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NATAL/RN
2020
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NATAL/ RN
2020
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA
Nº do Protocolo: 23077.104034/2020-36
Natal-RN, 19 de dezembro de 2020.
Aos dezoito dias do mês dezembro de 2020, às 14:30, na Plataforma Virtual Google Meet, realizou-se a sessão
pública para a defesa oral do Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Direito intitulado: "A apatridia e o
direito à nacionalidade: o dever estatal de reconhecer e integrar os apátridas em sociedade", de Maria Clara Bezerra
Fonseca, matrícula nº 20150112574. A Comissão Examinadora, designada pela Portaria-TCC nº 17/2020-DPU, foi
composta pelos professores Fabiano André de Souza Mendonça, matrícula nº 3204015 (DPU/UFRN), Artur Cortez
Bonifácio, matrícula nº 2222637 (DPU/UFRN) e Thiago Oliveira Moreira, matrícula nº 2527208 (DIPRI/UFRN).
Realizada a defesa oral e a arguição, em conformidade com os procedimentos regulares, a Comissão considerou a
monografia APROVADA, atribuindo-lhe a nota 9,0.
Para verificar a autenticidade deste documento entre em https://sipac.ufrn.br/public/documentos/index.jsp informando seu número:
23, ano: 2020, tipo: ATA, data de emissão: 19/12/2020 e o código de verificação: 38bba51e67
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AGRADECIMENTOS
Com a chegada do fim deste ciclo, agradeço a Deus e a todas as pessoas que
estiveram presentes e influenciariam de alguma forma nessa caminhada. Em especial, a
meus pais e meu irmão, pelo apoio e amor incondicional e por me ensinarem diariamente
o valor da vida. A toda minha família, meus avós, meus tios e primos, que estiveram
sempre ao meu lado. Aos meus amigos, que me proporcionaram muita felicidade e
suporte nos momentos difíceis. E aos meus professores, em especial a Fabiano, meu
orientador, por terem iluminado meu caminho com seus ensinamentos.
Dedico esse trabalho a vocês.
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RESUMO
Já dizia Hannah Arendt que não ter raízes significa não ter no mundo um lugar
reconhecido e não pertencer ao mesmo, em suma, ser supérfluo. O apátrida, como ser
supérfluo em essência, encontra-se constantemente propenso ao isolamento e à solidão,
por não estar protegido, em primeiro plano, pelo arcabouço jurídico atribuídos a todos os
nacionais pelo direito à nacionalidade, condição para a fruição de diversos direitos.
Destacando essa ideia, apresenta-se a problemática que orientará nosso trabalho: por que
o Estado deve reconhecer a apatridia e possibilitar a naturalização dos que sofrem com
essa condição? Partindo dessa indagação, inicialmente iremos delimitar os elementos do
Estado-nação e o que constitui a nacionalidade, enquanto conceito eminentemente
jurídico, para podermos justificar o dever do Estado de promover a integração e o
reconhecimento dos heimatlosen, através principalmente da teoria do enfoque das
capacidades. Compreendendo esses pontos, partiremos a um aprofundamento no que
constitui o fenômeno da apátridia e, conjuntamente, compreenderemos o que o direito
internacional e nosso direito interno tem a dizer sobre o assunto. Seguiremos com uma
análise do que causa esse fenômeno e quais são as consequências decorrentes do mesmo
para, enfim, descobrir a resposta para a principal questão desse trabalho. O Estado tem o
dever de promover o reconhecimento da apatridia e possibilitar a naturalização, pois o
direito a nacionalidade é pressuposto para a materialização de direitos e garantias –
levando em consideração o conceito de capacidades – os quais possibilitam os membros
da sociedade se autodeterminarem, estipularem seus fins pessoais para o alcance de uma
vida digna e boa de se viver.
Palavras-chaves: Apatridia. Direito à nacionalidade. Teoria do enfoque das capacidades.
Causas-efeitos da apatridia. Atomização social.
