabalho de
extensão intitulado “Diálogos Interculturais sobre Astronomia com Crianças
Indígenas” (DIA)2 junto com essa comunidade. Em tal período, nós nos
lançamos a conhecer sobre a etnoastronomia Tupi/Tentehar da terra
indígena Arariboia, no Maranhão. A partir de tal experiência escrevi a
dissertação de mestrado Saberes Culturais Tentehar e a Educação Escolar
Indígena na Aldeia Juçaral, pela Universidade do Estado do Pará, na linha
de pesquisa Saberes Culturais e Educação Amazônia do Programa de Pós-
Graduação em Educação (PPGED/UEPA) (SÁ, 2014).
No último trabalho narrei sobre saberes e práticas culturais originados
do modo de vida ancestral Tentehar. Agora, no doutorado, volto meu olhar
novamente para tais sabedorias, cosmovisão, com um novo horizonte de
trabalho, dessa vez com uma lente mais ampliada.
Um vasto, rico e complexo imaginário sociocultural conheci ouvindo e
lendo narrativas míticas que contam histórias dos rituais tradicionais, dos
heróis culturais, dos espíritos das florestas, por exemplo. A partir dessa
1
Existe uma variação na escrita da palavra tentehar, na literatura existente encontramos
ainda tenetehara, tenetehar, tenetehára.
2
O projeto DIA foi realizado entre os anos de 2013 e 2014, e sobre o relato de tal
experiência lançamos em 2016 o livro paradidático “Histórias do Céu contadas por Zahy e
Tatá”, e em 2018 a mesma versão escrita na língua tentehar.
26
3
“Cosmologia é entendida aqui como visão de mundo, da maneira como pensamos que o
nosso mundo está organizado” (DESCOLA, 2016, p. 47).
33
4
Falecido este ano por complicações do COVID-19.
34
5
O número pode estar associado ao casamento entre não indígenas e indígenas Tentehar.
Em função de disseminarem valores ocidentais, a união entre homens não indígenas
(karaiw) e mulheres Tentehar é identificado como um problema pela Comissão dos
Caciques e de Lideranças Indígenas da terra indígena Arariboia (CCOCALITIA). Como
explicou Zapu’y, os maridos se sentem donos da terra (SÁ, 2014; SANTOS; SANTOS,
2017).
37
6
O município de Amarante do Maranhão tem a segunda maior população indígena do
Maranhão. Sua área abrange parte da TI Arariboia, TI Governador e TI Krikati.
7
A TI Governador possui área de 41.644 ha, situada no município de Amarante, teve
demarcação homologada pelo decreto 88.001 de 28/12/82.
38
das suas terras. Tal reivindicação gera permanente conflito entre posseiros,
fazendeiros e os Gavião. E até mesmo entre os Tentehar que vivem nessa
terra. Em função de conflitos relacionados à posse da terra essa área é
conhecida como “faixa de gaza maranhense” (SÁ, 2014).
A poesia da natureza se reestabelece quando atravessamos uma
pequena ponte, debaixo da qual corre um pequeno riacho envolto aos pés
de buriti ao nos aproximarmos da terra Arariboia. No riacho Faveira, situado
na aldeia Faveira, ainda em terra Gavião, contudo uma aldeia Tentehar,
quase sempre as crianças estão tomando banho enquanto uma mãe lava
seus utensílios domésticos ou roupas. Curiosas, as crianças costumam parar
o banho para olhar quem passa na estrada.
Uma das últimas paisagens é um pequeno povoamento rural, de
nome Campo Formoso. Esse povoado funciona como um ponto de
abastecimento para várias aldeias do entorno. Nele é possível comprar
carvão vegetal, gasolina, mantimentos e bebidas em pequenos
estabelecimentos como mercearia, açougue e bares, e ainda servir-se de
estabelecimentos públicos como escola, posto de saúde e igreja. Na
memória local, a formação do povoado está associada ao início da
exploração ilegal dos recursos naturais da Arariboia, visto que, segundo
Toinho Guajajara, “o primeiro morador do povoado se fixou no local para
contrabandear espécies vegetais e animais” (SÁ, 2014, p. 32).
Mais à frente, logo após uma fazenda, ao lado esquerdo, o encontro
com o rio Buriticupu e uma ponte para atravessá-lo sinalizam a nossa
chegada à TI Arariboia e à aldeia Juçaral. Ao redor do leito do rio há ainda
sobras de vegetação nativa. Os altos buritizeiros demarcam a passagem do
rio. Um banho de água fria, que desamina qualquer desavisado da cidade,
não causa qualquer estranhamento em jovens e crianças, que mergulham
com a ligeireza de aproveitar ao máximo o banho no rio. Um dos principais
usos, atualmente, devido ao uso de água encanada nas moradias.
A arte tradicional de cestarias brota de área alagadiça das palmeiras
de guarumã e dos buritizeiros que margeiam o rio Buriticupu. Foi no fundo
do quintal da sua casa, por onde corre este rio, com uma faca afiada na
41
a parteira Imaíra Guajajara, parece ter herdado o mesmo gosto que seu
homônimo, o parente ancestral Maíra-Yr, que pediu a sua mãe que colhesse
flores para ele cheirar ainda no seu ventre, como veremos a seguir. A
variedade de espécies vegetais que há em seu jardim é digna de uma
parada para apreciar (SÁ, 2014).
Os quintais também abrigam diferentes espécies frutíferas com
destaques para cajueiros, mangueiras, jaqueiras, cajazeiras, cacau do mato
e mesmo árvores medicinais como o cumaru, a quina e a copaíba, além de
pequenas roças onde se cultiva principalmente mandioca, milho e
mandiocaba. “A conversão de florestas naturais em florestas humanizadas
tem sido uma prática antiga nas regiões tropicais do mundo” (TOLEDO;
BARRERA-BASSOLS, 2015, p. 35).
Plantas como a mandiocaba e o tingui possuem uso ambivalente na
medicina tradicional Tentehar, pois podem ser usadas como remédio ou
veneno. O cacique Zapu’y Guajajara, que cultiva o tingui em seu quintal,
usa a planta para curar diarreias, extraindo a sua água e misturando ao
leite. A professora indígena Ana Cleide Pereira da Silva me explicou que,
tradicionalmente, as folhas são usadas também como veneno em pescarias.
