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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL


UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE BRAGANÇA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGENS E SABERES NA AMAZÔNIA

JOSÉ AGNALDO PINHEIRO PEREIRA

O USO DE PINTURAS CORPORAIS ENTRE OS TENETEHAR TEMBÉ DA


REGIÃO DO ALTO RIO GUAMÁ E SEUS SIGNIFICADOS EM NARRATIVAS
MÍTICAS

Linha de Pesquisa: Memórias e Saberes Interculturais


Orientador: Prof. Dr. José Guilherme Fernandes

BRAGANÇA-PARÁ
2019
1

JOSÉ AGNALDO PINHEIRO PEREIRA

O USO DE PINTURAS CORPORAIS ENTRE OS TENETEHAR TEMBÉ DA


REGIÃO DO ALTO RIO GUAMÁ E SEUS SIGNIFICADOS EM NARRATIVAS
MÍTICAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Linguagens e Saberes na Amazônia, da Universidade Federal do Pará-
Campus Bragança- como requisito parcial da conclusão no Curso de
Mestrado em Linguagens e Saberes na Amazônia.

Linha de Pesquisa: Memórias e saberes interculturais


Orientador: Prof. Dr. José Guilherme Fernandes

BRAGANÇA-PARA
2019
2
3

JOSÉ AGNALDO PINHEIRO PEREIRA

O USO DE PINTURAS CORPORAIS ENTRE OS TENETEHAR TEMBÉ DA


REGIÃO DO ALTO RIO GUAMÁ E SEUS SIGNIFICADOS EM NARRATIVAS
MÍTICAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Linguagens e Saberes na Amazônia, da Universidade Federal do Pará-
Campus Bragança- como requisito parcial da conclusão no Curso de
Mestrado em Linguagens e Saberes na Amazônia.
Linha de Pesquisa: Memórias e saberes interculturais.

Orientador: Prof. Dr. José Guilherme Fernandes

DATA DA AVALIAÇÃO:______/_____/______

CONCEITO:____________________________

BANCA EXAMINADORA:

__________________________________________________________
Prof. Dr. José Guilherme Fernandes

___________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Roberto do Canto Lopes

___________________________________________________________
Prof. Dr. Carmen Lúcia Reis Rodrigues

BRAGANÇA-PARA
2019
4

À memória de meu Pai Joaquim de Souza


Pereira
A minha mãe Maria Miraci Pinheiro Pereira
5

AGRADECIMENTOS

Se a realização desta pesquisa só foi possível graças à colaboração de meus


interlocutores e coautores Tembé do Guamá e Gurupí, inicialmente quero agradecê-los por
terem permitido a conhecer alguns de seus saberes, crenças e histórias, que pertencem as suas
memórias coletivas. Agradeço a Nelson Tembé, Moreira Tembé, Pedro Teófilo Tembé, Israel
Tembé, Raimundinho Tembé, Kamirã Tembé, Naldo Tembé, Piná Tembé, Félix Tembé,
Sebastião Tembé, Pirimina Guajajara, Muruka’i Tembé, Tutui Tembé, dona Nenen Tembé,
Nica Tembé, Rebeca Tembé, Paulinho Tembé, Bewãri Tembé, Nonon Tembé, Antônio
Tembé, Fátima Romão, e demais jovens que contribuíram com a elaboração de dezenhos das
pinturas corporais. Também dedico a memória de Verônica Tembé, Chico Rico Tembé e
Augostinho Tembé.
Aos meus familiares Joaquim de Souza Pereira (pai) falecido em 2017, Maria Miraci
Pinheiro Pereira (mãe), Antônio Pinheiro Pereira (irmão), Antônia Andreia Pinheiro Pereira
(irmã), Miguel Elton Pinheiro Pereira (irmão), Nazaré Emilene Pinheiro Pereira (irmã),
Lidiane do Socorro Pinheiro Pereira (irmã), Francisco Gomes Moura (tio), Cícero Gomes
Moura (avô - in memoriam), Miguel Mendes Pereira (avô - in memoriam), Agostinha Mendes
de Souza (avó) e a todos os sobrinhos. Em muito devo a minha querida esposa Elizete dos
Reis Ribeiro, pelas orientações sobre os padrões das pinturas corporais Tembé e pela parceria
em momentos difíceis que atravessei durante a pesquisa. Aos meus amados filhos Lucas
Ribeiro Pereira, Cassius Luria Aguiar Pereira, Agnus Joaquim Ribeiro Pereira e Ângelus
Orfeu Ribeiro Pereira.
Aos amigos que direta e indiretamente ajudaram-me nesta pesquisa com suporte
material e discussões sobre a cosmologia dosTenetehar Tembé do Guamá, no contexto atual.
Sou grato aos professores José Rondinelle Coelho, Luiz Carlos Cunha, Fernando Nunes,
William Jaime e Arlindo Matos. Aos parceiros do mestrado com os quais compartilhei bons
momentos no aprendizado de novos conhecimentos aplicados a esta pesquisa: Ataíde,
Nilmara, Pedro, Lília, Carla, Francisco, Laura, Manuele, Samuel, Adelson, Gabi, Elziane,
Paula, Robson, Valessa e Mircéia, obrigado a todos.
Ao apoio da direção da Escola Padre Ângelo Moretti e, da Secretaria Executiva de
Educação-PA, que viabilizaram minha licença em sala de aula para a conclusão desta
pesquisa.
Ao professor José Guilherme Fernandes, que desde o início demonstrou interesse pelo
projeto de pesquisa e esteve presente nas orientações levantando indagações e proposições,
6

sobre as possíveis relações que poderiam existir entre as pinturas corporais e as narrativas
míticas, a você minha sincera gratidão e muito obrigado.
7

RESUMO

Esta pesquisa realizada em coautoria junto a meus interlocutores Tenetehar Tembé, da região
do Alto Rio Guamá-PA, se apresenta enquanto proposta de reflexão sobre os significados
simbólicos inerentes ao uso do jenipapo em forma de pinturas corporais tradicionais ou
pinturas dos mais velhos (Onça, Cuia, Tamatá, Tocaia/Ywán, Lua/Zahy, Onça
Jaguatirica/Marakaza, Menino e Menina Moça/Ywán) e, não tradicionais, ou invenções dos
mais jovens (Borboleta/Panám, Jibóia, Rastro da Onça e Jabuti), na cosmológia Tembé,
enquanto saberes coletivos de expressão simbólica material e imaterial, que no contexto da
função de uso obrigatório nos rituais, envolve regras, interdições e tabus, na “passagem” dos
iniciados da infância para a vida adulta. São representações de uma dentre as diferentes
interfaces da cosmologia Tenetehar Tembé e Guajajara, as quais são possíveis de serem
acessadas e compreendidas, a partir da interpretação de suas narrativas míticas “A história dos
Tenetehar” (Nelson Tembé, 2018), “A Festa dos Animais” e “A Origem da Festa do Mel”
(Nimuendaju, 1951), “A história da Onça Aé” (Moreira Tembé, Ideflor-Bio, 2016), “Criação
do Homem” e “A Estrela que acompanha a Lua” (Wagley e Galvão, 1961), “A história de
Zahy” (Reis, 2014), “Mito do Jenipapo” e “Mito da Menina Onça” (Tutui Tembé, 2019), e do
que denominam de ciência do jenipapo, acionada no pré-ritual da Tocaia e nos rituais de
iniciação do Mingau da Menina Moça e da Festa da Menina Moça/Wirau haw. Levanto a
hipótese que o entendimento dos significados simbólicos e das funções de uso das pinturas
corporais elaboradas em seus rituais é possível a partir da interpretação das memórias de suas
narrativas míticas e, dos saberes inerentes a ciência do jenipapo, indispensáveis para a
compreensão da passagem dos iniciados da infância para a vida adulta e, na construção da
autoidentidade étnica ao preparar os corpos e a persona das novas gerações. A metodologia
utilizada nesta pesquisa em abordagem qualitativa se deu, a partir da observação e
participação direta na realidade sociocultural das aldeias pesquisadas, no diálogo espontâneo e
na gravação de entrevistas semiestruturadas sobre as narrativas míticas e o uso de pinturas
corporais com pajés, cantores, lideranças e jovens Tembé do Guamá e do Gurupí. Utilizei-me
do aporte teórico da literatura clássica e contemporânea sobre os Tenetehar Tembé e
Guajajara, e de outros grupos Tupí da Amazônia oriental e ocidental para fins comparativos
em Dodt (1939), Nimuendajú (1951), Wagley e Galvão (1961), Gomes (1977:2002), Arnoud
(1984/85), Alonso (1996), Zannoni (1999; 2002), Sales (1999), Neves (2015), Reis (2014) e
Coelho (2014), aliado ao enfoque multidisciplinar em História, Sociologia, Etnografia e
Antropologia em Cunha (1992), Pollak (1989), Halbwachs (1990), Sahlins (1990), Laraia
(1986), Ortiz (1987), Strauss (1958; 1962; 1964; 1966; 1978), Eliade (1972), Castro (1977),
Lagrou (1989),Vidal (1992) e Gallois (2007). A pesquisa de campo foi realizada nas aldeias
Ytaputyr, São Pedro e Sede e, sua relevância contempla a valorização de outras formas de
construção, agenciamento e empoderamento de conhecimentos que incidem na construção da
identidade étnica dos Tembé do Guamá.

Palavras-chaves: Tenetehar Tembé, Pinturas Corporais, Mitos, Memórias, Identificações.


8

ABSTRACT

This research carried out in co-authorship with my interlocutors Tenetehar Tembé, from the
Upper Rio Guamá-PA region, presents itself as a proposal for reflection on the symbolic
meanings inherent to the use of genipap in the form of traditional body paintings or “paintings
of the elderly” ( Onça, Cuia, Tamatá, Tocaia / Ywán, Lua / Zahy, Oagu Jaguatirica /
Marakaza, Boy and Girl Moça / Ywán) and, non-traditional, or “inventions of the youngest”
(Borboleta / Panám, Jibóia, Rastro da Onça and Jabuti ), in Tembé cosmology, as collective
knowledge of symbolic material and immaterial expression, which in the context of the
function of mandatory use in rituals, involves rules, interdictions and taboos, in the “passage”
of initiates from childhood to adulthood. They are representations of one of the different
interfaces of the Tenetehar Tembé and Guajajara cosmology, which are possible to be
accessed and understood, based on the interpretation of their mythical narratives “The history
of Tenetehar” (Nelson Tembé, 2018), “A Festa dos Animals ”and“ The Origin of the Honey
Festival ”(Nimuendaju, 1951),“ The history of Onça Aé ”” (Moreira Tembé, Ideflor-Bio,
2016), “Creation of Man” and “The Star that accompanies the Moon” ( Wagley and Galvão,
1961), “The story of Zahy” (Reis, 2014), “Mito do Jenipapo” and “Mito da Menina Onça”
(Tutui Tembé, 2019), and what they call “science of genipap”, triggered in the pre-ritual of
Tocaia and in the initiation rituals of Porridge of Menina Moça and Festa da Menina Moça /
Wirau haw. I raise the hypothesis that the understanding of the symbolic meanings and the
functions of use of the body paintings elaborated in their rituals, is possible from the
interpretation of the memories of their mythical narratives and from the knowledge inherent to
the “science of genipap”, indispensable for the understanding the passage of initiates from
childhood to adulthood, and in the construction of ethnic self-identity by preparing the bodies
and persona of new generations. The methodology used in this research in a qualitative
approach, was based on the observation and direct participation in the sociocultural reality of
the researched villages, in the spontaneous dialogue and in the recording of semi-structured
interviews about mythical narratives and the use of body paintings with shamans, singers,
leaders and young people from Tembé do Guamá and Gurupí. I used the theoretical
contribution of classical and contemporary literature on the Tenetehar Tembé and Guajajara,
and other Tupí groups in the eastern and western Amazon for comparative purposes in Dodt
(1939), Nimuendajú (1951), Wagley and Galvão (1961), Gomes (1977: 2002), Arnoud
(1984/85), Alonso (1996), Zannoni (1999; 2002), Sales (1999), Neves (2015), Reis (2014)
and Coelho (2014), combined with the multidisciplinary focus on History, Sociology,
Ethnography and Anthropology in Cunha (1992), Pollak (1989), Halbwachs (1990), Sahlins
(1990), Laraia (1986), Ortiz (1987), Strauss (1958; 1962; 1964; 1966; 1978) , Eliade (1972),
Castro (1977), Lagrou (1989), Vidal (1992) and Gallois (2007). The field research was carried
out in the Ytaputyr, São Pedro and Sede villages and, its relevance includes the valorization of
other forms of construction, agency and empowerment of knowledge that affect the
construction of the ethnic identity of the Tembé do Guamá.

Keywords: Tenetehar Tembé, Body paintings, Myths, Memoirs, Identification.


9

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

T.I - Terra Indígena

SPI - Serviço de Proteção ao índio

RIARG - Reserva Indígena Alto Rio Guamá

TIARG - Terra Indígena Alto Rio Guamá

FUNAI - Fundação Nacional do Índio

CIMI - Conselho Indigenista Missionário

FUNASA - Fundação Nacional de Saúde

SEDUC - Secretaria Estadual de Educação do Pará

INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

UFPA - Universidade Federal do Pará

MPF - Ministério Público Federal


10

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Municípios que compõe a TIARG e que fazem fronteira com esta terra indígena . 17

Figura 2 - Mapa etno-histórico de Curt Nimuendajú da migração dos Teneteharar Tembé .... 32

Figura 3 - Cacique Pedro Teófilo Tembé e Pajé Chico Rico no ritual Wirau haw - Aldeia
Ytaputir ..................................................................................................................................... 43

Figura 4 - Preparo do jenipapo por mulher e meninos iniciados para o ritual Wirau haw ....... 58

Figura 5 - Pintura Corporal Onça Pintada em homem adulto e criança Tembé, aldeia Sede... 88

Figura 6 - Pintura Corporal Cuia .............................................................................................. 91

Figura 7 - Pintura Corporal Tamata .......................................................................................... 92

Figura 8 - Pintura corporal Tocaia/Ywán/Mãed’água .............................................................. 97

Figura 9 - Pintura corporal feminina Lua/Zahy, usada no ritual do Mingau da Menina Moça
................................................................................................................................................ 102

Figura 10 - Pintura corporal Onça Jaguatirica (Marakaza) .................................................... 103

Figura 11 - Pintura corporal Lua/Zahy ................................................................................... 107

Figura 12 - Pintura corporal Menina Moça/Ywán/Mãe d’água usada no ritual Wirau haw .. 111

Figura 13 - Pintura corporal Borboleta/Panám ....................................................................... 114

Figura 14 - Pintura corporal Jiboia ......................................................................................... 116

Figura 15 - Pintura corporal Rastro da Onça/ZawarPipor ...................................................... 117

Figura 16 - Pintura corporal Jabuti/Zawxi (pintura multiétnica) ............................................ 118

Figura 17 - Ritual das Crianças .............................................................................................. 126

Figura 18 - Mingau da Menina Moça ..................................................................................... 126

Figura 19 - Festa do Moqueado - Pajé Nelson Tembé organizando o encerramento do ritual


................................................................................................................................................ 127
11

Figura 20 - Festa do Moqueado - meninos e meninas Tembé ornamentados no ritual Festa do


Moqueado ............................................................................................................................... 127

Figura 21 - Pajé Chico Rico junto de meninas iniciadas e cantores Felix Tembé e Moreira
Tembé ..................................................................................................................................... 128

Figura 22 - Meninos inicados recebendo pintura facial ......................................................... 128

Figura 23 - Maracás: principal intrumento musical usado nos rituais de iniciação ............... 128

Figura 24 - Desenhos das pinturas corporais Onça Pintada, Lua/Zahy e Borboleta/Panàm .. 129

Figura 25 - Desenhos da pintura corporal Cuia ...................................................................... 129

Figura 26 - Desenho da pintura corporal Borboleta/Panàm ................................................... 129

Figura 27 - Desenhos da pintura corporal Tamata ................................................................. 130

Figura 28 - Desenhos da pintura corporal Jabuti .................................................................... 130


12

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14

CAPÍTULO I – OS TENETEHAR TEMBÉ DO GUAMÁ NO PERCURSO DA


HISTÓRIA NA T.I ALTO RIO GUAMÁ ............................................................................. 26
1.1 TEMPOS DE VERÔNICA TEMBÉ E A LUTA PELA UNIÃO ENTRE OS
TENETEHAR TEMBÉ DO GURUPÍ E GUAMÁ .............................................................. 35
1.2 O “(RE)SURGIMENTO” DAS PINTURAS CORPORAIS NO PROCESSO DE
REORGANIZAÇÃO POLÍTICA E SOCIOCULTURAL DOS TEMBÉ DO GUAMÁ .. 37
1.3 A CONTRIBUIÇÃO DO PAJÉ CHICO RICO TEMBÉ NA SOCIALIZAÇÃO DE
SABERES TENETEHAR ENTRE OS TEMBÉ DO GUAMÁ .......................................... 41

CAPÍTULO II – A “CIÊNCIA DO JENIPAPO” NA COSMOLOGIA TENETEHAR E


SEUS SIGNIFICADOS E FUNÇÕES NO USO DAS PINTURAS CORPORAIS .......... 44
2.1 A RELAÇÃO E INTERAÇÃO DOS TEMBÉ DO GUAMÁ COM OS CARUWARAS49
2.2 USO E FUNÇÃO DO JENIPAPO NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA
DOS TEMBÉ DO GUAMÁ ................................................................................................... 54
2.2.1 Mito do Jenipapo ............................................................................................................. 60

CAPÍTULO III – NARRATIVAS MÍTICAS TENETEHAR “CHAVES” PARA


ACESSAR OS SIGNIFICADOS DAS PINTURAS CORPORAIS DE RITUAIS ........... 62
3.1 MITO, MEMÓRIA E IDENTIDADE ............................................................................ 62
3.2 NARRATIVAS MÍTICAS TENETEHAR SOBRE MAÍRA, MAÍRA IRA E
MUCURA IRA ........................................................................................................................ 70
3.1.1 A história dos Tenetehar................................................................................................... 70
3.1.2 Criação do Homem .......................................................................................................... 73
3.3. NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE FESTAS DE ANIMAIS ....................................... 74
3.3.1 A festa dos animais .......................................................................................................... 74
3.3.2 A origem da festa do mel ................................................................................................. 75
3.3.3 História da Onça Aé (Ae Zawar Rehe) ............................................................................ 76
3.4 NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE A LUA/ZAHY ........................................................ 79
3.4.1 O mito de Zahy ................................................................................................................ 79
3.4.2 A história de Zahy ............................................................................................................ 80
3.4.3 Tupã faz a Lua ................................................................................................................. 81
13

3.4.4 A Estrela que acompanha a Lua ....................................................................................... 82


3.5 NARRATIVA MÍTICA SOBRE A ORIGEM DA ONÇA ............................................. 82
3.5.1 Mito da Menina Onça ...................................................................................................... 82

CAPÍTULO IV – PINTURAS CORPORAIS TENETEHAR TEMBÉ E SEUS


SIGNIFICADOS COSMOLÓGICOS EM NARRATIVAS MÍTICAS ............................. 84
4.1 PINTURAS CORPORAIS DOS MAIS VELHOS DO GUAMÁ E GURUPÍ ............ 86
4.1.1 Pinturacorporal Onça Pintada /Zawar Pinim ................................................................... 86
4.1.2 Pintura corporal Cuia/Kawaw ......................................................................................... 88
4.1.3 Pintura corporal Tamatá ................................................................................................... 91
4.2 PINTURAS CORPORAIS DOS MAIS VELHOS USADAS PELOS INICIADOS
NOS RITUAIS ........................................................................................................................ 92
4.2.1 Pintura corporal Tocaia/Ywán/Mãed’água usada pela menina moça iniciada no pré-ritual
da Tocaia ................................................................................................................................... 92
4.2.2 Pintura corporal Lua/Zahy usada pela menina moça no ritual do Mingau da Menina
Moça ......................................................................................................................................... 97
4.2.3 Pintura corporal Onça Jaguatirica (Marakaza) usada pela iniciada no ritual do Mingau da
Menina Moça .......................................................................................................................... 102
4.2.4 Pintura corporal Lua/Zahy usada pelo menino iniciado no ritual Wirau Haw/Festa da
Menina Moça .......................................................................................................................... 103
4.2.5 Pintura corporal Menina Moça/Ywán/Mãe d’água usada no ritual da Menina Moça... 107
4.3 PINTURAS CORPORAIS OU INVENÇÕES DOS MAIS JOVENS. .......................111
4.3.1 Pintura corporal Borboleta/Panám................................................................................. 112
4.3.2 Pintura corporal Jiboia ................................................................................................... 114
4.3.3 Pintura corporal Rastro da Onça/Zawar Pipor ............................................................... 116
4.3.4 Pintura corporal Jabuti/Zawxi (pintura multiétnica) ..................................................... 117

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 119

REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 122

ANEXOS................................................................................................................................ 125
14

INTRODUÇÃO

A proposta de fazer pesquisa junto aos Tenetehar Tembé da região do Alto Rio
Guamá/PA1 nas aldeias Sede, São Pedro e Ytaputyr2, surgiu a partir da boa relação pessoal e
profissional estabelecida nas referidas aldeias, entre 2004 e 2013, quando trabalhei junto a
comunidade escolar na condição de docente nas disciplinas de História e Cultura e Identidade.
Essa experiência despertou meu interesse sobre aspectos da cosmologia deste grupo Tupí, a
exemplo do uso do jenipapo3em forma de pinturas corporais e de suas diferentes funções nas
fases da vida do Tembé, além de sua relação com os caruwaras em pré-ritual e nos rituais de
iniciação da menina moça.
Minha inserção entre os Tembé do Guamá ocorreu a partir de agosto de 2004, mediada
pelo professor José Maria4 e pelo amigo Antônio Nazareno Aguiar5, crente que eu não iria

1
Compreende o grupo étnico do Tronco Tupí, da família linguística Tupí-Guarani, que habitam o extremo Norte
da Terra Indígena Alto Rio Guamá (TIARG) criada em 1945, e homologada em 1993, que se estende por uma
área de 279. 987 hectares entre os municípios de Paragominas, Nova Esperança do Piriá e Santa Luzia do Pará,
localizados no Nordeste do estado do Pará. Conhecidos como Tembé do Guamá distribuem-se em um conjunto
de dez aldeias a margem direita do rio Guamá e em outras cinco aldeias para o interior da TI. O uso da grafia
Tenetehar seguiu as orientações do professor Tina’i Tembé, e o significado corrobora com a definição
apresentada por Zanonni (2002), enquanto “autodenominação que significa: Ten (ser) ete (verdadeiro, real) hara
(nós) = nós somos o povo verdadeiro”. (ZANONNI, 2002, p. 14). A partir dos estudos de Carl Harrison na
década de 70, Gomes (1977; 2002) expôs a formação da palavra “Tenetehar” composta pelo verbo /ten/ “ser”
mais o qualificativo /ete/ “intenso”, “verdadeiro” e o substantivizador /har(a) “aquele, o”. Quer dizer, em fim, “o
ser íntegro, gente verdadeira”. (GOMES, 1977; 2002, p. 47). Os Tembé do Guamá se autoreconhecem e são
reconhecidos perante a sociedade nacional e por outros grupos étnicos como povo indígena. A autodenominação
Tenetehar refere-se aos Tembé e aos Guajajara.
2
Aldeias localizadas a margem direita do rio Guamá. A aldeia Sede surgiu em 1945, quando da criação do Posto
Indígena Guamá pelo SPI, órgão oficial responsável pela política indigenista no Brasil (SALES, 1999).
Atualmente é a maior e mais habitada das aldeias do Guamá com aproximadamente 35 famílias e 175 indígenas.
A aldeia São Pedro surgiu em 1964, sendo a segunda maior das aldeias com aproximadamente 30 famílias e 120
indígenas. A aldeia Ytaputyr surgiu ao final da década de 50 e têm 9 famílias, com 36 indígenas. Estes dados
temdem a modificar-se devido a migrações internas individuais, ou de famílias de uma aldeia para outra por
diversas razões e interesses.
3
Fruto em forma ovalóide do jenipapeiro da família das Rubiaceae, de origem na América Tropical e Índia
Ocidental, que mede entre 6 a 9 cm. de diâmetro, de cor azul-escuro e casca rugosa, com polpa marrom clara e
grande quantidades de sementes claras e achatadas. Zanipaw é sua nomeação na língua Tembé.
4
Conhecido como professor Zezinho, que atuava a serviço do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) nas
aldeias Frasqueira, Tawarí e Ytaputyr. Atualmente vem desenvolvento trabalho de pesquisa junto a etnia dos
Kaapor, no estado do Maranhão.
5
Profissional que trabalhava nos serviços de contabilidade da AGITARGMA, associação indígena Tembé
gerenciando serviços e demandas na área da saúde nas aldeias do Guamá.
15

recusar a proposta de trabalho nas escolas Tembé6. Nesse ano lecionei na Escola Anexo Félix
Tembé, aldeia Sede, e entre 2005 e 2013, passei a lecionar na Escola Anexo Francisco Magno
Tembé, aldeia São Pedro, e na Escola Anexo Ytaputyr7, aldeia Frasqueira.
Meu engajamento em atividades e ações coletivas na comunidade escolar,
representada por caciques, lideranças, conselheiros, pais, alunos e professores não indígenas,
foi decisivo para que eu pudesse vivenciar uma experiência próxima e ser aceito entre os
grupos das aldeias, e, assim, acessar de modo menos intruso as especificidades da complexa e
dinâmica relação que envolve o uso das pinturas corporais nos rituais de iniciação,
constituindo saberes entendidos por meus interlocutores e tradutores enquanto cultura dos
mais velhos8, a exemplo das pinturas corporais9 e das narrativas míticas10.
Na década de 90 do século XX, as pinturas corporais foram retomadas no contexto de
reorganização da luta política em defesa do território e pelo reconhecimento étnico. Este
processo de renovação permanente de práticas culturais em curso há quase três décadas,
ganhou relevância na práxis dos rituais de iniciação de crianças e jovens, na valorização dos
conhecimentos e das tradições do povo Tembé, na proteção dos recursos da natureza e, pela
interação com seus donos caruwaras11.

6
Havia escassez de profissionais da educação para atuarem nas escolas das aldeias, o que levou a minha
contratação na condição de professor temporário pela Secretaria Estadual de Educação do Pará (SEDUC-PA).
7
Atualmente devido a divergências internas entre os indígenas das aldeias Frasqueira e Ytaputyr, esta escola foi
renomeada para Escola Anexo Felipe Romão Tembé.
8
Quando usam a expressão cultura dos mais velhos, os Tembé do Guamá referem-se a língua, as narrativas
míticas, as cantorias, aos rituais e as práticas de pajelança, ao artesanato, a prática da caça e da pesca, ao
conhecimento sobre os espaços da natureza e de seus donos caruwaras.
9
No capitulo IV, trato das pinturas corporais e da tradução/interpretação de seus significados a partir das
narrativas orais e escritas Tenetehar Tembé e Guajajara, classificando-as segundo os Tembé do Guamá e do
Gurupí em pinturas dos mais velhos (Onça, Cuia, Tamatá, Tocaia/Ywán, Menina Moça/Ywán e Menino) e
invenção dos mais jovens (Borboleta/Panám, Onça Marakaza, Jibóia, Jabuti/Zawxi).
10
Compreende um repertório de narrativas orais e escritas Tembé registradas em pesquisas de Nimuendaju
(1951), Reis (2014), Coelho (2014), Neves (2015) e Idelflor-Bio (2016). Também envolve narrativas que são
comuns aos Tenetehar Guajajara em Wagley e Galvão (1961) e Zanonni (1999). As narrativas míticas
selecionadas para a interpretação dos significados das pinturas corporais pesquisadas estão presentes no capitulo
III.
11
No capítulo II, com base em Laraia (1986) e Wagley e Galvão (1961) procurei lidar com esta categoria, que se
refere a uma diversidade de espíritos que interagem em diferentes contextos com os Tembé do Guamá,
principalmente no Wirau haw, se manifestando por incorporação e transe, enquanto. São espíritos de parentes
mortos, de entidades como o ser Ywán/Mãe d’água e, de animais como arara vermelha, onça ou veado, e que
habitam lugares no céu, nas matas, no subterrâneo, em fundos de rios e igarapés.
16

Após um período de distanciamento de três anos retornei às aldeias para realizar esta
pesquisa em 2017, o que me levou a um novo reencontro com meus interlocutores em
contexto sociocultural de relativa mudança, quando passei a perceber, a partir das
informações de meus interlocutores, que as pinturas corporais não apenas ganhavam novas
configurações estéticas nos corpos de crianças, jovens e adultos nas performances das
brincadeiras Caê Caê12 e nos rituais do Káwi’ uhaw/Mingau da Menina Moça13 e Wirau
haw/Festa da Menina Moça/Festa do Moqueado 14, mas também constituem linguagem
simbólica que se relaciona às narrativas míticas dos Tenetehar e, podem ser compreendidas
por meio destas.
Obsevei que as pinturas corporais representam e traduzem por meio de suas
simbologias, saberes em forma de valores, crenças, regras e tabus, implícitos nas narrativas
míticas orais e escritas, que expressam memórias coletivas dos Tenetehar Tembé e Guajajara,
profundamente marcada pela herança da colonização e transculturação, sob a hegemonia do
racionalismo ocidental, que segundo Santos (2008), “[...] é também um modelo totalitário, na
medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não
pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas [...]”.
(SANTOS, 2008, p. 21).

12
Expressão usada em uma das cantorias dos Tembé, que foi renomeada nas aldeias do Guamá, a partir da
influência do pajé Nelson Tembé em 1993, referindo-se as cantorias e danças que ocorrem durante uma noite
que celebra, dentre outros motivos, a recepção da visita de parentes entre as aldeias do Guamá e do Gurupí, bem
como ao ensaio e aprendizado de cantorias pelos mais jovens, sob a orientação de um cantor mais experiente.
13
O Mingau da Menina Moça, é um breve ritual que ocorre durante um dia de preparação das habilidades e do
corpo da jovem Tembé na realização do seu primeiro mingau de mandiocaba, envolvendo o cumprimento de
regras e ocorre posteriormente ao pré-ritual da Tocaia.
14
A expressão Festa do Moqueado usada pelos Tembé do Guamá e do Gurupí, assim como entre os Guajajara,
foi elaborada por regionais segundo Wagley e Galvão (1961, p. 94). A expressão Festa da Menina Moça,
também adotada pelos dois grupos é uma renomeação, no entanto, as duas expressões não correspondem ao
significado da expressão Wirau haw empregada pelos Tembé do Gurupí e do Guamá. Segundo o cantor Paulo
Tembé, o termo refere-se a “passagem dos donos do lugar”, enquanto para o pajé Nelson Tembé, compreende a
“passagem das donas do lugar”. Já o experiente cantor Chico Tembé referiu-se a ela como a “passagem do
gavião”. Wirau haw é um complexo ritual que ocorre durante uma semana e destina-se a iniciação da passagem
para a vida adulta de meninos e meninas. Optei por adotar as três expressões, pois elas traduzem o exemplo do
processo de transculturação que permeia a identidade étnica dos Tembé do Guamá na atualidade.
17

Figura 1 - Municípios que compõe a TIARG e que fazem fronteira com esta terra indígena

Fonte: Ideflor-Bio, 2017.


18

Acessar a correlação entre pinturas corporais e narrativas míticas na cosmologia dos


Tembé do Guamá foi possível graças à permissão e aceitação dos meus interlocutores,
considerando meu contato anterior com o pajé Chico Rico Tembé15e sua esposa Pirimina
Guajajara16, Félix Tembé17, Pedro Teófilo Tembé18 e, mais recentemente, ao pajé Nelson
Tembé/Arakampurí19, Moreira Tembé/Wewer20, Lourenço Tembé21, Fátima Romão22, dentre
outros, além de minha participação em rituais de iniciação desde o ano de 2006, nas aldeias
Ytaputyr, Sede e São Pedro.
O interesse em pesquisar o uso de pinturas corporais entre os Tembé do Guamá, se deu
por algumas razões. Em primeiro lugar, porque elas representam e configuram saberes
tradicionais, denominados pelos mais velhos das regiões do Guamá e do Gurupí de ciência do

15
O pajé Paxik Tembé conhecido pelo nome Chico Rico nas aldeias do Guamá e Gurupí, faleceu em 2012, onde
tornou-se uma das maiores referências da resistência e reorganização cultural entre os Tembé do Guamá. Ao
lado de sua esposa Pirimina Guajajara atuou na reintrodução do uso da língua e das cantorias Tembé, dos saberes
inerentes ao pré-ritual da Tocaia, dos rituais de iniciação das crianças e dos jovens na aldeia Ytaputyr.
16
Pirimina Guajajara é uma indígena muito prestigiada entre os Tembé do Guamá, não apenas pelo fato de ter
sido esposa de Chico Rico, mas por ser uma referência no conhecimento da ciência dos mais velhos, que envolve
o preparo de purag/remédios e das normas que os jovens iniciados são submetidos no Wirau haw.
17
Meu principal interlocutor e informante sobre o processo de renovação das práticas culturais dos Tembé do
Guamá. Félix Tembé, além de cantor experiente em rituais da Festa do Moqueado, atuou diretamente em
missões na década de 90 para expulsar invasores da T.I Alto Rio Guamá e, após a vinda de Chico Rico para a
aldeia Ytaputyr em 2009, tornou-se um dos principais ativistas no fortalecimento e manutenção da cultura
Tenetehar.
18
Cacique da aldeia Ytaputyr e, principal apoiador das ações de Chico Rico e outros parentes na realização dos
rituais de iniciação entre 2009 e 2012.
19
Estimado pajé de 73 anos, que atua nas aldeias Tembé do Guamá e Gurupí, bem como entre os Guajajara do
maranhão na região do Pindaré, onde atualmente reside na aldeia Tabocal. Foi quem iniciou o primeiro
movimento de renovação das práticas culturais (língua, cantorias, brincadeiras Caê Caê e pinturas corporais) nas
aldeias do Guamá durante o processo de luta e reorganização entre 1992 e 1993. Após vinte anos ausentes das
aldeias do Guamá retornou a convite dos parentes para a realização do Wirau haw em abriu de 2018, na aldeia
São Pedro. Sua contribuição nesta pesquisa foi decisiva para que eu pudesse ter mais clareza sobre o uso do
jenipapo pelos jovens iniciados nas fases dos rituais, nos saberes inerentes a expressão ciência do jenipapo, das
especificidades das pinturas corporais e do sentido cosmológico da categoria caruwara.
20
Respeitado cantor de 76 anos, sendo participande assíduo em Festa da Menina Moça nas aldeias do Guamá e
Gurupí, além de exímio conhecedor da cultura dos mais velhos, atuando também na pajelança durante os riruais.
Suas informações sobre a Onça Aé, e o uso do jenipapo pelos iniciados foi de grande relevância durante a
pesquisa de campo.
21
Liderança Tembé do Gurupí que se orgulha da ascendência Timbira, Lourenço contribuiu com informações
sobre o papel de Verônica Tembé e, do uso das pinturas corporais no início da reorganização cultural dos Tembé
do Gurupí no início da década de 80.
22
Parteira não indígena que foi casada com Antônio Romão Tembé, com quem morou por mais de 25 anos em
aldeias do Gurupí, sendo conhecedora do uso de ervas e das normas que regem o ritual Wirau haw. Suas
informações em muito contribuiram para minha pesquisa sobre as pinturas corporais.
19

jenipapo23, que simbolicamente por intermédio do jenipapo/zanipaw compreende uma das


interfaces da cosmologia dos Tenetehar, presente no ritual das Crianças24, no pré-ritual da
Tocaia25 e, nos rituais de iniciação feminina do Mingau da Menina Moça e da Festa do
Moqueado, bem como por estarem relacionadas aos sobrenaturais caruwaras, seus
verdadeiros donos.
A segunda razão está na observação, de os significados das pinturas corporais
tradicionais estarem correlacionados às memórias das narrativas míticas dos Tenetehar, fonte
histórica de interpretação que permite identificar, a partir de suas funções de uso, a
transmissão de valores, normas e tabus, que atualmente vem sendo agenciados pelos jovens
iniciados nos referidos rituais. Deste modo, entendo que a reflexão a partir da interpretação do
discurso das narrativas míticas e, dos relatos orais26identificados durante a pesquisa de campo,
foi imprescindível para o entendimento das funções de uso e dos significados das pinturas
corporais feitas do sumo do jenipapo, que foi entregue aos Tenetehar pelo caruwara Maíra,
onde apresentam especificidades mediante o contexto sociocultural em que são acionadas.
Uma terceira razão a considerar, se refere ao agenciamento e empoderamento das
pinturas corporais dos mais velhos, após a introdução entre os Tembé do Guamá, do ritual
Wirau haw em 2003, se destacando a pecurialidade do uso das pinturas corporais de rituais
(Onça/Zawar, Cuia/Kawaw, Tamatá, Lua/Zahy, Tocaia/Ywán, Onça Marakaza, Menino e
Menina Moça/Ywán), obrigatórias na passagem dos iniciados da infância para a vida adulta e,
contribuindo na construção da autoidentidade étnica das novas gerações.