6
ABSTRACT
Hannah Arendt once said that not having roots meant not having in the world a recognized
place and not belonging to it, in short, to be superfluous. The stateless, as a redundant
being in essence, finds itself constantly prone to isolation and loneliness, for is not
protected, in the foreground, by the judicial framework assigned to all nationals by the
right to nationality, condition to the fruition of several rights. Highlighting this idea, the
problematic that will guide our work is presented: why should the State recognize
statelessness and enable the naturalization of those that suffer because of this condition?
Starting from this question, initially we will determine the elements of the state and what
constitutes nationality, as an eminently legal concept, so that we can justify the State duty
to promote integration and the acknowledgment of the heimatlosen, mostly through the
capabilities approach theory. Understanding these points, we will delve deeper into what
constitutes the stateless phenomena and we will comprehend, as well, what the
international legal system and our domestics laws have to say pertaining the subject. We
will follow with an analysis of what causes said phenomena and what are the
consequences of it so that we can, finally, find out the answer to the main point of this
thesis. The State has the duty to promote the recognition of the statelessness phenomena
and enable naturalization, because the right to nationality is a requirement to the
materialization of rights and guarantees – taking into consideration the capabilities
approach – that make possible to the members of society to self-determine themselves,
estipulate their own personal ends so that they can reach a dignified and a good life to
live.
Keywords: Statelessness. Right to a nationality. Capabilities approach theory. Causes-
effects of statelessness. Social atomization.
7
LISTA DE SIGLAS
SUMÁRIO
1.INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 9
8.CONCLUSÃO ........................................................................................................ 49
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 52
9
1. INTRODUÇÃO
1
Compreendido assim pelo grande número de comunidades apátridas pelo mundo. Em destaque, para a
etnia minoritária dos Rohingya, em Myanmar e Bangladesh, cujo número de indivíduos sem nacionalidade
reconhecida chega a 854.704, segundo dados da ACNUR presentes no documento “Global Trends: Forced
Displacement in 2019” – considerando nessa contagem tanto os apátridas refugiados, quanto os somente
apátridas. Além deste, existem pelo mundo diversos grupamentos étnicos apátridas, dentre elas: os Karana
em Madagascar (não há dados exatos acerca da quantidade de apátridas, mas uma estimativa aceita é de
pelo menos 20.000); os Roma na Macedônia (dados oficiais estipulam a existência de 54.000 heimatlosen,
todavia, estimativas não oficiais variam de 110.000 a 260.000); os Pemba (3.500 segundo prognósticos) e
os Makonde (cerca de 4.000) no Quênia. Os dados acercas desses grupos de apátridas estão presentes no
documento da ACNUR “’This is our home’ Stateless minorities and their search for citizenship”.
12
2
Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (1954)
Adotada em 28 de setembro de 1954 pela Conferência de Plenipotenciários convocada pela Resolução 526
A (XVII) do Conselho Econômico e Social (ECOSOC) das Nações Unidas, de 26 de abril de 1954.
3
Documento publicado em 19 de junho de 2019
4
Tabela 2 do anexo ao documento “UNHCR Global Trends 2019”
5
Dados presente no documento “Lives on Hold: the human cost of statelessness” publicado pela Refugees
Intenational em 2005.
13
de pátria e, ao mesmo tempo, acabar de uma vez por todas com esse fenômeno.
Historicamente, o Brasil nunca teve contato com uma grande massa de indivíduos
apátridas - apesar de, historicamente, ser um país eminentemente de imigração – muito
em razão dessa condição estar muitas vezes ligadas à dissolução dos Estados nacionais, à
guerra, à conflitos étnicos-religiosos à expatriação forçada e à política de concessão de
nacionalidade de cada país.
O caso dos brasileirinhos apátridas – questão corrigida e acertada com a Emenda
Constitucional nº 54/2007 – mesmo que muito grave, por deixar desprotegidos crianças
de pais brasileiros nascidos no exterior, negando-lhes o invólucro protetor da
nacionalidade, foi mais um erro de formulação do dispositivo jurídico presente na
Emenda Constitucional nº 3/1994, do que a reprodução da mens legislatoris de tornar
apátridas as referidas.