Os peixes que se alimentam da folha morrem, boiam na superfície da água
e são recolhidos no pacará. Portanto, o domínio da quantidade é que
determina o uso ambivalente da substância, pois
8
Atualmente estudada pela ciência moderna, a maconha é considerada uma planta
altamente complexa. Contêm mais de 60 substâncias, e a produção de canabinóides,
moléculas instáveis, são produto de degradação. De acordo com o dr. Wolfgang Harand
(2018), qualquer que seja o método de extração da cannabis, a sua composição será
sempre uma mistura, que dependerá de vários fatores que vão desde o plantio e trato
cultural a métodos de extração e armazenamento. Considerada um presente dos deuses
para os hindus é hoje uma espécie de santo graal para a medicina científica, indicada para
o tratamento de mais de 50 tipos de doenças, conforme registra o site
ghmedical.com/diseases.
51
[...] meu filho tem um mato que a gente planta, que quando
tu viajar, porque tem muito inimigo. Tem muita gente ruim
que nu gosta de ti. Tem gente que te persegue. Ai, tu anda
com esse mato, tu nu encontra briga nenhuma. Tu encontra
só amizade. Tu nunca acho briga. Eu nunca achei briga [...].
É um cipó mukamuka. Quando eu saio pra minha viagem eu
pego aqui, boto no meu bolso e vou embora (SÁ, 2014, p.
144).
[...] um caçador que saia para caçar todo os dias com seu
cachorro para caçar, a fim de garantir a alimentação de sua
família. Um dia, durante a caçada, esse homem foi picado de
cobra e morreu na hora. O cachorro voltou para avisar a
família [...]. A partir daí todos os dias o cachorro saia para
caçar a fim de trazer o alimento para mulher e as crianças.
(ALMEDA; SEVERO, 2016, p. 84).
nas grandes cidades. Elas seguem a hora GMT9, que representa “[...] uma
extraordinária uniformização dos modos de vida e de pensamento, e uma
mimesis generalizada” (LATOUCHE, p. 1994, 32).
O ritmo da vida na aldeia ainda acompanha os ciclos naturais. Viver
o presente significa acompanhar os ciclos da natureza vivendo um dia de
cada vez, sem pressa. O trabalho para o sustento diário é sintonizado com
os ritmos naturais, pois combinam de forma articulada e cíclica as práticas
da agricultura, da caça, da pesca e da coleta, um sistema ecológico
complexo que integra roça-mata-rio-igarapé-quintal (LOUREIRO, 1992).
Um mosaico de culturas, agricultura, caça, pesca, extração florestal,
artesanato, favorece o aproveitamento máximo dos produtos que cada
estação oferece ao longo do ciclo anual. Por isso,
9
Sigla em inglês para Greenwich Mean Time, que em português significa Tempo Médio de
Greenwich, medida a partir da qual são estabelecidos os fusos horários do mundo.
10
Expressão local usada para denominar o lugar mais afastado da aldeia onde cultivam
suas roças, fazem a farinha e geralmente também constroem uma pequena casa para se
acomodar.
57
seio familiar, o trabalho é dividido de acordo com sexo e idade, por isso se
valem do conhecimento acumulado por cada pessoa. A produção da farinha
é um momento significativo, que ilustra bem o encontro entre três ou mais
gerações de um mesmo grupo familiar compartilhando saberes entre si. As
diferentes gerações ensinam e aprendem saberes e técnicas, enquanto
alimentam ao mesmo tempo a memória individual e coletiva. As crianças
em volta observam e aprendem. É da farinha de mandioca imersa na água
que se produz o chibé11, um dos seus alimentos tradicionais.
Não livre de alterações, crises e turbulências, o conhecimento
intergeracional nas sabedorias tradicionais vai se constituindo em um
cenário duplamente cíclico (ciclo diário e anual), de tal maneira que nesse
cenário giratório vão se acumulando as experiências, memorizadas
individual e coletivamente em círculos cada vez mais amplos, formando
aspirais ascendentes, como explicam Vitor Toledo e Narciso Barrera-Bassols
(2015).
Nas suas raízes míticas o desenvolvimento da agricultura está
associado ao cultivo da mandioca. Parece ter sido a curiosidade, a dúvida
de uma jovem mulher que possibilitou aos Tentehar o desenvolvimento de
tal prática, ampliando o cardápio de opções para sua subsistência. Em três
narrativas provenientes de fontes diferentes, com algumas variações, a
história é contada mais ou menos assim:
11
A farinha azeda imersa na água se transforma no chibé, um dos principais alimentos dos
Tentehar.
58
12
Kíchwa, quíchua, ou quéchua é uma família de línguas indígenas da América do Sul falada
por aproximadamente 10 milhões de pessoas de diversos grupos étnicos ao longo dos
Andes, passando por Argentina, Bolívia, Chile, Equador e Peru.
61
E o que serei? Pó, apenas que juntará ao universo e alimentará a fantasia de nossa
própria humanidade.
(MUNDURUKU)
13
Nome dado por Lévi-Strauss para uma das centenas de narrativas das sociedades
indígenas sul e norte americanas por ele estudadas.
76
14
Ao longo dos próximos capítulos teceremos mais detalhes sobre a importância dos velhos
para manter viva as tradições culturais do povo Tentehar, sobretudo seus rituais.
77
colher flores para ele cheirar. De certa feita a flor está com
marimbondos que picam a mãe, ela se zanga e bate na
barriga. Maíra-yr se ressente e cala. Chegando a uma
encruzilhada a mãe não sabe qual caminho tomar, pergunta
ao filho e ele não lhe responde. Ela segue por uma via que vai
dar na morada de Mykura, o Gambá. Este a acolhe em sua
acanhada casinha feita de folha de banana-brava, lhe dá
comida e uma rede para dormir. Depois faz chover e a chuva
cai na rede onde a índia grávida dorme. Ela se levanta e arma
sua rede em outro lugar, mas Mykura vai com uma vara e
afasta as palhas do teto e novamente cai água na rede da
mãe de Maíra. Isso acontece duas, três vezes até que Mykura
a convida para dormir na sua rede, que está enxuta e quente,
e aí lhe gera outro filho, Mykura-yr, o filho do Gambá.
15
O autor não cita de quais interlocutores extraiu a narrativa. Acreditamos ser uma
composição surgida a partir da bricolagem de histórias narradas e escritas sobre os irmãos
gêmeos no imaginário Tentehar e Tupi-Guarani.