23
Esta categoria é usada pelos homens e mulheres mais velhos do Guamá e Gurupí e, se refere a um conjunto de
saberes que representam funções, normas, tabus e restrições, sobre o uso do jenipapo nas fases da vida da criança
e dos jovens iniciados, bem como sua relação aos sobrenaturais caruwaras.
24
Trata-se de um breve ritual que inicia as crianças no contexto da sociedade Tembé, para que elas possam
comer certos alimentos e frequentar espaços naturais sem que sejam acometidas por doenças ocasionadas por
ações negativas de caruwaras.
25
Trata-se de um período de preparação corporal e espiritual da jovem iniciada, que após a primeira menstruação
recebe uma pintura corporal em todo o seu o corpo, denominada pintura da Tocaia, onde passa a ficar reclusa no
quarto de sua casa e orientada sobre normas e restrições alimentares.
26
Aqui, estabeleço a diferença entre mito e relato oral, ou seja, o primeiro está relacionado a reflexão mítica
enquanto o segundo ao pensamento abstrato racional que constitui a história ocidental. Os relatos orais de cunho
históricos coletados em campo apresentam características transculturais, pois combinam elementos da história
ocidental com características do pensamento mítico. Notei que existem diferenças entre o discurso da narrativa
mítica contada pelos mais velhos (Félix Tembé, Nelson Tembé, Moreira Tembé e Pedro Teófilo), que parecem
insistir por meio desta em rememorar o pensamento mítico, em relação aos relatos orais contados pelos mais
jovens, onde predomina o discurso da história ocidental, porém, atravessado pelas lembranças míticas.
20

Quanto às pesquisas etnográficas e antropológicas realizadas no século XX, e nas duas


primeiras décadas do século atual sobre os Tembé do Guamá, observei que pouco interesse foi
dado às funções de uso do jenipapo e dos significados simbólicos das pinturas corporais no
contexto dos rituais, e menos ainda sua correlação as narrativas míticas e aos relatos orais.
Compreendo que isto resultou de contradições nos estudos antropológicos que passaram a
priorizar graus de distintividades e de interesses sobre os povos estudados27, trazendo
consequências negativas aos Tembé do Guamá, ao longo de sua história contemporânea de
relações interétnicas com a sociedade não indígena, quando estiveram sob a tutela do Estado
via SPI entre 1945 e 1967, e mais recentemente, sob a gestão da FUNAI a partir de 1970.
O regime de tutela se deu sob a direção dos órgãos oficiais com base em diretrizes de
assimilação e integração, que contribuíram para a alienação da identidade étnica do grupo, de
modo que os discursos oficiais a partir de 1920, somados aos discursos regionais entre a
década de 70 e os anos 90, supunham que eles haviam perdido seus distintivos culturais que
os identificavam enquanto povo indígena28.
As leituras e reflexões sobre as escassas informações no uso do jenipapo, em forma de
pintura corporal, entre os Tembé do Gurupí em Dodt (1939), o seu uso nos rituais de iniciação
em Wagley e Galvão (1961), Zanonni (1999; 2002), Reis (2014) e Coelho (2014), me levou a
redimensionar o olhar para certas relações de continuidade, descontinuidade e contradições
que perpassam as pesquisas dos referidos autores, em relação as informações elencadas sobre
o uso de pinturas corporais pelos Tenetehar Tembé e Guajajara.
A partir da abordagem etnográfica em Wagley e Galvão (1961) e Zanonni (1999;
2002), sobre o pré-ritual da Tocaia e os rituais Mingau da Menina Moça e Wirau haw/Festa da
Moça, entre os Guajajara do Maranhão, elaborei inferências comparativas quanto a função de
uso e os significados simbólicos das pinturas corporais, a partir de diálogos informativos com

27
Os estudos etnológicos em Oliveira (1994) trazem abordagem crítica sobre a emergência ou ressurgimento das
identidades de povos indígenas no Nordeste nos anos 90 do século XX, o que possibilita problematizar e
contextualizar o desinteresse dos estudos etnográficos e etnológicos sobre os Tembé do Guamá, por sua vez
amparados em discurso hegemônico e assimétrico de americanistas europeus.
28
O discurso oficial a cerca da identidade étnica dos Tembé do Guamá no século XX, esteve paltado em
justificava negacionista, a partir dos estudos antropológicos embasados na teoria americanista da aculturação.
Sales (1999), ao final dos anos 80, já apontava o pouco interesse dado as pesquisas quanto aos saberes
tradicionais que estavam ativos entre os Tembé do Guamá, e de outros que estavam sendo retomados no
processo objetivado de reorganização da luta em defesa do território no início dos anos 90, como as pinturas
corporais, a língua, as cantorias, as narrativas orais míticas e as crenças nos caruwaras.
21

o pajé Nelson e organizadores experientes na realização dos referidos rituais nas aldeias
pesquisadas.
O trabalho com as narrativas míticas Tenetehar, se deu a partir da seleção e
interpretação de mitos Tembé em Nimuendaju (1951), a exemplo do “Mito dos Gêmeos e o
Karuwara”, “A Origem da Festa do Mel” e “A Festa dos Animais”; em Wagley e Galvão
(1961), os mitos Guajajara “Criação do Homem” e “A Estrela que acompanha a Lua”; em
Reis (2014), “A história de Zahy/Lua”; em Narrativas Tembé sobre biodiversidade (2016), a
“História da Onça Aé”. A escolha destas narrativas se justifica pela condição de “chaves” para
acessar e compreender os significados e as funções de uso do jenipapo em forma de pinturas
corporais de rituais.
Quanto às narrativas míticas registradas em campo, foquei na interpretação de A
História dos Tenetehar, que retrata a procura dos irmãos gêmeos Maíra-Ira e Mucura-Ira pelo
pai Maíra, parcialmente narrado por Nelson Tembé, o Mito de Zahy narrado por Nonon
Tembé, o Mito do Jenipapo e Mito da Menina Onça narrados por Tutui Tembé. Os breves
relatos orais que se referem ao uso do jenipapo e, sua relação com os caruwaras expressos na
ciência do jenipapo foram relevantes para o entendimento de suas funções de uso nos rituais.
Identifiquei em Wagley e Galvão (1961), Zanonni (1999; 2002), Reis (2014), Coelho
(2014) e Neves (2015), informações sobre o uso do jenipapo na cosmologia dos Tenetehar,
que me instigou a redimensionar o olhar para as pinturas corporais, interligadas em uma teia
de saberes retomados a partir de 1993, e agenciados, a partir da introdução dos rituais de
iniciação entre os Tembé do Guamá, em 2003. Isto me levou a ter mais clareza sobre a função
de uso e, dos significados simbólicos atribuídos as pinturas corporais de pré-ritual e de
rituais29, na dinâmica do trânsito de sentidos acionados nas regras de restrições e permissões
orientadas pelo pajé Nelson e demais conselheiros, o que viabilizou a realização de uma
abordagem mais ampliada da correlação entre as pinturas corporais e as narrativas míticas,
que por sua vez atravessam as letras de algumas cantorias Tembé.
Diante do contexto elencado acima, levanto a hipótese que o entendimento dos
significados simbólicos e, das funções de uso das pinturas corporais no pré-ritual da Tocaia e
nos rituais Mingau da Menina Moça e Wirau haw/Festa do Moqueado, é possível a partir da

29
Dentre as pinturas corporais dos mais velhos, foi feita distinção entre as usadas pelos iniciados (Tocaia/Ywán,
Lua/zahy, Onça Marakaza, Menino e Menina Moça/Ywán), das usadas pelos convidados (Onça, Cuia, Tamatá e
Lua/Zahy).
22

interpretação das memórias de suas narrativas míticas e dos saberes inerentes a ciência do
jenipapo, indispensáveis para a compreensão da passagem dos iniciados da infância para a
vida adulta, no preparo dos corpos e na construção da autoidentidade étnica dos Tembé do
Guamá.
O conceito de memória em Michael Pollak (1989) nos estudos da História Oral,
contempla minhas observações quanto as contradições subjacentes ao percurso histórico da
dinâmica coletiva de renovação, ressignificação e empoderamento dos significados
simbólicos e cosmológicos das pinturas corporais a partir dos diálogos entrevistas com meus
interlocutores, permitindo contextualizar, verificar e identificar, o quanto as narrativas míticas
e os relatos orais traduzem e expressam memórias subterrâneas, que continuam sendo
renovadas e ressignificadas após a reorganização da unidade cultural dos Tembé do Guamá há
quase três décadas.
Metodologicamente esta pesquisa enseja uma abordagem qualitativa, a partir de
aportes teóricos multidisciplinares em História30, Sociologia, Etnofrafia31 e Antropologia32,
aliado a um trabalho de campo participativo junto a meus coautores interlocutores. Neste
sentido, a análise da literatura clássica e contemporânea sobre os Tenetehar Tembé em Dodt
(1939), Nimuendaju (1951), Arnoud (1984/85), Alonso (1996), Sales (1999), Neves (2015),
Reis (2014) e Coelho (2014), bem como sobre os Tenetehar Guajajara do Maranhão em
Wagley e Galvão (1961), Gomes (1977; 2002) e Zannoni (1999; 2002), são referências
obrigatórias que me ajudaram a refletir sobre as conexões entre as pinturas corporais e as

30
A abordagem histórica sobre os Tembé do Guamá refere-se a produção de pesquisas sobre povos indígenas no
campo da História, Sociologia, Etnografia e Antropologia considerando-se os argumentos em Strauss (1993), ao
observar que “a única coisa que historiadores e etnógrafos conseguem fazer, a única coisa que se pode pedir que
façam, é expandir uma experiência particular para as dimensões de uma vivência geral ou mais integral, de modo
que ela torne-se, por isso mesmo, acessível enquanto experiência a homens de outras terras ou outro tempo. E
conseguem fazê-lo graças as mesmas condições: exercício, rigor, simpatia, objetividade”. (STRAUSS, 1993, p.
31)
31
Para Strauss (1993), o trabalho do etnógrafo “é descrever e analisar as diferenças que aparecem no modo como
elas (características universais) se manifestam nas diversas sociedades, e o do etnólogo, de explicá-las.
(STRAUSS, 1993, p. 26).
32
Strauss (1993) aponta para as possibilidades do método da Etnologia em não manter-se indiferente aos
processos históricos na análise comparativa das estruturas inconscientes de uma sociedade, sendo os
conhecimentos históricos indispensáveis para o entendimento das estruturas diacrônicas e sincrônicas, pois “ao
mostrar instituições que se transformam, só ela permite extrair a estrutura subjacente a formulações múltiplas e
que permanece através da sucessão de eventos”. (STRAUSS, 1993, p. 36). Esta é uma questão importante ao se
fazer uma abordagem multidisciplinar entre a História Indígena e a Antropologia, uma vez que “A história
organiza seus dados em relação às expressões conscientes, e a etnologia, em relação as condições inconscientes
da vida social”. (STRAUSS, 1993, p. 32).
23

narrativas míticas na trajetória de resistência interétnica dos Tembé do Guamá no contexto da


atualidade.
O recurso aos relatos orais se justifica por coadunarem-se as simbologias das
narrativas míticas, pois são transmitidos pela oralidade no fluxo de informações que envolvem
as diversas relações entre as famílias do Guamá e Gurupí compondo um repertório de
lembranças vividas e, de experiências apreendidas pela memória individual e coletiva em tais
narrativas. Desta maneira, “[...] a tradição oral significa transmitir, de boca em boca, todas as
experiências que a ancestralidade dessa comunidade adquiriu, em seu caminhar pelo mundo
material e imaterial”. (SILVA, 2004, p. 6).
A abordagem antropológica sobre as funções de uso das pinturas corporais no pré-
ritual da Tocaia e, nos rituais do Mingau da Menina Moça e no Wirau haw, enquanto fases de
constituição da identidade e da vida social dos Tembé do Guamá, me levou a utilizar dos
estudos em Castro (1977). Nesta perspectiva pude apreender, com mais clareza, os
significados implícitos no uso do jenipapo na preparação e fabricação dos corpos dos
iniciados a partir da ciência do jenipapo e, de suas particularidades simbólicas.
As contribuições em Vidal (1992) e Gallois (2007), sobre o uso de pinturas corporais
entre os Waiãpí foram relevantes para fins comparativos de entendimento do uso das pinturas
corporais em contexto de trocas de experiências, de sua relação de mediação entre os mundos
“real-material” dos humanos e o “sobrenatural-imaterial” dos caruwaras.
Para abordagem das funções do mito em sociedades ameríndias e ocidentais, recorri as
referências em Straus (1958; 1962; 1964; 1966; 1978)33, Zanonni (1999; 2002), Eliade (1963:
1972) e Detienne (1992), imprescindíveis para a compreensão do agenciamento simbólico das
pinturas corporais de rituais mediante a interpretação das narrativas míticas selecionadas,
observando-se a percepção do lugar de fala dos Tembé do Guamá, que em termos identitários
opõe-se a hegemonia do pensamento racional moderno quanto ao entendimento da relação
entre natureza e humanidade Tenetehar.
A metodologia utilizada nesta pesquisa deu-se a partir da observação e participação
direta na realidade sociocultural nas aldeias pesquisadas, no diálogo espontâneo e na gravação

33
Lévy-Strauss (1964; 1966), por meio de suas obras “O cru e o cozido” e “Do mel às cinzas”, desenvolveu
estudo comparado de dezenas de narrativas míticas, de variados grupos étnicos, incluindo os Tenetehar Tembé e
Guajajara, onde faz referências as semelhanças de aspectos cosmológicos que remetem a sobrenaturais, a origem
do fogo, a tabus sexuais, a vingança, dentre outras questões em sociedades Tupí da Amazônia, e de outros
territórios do Brasil e da América do Sul.
24

de entrevistas semiestruturadas sobre as narrativas míticas e os relatos orais com pajés,


cantores, lideranças e jovens Tembé do Guamá e do Gurupí, referentes ao uso de pinturas
corporais. Os registros do preparo do jenipapo e do seu uso nos rituais de iniciação foram
elaborados por meio de anotações junto ao caderno de campo, fotografias, filmagens e coleta
de desenhos de pinturas corporais feitos por jovens Tembé.
A análise dos dados das entrevistas deu-se por meio da comparação, da confrontação e
da interpretação das diferentes fontes escritas e orais que compõe as narrativas míticas dos
Tenetehar, amparado por um referencial teórico apropriado a realização desta pesquisa
subsidiando minhas inferências, hipóteses e afirmações, sobre os significados simbólicos e as
funções de uso das pinturas corporais entre os Tembé do Guamá, levando a uma interpretação
não totalizante a respeito do tema. Ao contrário, o estudo prisma por uma reflexão aberta que
procura enfatizar a transitividade de memórias, saberes e valores ameríndios que incidem no
auto reconhecimento étnico que as pinturas corporais ensejam.
Por tratar-se de pesquisa de campo histórica e etnográfica, optei por usar a primeira
pessoa no singular e no plural com intuito de tornar o texto mais claro, uma vez que a voz
passiva poderia levar a ambiguidades na escrita da dissertação, de modo que leva em
consideração o sentido de coautoria aqui contemplado.
A proposta multidisciplinar se justifica pela necessidade de respostas a questões
complexas de natureza política e sociocultural, que se delineou após 1945, se aprofundaram
entre as décadas de 1970 e 1990, e emergiram entre os anos de 1990 e 1993, envolvendo a
colaboração de diversos atores sociais nas discussões políticas acerca das ações do Estado,
sobre o que ficou conhecido como a causa dos índios Tembé, mediadas pelos órgãos gestores
e tutores como a FUNAI e o INCRA, que aliado ao apoio jurídico e científico empreendido
pelo MPF, CIMI, UFPA, e outros parceiros levaram a resultados positivos para a
reorganização dos parentes das aldeias do Guamá e do Gurupí.
Diante do exposto acima formulei algumas indagações que são necessárias para
refletir sobre as ações, contradições, tensões, rupturas e permanências, que configuram o uso
das pinturas corporais em diferentes espaços e tempos em que são acionadas. Quais sejam: a)
Por que os Tembé das aldeias Ytaputyr, Sede e São Pedro voltaram a usar as pinturas
corporais após mais de três décadas que já “haviam desaparecido”? b) Quando e como
ocorreu a renovação das pinturas corporais dos mais velhos e as invenções dos mais jovens
nas aldeias pesquisadas? Quais as funções, tabus e valores são acionados na ciência do
jenipapo, que por sua vez são identificados e representados na simbologia das pinturas
corporais de rituais implícitos em suas narrativas míticas?
25

As respostas para tais questões ganham pertinência, a partir do lugar de fala, das lutas,
das memórias e ações concretas dos Tembé do Guamá junto aos parentes do Gurupí, por meio
da experiência conjunta que envolveu homens e mulheres Tembé, a exemplo de: Chico Rico
Tembé, Pirimina Guajajara, Nelson Tembé, Moreira Tembé, Lourival Tembé, Verônica
Tembé, Livino Tembé, Pedro Teófilo Tembé, Augostinho Tembé, Kapara’i Tembé, Tina’i
Tembé, Emídio Tembé, Mi’i Kaapor, Zé Preto, Israel Tembé, Raimundinho Tembé, Naldo
Tembé, Rosário Tembé, Santana Tembé, Piná Tembé, Jeja Tembé, Félix Tembé, Joca Tembé,
Katito Tembé, Neto Tembé, Kelé Tembé, Jorge Tembé, Sebastião Tembé, Atropi Tembé,
Paulinho Tembé, Bewãri Tembé, Nonon Tembé, Muruka’i Tembé, Tutui Tembé, Dona Nenen
Tembé, Plek Tembé, Kuzan Tembé, Nica Tembé, Creuza Tembé, Rebeca Tembé, Eva Tembé,
Maritó Tembé, etc.
26

CAPÍTULO I – OS TENETEHAR TEMBÉ DO GUAMÁ NO PERCURSO DA


HISTÓRIA NA T.I ALTO RIO GUAMÁ

O objetivo deste capítulo se pauta em uma contextualização histórica da trajetória


interétnica dos Tenetehar Tembé da região do Alto Rio Guamá, a partir do estudo
comparativo em algumas obras da literatura clássica e contemporânea sobre os Tenetehar e,
norteada pelo referencial das pesquisas etnográficas e antropológicas sobre povos indígenas
no Brasil. A proposta de tecer esta perspectiva histórica dos Tembé do Guamá, no âmbito
regional, além de considerar as relações interétnicas que estes estabeleceram com a sociedade
nacional, também apresenta os condicionantes de emigrações e a dinâmica objetivada de
reintrodução das pinturas corporais em quatro momentos distintos.
De acordo com Wagley e Galvão (1961), foi no século XIX, a partir das informações
registradas por Gustavo Guilherme Dodt (1939), quando de sua viagem as aldeias Tembé no
Gurupí, em 1872, que surgem as referências aos Tenetehar Tembé dos rios Mearim, Pindaré e
Grajaú. Sobre a obra de Dodt (1939), Descrição dos Rios Parnayba e Gurupí, escrita quando
esteve a serviço do Ministério de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, é possível
identificar raras informações sobre aspectos da vida dos Tembé e do uso do jenipapo na
elaboração de pinturas corporais, o que tornou possível suscitar inferências sobre seu discurso
no contexto da época.
Dodt (1939) inicia suas observações sobre as populações das margens do Gurupí
afirmando ser a região pouco povoada pela população civilizada e, em parte completamente
desabitada, a não ser as terras ocupadas por índios Amanahé, Kaapor, Timbira, Guajá e
Guajajara. Vejamos alguns recortes de seu discurso que remete a conjuntura histórica dos
Tembé do Gurupí ao final do século XIX, passo importante para refletir sobre o contexto da
diáspora e divisão entre grupos Tembé que emigraram para a região do Alto Rio Guamá.

Os Timbés, Amanajés e Timbiras do Gurupí têm muitas relações com a população


civilizada por intermédio dos regatões, que os procuram por causa do óleo de
copaíba, casca de cravo, rama da abuta e de algum breu, consistindo, nestes gêneros,
a exportação daquelas regiões, predominando, porém, o óleo de copaíba. Não se
pode negar que este comércio tem muito benignamente influído para abrandar e
modificar também os costumes dos índios e acabar com as rizas e guerras entre as
diferentes tribos [...]. Além disso, tem acostumado os índios a certas necessidades de
que já não podem mais prescindir, e que não podem satisfazer senão pelo produto de
um trabalho mais regular, o que também lhes têm ensinado certa sujeição [...] e com
a afluência de um número mais crescido de pessoas ignorantes e viciosas que se
dedicam a este tráfego só por causa de sua antipatia a um trabalho regular, tem ele
perdido não só aquela influência boa, mas a tem tornado perniciosa. (DODT, 1939,
p. 111).
27

É possível perceber neste recorte do discurso em Dodt (1939), que os Tenetehar


Tembé, ao lado de outros povos indígenas que habitavam terras as margens do rio Gurupí e de
seus afluentes, nos limites entre as Províncias dos estados do Grão-Pará e do Maranhão,
mantinham relações com a população não indígena por intermédio dos regatões, que atuavam
como comerciantes ilegais e oportunistas na exploração e sujeição dos Tembé ao trabalho,
mediante a extração de produtos naturais, a exemplo do cobiçado óleo de copaíba, por meio
da prática do clientelismo de aviamento ou clientelismo social, segundo Gomes (2002), que
foi intensificado e endossado nas políticas indigenistas do Império e da República, estando
presente nos dias atuais sob diferentes formas, em que, segundo o autor,

[...] se funda em interesses econômicos que são mediados não mais por um sistema
de servidão-baseado em direitos e deveres de origem social, mas por uma economia
de troca de bens de serviço [...] preservada, por princípio, uma medida razoável de
autonomia étnica, e sua incepção se dá de forma voluntária [...]. (GOMES, 2002,
p.210).

Dodt (1939) empreendeu uma crítica moral aos supostos comportamentos civilizados
das populações ignorantes não indígenas, que avançavam em direção ao território Tembé e,
aos regatões34vistos por ele como imorais e oportunistas traficantes.

É com certa repugnância que emprego o termo de “população civilizada” em


contraposição à “indígena” [...] Pois, se é exato que uma parte dos índios que
habitam as margens do Gurupí se acha sem civilização, é esta a parte menor,
enquanto a maior não se pode negar ao menos o grau de civilização que possuem as
classes baixas da nossa sociedade, ainda que ela difere alguma coisa na sua forma.
(DODT, 1939, p.97).

Percebe-se no recorte discursivo abaixo algumas características já adquiridas no modo


de vida da maioria da população Tembé na região do Gurupí35, a exemplo da moradia fixa,
ocupação com a lavoura para o autossustento, uso de vestimenta corporal, uso de arma de
fogo, vida pacífica e reconhecimento de autoridade, enquanto valores indicadores de
distanciamento do estado de selvageria e adoção de práticas civilizadas ocidentais.

34
Dodt (1939) refere-se aos regatões como uma classe de pessoas ignorantes com poucas instruções e astutos
comerciantes atravessadores de produtos industrializados, que vendem ou trocam nas aldeias por produtos
naturais como o óleo de copaíba extraído pelos Tembé no interior da floresta.
35
Dodt (1939) especulou há época, uma população total de 9.000 Tembé, das quais se achavam no Gurupí perto
de 6.000.
28

Se ter uma habitação certa em casas, ocupar-se da lavoura em escala suficiente para
garantir o sustento, andar vestido, e viver em sociedade pacífica, sem praticar
crimes, e reconhecer certa autoridade constitui um grau de civilização, não se pode
negar que a maior parte dos índios do Gurupí está fora do estado selvagem. [...]
apesar de não existir entre eles autoridade policial de qualidade alguma e de ser de
pouca importância a autoridade dos próprios chefes, todavia são raríssimos os casos
de homicídio. (DODT, 1939, p. 97).

Ao final de sua obra Dodt (1939) reconhece que a boa índole dos índios Tembé, se bem
direcionada para uma adequação ao utilitarismo do trabalho em colônias de cidadãos úteis,
seria importante para os interesses da indústria e, consequentemente, para as finanças do
Império.

[...] o que pude observar dos seus hábitos e costumes para mostrar que ela (a
população dos índios Tembé), de baixo de uma direção conveniente, podia ser
convertida em uma colônia de cidadãos úteis, a qual, pela indústria e boa índole
destes, podia tornar se em pouco tempo importante. (DODT, 1939, p.97-98).

Dodt (1939) também faz referência a parâmetros hierárquicos e classificatórios sobre


os supostos diferentes graus de desenvolvimento intelectual entre os diversos grupos étnicos
que habitavam as terras do alto rio Gurupí, aludindo certa predileção para os grupos Tupí, o
qual pertence os Tembé, em relação a grupos étnicos Jê, a exemplo dos Timbira, avaliados
genericamente por nação Tapuia e considerada mais “primitiva”.

[...] é necessário discriminar bem as diferentes tribos a que se pertencem, pois nem
todas se acham nas mesmas circunstâncias e no mesmo grau de desenvolvimento
intelectual, e neste sentido deve se distinguir dois grupos diferentes dos quais um
pertence à nação Tupi, e outro à nação Tapuia, aquele que abrange os Timbés e
Amanahés ou Amanajós, e este os Urubus, Timbiras, e provavelmente também os
Guajás e Guajajaras. A tribo mais numerosa é a dos Timbés, que moram das
cabeceiras do Gurupi até a barra do Uraim e se estendem de um lado até o Pindaré e
do outro até o Capim. (DODT, 1939, p.98).

É importante observar que os Tembé ocupavam e transitavam em uma vasta região


que compreende as cabeceiras do rio Gurupí ao rio Uraim, na direção Sul e Norte, e entre o
rio Pindaré ao rio Capim, no sentido Leste a Noroeste, o que indica que por diversas razões as
migrações de subgrupos Tembé estavam em curso. A partir do Relatório do naturalista João
Barbosa Rodrigues, resultado de sua missão científica em 1874, Sales (1999) faz referências
as migrações de grupos Tembé “[...] que se espalharam pelo Tocantins, pelo rio Capim,
Guamá e Gurupí [...]”. (SALES, 1999, p. 30).
No recorte abaixo temos um breve quadro da inserção, via relações de comércio nas
aldeias Tembé, de produtos manufaturados comercializados pelos regatões em função da
extração do óleo de copaíba, que no entender de Dodt (1939), além de tornarem-se
29

imprescindíveis aos indígenas, também estavam causando mudanças nos seus costumes tidos
por selvagens, a exemplo da substituição do arco e flecha pela espingarda.

A facilidade com que adquirem hoje espingardas e pólvoras tem feito cair em
completo desuso o arco e a fleche, que apenas servem para matar peixes. Eles não
podem mais prescindir de machados nem de facões, nem de fazendas para roupa,
nem de cobertas de lã, nem de muitas outras miudezas que o comércio tem
espalhado entre eles. Atualmente satisfazem a estas necessidades pela extração do
óleo de copaíba. (DODT, 1939, p. 114).

É interessante perceber no argumento de Dodt (1939), que enquanto maior a


independência do índio em relação aos bens manufaturados, mais distante sua sujeição aos
valores civilizados, a exemplo da lavoura racional que deveria discipliná-los a um novo
regime de trabalho, uma vez que possuíam aptidão para a agricultura não por sua capacidade
intelectual, mas pela habilidade de imitação. Isso demonstra aspectos da mentalidade
eurocêntrica e racionalista marcada pelo desprezo aos saberes tradicionais dos Tembé.

O mato já não satisfaz às suas exigências e ele reconhece a necessidade de sujeitar-


se a uma vida e a um trabalho mais regulares. Se eles atualmente se sujeitam por sua
própria vontade a trabalhar para os regatões, não seria possível aproveitá-los para a
lavoura, principalmente mostrando eles por suas próprias culturas aptidões para este
ramo de indústria? Em verdade seria necessário introduzir desde logo entre eles uma
lavoura racional, em vez de rotineira, e eles com habilidade de imitar tudo que vêem,
a aceitaria depressa e ligando esta o lavrador às suas terras, poder-se ia combater
com eficácia a tendência que os índios têm de mudar constantemente de residência,
enquanto a lavoura rotineira os confirma neste vício. (DODT, 1939, p. 114-115)

Em seguida, nota-se a desaprovação de Dodt (1939) pela migração desordenada de


colonos mestiços que adentravam para o interior das terras indígenas na Província do
Maranhão, provavelmente devido ao avanço da frente de expansão ou fugindo da seca, os
quais eram vistos pelo autor a luz dos parâmetros raciais da época como uma ameaça por
serem ignorantes, enganadores e desprovidos de “boa qualidade” da raça branca.

Como as terras do Gurupí são ameaçadas de uma invasão de gente baixa do sertão
de Imperatriz, que ignorante quanto possível, ao mesmo tempo tem todos os vícios
da raça branca e da preta, das quais nasceu, sem ter suas boas qualidades. Enganar
os índios onde e quando podem, parece-lhes ação, não só lícita, mas muito boa.
(DODT, 1939, p. 115).

No século XIX, Dodt (1939) registrou em seu relatório escassas informações sobre o
uso do jenipapo e do urucum na elaboração de pinturas corporais no alto rio Gurupí, o que me
levou a suscitar inferências sobre suas observações.

“O uso de pintura sobre o corpo encontra-se tanto entre os Timbés como entre os
Timbiras, mas há uma diferença notável entre eles, que atualmente se torna ainda
30

mais saliente, visto que este costume está caindo sempre mais em desuso entre os
Timbés, que apenas fazem desenhos formados por traços finos de tinta preta sobre a
cara e os braços. Os Timbira, porém, tingem em primeiro lugar todo o corpo de
vermelho, mastigando coco de babaçu ou auaçu e esfregando a saliva deste modo
impregnada da parte oleosa do coco com a semente machucada de urucu sobre o
corpo. Em cima deste fundo vermelho traçam eles desenhos compostos de traços
grossos por meio de tinta preta, que preparam com a tinta do jenipapo. Estes
desenhos cobrem todo o corpo, às vezes tingem também uma parte do corpo toda de
preto. Este costume torna a presença dos Timbiras muito desagradável ao olfato”.
(DODT, 1939.p. 102).

Neste raro recorte discursivo, é possível identificar por meio de suas observações o
uso de pinturas corporais entre os Tembé e os Timbira. Nota-se que os Tembé não faziam uso
do urucum, mas apenas do jenipapo, diferenciando seu padrão estético formado por traços
finos no rosto e nos braços, enquanto os Timbira se utilizavam do urucum e do jenipapo que
cobria todo o corpo com traços grossos. Dodt (1939) se utiliza desta diferença estética para
aferir que o uso da pintura corporal estava em desuso entre os Tembé, alusão esta que
supunha estarem caminhando rumo a civilização, ao contrário dos Timbira, que pareciam está
mais próximo do estado selvagem.
No recorte discursivo abaixo, Dodt (1939) finaliza suas observações a respeito da
população Tembé almejando atenção e algum benefício do governo imperial para com a
mesma, não apenas intervindo na extração ilegal do óleo de copaíba, mas por meio da criação
de colônias que adotasse a produção agrícola racional, de modo a fixá-los a terra e livrá-los da
exploração dos regatões. Esses objetivos sob a ótica do positivismo liberal foram aplicados
pelo SPI aos Tembé do Guamá, após a criação da RIARG em 1945, estendendo-se até o início
dos anos de 1960.

Devo concluir este esboço sobre a população índia do Gurupí com o desejo que ela
mereça a séria atenção do governo e que este se resolva alguma coisa em benefício
dela, obstando por medidas enérgicas à completa destruição do resto das
copaibeiras, e tratando da colonização dos índios de baixo dos princípios racionais,
proibindo a invasão daquelas terras devolutas pela plebe do sertão e livrando os
índios de serem desfrutados pelos regatões. (DODT, 1939, p. 117).

Se por um lado a obra de Dodt (1939) possibilita contextualizar historicamente


aspectos do modo de vida e das relações interétnicas dos Tembé das aldeias do alto Gurupí, de
outro revela traços da mentalidade de um período, onde o paradigma eurocêntrico da
modernidade racional se impunha como conhecimento verdadeiro e absoluto perante a
diversidade de saberes das populações ameríndias. Palavras e expressões do autor como boa
índole da raça branca, princípios racionais, indústria, trabalho regular e colônia de cidadãos
úteis, figuram como exemplos de “direção conveniente” que os Tembé do Gurupí deveriam
31

adotar em suas vidas e, consequentemente, deveriam superar sua “humanidade primitiva”, que
no contexto da época, segundo Cunha (1992), era entendida enquanto ilusão da ideia de
primitivismo.

Na segunda metade do século XIX, essa época de triunfo do evolucionismo,


prosperou a idéia de que certas sociedades teriam ficado na estaca zero da evolução,
e que eram por tanto algo como fósseis vivos que testemunhavam do passado das
sociedades ocidentais. Foi quando as sociedades sem Estado se tornaram, na teoria
ocidental, sociedades “primitivas”, condenadas a uma eterna infância. (CUNHA,
1992, p. 11).

Partindo da reflexão sobre o discurso em Dodt (1939), quanto a realidade em que


viviam os Tembé no alto rio Gurupí ao final do século XIX, considero alguns desdobramentos
que levaram ao movimento espontâneo ou forçado da migração defamílias para a região do
Alto Rio Guamá. São elas: As invasões das terras indígenas por colonos na Província do
Maranhão levando a conflitos com os Tembé, que se sentiam ameaçados mediante ações de
hostilidades as quais estavam sujeitos; a exploração da mão de obra Tembé na extração de
produtos naturais, o que exigia o deslocamento de diversas famílias para outros espaços e
causando a desorganização de suas atividades agrícolas de subsistência, de suas práticas
socioculturais tradicionais, ao adotarem o uso da língua brasileira e de produtos
manufaturados para suprirem suas necessidades materiais; a ineficiência da política
indigenista empregada pelo governo imperial por meio da criação e atuação administrativa
das Diretorias dos Índios nas Províncias dos estados do Grão-Pará e do Maranhão, que, por
sua vez, seguiam as determinações legais do Regimento das Missões que, segundo Gomes
(2002), continuou operando durante anos após a proclamação da República.
32

Figura 2 - Mapa etno-histórico de Curt Nimuendajú da migração dos Teneteharar Tembé

Fonte: Fundação IBGE/ Fundação Nacional Pró-Memória, Rio de Janeiro, 1981.

Antes da emigração de grupos de famílias Tembé de aldeias do alto Pindaré para a


região do alto Gurupí e, posteriormente para as terras do alto rio Guamá, “[...] por volta de
1850, permanecendo os Guajajara no antigo ambiente em terras banhadas pelos rios Mearim,
Pindaré e Grajaú [...]” (ARNOUD, 1984/85, p. 330), a ação de catequização dos Tenetehar
pelos Jesuítas na fronteira das capitanias do Grão-Pará e do Maranhão já havia ocorrido entre
1653 e 1759, se direcionando para o baixo e alto Pindaré, onde “[...] os índios haviam se
refugiado nas matas por mêdo de caçadores de escravos [...] onde obtiveram um relativo
sucesso na Missão de Cajupé, no aldeamento em Maracu e na Missão do Caru, aldeia São
Francisco Xavier” (WAGLEY E GALVÃO, 1961, p. 24).
Sales (1999) identifica a atual região do Alto Rio Guamá, enquanto espaço de
colonização e catequese desde o século XVII36, ou seja, antes da referida emigração de grupos

36
A antropóloga levanta esta hipótese a partir dos estudos em Rodrigues (1882), que “baseado nos Anais
históricos de Bernardo Pereira de Berredo (Governador e capitão general do Estado do Maranhão e Grão-Pará
33

Tembé para a região do Guamá, segundo Arnoud (1984/85), no século XIX, identificando
mudanças que vinham ocorrendo a partir de Pinheiro (1918), que se refere a fundação de uma
capela em 1802, na renomeada aldeia São José da Cachoeira Grande (aldeia Velha dos
Tembé), que se localizava à margem esquerda do rio Guamá.

A taba era povoada de índios já domesticados e policiados [...] pertenciam e ainda


hoje pertencem a uma numerosa maloca, oriunda das tribus que povoam o alto
Gurupy. Por uma desavença entre as tribus dos Urubus e a dos Gamellas (Tembés),
esta emigrou para o alto rio Guamá. (SALES, 1999, p. 33).

Em Figueiredo (2013), a partir de sua análise do embate intelectual entre Kurt


Nimuendaju e Jorge Hurly em 1920, sobre as medidas que deveriam ser adotadas pela política
indigenista por intermédio do SPI aos Tembé do Gurupí, ante a possibilidade de trazê-los para
junto de seus parentes do Guamá, é possível fazer uma reflexão sobre a percepção do
eminente etnólogo alemão, que implicitamente considerava os Tembé do Guamá desprovidos
de interesses não apenas ao órgão tutor do Estado, mas possivelmente para os estudos
antropológicos devido sua condição étnica “desfigurada” em relação aos parentes do Gurupí.

As poucas aldeazinhas (sic) do alto Guamã, teatro da ação redentora do Sr. Hurly
(sic), não merecem importância comparado com as do Gurupí. Se não fosse pela
minha cabeça eu convidaria todos os Tembé do Guamã para se mudarem para o
Gurupí, como em 1914 já se mudou um bando da aldeia São Pedro. Isto sim
convinha, mas não a mudança dos do Gurupí para o Guamã, como Hurly quer.
(FIGUEIREDO, 2013, p. 59).

A referência em Sales (1999), sobre a criação da RIARG em 1945, destinada aos


grupos étnicos Tembé, Timbira, Kaapor e Awa Guajá, contribuiu para identificar medidas
adotadas pelo governo paraense quanto o incentivo a migração de colonos nordestinos para
áreas próximas ao território Tembé, a criação do município de Capitão Poço, o apoio aos
grupos econômicos ligados a extração vegetal e atividade agropastoril, visando a
implementação e efetivação dos interesses da política indigenista oficial.

Confinar índios em uma “reserva” e aldeá-los passou a ganhar interesse. Não só este
procedimento liberava áreas de mata para o extrativismo sem risco, liberava lotes
para os colonos que emigraram da “seca”, como também “pacificava a população
indígena, para estabelecer um convívio sem antagonismos, para transformá-la em
“mão- de-obra”, além de fornecedores de produtos baratos e em consumidores do
mercado capitalista. (SALES, 1999, p. 35).

em 1718, que faz menção a uma “sublevação” indígena em 1617, da qual participaram índios das aldeias de
Caju, de Montigura, de Iguapé, do Guamá e Capim).”. (SALES, 1999, p. 30-31).
34

Em relação ao contexto histórico de criação da RIARG em 1945, há de considerar as


consequências do processo de desterritorialização imposto aos Tembé do Guamá e do Gurupí,
caracterizado pela redução do espaço tradicional de ocupação, redefinição sociocultural e
usufruto dos recursos naturais, separação e alteração da composição de relações familiares e
miscigenação incentivada por agentes do SPI, que no início da década de 60 do século XX,
permitiram o acesso “[...] para o interior da Reserva elementos regionais de ambos os sexos,
com a aprovação de índios que, com vários deles, tinham relações de compadrio [...]”
(ARNOUD, 1984/1985, p. 332). O incentivo objetivado pelo SPI, de levar regionais para
trabalharem junto aos Tembé do Guamá, ocorreu na medida em que “[...] os Tembé não se
submetiam a disciplina do SPI, na nova forma de produção [...]” (SALES, 1999, p. 59).
Destituídos de parte de seu antigo território, os Tembé do Guamá passaram a viver na
condição de tutelados, estigmatizados e alienados de seus direitos enquanto grupo étnico,
sujeitos a constantes invasões de suas terras nas décadas de 70, 80 e 90. Foi a partir dessa
perspectiva dramática de relação interétnica, envolvendo diversos atores sociais, que procuro
refletir sobre o percurso da história dos Tembé do Guamá, onde ocorreram relações difusas
quanto ao impedimento da autoafirmação da identidade étnica mediante processo de
interdição, sob diferentes meios pelos agentes do Posto Indígena Tembé, que tinha por
diretrizes do SPI, garantir assistência à saúde, nacionalização/assimilação e educação, que
segundo Cunha (1992),

[...] deveria proceder pedagogicamente, no sentido amplo do termo, ao se


estabelecer sobre a base de um ordenamento espacial distinto do indígena, que
comportasse um serviço de saúde, uma forma de organização da lavoura e da
pecuária de modo a servir de exemplo, exercício e fonte de subsistência ao grupo
[...]. (CUNHA, 1992, p. 166-167).

Não devemos ignorar os desdobramentos das relações interétnicas que incidiram sobre
o modo de vida e a cosmologia dos Tembé do Guamá, nos séculos XIX e XX, pois assim
como outros grupos indígenas na Amazônia oriental, eles continuaram desenvolvendo
estratégias de luta e sobrevivência diante do processo de transculturação, vindo a se
reaproximar dos parentes do Gurupí e de outros grupos étnicos.
35

1.1 TEMPOS DE VERÔNICA TEMBÉ E A LUTA PELA UNIÃO ENTRE OS


TENETEHAR TEMBÉ DO GURUPÍ E GUAMÁ

Pode-se aferir que as ações de resistência coletiva dos Tenetehar Tembé da T.I Alto
Rio Guamá, a partir do final dos anos 1970, sob a liderança da capitoa Verônica Tembé 37e do
cacique Lourival Tembé, e, posteriormente, as estratégias empreendidas pelos pajés Nelson
Tembé e Chico Rico Tembé, nas aldeias do Guamá no início dos anos 90, em 2003, e entre
2009 e 2012, respectivamente, levaram a novos desdobramentos na transmissão e assimilação
de saberes sobre o uso das pinturas corporais em rituais, que até recentemente foram
ignoradas pelas pesquisas etnográficas, sob a “justificativa” que corroborava com o discurso
oficial e regional que os apresentavam como assimilados culturalmente pela sociedade
nacional.
O relato de Lourenço Tembé, sobre a importância da atuação política de Verônica
Tembé no esforço de união das famílias de parentes do alto rio Gurupí, a partir de ações na
aldeia Igarapé de Pedra voltadas a reafirmação e manutenção das tradicões da cultura
Tenetehar, ameaçadas de desaparecerem, como a língua, as cantorias, o artesanato, os rituais
de iniciação das crianças, do menino e da menina moça, foi imprescindível para repensar o
percurso histórico de transitividade dos saberes que foram introduzidos e renovados entre os
Tembé do Guamá, inerentes as pinturas corporais através da ciência do jenipapo.
Lourenço Tembé me relatou ter presenciado o ritual de iniciação do pajé Nelson
Tembé em Tocaia, quando este ainda era jovem e, de sua participação na retomada do ritual
do Mingau da Menina Moça organizado por Verônica Tembé na aldeia Igarapé de Pedra, e,
posteriormente com a realização do ritual Wirau haw em Canindé a partir de 1985, e em
Tekohaw, após a transferência de famílias Tembé que viviam no Maranhão para o Pará, na
divisa do rio Gurupí, no ano de 1992.
Diante de minha insistência em saber quais pinturas corporais dos mais velhos eram
usadas pelos meninos e meninas nos rituais de iniciação na aldeia Igarapé de Pedra, Lourenço
afirmou que apenas se fazia uso das pinturas corporais da Tocaia, Lua/Zahy, Menino e
Menina Moça/Ywán, ao passo que as pinturas corporais da Onça, Tamatá, Cuia e Borboleta,
voltaram a serem usadas nos rituais em Canindé e, após a mudança da família de Verônica e

37
A capitoa Verônica Tembé falecida no ano de 2013, foi a mais importante e influente liderança entre os
Tenetehar Tembé do Gurupí e Guamá, entre os anos 80 e 90, auge da luta política pela união dos Tembé, que
visava garantir a manutenção e proteção da TIARG.
36

Lourival da aldeia Igarapé de Pedras para a aldeia Tekohaw. Quanto as pinturas corporais da
Onça Marakaza e da Borboleta/Panam, tanto Lourenço quanto Nelson afirmaram serem
invenções novas, que surgiram durante a reorganização dos Tembé do Gurupí ao final da
década de 70 e início dos anos 80, sendo introduzidas nas aldeias do Guamá no início dos
anos 90. Foi na luta pela autoafirmação étnica e proteção do território, que os Tembé do
Guamá e do Gurupí deram início ao que Hobsbawm e Ranger (1997) denominam de tradição
inventada.

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente


reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual
ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao
passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um
passado histórico apropriado. (HOBSBAWM e RANGER, 1997, p. 9).