Por não ter sido palco ou ter participado de muitos conflitos territoriais entre seus
vizinhos, nunca foi defrontado com grande número de massas sem nacionalidade e sem
pátria. Também, em razão de sua história recente como país, assim como sua natureza de
país de imigração – ou seja, por sua população, de forma geral, ter ascendência estrangeira
– nunca foi cenário de disputas étnicas milenares, capazes de ocasionar a geração de
apátridas com a separação e a anexação de territórios recorrentes, como foi o caso em
diversos territórios da Europa.
Talvez em razão disso, inclusive aqui, nunca houve expatriações forçadas em
massa. Nossa história nunca trilhou esses caminhos. O exílio de intelectuais contrários ao
regime da Ditadura Militar que assolou o Brasil entre os anos de 1964 a 1985 foi se não
o único, o mais notável exemplo de expulsão de nacionais das terras brasileiras, todavia,
embora perverso, isso, ainda assim, não se compara a retirada forçada da nacionalidade
das minorias indesejadas – cujo caso mais notório foi o dos nacionais judeus na Alemanha
nazista.
Destarte os problemas mais latentes da sociedade brasileira, discutir a apatridia
não é prescindível e infrutífero. Fato é que a crise de refugiados que vive o mundo traz
consigo um aumento de número de indivíduos sem pátria para chamar de sua. O Brasil,
embora não seja destino principal dessas pessoas, recentemente recebeu um número
considerável de refugiados e imigrantes por razões econômicas. Dentre estes, podem
aparecer indivíduos que se encontram também na situação de apatridia. Isso porque, a
apatridia é uma condição ligada recorrentemente às minorias e refugiados.
14
CONSTITUEM O ESTADO
6
VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Público. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 244.
15
7
Limitada pelo mar territorial (art. 3), pelas águas interiores (art. 8), a zona contígua (art. 33) e a plataforma
continental (art. 76).
8
Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço
Cósmico. Art. II. O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de
apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio.
9
REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p.
106
16
que dos três elementos que ele considera essencial (território, povo, governo), somente o
povo é definitivamente imprescindível.
A capacidade de entrar em relações com os demais Estados, o quatro elemento e
único principalmente relacionado à comunidade extrínseca, por fim, consiste no Estado
estar apto para firmar acordos, convenções, tratados e também com a capacidade de
adentrar e fazer parte de organizações internacionais. De modo sucinto, é a possibilidade
do Estado se relacionar com os demais entes do direito internacional. Geralmente este se
dá com o reconhecimento dos demais Estados soberanos da sua capacidade. Segundo
Acciolly10, este e o terceiro elemento são dois lados da mesma moeda, pois para que os
compromissos e relações internacionais tenham validade é necessário a existência prévia
de um governo soberano, não subordinado a ninguém somente aos interesses da sua
população.
O Estado, portanto, é um ente jurídico de direito internacional, caracterizado pela
existência de uma população determinável, que habita primordialmente um território
determinado, governado por uma administração política soberana dentro desse território,
a qual tem, em razão dessa soberania capacidade de se relacionar em posição de igualdade
com os demais entes do direito internacional.
Embora reconhecidamente esses quatro elementos consistem em pressupostos
essenciais de existência do Estado, alguns estudiosos11 consideram que existe mais um
elemento intrínseco a estrutura do Estado, qual seja, a sua finalidade. A finalidade é
efetivamente o objetivo primordial do Estado. O Estado tem sua justificativa de existência
por ser o meio pelo qual os indivíduos que o habitam se desenvolvem e atingem seus fins
e objetivos próprios e individuais. Sendo assim, sua estrutura deve privilegiar o alcance
do bem comum a todos e deve fomentar um ambiente em que todos possam desenvolver
suas habilidades e a própria personalidade dos mesmos. Deve ser terreno fértil para as
interações humanas, protegendo as pessoas e concedendo os recursos para o pleno
desenvolvimento pessoal.