16
Sobre a temporalidade dos mitos, Lévi-Strauss (2017) fala que o mito se define em um
sistema temporal, e mesmo se referindo a eventos passados, tem um valor intrínseco que
provém do fato de os eventos formarem uma estrutura permanente que os faz referir-se
simultaneamente ao passado, presente e futuro.
81
17
De acordo com o estudioso da mitologia Joseph Campbel (2015) o tema dos heróis
gêmeos aparece em inúmeras mitologias. Na mitologia Navaja, por exemplo, o primeiro,
o nascido do sol representam o chefe guerreiro (é o matador de inimigos); e o segundo, o
nascido a lua, o seu sacerdote mágico (o filho da lua, o curandeiro, o xamã).
84
índia bonita e um pau na beira da roça. Era pauzão bonito. Nele tinha uma
forquilha, como se fosse um galho, mas não era. Ela pegou a brincar
(copular), até quando o destino a fez gestante” (ZANNONI, 1999, p. 206).
Após gerar o primeiro filho, ao chegar na casa do Gambá a mulher
novamente não contém seus impulsos sexuais, se deita com Mykura e
engravida de seu segundo filho, Mikura-Yr. Em outra narrativa, a mulher
esquece das regras e convenções e, movida pela sensibilidade estética do
espírito sedutor das águas (Y’zar), deixa-se conduzir para o gozo, para o
êxtase, mesmo sabendo das sanções sociais que o ato podia ocasionar.
[...] Sem saber por que, o homem tinha o pênis sempre ereto.
A mulher: foi lavar a roupa de Maíra no igarapé, quando lhe
apareceu o Espírito da Água (Y’zar) que a cortejou e a atraiu
para copular. A mulher achou aquilo bom e, daí por diante,
voltava todos os dias para o igarapé.
Batendo numa cuia que emborcava na água, chamava o Y’zar
e com ele de ia deitar-se.
18
Armação de paus dispostos lateralmente, que parte de cima se abre em dois ramos,
assumindo a forma da letra Y, uma forquilha. Nas forquilhas são presos dois pedaços de
pau na horizontal, um em cima outro em baixo. No entanto, há outras estruturas mais
simples para confecção de redes e tipoias (SÁ, 2014).
85
seus ancestrais para terem chegado até aqui. A memória irriga a lembrança
que todos somos um fio na teia da vida, pois o
19
Encantados, espíritos, ou sobrenaturais, como nós não indígenas nomeamos.
98
Fotografia 19. Tàmui João Tawi nos conta histórias do céu na aldeia
Mucura
A memória tem que ser a granel porque tudo o que guardamos dentro da gente gera
emoções, sentimentos, alegrias e dores. Nossa memória é seletiva para proteger-nos de
nós mesmos.
(DANIEL MUNDURUKU)
Acontecimentos bons ou ruins, alegres ou tristes passam a fazer parte da nossa história.
São marcas que vão morar dentro da gente como uma tatuagem ancestral.
(DANIEL MUNDURUKU)
volta. Caçar passarinhos, seja com flechas ou baladeiras20, com seu mocó21
atravessado ao peito com algumas pedras ou coquinhos dentro é uma
prática aprendida no universo masculino tentehar. É comum ver os meninos
em agrupamentos de dois ou três passarinhando pelos quintais da aldeia
Juçaral. Tal recreação é uma espécie de preparação para as aprendizagens
que levam o menino a se destacar como um bom caçador nessa cultura.
Depois de um longo tempo perdido na mata, Wiraí conseguiu retornar
ao seio de sua família. É importante notar que todas as narrativas míticas
geralmente surgem de algum sofrimento terrível por que passa um grupo
ou pessoa, ou seja, elas derivam de momentos vívidos de aflição. E, por
mais paradoxal que seja, acrescenta Clarissa Pinkola Estés (1998), essas
“histórias que brotam do sofrimento profundo podem fornecer as curas mais
poderosas para os males passados, presentes e futuros” (p. 10-11). Por
isso a autora as nomeia de histórias medicinais, pois servem para
“[...]ensinar, para corrigir erros, para iluminar, auxiliar a transformação,
curar ferimentos, recriar a memória. Seu principal objetivo consiste em
instruir e embelezar a vida da alma e do mundo” (p. 10).
No livro “Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha)
memória”, o escritor Daniel Munduruku (2005) narra uma dessas
experiências medicinais que viveu com seu avô, um sábio pajé Munduruku.
Narrando histórias sobre a sabedoria de um rio ou ainda lhe proporcionando
observar o canto dos pássaros embaixo de uma mangueira, seu avô lhe
ensinou lições que funcionaram como um bálsamo para cicatrizar na sua
alma as feridas abertas pelo preconceito vivido na escola por ser um
indígena. Com essas histórias ele pode recriar a memória da sua
ancestralidade e ter orgulho das suas raízes.
A educação na memória ancestral tentehar começa cedo e se
concretiza nos diferentes momentos rituais de iniciação tentehar. Em tais
celebrações que marcam ciclos e metamorfoses, ou seja, o fim e o início de
20
Objeto de disparo de projeteis composto de liga, madeira em formato y e couro,
também conhecido como estilingue e badogue.
21
Pequena sacola de palha ou de tecido usada pelos caçadores para guardar suas
munições.
107
22
Rede.
108
mesmo espaço, como se aprende numa casa de farinha ou num ritual, por
exemplo, foi algo desafiador para nós sujeitos da cidade, representantes da
cultura escolar assentada sob suas muitas regras inflexíveis e que têm na
figura do professor o detentor de um saber especializado. Essa foi a
constatação que fizemos quando nos deslocamos para aldeia Juçaral para
partilhar momentos de ensino-aprendizagem em astronomia intercultural.
O mundo quadrado da sala de aula, um espaço domesticado e
fechado, com hora exata para começar e terminar, restrito a professores,
alunos e coordenação pedagógica caía por terra para nós na aldeia. Todos,
sem exceção, avós, avôs, mães, pais, jovens, crianças desde as mais novas
queriam saber, aprender ou se inteirar sobre o que ensinaríamos ali, pois
assim se ensina e aprende numa comunidade indígena. Entendemos na
época a necessidade em abraçar o movimento circular de vidas a nossa
frente. E em cada ida a aldeia fomos aprendendo que nenhum encontro
teria hora pra começar ou terminar, ou seja, não acontecia na hora marcada
no nosso relógio, mas em outro tempo, no tempo em que a maioria podia
estar presente. Além disso, as atividades deveriam envolver todas as
gerações, velhos, adultos e crianças.