A retomada e difusão dos rituais de iniciação a partir da união de grupos de famílias


Tembé do Gurupí, sobre a orientação de Verônica, Lourival, Augostinho e outras lideranças,
foram importantes na medida em que vinham deixando de manter suas tradições, devido à
pressão do contato com os regionais, a ineficiente política oficial de proteção de seu território
contra invasores de toda ordem, pela dispersão de seus pajés e cantores que foram levados
pela FUNAI, a atuarem na “pacificação” de outros grupos étnicos Tupí, para atender aos
interesses das frentes de expansão sob a orientação do governo militar na década de 70.
Diante de um cenário de incertezas e desorganização interna nas aldeias, Verônica
Tembé encabeçou um movimento de resistência política e cultural visando o retorno às
aldeias do Gurupí dos parentes que estavam trabalhando na atração de outros grupos étnicos,
dando início a um novo processo de retomada das tradições Tenetehar nas aldeias do Gurupí,
que posteriormente se estendeu às aldeias do Guamá.
Torna-se imprescindível a reflexão sobre a influência do ativismo político e cultural de
Verônica Tembé na memória dos Tembé do Guamá, uma vez que ela protagonizou e
representou os interesses e aspirações coletivas dos Tenetehar Tembé pelo direito ao território
e a manutenção de suas tradições. Sua luta é sempre lembrada e rememorada na Festa do
Moqueado, que ocorre nas aldeias pesquisadas através de homenagens feitas em banner, onde
figura sua imagem como símbolo de presença espiritual entre os parentes, em momento tão
importante de confraternização dos laços identitários.
37

1.2 O “(RE)SURGIMENTO” DAS PINTURAS CORPORAIS NO PROCESSO DE


REORGANIZAÇÃO POLÍTICA E SOCIOCULTURAL DOS TEMBÉ DO GUAMÁ

Entre o início da década de 70, e o final dos anos 80, intensificaram-se as invasões e o
saque dos recursos naturais da RIAG, ao mesmo tempo em que o governo sinalizava para a
desterritorialização dos grupos do Guamá e do Gurupí. Internamente foram articuladas
estratégias de luta pela sobrevivência e reconhecimento étnico, que veio a reaproxima-los no
sentido de se organizarem sob o comando de novas lideranças, apoiadas por pajés,
conselheiros e grupos de guerreiros.
Desde o ano de 2007, quando passei a ter “moradia fixa” em São Pedro, ouvi
conversas informais de Israel Tembé, Kelé Tembé, Sebastião Tembé e Jorge Tembé, que as
ações do agente da FUNAI, Dilson Marinho e, do pajé Nelson Tembé, foram responsáveis
pelo incentivo ao uso das pinturas corporais no contexto da reorganização e renovação
cultural dos Tembé do Guamá, no entanto, enquanto o pajé Nelson agia de modo mais
espontâneo para convencer os parentes a usarem as pinturas corporais, Dilson atuava com
certa imposição para que se fizesse uso do jenipapo, o que desagradava alguns indígenas que
não aceitavam seu uso corporal38.
Dilson Marinho atuou como chefe do P.I Guamá entre 1991 e 1993, onde foi
reconhecido “[...] por suas práticas direcionadas ao “resgate” da “cultura tradicional” índia
Tembé e sua influência na definição de uma “nova” forma de organização política para o
grupo [...]” (ALONSO, 1996, p. 93). Por intermédio de Jorge Tembé, fiquei sabendo que foi
Dilson Marinho quem trouxe a pintura da Jiboia39 para a aldeia São Pedro, onde ela se
“espalhou” para as aldeias Pira e Jacaré. Posteriormente esta informação levou-me a certos
questionamentos sobre a autenticidade de algumas pinturas corporais que eram “aceitas”
como sendo Tembé.

38
Alonso (1996) pontua uma análise crítica ao papel de Dilson Marinho, no sentido de “[...] compreender a
contribuição da figura e atuação deste chefe de posto para a crença e reconhecimento social da “unidade Tembé”
ou “unidade de parentes”, representada fundamentalmente através das idéias de “sangue índio” [...]”. (ALONSO,
1996, p. 93). Tive oportunidade de conhecer Dilson entre agosto de 2007, e dezembro de 2008, quando tentou
um “novo retorno” as aldeias do Guamá, levando-o a embates internos com lideranças, o que causou a sua
retirada tensa das aldeias. Sua atuação entre 1992 e 1993, foi marcada por contradições ante sua autoridade
enquanto chefe de posto e o protagonismo de jovens lideranças. Em todo caso, Dilson está presente na memória
dos Tembé do Guamá, enquanto alguém que em muito contribuiu para a luta em defesa do território ameaçado e,
na retomada da autoestima enquanto grupo étnico.
39
Felix, Nelson e Moreira me confirmaram que essa pintura pertence aos Waiãpi.
38

A presença e atuação de Nelson Tembé nas aldeias do Guamá em 1993, deu-se a partir
de uma articulação mediada pela antropóloga Noêmia Sales e, recebeu apoio do CIMI, de
caciques e lideranças do Guamá e Gurupí. Deve-se a este pajé o reaprendizado da língua,
cantorias, narrativas, brincadeira Caê Caê/ehe ehe e a introdução de pinturas corporais da
Onça, Tamatá, Cuia, Lua e Borboleta, nas aldeias Sede, São Pedro e Frasqueira.
Passei a perceber que as informações apontavam para quatro momentos distintos, mas
que se relacionavam na medida em que um era a continuação do outro. O primeiro, diz
respeito ao papel incontestável de liderança da capitoa Verônica Tembé, na união dos grupos
do Gurupí e na renovação das tradições Tenetehar. O segundo, que recebeu denominação de
reorganização dos Tembé do Guamá, atualmente renomeado como tempos de luta contra
invasores, quando as ações de Nelson ganharam importância pelo incentivo a autoestima de
pertencimento étnico.
O apoio de Nelson aos parentes do Guamá, deve ser avaliado enquanto estratégia e
continuação de luta política e resistência, que teve início em 1979, liderado por Verônica
contra os planos de uma proposta do governo via FUNAI em 1978, onde se propunha a
redução do território visando assentar colonos enquanto “solução” para resolver os conflitos
fundiários na RIAG, entre os Tembé e madeireiros, posseiros, grileiros e fazendeiros. A
situação agravou-se quando os militares sinalizaram para a desinterdição/desterritorialização
da RIARG, com planos de se criar duas colônias indígenas, a Tembé do Guamá e a Canindé
do Gurupí, sob a alegação de não haver mais indígenas (RELATÓRIO TEMBÉ, 1990.).
A partir do início da década de 80, os Tembé do Guamá passaram a ser contestados
quanto a “autenticidade” de sua identidade étnica, ao reconhecimento como coletividade, ao
direito de usufruto “exclusivo” dos recursos do território, sendo rotulados pejorativamente
pelos regionais de “caboclos remanescentes” de índios, “pretos do maranhão” e “índios
misturados”, ou seja, estavam sujeitos a todo um conjunto de estereótipos que ainda hoje é
reproduzido no discurso do senso comum, nas redes sociais e na fala de autoridades políticas
regionais.
A ameaça real de divisão do território colocava diretamente em risco a existência
étnica dos grupos do Guamá e Gurupí, de modo que internamente seguiu-se um conjunto de
estratégias de luta para assegurar a TIARG enquanto território indígena, levando a
aproximação entre grupos e famílias do Guamá e Gurupí a voltar-se para as tradições
Tenetehar. Nesse sentido, os primeiros se engajaram num movimento de renovação e
resignificação de suas tradições culturais entendidos “enquanto atributos de reinterpretação da
cultura dos antepassados ou cultura autêntica Tembé”. (ALONSO, 1996, p. 155).
39

Em 1985, quando Pedro Teófilo e sua família saíram da aldeia Ytaputyr e foram morar
junto aos parentes da aldeia Canindé no Gurupí, sua filha Plek Tembé e seu filho Jeja Tembé
foram os primeiros jovens do Guamá a passarem pelo ritual do Wirau haw. Devido a
proliferação de malária e do sarampo nas aldeias do Gurupí foram obrigados a retornarem
para a área do Guamá, trazendo informações sobre o uso das pinturas corporais. Os Tembé
das aldeias Frasqueira e Ytaputyr, sob as lideranças de Manoel Romão Tembé e Pedro Teófilo
Tembé, foram quem reiniciaram o processo de reaproximação aos parentes do Gurupí, que
havia sido “interrompido” com a construção de uma estrada pelo empresário invasor Mejer,
sendo esta vigiada por capangas armados e impedindo o trânsito dos Tembé das aldeias do
Guamá e Gurupí.
Foi durante esse período decisivo de união, parcerias, diálogos e conflitos, entendido
por eles como de reorganização e busca pelo fortalecimento das tradições dos mais velhos,
que as pinturas corporais “ressurgiram” por meio da sua reintrodução e assimilação,
primeiramente nas missões de guerreiros40, posteriormente, com os ensinamentos dos pajés
Nelson e Chico Rico, elas ganharam grande aceitação mediante o reaprendizado de seu uso
durante os rituais de iniciação.
Segundo Alonso (1996), o processo de reorganização-revolução ocorreu entre os anos
de 1992 e 1993 e, envolveu uma rede de alianças políticas entre os Tembé do Guamá e do
Gurupí, além do apoio de outros grupos étnicos41, mediada por aliados políticos da causa
Tembé, como FUNAI, CIMI, MPF, UFPA e parlamentares do PT, que passaram a legislar na
Assembleia Legislativa em 1990. Os objetivos norteadores dos interesses políticos das ações
que permearam esse período de tensões podem ser observados nas seguintes afirmações em
Alonso (1996),

[...] priorizaram as alianças sociais e se reafirmaram os “novos” vínculos primordiais


enquanto “unidade Tembé” ou “grupo autêntico”; [...] ideia de “procurar” as bases
“culturalmente autênticas do grupo” com o fim de garantir os direitos sobre o
território; [...] conceituação da realidade social do grupo e a definição da identidade

40
Formadas por grupos de guerreiros armados com espingardas, arcos, flechas e bordunas. Obtive informações
que nas missões de guerreiros, não se fazia uso das pinturas corporais dos mais velhos, e sim do que eles
denominam de pintura de guerra, onde predomina o uso do jenipapo e do urucum de forma mais uniforme no
rosto, costas, peito, barriga, braços, mãos e pernas, numa espécie de camuflagem para não serem reconhecidos e
assim evitar represália ou emboscadas fora das aldeias. Em algumas situações o jenipapo e o urucum foram
aplicados enquanto meios de punição contra posseiros que resistiam em sair das terras ocupadas.
41
Índios Kaapor e Guajajara, que mantinham estreitas relações de parentesco com os Tembé do Gurupí
participaram ativamente de ações de expulsão de invasores na TIARG, conhecidas como missões de guerreiros.
40

de forma mais rígida, formulando a partir de leis ou normas os critérios culturais


sobre a inclusão e exclusão dos membros do grupo. (ALONSO, 1996, p. 104).

A partir desse contexo surgem oposições as influências do modo de vida dos


brancos/karaiw no interior das aldeias, identificadas em Alonso (1996) por meio da festa do
brega, dos jogos de futebol, do consumo de bebidas alcoólicas, da “proibição” ao casamento
entre Tembé e não indígena e, o controle sobre o trânsito nos limites do território. Assim, o
processo de união e organização culminou com a homologação da Terra Indígena Alto Rio
Guamá (TIARG) em outubro de 1993, quando os Tembé do Guamá passaram a retomar suas
terras invadidas, estabeleceram aldeias em pontos estratégicos e mantiveram a vigilância de
sua área por meio das missões de guerreiros.
A reintrodução das pinturas corporais deve ser compreendida a partir de relações de
conflitos enquanto estratégia política e simbólica de diferenciação pautada na ideia de
ancestralidade, que foi difusamente utilizada em diversos contextos como na expulsão de
posseiros de suas terras, nos protestos e manifestações em estradas e durante a ocupação de
prédios de instutuições como FUNAI, SEDUC, INCRA e FUNASA.
Durante a pesquisa observei algumas contradições nos relatos dos meus interlocutores
quanto ao fato de ter desaparecido ou não o uso de pintura corporal nas aldeias do Guamá,
antes da reorganização. Félix, Sebastião, Santana e Jorge argumentaram que mesmo não se
fazendo uso delas no dia a dia, nas décadas de 60, 70 e 80, nunca deixou de existir como se
supunha, porque ainda era lembrada por indivíduos como Jidoca Tembé, Rufino Tembé e
dona Ilda Tembé. No referido período o uso ficou restrito aos mais velhos que raramente iam
a cidade, vilas ou povoados fora da terra índígena. Meus interlocutores lembraram que no
início dos anos 60, os mais jovens deixaram de fazer uso das pinturas corporais por falta de
autoestima, preconceitos dos regionais e interdições normativas do órgão tutor, levando-os ao
estranhamento do uso do jenipapo dentro e fora dos espaços das aldeias.
A partir do relato oral do Sr. Nestor Gato, de 78 anos, índio Tembé que reside na
cidade de Ourém há 70 anos, fui informado do uso de pinturas corporais pelos mais velhos na
aldeia Tawari e, entre grupos de caçadores Tembé que percorriam antigos territórios visitando
parentes em vilas e Sede do referido município em 1958. Provavelmente foi no início dos
anos 60, quando o SPI passou a aceitar a presença de regionais dentro das aldeias, que o uso
das pinturas corporais “desapareceu” entre os Tembé do Guamá.
41

1.3 A CONTRIBUIÇÃO DO PAJÉ CHICO RICO TEMBÉ NA SOCIALIZAÇÃO DE


SABERES TENETEHAR ENTRE OS TEMBÉ DO GUAMÁ

Considerando a hipótese do suposto “desaparecimento” das pinturas corporais entre os


Tembé do Guamá no início dos anos 60, sua renovação por meio da reintrodução entre 1992 e
1993, a difusão e ressignificação entre 1993 e 2003, e por último seu empoderamento e
agenciamento entre 2009 e 2012, é pertinente aludir que o meio de transmissão e difusão dos
saberes da “ciência do jenipapo” ocorreu predominantemente pela oralidade, em espaços da
escola, da ramada e acampamentos improvisados nas matas.

Esse pajé Nelson que tava lá na São Pedro, veio passar uns tempos por aqui e foi
quem ajudou nós, ele e a mulher dele. Ela ensinava as meninas a ralar o zanepaw, o
jenipapo que tira a tinta pra fazer as pinturas. (Dona Neném Tembé, aldeia Ytaputyr
em 30/04/2018).

Considero que a primeira dinâmica de renovação cultural entre os Tembé da RIARG


deu-se, sob a liderança de Verônica Tembé e seus aliados parentes do Gurupí a partir de 1979,
e culminou na reorganização (1992-1993) junto aos Tembé do Guamá, onde esteve a frente o
cacique geral Kelé Tembé e o agente Dilson Marinho, o que avalio ser o segundo momento de
união e renovação cultural.
Esse movimento contrapôs-se às invasões dos posseiros e aos planos de
desmembramento do território Tembé pelo governo militar, levando a necessidade estratégica
de manter os laços de união e organização em função de apaziguarem as brigas internas, de
voltarem-se para o reaprendizado da língua, das cantorias e das pinturas corporais, necessários
a construção da unidade Tembé enquanto proposta coletiva de renovação da cultura dos
antigos Tenetehar, a fim de garantir a legitimidade étnica perante os não indígenas, e,
consequentemente, a unidade do território, segundo Alonso (1996).
A partir do ano de 2003, uma terceira dinâmica de renovação cultural teve início nos
ensinamentos do pajé Chico Rico, que junto a sua esposa Pirimina Guajajara e parentes como
Félix, Moreira, Livino, Emídio, Pedro Teófilo, Jeja, Clemente, Israel, Naldo, Piná, Zequinha,
Zé Grande, dentre outros, foi responsável pela introdução no alto rio Guamá do ritual da Festa
do Moqueado realizado na aldeia Frasqueira. Considero este acontecimento, retomado entre
2009 e 2012, como o de maior repercussão, difusão, aceitação e empoderamento do uso das
pinturas corporais de modo mais efetivo em todas as aldeias do Guamá. Após a morte de
Chico Rico em 2012, uma nova dinâmica sociocultural está em curso nas aldeias do Guamá
42

desde 2014, quando a aldeia Sede passou a realizar os rituais de iniciação, acompanhada pela
aldeia São Pedro em 2018.
Diferente do “tempo de Nelson e Dilson”, onde houve certa rejeição ao uso de pinturas
corporais da parte de alguns Tembé, principalmente os que tinham contatos mais frequentes
com as regionais no município de Capitão Poço e vila de Boca Nova, a realização da Festa da
Menina Moça implicou num efeito de adesão mais espontânea ao uso das pinturas corporais.
A partir da segunda Festa do Moqueado e do primeiro Mingau da Menina Moça realizados na
Ytaputyr em 2006, esta aldeia tornou-se a maior referência na divulgação da cultura Teneterar
no alto rio Guamá, reunindo no ritual, uma vez por ano, durante mais de uma década, os
parentes de aldeias do Guamá, do Gurupí, de Turé Mariquita, de Jeju e Areial, vindo a receber
a visita de parentes Guajajara em 201342.
A mudança do pajé Chico Rico, e de sua extensa família para residir na aldeia
Ytaputyr marcou uma nova fase de intercâmbio, aprendizado e assimilação de saberes que são
compreendidos no uso da língua Tembé, das cantorias, das narrativas orais e das pinturas
corporais entre os parentes do Guamá. Junto a sua esposa e filhas Muruka’i Tembé, Tutui
Tembé e Taréia Tembé passaram a ensinar alguns dos segredos no preparo e uso do jenipapo,
e na elaboração de padrões mais estilizados em pinturas corporais da Lua/Zahy, Cuia, Onça,
Tamatá e Jabuti.
Tive a oportunidade de conhecer e dialogar com Chico Rico em diversas ocasiões
entre 2009 e 2012, tanto nas aldeias São Pedro, Frasqueira e Ytaputyr, quanto nas cidades de
Capitão Poço e Ourém. Foi um pajé de renomada referência entre os parentes do Guamá,
tanto pelo seu ativismo cultural quanto pela sua atuação e habilidade de pajelança, conselheiro
e líder familiar. Sua atuação com parentes da aldeia Ytaputyr teve início no ano de 2009,
quando passou a ensinar a fala da língua Tembé, cantorias e a ciência do jenipapo no uso das
pinturas corporais de rituais.
Em maio de 2012, participei do ritual do Mingau de três jovens iniciadas na aldeia
Ytaputyr, momento oportuno onde dialoguei com Chico Rico, a quem indaguei sobre o
significado das pinturas corporais que as jovens iniciadas usavam no corpo. Ele explicou-me
que se tratava da pintura da Lua/Zahy ou Lua Nova e, apontando para o céu falou que as

42
Pela primeira vez Guajajaras de aldeias no Maranhão participaram no ritual Wirau haw na aldeia Ytaputyr,
dentre os quais um pajé, cantores experientes e da liderança Sônia Guajajara, o que demosntra a repercussão e o
reconhecimento do fortalecimento das tradições Tenetehar entre os Tembé do Guamá.
43

meninas estavam em fase de crescimento, comparando com a Lua Nova. Quanto à pintura
usada na face da iniciada afirmou ser a da Onça Jaguatirica/Zawar Marakada, animal
considerado encantado e presente nas matas do Gurupí e Guamá. Relatou-me que foram as
onças quem ensinaram os Tenetehar a fazerem o Moqueado da Menina Moça.

Figura 3 - Cacique Pedro Teófilo Tembé e Pajé Chico Rico no ritual Wirau haw - Aldeia Ytaputir

Fonte: Autor, 2012


44

CAPÍTULO II – A CIÊNCIA DO JENIPAPO NA COSMOLOGIA TENETEHAR E


SEUS SIGNIFICADOS E FUNÇÕES NO USO DAS PINTURAS CORPORAIS

Neste capítulo procurei abordar aspectos da cosmologia dos Tenetehar que permeiam
as complexas relações dos Tembé com seres encantados ou sobrenaturais dos mundos
“visível” e “invisível”, que denominam caruwara, os donos da natureza, que por sua vez
expressam significados e sentidos simbólicos nas funções de uso do jenipapo, enquanto
pintura corporal, no contexto dos rituais, notável a partir do agenciamento de saberes e, das
memórias inerentes as narrativas míticas e históricas. O conceito de cosmologia Tenetehar é
aqui aplicado enquanto referência aos povos indígenas que habitam as terras baixas da
América do Sul e, segundo Gonçalves (2001),

Exerceu, e permanece exercendo, um valor positivo ao indicar a especificidade do


que pode ser encontrado nas sociedades das terras baixas, dando origem a outras
questões como “corporalidade”, “noção de pessoa”, “identidade” e “alteridade.
(GONÇALVES, 2001, p. 24).

Refletir sobre a cosmologia dos Tembé implica, antes de tudo, em entendê-la como
profundamente marcada pela coexistência de relações interculturais que há séculos tem
influenciado e transformado suas visões de mundo, seu modo de vida, sua relação com a
natureza e com suas crenças ancestrais. Ignorar ou omitir estas ponderações ao se afirmar que
tal cosmologia opera em códigos, essencialmente ameríndios, significa assumir um
posicionamento anacrônico e impertinente sobre a realidade atual dos subgrupos Tembé que
habitam as aldeias do alto rio Guamá.
O que de fato temos é uma cosmologia marcada pelo fenômeno da transculturação,
estando esta imbricada com as visões de mundo ameríndias e modelos cognitivos do
paradigma ocidental cristão. O antropólogo Fernando Ortiz (1987) desenvolveu o conceito de
transculturação43, ao analisar a sociedade cubana nos aspectos multiétnicos e multicultural em
1940, utilizando-se de abordagem socio-histórica para entender que primeiro houve uma
acomodação e suplantação da cultura nativa indígena a nova cultura castelhana e, em

43
Em Ortiz (1987) a palavra transculturação foi empregada “[...] para expressar los variadíssimos fenómenos
que se originan en Cuba por las complejísimas transmutaciones de culturas que aquí se verifican, sin conocer las
cuales es imposible entender la evolución del pueblo cubano, así em lo económico como em lo institucional,
jurídico, ético, religioso, artístico, lingüístico, psicológico, sexual y em los demás aspectos de su vida”. (ORTIZ.
p. 93).
45

segundo, pela intensa corrente de imigração para o Novo Mundo de brancos ibéricos e negros
africanos durante a colonização. Desse modo para Ortiz (1987), o conceito de transculturação,

[...] expressa mejor las diferentes fases del proceso transitivo de una cultura a otra,
porque éste no consiste solamente en adquirir una distinta cultura, que es lo que en
rigor indica la voz anglo-americana aculturation, sino que el processo implica
también necessariamente la pérdida o desarraigo de una cultura precedente, lo que
pudiera de cirse una parcial desculturación, y, además, significa la consiguiente
creación de nuevos fenómenos culturales que pudieran denominarse de
neoculturación. (ORTIZ, p. 96).

Tomando por base a crítica que Ortiz (1987) empreendeu ao conceito de aculturação,
de influência anglo-americana, utilizado por Wagley e Galvão (1961) nos estudos sobre os
Tenetehar Guajajara, que, de certo modo, negava a criação de novos arranjos culturais com
relação as culturas ameríndias, que inexoravelmente, iriam sucumbir ao modelo ocidental
capitalista. Avalio que o conceito de transculturação é mais apropriado para o entendimento
da realidade sociocultural dos Tembé do Guamá, permitindo ampliar a reflexão sobre as
relações interétnicas conciliadas nas diferenças culturais, que segundo Polastrini (2011),

[...] a ela podem ser atribuídas vários significados, assim como aplicadas as
diferentes áreas do conhecimento. Para nós, a dinâmica dos processos transculturais
permite “novas” possibilidades de interpretação, de compreensão e de irrupção de
produtos culturais oriundos do contato, do movimento entre as diferentes culturas.
(POLASTRINI, 2011, p. 25).

A experiência na participação em rituais de iniciação me possibilitou vislumbrar com


mais clareza a realidade dos Tembé do Guamá, onde por meio de conversas informais junto a
caciques, lideranças, pais e mães, jovens e anciãos, ouvindo suas falas e narrativas históricas,
chamou-me atenção a crença na existência e interferência em suas atividades cotidianas de
seres sobrenaturais, os caruwaras, tais como a Mãe d’água/Ywán e o Curupira/Kurupir, que
habitam e são donos de lugares como o rio Guamá, igarapés do São Pedro, Medonho e
Tawarí, lagos do Comichão e Medonho, cachoeiras do Bacaba e Ituaçú, capoeiras, matas e
igapós.
Ao longo da convivência passei a identificar saberes que permeiam o modo de vida
das famílias na relação com os espaços de trabalho coletivo na roça, na casa de farinha, na
espera pela caça na tocaia, dos melhores pontos para se pescar, e do tempo da coleta de frutos
dentre outras percepções, que no discurso dos regionais resume-se ao “modo de vida
caboclo”.
A organização social nas aldeias pesquisadas envolve a constituição monogâmica de
famílias nucleares extensas, apresentanto característica uxorilocal enquanto obrigação de
46

residência, agregando jovens recém-casados que passam a residir e a trabalhar junto a família
do sogro por certo período, subdividindo-se em grupos familiares menores em uma ou mais
aldeias. O casamento ocorre entre primos cruzados de famílias da mesma aldeia ou de outras
do Guamá e Gurupí e, com índios de outros grupos étnicos, a exemplo dos Kaapor, Gavião,
Guajajara e Assuriní. Atualmente vem ocorrendo uniões estáveis e instáveis entre Tembé e
não indígenas, o que gera problemas internos quanto a questão de parentesco étnico entre os
grupos de familiares. A classificação de parentesco difere em certos pontos da tradição ainda
presente entre os parentes do Gurupí.
As afinidades de pertencimento a uma aldeia estão relacionadas as redes de amizades e
a extensão familiar de parentesco, que se estendem às aldeias do Gurupí e a parentes
Guajajara em aldeias no maranhão, o que tem permitido certo fluxo de migração e levado às
mudanças que fazem parte do conjunto das aldeias do Guamá.
Cada aldeia tem sua área de ocupação e usufrui dos recursos naturais por meio do
cultivo de roças pelas famílias, por intermédio de relações de trabalho, as quais são mediadas
pelo compadrio ou preparadas via empreita de serviço braçal pago a parentes e a não
indígenas, subtendendo que a posse da terra é transitória por período de até cinco anos.
Trabalhos coletivos em forma de mutirão são realizados em retirada de madeira destinadas a
construção de casas, canoas, retiro em roças, casa de farinha e barracão comunitário; coleta de
cipós e frutos como o açaí, cajuí, uxí, pequi e taperebá; atividades de caça e pesca.
Apesar de aceitarem e creem em dogmas da liturgia cristã (missa, batismo, eucaristia),
de renderem festas e promessas a santos populares do catolicismo orientados desde a década
de 80, por missionários do CIMI, paróquia de Capitão Poço e, mais recentemente pelas igrejas
evangélicas e pentecostais que já construíram seus templos nas aldeias Tawarí e Sede,
acreditam e interagem com os sobrenaturais caruwaras em diversas situações, sobretudo, no
ritual Wirau haw por meio de incorporação/transe.
Com a atuação do pajé Chico Rico, entre 2009 e 2012, houve um movimento de
revitalização na autoestima étnica dos Tembé do Guamá, devido a um fluxo de saberes que se
materializaram em forma de ensinamentos de práticas e valores inerentes a pajelança,
permeando as fases dos rituais e dialeticamente coexistindo com representações do
cristianismo. Isso me fez reportar a seguinte observação: “Os Tenetehar aceitaram e
incorporaram a suas crenças originais apenas aquelas ideias e elementos cristãos que lhes
pareceram mais coerentes ao seu ponto de vista”. (WAGELY e GALVÃO, 1961, p. 106). O
interessante é que esta singular observação parece contradizer a ideia de aculturação
defendida pelos referidos autores.
47

Estou convicto que mesmo passando por mudanças a partir do longo contato
interétnico em forma de transculturação, os Tembé do Guamá não foram completamente
assimilados pelos padrões da cultura ocidental, pois a partir do processo de reorganização
sociocultural entre 1992 e 1993, pela introdução dos rituais Wirau haw em 2003, do Mingau
da Menina Moça e das Crianças em 2006, e mais recentemente com a realização de riruais nas
aldeias Sede e São Pedro, se engajaram no empoderamento de saberes expressos na oralidade
das cantorias e narrativas, na prática da pajelança, no preparo de purag/remédio, no uso das
pinturas corporais e no fortalecimento das crenças em sobrenaturais.
Mesmo que a maioria dos Tembé do Guamá não fale sua língua tradicional, há de
considerar que o bilinguismo predomina entre os parentes do Gurupí. Esta condição viabiliza
o fluxo de comunicação e interação entre os diversos grupos nas aldeias da TIARG. Por outro
lado, o ensino da língua indígena vem sendo realizado em escolas das aldeias Sede e
Frasqueira, a partir da proposta do bilinguismo oral e escrito, possibilitando o aprendizado de
crianças e jovens. Apesar do predominio no uso da língua brasileira incorporada ao modo de
vida das famílias, enquanto principal código de comunicação oral entre os Tembé do Guamá e
Gurupí, a tradução dos significados dos saberes pelos pajés, professores indígenas, cantores e
parentes bilíngues dar-se pela língua Tembé, onde Félix, Paulinho, Bewãnre, Nono, Kuza,
Pirimina, Tutui, Muruka’i, Jeja, dentre outros, são exemplos de tradutores de saberes.
O movimento de emigração de famílias e indivíduos das aldeias Canindé e Tekohaw
às aldeias Ytaputyr e Sede, em curso no Guamá desde 2009, em muito vem contribuindo no
trânsito e assimilação de saberes que permeiam o ensino da língua, cantorias, narrativas,
elaboração de padrões das pinturas corporais e confecção do artesanato. Tal emigração ocorre
a partir de decisão aprovada ou não pelas relações de parentesco, implicando no prévio
entendimento e consentimento entre o indivíduo ou família que emigra, e o cacique da aldeia
escolhida para residir.
Outro aspecto da visão de mundo dos Tembé do Guamá diz respeito ao fato de que,
para eles o dia e a noite não são meramente distinções temporais convencionais, mas que
implicam em tempos que estão relacionados as ações reais de espíritos, seres, entidades e
caruwaras, que são donos de todos os animais das matas, rios, lagos e igarapés. Evitam
frequentar o rio Guamá e afluentes, além de matas fora do espaço da aldeia em horários como
meio dia, seis da tarde e meia noite, as conhecidas “horas mortas”, pois, são associados a
presença da Mãe d’agua/Ywán.

[...] a ocorrência constante dessa preocupação de observar o mundo circundante é


que podemos entender a visão que os Tupí têm de seu universo. O mundo animal e
48

vegetal, em primeiro lugar e os demais aspectos da natureza propõe ao homem um


modo de pensar. Os Tupí desta forma, em busca de diversas explicações, atingiram
uma forma de pensamento que integra toda a vida natural e sobrenatural num
mesmo nível. Assim, o antropólogo somente pode considerar essas duas categorias
(o natural e o sobrenatural) como dissociadas para fins de tradução da cosmologia
Tupí para o seu domínio semântico. (LARAIA,1986, p. 233-234).

São comuns os relatos sobre crianças, jovens e adultos de ambos os sexos serem
“flechados” pela Mãe d’agua/Ywán, caruwara da mais ativa, por terem transgredido regras de
conduta ao frequentar locais de banhos em horas impróprias. Pude observar por diversas
vezes, recomendações dos pais para que se passasse alho no tórax da criança em sentido de
cruz, mesmo sendo batizada, quando fosse levada para banhar no rio ou igarapé. As mães
colocam uma pequena pena vermelha de pássaro afixada com cera natural no cabelo das
crianças e, colares de miçanga vermelha ao pescoço para fins de proteção contra males
provocados por seres “invisíveis”.

Eu conheci assim, quando leva criança e chega lá na beira do igarapé o que faz? Não
tem uma areia fina na beira do igarapé? Aí a gente pegava aquela areia tira um
pouquinho e bota na boca da criança e banha. Outra coisa, a gente leva um dente de
alho e passa em cruz no pezinho dela, na mão, na testa, e o alho agente deixa na
beira do igarapé. Isso tudo é a ciência da Mãe d’água [...]. Às vezes tem um
peixinho por lá que fica na cacimba e a criança começa brincar, isso eles diziam
assim pra gente: Olha a gente não brinca! Ele é a Mãe d’água, a dona do igarapé, a
dona da cacimba. E lá agente não mexe na cacimba. (Ana Oliveira Tembé (Nica
Tembé), aldeia São Pedro em 27/01/2019).

Em conversas com Félix ouvi histórias e cuidados a serem observados para que uma
pessoa ou objeto não venha a ficar sarú ou panema. Seu relato reportava-se as dificuldades
encontradas por parentes em atividades de caça, pesca, ou “má sorte” com prejuízo de algum
bem material. O uso de purag/remédio preparado pelo pajé, em forma de infusão e
defumação, envolvendo os mais diversos recursos da natureza, é realizado para fins de
proteção contra possíveis interferências a que estão sujeitos. Em Wagley e Galvão (1961) é
possível identificar referências a essa característica entre os Tenetehar Guajajara.

O Tenetehara enfrenta diariamente situações como doença, um parto difícil, panema


nas caçadas, uma colheita que é destruída [...] Êle acredita firmemente que a causa
reside na ação dos azang, espíritos errantes dos mortos; ywan, o dono da água e dos
sêres que habitam a água; maranay’wa, o dono da mata e dos bichos. Para controlar
essa variedade de sobrenaturais malignos e hostis ao homem, acreditam que somente
os pajés são capazes [...] pelo próprio poder-mágico que desenvolveram. (WAGLEY
e GALVÃO, 1961, p. 105).

A percepção sobre a relação dos Tembé do Guamá com a natureza e seus donos, nem
sempre fica explícita para quem dispõe de pouco tempo de convívio junto a eles em suas
49

atividades cotidianas. Ao observarem comportamentos de insetos (formiga, cupim, abelha e


borboleta), dentre outros animais como pacas, cotias, porco do mato ou cantos de pássaros em
determinados meses do ano, fazem referências às memórias e saberes dos mais velhos ao
traduzirem determinados “sinais” que os levam a identificarem como sendo tempo de cema,
de coleta de determinado fruto, de coivara, de queima da roça, de cheia ou seca do rio Guamá,
de fases da lua para melhor plantar, pescar e caçar. No entanto, foi durante a realização dos
rituais de iniciação que melhor percebi suas discretas ações que revelam traços de sua
identidade ameríndia.
A figura do pajé, a exemplo de Nelson Tembé, ainda impõe respeito e autoridade
quanto a seus dons espirituais e práticas sobre os benefícios de cura dos purag/remédios feitos
de ervas, raízes, resinas vegetais, ossos de animais e penas de pássaros. Isso ficou evidente na
constante procura pelos seus serviços na aldeia São Pedro, para fins de cura corporal e
proteção espiritual. Para esse pajé Maíra é tão real quanto Jesus para um devoto cristão e, sua
conversa com o missionário Claudemir após o termino da “brincadeira” da Menina Moça na
aldeia São Pedro ilustra minha observação.

Claudemir- Esqueci de lhe agradecer ontem pela festa bonita muito obrigado! Eu
disse pro Kamirã que essa festa parecia um negócio inédito né? Serviu pra esse
momento juntar todos eles que estão assim, meio brigados um com outro, e essa
festa juntou todo mundo.
Nelson- O que fez a festa ficar animado?
Claudemir- Foi a cultura né?
Nelson- Não! Foi Maíra que ajuntou agente tudinho, e eu pedi pra ele. Maíra é Deus.
(diálogo gravado durante a entrevista com o pajé Nelson, em 22.04.2018, aldeia São
Pedro).

2.1 A RELAÇÃO E INTERAÇÃO DOS TEMBÉ DO GUAMÁ COM OS


CARUWARAS

Sem dúvida que esta interface da cosmologia dos Tembé do Guamá é a mais complexa
de se tecer argumentações, haja vista que para eles o termo caruwara se refere a uma
diversidade de espíritos encantados de animais e parentes que interagem em diferentes
espaços e tempos, a partir de diferentes relações de cooperação e estranhamento com o
“mundo material” dos humanos e o “mundo imaterial” dos caruwaras. Contribuiu
significativamente para melhor esclarecimento desta categoria sobrenatural entre os Tembé do
Guamá, a metodologia utilizada por Laraia (1986), sendo pertinente à medida que aponta duas
hipóteses que possibilitaram a transitar por entre as teias simbólicas que envolvem o sistema
de crenças de meus interlocutores:
50

a) a primeira formulada por Wagley e Galvão (1961: 107) e implícita no texto de


Nimuendaju (1915): “Os Tenetehara se referem aos sobrenaturais pela designação
genérica de karowara, porém os distingue em pelo menos em quatro categorias:
criadores ou heróis culturais (Mahira, Mukwani, Tupã e Zuruparí); os donos da
floresta e das águas ou dos rios (Ywan, Maranaiwa); os azang, espíritos errantes dos
mortos; e os espíritos de animais (piwara). b) a segunda hipótese emanada de nossas
investigações entre os Surui e Akuá-wa Asurini, que nos levaram a considerar os
karowara, como um espírito especial diferente dos heróis míticos e que quando
descontrolados podem causar doenças e mortes”. São os karowara que chegam
através da fumaça e possibilitam o transe dos xamãs. Dominados por estes, o
conduzem até a presença de uma “sarawara” (onça), espírito protetor dos xamãs. O
controle dos karowara constitui, por tanto, a técnica do xamanismo. (LARAIA,
1986, p. 238-239).

Nota-se que as duas hipóteses se referem a cosmologia de etnias Tupí, no entanto,


apresentam diferenças no que diz respeito a classificação e diferenciação das funções das
caruwaras míticas da primeira hipótese, em relação as funções das caruwaras da segunda
hipótese, que só podem ser controladas com a intermediação dos saberes do xamã/pajé. Na
cosmologia dos Tembé do Guamá e Gurupí, observei que convergem características das duas
hipóteses, a exemplo dos donos da floresta, dos animais e das águas; as caruwaras errantes
dos parentes que não tiveram uma boa morte e transitam em taperas e lugares onde passeavam
quando vivos; espíritos de animais que se manifestam através de doenças quando regras e
tabus não são observados pelas vítimas; e, finalmente, a prática da pajelança enquanto saberes
materiais e imateriais que possibilitam ao pajé chamar, controlar e expulsar caruawas.
As referências a Maíra Ira, Tupã e Zuruparí ficaram restritas as narrativas dos mais
velhos do Gurupí, a exemplo de Nelson, Chico Rico, Lourival e Moreira, enquanto no Guamá
eles foram “invisibilizados” mediante o panteão do catolicismo popular, que remete a
devoções e promessas a santos padroeiros como São Raimundo, São João e São Benedito.
Poucos são os que aferem crenças aos feitos de Maíra Ira no Guamá, a exemplo de Félix, que
a partir dos ensinamentos de Lourival afirma que ele existe e, sua morada está localizada nas
cabeceiras do rio Gurupí, onde vive com os espíritos dos antepassados Tenetehar.

Segundo os mais velhos dizem, como o velho Lourival, o rio que o Maíra Ira subiu
foi o Gurupí. Depois que eles saíram de lá das aldeias das onças, eles levaram outros
animais inclusive a onça, por ser uma das grandes inimigas que comeu a mãe dele
né, mas tinha que ficar porque ela faz parte da história, foi ela quem ensinou a cantar
e a fazer a Festa do Moqueado. E nessa viagem ele passou mesmo por ali com os
animais que iam seguindo ele, porque ta lá a marca do rastro da onça na pedra pra
quem quiser ver. (Félix Tembé, aldeia Ytaputyr, em 27/01/2019).

Com a atuação de pajés do Gurupí nas aldeias Sede, São Pedro, Frasqueira e Ytaputyr,
durante o processo de reorganização sociocultural nos anos 90, e posteriormente, o fato de
51

Ytaputyr ter se tornado, entre 2006 e 2013, a referência do fortalecimento e manutenção da


cultura Tenetehar nas aldeias do Guamá, resultado da exemplar amizade entre o pajé Chico
Rico e o cacique Pedro Teófilo44, o termo caruwara passou a ganhar novas interpretações aos
parentes do Guamá, especificamente para aqueles que têm laços mais estreitos com a
realidade do Gurupí. Para Castro (2006),

[...] Um espírito, na Amazônia indígena, é menos assim uma coisa que uma imagem,
menos uma espécie que uma experiência, menos um termo que uma relação, menos
um objeto que um evento, menos uma figura representativa transcendente que um
signo do fundo universal imanente – o fundo que vem à tona no xamanismo, no
sonho e na alucinação, quando o humano e o não-humano, o visível e o invisível
trocam de lugar”.[...] Mas se os conceitos amazônicos que traduzimos por “espírito”
não designam, a rigor, entidades taxonômicas, e sim nomes de relações,
experiências, movimentos e eventos, então não é impossível que noções como as de
“animal”e de “humano” tampouco constituam elementos de uma tipologia estática
de gêneros do ser ou macro-formas categoriais de uma classificação “etnobiológica”,
sendo, ao contrário, coisa completamente diferente: como os espíritos, elas seriam
dispositivos de imaginação. (CASTRO, 2006, p. 326).

Em conversa informal com Antônio Tembé, Cassuí Tembé e Jereba Tembé, na aldeia
Ytaputyr durante o ritual do Wirau haw, em 2018, perguntei a eles o que entendiam por
caruwara. Todos foram unânimes em afirmar serem espíritos dos parentes mortos que vem
“brincar” com os parentes vivos, além de identificarem Ywán/Mãe d’água enquanto caruwara
bastante ativo ao “flechar” aqueles que desobedecem às regras durante o ritual indo banhar-se
em rio ou igarapé. Nenhum deles me relatou que espíritos de animais eram caruwaras, no
entanto, em conversas que tive com Félix, Moreira e Nelson, os três afirmaram que os
espíritos da arara, do gavião, do veado, do mucura, do bacurau, da guariba, da onça e do
inseto borboleta, podem se manifestar na Festa do Moqueado. Nas aldeias Ytaputyr e Sede,
presenciei e registrei caso de incorporação de caruwaras, em jovens meninas iniciadas e não
iniciadas que participavam no último dia do referido ritual.