É incoerente conceber o Estado sem uma finalidade, afinal qual seria a razão de
ser de tamanha estrutura complexa? De fato, ele não é ser consciente e pensante, não é
capaz de sentir emoções e de se realizar enquanto tal pelo desenvolvimento de sua
10
ACCIOLLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento e; CASSELLA, Paulo Borba. Manual de
Direito Internacional Público. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
11
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 13. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2020.
17
personalidade, afinal não tem uma. Em suma, ele não é humano. Somente o homem é fim
em si mesmo, portanto também é impensável que os indivíduos sejam somente peças e
objetos para granjear o benefício banal e trivial da estrutura estatal. O Estado existe em
razão de seus habitantes, portanto mesmo não aparecendo no rol de elementos da
Convenção de Montevidéu de 1933, ele é imprescindível para justificar a existência do
Estado.
Para a compreensão da finalidade, escolheu-se analisar esse conceito através da
ótica da teoria do enfoque das capacidades por duas razões principais. Primeiramente, por
ela possibilitar a compreensão de uma justiça global compartilhada por todos, não se
limitando a unidade básica do Estado-nação, a partir do qual a justiça se materializa
somente dentro de suas fronteiras, não abrangendo, em um primeiro momento, Estados e
indivíduos fora dessa delimitação. Sendo assim, a referida teoria permite abranger a
justiça, a igualdade e o ideal de bem-estar também para aqueles que, pelo menos
formalmente, não fazem parte do Estado, como é o caso dos apátridas.
Em segundo lugar, porque o enfoque das capacidades põe em destaque a dignidade
do ser humano para justificar a adoção dos conceitos de capacidade e funcionamento,
evidenciando, consequentemente, o papel central do bem-estar do indivíduo em sociedade
para a justiça e para o direito. Relaciona-se, portanto, intimamente com a finalidade
precípua estatal e, por essa razão, será usada para fundamentar a ideia do dever estatal de
promover o bem-estar também dos apátridas. No tópico que segue, examinar-se-á com
mais detalhes a mencionada teoria.
SEN13
12
NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da Justiça: deficiência, nacionalidade e pertencimento à espécie.
1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020.
13
SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. 1. ed. 8ª reimpressão. São Paulo: Companhia de
Bolso, 2020.
18
14
“Ninguém conhece sua situação na sociedade nem os seus dotes naturais, e portanto ninguém tem
possibilidade de formular princípios sob medida para favorecer a si próprio” (RAWLS, p. 150).
19
15
Malgrado não extirpasse completamente a presença destes, visto ainda ser possível a inserção das
concepções de bem de cada um na feitura do contrato.
16
Na edição brasileira do livro “Fronteiras da Justiça”, a tradutora Susana de Castro menciona que o termo
“capacidade” pode erroneamente indicar que se trataria tão somente do potencial individual prévio para à
expansão de determinadas habilidades, quando a capacidade, na concepção dessa teoria, implicaria também
na realização de políticas públicas adequadas para fazer florescer estas.
20
17
São elas: o direito à vida (a viver bem, não morrer prematuramente), à saúde física (a ter uma boa saúde),
à integridade física (não ser vítima de violência e agressões), à sentir, imaginar e pensar (características
ligadas à condição humana), à sentir emoções (não ter o desenvolvimento emocional prejudicado), à razão
prática (de poder formular seus próprios fins conscientemente), à afiliação (poder viver e conviver com
outros formando relações sociais saudáveis), a outras espécies (interagir, com respeito, com os outros seres
vivos e a natureza), ao lazer (poder se diverter e se entreter com sigo e com o mundo ao seu redor) e ao
controle sobre o próprio ambiente (poder participar do campo politico e poder ter propriedade).
18
“(…) reflete as várias coisas que uma pessoa pode considerar valioso fazer ou ter.”. (SEN, p. 104). Sendo
assim, as capabilities correspondem ao conjunto variável de funcionamentos de execução factível para
determinada pessoa. Os funcionamentos equivaleriam, então, ao que o indivíduo efetivamente realiza,
enquanto que as capacidades refletiriam a liberdade de efetivar as combinações variáveis de cada pessoa.