Não aprisionados ao relógio artificial, na escola também os
professores indígenas e o diretor conduzem as atividades no seu tempo ou
até o momento em que todos demonstram estar confortáveis, embora haja
um calendário e horários oficiais estabelecidos a cumprir.
Essa maneira de aprender dialoga com ciclos da vida e o tempo em
que corpo e mente se permitem viver sem a violência do aprisionamento
ao ritmo de vida capitalista e sua domesticação. No entanto, a condição de
viver o que o corpo-mente permite é geralmente entendida pelos órgãos
oficiais de ensino como desorganização, preguiça e enrolação.
Com horários menos extensos em relação aos regimes de tempo
convencionados pela cidade as pessoas de fora estranham e questionam o
fato do prédio escolar está quase sempre solitário. Também se vive a
contradição de se ter uma escola na aldeia, mas muitos pais matricularem
os filhos na escola do povoado e não na da aldeia. Em que pese a
110
[...] Ma’ira pediu ainda aos pais que a colocassem numa tocaia
até ser pintada com jenipapo. O pai então falou a filha que
fosse deitar enquanto eles fossem buscar o jenipapo. Eles
foram aos baixões junto com Ma’ira, que logo mostrou o pé
de jenipapo e disse a eles que toda vez que uma menina
menstruasse pela primeira vez, seria pintada com jenipapo
[...].
23
Essa história é mais extensa e foi escrita pelo professor Augusto R. Guajajara da Aldeia
Januária, terra indígena Pindaré, para a coleção de livros didáticos indígenas e indigenistas.
As narradoras foram sua avó e uma mulher de nome Maria Pindaré (MARANHÃO, 2010a,
p. 24).
113
24
Uma pequena casa construída de palhas/galhos de árvores de nome tokasa/tocaia, é a
representação da itakuara (literalmente “buraco na pedra”, caverna onde vivem os
karuara. É como, também os tentehar denominam o lugar que os caçadores constroem
para abrigar a si, enquanto esperam pela presa. (LARAIA, 2005, p. 9).
114
A criança pode usar porque sempre vai estar com saúde [...].
E tem um crescimento saudável. Se não usar jenipapo não
vive com saúde. Jenipapo é só pra isso, pra gente viver com
alegria e com saúde. Por isso toda vida usa jenipapo.
[...]Desde o começo. Porque o bicho tinha medo dele, do
jenipapo. Até mesmo criança pode ser pintado e pode
carregar ele para qualquer lugar, até mesmo pra roça de
manhã. [...] Criança que é pintada você pode andar com ele
em qualquer lugar, não pega nada. (Entrevista concedida por
Zé Maria Guajajara, 2018 e traduzida pelo professor Antonio
Gomes Guajajara).
25
O Jenipapeiro (Genipa americana), é uma planta pertencente à família Rubiaceae, a
mesma do café. Seu fruto possui formato ovoide, com tamanho que varia de 9 a 13 cm de
comprimento com até 9 cm de diâmetro. Possui casca rugosa de cor marrom quando
maduro.
115
26
O pular dos tentehar é o que nós concebemos por dançar.
116
preparadas, benze sua neta, afirmando que será uma mulher “[...] formosa,
musculosa, forte e sadia” (ZANNONI, 1999, p. 66). Porque “lavar alguma
coisa é um ritual de purificação atemporal. [...] Também significa o batismo,
do latim empapar, impregnar com uma força e um mistério numinosos”
(ESTÉS, 2018, p. 114). Fazendo uso de uma expressão de Estés, trata-se
de um processo de “lavagem das fibras do ser” (2018. p. 78). No seu dia a
dia a mulher precisa ter um espírito forte para resistir às dificuldades, aos
perigos físicos e psíquicos existentes, por isso a menina corre e não pode
cair.
Na pedagogia da ancestralidade indígena não se cuida apenas da casa
física, mais inclusive da casa psíquica habitada por todos nós, pois na
cosmovisão indígena não há separação entre corpo, mente e espírito,
ressalta Daniel Munduruku (2010).
A formação psíquica da menina-moça é percebida em um trecho da
narrativa em que surge Ywán (o espírito sedutor das águas). Esse espírito
desperta nas mulheres tentehar a paixão descontrolada, como já dissemos.
Na continuação da narrativa
homem que casa com mulheres somente para depois matá-las e devorá-
las.
Aguçar o olhar, manter os ouvidos bem abertos e observar o que está
em volta. Contando essas histórias iniciáticas a cultura tentehar resguarda
e prepara as jovens mulheres para reconhecer a existência de predadores
da alma. Enquanto estava presa na tocaia a menina ouviu a narrativa de
Ywán pela boca de sua avó, mãe ou pai. O fato explica o porquê de ela não
poder se afastar de casa para tomar banhos em rios enquanto não cumprir
o último resguardo, me relatou Zapu’y Guajajara. De acordo com Estés
(2018), nestas histórias arquetípicas estão incrustadas instruções que nos
orientam a respeito da complexidade da vida.
Um sistema complexo de saberes, formado por conhecimentos
medicinais e espirituais, regras culturais e tabus alimentares compõem
etapas do rito da menina-moça. Com a cerimônia da mandiocaba e uhá as
mulheres envolvidas ensinam e aprendem uma pedagogia do cuidado com
a vida.
27
É o nome que designa um tubérculo, que a exemplo da mandioca é bem comum na Terra
Indígena Arariboia. Uma de suas características está no sabor, ela é mais adocicada que a
mandioca, além de ser mais macia.
28
No Maranhão denominamos por tapioca a goma do polvilho de mandioca, e chamamos
de beiju o bolo preparado numa chapa quente.
119
29
Um tipo de bambu, comum na região, cujo principal uso é a fabricação de flechas.
30
Dilocarcinus pagei stimpson ou Dilocarcinus septemdentatus.
31
Tàmui é tradução da palavra velho.
120
32
Nesse período eu me encontrava em Natal-RN cursando as disciplinas do doutorado. O
registro foi feito pelo bolsista Diego Borges, estudante do curso de Ciência da Computação
do IFMA/Campus Imperatriz, auxiliado pelos professores indígenas Antonio Gomes
Guajajara e José Filho Amorim Guajajara.