Onça tem caruwara e quase todos os bichos. Só tem um bicho que eu nunca ouvi
falar que é o tazahu, porco queixada, mas as caças do mato elas tem. A onça tem a
dela e pode ter até três caruwaras de outros bichos, ela tem essa possibilidade porque
ela não ta só com o espírito dela, ela tem espíritos de outros animais e por isso que
matar ela tem que ter cuidado quando a mulher tá buchuda, ta de resguardo. Cuidado
de não matar esses bichos assim porque quando trás ele de lá do mato, o espírito

44
Entre 2009 e 2012, Chico Rico tornou-se um purumu’e ma’e/professor das tradições Tenetehar na aldeia
Ytaputyr, ensinando a língua, narrativas míticas e as cantorias a jovens e adultos, a exemplo de Paulinho Tembé,
Fábio Kupi’ir Tembé, Nonon Tembé, Leleu Tembé, Jeja Tembé, João Tembé, Antônio Maria Tembé, dentre
outros, enquanto Pirimina Guajajara ao lado de Nenen Tembé, Fausta Tembé, Plek Tembé, Rebeca Tembé e
Cilene Tembé, atuavam junto as jovens moças no aprendizado das tradições durante a realização do Wirau haw.
52

dele pode vim e aí adoece a criança e a mulher, então Tembé não come onça por
causa dessa questão, [...] esses bichos como a guariba, anta e também o cuamin, eles
se transformam em azag (espirito de animais). Esses animais todos têm espíritos né.
O Pedro disse que participou de uma cantoria lá no Gurupí onde tava o Nelson,
Paxik e outros pajé, e ele disse que eles comiam era brasa mesmo quando eles
estavam com o caruwara do cururu. Eu observo que todos eles, as caruwaras, têm
participação nesse mundo porque eu tava conversando com o Xarope, que de
primeiro os animais falavam e tinham contato com a gente. (Félix Tembé, aldeia
Ytaputyr, em 27/01/2019).

Certamente que para os Tembé do Guamá as caruwaras existem e, mantém relações


de cooperação e proteção junto aos vivos; outras são identificadas como espiritos perigosos
que podem ser chamadas, incorporadas, controladas e expulsas pela mediação de um
experiente pajé, sendo causa de adoecimento e até de morte se não contidas. Percebi que
alguns dos iniciados usavam o crucifixo e até o rosário durante o ritual de iniciação, sendo
retirados no sexto dia da pintura corporal e substituídos no último dia pelo colar de miçangas
brancas. Alguns Tembé evitam ir para dentro da ramada em momentos altos no último dia do
ritual, mantendo certa distância com receio de “pegar” caruwara.

A caruwara quando entra no corpo da pessoa faz bem para aquela pessoa porque
limpa. É toda uma questão espiritual e é por isso que quando a gente canta a música
da panám vem a caruwara da panám porque a gente sabe lhe dá com ela [...]. A
caruwara é o espírito de tudo, principalmente dos nossos mais velhos, nossos
antepassados que já faleceram e que gostam da brincadeira, aí eles vêm. Mas
também tem do sapo cururu, mas não vem pra qualquer um, dá mais em pajé que
sabe lhe dá porque é mais forte. O Chico Rico estava em festa aqui e tinha um fogo
ali, ele abaixava a caruwara do cururu e comia brasa mesmo pegando fogo, normal
pra ele (Wilson Tembé/NononTembé, aldeia Ytaputyr em 26/01/2019).

Relatou-me Moreira Tembé que os caruwaras também são espíritos de parentes que já
se foram desta vida, mas que retornam para junto de seus parentes durante a “brincadeira” da
Menina Moça, para ouvirem suas músicas preferidas e apreciarem as pinturas corporais das
quais sentem saudades. Tem-se o exemplo comparativo do que ocorre com o uso do jenipapo
entre os Waiãpí, em relação aos Tembé, na medida em que “[...] a pintura marca a separação
entre os vivos e os mortos, que deixam de usar o jenipapo e de pertencer ao mundo social
[...]”. (VIDAL, 1992, p. 131). Em sua interessante abordagem a antropóloga observa que as
pinturas corporais são entendidas na cosmologia Waiãpí com a finalidade de:

[...] alterar a posição do indivíduo em face de seus vizinhos e, sobretudo, em face do


mundo sobrenatural. Em todos os casos, visam modificar a distância – aproximando
ou separando – entre o homem e o mundo dos outros, sejam eles indivíduos rivais ou
entidades sobrenaturais. (VIDAL, 1992, p. 227).
53

Durante as Festas do Moqueado que acompanhei nas aldeias Ytaputyr, São Pedro e
Sede, entre 2017 e 2019, além do levantamento de informações sobre os significados e
funções do jenipapo nas diferentes pinturas corporais, observei o uso de outros elementos da
natureza que são prescritos por pajés e conselheiros e, considerados obrigatórios para o bom
andamento do ritual quando se trata de interagir com os caruwaras.
O cigarro feito da mistura do o tabaco com o pó da resina do breu e, enrolado em fibra
de tawarí e papel, junto ao maracá e a àwàhu45, é um instrumento imprescindível para que o
pajé possa se comunicar, chamar, jogar e controlar a diversidade de caruwaras que por
diversas razões venham a se incorporar as jovens iniciadas durante toda a semana do ritual.
São tecidos por homens e mulheres e colocados em um pequeno paneiro ou cuia que fica aos
cuidados das mulheres que acompanham os cantores.
Qualquer jovem ou adulto de ambos os sexos que esteja na “brincadeira” pode fumar o
cigarro do tawarí, no entanto, o cigarro do pajé é preparado por ele mesmo e, se diferencia dos
demais pelo tamanho, espessura e por conter outras substâncias naturais do seu conhecimento.
Nos rituais de iniciação que ocorreram nas aldeias, entre 2009 a 2018, observei que os pajés
Chico Rico e Nelson, o cantor Moreira e a experiente Pirimina, tragavam a fumaça do cigarro
de tawarí e sopravam em suas mãos, para em seguida massagearem a nuca, braços, mãos e
dedos de meninas incorporadas por caruwaras. Avalio pertinentes as afirmações em Laraia
(1986), para aludir sobre a prática da pajelança realizada no ritual da Festa do
Moqueado/Wirau haw.

[...] nos outros grupos Tupi o xamã existe e deve agir como mediador entre os
homens e os seus heróis, entre os vivos e os mortos, sem, contudo, perder as suas
características humanas. É através da cura, do estado de transe e na execução dos
rituais que o pajé desempenha o seu papel [...]”. “O xamã não atinge o estado de
transe apenas durante as curas, mas em outras ocasiões, principalmente quando
efetua as “suas longas viagens” (ou “grandes sonhos”) até as paragens habitadas
apenas pelos mortos ou sobrenaturais. É durante estas excursões que adquire o
conhecimento sobre assuntos que considera de importância para o grupo. (LARAIA,
1986. p. 247-248).

A árvore do tawarí tem significado simbólico muito especial, pois ela pertence ao
caruwara Curupira/Marana-ywa, que deve ser comunicado de acordo com as regras, antes de
conceder permissão para a retirada da casca do tawariseiro, que além do uso na confecção do

45
Cantoria breve e específica feita por pajés para fins de cura e controle sobre ações maléficas de caruwaras no
ritual de iniciação Wirau haw.
54

cigarro, é amarrado aos esteios da ramada e utilizado como ornamento corporal na cabeça,
braços e pernas, com a função de garantir proteção contra caruwaras maléficos. A música do
Tawarí é praticamente obrigatória e uma das mais cantadas durante a semana de realização do
Wirau haw.
O breu, uma resina aromática petrificada que se forma da ceiva da árvore do breu, é
outro elemento natural de estimado valor simbólico e prático, no seu constante uso do início
ao final dos rituais, sob a forma de defumação dentro e fora da ramada quando queimado. Seu
uso se dá em função da proteção dos iniciados e de todos os parentes que estão dentro e fora
da ramada, ao purificar a “passagem” das caruwaras, que sempre fica na posição frontal para
o grupo de cantores, sentado um ao lado do outro em banco de madeira coletivo liderados
pelo pajé, ou por um cantor experiente, acompanhados de um grupo de mulheres jovens e
adultas, que ficam sentadas em bancos de madeira coletivos logo atrás dos cantores, onde
fazem uma segunda voz ao som de a ehe he! ehe he!.
O uso corporal do jenipapo nos rituais de iniciação, no contexto das representações
práticas e simbólicas da ciência do jenipapo, se configura em uma rede de interações entre os
Tembé e os caruwaras de parentes já falecidos, e de animais que vivem “espaços encantados”
na natureza e, remete a celebração da boa saúde física, mental e espiritual dos iniciados na
passagem para a vida adulta, porém, segundo Moreira Tembé, deve-se ter cuidado com o seu
uso, pois é um fruto da natureza entregue aos Tembé pelos caruwaras, os donos das pinturas
corporais.

2.2 USO E FUNÇÃO DO JENIPAPO NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA


DOS TEMBÉ DO GUAMÁ

A contribuição em Castro (1977) ao tratar da fabricação do corpo humano, enquanto


processo responsável pela construção da identidade social da pessoa na sociedade dos
Yawalapíti46do Alto Xingú foi relevante para a compreensão do significado cosmológico
agenciado pelos Tembé do Guamá em relação ao uso do jenipapo, da mandioca, da
macaxeira, do jerimum, da mandiocaba e das carnes dos animais encantados no preparo do

46
Castro (1977) afirma que em tal processo “não é possível uma distinção ontológica – tal como o fazemos –
entre processos sociológicos, ao nível do indivíduo”, argumentando que o entendimento da especificidade da
persona xinguana em relação a persona Jê, não se restringe unicamente a metafísica ocidental durkeimiana,
dando ênfase ao fato de que “para os Yawalapíti as transformações do corpo e da posição social são uma e a
mesma coisa”. (CASTRO, 1977, p. 40-41).
55

purag/remédio que são indispensáveis a purificação e preparação dos corpos das crianças e
dos jovens nos rituais de iniciação. Segundo o antropólogo, os Yawalapíti comungam de uma
concepção geral que:

o corpo humano necessita ser submetido a processos intencionais, periódicos, de


fabricação [...] tal fabricação é concebida dominante, mas não exclusivamente, como
um conjunto sistemático de intervenções sobre as substancias que comunicam o
corpo: fluidos corporais, alimentos, eméticos, tabaco, óleo e tinturas vegetais.
(CASTRO, 1977, p. 40).

A proposição do autor sobre a fabricação do corpo na cosmologia Yawalapíti, não se


reduz apenas a prática da ornamentação e exibição do corpo, mas que envolve concepções ao
conceito do fazer consciente e intencional do corpo humano, enquanto substância material de
negação do corpo não humano. Esta metamorfose encontra-se advogada em narrativas míticas
que retratam a cura, o adoecimento e o xamanismo, compreendendo o ciclo de geração da
vida, sua capacidade de reprodução e morte, pois se fundamenta no fato de que “a natureza
humana é literalmente fabricada, modelada pela cultura. O corpo é imaginado, em vários
sentidos pela sociedade”. (IBID, 1977, p. 40).
Considerando as diferenças entre as cosmologias Tenetehar e Yawalapíti, entendo que
a perspectiva antropológica em Castro (1977) corrobora as finalidades e intencionalidades
específicas do uso do jenipapo pelos jovens iniciados Tembé na Festa do Moqueado, em fases
de mudanças como a puberdade, que exigem cuidados em seguir as regras alimentares e
sexuais na reclusão e preparação existencial de seus corpos, para que não venham a se
tornarem corpos “desumanizados” diante da possibilidade de terem suas “almas roubadas” e,
então, transformadas em encantados caruwaras. De modo específico são estas condições
materiais e imateriais mediadas pelo uso do jenipapo nos rituais, que agenciam a formação da
autoidentidade étnica e do reconhecimento social do indivíduo na sociedade Tembé.
O jenipapo e o urucum são considerados elementos da natureza de estimado valor
simbólico, natural e sobrenatural e, suas origens estão associadas a uma dádiva recebida pelos
Tenetehar dos caruwaras, especialmente o jenipapo considerado purag/remédio usado no
preparo dos corpos dos iniciados. Ambos também simbolizam a beleza, a alegria, a felicidade,
a saúde e o bem viver com a natureza e seus donos.
Durante a pesquisa de campo pude identificar um conjunto de saberes que compõe o
que os pajés e conhecedores da tradição Tenetehar entendem por ser a ciência do jenipapo,
referidos nos seguintes relatos orais.
56

O jenipapo você não pode utilizar ele sempre por que ele é uma coisa da natureza,
nem todo mundo se dá bem com o jenipapo no corpo dele, por que não se sente bem.
A anta quando come muito jenipapo ela vai dormir e você chega a matar ela. O
Jenipapo é uma bebida dos animais. Ele afeta o corpo humano pra quem não está
acostumado por que ele vem da natureza. Ele tem uma relação com os espíritos por
que nessa brincadeira (Wirau haw) quando ele (pajé) está cantando ali uma cantiga
que fala algo, e quem é fraco do corpo o jenipapo já mexe com ele”. (Lourenço
Tembé, aldeia São Pedro em 18.04.2018).

Os homens mesmo podem ralar o jenipapo, agora só não pode se for duas ou três
pessoas, porque tem que saber se eles num estão sarú, que justamente a mulher
esteje menstruada ou que o homem esteje com a mulher grávida né? (Antônio
Romão Tembé, em 15.10.2018).

Tem criança que não se pinta porque não pode pintar, não aguenta, pinta e dá um
coisa ruim [...] tem pessoas que não podem se pintar porque tem o corpo aberto, aí
encosta caruwara. A filha da Mariazinha quando se pintava não ficava bem, aí tinha
que parar. O jenipapo tem ciência, muita ciência. Pra vê, se a pessoa se pintar na
festa cultural, aí quem ta pintado não pode ir seis horas pro rio, o velho, o adulto, o
novo. Ou vá antes ou vá depois, meio dia e seis horas não pode. Se ela (iniciada)
dançou a semana toda na festa cultural, ela tem ao menos três dias pra poder ir pra
casa dela. Se ela sair no mesmo dia as companhias ruins vão buscar onde tá, e leva
pra mesma casa. Isso é por causa do jenipapo e também o pajé tem que preparar a
menina pra ir pra sua casa. Porque tudo tem uma ciência né? (Dona Nica Tembé,
aldeia São Pedro em 27/01/2019).

O jenipapo tem coisa, tem contato com a Mãe d’água, ele tem uma ciência com a
coisa do mato, que fica chamando por ali, então tem que ter o pajé pra não acontecer
nada de mau porque eles tem a sua defesa pra afastar a caruwara da Mãe d’água,
que ela não se dá com o jenipapo que tem a ciência que alui ela. (Dona Nica Tembé,
Aldeia São Pedro em 27/01/2019).

[...] e ele (jenipao) também atrai muito bicho de água, bicho da terra mesmo como a
cobra. O jenipapo, você passa na mão assim ele é pitiú que só, por isso quando as
meninas quando se pitam na Festa da Moça não podem sair pro mato nem pro rio,
por causa que ele é reimoso. [...] O jenipapo é muito forte, tem gente que até
desmaia e da mulher ele custa mais sair. Se eu tiver toda pintada eu não posso ir lá
pro mato porque eu trago caruwara, ele vem já acompanhado comigo porque é
muito pitiú. Por isso que não pode sair pintado pro rio e nem pro mato horário de
meio dia e seis horas da tarde. (Tutui Tembé, aldeia Ytaputyr em 27/01/2019).

A questão do agenciamento simbólico da ciência do jenipapo, quanto as funções das


pinturas corporais de rituais mencionadas por Nelson, Moreira e Félix relaciona-se as crenças
nos caruwaras e, pode ser compreendida a partir da perspectiva antropológica, segundo
Strauss (1993), que ao argumentar sobre a interpretação mítica observa que,

[...] se a mitologia do xamã não corresponder a uma realidade objetiva não tem
importância, pois que a paciente nela crê e é membro de uma sociedade que nela crê.
Espíritos protetores e espíritos maléficos, monstros sobrenaturais e animais mágicos
[fazem parte de um sistema coerente que funda a concepção indígena do universo.
(STRAUSS, 1993, p. 213).

O uso do jenipapo, enquanto remédio retirado da natureza para fins de prepação dos
corpos dos iniciados subentende a formulação de saberes na experiência vivida do ato de
57

conhecer, para que se possa apreender sua dinâmica na ciência do jenipapo não somente pela
sua utilidade, mas por outras razões que, segundo Strauss (1962), o conhecimento das
espécies animais e vegetais na cosmologia dos povos ameríndios não ocorre apenas porque
são úteis, e sim porque primeiro são conhecidas. Esta percepção viabiliza pensar os saberes
que envolvem o uso do jenipapo a partir da perspectiva dos meus interlocutores, ao que
reporta a seguinte observação:

[...]. Pode se objetar que uma tal ciência não deve absolutamente ser eficaz no plano
prático. Mas, justamente, seu objeto primeiro não é de ordem prática. Ela antes
corresponde a exigências intelectuais ao invés de satisfazer às necessidades.
(STRAUSS, 1962, p. 24).

A busca por informação e esclarecimento sobre as funções de uso do jenipapo nas


fases do pré-ritual da Tocaia e demais rituais, três questões me despertaram dúvidas que
exigiam respostas para o entendimento do meu objeto de pesquisa: Como surgiu o jenipapo na
cosmologia dos Tenetehar? Quais suas funções de uso no pré-ritual e nos rituais de iniciação
feminina e masculina? Qual a sua relação com a caruwara Ywán/Mãe d’água?
As possíveis respostas para tais questões só pude acessar mediante a comparação e
interpretação dos relatos imprescindíveis de Félix, Moreira e Nelson, por meio dos quais
identifiquei analogias, a partir da leitura e reflexão sobre o conjunto das narrativas míticas
Tenetehar em Nimuendaju (1951), Wagley e Galvão (1961) e Zanonni (1999; 2002), onde me
deparei com evidências que apontam para a relação entre o jenipapo e os caruwaras, a
exemplo do fragmento do Mito dos Gêmeos e os Karuwara.

[...] então apareceu um Karuwára para ensinar aos Tembés a cantar, que naquêle
tempo eles não sabiam. Pintado, enfeitado com penas, chocalho e cetro (Araruwaia)
êle subiu ao mais alto galho de pau d’arco da aldeia e começou a cantar [...].
(NIMUENDAJU, 1951 p. 182).

Neste fragmento é possível perceber que o caruwara se apresenta pintado, usa


ornamento de penas, chocalho/maracá e, se comunica por meio da cantoria, que ao final do
mito fica subentendido ter sido entregues aos Tembé enquanto dádiva. Dentre as diferentes
versões deste mito em Thevet (1928), Wagley e Galvão (1961), Huxley (1963) e Zanonni
(1999), apenas em Nimuendaju (1951), fica explícito no referido fragmento, que a pintura
corporal era de uso de um caruwara, porém, implicitamente apontando para Maíra.
58

Figura 4 - Preparo do jenipapo por mulher e meninos iniciados para o ritual Wirau haw

Fonte: Autor, aldeias São Pedro e Sede, 2017 / 2018.

Em diálogo entrevista ao cantor Moreira direcionei as perguntas, a partir das questões


expostas a cima. Dentre várias informações me relatou que o jenipapo tem dono, que pertence
aos caruwaras e, seu uso pelos iniciados no ritual Wirau haw deve ser orientado por quem
conhece seus segredos. Advertiu que se deve ter respeito com o seu uso a pessoa que estiver
pintada participando do ritual, não podendo sair sozinha para o rio Guamá, igarapés e matas,
pois estarão sujeitas a “pegar” ou “trazer” a caruwara Ywán/Mãe d’água, até a “passagem” da
ramada, onde pode vir a “flechar” alguma das iniciadas. (CADERNO DE CAMPO, 12 de
agosto de 2017).
Oito meses após o referido diálogo com Moreira pude colocar minhas dúvidas e
informações a prova do saber de Nelson, o mais respeitado pajé na atualidade entre os Tembé
do Guamá, do Gurupí e, em algumas aldeias Guajajara do Pindaré, a exemplo de Tabocal, no
estado do Maranhão. Por ter sido bastante requisitado pelos parentes em sua prática de
pajelança na primeira Festa do Moqueado realizada na aldeia São Pedro em 2018, me fez
pensar o quanto está submersa, viva e ativa na memória coletiva deste povo a crença na
interação, proteção ou malefícios que podem causar os caruwaras.
Ao longo do ritual na referida aldeia procurei me aproximar de Nelson, para uma
entrevista, o que não foi fácil. Depois de muita insistência tive algumas conversas com ele no
sétimo e último dia da “brincadeira”, ficando a entrevista para o dia seguinte. Fiz as mesmas
perguntas já referidas e então obtive a resposta, segundo ele, que o dono do jenipapo e do
urucum é o caruwara Maíra. Esta informação me levou avaliar a pertinência de sua resposta
através da interpretação e reflexão sobre as ações de Maíra no “Mito dos Gêmeos e os
Karuwara” em Nimuendaju (1951). Compreendo que a resposta de Nelson corrobora com a
observação feita por Laraia (1986), segundo a qual:
59

“[...] são as entidades de origem vegetal que constituem o escalão mais importante
dos seres sobrenaturais. Situam-se numa categoria inferior os que foram feitos por
Mahira [...]. A crença em Mahira está associada a fé na sobrevivência da alma [...]”.
(LARAIA, 1986 p. 237).

A resposta para a segunda questão identifiquei na concordância dos argumentos de


Moreira e Nelson, e envolve duas funções principais. Segundo Nelson, sem o jenipapo não é
possível realizar a Festa do Moqueado, pois seu uso é obrigatório, de modo que é considerado
purag/remédio no período da Tocaia e na última fase da “passagem” da jovem iniciada para a
vida adulta, tendo a função de “limpar” o corpo da iniciada lhe trazendo saúde corporal e
sabedoria. Na “passagem” Wirau haw o jenipapo, além de purag das iniciadas, representa
elemento condicionante no cumprimento da manutenção de regra social, expressa no tabu da
virgindade feminina, na alimentação e no respeito aos espaços de domínio dos caruwaras,
possuindo segredos que Nelson denominou de ciência do jenipapo, traduzida em sua resposta
a seguinte questão que lhe expus: Qual a sua explicação para o caso de meninas que passam
mal quando usam o jenipapo no corpo, ou em situações em que o jenipapo não “pega” no
corpo da menina moça? Assim respondeu:

“É por que aquilo ali é por que ela não é moça, assim ó comparação, se se formar
por ela, se não é mais nada, jenipapo é ciência, se não é mais moça não adianta, o
jenipapo conhece a moça. Tinha uma moça lá no Pindaré não pegou não por que
mexeram ela. Se for por ela mesmo pega tranquilo, igual as moças da festa que tava
bem pretinho”. (Nelsom Tembé, aldeia São Pedro em 22.04.2018).

No mito “Criação do Homem” em Wagley e Galvão (1961), está implícito a quebra do


tabu da virgindade da mulher tenetehar ao manter relações sexuais com o caruwara Ywán, e
do homem tenetehar ao manter relações sexuais com sua parceira, ato desaprovado por Maíra
que os puniu com a “morte”, assim como aos descendentes que deles vieram a nascer, mas
garantindo a renovação dos Tenetehar nas futuras gerações enquanto condição de povo
verdadeiro.
Sobre a terceira questão, que envolve a relação do jenipapo com o caruwara Ywán,
identifiquei contradições nas falas de meus interlocurores quanto a condição do jenipapo
atrair ou não caruwara. Nelson explicou que ele não atrai caruwara, e sim que proteje a
iniciada de tais entidades no período de reclusão na Tocaia, pois ao se encontrar menstruada
ela está vulnerável a doenças, o mesmo ocorrendo durante a “passagem” do Wirau haw. Já no
relato de Tutui Tembé citado anteriormente, nota-se que o jenipapo por ter odor pitiú, se
comparado ao sangue no período menstrual, é tido por atrativo de uma diversidade de
caruwaras da mata e da água.
60

No que diz respeito ao termo ciência do jenipapo empregado por Nelson Tembé,
interpreto que equivale à expressão “segredos que se revelam por intermédio do jenipapo”, a
exemplo do que ocorre no mito de Zahy, quando teve sua transgressão do tabu sexual
revelada pelo jenipapo passado em seu rosto. O mesmo significado pode ser aferido ao uso do
jenipapo na fase da Tocaia, simbolizando o tabu da virgindade feminina, que deverá ser
comprovado na última pintura corporal usada na Festa da Menina Moça. Se o jenipapo não
“pegar” no corpo da iniciada, significa que ela não é mais virgem, vindo a ser revelado seu
segredo publicamente ao ter transgredido o tabu, implicando em uma questão moral a ser
observada e reprovada pelo grupo.

A moralidade é uma espécie de significado, um significado com direção, propósito e


motivação, e não um substrato sistêmico. É um constructo cultural, um leque de
contextos construído a partir das associações de outros contextos, assim como suas
próprias associações podem servir para a articulação de outras construções. Os
contextos morais ou convencionais de uma cultura definem e orientam suas
expressões significativas e aqueles que as constroem; eles "juntam os pedaços do
mundo". Eles ao mesmo tempo relacionam construções expressivas e são eles
próprios construções expressivas, criando uma imagem e uma impressão de um
absoluto em um mundo que não tem absolutos. (WAGNER, 2012, p. 82).

A partir dos diálogos com meus interlocutores Moreira e Nelson, passei a ter mais
segurança diante das dificuldades em abordar a complexidade dos significados dos saberes
que envolvem a ciência do jenipapo, acionada no uso das pinturas corporais de rituais:
Ywán/Mãe d’água, Lua/Zahy, Onça Marakaza, Menino e Menina Moça/Ywán. Nesta
perspectiva o jenipapo se constitui em valor simbólico material e imaterial da identidade
étnica dos Tembé do Guamá e, seu significado cosmológico pode ser compreendido, a partir
da perspectiva de Gallois (2007) sobre o seu uso entre os Waiãpí no Amapá.

[...] são saberes e práticas que não poderiam, logicamente, ser nem deles, nem de
outros grupos. Não só porque são produtos das redes de troca entre humanos e
sobrenaturais, como porque são gerados e apenas expressados no âmbito desse
sistema de trocas, entre pessoas, entre grupos, entre humanos e não humanos [...].
(GALLOIS, 2007, p. 97-98).

2.2.1 Mito do Jenipapo


Antigamente o jenipapo era um homem Tenetehar, e ele gostava muito mais era de
mulher esse homem, aí o cacique decidiu não deixar mais ele na aldeia, por causa
que ele gostava mais de mulher e não gostava dos homens, porque quando pegavam
ele pra algum trabalho ele não gostava de ir, aí chamavam ele pro mutirão de roça, aí
ele não gostava de ir, gostava mais de andar com as mulheres. Ai, o cacique decidiu
afastar ele da aldeia e levaram ele pro centro da mata, aí lá ele se perdeu e não soube
mais voltar pra aldeia, aí da aldeia o pessoal foram atrás dele pra vê se ele voltava de
novo pra aldeia, pra vê se ele tinha deixado, assim, as mulheres pra conviver mais
61

com os homens. Foram atrás dele aí de lá ele sumiu, aí num sonho da menina ele
veio como jenipapo. Ele apareceu como um homem todo de preto mesmo e
transformado num homem pra ela, aí a menina falou que era ele, o jenipapo, e falou
para o cacique que ele ainda era vivo, aí ele se transformou em jenipapo, aí por isso
que o jenipapo gosta mais das mulheres do que dos homens, pega mais na mulher do
que no homem. O jenipapo é um homem encantado, o papai contava muito essa
história. (Tutui Tembé, aldeia Ytaputyr em 27/01/2019).

Neste mito do Jenipapo contado por Tutui Tembé, o enredo retrata uma situação de
conflito, no qual remete a um desfecho de encantamento, ocasionado por ato de
descumprimento de regras de convívio social entre homens e mulheres de uma aldeia, levando
a decisão e punição coletiva do tenetehar infrator. Ao ser expulso do espaço social
humanizador da aldeia por seus parentes e, forçado a permanecer no espaço desumanizado da
floresta, o infrator perde sua humanidade ao se transformar em árvore e fruto do jenipapo,
condição esta de encantado caruwara que lhe permitiu manter contato em sonho com as
mulheres e, de continuar junto delas por meio das pinturas corporais.
Observo, também, que está implícito neste mito, o cumprimento de regras que deve
seguir a jovem iniciada quando faz uso do jenipapo no pré-ritual da Tocaia e nos rituais
posteriores, ou seja, há uma correlação simbólica com os saberes da ciência do jenipapo, ao
determinar que a iniciada não deve se afastar da aldeia e nem adentrar locais de matas, pois
estará sujeita as ações de caruwaras e ao encantamento presente no enredo do mito.
62

CAPÍTULO III – NARRATIVAS MÍTICAS TENETEHAR “CHAVES” PARA


ACESSAR OS SIGNIFICADOS DAS PINTURAS CORPORAIS DE RITUAIS

3.1 MITO, MEMÓRIA E IDENTIDADE

Neste capítulo busco argumentar sobre a importância do mito para o entendimento dos
significados simbólicos e cosmológicos das pinturas corporais, especialmente as de rituais,
que enredam a mística do pré-ritual da Tocaia e dos rituais Mingau da Menina Moça e Festa
do Moqueado. Esta metodologia coloca as narrativas míticas Tenetehar enquanto fontes
históricas imprescindíveis para a reflexão e interpretação das pinturas corporais na
cosmologia dos Tembé do Guamá, pois constituem memórias e saberes que remetem a
releçoes de alteridade entre a humanidade Tembé e os personagens caruwaras, “donos” das
pinturas corporais, que por sua vez levam o nome de tais entidades.
Como pensar as representações simbólicas e cosmológicas das pinturas corporais de
rituais, enredadas nos discursos das narrativas míticas no contexto dos rituais? Procuei
responder a esta pergunta, a partir da interpretação e reflexão sobre os mitos Tenetehar
Tembé/Guajajara, enquanto memória coletiva e, considerando os saberes que compõe a
“ciência do Jenipapo” entre os Tembé do Guamá.
Entendo que o mito e os relatos orais viabilizam a contextualizar a perspectiva de
outro lugar de fala dos Tembé do Guamá, pois envolvem relações simbólicas de ordem
cultural, que historicamente são ressignificadas no contexto dos rituais de iniciação e nas
cerimônias culturais, o que possibilita pensar e transgredir as amarras do dualismo conceitual
entre estrutura e história, exemplificada por Shalins (1990):

Tenho observado entre os teóricos do “sistema mundial” a seguinte proposição:


dado que as sociedades tradicionais que os antropólogos habitualmente estudam são
submetidas as mudanças radicais, impostas externamente pela expansão capitalista
ocidental, não é possível manter a premissa de que o funcionamento dessas
sociedades está baseado em uma lógica cultural autônoma. Essa proposição resulta
de uma confusão entre um sistema aberto e a total ausência de sistema, tornamdo-
nos incapazes de dar conta da diversidade de respostas locais ao sistema mundial,
em especial daquelas que conseguem persistir em seu rastro. (SHALINS,1990, p. 8).

Esta afirmação crítica do autor contribuiu para pensar as mudanças e as alternativas de


lugar do outro, representado pelas narrativas Tenetehar, o que leva a reflexão sobre questões
levantadas pela História e, permitindo redimensionar a tendência dualista que permeia o
discurso nas ciências humanas sobre acontecimentos que marcaram a trajetória de grupos
étnicos, que desconsideram os “rastros” de memórias e de saberes presentes nos discursos das
63

narrativas orais enquanto materialidade e imaterialidade histórica. Neste sentido, segundo


Shalins (1990), “a história é construída da mesma maneira geral tanto no interior de uma
sociedade, quanto entre sociedades”. (SHALINS, 1990, p. 9).
Considerando o fato dos Tembé do Guamá terem voltado seus interesses a renovação
dos rituais e crenças tradicionais há três décadas em curso, as narrativas orais podem ser
tomadas como fontes históricas discursivas imprescindíveis para se interpretar, repensar e
acessar os significados simbólicos inerentes as pinturas corporais na cosmologia Tenetehar.
A pesar dos “equívocos” em suas pesquisas antropológicas quanto a inexorável
assimilação dos Tenetehar Guajajara a sociedade nacional, mediante o processo de
aculturação, problema este central na pesquisa de Wagley e Galvão (1961), e de outros
antropólogos americanistas, os autores sinalizaram para uma reflexão que considero relevante,
pois converge com a crítica em Shalins (1990). Refiro-me a ideia de movimento interno de
ressignificação/tradução que os Tembé do Guamá realizam mediante o contato interétnico
com os valores ocidentais, onde alternativas identitárias internas operam em movimento de
afirmação cultural, paralelo ao movimento de forças externas que as negam. Esta é uma
reflexão que faço a partir dos referidos antropólogos nesta singular afirmação:

Apesar de mais de trezentos anos de exposição intermitente à influência de


missionários, os Tenetehara mantêm pràticamente inalterada suas crenças
tradicionais. [...] Os Tenetehara aceitaram e incorporaram a suas crenças originais
apenas as quelas ideias e elementos cristãos que lhes pareceram mais coerentes ao
seu ponto de vista. Sua religião permaneceu fundamentalmente tenetehara.
(WAGLEY & GALVÃO, 1961, p. 105-106).

Foi a partir destas considerações que procurei refletir sobre os discursos das narrativas
míticas analisadas, pois seus enredos e personagens, seus tempos e espaços, apresentam
características identitárias transculturais, cujas memórias ameríndias continuam sendo
acionadas e repassadas as novas gerações nos rituais de iniciação.
Partindo da observação que as pinturas corporais de rituais estão relacionadas as
entidades sobrenaturais, aos animais encantados, a reclusão e preparo de purificação do corpo,
ao cumprimento do tabu da virgindade feminina e a proibição alimentar, identifiquei nos
mitos Tenetehar as condições “chaves” para a reflexão dos significados implícitos na
simbogia das diferentes pinturas corporais. Por tratar-se de duas expressões na cosmologia
Tembé que envolve a linguagem simbólica, entendo ser oportuna a reflexão no âmbito
antropológico, segundo Wagner (2012), do imbricamento conceitual dos termos simbólico,
64

significado, relação, mediação e convenção, que norteiam as pinturas corporais, as narrativas


míticas e os relatos orais.

[...]. Todo uso do elemento simbólico é uma extensão inovadora das associações que
ele adquire por meio de sua integração convencional em outros contextos. O
significado é, pois, produto das relações, e as propriedades significativas de uma
definição são resultados do ato de relacionar tanto quanto as de qualquer outro
constructo expressivo. Mas o significado seria sempre completamente relativo não
fosse a mediação da convenção - a ilusão de que algumas associações de um
elemento simbólico são ''primárias'' e autoevidentes. (WAGNER, 2012. p. 80).

A análise dos mitos Tenetehar permite acessar o pensamento Outro no contexto


sociocultural do lugar de fala dos Tembé do Guamá, que por sua vez evoca uma
ancestralidade étnica, segundo Zanonni (2002), amparada direta e indiretamente na
“oposição” e “reposição” entre natureza e humanidade Tenetehar. A reflexão teórica sobre
conceitos, significados, características e funções do mito, são indispensáveis para pensá-lo
enquanto linguagem das memórias e saberes que traduzem a visão de mundo de determinada
sociedade.
Em perspectiva histórica se observa que, a partir da difusão dos estudos sociais e
antropológicos sobre a mitologia, entre o final do século XIX47 e segunda metade do século
XX, foram elaboradas teorias quanto ao fenômeno do mito, a exemplo da teoria animista de
Tylor48, que avaliou serem os mitos resultados da interpretação distorcida da realidade
fundada em crenças sobrenaturais provenientes das ilusões dos sonhos. O funcionalismo de
Malinowski interpretou o mito enquanto tradução do funcionamento e organização de uma
determinada sociedade primitiva, de modo que configura uma “realidade superior” que
determina a vida coletiva do grupo. Lévi-Bruhl propôs conhecer o mito por meio do estudo da
mentalidade primitiva, interpretada como sendo irracional e emotiva, condição esta dominada
pela crença e misticismo que criam uma realidade primitiva, determinada pela crença no
sagrado e nas entidades sobrenaturais.

47
A Escola de Mitologia Comparada tendo a frente Max Muler e, a Escola Antropológica fundada por Tylor se
destacaram em atribuir uma perspectiva negativa a mitologia, enquanto forma de pensamento e linguagem
“reconhecida pela Razão culpada por seus erros e ignorância”. (DETIENNE, 1992, p. 24-25).
48
Detienne (1992) argumenta que “a antropologia de Tylor se propõe a mostrar a existência de uma mitologia
natural nas raças inferiores, a partir das formas originais da linguagem falada pela humanidade nos seus
primórdios”. (DETIENNE, 1992, p. 25).
65

Diante de diferentes interpretações e definições conceituais sobre o mito no âmbito da


cultura de povos tradicionais, avalio que Eliade (1963:1972) contempla uma perspectiva
plural segundo a qual:
o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo
primordial, o tempo fabuloso do "princípio". Em outros termos, o mito narra como,
graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma
realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal,
um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma
"criação": ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala
apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens
dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que
fizeram no tempo prestigioso dos "primórdios". Os mitos revelam, portanto, sua
atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a
"sobrenaturalidade") de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e
algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do "sobrenatural") no Mundo. É
essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é
hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o
que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural. (ELIADE, 1963:1972, p. 9).

Para Lévi-Strauss (2008), o mito é uma linguagem de alta complexidade, pois ele faz
parte dela por meio da língua e da fala, portanto, se apresenta na ordem do discurso, ou seja,
ultrapassa a própria linguagem. Mesmo que o mito se refira a acontecimentos do passado,
contraditoriamente compreende o que o antropólogo denomina de “sistemas temporais duplos
reversíveis e irreversíveis em forma de estruturas permanentes” referentes ao passado,
presente e futuro. Seu valor intrínseco está na história que o constitui, na medida em que seu
sentido depende da combinação de unidades mitemas que o configuram, da especificidade das
propriedades de sua linguagem e do nível de complexidade em relação a outras linguagens.

Tudo pode acontecer num mito. A sucessão dos eventos não parece estar aí
submetida a nenhuma regra de logica ou de continuidade, qualquer sujeito pode
possuir qualquer predicado, qualquer relação concebível e possível. Contudo, os
mitos, aparentemente arbitrários, se reproduzem com as mesmas características e,
muitas vezes, os mesmos detalhes, em diversas regiões do mundo. (STRAUSS,
2008:1958, p. 223).

A análise sobre a categoria do mito em sociedades ameríndias, segundo Lévi-Strauss


(1964; 1966), compreende que ele se constitui a partir do pensamento mitológico, tendo
origem na práxis humana reflexiva e sensível mediante a contigencia da natureza. Avalio que
a contribuição de Strauss, sobre o estudo interpretativo da mitologia ameríndia, objeto central
nas Mitológicas49, é referência obrigatória para a análise das narrativas míticas em sociedades

49
Strauss refere-se às Mitológicas como um “mito de mitos”, um estudo das representações míticas ameríndias
da passagem da natureza a cultura. Obra única e clássica da antropologia que nos anos 90 do século XX, Strauss
66

indígenas na atualidade amazônica, pois compreende o mito enquanto contra discurso


humano, ou seja,
Os mitos não têm autor; a partir do momento em que são vistos como mitos, e
qualquer que tenha sido a sua origem real, só existem encarnados numa tradição.
Quando um mito é contado, ouvintes individuais recebem uma mensagem que não
provém, na verdade, de lugar algum; por essa razão se lhe atribui uma origem
sobrenatural. (STRAUSS, 2004, p. 37).