21
INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS
Artigo 1. Cabe a cada Estado determinar por sua legislação quais são os seus
nacionais. Esse legislação será aceita por todos os outros Estados desde que esteja de
acôrdo com as convenções internacionais, o costume internacional e os principios de
direito geralmente reconhecidos em materia de nacionalidade.
Artigo 2. Toda questão relativa ao ponto de caber se um individuo possue a
nacionalidade de um Estado será resolvida de acôrdo com a legislação desse Estado.
temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social
ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade (...), ou que, se
não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual
em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não
quer voltar a ele
Há, portanto, uma proteção aquele apátrida que cumula também à condição de
refugiado em razão da perseguição que sofre. Observa-se que do momento da criação da
Convenção referente aos apátridas se presumia que os indivíduos sem uma nacionalidade
efetiva, funcional, ou seja, os apátridas de facto, identificavam-se completamente com os
refugiados, sendo incluídos no âmbito de proteção da Convenção de 1951. Isso porque
fugindo de seu país em razão da perseguição cuja justificação se encontra na ausência de
uma nacionalidade efetiva, este indivíduo era ao mesmo tempo refugiado e apátrida de
facto. Todavia, a análise das definições destes dois fenômenos nos permite abstrair que
para ser apátrida, não necessariamente o indivíduo deve sofrer “fundado receio de
perseguição”, elemento crucial ao reconhecimento do refugiado.
Assim sendo, o indivíduo pode aglutinar essas duas condições ou não. Pode ser
somente refugiado, ou somente apátrida de jure, ou apátrida de facto. A Convenção de
26
19
Vide p. 21 do Manual para parlamentares nº 11 – 2005.
27
PRÉ-LEI 13.445/2017
20
Limita a entrada, no território nacional, de passageiros estrangeiros de terceira classe, dispõe sobre a
localização e amparo de trabalhadores nacionais, e dá outras providências. Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19482-12-dezembro-1930-503018-
republicacao-82423-pe.html>
28
21
Revigora os arts. 1º e 2º do decreto n.º 19.482, de 12 de dezembro de 1930, e dá outras providências.
Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-20917-7-janeiro-1932-
508996-publicacaooriginal-1-pe.html>
22
Limita, até resolução em contrário, a entrada, no territorio nacional, de passageiros estrangeiros de
3º classe, e dá outras providencias. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-
1939/decreto-22453-10-fevereiro-1933-509547-publicacaooriginal-1-pe.html>
23
§ 6º - A entrada de imigrantes no território nacional sofrerá as restrições necessárias à garantia da
integração étnica e capacidade física e civil do imigrante, não podendo, porém, a corrente imigratória de
cada país exceder, anualmente, o limite de dois por cento sobre o número total dos respectivos
nacionais fixados no Brasil durante os últimos cinqüenta anos.
24
Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6815.htm>. Acesso em: 10/05/2020.
25
Art. 65. É passível de expulsão o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança
nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou
cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais.
Art. 106. É vedado ao estrangeiro:
I - ser proprietário, armador ou comandante de navio nacional, inclusive nos serviços de navegação
fluvial e lacustre; II - ser proprietário de empresa jornalística de qualquer espécie, e de empresas de
televisão e de radiodifusão, sócio ou acionista de sociedade proprietária dessas empresas; III - ser
responsável, orientador intelectual ou administrativo das empresas mencionadas no item anterior; (...)
VII - participar da administração ou representação de sindicato ou associação profissional, bem como
de entidade fiscalizadora do exercício de profissão regulamentada; (...) e X - prestar assistência religiosa às
Forças Armadas e auxiliares, e também aos estabelecimentos de internação coletiva.
Art. 107. O estrangeiro admitido no território nacional não pode exercer atividade de natureza
política, nem se imiscuir, direta ou indiretamente, nos negócios públicos do Brasil, sendo-lhe especialmente
vedado: I - organizar, criar ou manter sociedade ou quaisquer entidades de caráter político, ainda que
tenham por fim apenas a propaganda ou a difusão, exclusivamente entre compatriotas, de idéias, programas
ou normas de ação de partidos políticos do país de origem; (...)