121
33
Possivelmente a maior biblioteca viva dessa cultura, Mestre Vicente partiu dessa
existência para terra dos encantados no dia 05 de novembro 2020.
123
Então, ele fica bem novinho de novo [...]. Nunca acaba. Por
isso, [...] a menina que comeu paçoca de caranguejo não fica
doente, sempre é sadia. Porque fez e cumpriu resguardo com
paçoca, tanto pros outros e também pra ela mesma.
O nosso pedido para a avó Deusdete foi que nos falasse sobre o ritual
da menina-moça, entretanto, essa sábia mulher de 80 anos, astutamente,
preferiu comparar a época da sua infância com os dias de hoje. E, com seu
doce e calmo semblante, denunciar as agressões ambientais vividas na
terra indígena Arariboia. A sua aula de ecologia, poderia ser assim
125
34
Em que pesem fatores econômicos, logísticos, ecológicos e sagrados para a não
realização permanente dos demais rituais, a festa do mel e dos rapazes mantêm a sua
importância para esse sistema cosmológico. Na minha ótica, a festa da menina-moça é a
mais celebrada porque conjuga sob sua órbita mais elementos que falam do milagre da
126
vida, dos sentidos existenciais que nos constitui, e não apenas do peso socioeconômico da
mulher nessa sociedade.
35
A relação das caças e alimentos proibidos e permitidos podem ser consultadas em
Zannoni (1999).
127
36
Crypturellus parvirostris, popularmente conhecido como inhambu-chororó, lambu,
nambu, lambu-pé-roxo.
37
A Jaó de pé de roxa (Crypturellus undulatus), também da família dos Tinamidea, foi
descrita por Zannoni (1999), como a ave principal do ritual, por ser usada para
desencantar a moça.
128
guariba. Caso não cumpra tais resguardos poderá passar mal, ficar doida
ou perturbada, disse a lambu-tona segundo a narrativa desse guardião do
saber ancestral. Dessa forma, a festa da menina-moça é caracterizada do
início ao fim pela preparação e distribuição das carnes de caças moqueadas
(ZANNONI, 1999; SÁ, 2014).
No entanto, está cada dia mais difícil cumprir tais acordos de
cooperação, prestar reverência aos animais da festa do moqueado, como à
lambu-tona e outros. A caçada, prática cultural primeva, muito presente
no dia a dia dos tentehar, está a cada dia mais ameaçada em função da
morte da biodiversidade local. Antes, uma única caçada era realizada nos
dias que antecedia a festa. No ano de 2018, por exemplo, para o ritual com
9 meninas acontecer na aldeia Juçaral foram necessárias três caçadas, e
ainda assim não conseguiram caça em quantidade suficiente, obrigando as
famílias a usarem carne de frango no preparo das paçocas moqueadas. De
acordo com seu Oseas, “o moqueado que a gente fazia não era pouquinho
como tá sendo hoje, moqueado que dava pra todos os parentes que vinham
pra festa, agora hoje em dia não tem mais, pouca caça agora. Cada vez
mais, tá ficando difícil a caça do mato”!
Ainda na década de 1990, a escassez de caças e a compra de chumbo
e pólvoras para se caçar o suficiente para alimentar os convidados da festa
foi descrita por Zannoni (1999) como alguns dos motivos para o ritual da
menina-moça se tornar uma celebração coletiva. Hoje, é consideravelmente
maior a escassez de caças no território Arariboia. Se antes, com o resultado
da caçada, alimentavam todos os convidados, hoje não se consegue o
necessário para encher a panela de cada menina-moça.
Conforme relato do professor José Amorim Filho Guajajara, os
homens da aldeia quando vão para a mata fechada ficam aproximadamente
5 (cinco) dias fora e chegam a percorrer até 80 km em direção ao centro
da reserva à procura das caças. Tal escassez deve-se em grande parte aos
incêndios acontecidos na TI Arariboia na última década.
O incêndio de 2015, por exemplo, está marcado na memória dos
moradores da aldeia. Além do terror de presenciá-lo, até hoje sofrem com
129
38
Para que a caçada seja exitosa, uma série de regras são cumpridas por todos da aldeia
no período em que os caçadores estiverem na mata, conforme descrito por Zannoni (1999).
130
39
De acordo com Cascudo (2012, p. 158) o “Curupira é um caipora, residindo no interior
das matas, nos troncos das velhas árvores. De defensor das árvores passou a protetor da
caça [...] Do Maranhão para o Sul o Caipora é o tapuia escuro e rápido”.
131
1973). Ou, como fala, Estés (2018, p. 152) “a irmã gêmea da vida é uma
força chamada morte”.
Então, uma caçada é uma boa aula para o desenvolvimento de
habilidades e capacidades especiais. Nas caçadas do ritual da menina-moça
de 2018, os rapazes aprenderam entre outras coisas a limpar as caças e
espetá-las para facilitar o moqueio e o transporte de volta à aldeia. Após o
preparo, ali mesmo desidratam a carne numa fogueira e depois a levam
para o moquém40. Para os rapazes é um momento significativo de interação,
diversão e de educação na tradição regada a um acervo oral de histórias
envolvendo essa prática ancestral.
Na sabedoria ancestral tentehar a caça pode ser surpreendida por três
diferentes técnicas de apreensão, a saber: varrida (miar haro haw), tocaia
(tukaz) e mutá (ywyra pytakwar), como aprendi em uma das oficinas de
caçadas tradicionais do projeto de extensão de Valorização dos Saberes
Tentehar na escola local41.
De acordo com o velho Ernesto Pazezu Guajajara, cacique da aldeia
Ingarãna, um dos segredos para realizar uma boa caçada é não anunciar
que vai matar a caça. Quando se sai para a caçada o certo é dizer “vamos
dormir” na mata, pois se avisarem, mesmo em um lugar bom de caça, os
bichos desaparecem porque antes foram alertados.
Depois de estudar diferentes mitologias de povos caçadores,
Campbell imaginou que o imenso e cacofônico coral de histórias que temos
“[...] começou quando nossos primeiros ancestrais contaram histórias uns
aos outros, a respeito dos animais, que eles matavam para comer, e a
respeito do mundo sobrenatural [...]” (MOYERS, 1990, p. 10).