As pesquisas de Lévi-Strauss sobre a cosmologia de povos indígenas no Brasil e, em


outros territórios do continente sul americano no século XX, buscou compreender as relações
múltiplas que os mitos anunciam sobre toda uma tradição da constituição do pensamento
mítico ameríndio50, a partir dos aportes teóricos da razão analítica e da dialética51, em seu
método considerado pós-estruturalista52. Foi responsável por redimensionar a reflexão sobre o
mito amparado em crítica de cunho socio-antropológico e filosófico53, que se opõe a

dividiu em “grandes mitológicas”: O cru e o cozido,1964; Do mel às cinzas, 1966; A volta dos modos à mesa,
1968; e o Homem nu, 1971; e “pequenas mitológicas”: A via das máscaras, A oleira ciumenta e História de
Lince.
50
Strauss (1976:1962) interpreta o pensamento mítico ameríndio através do conceito de bricolage intelectual,
que compreende um arranjo estruturado na diversidade, generalização, criação de imagens, analogias e
aproximações. Portanto, um pensamento lógico amparado no encadeamento de noções abstratas propositivas
enquanto qualidades sensíveis.
51
Strauss (1976:1962) em O Pensamento Selvagem, no capítulo História e Dialética, levanta uma crítica a
Crítica da razão dialética de Jean-Paul Sartre, pela oposição que este faz entre razão analítica e razão dialética,
argumentando que esse posicionamento leva a “desacretidar o saber científico. (STRAUSS, 1976:1962, p. 273).
52
Viveiro de Castro e outros antropólogos americanistas classificam os estudos de Lévi-Strauss, nas
Mitológicas, sob a perspectiva pós-estruturalista, fase posterior ao estruturalismo antroplógico sobre o sistema de
parentesco em sociedades tradicionais, uma vez que a análise sobre a sociedade se desloca para as relações entre
o mito em diferentes sociedades, ao passo que a dicotomia natureza e cultura perde seu caráter universal para se
concentrar nos temas míticos, o qual constitui o pensamento ameríndio, refletindo na quase total substituição do
conceito de estrurura por transformação.
53
Strauss (1978) empreendeu sua crítica sobre os efeitos negativos da separação entre a ciência e o que
denominou de lógica do concreto, que teve início nos séculos XVII e XVIII, quando “pensou-se então que a
ciência só podia existir se voltasse costas ao mundo dos sentidos, o mundo que vemos, cheiramos, saboreamos e
percebemos” (STRAUSS, 1978, p. 11). A crítica ao funcionalismo de Malinowski deu-se pelo determinismo que
este estabelecia ao pensamento dos povos sem escritas, por estar limitado a satisfação de suas necessidades
básicas cotidianas, ao que o eminente antropólogo se contrapõe, afirmando que tais “povos primitivos” “[...] são
perfeitamente capazes de pensamento desinteressado, ou seja, são movidos por uma necessidade ou um desejo de
compreender o mundo que os envolve, sua natureza e a sociedade em que vivem. Por outro lado, para atingirem
esse objectivo, agem por meios intelectuais, exactamente como faz um filósofo ou até, em certa medida, o que
pode fazer e fará um cientista [...] trata-se de um modo de pensar que parte do princípio de que, se não se
compreende tudo, não se pode explicar coisa alguma. Isso está inteiramente em contradição com o modo de
proceder do pensamento científico, que consiste em avançar etapa por etapa, tentando dar explicações para um
determinado número de fenómenos e progredir, em seguida, para outros tipos de fenómenos [...]”. (STRAUSS,
1978, p. 22). Por fim, o autor sustenta que “a mente humana, apesar das diferenças culturais entre as diversas
fracções da Humanidade, é em toda a parte uma e a mesma coisa, com as mesmas capacidades”. (STRAUSS,
1978, p. 25).
67

concepção do mesmo enquanto função fabuladora contraria a realidade, interpretando-o na


condição de valores a serem preservados, pois representam

[...] modos de observação e de reflexão que foram (e sem dúvida permanecem)


exatamente adaptados a descobertas de tipo determinado: as que a natureza
autorizava, a partir da organização e dá exploração especulativa do mundo sensível
em termos de sensível. (STRAUSS, 1962, p. 31).

Em perspectiva socio-histórica partindo de Halbwachs (1990) e Pollak (1989;1992), é


necessário fazer uma abordagem das narrativas míticas e dos relatos orais54 enquanto
representações da memória coletiva55 de um povo, elaboradas, evocadas e ressignificadas, em
diferentes contextos temporais e espaciais por homens e mulheres, que passam a dar sentido
ao grupo enquanto testemunho de acontecimento real vivido socialmente e individualmente.
Desse modo, a memória coletiva se coloca sob dois aspectos diferentes, onde de um lado está
o Eu coletivo, relacionado ao que é reportado ao momento presente e material da lembrança, e
do outro enquanto possibilidade de reconstrução e ressignificação do passado. A ideia de
memória coletiva56 em Halbwachs (1990) compreende que:

[...] a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um
conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto
membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se apóiam uma sobre

54
Pollak (1992) observa a oralidade e a escrita, enquanto fontes de estudo da memória de um grupo social, na
medida em que as duas são socialmente construídas, imprimindo uma crítica ao método positivista em relação a
suposta validade do documento escrito sobre as demais fontes de investigação do historiador, a exemplo dos
relatos orais.
55
Outros autores, a exemplo de Finley (1975), também se dedicaram ao fenômeno da memória coletiva vista por
ele como “a memória de grupo”, segundo a qual “nunca é motivada subconscientemente no sentido de ser, ou
parecer ser, tão automática e desprovida de controle, tão espontânea quanto a memória pessoal. A memória de
grupo, afinal, nada mais é do que a transmissão para muitas pessoas das lembranças de um homem, ou de alguns
homens, repetida muitas e muitas vezes; e o ato da transmissão da comunicação, e, portanto, da preservação da
lembrança, não é espontâneo e inconsciente, e sim deliberado, com a intenção de servir a um fim pelo homem
que o executa”. (FINLEY, 1975:1989, p. 21).
56
Halbwachs (1990) faz uma distinção entre memória histórica e memória coletiva nos seguintes termos: “Tal é
o ponto de vista da história, porque ela examina os grupos de fora, e porque ela abrange uma duração bastante
longa. A memória coletiva, ao contrário, é o grupo visto de dentro, e durante um período que não ultrapassa a
duração média da vida humana, que lhe é, freqüentemente, bem inferior. Ela apresenta ao grupo um quadro de si
mesmo que, sem dúvida, se desenrola no tempo, já que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele se
reconhece sempre dentro dessas imagens sucessivas. A memória coletiva é um quadro de analogias, e é natural
que ela se convença que o grupo permanece, e permaneceu o mesmo, porque ela fixa sua atenção sobre o grupo,
e o que mudou, foram as relações ou contatos do grupo com os outros. (HALBWACHS, 1990, p. 47). O autor
também diferencia a memória coletiva da memória individual, na medida em que ela envolve a segunda e
“evolui segundo suas leis. e se algumas lembranças individuais penetram algumas vezes nela, mudam de figura
assim que sejam recolocadas num conjunto que não é mais uma consciência pessoal”. (HALBWACHS, 1990, p.
25).
68

a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um
deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista
sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu
ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros
meios. (HALBWACHS, 1990, p. 23).

Entendo que pensar a relação das narrativas míticas aos significados das pinturas
corporais implica uma abordagem que contempla a ideia de outros lugares da memória, que
não reduz as narrativas a simples recortes da experiência individual e coletiva, e sim que elas
apontam para os papéis sociais dos indivíduos e o dinamismo na rede de múltiplas
significações, que envolve os rituais de “passagem”. A percepção do mito no quadro da
memória coletiva dos Tembé do Guamá, sob a ótica de Halbwachs (1990), implica que tal
memória
[...] se distingue da história pelo menos sob dois aspectos. É uma corrente de
pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, já que retém
do passado somente aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do
grupo que a mantém. Por definição ela não ultrapassa os limites deste grupo.
(HALBWACHS, 1990, p. 43).

O mito enquanto representação da memória coletiva, não deixa de ser um suporte de


mediação que liga e/ou religa o passado ao presente por apresentar-se como possibilidade de
continuação de teias de pensamentos, que supostamente haviam desaparecido com a
instituição da modernidade. Assim, observo os rituais de iniciação sendo indicadores
empíricos de renovação pela ressignificação da memória coletiva e das representações sociais
dos Tembé do Guamá, que por sua vez estão implícitas nos mitos que retratam a preparação e
inserção do indivíduo no mundo social e no mundo natural, por meio do cumprimento de
regras e tabus que envolvem caçada, cantoria, dança, pintura corporal, alimentação,
puberdade, preparação do corpo, aprendizado, relação com os caruwaras, pajelança e
reconhecimento pelo grupo.
Pollak (1992) refere-se à memória coletiva e individual a partir de seus elementos
constitutivos, os acontecimentos vividos, os personagens, o espaço-tempo ligado a
lembranças e, segundo o autor, envolve os fenômenos de projeção e transferência de tais
memórias, sendo suas características a seletividade e a organização57. Torna-se compreensível
que as narrativas míticas Tenetehar se configuram em memórias coletivas e, enquanto forma

57
Pollak (1992) observa que a organização da memória individual ocorre a partir da seleção do que é gravado,
recalcado, excluído e relembrado.
69

de linguagem são resultados de construção social e, por isso, traduzem sentimento de


identidade, coesão social e pertencimento herdado, ao que Pollak (1992) considera que:

[...]. Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de negociação,


de transformação em função dos outros. A construção da identidade é um fenômeno
que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade,
de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com
outros. (POLLAK, 1992, p. 5).

Obsevando-se o mito sob o aspecto da narrativa oral podemos pensar sua valoração e
mediação no quadro da memória coletiva e, no contexto das identidades coletivas, que,
segundo Pollak (1992), esta última alude “a todos os investimentos que um grupo deve fazer
ao longo do tempo, todo o trabalho necessário para dar a cada membro do grupo - quer se
trate de família ou de nação - o sentimento de unidade, de continuidade e de coerência”.
(POLLAK, 1992, p. 7).
O autor aborda a história oral, que por sua vez compreende as narrativas míticas e os
relatos orais, a patir do viés sócio-histórico, tendo o foco de interesse nos processos e nos
novos atores que as vivenciam, antes ignorados e invisibilizados pela memória histórica
coletiva nacional, ou seja, a história oral “ressaltou a importância de memórias subterrâneas
que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à "memória
oficial", no caso a memória nacional”. (POLLAK, 1989, p. 4).
Considerando os referenciais teóricos deste capítulo, me dediquei a interpretação e
reflexão das narrativas míticas que compõe o repertório das fontes pesquisadas sobre os
Tenetehar Tembé e Guajajara, condição indispensável à compreensão dos significados
simbólicos que dão sentido as pinturas corporais usadas pelos iniciados no pré-ritual da
Tocaia, e nos rituais do Mingau da Menina Moça e Wirau haw (Tocaia/Ywán, Onça
Jaguatirica, Lua/Zahi, Menina Moça/Ywán).
No decorrer da pesquisa observei que o mito de Zary/Lua, é o mais conhecido entre
meus interlocutores jovens e adultos, ao passo que o mito dos irmãos gêmeos Maíra-Ira e
Mucura-Ira é do conhecimento dos mais velhos. Quanto a avaliação das narrativas míticas
selecionadas levei em consideração algumas objeções: Os mitos Tembé identificados como
pertencendo a cultura Tembé, são resultados das trocas de saberes que ocorrem no fluxo
difuso de informação e interação com outros grupos étnicos; sua transmissão ocorre por meio
da oralidade via casamentos interétnicos e emigração de parentes do Gurupí as aldeias do
Guamá; no mais, constituem memórias, saberes e valores identitários coletivos que dão
sentido as regras e tabus que os iniciados devem observar nos rituais. Por fazerem parte da
70

cosmologia Tenetehar, as narrativas Guajajara são indispensáveis para a interpretação dos


significados e funções de uso das pinturas corporais entre os Tembé do Guamá.
Há de considerar que, ao longo de séculos as terras do alto o rio Gurupí e seus
afluentes tem sido uma fronteira étnica de trocas e trânsitos de saberes em forma de narrativas
orais míticas entre Tembé, Kaapor, Guajajara, Munduruku, Turiwara, Timbira, Amanaie e
Awa Guajá, que por sua vez influenciaram e foram influenciados pela cosmologia dos
Tenetehar. Neste sentido, “[...] não existe uma única verdade e sim diferentes versões sobre os
acontecimentos. Então, as narrativas orais Tembé-Tenetehara significam a versão que eles
contam da sua própria história e do contato com outras sociedades” (NEVES, 2015, p. 15).
São as narrativas míticas Tenetehar fontes discursivas e testemunhos de saberes da
memória coletiva dos Tembé do Guamá, que historicamente coexistem com a memória
nacional, aparentemente “invisível” ao olhar desatento do senso comum, que as consideram
enquanto “lendas e histórias de caboclos”. Avalio que são importantes as referências
simbólicas nos mitos “A história dos Tenetehar” (Nelson Tembé, 2018), “A Festa dos
Animais” e “A Origem da Festa do Mel” (Nimuendaju, 1951), “A história da Onça Aé”
(Moreira Tembé, Ideflor-Bio, 2016), “Criação do Homem” e “A Estrela que acompanha a
Lua” (Wagley e Galvão, 1961), “A história de Zahy” (Reis, 2014), “Mito do Jenipapo” e
“Mito da Menina Onça” (TutuiTembé, 2019), para a compreensão dos significados de uso das
pinturas corporais de rituais, sua relação aos sobrenaturais caruwaras, ao tabu da virgindade,
aos encantamentos, ou seja, as interfaces que constituem a cosmologia Tembé do Guamá.

3.2 NARRATIVAS MÍTICAS TENETEHAR SOBRE MAÍRA, MAÍRA IRA E


MUCURA IRA

3.1.1 A história dos Tenetehar


[...] As onça, quando chegaram na casa ficaram desconfiada com a velha onça, que
tava escondendo alguma coisa. Ela disse que não tinha nada, mas elas procuraram e
encontraram a mulher de Maíra, que estava grávida de Maíra Ira e Mucura Ira, que
tinham sido separados na barriga da mãe por Maíra. Comeram ela, e as crianças
ficaram com a mãe das onça, que não conseguiu comer porque eles se
transformaram em beija-flor, depois em papagaio, e depois em duas crianças, neto
da onça. Ela disse: -Vocês não vão andar por aí que tem um pássaro que vai contar
toda história pra vocês e, eles encontraram o jacú que disse: -Vocês não sabem de
nada! A vó que ta criando vocês foi quem matou tua mãe, aí ele (Maíra Ira) chorou e
disse: - Vó, foi o maribondo que ferrou eu, a onça disse: - Aqui não tem
maribondo!, aí ele disse pro Mucura: - Vai buscar vai, e ele trouxe um bocado de
tapir (abelha) e jogou na orelha da veia. De manhã se sumiram no mato pra fazer
abano, tipití e jogaram dentro d’agua que virou cobra e piranha, jacaré, tudo. Aí ele
fez mel e colocou dentro da sapucaia do mato e mostrou pras onça e, disse que no
outro dia todos iam atrás. Ele combinou com o irmão dele: -Tu vai ficar lá no
garapezinho - que Maíra Ira fez bem fundo pra afogar as onça. Tu fica lá do outro
71

lado, quando eu soprar tu vai cortar que eu vou cortar. Aí o que aconteceu? a piranha
comeu tudinho, rasgô tudo, tudo e ficou só o espírito da onça. Essa é a história. Aí lá
vem no meio do igarapé o caruwara do pajé das onça, e ele (Maíra ira) disse (para
Mucura) vai buscar taboca, cortou e tamparam, aí quando chegaram lá (na aldeia das
onças) ele soprou e bateu na taboca e, o espírito virou dois cachorro, foi ele (Maíra
Ira) quem mandou virar. Eles foram embora e os cachorro foram atrás e quando eles
chegaram lá na frente, ele viu uma moça que tava sofrendo, que o pai dela deixou
pro bicho comer, a serpente. Ela disse: - Eu to no perigo, o bicho vai me comer! Ele
(Maíra Ira) sentou e ela começou a catar ele. Quando foi doze horas a cobra
apareceu e eles mataram ela com os cachorro que rasgou tudinho. Foram embora até
na casa do pai da moça. Ele disse pra ela: - Vai chamar teu pai. Aí ele (Maíra Ira)
casou com ela e depois foram procurar o pai deles (Maíra) que morava em uma
grande aldeia. (pajé Nelson Tembé em 22.04.2018, aldeia São Pedro).

Esta narrativa oral “incompleta” contada por Nelson Tembé, corresponde a uma das
diversas versões do mito de origem dos Tenetehar Tembé e Guajajara, a exemplo de “Os
Gêmeos e o Karuwara” em Nimuendaju (1951), “Os Gêmeos Maíra Yra e Mukura Yra” em
Wagley e Galvão (1961), “Mito dos Gêmeos Tenetehara” em Zanonni (1999)58 e, “Os gêmeos
Mayra Íra e Mucura Íra e as onças: como nasceram os Tenetehara” em Neves (2013). É o
mais longo mito Tenetehar59 que narra as “aventuras” dos personagens Maíra, Maíra Ira e
Mucura Ira, em enredos adaptados à realidade de diderentes grupos étnicos. Não é um mito
restrito a cosmologia dos Tenetehar, mais que pertence a outras etnias Tupí do Brasil e de
outros povos da América do Sul, apresentando característica multiética. Nelson, Moreira e
Félix referem-se a este mito como a história da origem dos Tenetehar, segundo eles, o povo
de Maíra.
Avaliei enquanto referência comparativa para a versão apresentada por Nelson, o mito
Tembé Os Gêmeos e o Karuwara em Nimuendaju (1951, p. 174-182). Percebi que a narração
de Nelson apresenta diferenças em relação a narrativa em Nimuendaju (1951), ao ter
“omitido” alguns aspectos: a criação e entrega da mandioca por Maíra aos Tenetehar; a
criação da mulher tenetehar do tronco de uma árvore; a relação e o abandono da tenetehar
grávida de Maíra; a segunda gravidez dela ao manter relações sexuais com o astuto Mucura; a
chegada da esposa de Maíra as aldeias das onças e, as “aventuras” dos gêmeos com os
azáng/caruwaras.

58
Zanonni (1999, p. 206-246) apresenta seis versões deste mito entre os Tupinambá, Guajajara, Tembé e
Kaapor.
59
Segundo Zanonni (1999), este mito foi publicado originalmente em francês em 1928, e traduzido para o
português em 1950. Foi registrado em manuscrito por Theve entre 1550 e 1555 e, pertencia aos mitos de grupos
de Tupinambá do Rio de Janeiro, que haviam migrado antes de 1616, para a ilha de Ypaun-Açu, atual São Luiz
do Maranhão.
72

A narrativa em Nelson inicia a partir da chegada das onças na casa da velha onça,
onde desconfiam que ela esconde algo deles. Procuram e encontram a mãe grávida dos irmãos
gêmeos Maíra Ira e Mucura Ira, que a matam e comem. Em seguida nota-se as ações que
assumem os irmãos ao usarem de seus poderes e saberes na transformação de pássaros em
humanos, na sabedoria em convivência com as onças, com quem aprenderam atributos
culturais como caçar e fazer arco e flecha. A descoberta da verdade, sobre a morte da mãe
revelada pelo pássaro jacú, levou os gêmeos ao rompimento dos laços familiares com o
mundo das onças, onde por meio de um plano de vingança pensado por Maíra Ira puniu as
onças, ao serem mortas e comidas pelas piranhas, cobras e jacarés criados por Maíra Ira a
partir de abanos e tipitis.
Durante a luta com as onças Maíra Ira transforma o caruwara do chefe delas - em
outras versões o espírito é identificado como sendo de uma onça pajé/Zawar Aé - em dois
cães, que os seguem na viagem em busca do pai Maíra, quando são levados ao próximo
desafio de salvarem a vida de uma jovem ao matarem a perigosa serpente/caruwara,
culminando na união de Maíra Ira a jovem tomada por esposa. A versão final desta narrativa
difere da registrada por Nimuendaju (1951), onde o objetivo dos gêmeos em peregrinação é
de encontrar o pai Maíra e, juntar-se a ele na grande aldeia dos caruwaras.
A simbologia da onça no mito Os Gêmeos e o Karuwara em Nimuendaju (1951), é
bastante significativa para se pensar os significados das pinturas corporais da Onça, ao se
perceber que este ser encantado/caruwara foi responsável por ensinar a humanidade
Tenetehar, representada pelos irmãos gêmeos, alguns atributos culturais representados no
aprendizado do plantio da roça, na produção da farinha, na confecção do arco e flecha, na arte
da caça. A criação de utensílios como o abano de fogo e o tipití, transformados em criaturas
aquáticas (piranhas, arraias, cobras d’água, jacarés e poraquês) que devoram as inimigas
onças, são feitos exclusivos dos irmãos gêmeos quando adultos.
No referido mito em Nimuendaju (1951), pude identificar a relação das pinturas
corporais com o caruwara, ou melhor, sua criação e entrega como dádiva aos Tenetehar, que
interpreto tratar-se de Maíra. Nas demais versões deste mito Tenetehar em Zanonni (1999), é
possível perceber que Maíra é o criador dos vegetais, corroborando com a afirmação de
Nelson Tembé sobre a entrega do jenipapo e do urucum por Maíra aos Tenetehar, para usarem
em suas festas e rituais.
73

3.1.2 Criação do Homem

Maíra andava pela terra. Queria fazer gente. Ao encontrar a terra bonita (ywiporang)
achou o lugar ideal para criar a humanidade. Fêz um homem e uma mulher. Tupã
proibiu-lhes o coito. Sem saber que os homens têm o pênis sempre ereto. A mulher
foi lavar a roupa de Maíra no igarapé, quando lhe apareceu o espírito da Água
(Ywán) que a cortejou e a atraiu para copular. A mulher achou aquilo bom, e daí por
diante, voltava todos os dias para o igarapé. Batendo numa cuia que emborcava na
água, chamava o Ywán e com êle ia deitar-se.
Maíra, que tudo sabia, foi contar ao homem e lhe ensinou como atrair Ywán que
logo apareceu, mostrando o pênis ereto sobre as águas. Agiumente o homem cortou
o pênis de Ywán e o matou. No dia seguinte, quando voltou ao igarapé, a Mulher,
ignorante do que acontecera esperou em vão por Ywán.
Durante todo esse tempo, o Homem querendo relaxar a ereção do pênis, derramava
mingau sobre êle, sem conseguir resultado algum. A Mulher, incapaz de resistir ao
impulso sexual aproximou se do homem que derramava mingau sobre êle. Ela disse
que lhe ensinaria como amortecê-lo. Sentou-se em cima dele para o coito. Mas tarde,
quando Maíra chegou e viu que o rapaz já não tinha o pênis ereto, indagou o que
acontecera. O rapaz tudo contou. Maíra falou-lhe _ “Dê agora em diante o seu pênis
ficará mole, você fará um filho e morrerá; mas tarde, quando seu filho crescer, fará
outro filho e morrerá”. (WAGLEY& GALVÃO, 1961, p. 135).

Considero este mito Guajajara imprescindível para o entendimento da denominação


pintura da Ywán/Mãe d’água empregada por Nelson Tembé, para se referir as pinturas
corporais da Tocaia e da Menina Moça, pois ele permite acessar e apreender os significados
simbólicos que subjaz na cosmologia Tenetehar, uma vez que traduz implicitamente a quebra
do tabu sexual da virgem moça tenetehar ao manter relações amorosas com o caruwara
Ywán, então desaprovado por Maíra, que revela ao homem tenetehar o segredo da
transgressão pela companheira, levando-o ao enfrentamento e a “morte” do sedutor caruwara.
Nota-se que a criação do homem e da mulher tenetehar é obra de Maíra, que os destina
um ao outro, no entanto, proibindo-lhes o coito o caruwara Tupã. O não cumprimento do tabu
da virgindade pela mulher ao manter relações sexuais, também, com o seu parceiro, custou-
lhes a perda da imortalidade, porém, Maíra garantiu-lhes o futuro na reprodução da
humanidade mortal Tenetehar na terra bonita.
Esta foi a única narrativa mítica sobre o caruwara Ywán/Mãe d’água que identifiquei
na literatura clássica, porém, em diversos relatos orais de meus interlocutores esse ser
sobrenatural, duplo, aparece como sendo um caruwara que interage por meio de “flechadas”
ou incorporação em jovens meninas, iniciadas ou não, no ritual da Festa da Moça. Esta
percepção me levou a identificar no mito Criação do Homem, a expressão de uma das crenças
mais autênticas entre os Tembé do Guamá, ao lado de outros seres encantados.
O conhecimento dos saberes que tecem a ciência do jenipapo, agenciado pelo pajé no
aprendizado dos iniciados, é necessário para que a menina moça possa cumprir o tabu da
virgindade, que envolve a purificação e preparação do seu corpo durante as fases do pré-ritual
74

da Tocaia e do ritual da Festa da Moça, pois elas estariam vulneráveis as ações de Ywán e de
outros caruwaras, daí todo o cuidado dos parentes com a jovem iniciada60, quando são
repassadas instruções para que não frequentem matas, rios e igarapés, enquanto estiverem
com a pintura do jenipapo no corpo, após o término dos rituais.
Apesar de este mito ser desconhecido para os Tembé do Guamá, ele traduz os
significados das referidas pinturas corporais de rituais, ambas denominadas pelo pajé Nelson
de pintura da Ywán/Mãe d’água, ou seja, implicitamente faz referência ao tabu da virgindade
das jovens iniciadas, que será posto à prova pelo uso do jenipapo no sétimo e último dia da
Festa da Moça, perante toda a comunidade de parentes.

3.3. NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE FESTAS DE ANIMAIS

3.3.1 A festa dos animais


Uma vez os animais fizeram uma festa que durou muitos dias. Todos foram
convidados: os veados e as antas, os porcos-do-mato e as onças e as aves de tôda a
espécie. Muitos já tinham chegado e outros estavam sempre chegando. Ouviu-se o
grande gavião Wyrohueté que de longe tocava sua corneta: bu-bu-bu! Os animais se
regozijaram e disseram: - “O grande gavião também vem dansar conosco!”. O
gavião estava ainda enfeitando-se e preparando-se para a adansa. Também os
macacos ainda não tinham chegado.
Quando os animais descansavam da dansa, convidaram o filho da onça para cantar.
O velho jaguar ensinou-o primeiro como ele devia cantar e então êle cantou e cantou
bem. Então o velho jaguar também devia fazer-se ouvir. Sua mulher pediu-lhe que
nada cantasse de inconveniente, mas êle cantou: “Tazahú piréra imerú-merú! (A pele
do porco do mato está cheia de moscas varejeiras)”. “Então os porcos-do-mato
ficaram zangados. Mas êle continuou cantando. – “Arapuhá piréra imerú-merú. (A
pele do veado está cheia de moscas varejeiras)”. Isso descontentou os veados e a
mulher onça falou para seu marido. – “Tu podias cantar qualquer coisa mais bonita:
porquê quiseste ofender os outros?”. Novamente ouviu-se a trombeta do grande
gavião, mas quando êle chegou a festa estava no fim. Pois o deus dos veados
Arapuhá Tupána levantou-se colocando-se por entre as mulheres para cantar. Êle
cantou durante muito tempo, mas a ninguém é licito imitar o seu canto, se não todos
que ouvem-no tem de morrer. De repente êle bufou e desapareceu. Passou junto de
todos os participantes da festa como um relâmpago e eles se transformaram em
animais. Quando finalmente chegaram os macacos nada mais encontraram da festa,
ficando zangados. Dirigiram-se às plantações próximas para roubar milho, ficaram
procurando fruta nas arvores e lá permaneceram. Se naquêle tempo o jaguar não se
tivesse comportado desse modo, os animais seriam ainda como homens e poderiam
cantar. (NIMUENDAJU, 1951, p. 276-277).

60
Também aos meninos iniciados no Wirau haw, são repassadas instruções para que não frequentem matas, rios
e igarapés, enquanto estiverem com a pintura da Lua em seus corpos, após o término do ritual, pois, também
estão vulneráveis as ações de caruwaras.
75

A respeito deste mito dos Tembé do Gurupí traduzido por Nimuendaju (1951),
interpreto que ele se refere ao ritual de iniciação da vida dos Tenetehar, a exemplo do Wirau
haw. Nele é perceptível, por meio dos diálogos e ações dos personagens “animais”, que os
mesmos são dotados de atributos culturais humanos como a fala, a cantoria e o uso de
instrumento musical, que foram perdidos/encantados/desumanizados devido ao
descumprimento de normas e regras que deveriam terem sido observadas pelos participantes
durante a Festa dos Animais. A situação de conflito se manifesta na cantoria devido aos
ofensivos versos cantados pelo velho jaguar/onça a outros animais, despertando a ira do
deus/caruwara Arapuhá Tupán, que por meio de seu canto/encanto retirou os atributos
culturais humanos transformando-os em animais desumanizados, por tanto, caruwaras.
O desfecho da narrativa me levou a refletir sobre as afirmações de meus interlocutores,
em relação a interação positiva e negativa que pode resultar da ação de caruwaras no ritual de
“passagem” Wirau haw. Em Dodt (1939), foi possível identificar nomes de pajés como
Mukur/mucura e Arapuhá/veado, quando esteve nas aldeias do Gurupí, onde descreve
situações que correspondem a pajelança envolvendo caruwaras.
Avalio que este mito, além de remeter a realização de ritual e cerimônias entre os
Tembé, ele destaca o papel do velho jaguar/onça, que além de sua habilidade nos versos da
cantoria, deve ser pensado como o responsável pelo ensino da música aos jovens iniciados.
Esta observação coaduna-se ao significado do uso da pintura corporal da Onça, no contexto
atual da realização do ritual Wirau haw nas aldeias pesquisadas.

3.3.2 A origem da festa do mel


Eram uma vez dois irmãos. Um deles construiu uma tocaia na copa da árvore
Azywaywa, onde as araras costumavam se reunir para comer as flores. Já tinha
matado muitas araras quando chegaram duas onças (Aé-Zawára). Traziam pedaços
de cabaças que enchiam de néctar espremido das grandes flores amarelas da
Azywaywa. O homem observou-as admirado, mas não ousou em atirar-lhes. Daí por
diante êle as observava diàriamente durante muito tempo.
Um dia seu irmão também quis caçar na tocaia. Então contou-lhe que lá encontraria
as duas onças e avisou-o que não deveria atirar-lhe. O irmão instalou-se na tocaia;
mas quando chegaram as duas onças e sentaram-se nos galhos perto dele, êle pensou
que poderia matar ao menos uma delas e atirou-lhe duas flechas que não tiveram
efeito algum. Então êle atirou duas vezes na outra onça com o mesmo resultado. Aí
os animais perceberam que ele estava na tocaia. Então provocaram uma violenta
tempestade que atirou o caçador e a tocaia ao solo onde se despedaçaram. As onças
desceram e arrastaram o cadáver para a entrada do mundo subterrâneo, que era do
tamanho de um buraco de formiga e puxaram-no por essa abertura.
No dia seguinte o irmão do morto supôs que este não tivesse seguido seu conselho e
que lhe tinha acontecido qualquer desgraça. Então foi procurá-lo, encontrou a tocaia
caída e seguiu as manchas de sangue até o orifício do formigueiro. “Eles devem tê-
lo arrastado por aqui” pensou e transformou-se em uma formiga. Passou pelo
orifício e alcançou logo um caminho largo que levava à aldeia das onças. Mesmo de
76

longe podia ouvir seus cantos. Na aldeia ele avistou uma grande casa, na frente da
qual estava seu irmão amarrado a uma cruz, exposto ao sol (“ywirámu puzái pyréra).
Êle entro na casa e viu sob o teto uma vara onde estavam penduradas muitas
vasilhas com mel. Embaixo delas, de noite, as onças dansavam e cantavam. O
homem achou esta festa tão bonita que esqueceu completamente o seu irmão morto
e só tinha o desejo de poder participar da dança. Êle aprendeu todas as canções e
finalmente julgou que as onças não o reconheceriam sob a forma humana. Assim
todas as noites êle se transformava em homem, cantava e dansava com as onças e de
dia transformava-se em formiga. Assim fez até aprender tudo das onças e aborrecer-
se delas. Depois passando pelo orifício do formigueiro, voltou novamente à
superfície da terra e contou ao seu povo o que tinha visto e aprendido. _ “Cantemos
hoje”, disse êle ao povo, mas responderam-lhe: _ “Como se canta?”. Então êle
ensinou-lhes a cantar. _ “Vamos agora buscar mel; eu sei como se canta embaixo do
mel!”. Assim fizeram e, com gritos de alegria, trouxeram o mel para a aldeia. Então
êle ensinou às mulheres a cantar embaixo das vasilhas de mel (Mutxiiriháwa) e um
mês mais tarde êle mostrou aos homens como se mistura o mel com a água e como
se celebra a festa na praça da aldeia. (NIMUENDAJU, 1951, p. 279-280).

3.3.3 História da Onça Aé (Ae Zawar Rehe)


Foi assim que vieram, apareceram os pajés, já faz muito, muito tempo, havia muitos
pajés índios, muitos pajés também. O meu tio era pajé, o meu avô também era pajé...
Certa vez havia uns rapazes.
_ Vou fazer um mutá _ disse um deles. _ Lá tem comida de caça.
_ Disse _ o que caça gosta de comer _ disse aos parentes.
_ Pois vá _ disseram (os outros).
Ele ficou fazendo o mutá. Terminou de fazer, e veio (de volta para casa). De manhã,
ele foi esperar, esperar lá no lugar onde há comida de caça. Aí foi vindo (algo) e ele
disse para si mesmo:_ Tem algo ali _ disse para si mesmo _ uma onça, que nós
índios chamamos “Ae”. “Ela come onde há comida de caça, a onça Ae” (os outros)
tinham dito para ele. “A onça Ae é danada, ela é pajé, as onças Ae são pajés”, os
outros tinham dito para ele. “Não mexa com elas quando estão comendo, deixa
comerem, não vá flechar elas”, tinham dito. “Não vou”, ele tinha dito, e foi (caçar).
Agora (as onças Ae) estavam vindo, ele estava lá, e começou a ventar. É o vento _
ele disse. O vento passou (parou). Aí veio vento de novo. O vento, elas andam no
vento, as onças Ae, (como) nós, os índios, dizemos. Aí elas vieram, vieram muitas,
muitas onças. Estavam lá acima dele.
_ Vou atirar nelas! _ ele disse. _ Vou atirar mesmo! Uma delas veio bem pertinho
dele, e o que aconteceu? Ele atirou nela. Ele atirou nela, e ela gritou por causa da
flecha.
_ Eu matei a onça! _ Ele disse. E lá as (outras) onças pegaram-no.
_ Vou me vingar de você! _ Disseram para ele. As parentes (da onça morta)
pegaram-no.
_ Desce daí! Desce!
Levaram-no, levaram o rapaz, as onças levaram-no, as onças Ae. Os parentes do
rapaz esperaram por seu irmão, esperaram, mas ele não veio. Aí pensaram, “as onças
Ae mataram meu irmão... As onças Ae levaram-no... Eu vou atrás dele! Disso é que
vai vir a mágica dos pajés.
Na manhã seguinte, eles foram atrás do irmão deles. Eles foram andando, foram
andando... Chegaram no lugar onde havia comida de caça, mas não viram o irmão.
Só viram um pouco de sangue dele. Disseram: É o sangue dele! _ Disseram. Eles
viram onde o irmão deles fora arrastado.
_ As onças mataram o meu irmão _ eles disseram _ e levaram-no embora! Eu vou
atrás dele!
E eles foram indo... Foram indo atrás dele, seguindo o sangue dele. Foram atrás dele,
foram atrás dele, indo pela floresta, seguindo o rastro de sangue. Foram indo
seguindo o rastro de sangue, o rastro de sangue...
Havia uma outra coisa na floresta, algo parecido com a boca de um pequeno pote,
um buraco. Foram chegando lá, onde o sangue do irmão havia pingando, o sangue
77

do irmão deles. Aí disseram: Ah! Foi bem aqui que meu irmão entrou, as onças Ae
levaram ele por aqui, nesse buraco, nesse buraquinho. Pois eu vou atrás dele!
O que falou assim também tinha mágica de pajé, como as onças. Ele cantou então
para o irmão, ele cantou um àwàhu (cantoria): “Eu vou cantando àwàhu... Para o
meu irmão... Eu vou cantando àwàhu... Para o meu irmão, há ehe he... Eh, vamos,
onças Ae, ehe...”
Eles se fizeram pajés, entraram pelo buraco e eram (viraram) pajés. Entraram
cantando, foram entrando e cantando, xá! Entraram na casa das onças Ae, entraram
todos lá. E o irmão deles estava lá, também cantando: “Estou andando aqui... Estou
cantando, levando as onças Ae... Cantando àwàhu...
Estou cantando aqui, para as onças Ae, Ae... para as onças Ae...
Assim o irmão deles estava cantando.
Pois foi assim, seu Branco, foi lá. Foi de lá que vieram as cantorias, de dentro da
terra, para serem ensinadas, para serem cantadas. O irmão deles continuou cantando:
“Eu quero ir, eu quero, quero ir,
Ahe ehe he... ahe he he, ahe, ehe…
Eu quero mesmo ir, para as onças Ae,
Ehe he he...”, ele disse, cantando.
Foi de lá, seu Branco, foi de lá que veio a cantoria, de lá vieram as mágicas de pajé,
de lá nós recebemos nossos cantos, os cantos dos nossos tios, os cantos dos nossos
avós. Eu também tenho meu canto, e também os cantos dos meus avós, dos meus
tios. Vieram de dentro da terra, dos cantos das onças Ae.
Foi isso, seu branco, de verdade. Acabou (a história). (cantor Moreira Tembé, Série
Conhecimento Indígena; v.2, 2016).

A pesquisa bibliográfica aliada a pesquisa de campo deixou claro que, as


denominações história da Festa do Moqueado usada pelos Tembé do Guamá e Gurupí, “A
Origem da Festa do Mel” em Nimuendaju (1951), “Origem da Festa do Mel” em Wagley e
Galvão (1961), “Mito de Aé” em Laraia (1986), “Mito de origem dos rituais” em Zanonni
(2000), “A primeira Festa do Moqueado” em Neves (2015), “A História da Onça Aé”
(Moreira Tembé, 2016), correspondem as versões e traduções diversificadas de uma única
narrativa, que está presente na cosmologia dos Tenetehar e dos Kaapor, o que demonstra
característica multiétnica a esta narrativa.
Partindo desta observação pude identificar algumas especificidades, tais como: Em
Nimendaju (1951) e Wagley e Galvão (1961), o irmão de Aruwê é morto pelas onças,
enquanto na versão de Moreira Tembé, o mesmo é encontrado vivo, andando e aprendendo a
cantar àwàhu (cantoria) com as onças; em Wagley e Galvão (1961), o pajé Aruwê manteve
relações amorosas com uma onça/mulher, filha da Onça Aé/Zawar Aé que matou seu irmão,
onde veio a abandoná-la para retornar à sua família e, ensinar a todos da aldeia as cantorias e
o preparo do mel para ser bebido nos rituais; apenas em Wagley e Galvão (1961) e, em
Moreira Tembé (2016) fica evidente a prática da pajelança de Aruwê, que após fumar o
78

cigarro de tawarí, transformou-se em formiga para adentar na aldeia/mundo das onças, onde
assumiu forma humana e aprendeu com elas a cantar àwàhu61.
Este mito faz referência a um ritual de iniciação na pajelança e, traduz situação de
conflito por ato de desobediência e egoísmo tenetehar em relação ao caruwara Onça Aé,
expresso na quebra de regras, quando o irmão de Aruwê tentou matar uma Onça Aé, que
chegaram a àrvore Azywaiwa para colher mel das flores para a Festa do Mel. As habilidades
de Aruwê, na busca pelo irmão, se mostram na prática da pajelança e no aprendizado das
cantorias ensinadas pelas Onças Aé.
No conflito entre a humanidade Tenetehar e a humanidade das onças, essas assumem
papel antagônico ao punirem e sacrificarem o tenetehar infrator e, ao ensinarem a seu irmão
Aruwê, as cantorias e os segredos da realização da Festa do Mel. Na versão dessa narrativa
em Wagley e Galvão (1961), o pajé e caçador Aruwê se apaixona pela mulher onça, porém,
depois do aprendizado decidiu voltar para a aldeia junto de sua família, ou seja, para a
humanidade Tenetehar.
Nas aldeias do Guamá percebi que esta narrativa é conhecida como a história da Festa
do Moqueado, que ouvi pela primeira vez em relatos de Chico Rico em 2012, na aldeia
Ytaputyr, onde se referiu a onça como um animal encantado, que em tempos passados havia
ensinado os Tembé a cantarem e a fazerem o moqueado da menina moça, ou seja, é um ser
duplo, que carrega consigo uma humanidade travestida de animalidade, cujo caruwara pode
se manifestar no ritual Wirau haw por intermédio da pajelança.
Em 2017, durante a realização do Wirau haw em Ytaputyr, ao dialogar com o cantor
Moreira/Wewer tive melhor compreensão da simbologia da onça na cosmologia Tenetehar,
quando me relatou o mesmo mito que ouvi de Chico Rico, porém, com algumas diferenças, a
começar pelo nome de história da Onça Aé, ou seja, a história da onça pajé, que havia
ensinado os Tenetehar às cantorias áwáhu e a Festa do Moqueado. Observei que a versão de
Moreira correspondia ao conhecimento expresso por Nelson em 2018, onde este se referiu a
Onça Aé nesta afirmação: “[...] a Festa do Moqueado é a cultura onde nasceu raiz, Aé que

61
No diversificado repertório das cantorias Tenetehar, àwàhu é uma cantoria usada na pajelança, para fins de
comunicação entre o pajé e os caruwaras. Segundo Nelson Tembé, a àwàhu foi ensinada aos Tenetehar pelas
Onças Aé e, só pode ser cantada por pajés para fins de cura de doenças e/ou retirar caruwara em pessoa de
“peito aberto”.
79

trouxe pra nós, Aé que trouxe. Minha mãe maracá foi Aé quem trouxe pra mim [...]”62.
Segundo Laraia (1986), “Aé é um estranho ser que quando está na superfície parece com a
onça vermelha, e que debaixo da terra, onde vive, tem forma humana e utilizam onças comuns
como cachorros”. (LARAIA, 1986. p. 241).
Após análise e reflexão sobre as diferentes nomeações dadas a este mito, uma
contradição apontava para a seguinte questão problema, qual seja, em Nimuendaju (1951) e
Wagley e Galvão (1961) a narrativa se refere a cerimônia da Festa do Mel, enquanto nas
versões que ouvi de Chico Rico, Moreira e Nelson, ela diz respeito ao ritual da Festa do
Moqueado, ou seja, o mito aponta para rituais diferentes na cultura Tenetehar63.
Considero que a interpretação deste mito permite a apreensão do significado da pintura
corporal da Onça, uma vez que apresenta as Onças Aé enquanto personagens e seres especiais
encantados, dotados de atributos culturais humanos, que vieram a ensinar as cantorias e a
realização da Festa do Moqueado aos Tenetehar. Segundo Nelson, antigamente pajés e
cantores experientes usavam a pintura corporal da Onça em cerimônias e rituais nas aldeias do
Gurupí. A interpretação de Strauss (1967), sobre a simbologia da onça na mitologia
ameríndia, é especialmente relevante para a compreensão do significado simbólico que os
Tenetehar aferem a esta pintura corporal.