29
Art. 110. O Ministro da Justiça poderá, sempre que considerar conveniente aos interesses nacionais,
impedir a realização, por estrangeiros, de conferências, congressos e exibições artísticas ou
folclóricas.
30
26
A qual dispõe sobre o “procedimento de reconhecimento da condição de apátrida e da naturalização
facilitada dela decorrente”.
31
o será “a pessoa que não seja considerada nacional por qualquer Estado, segundo a sua
própria legislação, nos termos da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (...)”, está,
evidentemente, ecoando os dizeres da referida Convenção, enquadrando, assim, nessa
definição todo aquele que é apátrida de jure, excluindo, pelo menos em uma primeira
leitura os de facto.
Como o autor põe, a lei “não (...) opera uma distinção entre apátrida que cumula
a condição de refugiado e aquele que simplesmente não adquiriu ou perdeu a sua
nacionalidade por uma incongruência jurídica na aplicação das leis de nacionalidade dos
Estados.”. Porém, isso não significa que aos apátridas de facto não se aplicaria a lei de
migração – já que isso seria uma verdadeira incongruência jurídica – o que se destaca, na
verdade, é que a legislação, nesse ponto, padece de clareza. Faz-se necessário fazer uma
leitura conjugada dessa legislação com os decretos 50.215/61, 4246/2002 – que inserem
dentro do ordenamento jurídico brasileiro as Convenções sobre o Estatuto dos Refugiados
e a sobre o Estatuto dos Apátridas, respectivamente – e a lei 9.474/97, que reitera os
dizeres daquela.
É dizer que é preciso observar todo o sistema jurídico, nacional e internacional,
de proteção aos refugiados e apátridas para, enfim, conseguir interpretar corretamente as
disposições referentes a esses indivíduos, de modo a possibilitá-los a vivência de uma
experiência digna.
Superando esse ponto, podemos nos ater agora as mudanças efetivas trazidas por
este diploma legal. A nova lei de migração trouxe duas inovações importantes para o
tratamento da apátridia no país, a primeira consiste no visto temporário referente aos
enquadrados na situação da acolhida humanitária - importante forma de proteção
complementar por abarcar também os apátridas que sofrem das aflições referidas. Este já
havia sido usado – antes da referida lei – para acolher os imigrantes haitianos, por
exemplo, escapando das consequências causadas pelo terremoto que assolou o Haiti em
2010. Conforme expõe o art. 14, § 3º da referida lei
Nesse sentido, se busca proteger de forma mais incisiva aqueles que, embora não
se enquadrem na posição de refugiado, tenha seus direitos ameaçados pela situação
calamitosa em que se encontra seu país de origem. Aí se justifica, verbi gratia, a
concessão do visto humanitário aos haitianos27, devido ao furacão que assolou o país, aos
venezuelanos28, em razão da crise política que vive o país, e aos sírios 29, tendo em vista
o conflito armado na República Árabe Síria.
O decreto nº 9.199/2017 regulamentou a lei de migração, e especificamente com
relação ao visto temporário humanitário estabeleceu que ato conjunto dos Ministérios da
Justiça, das Relações Exteriores e do Trabalho “definirá as condições, os prazos e os
requisitos para a emissão do visto (...) para os nacionais ou os residentes de países ou
regiões nele especificados”. Tem-se, portanto, que para cada região ou Estado de
proveniência dos migrantes haverá um regramento específico estabelecido pelo governo.
Embora não trate diretamente da situação da apatridia, aqueles que se
enquadrarem nessa condição conjugada com as tribulações descritas acima poderão
receber o visto humanitário. Isto quer dizer que o apátrida que sofra em seu país de origem
uma grave violação de direitos humanos, por exemplo, poderá ser acolhido inicialmente
através do visto humanitário, apesar deste não substituir a proteção especial referente a
condição da ausência de pátria. Assim sendo, há uma ampliação na rede de proteção do
apátrida estabelecendo a possibilidade que este seja acolhido no país, prima facie, através
do visto humanitário, se concedido.