De acordo com seu Oseas, seus antepassados quando iam para mata
caçar para a festa da menina-moça sempre cantavam antes de sair, e
quando chegavam no mato disparavam tiros de espingarda. Quando os
40
O moquém é uma espécie de jirau (grelhas de pau) para assar a carne em fogo lento.
41
Este projeto é financiado pela FAPEMA, e acontece atualmente na escola da local
coordenado pelo prof. Antonio Gomes Guajajara, pelo prof. José Amorim Filho Guajajara e
por mim, Maria José.
132
real, fixadas com resina de almesca no peito e topo da cabeça, pois a planta
confere proteção espiritual.
Mesmo que a tese não tenha elegido como argumento principal a
demonstração do princípio cosmológico feminino nessa cultura, o ritual da
menina-moça em todos os momentos de sua exibição demonstra a
centralidade da mulher nessa cultura. Ele nos remete ao culto do princípio
feminino, da mulher geradora da vida conforme lembrado por Estés (2018)
e Campbell (2015) nos seus estudos.
O vermelho também é a cor predominante em rituais do povo Gavião
Pukobyê, fato observado quando fotografei uma encenação de um dos seus
rituais para um trabalho do programa Saberes Indígenas na Escola no ano
de 2017, na aldeia Governador. Se entre os Tentehar o preto azulado está
no corpo e o vermelho nos adornos corporais, o vermelho molhado do
urucum se destaca no corpo de homens e mulheres Gavião.
Não só as meninas, mas avós, mães e tias também se adornam com
coroas, colares, pulseiras, saiotas e sutiãs ornados com sementes e penas
variadas. Boa parte das joias e ornamentos tem uma composição heteróclita
com sementes nativas e minúsculas miçangas industrializadas 42. Uma
diversidade de formatos e imagens impressas são tecidas com mãos e a
mente bricoleur dessas mulheres artistas (SÁ, 2014).
Nas diferentes criações de adornos, visualizamos o potencial inovador
do trabalho de mulheres. Elas não se limitam a cumprir ou executar um
roteiro ou manual pré-estabelecido. O seu trabalho bricoleur “[...] não “fala”
apenas com as coisas, [...], mas também através das coisas: narrando,
através das escolhas que faz entre os possíveis limitados, o caráter e a vida
de seu autor. [...] o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si” (LÉVI-
STRAUSS, 2012b, p. 38).
Para Almeida (2017a, p. 141) o mito
42
Nas lembranças de Ana Cleide Pereira Marinho, o uso de miçangas artificiais iniciou com
a distribuição feita pelos frades capuchinhos na região da cidade de Barra do Corda-MA.
Eles doavam sacos inteiros para as índias, relatou (SÁ, 2014).
136
43
Na tradição ancestral Tentehar o jabuti é considerado um pássaro que não voa, me
explicou o professor e cantor tradicional Toinho Guajajara (2020).
138
fértil mantém o ciclo alimentar dos seus habitantes, pois somos todos
interdependentes (KOPENAWA; ALBERT, 2015).
A avó pulará durante todo o ritual em frente à sua neta. Essas velhas
sábias, que formam suas filhas e netas para a vida, tem ainda o poder de
protegê-las, como nos explicou a avó Maria de Lourdes Guajajara: “Porque
a mãe vai ficar atrás dela, para arrumar quando ela roda e o enfeito desce
para o peito. A avó fica na frente, pulando, [...] protegendo a neta. É assim
que está protegendo a neta de verdade, exclamou!”
Essas matriarcas são responsáveis por iniciar e transmitir as suas
filhas, netas e bisnetas o legado matrilinear aprendido com suas mães,
avós, tias ancestrais, repetindo, ano a ano, gestos e movimentos do ritual
da menina-moça. A energia, experiências de vida que uma avó transmite
às suas netas e filhas por meio de histórias ou ações cotidianas ou de um
ritual pode ser comparada com a natureza de uma grande árvore, pois a
árvores filhas crescem direto da raiz da avó sabia (ESTÉS, 2007).
Segundo Estés (2018, p. 18) há muitos tipos de veneráveis grandes
avós na mitologia e na realidade consensual. Nela a grande avó representa
o arquétipo da mulher sábia, tem uma tarefa crucial que é intimidante,
ousada, desafiadora e alegre. Nas histórias, geralmente “ela é a anciã ‘que
sabe’ e surge de repente para ajudar a mulher mais jovem”.
Na cultura tentehar a avó representa o saber cuidar da vida ou do seu
milagre. Com amor e paciência, é a acolhedora, ou ainda a “velha perigosa”,
expressão que Clarissa Pinkola Estés (2007) cunhou a partir do sentido mais
arcaico da palavra dangerous [perigosa], que significava proteger, ser
cuidado, ser protegido.
A admiração pelas avós tentehar surgiu por observá-las durante todo
o ritual da menina-moça, por conviver ou conhecer algumas delas, e com
suas filhas e netas. Elas formam futuras sábias em preparação e mantêm
uma “ciranda de mulheres sábias”, pois a neta acabará incorporando algo
do jeito e do estilo da avó (ESTÉS, 2007; 2018).
A escritora indígena Eliana Potiguara, no seu livro “O Pássaro
Encantado”, reconhece que todos os povos indígenas do Brasil têm uma
140
44
Utensílio doméstico feito de tronco de madeira cujo interior foi desbastado por dentro
no formato concha.
143
água. Depois de retirar a massa do fundo do pilão elas dão forma com as
mãos a pequenos bolinhos e, com muito cuidado, cada uma enche o seu
tupé45.
45
Pequeno vasilhame trançado da palha de guarumã semelhante a uma bacia.
144
Uma benção não faz com que você ganhe alguma coisa, mas
na verdade, faz com que você use alguma coisa – “algo que
você já possui” -, o dom que nasceu junto com você no dia
em que você chegou à Terra. Uma benção é para que você se
lembre totalmente de quem é, e faça bom uso da magnitude
que nasceu embutida no seu eu precioso e indomável.
(ESTÉS, 2007, p. 22).
Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos
tempos. [...] Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o eterno,
compreender o misterioso, descobrir o que somos.