O jaguar sempre desempenha o papel de iniciador da cultura, seja sob a forma da


cozinha que exige fogo, seja sob a forma da festa do mel, que exige água. À primeira
corresponde o alimento cozido, consumido no modo profano e, à segunda, o
alimento cru, consumido no modo sagrado [...] o jaguar dá aos homens a cultura
material. (STRAUSS, 1967, p. 36).

3.4 NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE A LUA/ZAHY

3.4.1 O mito de Zahy

62
Trecho de entrevista gravada pelo cinegrafista Islan Costa, em 22/04/2018, a serviço do CIMI, e gentilmente
cedida para esta pesquisa.
63
Esta é uma questão que requer atenção, pois, ao comparar a versão da narrativa da Festa do Moqueado,
narrada pelo pajé Chico Rico em 2012, com o mito “Origem da Festa do Mel” em Wagley e Galvão (1961),
passei a refletir sobre a seguinte afirmação dos antropólogos: “[...] A época das últimas chuvas, em março ou
abril, marca o início da coleta do mel silvestre pelos homens, que o vão armazenando em cabaças numa casa
grande (tapuizuhu), levantada no pátio da aldeia e especialmente para essa ocasião. Tôdas as vêzes que os
homens chegam de volta à aldeia com uma cabaça de mel, o fazem cantando e dançando [...]”. (WAGLEY &
GALVÃO (1961, p. 127). Levanto a hipótese que os Tembé do Gurupí e do Guamá tenham ressignificado este
mito, que está relacionado à cerimônia da Festa do Mel, para referir-se ao ritual Wirau haw.
80

[...] A história está ligada a zahy (lua na língua Tembé), como na aldeia só tinha uma
mulher solteira, e o único homem solteiro era o irmão dela. Então todas as noites o
rapaz ia ao local onde a moça dormia para tentar ter uma relação com ela. Certo dia
o rapaz de tanto perseguir a moça foi surpreendido com as mãos molhadas dela no
seu rosto, o que ele não sabia era que ela estava passando jenipapo em seu rosto,
conforme havia sido instruída por sua avó. No dia seguinte, como o jenipapo tinha
escurecido no rosto dele, todos na aldeia descobriram quem estava importunando a
menina em sua rede. Nesse momento a menina falou para ele que não podia gostar
dela, porque era sua irmã. Então, ele ficou com muita vergonha, foi para o mato e
fez muitas flechas, quando voltou para aldeia falou que ia embora [...]. Começou a
flechar em direção ao céu, flechou, flechou, foi flechando, até chegar a zahy, daí as
flechas vieram descendo, descendo, descendo e se transformando em uma escada.
Mas antes de ir embora ele falou para sua irmã que iria se vingar, então falou: “Tu
fez vergonha pra mim, mas eu vou fazer mais vergonha para ti, eu vou flechar você
todo tempo”. Daí três dias depois zary apareceu no céu manchada e
consequentemente a menina menstruou. É por isso que a mulher tem a passagem
dela [...]. (PAXIK TEMBÉ, 2013). (REIS, 2014, p. 33).

3.4.2 A história de Zahy


Existia um rapaz chamado Zahy, e ele se apaixonou pela própria tia dele, entendeu?
Então o que ele faria pra namorar com ela, sem ela saber que era ele, o sobrinho
dela? Ele teve uma ideia de namorar com ela apenas no escuro, só quando chegasse
à noite. Ele começou a namorar com ela, então veio a curiosidade nela de saber
quem era este rapaz que namorava com ela, aí passou várias noites continuando
namorando apenas no escuro e, ela sem saber quem era o rapaz. Um dia quando ela
quis conhecer, ela quis saber quem era essa pessoa, ela foi com a avó e contou a
situação, aí a avó ficou pensando uma ideia e falou pra ela: - Olha!, antes de você
deitar pegue uma cuia de jenipapo e põe de baixo de sua rede, aí quando ele vim
deitar com você, você pega um pouco de jenipapo, põe na sua mão e esfrega, passa
no rosto dele, aí no outro dia a gente vai saber quem é este rapaz.
Numa noite seguinte, ela esperou e com poucos minutos o rapaz chegou, se
aproximou e ela mandou que ele deitasse, aí no que deitou ela pegou um pouco de
jenipapo, passou na mão e passou ao seu rosto, na sua face né! No que ele percebeu
que era jenipapo no seu rosto, ele correu pro igarapé mais perto que tinha e foi lavar
para tentar sair a tinta. Ele lavou, lavou, mas não teve jeito, o jenipapo permaneceu
no seu rosto, aí que o dia amanheceu todos viram quem era, aí conheceram e, como
era proibido na época namorar com sua tia, então foi mandado pra cima e, hoje, nós
chama Zahy que é a Lua. E tem uma parte na lua que é preto, então aquela parte ali
pra gente significa que é o jenipapo no rosto de Zahy”. (Wilson
Tembé/NononTembé, aldeia Ytaputyr em 26/01/2019).

O mito de Zahy é o mais conhecido pelos Tembé do Guamá e Gurupí, apresentando


algumas variações, se reportando a questão de cunho moral na cosmologia Tenetehar, a
exemplo do tabu do incesto, que determina a proibição de relações sexuais com parentesco
consanguíneo. Outra interpretação que faço deste mito, se refere aos saberes da ciência do
jenipapo, simbolizado pela experiência da velha índia, ao instruir a neta sobre o uso do
jenipapo, para que se revelasse a identidade do jovem desconhecido e, o segredo da
transgressão de regras e comportamentos sociais.
Na versão apresentada em Neves (2015, p. 45 e 47), Maíra foi quem intercedeu junto
ao casal para o nascimento de Zahy, no entanto, a quebra do tabu foi desaprovada por Maíra e
81

pelos parentes, que puniram Zahy ao expulsá-lo do espaço humanizado da aldeia. Entendo
que a perda do convívio sociocultural com os parentes, e do espaço da aldeia, levou o jovem
transgressor a perder sua humanidade Tenetehar, ao se transformar em um Ser da natureza,
daí a simbologia da Lua está relacionada a masculinidade na cosmologia dos Tembé e
Guajajara.
Na versão em Reis (2014), a partir do relato de Chico Rico, o mito finaliza com Zahy
indo embora para o céu se utilizando de uma escada feita de flechas, porém, constrangido pela
vergonha e rejeição, resolve se vingar “flechando” a irmã para que esta viesse a passar
vergonha menstruando. Já em Neves (2015), Zahy obtém a ajuda do beija-flor que o conduz
por um cipó até o céu, se sente envergonhado e, dessa forma, se transformar em Lua. São
estas memórias e saberes míticos representados na ciência do jenipapo, que dão sentido a
pintura corporal da Lua usada pelo menino iniciado no Wirau haw, apresentando significado
simbólico que traduz a masculinidade Tenetehar enredada na observação do tabu sexual do
incesto.
No decorrer da pesquisa na literatura clássica etnográfica sobre os Tembé, não
identifiquei nenhuma referência ao mito de Zahy/Lua em Nimuendaju (1951), no entanto, em
Wagley e Galvão (1961) me deparei com dois mitos Guajajara, que contribuíram para a
reflexão sobre significados simbólicos atribuídos pelos Tembé do Guamá a pintura corporal
da Lua usada pelas iniciadas, pois, configuram acontecimentos na cosmologia Tenetehar.

3.4.3 Tupã faz a Lua


Antigamente as noites eram muito escuras. Não havia lua. Os teneterara pediram a
Tupã que tornasse a noite menos escura. Êle fez a lua e perguntou aos Teneterara
onde situá-la. Pediram que deixasse a lua encostada à terra, mas não demorou que
percebessem que assim não iluminava muito. Falaram a Tupã que a colocasse mais
alto, o que êle fez, levando-a para o céu, de modo que alumiasse bem a terra.
(WAGLEY & GALVÃO, 1961, p. 139).

Percebe-se nesta breve narrativa mítica, que a criação de Zahy é atribuída ao herói
cultural Tupã, onde ao dialogar com a humanidade Tenetehar atende, enquanto dádiva há um
pedido feito por eles após ter criado a Lua, que situada por Tupã a uma distância da terra,
definida pelos Tenetehar, teve por função tornar as noites menos escuras e mais claras. Nota-
se que o pedido feito ao caruwara Tupã, de certo modo se refere a ideia da criação de um
tempo apropriado para a realização das cerimônias e festas, em fases específicas da Lua, a
exemplo das fases Nova e Crescente, quando são realizados os rituais do Mingau da Menina
Moça e a Festa da Moqueado.
82

3.4.4 A Estrela que acompanha a Lua


Uma Estrela queria casar com Zahy (lua) e foi pedir conselho à mãe de Zahy,
dizendo que ficava com pena de vê-lo andar sozinho tôda noite pelo céu. A mãe de
Zahy disse à estrela que ela teria que preparar a comida de Zahy; se êle gostasse, ela
daria seu consentimento. A mãe foi embora deixando o filho aos cuidados da nova
companheira. É por isso que ainda hoje vemos uma estrela acompanhando a lua na
sua longa caminhada pelo céu. (WAGLEY e GALVÃO, 1961, p. 139-140).

Neste mito, é possível aludir algumas inferências que denotam sentido cosmológico a
simbologia da pintura corporal da Lua/Zahy usada pelas iniciadas na fase do ritual do Mingau
da Menina Moça. Em primeiro lugar, interpreto que o mito se pauta em observações dos
Tenetehar sobre o movimento da Lua e da estrela no céu, que, por sua vez, se refere a uma das
fases de suas vidas, o casamento, que se consuma no ritual Wirau haw. A união consentida
entre a Estrela e Zahy, personagens reais e representações da humanidade Tenetehar, em
forma de metáforas de Seres da natureza, ocorre sem a quebra de tabus64,
Em segundo, para que a união matrimonial seja estabelecida, é necessário que a
Estrela cumpra com as regras e obrigações fundamentais na vida da mulher tenetehar, ou seja,
a de ser uma esposa prendada, dedicada e responsável com os filhos e obediente ao marido,
aos pais e avós. Essas virtudes são avaliadas e reconhecidas pela futura sogra, após o preparo
da comida de Zahy, que implicitamente entendo fazer referência ao ritual do Mingau da
Menina Moça, onde a jovem iniciada passa pelo teste do cozimento do mingau de
mandiocaba, bastante apreciado pelos Tembé do Guamá durante a noite de dança e cantorias.

3.5 NARRATIVA MÍTICA SOBRE A ORIGEM DA ONÇA

3.5.1 Mito da Menina Onça


Antigamente não existia onça na mata, aí tinha uma aldeia que tinha uma menina e,
essa menina morava com o pai dela, a mãe dela e mais duas crianças, aí ela tinha
muita ferida e ninguém conseguia cuidar da ferida dela, aí faziam remédio do mato e
de casa mesmo, mas não sarava. Aí, a mãe dela e o pai dela levaram ela pro mato e,
fizeram uma tocaia em cima pra ela ficar lá, por causa que ela tava já demais podre.
Aí, todo dia o pai dela ia vê ela lá, pra vê se ela tava viva ainda, e tava viva!
Levavam comida e água pra ela e deixava lá, só fazia olhar também ela e voltava pra
trás. Aí, quando eles chegavam lá, ela tava do mesmo jeito, e eles chamavam: -
Camata! Camata é pequena, criança. Aí, ela respondia, e eles diziam: _ Ainda ta
viva a Camata. Ai, apareceu um homem lá na tocaia dela, aí ela disse: - Será que é

64
O passeio solitário de Zahy no céu, pode ser nesse mito, correlacionado ao fato de ele ter sido expulso de sua
aldeia por seus parentes, onde veio a quebrar a regra do tabu sexual quando manter relações com parentesco
próximo, a tia ou a irmã.
83

papai que veio me vê? Então bateu palma, aí ela olhou pra baixo e era um homem
que tava lá, mandou ela descer, aí ela desceu, aí ele falou: - O que é que tu tem? Aí,
ela disse: _ O meu corpo ta todo cheio de ferida/perew, que ela dizia, aí ela disse: -
Meu pai quem deixou eu aqui, porque não tem como sarar as minhas feridas e eles
querem que eu morra, aí deixaram eu aqui. Aí, ele disse: _ Zanarihi/espera aí que eu
vou buscar remédio pra ti. Aí, ele foi buscar o remédio e trouxe numa cuiazinha e,
começou a passar nela todinho, aí este homem todo dia vinha vê ela, aí as feridas
foram secando e quando tava as últimas feridinhas, ele trouxe assim tipo uma
jaqueta e jogou em cima dela, aí ela virou onça. Por isso que tem hoje onça mulher,
porque não tinha onça fêmea, era só macho. Aí, ela queria matar o pai dela por causa
que ele deixou ela sozinha abandonada no mato. Ela com o marido dela foram trás
do pai dela, agora pra matar, pra poder se vingar e, quando chegou lá, ela não teve
coragem de matar. O marido dela que já matou o pai e a mãe dela, aí a família dela
tudo virou onça”. (Tutui Tembé, aldeia Ytaputyr em 27/01/2019).

Este mito repassado pelo pajé Chico Rico a sua filha Tutui Tembé, se refere a origem
das mulheres onças, a partir do desdobramento de um acontecimento marcado pelo abandono
e isolamento na floresta, da menina Camata, quando ela foi acometida por doença na pele,
alusão que faço a ação negativa de algum caruwara devido a quebra de regras e tabus. O
distanciamento da jovem Camata do convívio social com a sua família e, com o espaço
cultural da aldeia, são situações que levaram ao rompimento dos laços com a humanidade
Tembé.
Está implícito nesta narrativa que o misterioso homem que vai ao encontro de Camata
na tocaia, é um Zawar Aé ou Onça pajé, o ser duplo que fazendo uso da dapajelança com
ervas no espaço da floresta, veio não apenas curar a enfermidade da menina, mas a
transformou em onça, para em seguida se vingar da desumana atitude de infração dos seus
pais, por tê-la abandonado para morrer na floresta, punindo-os com a morte e vindo a
constituir uma família de onças com a jovem Camata.
Avalio que a interpretação deste mito permite a compreensão do significado da pintura
corporal da Onça Marakaza/Jaguatirica usada na face pela jovem iniciada, no ritual do
Mingau da Menina Moça. Ele remete a normas, valores e saberes, que foram ensinados aos
Tembé pelas Onças Aé, onde no contexto de preparação dos corpos das iniciadas com o
purag/remédio feito a partir dos elementos naturais usados no mingau de mandiocaba, é capaz
de proporcionar saúde e proteção corporal contra males provocados por caruwaras malignos.
Strauss (1967) observa que “O jaguar é, sempre, um aliado pelo casamento: marido de uma
mulher humana [...], esposa inicialmente humana [...], pai de uma esposa-onça”. (STRAUSS,
1967, p. 32).
84

CAPÍTULO IV – PINTURAS CORPORAIS TENETEHAR TEMBÉ E SEUS


SIGNIFICADOS COSMOLÓGICOS EM NARRATIVAS MÍTICAS

Neste capítulo procurei desenvolver uma abordagem etnográfica, quanto as funções de


uso e, sobre os significados simbólicos das pinturas corporais de rituais na cosmologia dos
Tenetehar Tembé. Os saberes que norteiam a ciência do jenipao e, os rastros da memória e
saberes coletivos presentes em narrativas míticas e nos relatos orais, são abordados a partir da
classificação que meus interlocutores fazem das diferentes pinturas corporais.
As dificuldades em compreender os significados simbólicos e os sentidos
cosmológicos no uso das pinturas corporais, nos rituais de iniciação, foram sendo supereadas
à medida que fui avançando na pesquisa bibliográfica e no trabalho de campo. Deste modo,
meus interlocutores me ajudaram a tecer uma percepção em conjunto das difusas conexões de
saberes que constituem a ciência do jenipapo e, principalmente, sobre suas conexões as
memórias das narrativas míticas e dos relatos orais, que implicitamente se referem as pinturas
corporais apresentadas neste capítulo.
Após o diálogo com o cantor Moreira Tembé procurei dar ênfase a uma questão
aparentemente simples, que eu já havia observado em 2012, a partir de diálogo informal que
tive com Chico Rico na aldeia Ytaputyr, durante a realização de um ritual do Mingau da
Menina, ocasião onde fiz a seguinte indagação: Quais são as pinturas corporais consideradas
tradicionais para os Tenetehar Tembé? Identifiquei esta questão problema em Neves (2015),
quando realizou pesquisa de campo entre os grupos Tembé das regiões do Guamá e do
Gurupí, em 2013.
Durante nossa pesquisa, os registros dos grafismos foram os momentos que geraram
mais polêmica [...]. Para definir quais eram os grafismos tradicionais, Naldo Tembé
organizou, na aldeia Sede, uma reunião com várias lideranças do Gurupí e do
Guamá. Apresentamos os registros feitos em diferentes aldeias, mas como havia
dúvidas, coube a Lourival Tembé, por sua história com a tradição deste povo e por
ser um dos indígenas mais antigos, dirimir as dúvidas para chegarmos aos grafismos
apresentados [...]. (NEVES, 2015, p .65)

As informações que obtive com Moreira e Nelson convergem com outras que eu já
tinha conhecimento por meio de conversas com Félix, Chico Rico e Pirimina Guajajara. Elas
apontam para as seguintes pinturas corporais tradicionais usadas em rituais e, nomeadas por
eles como pinturas dos mais velhos: Onça Pintada/Zawar Pinim, Cuia/Kawaw, Tamata,
Lua/Zahy, Tocaia/Ywán, Menino e Menina Moça/Ywán/Mãe d’àgua.
As referidas nomeações identificadas nesta pesquisa divergem em alguns pontos dos
resultados da pesquisa em Neves (2015, p. 65-76), que apresenta as seguintes pinturas
85

corporais como grafismos tradicionais Tembé Tenetehar: Zahy Huhaw – Lua em


transformação, Zahy Tatá Zemupinim – Estrela, Zawar Pipor – Rastro de Onça, Zawar Pinim
– Onça Pintada, Pánàm Ag – Borboleta, além de outras duas pinturas corporais femininas sem
nomeações.
Esta é uma questão que merece atenção, pois, a identificação das pinturas corporais
tradicionais deve passar, obrigatoriamente, pela avaliação dos mais velhos que conhecem a
tradição Tenetehar, condição esta observada por Neves (2015) em sua pesquisa, ao citar o
exemplo de Lourival Tembé, exímio conhecedor das tradições no Gurupí. Minhas afirmações
se fundamentam nos saberes de homens e mulheres, que a partir de suas ações se tornaram
referências nas aldeias do Gurupí e do Guamá, a eximplo dos pajés Chico Rico e Nelson, o
cantor Moreira, a liderança Félix e, as experientes Pirimina Guajaja, Rebeca Tembé e dona
Nenem Tembé.
É importante destacar que para a análise das pinturas corporais, segui a distinção que
os Tembé do Guamá fazem entre as pinturas corporais dos mais velhos e as pinturas corporais
tidas por invenções dos mais jovens. Entre as pinturas corporais dos mais velhos, cabe uma
segunda distinção entre as que são usadas pelos jovens iniciados nos rituais do Mingau da
Menina Moça e da Festa do Moqueado, daquelas usadas pelos parentes convidados. Adotei
esta metodologia devido as diferentes representações e funções dadas as pinturas corporais,
sendo coerente com a bordagem de Lagrou (2009), sobre o uso de pinturas corporais entre os
Kaxinawa65.

A apreciação valorativa não está, assim, necessariamente nos aspectos comumente


considerados como padrões estéticos nativos; pode estar condensada, pelo contrário,
na sua temporária distorção. A lição metodológica tirada desta constatação é a
impossibilidade de isolar a forma do sentido e o sentido da capacidade agentiva; o
sentido e efeito de imagens e artefatos mudam conforme o contexto em que estes se
inserem. Constatamos a partir deste exemplo que a ‘eficácia da arte’ reside na
capacidade agentiva da forma, das imagens e dos objetos. A forma não precisa ser
bela, nem precisa representar uma realidade além dela mesma, ela age sobre o
mundo a sua maneira e surte efeitos. Deste modo ela ajuda a fabricar o mundo no
qual vivemos. (LAGROU, 2009, p. 31).

Procurei acrescentar algumas observações e esclarecimentos, quanto a certas


características no uso de diferentes padrões das pinturas corporais em relação ao gênero, faixa

65
Etnia indígena localizada na fronteira do Brasil com o Peru, nos estados do Acre, sul do Amazonas e no leste
do Peru, onde falam a língua da família Pano e, apresentam variações culturais entre as diversas tribos.
86

etária e especificidade ritualística, de acordo com orientações que são direcionadas pelo pajé,
caciques e conselheiros durante os dias de realização dos rituais de iniciação, ampliando o
entendimento de cada uma das pinturas corporais selecionadas.
A abordagem etnográfica que faço neste capítulo sobre as pinturas corporais, não
corresponde a ideia de observá-las enquanto criação artística na concepção erudita e
acadêmica, mas, sim, de percebê-las a partir da perspectiva dos meus interlocutores, no
contexto dos rituais de iniciação, que, por sua vez, apresenta pertinência com a argumentação
em Strauss (1962), ao considerar que:

[...] a arte primitiva interioriza a ocaso (pois os seres sobrenaturais que lhe apraz
representar têm uma realidade intemporal e independente das circunstâncias) e
exterioriza a execução e a finalidade, que se tornam, portanto, uma parte do
significante. (STRAUSS, 1962, p. 44-45).

4.1 PINTURAS CORPORAIS DOS MAIS VELHOS DO GUAMÁ E GURUPÍ

Nesta primeira classificação busquei interpretar o significado simbólico e cosmológico


das pinturas corporais dos mais velhos, que são usadas pelos parentes convidados nos rituais
de iniciação das Crianças, no Mingau da Menina Moça e na Festa do Moqueado, tendo por
base as representações de simbologias de animais (onça e jabuti), inseto (borboleta), objetos
culturais (cuia e maracá), caruwara (Ywán) e elementos da natureza (Lua), que estão
presentes no enredo e discurso das narrativas míticas Tenetehar. Estas pinturas corporais
representam valores simbólicos especiais para os jovens iniciados, pois segundo Lagrou
(2009):
Como a maioria dos ritos de passagem ameríndios, as intervenções sobre o corpo
visam a moldar tanto a pessoa quanto o corpo do futuro adulto. A reclusão, dieta, o
uso de eméticos e banhos medicinais, os testes de resistência, todo um conjunto de
intervenções visa a moldar um corpo forte, um ‘corpo pensante’, como dizem os
Kaxinawa, com coração forte’ implicando a simultaneidade dos processos de
modulação física, mental e emocional. (LAGROU, 2009, p. 36).

4.1.1 Pinturacorporal Onça Pintada /Zawar Pinim

Esta pintura corporal foi introduzida entre os Tembé do Guamá pelo pajé Nelson em
1993, de início na aldeia Sede e, posteriormente, na São Pedro, onde veio a ser mais
conhecida a partir da realização do Wirau haw na aldeia Frasqueira em 2003. É considerada
uma pintura dos mais velhos do Guamá e Gurupí apresentando dois tipos de padrões. No
Guamá predomina o padrão com manchas disformes, mais acentuada em partes do corpo
87

como tórax, barriga, costas, parte superior dos braços, com ausência de seguimentos de retas
diagonais nas costas e no centro do tórax em formato de um X. Usa-se uma tala de anajá, que
em uma das extremidades é fixado um fio de algodão umedecido no sumo de jenipapo. Em
algumas pinturas faz-se a combinação com o vermelho do urucum.
No Gurupí sobressai o padrão que combina pequenos círculos feitos no tórax, na
barriga, nas costas, parte superior dos braços, com seguimentos de retas diagonais que seguem
dos ombros e, da cintura em direção ao centro do tórax e das costas formando um X. Sua
elaboração é feita usando-se uma pequena vara de bambu, oca em uma das extremidades e
umedecida no sumo do jenipapo. Observei como uma pintura de pouco uso pelos homens
adultos e jovens, e raramente em mulheres jovens e crianças nos rituais que participei em
Ytaputyr, Sede e São Pedro.
Moreira Tembé referiu-se a pintura da Onça não apenas enquanto pintura dos velhos,
mas por pertencer ao caruwara Zawar Aé/onça pajé, que voa no vento a noite pelos galhos
das árvores, quem ensinou aos Tembé as cantorias e a fazer a Festa do Moqueado. Afirmou
que todo Aé é um pajé, mas nem toda onça é um Aé66, ou seja, um Aé é uma onça humana
encantada, que tem poderes especiais, por isso, no Gurupí, diferente do Guamá, essa pintura
era usada por pajés e cantores respeitados. Clastres (1988), ao se referir ao mito As aventuras
do jaguar entre os índios Chulupi, que vivem ao sul do Chaco no Paraguai, considera em sua
tradução que “[...] se ele faz do jaguar o herói de aventuras habitualmente reservada aos
feiticeiros, é porque não se trata do jaguar enquanto jaguar, mas do jaguar enquanto xamane”.
(CLASTRES, 1988, p. 147).
A onça/zawar é um ser mítico na cosmologia de povos indígenas Tupi e Jê, a exemplo
dos Xerente e dos Munduruku, onde ela ensinou-lhes a fazer o fogo, atributo cultural este
implícito no mito “A primeira Festa do Moqueado” em Neves (2015), quando o pajé
encontrou seu irmão morto, sendo moqueado pelas onças. Para os Tembé, este “animal”
encantado não deve ser comido caso venha a ser abatido em caçadas, pois acreditam que ele
possui caruwara e pode causar males a quem o matou.
Pude identificar a onça em diversas narrativas míticas figurando como um personagem
que, assume diferentes papéis na cosmologia Tenetehar demostrando possuir atributos
culturais de humanidade como astúcia, valentia, sabedoria, espiritualidade e criatividade, que

66
As onças comuns assumem a função de cães que são usados em caçadas pelas Zawar Aé.
88

foram “perdidos” quando entraram em conflito com os caruwaras Maíra Ira e Mucura Ira,
protetores da humanidade Tenetehar criada por Maíra.
De todo modo, a onça é um ser mítico de importante representação simbólica na
memória coletiva dos Teneterar, daí que o uso da pintura corporal da Onça em rituais
comunica significados que aludem ao universo simbólico das cantorias e da pajelança, que
estão implícitos em narrativas como: “A Festa dos Animais” em Nimuendaju (1951), e
“Origem da Festa do Mel” em Wagley e Galvão (1961), onde ela assume papel civilizador ao
ensinar Maíra Ira e Mucura Ira a fazerem arcos, flechas e, a caçarem.

Figura 5 - Pintura Corporal Onça Pintada em homem adulto e criança Tembé, aldeia Sede.

Fonte: Autor, 2018

4.1.2 Pintura corporal Cuia/Kawaw

Esta é uma pintura corporal muito especial para os Tembé do Guamá e Gurupí, sendo
a mais usada e visualizada em brincadeira Caê Caê e, nos rituais de iniciação das crianças e
jovens. Ao lado da pintura corporal da Borboleta/Panám, é a mais recomendada pelos
organizadores e pode ser usada por todos os parentes, homens, mulheres e crianças. Também
é considerada uma pintura dos mais velhos, segundo Félix e Moreira, sendo introduzida nas
aldeias do Guamá pelo pajé Nelson em 1993, no entanto, seu uso se estendeu a todas as
aldeias da região do Guamá a partir da realização do primeiro Wirau haw em 2003. Com a
vinda do pajé Chico Rico e de sua esposa Pirimina Guajajara para a aldeia Ytaputyr em 2009,
esta pintura corporal teve grande aceitação e difusão.
A pintura corporal da Cuia apresenta particularidades em relação as outras, sendo a
única a se tornar pintura corporal, a partir da transposição para o corpo dos desenhos feitos em
89

cuias e maracás, especialmente preparadas para os rituais de iniciação. Esta informação foi
repassada por Nelson e Rebeca Tembé, e, provavelmente, foi sob a orientação de Verônica
Tembé, que essa mudança ocorreu ainda na aldeia Igarapé de Pedra e, posteriormente,
difundida nas aldeias Canindé e Tekohaw no contexto da reorganização sociocultural.
É a pintura corporal que mais apresenta variação de padrões em formato de meia
circunferência, opostas entre dois ou mais seguimentos de retas paralelas, em formas
circulares e semicirculares dentre outras mais estilizadas, se constituindo no principal
exemplo da dinâmica de renovação estética, onde os atuais padrões são apropriados e
socializados a partir dos novos desenhos feitos em cuias e, principalmente, maracás. O uso do
urucum combinado ao jenipapo tonaliza cores rubro-negra a esta pintura nos corpos dos
participantes dos rituais. Sua elaboração é feita com o uso de uma tala de anajá, onde em uma
das extremidades é enrolado um fio de algodão, que molhado ao sumo do jenipapo é passado
no corpo.
Observei que até 2012, a pintura da Cuia manteve o padrão tradicional usado pelos
parentes do Gurupí, mas a partir de 2013, ela passou por mudanças introduzidas pelas jovens
das aldeias Ytaputyr, Zawaruhu, Frasqueira, Tawarí e Sede, posteriormente adotadas nas
aldeias São Pedro, Jakaré, Pira, Pinowa, Ituwaçú. Estas inovações foram relativamentes bem
aceitas entre os mais velhos, desde que mantivessem conformidade com os padrões
tradicionais.
Apesar do uso de objetos utilitários de alumínio e plásticos predomine sobre o uso da
cuia em atividades cotidianas nas aldeias, ela continua sendo um objeto da cultura material
obrigatório nos rituais, sendo de relevante significado simbólico na identidade dos Tembé,
estando presente em narrativas e nos relatos orais. No fragmento abaixo, é possível identificar
o uso da cuia para a comunicação entre a mulher tenetehar e o caruwara Ywán.

[...] A mulher foi lavar a roupa de Maíra no igarapé, quando lhe apareceu o espírito
da Água (Ywán) que a cortejou e a atraiu para copular. A mulher achou aquilo bom,
e daí por diante, voltava todos os dias para o igarapé. Batendo numa cuia que
emborcava na água, chamava o Ywám e com êle ia deitar-se [...]. Mito “Criação do
Homem. (WAGLEY& GALVÃO, 1961, p. 135).

O relato oral abaixo de Antônio Tembé demonstra a singularidade da pintura corporal


da Cuia, em relação a transposição dos desenhos feitos nos maracás dos cantores para o uso
corporal, assim como nas cuias, onde são servidos o mingau de mandiocaba das meninas
iniciadas.
90

A pintura da cuia, nós tem ela no corpo porque aquilo ali era desenho artesanal,
justamente ela é artesanato pra nós, quer dizer ela é um prato, é um instrumento de
tocar que nem o maracá [...] ela é um copo pra tomar o café do índio que é o mingau
[...] tem muita importância uma cuia (kawaw) pra tomar o chibé e o açaí. No Gurupí
sempre vi ela (pintura da Cuia) usada no corpo. (Antônio Barroso Tembé, entrevista
em 15.10. 2018).

A descrição em Reis (2014), sobre a mística que envolve a relação do uso da cuia,
enquanto instrumento de comunicação musical aos sobrenaturais caruwaras, é bastante
significativa para exemplificar aspectos da transitividade de sentidos, que envolvem a pintura
corporal da Cuia.
A cuieira para alguns pajés é local de “morada de espíritos” e depois da cuia, se
ornamentada e transformada em cultura material, recebe consagração das mãos de
quem a confeccionou. Recebe simbologias, sinais, poder e inveja, pois existem
pessoas que não gostam que peguem em sua cuia ou maracá. (REIS, 2014, p. 33).

No fragmento abaixo em Reis (2014) tem-se o exemplo da cuia, enquanto instrumento


que apresenta função específica relacionada ao seu uso pela menina moça, onde regras de
alimentação e purificação devem ser seguidas, no período de reclusão do pré-ritual da Tocaia.

A senhora Pirimina Guajajara informou que, em seu período na tocaia, colocava as


pipocas na cinza, depois uma a uma dentro da cuia, para comer em seguida, sem sal
e uma das advertências é que ninguém pode pegar naquela cuia, só ela e sua avó.
Cabe ressaltar aqui a questão de impureza pelo fato da menina estar menstruada e
seus objetos pessoais estarem impuros, por isso ninguém podia pegar em sua cuia,
somente ela e sua avó. (Ibd, p. 40).

O relato oral do cantor Wilson Tembé ajuda no entendimento das referências


simbólicas inerentes a pintura corporal da Cuia, ao observar o uso obrigatório da cuia no ritual
do Mingau da Menina Moça e, de sua utilidade como matéria para a fabricação do principal
instrumento musical dos Tenetehar, o maracá.

[...] a cuia hoje pra gente é essencial em nossa cultura, porque tem uma parte da
formação da menina no mingau, que agente utiliza a cuia com um pouco do mingau
de manicuera, que faz o remédio da moça. A cuia é a vasilha tradicional do povo
Tembé, entendeu? Na festa ela continua porque ela representa agente, por que cada
povo tem um modelo de desenhar suas cuias de jeito diferente, como no maracá. O
maracá ele vem da cuia e é o único instrumento musical do povo TembéTenetehar.
(Wilson Tembé/Nono Tembé, aldeia Ytaputyr em 26/01/2019).
91

Figura 6 - Pintura Corporal Cuia

Fonte: Autor, 2017 – 2018

4.1.3 Pintura corporal Tamatá

Esta pintura corporal é considerada dos antigos Tenetehar, segundo Félix, Moreira e
Pirimina Guajajara. Foi introduzida pelo pajé Nelson nas aldeias do Guamá e, desde no ano de
2006, tive conhecimento do seu uso nas aldeias Tawarí, Ytaputyr, Frasqueira, São Pedro, Pirá,
Jacaré e Sede, sendo uma pintura de relativo uso nos rituais. Identifiquei como única pintura
corporal tradicional com referência ao animal peixe usada entre os Tembé do Guamá,
enquanto no Gurupí se faz uso além desta, da pintura corporal do Surubim.
Moreira e Nelson se referiram a esta pintura corporal como uma das mais antigas dos
Tenetehar, que por pouco não desapareceu, haja vista que permaneceu sendo lembrada pelos
mais velhos. Obtive informações com Pirimina Guajajara, que o uso desta pintura também é
realizado entre os parentes Guajajara no Maranhão, não sendo de uso exclusivo dos Tembé.
Observei pouca alteração em seu padrão tradicional, que apresenta variados seguimentos de
retas paralelas na vertical ou horizontal, as quais se ligam seguimentos de retas em diagonais,
que podem ou não formar triângulos, dando aparência icônica à escama do tamatá.
O tamatá é um peixe bem comum no rio Guamá e afluentes, nos lagos do Medonho,
Banana e Comichão e, não é tão apreciado pelos Tembé como o aracú/piau e o tucunaré,
porém, é usado como isca na pesca do surubim, sendo considerado peixe resistente e
encantado, ao se reproduzir onde tenha água no período chuvoso.

O tamatá é a isca do surubim, é ele quem pega o surubim. O tamatá é a melhor isca
pra pegar o surubim [...] se cair uma água por aqui, não tem rio, não tem poço, não
tem nada por aqui ao redor, ai se cair água no começo do inverno e quando secar a
água, pode reparar que nada nada tem seu dois ou três tamata lá dentro. Desse jeito,
ele se gera da natureza por que tem um encante com ele, alguém trás ele pra lá e
deve ser Maíra [...]. (Antônio Romão Tembé, em 15.10.2018).
92

Figura 7 - Pintura Corporal Tamata

Fonte: Autor, 2017 / 2018

4.2 PINTURAS CORPORAIS DOS MAIS VELHOS USADAS PELOS INICIADOS


NOS RITUAIS

Nesta segunda classificação sobre as pinturas corporais dos mais velhos, analiso as
pinturas corporais usadas pelos iniciados no pré-ritual da Tocaia e, nos rituais do Mingau da
Menina Moça e na Festa do Moqueado. Estão relacionadas a simbologia do caruwara Ywán,
ao animal encantado onça e, ao astro natural Lua, que representa a masculinidade Tenetehar.

4.2.1 Pintura corporal Tocaia/Ywán/Mãed’água usada pela menina moça iniciada no pré-
ritual da Tocaia

Esta é a primeira pintura corporal usada pela menina moça quando menstrua pela
primeira vez (zemuny’ar), com idade entre doze e treze anos, marcando sua iniciação na fase
pré-ritual da puberdade feminina, segundo Wagley e Galvão (1961). No mesmo dia da
menstruação é feita a coleta, a ralação e o preparo do sumo do jenipapo, que logo após a
menina ter tomado um banho prévio à base de ervas, ela recebe a pintura do jenipapo em todo
o corpo.
Não identifiquei nas entrevistas levantadas em campo, a preocupação entre os Tembé
do Guamá em aquecer a água para banhar as meninas nesta fase, a exemplo do que fazem
alguns grupos Guajajara, que segundo Zannoni (1999), “os Tenetehara consideram a água fria
como água viva, e por isso pode fazer mal, enquanto a água fervida é morta” (ZANONNI,
1999, p. 65). Esta afirmação do autor é bastante significativa, pois, implicitamente faz
referência a vulnerabilidade corporal e espiritual da iniciada e, os cuidados que se deve ter no
93

cumprimento de regras diante da ação maléfica do caruwara Ywán/Mãe d’água,


entidade67que passa a deseja-la quando está menstruada e pintatada de jenipapo.
A mística que envolve a memória coletiva dos Tembé sobre o caruwara Ywán/Mãe
d’água, se justifica, dentre outras situações, na preocupação de garantir que a menina moça
siga todas as prerrogativas de purificação e preparação corporal neste pré-ritual. Antes do
início da pintura corporal, a jovem iniciada é orientada a ficar em cima de um tupé 68, onde
retira toda a roupa e qualquer objeto que esteja usando, só então a avó ou a mãe começa a
passar o sumo do jenipapo em todo o corpo, começando pelo rosto, seguindo ao pescoço,
busto, costas, braços, barriga, pernas, e por último os pés, visando proteger a jovem contra
possíveis doenças que venham a comprometer a sua saúde física e mental.
O pré-ritual é condição necessária para o prendizado sobre as regras que ela deverá
seguir até a última fase do ritual Wirau haw. Do jenipapo preparado para a iniciada, também,
os familiares e outros parentes fazem uso na elaboração de pinturas corporais, onde passam a
armazená-lo em garrafas plásticas para usarem posteriormente.
A jovem iniciada fica a maior parte do dia recolhida em um quarto na casa da mãe,
que lhe serve como tocaia, onde dorme em uma rede na companhia de mulheres da família,
que lhes auxiliam quando vai ao banheiro para fazer suas necessidades fisiológicas. A jovem
deve ficar com o corpo em repouso e manter distância dos meninos69 no período de sete dias
ou mais, até que a ciência do jenipapo estabeleça sua função purificadora. Esta primeira fase é
marcada por tabus, resguardo e orientação, sob a forma de aprendizado que termina após o
jenipapo sair completamente do corpo da menina moça.
Para o pajé Nelson Tembé, o jenipapo tem sua ciência nesta etapa da vida da mulher
tenetehar, pois tem a função de proteção, purificação e preparação do corpo da jovem iniciada
na puberdade. A condição de estar com o corpo sangrando, vulnerável, impuro e desejado
pelo caruwara Ywán/Mãe d’água, justifica os cuidados a serem tomados com a menina moça,
pois é um dos sobrenaturais que mais se manifesta na cosmologia Tenetehar.

67
Na entrevista que fiz a Fátima Romão, ouvi em seu relato que o/a caruwara Ywán/Mãe d’água, não é uma
entidade apenas maléfica, e sim que ele/ela também atua na proteção dos indivíduos que não transgridem regras,
que devem ser respeitadas nos espaços natuais ou moradias das caruwaras.
68
Espécie de esteira feita da tala do guarimã usada nos rituais onde, os iniciados ficam em sima para receberem
as pinturas corporais e ornamentação, de modo que não tenham contato com as impurezas da terra.
69
Outra mística ligada a essa fase, diz respeito ao fato do caruwara Ywàn/Mãe d’água poder assumir a forma
humana de homem para adentrar na Tocaia a noite, vindo a manter relações sexuais com a iniciada, quebrando o
tabu da virgindade e levando-a ao encantamento, ou seja, sua transformação em caruwara.
94

Se a menina se formar, pinta e põe na tocaia e só a avó vai lá pra dá comida. Ela fica
pintada e, só vai saí de lá quando o jenipapo saí todinho. (Nelson Tembé, em
24.04.2018, aldeia São Pedro).
[...] Os banhos na menina dentro da tocaia são feitos com ervas de plantas da área
indígena, tais como o tipi, mucuracá e outras para lhe dar segurança nas fases que irá
enfrentar: esses banhos com ervas também são jogados dentro e próximo da entrada
da tocaia para afastar os maus espíritos. (REIS, 2014 p. 40-41).