A segunda consiste em uma seção exclusiva dedicada propriamente à proteção do
apátrida e à redução da apatridia – a qual estabelece a necessidade de regulamento para o
instituto protetivo especial do apátrida e para o processo de naturalização facilitado. Antes
27
Com a Portaria Interministerial nº 10 de abril de 2018 que dispõe sobre “a concessão do visto temporário
e da autorização de residência para fins de acolhida humanitária” especificamente para aqueles provenientes
da República do Haiti, inclusive para os apátridas residentes no país.”. Disponível em: <
http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/9580007/do1-2018-04-09-
portaria-interministerial-n-10-de-6-de-abril-de-2018-9580003>. Acesso em 19/05/2020.
28
Infelizmente, ainda não há Portaria específica que trate da concessão de visto humanitário para
venezuelanos que escaparam da crise humanitária generalizada que atinge o referido país. O pedido de
refúgio continua a ser o caminho para a regularização de sua condição para milhares de venezuelanos,
todavia, foi publicada em março de 2018 uma Portaria Interministerial nº9 que regulamente a autorização
de residência para os imigrantes fronteiriços cujos países não puseram em vigor o Acordo de Residência
para Nacionais dos Estados Partes do MERCOSUL (incluindo dessa forma, a Guiana, o Suriname e a
Venezuela). Disponível em: <https://www.migramundo.com/nova-portaria-permite-residencia-
temporaria-de-venezuelanos-no-brasil/>. Acesso em: 20/05/2020.
29
No ano de 2019, já após a promulgação da lei da migração, o governo publicou a Portaria Interministerial
nº 9, que trata especificamente da concessão e do procedimento a ser adotado do visto temporário e da
autorização de residência, com fins de acolhida humanitária para os afetados pela Guerra Civil na Síria.
Disponível em: <http://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-interministerial-n-9-de-8-de-outubro-de-2019-
220791848>. Acesso em 19/05/2020.
33
30
Vide p. 28 do documento formulado pela ACNUR “Nacionalidade e Apatridia: Manual para
parlamentares”, nº 11, 2005.
31
Criado pela Lei 9.474/1997.
34
32
MAZZUOLI, Valério de Oliveira; FIORENZA, Fábio Henrique Rodrigues de Morais. O
desaparecimento de micro-estados insulares pela elevação do nível do mar e as consequências para o direito
internacional contemporâneo. Revista do direito de língua portuguesa, n. 2, p. 275-300, jul./dez. 2013.
39
judeus que em primeiro momento tiveram sua nacionalidade retirada (por meio das leis
raciais de Nuremberg) e eram posteriormente expulsos da Alemanha nazista, antes
propriamente da implementação dos campos de concentração.
De um modo geral, a comunidade internacional impõe com força o dever de
respeito a diversidade e a incompatibilidade da discriminação para com os princípios do
direito internacional. Assim estabelece o artigo 9º da Convenção que dá nome a esse
capítulo, que determina que os Estados contratantes não podem privar ninguém de sua
nacionalidade por razões “raciais, étnicos, religiosos ou políticos”, isto é, por motivos
discriminatórios.
Embora os direitos axiomáticos internacionais, pilares fundantes dos direitos
fundamentais internacionais, digam que todos os seres humanos são iguais em direitos e
obrigações, o fato é que os atores que conseguem proporcionar essa igualdade, são os
Estados soberanos para com seus concidadãos. E, concedendo a prerrogativa de conceder
sua nacionalidade a estes – ainda que existam entendimentos e direcionamentos
internacionais que limitem o arbítrio desses Estados nessa questão – a realidade que se
apresenta é que existirão indivíduos que não se encaixam nos parâmetros estabelecidos
para receberem a nacionalidade do país com qual se vinculam mais fortemente.
A própria Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia só pode ajudar até
certo ponto, embora seja essencial que mais países a ratifiquem33. Da análise dos seus
dispositivos nós conseguimos inferir que se foca primordialmente no impedimento da
apatridia no momento do nascimento. Destaca-se a proteção da criança sem proteção
estatal, mas não mergulha na questão dos apátridas já existentes, ou seja, não estabelece
um procedimento ou algo que indique a concessão da nacionalidade retroativa.