(CAMPBELL)
162
Contar ou ouvir histórias deriva da energia de uma altíssima coluna de seres humanos
interligados através do tempo e do espaço, sofisticadamente trajados com farrapos,
mantos ou com a nudez da sua época, e repletos a ponto de transbordarem de vida
ainda sendo vivida. Se existe uma única fonte das histórias e um espírito das histórias,
ela está nessa longa corrente de seres humanos. (ESTÉS)
buraco46 grande túnel que se alargava cada vez mais. Ali havia
muitas casas, muita gente, tal como numa grande aldeia. Era a
Maloca das Onças (zawarehú nekwaháo). Aruwê tomou forma de
gente e começou a procurar o irmão. Encontrou uma cunhã que dele
se agradou e o convidou para morar com ela e seus parentes. Estes
gostaram muito do rapaz. O pai da cunhã fora o matador do irmão
de Aruwê.
O Tenetehara observou que, durante dias seguidos, as onças
deixavam a maloca, para voltar à tarde com cabaças cheias de mel,
que eram penduradas nos esteios de uma casa. A noite entoavam
canções muito bonitas junto à casa onde era guardado o mel. Aruwê
maravilhou-se com essas canções. Quando já havia um bom número
de cabaças cheias de mel, as onças se reuniram para uma grande
festa — A Festa do Mel. Chegaram cantadores pintados de urucu e
jenipapo, enfeitados com penas de arara e gavião. Dançavam e
cantavam, bebendo mel misturado com água. As canções tinham
início ao amanhecer e cessavam com o pôr-do-sol, quando todos se
retiravam para suas casas a fim de descansar, reiniciando a festa
no dia imediato. A festa só terminou ao acabar o mel. Aruwê
aprendeu as canções e todo o cerimonial conhecido pelos
Tenetehara.
Com muitas saudades do filho e da mulher que deixara na
maloca tenetehara, o caçador pediu às onças que o deixassem
partir. Sua mulher-onça o guiaria de volta à maloca das onças.
Acompanhado da mulher, saiu pelo mesmo buraco de formigas por
onde entrara. Dirigiram-se para a aldeia e, ao aproximar-se, Aruwê
recomendou à mulher-onça que o esperasse nas imediações. A
esposa Tenetehara o recebeu com muita festa e foi preparar-lhe um
mingau de mandiocaba. Demorou muito, e Aruwê, ao voltar para
procurar a mulher-onça não mais a encontrou. Cansada de esperar,
ela voltara para a maloca, tomando o cuidado de tapar o buraco do
formigueiro para que o Tenetehara não mais a encontrasse. Após
procurar em vão pela maloca das onças, Aruwê voltou a viver com
os seus, ensinando aos companheiros tenetehara as canções que
aprendera com as onças. Desde então, os Tenetehara passaram a
46
Esse buraco de formiga é conhecido por orelha de tatu ou tatu nami, nos explicou o
cantor Zé Maria Guajajara (2018).
164
47
A narrativa foi colhida por Wagley e Galvão (1961) e adaptada por mim com acréscimo
de informações do cantor Antonio Gomes Guajajara relatadas a este cantor pelo tàmui
Vicente Guajajara (SÁ, 2014, p. 99-100).
hahehe
hahehe
hahehe
49
Virola elongata, ucuuba-vermelha; árvore cuja resina é fabricada o pó alucinógeno
yãkoana usada no xamanismo Yanomami. (KOPENAWA; ALBERT, 2015).
50
Na visão de Kopenawa não existe distinção entre seu povo e a floresta, eles formam
com os outros seres a floresta.
174
51
“[...] é uma beberagem de origem indígena amazônica, preparada a partir de três
elementos naturais: O cipó (Banisteriopsis caapi, a folha (Psycotria viridis) e água”.
(ALBUQUERQUE, 2011, p. 130).
175
extraída do sapo ou rã; folhas de cedro. O alvo de suas curas são doenças
tais como: o quebranto, fraqueza ou moleza no corpo, sol na cabeça e
sobretudo o karowara (feitiço). (MARANHÃO, 2010b; ZANONNI, 1999).
Na narrativa da festa do mel o irmão imprudente, impulsivo, quis
caçar mais do que o permitido. Após tentar matar homens-onças recebeu
como recompensa a morte. Desde então, os tentehar vivem guiados pela
consciência de uma ordem natural do universo, como seres
interdependentes, e caçar, plantar, colher mais do que o necessário é pôr
em risco a existência de todos. Por isso, criaram suas próprias regras
culturais. Não as cumprir implica conviver com a doença e/ou a morte, pois
o espírito entra no corpo da pessoa e se manifesta como doença. De modo
que o desequilíbrio provocado pelo tentehar é controlado por ação de
espíritos animais, donos de minerais e vegetais e os azang. Nesse caso, só
um pajé pode devolver o equilíbrio ao sistema, intervindo juntos aos
espíritos em prol do doente.
Durante todo o ritual a menina-moça segura na sua mão direita um
cigarro enrolado na entrecasca de tauari para sua proteção espiritual e para
ter bons reflexos. O tawari52 é uma árvore sagrada usada de forma geral
para a conexão com o mundo espiritual, a sua entrecasca, combinada com
o tabaco, forma um cigarro usado pelo pajé para curar, e o incenso é usado
para sarar dores de cabeça. Já seu fruto serve de isca para caçar diferentes
espécies animais.
Na sessão de pajelança o pajé canta e dança balançando o maracá,
defuma o ambiente com fumaça do seu cigarro, faz massagens e sucções a
fim de extrair e vomitar o ymaé, objeto que o espírito fez entrar no corpo
do doente. Zapu’y, por exemplo, quando foi acometido de feitiço por inveja,
adoeceu e quase morreu. A cura aconteceu numa sessão com dois pajés
52
São árvores de grande porte incluindo as espécies Couratari stellata e Cariniana
micranta, dentre as Lecythidaceae estão entre as mais altas alcançando até 60 m de altura,
reconhecidas pelas folhas simples e alternas, casca fibrosa e fissurada, com madeira de
cores vermelha a rosada em Cariniana e branca a amarelada em Allantoma e Couratari
(PROCOPIO et al., 2010).
176
durante a noite. No final da sessão ele viu duas baratas, e após sacudi-las
da sua camisa, elas sumiram como um encantado (SÁ, 2014; ZANNONI,
1999; WAGLEY; GALVÃO, 1961).