Atualmente há menos rigor no trato do isolamento da jovem na Tocaia, no entanto, sob


os cuidados e orientações da avó, mãe ou tia, ela é obrigada a se abster de atividades como
banho em rio, igarapé, caçimba, pois são espaços de domínio do caruwara Ywán70, de
adentrar matas e capoeiras, além de seguir uma dieta que lhe proíbe de comer animais que
serão servidos na Festa do Moqueado71. A compreensão que os Tembé do Guamá têm sobre
esta pintura corporal subentende uma rede de conexões de significados, que são agenciados
pela oralidade expressa em regras e tabus, que devem ser mantidos até o último dia do ritual
da Festa do Moqueado.

[...] A tocaia é assim, quando a menina se forma a primeira vez, aí é que dá o


primeiro banho do zanipaw [...] hoje não tem tocaia como antigamente, a menina
fica em casa, no quarto, outras pessoas não podem vê ela, só quando sai o jenipapo.
A filha da Pirimina, a Yara, foi feito tocaia lá naquela casinha de palha, ela ficou lá,
aí quando é pra sair bate lá, bá!,bá!, bá!, tipo assim uma caça que se espanta e,
quando ela vara na porta os meninos correm atrás dela arrudiando a casa e eles atrás,
aí a gente fica todo mundo assim olhando. (Dona NenenTembé, aldeia Ytaputyr em
30/04/2018).
[...] Quando a moça menstrua ela vai pra toca, faz uma casinha separada e bota ela lá
uns oito a quinze dias pra vê se ela vai ser uma mulher mesmo de verdade, aí quando
vem de lá prepara para fazer a brincadeira do mingau dela, e depois a Festa do
Moqueado. (Raimundinho Trakuá Tembé, aldeia São Pedro em 27/01/2019).

Esta pintura corporal foi introduzida entre os Tembé do Guamá por parentes do
Gurupí, que estiveram à frente da realização do Wirau haw na aldeia Ytaputyr em 2006 e, se
diferencia das outras pinturas corporais tradicionais (Cuia, Onça, Lua e Tamatá) usadas pelos
convidados, ao fazer parte do rito de iniciação feminina na puberdade.
Observei que havia convergência de sentidos nas informações repassadas por Moreira
e Nelson, por sua vez implícitos no mito “Criação do Homem” em Wagley e Galvão (1961),

70
Para os Tenetehar Guajajara, segundo Zanonni (1999), “Dizem os mais velhos que o dono das águas é da cor
do jenipapo e, portanto, ele acredita que tudo o que for preto dentro da água pode ser por ele levado”.
(ZANNONI, 1999, p. 65).
71
As jovens são orientadas a não comerem carnes de peixes de pele (surubim, anunjá e arraia), mas apenas sopa,
mingau, farinha, chibé e peixes de escama (cará, traíra e tucunaré).
95

que remete ao tabu da proibição da relação sexual entre a mulher tenetehar e o caruwara
Ywán. A nomeação e explicação dada a esta pintura corporal por Nelson, foi relevante para
que eu pudesse acessar o significado simbólico e cosmológico relacionado ao período
menstrual, ao preparo do corpo com banhos de ervas e jenipapo, na preparação psicológica,
no cumprimento das regras e dieta pela menina iniciada. (Caderno de Campo, em 24.04.2018,
aldeia São Pedro).
Passados mais de 70 anos da pesquisa etnográfica dos eminentes antropólogos Wagley
e Galvão (1961) realizada na aldeia Camirang em 1942, abrangendo os mitos e ritos de
iniciação feminina entre os Tenetehar Guajajara, suas contribuições são relevantes para a
análise comparativa sobre o atual uso do jenipapo em forma de pintura corporal, na fase pré-
ritual da Tocaia entre os Tembé do Guamá, permitindo uma reflexão mais consistente sobre
os saberes cosmológicos da ciência do jenipapo.

[...] As jovens eram isoladas logo após a primeira menstruação e os rapazes desde
que eram considerados fisicamente adultos. Os adolescentes permaneciam na tocaia
cêrca de dez dias. As jovens tinham o corpo pintado de preto com o suco de
jenipapo. O mesmo era feito para os repazes; apenas, nestes, a parte superior do
rosto não era pintada. Durante esse tempo de reclusão os jovens permaneciam
deitados na rêde. Não podiam deixar a tocaia [...] somente podem falar com as mães
ou outro parente muito próximo que atenda às necessidades [...] Durante êsse
período não podem comer carne, sômente milho, mandioca, farinha e mingaus. Uma
vez ou outra, pequenos peixes considerados inofensivos lhes são servidos. A água
que bebem deve ser ligeiramente aquecida. (WAGLEY & GALVÃO, 1961, p. 88).

Nota-se que os autores abordam o período de isolamento da Tocaia como pré-


cerimonial, ou seja, um tempo de preparação, que atualmente entre os Tembé do Guamá,
apenas a menina moça realiza em um quarto na casa dos pais. Estas referências me ajudaram a
identificar semelhanças e diferenças entre os Tenetehar Guajajara dos anos 40, e os atuais
Tembé do Guamá, quanto hà alguns aspectos que perpassam a fase da Tocaia pela iniciada.
Outra explicação para o uso do jenipapo nesse período de reclusão, segundo o pajé Nelson,
ocorre porque “ele é quem manda sabedoria pra pessoa, pra menina na Tocaia”. (Nelson
Tembé, em 22.04.2018).
As pesquisas etnohistóricas e etnográficas realizadas por Zannoni (1999), entre 1983 e
1997, sobre as fases do rito de iniciação feminina entre os Guajajara, foram imprescindíveis
para a interpretação dos significados que permeiam a relação do uso do jenipapo com o
caruwara Ywán, expressas nas seguintes afirmações:

Quando a moça é colocada na tocaia [...] é despojada de todo tipo de roupa, e é


pintada com o sumo do jenipapo, do rosto até os pés [...]. Esse é um período cercado
de tabus, pois acredita-se que a moça está vulnerável a todo tipo de perigo. Ela passa
96

de cinco a sete dias na tocaia. Durante esse tempo ela não pode tomar banho, porque
o espírito da água, Iwán, gosta, particularmente, de moça pintada e pode levá-la.
Assim, a partir do segundo dia, ela é asseada pela avó, da cintura para baixo, com
água morna [...] A avó, após matar a força da água, coloca uma esteira no chão e
nela senta-se a moça. Uma cuia, com essa água, é posta na esteira e em frente à
moça senta-se a avó, que passa a banhá-la e apertar-lhe todo o corpo com as mãos, a
começar pelas nádegas, porque precisa criar força e se preparar para ser uma futura
mãe [...]. (ZANNONI, 1999, p. 64-66).

Quando argumentei com o experiente Moreira/Wewer, sobre qual a relação que existe
entre a pintura corporal da Tocaia usada pela iniciada e o caruwara Ywán, ele relatou que este
gosta de “flechar” menina moça menstruada, daí o uso do jenipapo como meio de proteção e
preparação corporal contra possíveis males. Também afirmou que o jenipapo não atrai
caruwara como muitos acreditam, mas sim, que ele protege a quem o usa.
Após o tempo de aprendizagem na Tocaia, que termina quando o jenipapo sai
completamente do corpo da iniciada, esta recebe um último banho de ervas para, em seguida,
ser levada a tomar outro banho no rio ou igarapé, porém, acompanhada de outras mulheres 72.
Mediante a interpretação dos mitos e relatos orais que ouvi de meus interlocutores, a ação
negativa do caruwara Ywán pode ocorrer caso sejam descumpridas as regras que norteiam o
pré-ritual da Tocaia. Terminado este período, os pais das jovens iniciadas se reúnem para
socializarem as responsabilidades nas atividades coletivas a serem executadas na fase do
ritual do Mingau da Menina Moça73.

Nós acreditamos que tem a Mãe d’água como ser da água, e temos o ser da mata que
é o Curupira. Também existe o ser do espaço entendeu? Cada ambiente tem o seu
dono, a menina por exemplo, a partir que ela se forma, ela está com o seu corpo
aberto, ela menstrua e o sangue da menstruação faz com que os espíritos sente o
cheiro, se atrai por aquele cheiro de sangue da menina. Quando a menina se forma
pela primeira vez, ela tem todo um resguardo porque ali, a partir daquele momento é
que vai decidir a vida dela em diante [...] se ela não tem resguardo e vai pro rio, os
espíritos da água vão sentir que ela está ali perto, então vem pra ela, se apaixona por
ela e pronto, fica acompanhando ela, coisa que vai pro resto da vida dela. As vezes a
gente não pode confiar deixando a menina andando sozinha por dentro do mato,
porque os espíritos quando eles gostam, eles vão e pegam e levam, aí acabou,
encantou ela e transforma em um outro espírito [...] também não é todo tipo de
comida que ela pode se alimentar, entendeu? Eu conheço uma menina no Gurupí,
que no período dessas mudanças de jovem pra mulher no resguardo, ela foi comer

72
Entre os Guajajara, o período de reclusão da menina moça se encerra com um banho preparado com a folha da
macaxeira pela avó, que assim diz: “[...] minha filha, vou te banhar com a água da mãe-d’água para que ela possa
te proteger”. (ZANNONI, 1999, p. 66). Esta afirmação é muito significativa e pertinente com a nomeação de
pintura da Ywán, apresentada pelo pajé Nelson Tembé.
73
Até o dia do ritual Mingau da Menina Moça, que pode durar de um a dois meses, a menina iniciada deverá
seguir regras e interditos. Há casos onde se realiza o mingau de apenas uma menina, mas atualmente as famílias
vem realizando o mingau de manicuera envolvendo entre duas a oito meninas.
97

um alimento proibido e nasceu uma faixa branca nos cabelos dela, certo que não foi
uma coisa de ruim pra ela se encantar. (Wilson Tembé/NononTembé, aldeia
Ytaputyr em 26/01/2019).

Figura 8 - Pintura corporal Tocaia/Ywán/Mãed’água

Fonte: Autor, 2012.

4.2.2 Pintura corporal Lua/Zahy usada pela menina moça no ritual do Mingau da Menina
Moça

Na segunda fase do ritual de iniciação feminina denominada Mingau da Menina


Moça/Kuzátág Káwi Uhaw, duas pinturas corporais são feitas na iniciada, a pintura corporal
da Lua/Zahy e a pintura corporal da Onça Jaguatirica/Marakaza, sendo a primeira usada
também por convidados de ambos os sexos e idades no ritual, enquanto a segunda é exclusiva
das jovens iniciadas. Lembro durante a realização de um ritual na aldeia Ytaputyr em 2012,
ocasião em que me foi relatado, em termos comparativos, por Félix e Chico Rico, que assim
como a Lua tem suas fases no céu, a mulher tenetehar, a semelhança desta, também, passa por
fases da sua vida aqui na terra, compreendendo o nascimento (Lua Minguante), a formação
(Lua Nova e Lua Crescente) e a maturidade (Lua Cheia).
A pintura corporal da Lua/Zahy ou meia Lua foi introduzida pelo pajé Nelson nas
aldeias Sede, São Pedro e Frasqueira em 1993, no entanto, foi com o pajé Chico Rico que ela
98

se tornou mais conhecida nas aldeias do Guamá em 2003, devido a realização da primeira
Festa do Moqueado entre os Tembé do Guamá e, principalmente, a partir de 2006, quando se
realizou o primeiro rirual do Mingau da Menina Moça na aldeia Ytaputyr, sob orientação dos
parentes do Gurupi, a exemplo do cantor Livino Tembé, do professor Emídio Tembé e sua
esposa Mi’i Kaapor.
É reconhecida como pintura dos mais velhos por Nelson, Félix, Moreira, Pedro
Teófilo e outros, sendo usada pela iniciada na segunda fase do ritual do Mingau da Menina
Moça, marcando o início do ritual de iniciação feminina, momento que a jovem acompanhada
pela avó, mãe e tias passa a receber orientações sobre a mística do preparo do seu primeiro
mingau de mandiocaba, o qual deverá servir a todos os parentes convidados assim que tem
início as cantorias e dança Caê Caê, que se prolonga pela noite com breves intervalos até o
amanhecer.74
O preparo do mingau ocorre durante um dia da semana previamente acordado e
programado em reunião, que ocorre na ramada da aldeia destinada a realização do ritual,
estando presentes cantores, caciques, lideranças, pais e familiares das iniciadas. A escolha do
dia da brincadeira deve seguir o calendário lunar na fase da Lua Crescente, em período de
verão ou de chuvas.
Em abril de 2017, acompanhei o mingau de uma jovem iniciada na aldeia Ytaputyr,
onde dialoguei com meus interlocutores sobre as atividades realizadas e registrei algumas
imagens da performance do ritual. Observei que todas as etapas do preparo do mingau de
mandiocaba ocorreram dentroda ramada, que foi devidamente limpa e ornamentada com
diversos objetos da cultura material Tembé 75, junto aos quais havia fotografias de parentes já
falecidos como Chico Rico e Verônica Tembé, pendurados e amarrados nos travessões da
cobertura como uma exposição, que visava a embelezar o espaço sagrado no interior da
ramada, onde ocorreu toda a mística do ritual.
Após ter tomado seu primeiro banho do dia às seis da manhã, na casa dos pais,
preparado pela mãe, a iniciada foi se juntar aos parentes que iam chegando à aldeia, onde se
dirigiram a ramada para acompanhá-la no cumprimento de suas obrigações no preparo do

74
Os primeiros parentes que a menina moça serve o mingau são os cantores, o pajé e os organizadores do ritual,
e depois a todos os convidados.
75
Cuia, paneiro, tipití, maracá, flechas, saia de miçangas ou de fibra de malva, colar de miçangas e de sementes,
crânios de animais abatidos em caçada.
99

mingau e, na mística de purificação e preparação do corpo para a vida sexual e maternal, que
ocorreu durante o tempo de cozimento do mingau, o que exigiu obediência, sacrifício e
responsabilidade da moça perante a comunidade que a observava. Em pequenos grupos ou
individualmente, adultos e jovens assumiram as tarefas de preparo do sumo de jenipapo e, no
corte de lenhas para o cozimento do mingau.

[...] a mãe ou a avó descreve os preparativos do mingau que preparará e irá oferecer
a comunidade, teste esse onde a moça não pode deixar queimar ou derramar o
mingau, pois nesse teste demonstrará sua paciência para mexê-lo, temperá-lo e não
deixar queimá-lo. Isso simbolizará a ela ser uma dona de casa paciente, atenciosa e
responsável [...]. (REIS, 2014, p. 39).

Assim que a mandiocaba, a mandioca, a macaxeira e o cará, começaram a serem


descascadas e raladas separadamente, teve início o ritual com a pintura da menina moça, de
forma que ela foi orientada a ficar sobre um tupé e, nesse momento ela retirou a blusa e
adereços que estava usando ficando apenas com uma saia curta, vindo a ser pintada com o
sumo do jenipapo por duas mulheres experientes.
A pintura corporal da Lua foi a primeira a ser feita usando-se uma tala de anajá com
um fio de algodão enrolado em uma das extremidades e, seu padrão consiste em oito
seguimentos de retas paralelas em diagonais, que se dirigem dos ombros ao centro das costas
e do tórax em formato de vê (V), as quais se ligam a trinta e dois segmentos de retas paralelas
verticais, distribuídas nas costas, tórax, barriga e ombros. Nas partes superiores dos braços são
feitos doze segmentos de retas paralelas verticais, que se ligam a duas linhas paralelas
horizontais que formam dois círculos. Nas partes inferiores dos braços são feitos dezesseis
seguimentos de retas paralelas verticais, as quais se ligam a duas das quatro linhas paralelas
horizontais formando quatro círculos. Na parte inferior das pernas segue o mesmo padrão da
parte inferior dos braços. Com exceção dos seguimentos de retas paralelas diagonais em vê
(V), as demais são preenchidas por desenhos da Lua em sua fase crescente, elaborados com
uma vareta de bambú cortada em uma das extremidades em formato de meia circunferência,
que é imersa no jenipapo, sendo aplicada sobre a pele em forma de carimbo, dando forma
icônica a meia Lua/. Por último, as mãos e os pés são pintados completamente de jenipapo,
com a função de purificá-los antes da jovem pegar nos objetos para o preparo do mingau76.

76
Panela de alumínio, cuia, colher de madeira e um crivo feito com uma meia cuia com vários furos e, presa a
um bastão usado para retirar as impurezas durante a fervura do caldo da mandiocaba.
100

Após um período de fervura para a retirada de impurezas, a iniciada retirou uma


porção do mingau da panela em uma cuia, entreguou a mãe que a posicionou no chão, de
modo que a jovem ficou de cócoras sobre a cuia, recebeu em suas partes íntimas o vapor
quente do mingau que a protegerá de doenças nas genitálias, e lhe assegurará, também, um
parto saudável e sem dor. Em seguida, a mãe posicionou a cuia a altura do abdômen da
iniciada que fez uma inflexão sobre o vapor quente, com a função de protegê-la de doenças
estomacais e verminoses. Assim que o jerimum e a macaxeira haviam sido cosidos
separadamente e, ainda, quentes, alguns pedaços foram colocados em cima do tupé, para que
a menina pudesse pisá-los com a palma dos pés suportando a dor, para que não viesse a ter
moléstias como “pé rachado”, ou inchaços.
Por último, durante a performance do ritual, pela manhã, foram feitas tapiocas da
goma da mandioca, que ainda quentes puseram sobre a cabeça da iniciada, tendo por
finalidade garantir sabedoria, ausência de dores de cabeça e, para não adquirir cabelos brancos
tão cedo. Em seguida, as tapiocas foram feitas em pedaços pela menina moça e entregues a
todos os participantes, simbolizando que a menina não se torne individualista e venha a ser
futura mãe com disposição para ajudar a comunidade, a partir de sua aprendizagem.

O mingau tem o significado de alegria, que a menina se formou e todo mundo tá


satisfeito que chegou a formatura dela de menina moça [...] tá se dizendo assim, he!
daqui pra frente já posso ser uma mulher [...] aquela pintura pintadinha parecida com
surubim, ela tá se demonstrando que é a vez dela, aquela pintura tá informando a
próxima festa é sua, a Festa do Moqueado. (Antônio Romão Tembé, em
15.10.2018).

Após a realização da mística das pinturas corporais da Lua/Zahy e da Onça Marakaza,


ela recebeu um colar de miçangas brancas e, passou a dedicar-se a mexer o caldo da
mandiocaba até que chegasse ao ponto de ser acrescido das massas diluídas de macaxeira, do
cará e da mandioca. Não deixar que o mingau queimasse, ou que viesse a grudar no fundo da
panela, exigia concentração e esforço físico da jovem na manutenção do fogo a lenha, no
movimento da colher de pau ao mexer o mingau e, no manuseio do crivo de cuia na retirada
das impurezas.
O ritual seguiu pela tarde e, a menina moça permaneceu responsável pelo bom
cozimento do mingau até seu ponto ideal, ao final da tarde. Há noite, o ritual foi retomado no
terreiro fora da ramada, com a presença dos cantores pintados e portando seus maracás, onde
se posicionaram em um banco de madeira acompanhados por mulheres, que formaram uma
segunda fila em outro banco logo atrás para auxiliar nas cantorias entoadas até o amanhecer.
A jovem trajava uma simples peça de roupa e usava um colar de miçangas brancas no pescoço
101

e lenço branco na cabeça. A ramada e o terreiro eram os espaços por onde ela transitava ao
servir o mingau, não sendo permitida sua participação na brincadeira Caê Caê, que animava
os parentes com performances bem criativas.
Foi durante a noite sob a luz e a imagem de Zahy no céu e, ao som das cantorias em
língua Tembé, que a iniciada serviu a todos o seu primeiro mingau até o amanhecer, quando
ela se uniu aos demais parentes no centro do terreiro para o encerramento, que se deu com
uma cantoria específica e algumas breves falas de agradecimentos dos organizadores da
“brincadeira”.
A participação em rituais do Mingau da Menina Moça me levou a perceber a pintura
corporal da Lua, enquanto referência simbólica que remete a diversos aspectos da relação dos
Tembé com a natureza, no preparo, plantio e colheita das roças, na menstruação e
transformação dos corpos femininos, na determinação dos dias apropriados para a realização
de suas brincadeiras, rituais e cerimônias culturais. No decorrer da pesquisa foi possível
identificar desenhos da Lua em objetos como cuia, maracá, colar e pulseira de miçanga. Nas
aldeias alguns meninos recebem o nome de Zahy, numa alusão ao personagem do mito mais
conhecido e contado nas aldeias do Guamá.
O fato da pintura corporal da Lua ser usada pela iniciada, no ritual do Mingau da
Menina Moça e, posteriormente, no Wirau haw pelo menino iniciado, me levou a aferir que a
simbologia da Lua no corpo da jovem significa seu comprometimento matrimonial ao futuro
esposo, que vai unir-se a ela na última fase do ritual, onde se consuma a união do casal77.
Desse modo, a menina moça é submetida a um conjunto de regras e orientações em forma de
aprendizado, para que possa assumir seu compromisso de futura mãe e esposa.
A Lua na cosmologia do grupo é responsável pela transformação da natureza da
mulher tenetehar nas fases durante e após a primeira menstruação, levando a preparação do
corpo e da espiritualidade da jovem iniciada nos desafios do ritual que antecede a sua união
ao jovem iniciado na Festa do Moqueado, a partir do cumprimento de todas as obrigações
quanto a purificação e preparação do corpo, sinalizado pela simbologia das pinturas corporais
da Lua e da Onça Marakaza.

77
Nos relatos orais de meus interlocutores, sobre a Festa da Menina Moça, era recorrente a afirmação de que no
tempo dos mais velhos, após o término do Wirau haw, os casais de jovens iniciados assumiam a união
matrimonial sob a orientação dos pais e avós. Hoje são raros os casos, no entanto, existem casais que vão ao
último dia do ritual enquanto convidados, mas que em segredo estão consumando união matrimonial.
102

Figura 9 - Pintura corporal feminina Lua/Zahy, usada no ritual do Mingau da Menina Moça

Fonte: Autor, aldeia Ytaputir, 2012.

4.2.3 Pintura corporal Onça Jaguatirica (Marakaza) usada pela iniciada no ritual do Mingau da
Menina Moça

A pintura corporal da Onça Jaguatirica/Marakaza, é de uso exclusivo da jovem


iniciada, sendo feita logo após a pintura corporal da Lua usando-se uma tala de anajá,
bifurcada em uma das extremidades, que embebida no sumo do jenipapo, é aplicada em toda a
face da iniciada em diversos pequenos pontos, que remetem as pintas da onça jaguatirica78.
Foi introduzida por parentes do Gurupí nas aldeias do Guamá, quando se realizou o primeiro
Mingau da Menina Moça na aldeia Ytaputyr em 200679, sendo reconhecida nas aldeias do
Guamá enquanto pintura dos mais velhos. Ao perguntar a Nelson, a respeito desta pintura
corporal, me revelou que ela é uma invenção nova, se referindo a Chico Rico como
responsável por sua renovação na aldeia Canindé.

78
Identifiquei em Reis (2014), argumentos sobre esta pintura que, ora se refere a pintura corporal da Onça
Pintada, ora faz alusão ao pássaro nambu. Em Coelho (2014), as referências apontam para a onça pintada e para
o peixe surubim. [...] Se considerar que a pintura corporal que se faz nas moças na fase do mingau é do surubim
(espécie de peixe), e não da onça, este animal ainda assim é considerado como perigoso e forte, visto que sua
pele o coloca em um grupo de peixes que não deve ser consumido por mulheres grávidas, menstruadas, pessoas
feridas e/ou doente, com pena de ser acometido por algum adoecimento. (COELHO, 2014, p. 99).
79
Atribuo a introdução desta pintura corporal na aldeia Ytaputyr, a partir da transmissão oral de saberes de
parentes do Gurupí, que estavam residindo na referida aldeia e, participaram como organizadores do ritual do
Mingau da Menina Moça, a exemplo do casal Mi’i Kaapor e Emídio Tembé. O pajé e cantor Livino Tembé
esteve presente na realização do referido ritual.
103

Há de se considerar que, a pintura corporal da Onça Jaguatirica apresenta diferença em


relação a pintura corporal da Onça Pintada, quanto ao padrão estético e, por ser de uso
exclusivo da iniciada na segunda fase do ritual do Mingau da Menina Moça. Seu significado
simbólico, de acordo com Félix Tembé, se refere aos ensinamentos que as onças deram aos
Tenetehar, em forma de virtudes a serem assumidas pela menina moça em ser atenciosa,
persistente e resistente diante das adversidades da vida, o que leva a reflexão sobre a
experiência da “passagem” da jovem Camata, no Mito da Menina Onça em Tutui Tembé
(2019).

Figura 10 - Pintura corporal Onça Jaguatirica (Marakaza)

Fonte: Autor, aldeias Ytaputir e São Pedro, 2012, 2017 e 2018.

4.2.4 Pintura corporal Lua/Zahy usada pelo menino iniciado no ritual Wirau Haw/Festa da
Menina Moça

A participação do jovem iniciado na fase do ritual Wirau haw é determinada, em


certos casos, por arranjos e compadrios entre os pais da menina e os pais do menino. Ao
longo da pesquisa de campo, ouvi relatos que o menino também ficava recluso na Tocaia e,
recebia sua pintura corporal e ensinamentos de regras e tabus, sob a orientação do pai e do
avô. Wagley e Galvão (1961) confirmam em suas pesquisas que havia o período pré-ritual da
Tocaia destinada aos meninos Guajajara, no seguinte recorte discursivo: [...] Antigamente,
tanto rapazes como meninas submetiam-se a um período de isolamento que antecedia os ritos
da puberdade. (WAGLEY & GALVÃO, 1961, p. 90).
Lourenço Tembé, ao se referir a “passagem” de Nelson pela Tocaia, sob a orientação
da capitoa Verônica Tembé, deu ênfase a rigidez que havia no cumprimento das obrigações
104

direcionadas aos jovens iniciados, acrescentando que esta tradição “desapareceu” entre os
Tenetehar Tembé, participando o menino apenas no ritual da Festa da Moça80. Durante os sete
dias que participam no ritual, apenas no último o iniciado vem a pular/dançar com a iniciada
dentro da ramada e fora no terreiro, nos outros seis dias ele dança fazendo par com outro
iniciado dentro da ramada, o mesmo ocorre com as jovens iniciadas81. De acordo com Félix, o
casal de iniciados representa a continuidade do povo Tembé, cabendo ao menino, sob
orientação do pajé e de outros conselheiros, cumprir suas obrigações nos sete dias do ritual.
É no sexto dia do ritual que os iniciados recebem suas pinturas corporais82, por volta
das seis e trinta da manhã, aos primeiros raios do sol. Este momento tão importante ocorre
fora da ramada e as mulheres mais experientes, mães, tias e avós fazem as pinturas corporais
usando os utensílios necessários83e o sumo do jenipapo que foi ralado um dia antes. As
meninas são as primeiras a serem pintadas e, do mesmo jenipapo deve ser feita as pinturas
corporais dos meninos, só então os demais participantes podem fazer suas pinturas
corporais84. Após a pintura das iniciadas tem início a pintura da Lua85 nos meninos, que usam
apenas bermudas de cor vermelha e um colar de miçangas brancas. O padrão estético e
figurativo feito nos ombros, tórax, costas, barriga e membros superiores e inferiores, são os
mesmos da pintura da Lua usada pelas iniciadas no ritual do Mingau da Menina Moça.
É importante destacar que a pintura corporal da Lua feita no corpo do menino
apresenta certas peculiaridades. Trata-se da mesma pintura corporal usada pela jovem iniciada

80
Notei que as idades dos meninos que participaram de rituais em 2017 e 2018, variavam entre 12 e 17 anos e,
algumas mudanças na fisionomia do corpo e no timbre de voz caracterizam sua maturidade, ao passo que a
iniciação da menina está relacionada a primeira menarca.
81
Ao refletir sobre a mística do Wirau haw, ficou mais evidente, que as iniciadas são as que merecem mais
atenção na Festa do Moqueado, primeiro por que uma delas é escolhida para ser a “dona da Festa” (Izar), e
segundo, que a distribuição da farofa de moqueado, símbolo de comunhão com as entidades naturais e
sobrenaturais, tem inicio com a distribuição, pelas inicidas, dos bolos de carne do pássaro nambú aos
convidados.
82
O menino iniciado recebe uma única vez a pintura corporal, enquanto a menina moça é pintada pela terceira
vez, fechando o ciclo que tem início no pré ritual da Tocaia, passando pelo ritual do Mingau da Menina moça e,
por último, o ritual da Festa do Moqueado.
83
A cuia e vasilhas plásticas, fios de algodão, tesouras e facas para confecção de diversos tipos e tamanhos de
pinceis artesanais feitos da tala de anajá, guarimã e bambú.
84
Segundo as regras da mística do Wirau haw, este é o dia em que todos os participantes devem fazer suas
pinturas corporais recomendadas pelos organizadores do ritual e pelo pajé. Atualmente as mais usadas são: Cuia,
Borboleta, Tamatá e Lua, esta última usada apenas por homens.
85
Alguns Tembé do Guamá denominam a pintura corporal da Lua de pintura da Taboca, ou seja, uma
renomeação devido ao uso da taboca como instrumento para a sua elaboração, que ao ser partida ao meio, de
uma extremidade a outra em forma de meia Lua, é umedecida no sumo do jenipapo e aplicada ao corpo.
105

no ritual do Mingau da Moça86e, seu significado simbólico está relacionado ao mito de Zahy,
onde a Lua é apreendida enquanto metáfora para representar a masculinidade Tembé em
Zahy, que perdeu sua humanidade por ter transgredido as regras do tabu sexual, ao ter
mantido relações com parentesco próximo87. Por último ela demonstra que o jovem está
pronto para assumir compromisso matrimonial, que já é um homem adulto, devendo respeitar
o tabu sexual enunciado no mito de Zahy, enquanto princípio moral.
A próxima pintura corporal é feita na parte inferior do rosto do menino usando-se uma
tala de anajá, com um pedaço de algodão enrolado em uma das extremidades, em forma de
um pincel, que mergulhado no sumo do jenipapo é aplicado de uma ponta a outra das orelhas,
em linha horizontal entre o nariz e os lábios, contornando o maxilar e preenchendo as partes
das bochechas, dando uma aparência de barba e bigode.
Durante a pesquisa identifiquei contradições a respeito da nomeação desta pintura
corporal entre os Tembé do Guamá e do Gurupí, uma vez que tive conhecimento de duas
nomeações, quais sejam, a de pintura do Menino Tembé88 e pintura da Boca do Macaco89.
Entendo que esta última nomeação está relacionada a referências simbólicas
agenciadas por alguns Tembé, quanto a mística que envolve a performance da macaca guariba
no Wirau haw, implicando em dinâmica de renomeação e ressignificação, ao passo que para

86
Reis (2014) argumenta que possíveis inversões podem ocorrer na posição da pintura corporal da Lua feita nos
corpos dos iniciados no ritual Wirau haw, no entanto, não identifiquei durante a pesquisa de campo as referidas
inversões citadas pelo autor, enquanto os registros iconográficos (fotografias e vídeos) entre 2006 e 2018,
evidenciam que há uma simetria na posição da pintura corporal da Lua, nos corpos dos iniciados. “[...] Existe um
momento “(pré)-ritual”, possivelmente quando a menina entra na tocaia – paralelamente os meninos recebem a
pintura da meia lua com a abertura para cima, – formando a letra u, (ex.: ᴗ) – simbolizando talvez a cuia, esse
instrumento muito usado durante os rituais que por ele passam bebidas como: água, chá, açaí, mingau, cauim,
tucunaira e comidas: peixe, carne moqueada, pirão, bolinhos e outros”. (REIS, 2014, p. 32 ); [...]. Entretanto, se
na pintura da Festa do Mingau a banda da lua (ou formato da cuia, Kawaw) estiver para cima, no ritual da festa
final da Wyrau-how, a imagem irá ficar para baixo, isso é muito relativo, depende de quando a festa é iniciada e
em que lua começou a festa, ou seja, depende do ciclo lunar para ser feito a posição do símbolo de Zahy. (Ibd, p.
71).
87
Em Coelho (2014) e Neves (2015), o mito de Zahy retrata a transgressão do tabu sexual do personagem Zahy,
ao manter relação sexual com a tia, irmã de sua mãe, enquanto em Reis (2014), o tabu sexual foi rompido por
Zahy, ao manter relação sexual com sua irmã.
88
Esta nomeação é predominante entre os Tembé do Guamá, que por sua vez corresponde à mesma usada pelos
parentes do Gurupí.
89
As pesquisas em Reis (2014) e Coelho (2014) retratam essas duas nomeações, vejamos. “Na Festa da Menina
Moça, a pintura usada pelo menino é a tradicional Tenetehar, onde no rosto recebe a pintura boca de macaco e
nas mãos e pés são pintados de jenipapo que, depois, ficará escuro para simbolizar o animal como forma de
adquirir suas qualidades da mata”. (REIS, 2014, p. 71); [...] dos meninos representando o macaco guariba [...].
(COELHO, 2014, p. 99).
106

os parentes do Gurupí e, para a maioria no Guamá, ela significa a “passagem” de fase do


menino para a vida adulta.
As versões apresentadas por Moreira e Nelson, ao afirmarem que esta pintura corporal
em conjunto com a pintura da Lua e, as usadas nas mãos e pés para fins de purificação,
significa que o jovem iniciado chegou à fase adulta, visível nas mudanças corporais, estando
ele pronto a assumir relações sexuais com mulheres solteiras, e mesmo se casar, caso esteja
comprometido. Após ter passado pelo ritual, ele pode vir a participar de caçadas junto a
caçadores experientes, se tornarem iniciado na pajelança, ou cantor de prestígio.
Diante das duas diferentes nomeações, que por sua vez suscita diferentes
interpretações, a exemplo de Reis (2014) e Coelho (2014), tudo indica que o processo de
renomeação desta pintura corporal tenha ocorrido a partir da mística simbólica da macaca
guariba, no último dia do ritual Wirau haw.
As últimas pinturas corporais são feitas nas mãos e nos pés dos meninos iniciaodos
usando-se pincéis artesanais, ou mesmo as mãos, que após ungidos por completo no sumo do
jenipapo são utilizados na elaboração das pinturas. A função de tais pinturas está relacionada
à purificação dos pés e das mãos, para que no dia seguinte, ele venha a formar par a uma das
iniciadas previamente escolhida, que dançará com ele as músicas cantadas na ramada no dia
seguinte.
Após o término das pinturas corporais os iniciados seguem para seus lugares
exclusivos90, onde ficam aguardando o início das cantorias sob a orientação das mães e tias,
para então continuarem a dançar formando pares, num movimento circular repetitivo nos
passos e, em sentido anti-horário até o final da tarde, quando as pinturas vão ganhando uma
coloração escura. Enquanto isso, as pinturas corporais dos convidados continuam sendo feitas
nos corpos das crianças, jovens e adultos de ambos os sexos91.

90
Observei nas “brincadeiras” da Menina Moça, na aldeia Ytaputyr, Sede e São Pedro, que os iniciados
formando casais, se posicionam sempre a direita do pajé e, dos demais cantores e mulheres, num banco
reservado apenas a eles, não sendo permitido que os demais participantes fiquem nele sentados.
91
Cabe lembrar que, a partir da “brincadeira” da Menina Moça realizada na aldeia Sede em 2017, passei a
perceber que havia orientação prévia dos organizadores, incluindo o pajé, sobre quais pinturas corporais
deveriam ser usadas: Cuia, Lua/Taboca, Borboleta e Tamata. Estas são as mais recomendadas nos rituais que
ocorreram entre 2017 e 2018, nas aldeias Ytaputyr, São Pedro e Sede. Esta situação é reflexo de certas
preocupações com o uso de pinturas mistas Tembé/Gavião, Tembé/Guajajara, Tembé/Kayapó, Tembe/Waiãpí,
que tem levado a estranhamentos e discussões sobre o uso destas pinturas. Esta questão se explica pela presença
e participação nos rituais dos parentes do Gurupí, que estão residindo com suas famílias em aldeias como
Ytaputyr e Sede, onde na condição de conselheiros nos rituais, possuem grande influência quando se trata de
seguir a tradição da cultura Tenetehar.
107

Figura 11 - Pintura corporal Lua/Zahy

Fonte: Autor, aldeias Ytaputir e São Pedro, 2017 e 2018.

4.2.5 Pintura corporal da Menina Moça/Ywán/Mãe d’água usada no ritual da Menina Moça

É no sexto dia do ritual Wirau haw que as meninas iniciadas recebem suas pinturas
corporais logo bem cedo, fora da ramada, onde é colocado um tupé no chão sobre o qual elas
ficam em cima e, retiram seus colares de miçangas brancas e suas blusas deixando seus
corpos nus da cintura para cima e, ficando apenas vestidas em saias curtas. Em seguida o
sumo do jenipapo, em tom azul escuro é despejado em cuias que são distribuídas as mulheres
responsáveis por fazerem as pinturas, onde usam pedaços de algodão ou tecidos, que são
umedecidos no sumo do jenipapo e passados primeiro no rosto, seguindo-se para o pescoço,
tórax, barriga, costas, braços, pernas e por fim, mãos e pés. Em uma vasilha de alumínio é
aceso um defumador contendo a resina da árvore do breu, que visa manter os espaços dentro e
fora daramada purificados.
As iniciadas permanecem sempre sérias e pensativas, ficando tímidas diante do
público que acompanha bem de perto esse momento que marca o dia da purificação e
preparação do corpo da menina moça com o banho correto do sumo do jenipapo. É a parti
deste momento até o dia seguinte que o jenipapo ganha sentido na expressão ciência do
jenipapo usada pelos Tembé, que conhecem bem dos saberes e funções de seu uso, ao poder
revelar no dia seguinte, caso não venha a “pegar” no corpo da jovem iniciada, o segredo de
108

que ela tenha transgredido o tabu da virgindade92. Esta situação me foi comunicada pelo pajé
Nelson neste breve relato oral: “[...]. Tinha uma moça lá no Pindaré, não pegou não por que
mexeram ela. Se for por ela mesmo pega tranquilo igual as moças da festa, que tava bem
pretinho”. (Nelson Tembé, aldeia São Pedro em 22.04.2018).
Após serem pintadas as iniciadas são orientadas junto aos meninos, a irem para dentro
da ramada, onde passam a receber instruções de suas mães e tias aguardando o início das
cantorias do dia, durante as quais se levantam e começam a dançar formando pares,
perfazendo um círculo em sentido anti-horário. Os cuidados são redobrados quanto a ação do
caruwara Ywán e, de outros que possam se dirigir a passagem dos caruwaras93e incorporar-
se em qualquer mulher, incluindo as iniciadas, exigindo-se a purificação do ambiente do ritual
com a fumaça do breu. O pajé, de posse do cigarro de tawarí e do maracá, entoa as cantorias
adequadas e interage por meio da pajelança na condução do ritual, mantendo o controle e o
diálogo com a diversidade de caruwaras, bons e maus, que agem dentro e fora da ramada94.

No Moqueado, ela se pinta todo de preto por quê? Porque ali está pronto pra receber
até caruwara, ali aquele jenipapo parece o pajé dela, é um protetor dela e se os
caruwara vim, já sabe que ela é uma das moça, aí os pajé tem que se virá se não eles
(caruwara) matam, porque já aconteceu [...] aí foi que a tia Verônica ensinou o
Nelson. (Antônio Romão Tembé, em 15.10. 2018).

Uma questão me trouxe dúvidas sobre esta pintura corporal, o fato de ela ser usada
pela menina moça durante a fase do pré-ritual da Tocaia, sendo denominada pintura da
Tocaia, enquanto na última etapa do ritual Wirau haw, ela recebe duas denominações: pintura
da Menina Moça95 e pintura da Guariba96. Quando dialoguei com Nelson e apresentei-lhe esta

92
Em Reis (2014), o segredo da quebra do tabu da virgindade da menina moça, se manifesta quando na guariba,
que se encontra no moquém, vem a aparecer larvas de insetos. De fato, cheguei a tomar conhecimento desta
versão, no entanto, ela é menos conhecida do que o uso do jenipapo, quanto a revelação da quebra do tabu.
93
Em uma das entradas laterais da ramada fica a passagem das caruwaras, mas especificamente na posição
frontal aos cantores, sendo destinada ao fluxo de entrada e saída de caruwaras, que vem participar do ritual
incorporando-se ou não em algum participante, geralmente mulheres jovens e adultas, daí não ser permitido o
trânsito de pessoas ou de amimais na “passagem”, a exemplo do cachorro/zarawar.
94
Durante a pesquisa de campo nas aldeias Ytaputyr, São Pedro e Sede, observei que no ritual o Wirau haw a
manifestação de caruwara ocorre quase que exclusivamente em mulheres jovens e adultas.
95
Esta nomeação é a mais empregada e compartilhada entre os Tembé do Guamá, que por sua vez é adotada
entre os Tembé do Gurupí e, traduz os mesmos significados quanto à “passagem” da menina moça para a vida
adulta.
96
Observei que a nomeação pintura da Guariba é pouco empregada entre os Tembé do Guamá, enquanto que
para os parentes do Gurupí, que residem nas aldeias pesquisadas, esta nomeação não é reconhecida, porém,
toleram o seu uso.
109

questão, respondeu que esta pintura corporal recebe o nome de pintura da Ywán/Mãe d’água,
nomeação esta desconhecida entre os Tembé do Guamá97, enfatizando que a nomeação
pintura da Guariba, é uma nova invenção dos parentes do Guamá. Observo que esta nomeação
apresenta pertinência no contexto da cosmologia Tenetehar, onde a simbologia do caruwara
Ywán faz parte da memória coletiva dos Tembé do Guamá.
Segundo Nelson, a função desta pintura está para a purificação e preparação corporal
da iniciada, que tem início no pré-ritual da Tocaia e finaliza no ritual Wirau haw, quando ela
vem a unir-se ao menino iniciado, representando Zahy, após ter cumprido a manutenção do
tabu da virgindade, que será posto à prova pela ciência do jenipapo.
A percepção sobre as diferentes nomeações identificadas me levou a refletir sobre a
hipótese de que a denominação pintura da Guariba consiste numa renomeação atribuída, a
partir das referências simbólicas da macaca guariba no Wirau haw, que envolve a participação
deste animal considerado encantado pelos Tembé do Guamá. Esta hipótese se justifica pelo
fato de tal nomeação ser pouco reconhecida e aceita entre os grupos, ao contrário do termo
pintura da Menina Moça, enquanto a nomeação pintura da Ywán/Mãe d’água, mesmo sendo
desconhecida para meus interlocutores, traduz referências simbólicas e cosmológicas que
apontam para a relação com o caruwara Ywán98, segundo as explicações apresentadas por
Nelson Tembé.
A introdução desta pintura corporal nas aldeias do Guamá se deu por meio dos
parentes do Gurupí, a exemplo de Chico Rico, que atuou como um dos responsáveis pela
realização do primeiro ritual Wirau haw na aldeia Frasqueira em 2003, onde provavelmente
veio a ser renomeada de pintura da Guariba, alusão a macaca guariba. Ao analisar as
pesquisas em Reis (2014) e Coelho (2014), percebi estar diante de uma situação que exigia
cautela diante de informações difusas, que deveriam ser identificadas, comparadas e
confrontadas diante da complexidade em avaliar e aferir meus argumentos sobre os
significados que esta pintura corporal traduz, segundo meus interlocutores informantes.

97
De fato, não havia me deparado com esta nomeação entre os Tembé do Guamá, e mesmo entre os parentes do
Gurupí, que residem nas aldeias do Guamá, o que me levou a aferir que tal nomeação Ywán, usada pelo pajé
Nelson Tembé, apresenta pertinência na cosmologia Tenetehar em Wagley e Galvão (1961) e Zanonni (1999;
2002). Esta questão reforça minha hipótese de renomeação que esta pintura corporal teve entre os Tembé do
Guamá, após a introdução do ritual Wirau haw nas aldeias do Guamá, a partir de 2003.
98
Refiro-me a todo um conjunto de saberes em forma de interdições/restrições, que deve seguir a iniciada
quando usa esta pintura corporal, a exemplo de não tomar banho em rios, igarapés e caçimbas, assim como em
não poder sair desacompanhada a noite ou adentrar lugares de matas.
110

Reis (2014) tece uma interpretação para esta pintura corporal, a partir de referenciais
simbólicos da macaca guariba no ritual Wirau haw, que considero pertinente para o
entendimento do que considero como renomeação da referida pintura corporal da Guariba,
expressa nas seguintes citações do autor:

[...] tem a “história/mito” de que no passado ele (macaco guariba) era o cantador
dos rituais Tenetehar, além de que seu gogó é purag (remédio) para pessoas com
problema de garganta, basta tomar água dentro e a pessoa pode melhorar. (REIS,
2014, p. 53). “Há uma possível procedência de ligação da pintura final recebida pela
menina estar relacionado a esse animal [...] simbolicamente relacionado à maioria
dos pelos da guariba serem de cor escura. [...] para o povo Tenetehar, um de seus
maestros foi à guariba pelo seu timbre afinado, marcando a passagem desse animal
da vida, quando cantava na mata, para a “morte” como oferenda e diversão da parte
final da festa da Wyra`u-how. [...] pode indicar uma denúncia em casos de a menina
não ser mais virgem. Existem partes no ritual que os cantadores são comparados às
guaribas pela intensidade de sua voz. [...] É como se ela, a guariba, tivesse os
ensinado a cantar. [...] daí ela ser qualificada de “nossa mãe”, por alguns indígenas.
(REIS, 2014, p. 54).

Por outro lado, avalio que as interpretações abaixo em Reis (2014), sobre esta pintura
corporal, se distanciam dos referenciais simbólicos que os Tembé do Guamá aferem ao
animal guariba, onde o autor conjectura outros significados simbólicos a pintura corporal
usada pela menina moça no Wirau haw, o que considero certo exagero interpretativo:

A pintura corporal usada nas meninas nessa parte do ritual cobre praticamente todo
o corpo, onde se pode compará-la à cobra no momento da troca da pele velha por
uma nova (ecdise), processo que dura aproximadamente 13 dias. [...] benzida e
batizada pelo banho natural da mata, representado no sumo do jenipapo, o qual irá,
mais tarde, escurecer seu tecido epitelial, numa simbologia a diversos animais e
pássaros de penas ou pelos escuros do habitat Tembé Tenetehar. [...] ou as penas do
mutum por serem quase todas escuras ou está ligada à escuridão noturna e seus
mistérios. (REIS, 2014, p. 78 e 79).

Quanto aos argumentos em Coelho (2014), sobre esta pintura corporal, a partir dos
aportes teóricos do perspectivismo ameríndio em Castro (2004), afirma ser uma representação
da onça preta, no entanto, o autor não apontou referências simbólicas e cosmológicas que
façam parte da memória coletiva dos Tenetehar Tembé a respeito deste animal, a exemplo de
Reis (2014), em relação a macaca guariba. De outro modo, afirma que a pintura corporal
usada na parte inferior da face pelo menino iniciado representa o macaco guariba, o que
entendo ser uma renomeação recente nas aldeias do Guamá.

O terceiro momento do ritual é marcado pela pintura corporal das meninas


representando a onça preta, e dos meninos representando o macaco guariba. Se o
ritual é um momento de preparação do corpo para o novo estado a ser assumido pela
moça, as pinturas possuem o objetivo de passar aos iniciados a força dos animais e,
nesse caso estaria revelando-se o sentido êmico das pinturas. Portanto, se na
111

cosmovisão Tembé há o animal que pode se ver como humano, então quando a
jovem é pintada assume, pelo menos para a onça, uma perspectiva semelhante a da
própria onça. Por isso a onça passa a acompanhá-la e permite que adquira sua força.
(COELHO, 2014, p. 99).

A nomeação pintura da onça preta e as considerações aludidas ao preparo do corpo da


jovem iniciada, por analogia as qualidades do felino que envolve a pintura corporal no
contexto do Wirau haw, na interpretação elaborada pelo autor, obrigou-me durante a pesquisa
de campo a tentar identificar referências em narrativas históricas e míticas sobre a referida
nomeação. A partir de conversas com Félix, Moreira e Nelson, a respeito da nomeação e da
relação desta pintura corporal com algum tipo de animal, me relataram não terem
conhecimento da referida nomeação ou da relação com algum tipo de felino, mas sim com o
caruwara Ywán/Mãe d’água.

Figura 12 - Pintura corporal Menina Moça/Ywán/Mãe d’água usada no ritual Wirau haw

Fonte: Autor, aldeias Ytaputir e Sede, 2017 e 2018.

4.3 PINTURAS CORPORAIS OU INVENÇÕES DOS MAIS JOVENS.

São pinturas corporais usadas nos rituais das Crianças, no Mingau da Menina Moça e
na Festa do Moqueado, no entanto, elas apresentam características que as diferenciam das
pinturas dos mais velhos, não apenas quanto ao padrão, mas porque algumas delas foram
introduzidas e assimiladas de outros grupos étnicos pelos Tembé do Guamá, outras foram
criadas durante o processo de reorganização dos parentes do Gurupí. Entre as pinturas
corporais selecionadas, apenas uma apresenta relação com narrativas de animais, outra com a
música e o caruwara da panám/borboleta.
112

4.3.1 Pintura corporal Borboleta/Panám

A introdução desta pintura corporal nas aldeias do Guamá se deu por intermédio do
pajé Nelson em 1993, durante o movimento de reorganização política e cultural e, começou a
ser usada nas brincadeiras Caê Caê/ehe ehe, ensinadas pelo referido pajé nas aldeias Sede,
São Pedro e Frasqueira. Observei que além do seu padrão tradiciomal, composto de dois
semicírculos opostos em forma icônica, que remete as asas da borboleta feitas entre
segmentos de retas paralelas, identifiquei outro mais estilizado, que combina segmentos de
retas paralelas perpendiculares, as quais se cruzam em ângulos de 40°, dentre as quais são
preenchidos triângulos vazados por semicírculos marcados por dois traços, que em conjunto
dão forma icônica a borboleta. Esse último padrão passou a ser usado a partir de 2012, sob a
influência de Muruka’i e Tutui, na aldeia Ytaputyr. É bastante usada nos rituais de iniciação
das Crianças, no Mingau da Menina Moça e, na Festa do Moqueado, sendo considerada
pintura tradicional pelos Tembé do Guamá e Gurupí.
Para a elaboração do padrão tradicional faz-se uso de um pedaço cilíndrico de taboca,
que partida ao meio em duas partes e, invertidas, toma forma ícone representando asas da
borboleta )(, que umedecidas no sumo do jenipapo é aplicada em diversas partes do corpo.
Para a elaboração do novo padrão estilizado se usa uma tala de anajá bifurcada ao meio, e
outra onde é enrolado um fio de algodão.
Quando entrevistei o cantor Moreira, ele afirmou que esta pintura não era tradicional,
mas que havia “aparecido” há algum tempo entre os Tembé do Gurupí, porém, não entrou em
detalhes sobre tal afirmação. Observei durante os rituais que o seu uso ocorre entre adultos,
jovens e crianças de ambos os sexos e idades, sendo bastante requisitada em passeios,
encontros e eventos culturais fora das aldeias. Para alguns Tembé, [...] a panám é a borboleta
que chama o verão e, quando chega certo tempo, em que a água vai baixar, aí começa a
chegar a panám chamando o verão, porque justamente vai ser seco já, aí ela desaparece [...]”.
(Antônio Romão Tembé, em 15.10.2018).
Ao dialogar com o pajé Nelson sobre esta pintura corporal, ele afirmou não se tratar de
uma pintura tradicional, pois que ela não pertencia aos Tenetehar Tembé, e sim a etnia dos
Parakanã, onde foi levada as aldeias do Gurupí por alguns parentes. Posteriormente, obtive
informações com Trakuá Tembé e Israel Tembé, que Nelson, Chico Rico, e outros indígenas
113

do Gurupí, atuaram na “pacificação” dos Parakanã e de outros grupos étnicos Tupí, que foram
localizados e contatados entre 1976 e 198499.
A interpretação apresentada na pesquisa de Reis (2014), sobre esta pintura corporal,
pautada em uma suposição segundo o próprio autor, difere das informações levantadas em
campo, o que me leva a discordar de seus argumentos, uma vez que o desenho ícone )( é
reconhecido nas aldeias pesquisadas enquanto símbolo da borboleta/panám, e não da espinha
da jiboia.

[...] se amarrarmos as partes da taboca em tamanhos iguais no sentido inverso, uma


ao lado da outra - exemplo: )( - teremos a possível imagem/símbolo de parte da
espinha da moz [...]. Essas marcas podem simbolizar a espinha da jibóia, por entre
os quadriláteros ou em outras partes na perna. p.33 [...] Contudo, na parte interna das
serpentes existem as espinhas que possuem o formato da letra X, exemplo: )( , o
mesmo usado na pintura tradicional dos antepassados, simbolizando supostamente
as espinhas da(s) cobra(s) [...]. (REIS, 2014, p. 33 - 34).

Para o pajé Nelson, Moreira e demais cantores no Wirau haw, a borboleta é um ser da
natureza que possui espírito para os Tembé e, pode se manifestar enquanto caruwara. Entre as
cantorias do dia entoadas na ramada durante a Festa do Moqueado, temos a da
borboleta/panám, uma das mais cantadas e, sua letra remete a uma situação de incorporação
de caruwara.

Panám (Borboleta)
Wiririz he u’àm win ara/ Ele está lá tremendo,
ma’e ru’u a kwez/ Quem é ele,
pànàm apykawer/ No lugar onde a borboleta estava sentada.
(Gestão Ambiental e Territorial da Terra Indígena Alto Rio Guamá/Instituto de
Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade. – Belém: Ideflor-Bio, 2017, p. 113).

O relato do cantor Wilson Tembé traduz melhor o significado simbólico da pintura


corporal da Borboleta na cosmologia Tembé, que por sua vez permeia a memória coletiva
sobre este “inceto” encantado nos seguintes termos:

Tem a música da panám e tem a caruwara da panám, ta me entendendo? Aí no que


agente canta a música dela na Festa do Moqueado vem a caruwara dela, porque
cada música que agente canta tem aquela caruwara que a gente está pedindo
(Wilson Tembé/NononTembé, aldeia Ytaputyr em 26/01/2019).

99
Se de fato procede o que afirma Nelson Tembé, acredito que ele mesmo tenha contribuído diretamente com a
introdução da pintura da Panám/Borboleta nas aldeias do Gurupí, no contexto da retomada das tradições
Tenetehar, uma vez que ao entrevistar Fátima Romão, fui informado que pinturas corporais de outros grupos
étnicos passaram a serem usadas pelos Tembé do Gurupí, após o retorno de índios Tembé, que atuaram na
“pacificação” de outras etnias Tupí, a exemplo dos Kaapor e dos Parakanã.
114

Figura 13 - Pintura corporal Borboleta/Panám

Fonte: Autor, aldeias São Pedro e Sede, 2017 e 2018.

4.3.2 Pintura corporal Jiboia

Esta pintura corporal foi introduzida em algumas aldeias do Guamá, a exemplo da São
Pedro, Jakaré e Pira, por influência do agente da FUNAI, Dílson Marinho, que trabalhou
como chefe do P.I Tembé do Guamá, entre 1991 e 1994, intermediando no esforço de união
entre os Tembé do Guamá e do Gurupí, na retomada das tradições culturais durante a luta pela
proteção do território contra invasores. Por ter atuado junto a grupos Waiãpí no Amapá,
Dilson Marinho influenciou diretamente no uso da pintura corporal da Jiboia nas aldeias
citadas. O agente justificava o uso dessa pintura pelo fato de ela pertencer a uma etnia Tupí,
no entanto, a maioria dos Tembé do Guamá discordava de sua posição e não adotaram essa
pintura em suas aldeias, a exemplo da Sede, Frasqueira e Ytaputyr100.
Entre 2009 e 2011, esta pintura corporal foi bastante usada em passeios, brincadeiras
Caê Caê e eventos escolares nas aldeias São Pedro, Pira e Jakaré, bem como em rituais de
iniciação na aldeia Ytaputyr. A maioria dos Tembé do Guamá sabe que essa pintura não é de
seu povo e, desse modo, mantiveram certo estranhamento quanto ao seu uso. Observei que
não sofreu mudanças em seu padrão formado por triângulos e losângos entre segmentos de
retas paralelas, que de certo modo difere dos padrões das pinturas Tenetehar. Sua elaboração é

100
Os caciques e lideranças destas aldeias tinham o conhecimento que esta pintura não lhes pertencia, que Dilson
Marinho havia imposto seu uso, ao que passaram a orientar seus parentes que não a usassem. É claro que havia
exceção da parte dos indígenas de algumas aldeias (São Pedro, Pira e Jakaré) que continuaram a fazer uso desta
pintura corporal Waiãpí.
115

feita com uma tala de anajá, onde é enrolado um fio de algodão em uma das extremidades,
que umedecido no sumo do jenipapo é aplicado em diversas partes do corpo.
Foi na “brincadeira” da Menina Moça realizada na aldeia Ytaputyr em 2012, sob a
orientação do pajé Chico Rico/Paxik, que esta pintura corporal passou a ter uso proibido nos
rituais de iniciação. A não aceitação do uso desta pintura pelos parentes do Gurupí, que
estavam à frente da renovação das tradições Tenetehar nas aldeias do Guamá, foi decisiva
para que a pintura da Jiboia tenha praticamente desaparecido, ficando seu uso restrito a aldeia
São Pedro, onde foi mais assimilada. O relato do cacique Pedro Teófilo Tembé alude para as
contradições sobre o uso dessa pintura corporal [...] porque tem a pintura da Jiboia e ele, o
Chico Rico disse: - Olha! Esse tipo de pintura não é Tembé. Essa pintura ela vem do Kayapó,
essas outras etnias pra lá [...]. (Pedro Teófilo Tembé, aldeia Ytaputyr em 26/01/2019). Nota-se
que Pedro confunde os Kayapó com os Waiãpí.
Quando participei do Wirau haw na aldeia Sede em 2018, ouvi comentários entre os
organizadores do ritual, a exemplo do cantor Bewãri Tembé, para que não se pintassem com a
pintura da Jiboia. O interessante é que a justificativa apresentada para o não uso desta pintura
se deu não ao fato dela pertencer a outra etnia, mas sim por ser de um animal que não faz
parte da mística do ritual, o que poderia levar a possíveis ações maléficas de caruwaras, e
ainda pela ausência de pajé, que ainda não havia chegado ao ritual. Na realidade, o que vem
ocorrendo é uma interdição ao que não pertence a cultura Tembé, devido a certa preocupação,
quanto ao uso de pinturas corporais de outros povos, que por sua vez interagem com os
Tembé. Situação que envolve ação de caruwara, também justifica esta questão, a exemplo
deste relato oral do cantor Wilson Tembé.

A pintura da Jiboia há um tempo atrás o pessoal gostava muito de utilizar, todos


faziam, mas com a vinda do nosso pajé Chico Rico, ele colocou que a pintura da
Jiboia não é uma pintura Tembé Tenetehar, ela é uma pintura de outra etnia. O
exemplo que a gente já teve aqui, foi quando algumas meninas utilizaram a pintura
de outra etnia do povo Gavião, porque veio umas moças durante a festa lá dos
Gavião, veio pra cá e participou da festa e brincou, mas sem ela saber veio um
espírito de um Gavião acompanhando ela, entendeu? Esse espírito era um pajé muito
forte dos Gavião, veio, viu a brincadeira e gostou, então se deparou com a pintura
Gavião, mas sendo a menina Tembé, então ele se engraçou e quando acabou a festa
ele continuou, ele se incorporou na menina e fez ela tirar a pintura Gavião que
estava no corpo dela na marra, fez tirar. Tivemos que tirar porque ele não aceitou.
Isso é um exemplo muito bom porque cada povo, cada etnia tem a sua cultura, não
devemos usar a pintura de outro povo, temos que usar as nossas pinturas porque
pode prejudicar. Nós somos acostumados a se dá com nossa caruwara, a gente sabe
tirar do corpo da pessoa, já o espírito que veio do Gavião e se incorporou na menina
Tembé, nós não conseguimos tirar. Veio um pajé dos Gavião pra tirar. Através da
pintura nós tivemos um problema muito grande aqui na aldeia Ytaputyr. (Wilson
Tembé/Nonon, aldeia Ytaputyr em 26/01/2019).
116

Figura 14 - Pintura corporal Jiboia

Fonte: Autor, aldeiasYtaputir e São Pedro, 2009 e 2010.

4.3.3 Pintura corporal Rastro da Onça/Zawar Pipor

O uso restrito da pintura corporal Rastro da Onça em aldeias do Guamá, se deu a partir
da vinda da extensa família do pajé Chico Rico, para residir na aldeia Ytaputyr em 2009, no
entanto, passou a ser difundida para as aldeias Tawarí, Zawaruhu e Frasqueira, por suas filhas
Tutui Tembé, Muruka’i Tembé e Tareia Tembé, no ano de 2012. Com a realização de rituais
na aldeia Sede em 2014 e, na aldeia São Pedro em 2018, houve grande aceitação de seu uso
entre as jovens meninas e mulheres adultas, o que me levou a considerá-la de uso feminino.
Pelas informações obtidas com Moreira e Nelson, esta pintura não é considerada dos
mais velhos, mas sim uma invenção dos mais jovens e, sua elaboração é feita por meio do uso
de um pedaço de guarimã em formato cilíndrico, que cortado em forma de cruz em uma das
extremidades e retirado a polpa do centro, de modo que fique oco e realce as quatro pontas de
talas do guarimã, vindo a dar forma icônica ao rastro da onça. Em seguida, é umedecido no
sumo do jenipapo e aplicado em partes do corpo com exceção da face.
Diferente das pinturas corporais da Onça Pintada e da Onça Jaguatirica/Marakaza, a
pintura Rastro da Onça é tida como novidade nas aldeias do Guamá e, de certo modo, se
relaciona a significados inerentes a memória coletiva dos Tembé sobre a onça, enquanto
animal encantado e personagem de destaque em narrativas míticas Tenetehar.
117

Figura 15 - Pintura corporal Rastro da Onça/ZawarPipor

Fonte: NEVES e CARDOSO, 2015.

4.3.4 Pintura corporal Jabuti/Zawxi (pintura multiétnica)

A pintura corporal do Jabuti passou a ser usada por um grupo de jovens na Festa da
Menina Moça, realizada na aldeia Ytaputyr em 2014, sendo ensinada pelas jovens Tutui
Tembé, Tareia Tembé e Muruka’i Tembé. Percebi que o seu uso nos rituais não era de
aprovação dos organizadores e conselheiros, bem diferente da aceitação da pintura Rastro da
Onça. Após conversas com Tutui Tembé e Nonon Tembé fiquei sabendo, que esta pintura
corporal é usada pelos Guajajara e Kaapor, enquanto as informações repassadas por Fátima
Romão, indica o uso desta pintura entre os Kaapor e os Munduruku. De fato, esta pintura
corporal apresenta característica multiétnica, ao ser usada por diferentes etnias Tupí que
habitam as margens e os afluentes do rio Gurupí, no estado do Maranhão, onde há séculos
ocorrem trocas de experiências socioculturais com os Tembé do Gurupí.
Durante o ritual Festa do Moquado nas aldeias Ytaputyr, São Pedro e Sede, entre os
anos de 2017 e 2018, identifiquei o uso da pintura corporal do Jabuti entre jovens meninos e
meninas, que por sua vez é elaborada em forma de dois padrões. O primeiro, que considero
mais tradicional e semelhante aos padrões de outras etnias, apresenta uma combinação de
hexágonos, compostos por segmentos de retas paralelas, que se interpõe em posições verticais
e diagonais dando forma ícone aos desenhos do casco do jabuti. O segundo padrão, é o mais
usado e formado por uma combinação de quatro segmentos de retas paralelas, que se interpõe
em posições verticais e diagonais que dão formas a triângulos e quadriláteros, que se
interpõem entre dois segmentos de retas paralelas verticais. Sua elaboração é feita se
118

utilizando uma tala de anajá, onde em uma de suas extremidades se enrola um fio de algodão,
que mergulhado no sumo do jenipapo é aplicado nos braços, pernas, tórax e costas.
A exemplo do que vem ocorrendo com a pintura corporal da Jiboia, a pintura do Jabuti
passou a ter uso proibido nos rituais de iniciação, onde é possível observar no breve relato
oral do cantor Wilson Tembé, que revela contradições e estranhamentos que permeiam o uso
desta pintura corporal:

Eu não sei de qual povo é a pintura do Jabuti, mas ela não é do povo Tembé. O
pessoal tem o costume de usar essa pintura, mas já foi recomendado que não é pra
gente usar essa pintura, porque não faz bem e podemos ter problema com caruwara
e não dá conta”. (Wilson Tembé/NononTembé. Aldeia Ytaputyr em 26/01/2019).

Figura 16 - Pintura corporal Jabuti/Zawxi (pintura multiétnica)

Fonte: Autor, aldeiasYtaputir, São Pedro e Sede, 2017 e 2018.


119

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conclusão desta pesquisa realizada nas aldeias Itaputyr, São Pedro e Sede, em
coautoria a meus interlocutores Tenetehar Tembé da região do Alto Rio Guamá, requereu
tempo, paciência, insistência e interesse, em compreender os significados simbólicos das
pinturas corporais e suas conexões com as narrativas míticas, enquanto interface da
cosmologia deste grupo étnico Tupí, que ao longo de séculos vem mantendo relações
interétnicas com a sociedade nacional e com outros povos indígenas.
Procurei levar em consideração o processo de transculturação, que no contexto da
atualidade compreende ações objetivadas dos Tembé do Guamá, no empoderamento,
agenciamento e transmissão de saberes tradicionais, enquanto resposta política as investidas
de interesses econômicos dos agentes do capital, se organizando e atuando via associações,
pela autogestão territorial e socioambiental da T.I Alto Rio Guamá 101.
O resultado da pesquisa se mostrou positivo, quanto aos objetivos e a hipótese que
foram propostos, ou seja, de fato foi constatado que as pinturas corporais, nas suas funções de
uso, representam um conjunto diversificado de saberes denominados de ciência do jenipapo,
materializados nos corpos em diferentes padões icônicos, que se referem a caruwaras, inseto,
animais e objetos culturais e, imaterializados em regras, interdições e tabus, que envolvem o
uso do jenipapo no pré-ritual da Tocaia e, nos rituais de iniciação feminina Mingau da Menina
Moça e Festa do Moqueado. A compreensão dos significados simbólicos das pinturas
corporais dos iniciados na cosmologia Tembé, só foi possível mediante colaboração de meus
interlocutores coautores, em minha interpretação e reflexão, sobre as memórias coletivas
presente em narrativas míticas Tenetehar, que fazem referências implicitas aos seus “donos”
caruwaras.
A partir de questões norteadoras que mediaram a interação e o diálogo com meus
interlocutores, a pesquisa me levou a compreender os significados simbólicos das pinturas
corporais na cosmologia Tembé, a exemplo das usadas pelos iniciados nos rituais
(Tocaia/Ywán, Onça Marakaza, Lua/Zahi, Menino e Menina Moça/Ywán), acessados por

101
O Diagnóstico Etnoambiental Participativo e Etnozoneamento da TIAR realizado entre 2012 e 2013, pela
parceria entre o Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (IDELFLOR-Bio)
e pela ONG Equipe de Conservação da Amazônia (ECAM) demonstra as preocupações atuais dos Tembé do
Guamá e Gurupí com o patromônio ambiental, imprescindivel para a realização dos seus rituais.
120

meio da interpretação do enredo das narrativas míticas dos Tenetehar, que por sua vez
constituem fontes históricas sobre a memória coletiva dos Tembé do Guamá.
A reflexão socio-histórica aliada a perspectiva etnográfica e antropológica,
possibilitou a constatação do agenciamento e, do empoderamento das pinturas corporais dos
mais velhos, entre os Tembé do Guamá, em diferentes contextos históricos, dando relevância
ao protagonismo de Verônica Tembé, Nelson Tembé, Chico Rico Tembé, Pedro Teófilo
Tembé, Félix Tembé, dentre outros, ampliando a compreensão do uso obrigatório das pinturas
corporais na “passagem” dos iniciados da infância para a vida adulta, na preparação e
transformação dos seus corpos e, na construção da autoidentidade étnica das novas gerações.
A pesquisa troxe um melhor entendimento sobre o tema, à medida que se propõe a dar
visibilidade as pinturas corporais, enquanto conhecimentos específicos enredados na
cosmologia dos Tembé do Guamá, ainda pouco compreendidos em dissertações acadêmicas
mais recentes102, principalmente as que buscam entendimento sobre as pinturas corporais no
contexto do Wirau haw e, de suas funções na construção da autoidentidade étnica. Desse
modo, esta pesquisa advoga a perspectiva do paradigma emergente que, segundo Santos
(2008), evoca as seguintes proposições:

[...] todo o conhecimento é local e total. Constitui-se em redor de temas, que em


dado momento são adaptados por grupos sociais concretos como projetos de vida
locais. Mesmo sendo local, o conhecimento pós-moderno é também total porque
reconstitui os projetos cognitivos locais [...]”. (SANTOS, 2008, p. 76-77); “[...] todo
o conhecimento é autoconhecimento, na medida em que não se trata tanto de
sobreviver como de saber viver. Para isso é necessária outra forma de conhecimento
compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una pessoalmente ao que
estudamos [...]” (Ibd, 2008, p. 85); “[...] todo conhecimento científico visa a
constituir-se em senso-comum [...]” ; “[...] o senso comum tem uma dimensão
utópica e libertadora que pode ser ampliada através do diálogo com o conhecimento
científico [...]”. (Ibd, 2008, p. 88-89).

O resultado alcançado com esta pesquisa poderá não apenas auxiliar no estudo
acadêmico sobre a cosmologia dos Tenetehar Tembé do Guamá, no que diz respeito ao uso
das pinturas corporais em rituais e, na compreensão dos seus significados simbólicos por meio
da interpretação das narrativas míticas, mas, também, pode levar a desdobramentos teórico-

102
Miranda (2015), em sua pesquisa sobre o ritual Wirau haw, enquanto processo educativo aborda as pinturas
corporais sob a ótica do saber artístico, que, no meu entendimento se mostra distanciada de como os Tembé do
Guamá as apreendem, pois são saberes materiais e imateriais com funções e representações simbólicas de uso no
referido ritual, acionadas e agenciadas na construção da autoidentidade étnica. Por ser uma dádiva entregue pelos
caruwaras aos Tenetehar, as pinturas corporais de rituais também se constituem em representações das relações
que objetivam a preparação do corpo e da espiritualidade individual e coletiva.
121

metodológicos no auxilio a produção de material didático, em forma de livros e cartilhas, os


quais venham a serem utilizados como material pedagógico específico nas escolas das aldeias,
segundo garante a Lei 11. 645/2008, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura
indígena nas escolas de todo o país.
122

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Pará. Belém, 2014.

Relatório da Comissão Especial de Estudos sobre os índios Tembé-Tenetehar da


Reserva Indígena Alto Rio Guamá, 1990.

SALES, Noêmia Pires. Pressão e resistência: Os índios Tembé Tenetehara do Alto Rio
Guamá e a relação com o território, Belém: UNAMA, 1999.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências/Boaventura de Sousa Santos


- 5ª ed - São Paulo: Cortez, 2008.

VIDAL, Lux. Grafismo Indígena: estudos de antropologia estética. São Paulo: Studio
Nobel: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 1992.

WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura: São Paulo: Cosac Naify, (1975) 2012.

WAGLEY, C & GALVÃO, Eduardo, E. Os índios Tenetehara. Uma cultura em transição.


Rio de janeiro, MEC/Serviço de Documentação, 1961.

ZANNONI. Claudio. Conflito e coesão: o dinamismo Tenetehara. Brasilia, DF: Conselho


Indigenista Missionário, 1999.

_________. Mito e Sociedade Tenetehara. UNESP/FCL/PPGSOC, Araraquara –SP, 2002.


Tese (Doutorado).
125

ANEXOS
126

ANEXO 1 – Fotos dos rituais das Crianças, Mingau da Menina Moça e Festa do
Moqueado

Figura 17 - Ritual das Crianças

Fonte: Autor, Aldeia Ytaputir, 2018.

Figura 18 - Mingau da Menina Moça

Fonte: Autor, Aldeia São Pedro, 2019.


127

Figura 19 - Festa do Moqueado - Pajé Nelson Tembé organizando o encerramento do ritual

Fonte: Autor, Aldeia São Pedro, 2018.

Figura 20 - Festa do Moqueado - meninos e meninas Tembé ornamentados no ritual Festa do Moqueado

Fonte: Autor, Aldeia São Pedro, 2019.


128

Figura 21 - Pajé Chico Rico junto de meninas iniciadas e cantores Felix Tembé e Moreira Tembé

Fonte: Autor, AldeiasYtaputir e São Pedro, 2012 e 2019.

Figura 22 - Meninos inicados recebendo pintura facial

Fonte: Autor, AldeiasYtaputir, São Pedro e Sede, 2017 e 2018.

Figura 23 - Maracás: principal intrumento musical usado nos rituais de iniciação

Fonte: Autor, AldeiasYtaputir e Sede, 2017 e 2018.


129

ANEXO 2 – Desenhos de pinturas corporais usadas pelos Tembé do Guamá


Figura 24 - Desenhos das pinturas corporais Onça Pintada, Lua/Zahy e Borboleta/Panàm

Fonte: Cleonice Tembé e Tutui Tembé, 2018.

Figura 25 - Desenhos da pintura corporal Cuia

Fonte: Cassius Luria Pereira, Weraw Tembé e Valber Tembé, 2018 e 2019.

Figura 26 - Desenho da pintura corporal Borboleta/Panàm

Fonte: Cassius Luria Pereira e Weraw Tembé, 2018 e 2019


130

Figura 27 - Desenhos da pintura corporal Tamata

Fonte: Cassius Luria Pereira, Maicon Tembé e IuryTembé, 2018 e 2019

Figura 28 - Desenhos da pintura corporal Jabuti

Fonte: LuciaraTembé, Cassius Luria Pereira e Francisco Tembé, 2018 e 2019


131

ANEXO 3 – Quadro sinótico das pinturas corporais usadas nos rituais de iniciação dos
Tenetehar Tembé do Guamá
132

ANEXO 4 – Parte do mito dos Gêmeos e o karuwara que faz referência as onças

O Mito dos Gêmeos e o Karuwara


(...) Quando novamente a mulher perguntou ao filho de Maíra pelo caminho de seu pai, êle indicou-lhe
o caminho da casa das onças. Lá estava apenas uma velha; ela recebeu a mulher:_ “Donde vens, minha filha.
Meus filhos tornam-se muito maus quando chegam em casa com fome e nada encontram para comer”. Ela
escondeu a mulher em baixo de um grande cesto. Então seus filhos voltaram e perguntaram:_ “O está cheirando
tanto aqui? _ “Nada”! Tiraram então o cesto, mas Mairayra transformou sua mãe em uma corsa que fugiu. As
onças seguiram-na, agarraram-na e dilaceraram-na.
_ “Vê, mãe, ela tem filhos”, disseram. “Então deixai-os para mim, para que possa preparar mojika com
eles”, disse a velha e colocou-os em uma panela com água quente, mas queimou a mão. Quiz cortá-los em
pedaços com uma faca, mas cortou-se no dedo e quando quiz pô-los no fogo, queimou novamente a mão. Então
procurou moer as crianças no pilão, mas machucou-se. Então resolveu conservar os dois e colocou-os debaixo de
uma cesta. Na manhã seguinte lá estavam dois papagaios novos. _ “Que lindos papagaios”, disse a velha, “quero
criá-los”. E deu-lhes de comer.
Na manhã seguinte tinham-se transformados em duas crianças. _ “Vêde, tornaram-se duas crianças”,
disse a velha onça. “Hei de educá-los como meus netos para que me acompanham mais tarde à plantação”.
Assim criou a ambos.
A onças faziam-lhes flechas para a caça aos pássaros. Então as crianças foram coma velha para a plantação, onde
brincaram. Chamaram a velha e cataram-lhe os piolhos e quando ela adormeceu, tiraram-lhe a cabeça e
brincando fizeram-na rolar pelo chão e depois tornaram a coloca-la (...)
Então a velha falou-lhes novamente _ “Não vos afasteis, senão um monstro vos pegará!”. Êles foram
para a margem da floresta e aí encontraram um jacuaçú, que lhes falou _ “Há-ha-há, vós viveis com as onças que
comeram vossa mãe!”. “Sabes o que o jacú me contou?” perguntou Mairayra a seu irmão. _ “Porquê choraste?”
_ “As vespas nos picaram” _ “Meus netos, aqui não há vespas” _ “Há sim, avó!” _ “Não, não há!” _ “Vá até lá e
traga as vespeiras” ordenou Mairayra a seu irmão. Êle lá foi, misturou folhas de maniywa com barro, assoprou e
transformou-as em uma vespeira que levou à velha _ “Aqui estão as vespas!” êle falou atirando-lhe a vespeira à
cabeça e as vespas ferrotoaram o rosto da velha. _ “Era mesmo verdade, meus netos!” gritou a velha onça.
Quando adultos, foram apara a floresta. Fizeram uma cesta para levar farinha de mandioca e disseram às
onças que queriam caçar corça. Junto a um regato eles acamparam. Depois tomaram o warymá. Durante cinco
dias, um fez abanadores para fogo e o outro tipitis, que atiraram num lugar profundo do mar. Lá os abanadores
transformaram-se em piranhas e arraias e os tipitis em cobras d’água, jacarés e poraquês. “Vamos agora
experimentá-los!” falou Mairayra. Mataram cinco porcos do mato e atiraram a carne n’água para que esses
animais aquáticos se acostumassem a comer carne e se tornassem ferozes. Mataram então uma anta e també
atiraram sua carne aos animais aquáticos. Depois Mairayra da seguinte maneira construiu uma pinguela
(“Yruawána”) sobre a água: atirou uma flecha á outra margem, depois uma segunda que entrou no entalhe da
primeira e assim por diante, até que as duas margens ficassem ligadas (“uzapyterú urywa”). Então foram até a
outra margem onde colheram anajás. Voltaram para a casa das onças com os frutos do anajá e carne assada.
Contaram, então, que no outro lado do regato tinham encontrado muitos anajás. _ “Então amanhã lá
iremos, e iremos todos juntos, ninguém deverá ficar em casa!” falaram as onças. _ “Sim iremos!” falou
133

Mairayra. Foram no dia seguinte. _ “Onde estão os anajás?” perguntaram as onças. _ “Primeiramente, queremos
caçar” respondeu Mairayra. Caçaram e atiraram aos animais aquáticos os intestinos das prêsas. _ “Quantos
peixes há aqui? falaram as onças. _ “Amanhã assaremos peixe”. _ “Sim, amanhã obtereis muitos peixes”
respondeu Mairayra. Na manhã seguinte acordou as onças. _ “Acordais, vamos colher anajás, vamos todos!”.
Dirigiram-se para a pinguela e quando todas as onças lá estavam, êle fez conque as àguas crescessem, o regato se
avolumasse e se tornasse em mar. As águas cercaram as onças que caíram da pinguela e foram comidas pelos
animais aquáticos.
Os gêmeos tomaram as armas do chefe das onças e colocaram-nas em um pedaço de taquarí. Quando
chegaram à antiga casas das onças, puzeram o taquarí no fogo. Êle arrebentou e um tição voou longe. Mairayra
colheu o tição e levou-o consigo. (...)
(Nimuendaju, 1951, p. 176-178)
134

ANEXO 5 – Questionário aplicado nas entrevistas de campo a meus interlocutores


Tembé do Guamá, sobre o ressurgimento das pinturas corporais, seus significados e
funções de uso no pré-ritual da Tocaia, e nos rituais Mingau da Menina Moça e Wirau
haw/Festa do Moqueado, bem como sua relação aos sobrenaturais caruwaras. Também
se refere a identificação de narrativas históricas e míticas conhecidas nas aldeias
pesquisadas.

1- Por que os Tembé das aldeias do Alto Rio Guamá (Ytaputyr, Sede e São Pedro)
voltaram a usar as pinturas corporais após mais de três décadas que já “haviam
desaparecido”?
2- Quais lembranças de histórias você tem sobre a atuação da capitoa Verônica Tembé,
na luta pela união dos parentes, na proteção da terra contra invasores e, para a
retomada das práticas culturais Tenetehar na T.I Alto Rio Guamá?
3- Quando e como ocorreu a renovação das “pinturas dos mais velhos” e as “invenções
dos mais jovens” nas aldeias do Guamá?
4- Quais lembranças você tem das contribuições dos pajés Nelson Tembé e Chico Rico
Tembé, para o fortalecimento das tradições culturais Tenetehar nas aldeias do Guamá?
5- O que significa o termo “ciência do jenipapo” usado quando as meninas passam pela
Tocaia, pelo Mingau da Menina Moça e pela Festa do Moqueado?
6- Existe alguma relação entre o uso do jenipapo pelas meninas e meninos na Festa do
Moqueado, e os caruwaras?
7- Quais utensílios vocês usam para a elaboração das pinturas corporais?
8- Como se dá o preparo do sumo do jenipapo?
9- Por que certas pessoas não podem fazer uso do jenipapo no corpo?
10- Qual a sua explicação para o caso de meninas que passam mal quando usam o
jenipapo no corpo, ou em situações em que o jenipapo não “pega” no corpo da menina
moça?
11- Quais pinturas corporais são usadas pelos Tenetehar Guajajara?
12- Quais as pinturas corporais que são consideradas dos mais velho? E quais são
consideras invenções dos mais jovens?
13- Qual a finalidade do uso das pinturas corporais pelos meninos e meninas moças, além
dos parentes convidados na “brincadeira” da Festa da Moça?
14- Qual história de Maíra, Maira Ira e Mucura Ira você conhece ou lembra de ter ouvido
os parentes contarem?
15- Qual história da Lua/Zahi você conhece ou lembra-se de ter ouvido os parentes
contarem?
135

16- Qual história da onça você conhece ou lembra de ter ouvido os parentes contarem?
17- Qual história de animais você conhece ou lembra de ter ouvido os parentes contarem?
18- Qual história de caruwara você conhece ou lembra de ter ouvido os parentes
contarem?
19- O que são os/as caruwaras para os Tenetehar Tembé?
20- Quais histórias você conhece ou lembra de ter ouvido os parentes contarem sobre o/a
caruwara Mãe d’água/Ywán?
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ANEXO 6 – Declaração de autorização

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