No imaginário tentehar o pajé é o ser misterioso capaz de acessar um
mundo inacessível às pessoas comuns. Também, representa a contradição
e o conflito existencial de viver entre o bem e o mal, entre a vida e a morte,
a ordem e a desordem, o equilíbrio e o desiquilíbrio. Ele é necessário, pois
cura, porém é perigoso, pode enfeitiçar e matar, por isso é temido. Por
vezes, eliminá-lo foi a alternativa usada pela sociedade para ter de volta o
controle da situação, reequilibrar novamente o sistema, em função de
mortes ocorridas e atribuídas ao pajé. (ZANNONI, 1999; UBBIALI, 2005).
Antes de iniciar o processo de cura o pajé realiza um inquérito para
identificar na fala do seu paciente a origem do mal. As dores de estômago
ou barriga que provoquem diarreia e vômitos podem ser atribuídas ao dono
da noite, tumuzu’hu. O pitwora, dono das fruteiras pode provocar desmaios.
Na cosmologia tentehar o piwára (espírito animal) do gavião, onça,
anta e sapo-cururu estão entre os mais poderosos e temidos, pois são
capazes de provocar a morte rápida de um caçador. Só os grandes pajés
conseguem controlar a doença desencadeada por ação de um desses
piwára. Afinal, para poder curar e cantar é preciso conhecer tudo a respeito
dos espíritos, da natureza e dos rituais (UBBIALI, 2005; ZANNONI, 1999;
WAGLEY; GALVÃO, 1961).
cura de uma doença não acontece por meio da ciência médica, os tentehar
abandonam o tratamento e recorrem ao remédio do mato e aos pajés. A
espiritualidade é devotada ao Deus cristão, Tupàn. O filme Ex-pajé (2018)
retrata situação semelhante vivida nessa TI. Um pajé Pater-Suruí é
transformado em ex-pajé após um pastor evangélico afirmar ser a
pajelança coisa do diabo. No desfecho da história o pajé tem seu lugar
restituído, e é levado ao hospital para curar uma moradora da aldeia que
se encontrava ali em coma há várias semanas.
O problema abordado no filme é bem comum em terras indígenas
maranhenses. Ao visitar os povos Gavião, Krikati e Kanela, vi que
missionários evangélicos estrangeiros residem com suas famílias há
bastante tempo nas principais aldeias. Um dos primeiros registros escritos
na língua tentehar, por exemplo, foram cartilhas e a bíblia (Tupàn Ze’Eg),
traduzidos por linguistas missionários do Summer Institute of Línguistics
(SIL) que viveram na Arariboia. Atualmente, muitos indígenas recebem
formação em missões. Convertidos, gravam CDs com músicas evangélicas.
Nos cultos semanais participam ativamente, cantam e dançam (SÁ, 2014).
Nas estratégias de convencimento à conversão ao credo cristão,
festas e práticas culturais indígenas são tidas como demoníacas. Em
algumas aldeias as pessoas já não se pintam, falam sua língua ou cantam
com o maracá, registrou Fred Matimu Guajajara. Para resistir à monocultura
da mente e o consequente esquecimento da sua ancestralidade na aldeia
Juçaral foi estabelecido um pacto interno: a religião de fora pode entrar,
mas ninguém pode impedir os tentehar de realizar seus rituais, pinturas
corporais e falar em sua língua. (SÁ, 2014).
Em uma atitude ousada, e consciente do poder dos pajés na tradição
ancestral Yanomami, Davi Kopenawa e o seu sogro, por exemplo, criaram
um centro de formação permanente de novos xamãs. A ação visa diminuir
os prejuízos ocasionados por grandes epidemias que dizimou parte de seu
povo e junto levou seus maiores xamãs. Na visão Yanomami a morte dos
xamãs representa também a morte da floresta, pois os xamãs cantam para
proteger e curar a floresta. Desse modo, todos nós sucumbiremos quando
179
rituais são para cumprir apenas formalidades. Não temos ethos porque não
aprendemos com as sabedorias de vida expressa nos mitos. “O que estamos
aprendendo em nossas escolas não é sabedoria de vida. Estamos
aprendendo apenas sobre tecnologias, acumulando informações”
(CAMPBELL, 1990, p. 22). Perdemos em sabedoria, nos esquecemos da
nossa memória histórica de médio e longo prazos, pois só recordamos de
processos históricos imediatos (ALMEIDA, 2018; MORIN, 2018; TOLEDO;
BARRERA-BASSOLS, 2015).
Irmanados em uma pedagogia da resistência e do cuidado com a vida
a maioria dos tentehar decidiu coletivamente continuar a luta por
salvaguardar a sociobiodiversidade existente no seu território. No Plano de
Gestão Territorial e Ambiental da Arariboia a Comissão dos Caciques e de
Lideranças Indígenas da terra indígena Arariboia (CCOCALITIA) reconhece
a força de seu modo de vida ancestral. Sem negar o apoio logístico e
tecnológico de várias instituições e órgãos governamentais parceiros, os
tentehar das várias regiões desse território, por meio deste documento,
optaram por viver a partir dos seus conhecimentos e saberes. Portanto,
continuam contrários à uniformidade imposta pelo pensamento moderno
industrial como único fundamento para existência.
Mesmo depois de cinco séculos de sucessivas tentativas para fazê-los
esquecer suas memórias, seus valores ancestrais, os povos indígenas
resistem. Experiências e pedagogias do bem viver indígena continuam
presentes nos seus quintais, nas suas celebrações rituais, nas suas práticas
de curas, nos seus sonhos, nos seus lugares de morada. Onde quer que
vivam, seja em pequenas aldeias, agrupamentos, vilas, povoados, a
margem de rodovias, e/ou em cidades, aldeias urbanas, agrupados ou não,
não esquecem de se pintar, enfeitar o corpo e o espírito para cantar um
modo de vida que não esqueceu o valor da mãe-terra.
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ARAUJO, Carlos Eduardo de; SÁ, Maria José Ribeiro de; ALMEIDA, Maria
da Conceição de. Para resistir à monocultura da mente: uma ode aos
saberes indígenas. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 36, p. 1-15,
2020.
Ex-Pajé. Escrito e dirigido por Luís Bolognesi. São Paulo: Buriti Filmes,
2018. Documentário (1 h 21 m). Disponível em:
https//www.youtube.com/watch?v=pjHAsIDbBEQ&ab_channel=YouTubeM
ovies. Acesso em: 03 nov. 2020.