Também continua a ter nos Estados e em suas legislações a função essencial do
reconhecimento da nacionalidade ou da retirada desta – ainda que estabeleça uma
limitação para esse ato – de modo que o problema da apatridia não poderá e não será
resolvida até que todos os Estados, mesmos os que não ratificaram tanto esta quanto as
duas convenções que tratam deste, atuem proativamente e estabeleçam que a apatridia
não será mais tolerada. Tudo depende da volatilidade da vontade dos Estados, no fim das
contas. E isto se torna mais perigoso quando se considera as consequências danosos que
33
Até a feitura desse trabalho, 80 países ratificaram a referida convenção. Dados obtidos do site United
Nations Treaty Collection em:
<https://treaties.un.org/pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=V-4&chapter=5>. Acesso em:
06/10/2020.
40
a apatridia pode causar no indivíduo que sofre da referida condição. Acerca desses efeitos,
o tópico que segue apresentará alguns deles, de maior destaque, a título de demonstrar a
nocividade decorrente da ausência de pátria reconhecida.
34
Documento da UNHCR “’This is our home’ Stateless minorities and their search for citizenship” –
Campanha IBelong
42
tributos e perdem o potencial econômico trazido por esses indivíduos, que, trabalhando
em empregos informais – devido à falta de documentação – possuem perspectivas de
crescimento econômico severamente limitadas e acabam por não poder contribuir para o
desenvolvimento social e econômico do país. Esse ciclo da pobreza, embora não seja
evidente para muitos, não é cancerígeno tão somente para os pobres coitados sem
assistência de seus países, mas afetam sobremaneira a sociedade em que vivem.
Em razão desse problema, é importante destacar o impacto que acarreta à saúde
mental e ao bem-estar social dos apátridas. Como são sujeitos a falta de nacionalidade,
sua identidade enquanto ser humano também é severamente afetada, assim como o seu
senso de pertencimento a uma comunidade. Isso se exponencia quando eles têm que
deixar suas casas para continuar suas vidas em outro lugar, deixando não só uma
propriedade e seus bens materiais, mas um tecido social onde nasceram e criaram para si
“um lugar peculiar no mundo” (ARENDT, p. 399), local muitas vezes ligados a sua
cultura e crença, no qual deixavam sua marca inevitável de existência.
A perda da comunidade equivale concretamente à perda do seu vínculo com a
humanidade, à perda de sua qualidade essencial de homem, sua dignidade, porque o
homem contemporâneo, se emancipando da natureza e da história, só tem sua essência
reconhecida quando faz parte e contribui no desenvolvimento de uma coletividade
comum. Inumeráveis são as consequências psicológicas que essa situação pode trazer ao
ser humano, ainda mais quando se soma também a falta de condições materiais.
Sentimentos de angústia, culpa intensa, sintomas de insônia e até mesmo
pensamentos suicidas são observados, muitas vezes, em casos de imigrantes que chegam
no Brasil35 saindo de situações de guerras, fome, pobreza e descaso estatal. Ainda que não
correspondam necessariamente a situação de apátridas, a observância desses casos se faz
de importância ímpar, pois os sem-pátria também se encontram em situações originárias
limítrofes de muito sofrimento e dor, e, muitas vezes, são levados a sair de seus países de
origem visando uma vida melhor para si e para sua família.
Deixar a margem esse grupo é correr o risco de ter, dentro de sua comunidade,
indivíduos potencialmente “desleais com o governo que lhes fora imposto” (ARENDT,
p. 375), porque estes se tornaram supérfluos. Já que este não os representa, é a imagem
materializada de uma sociedade que não se importa com eles, porque, então, eles se
35
ROSA, Miriam Debieux. Migrantes, imigrantes e refugiados: a clínica do traumático. Revista de cultura
e extensão USP, v. 7, p. 67-76. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/issn.2316-9060.v7i0p67-76>.
Acesso em: 10 mai. 2020.
43
importariam com o governo ou a sociedade? Para contornar esse problema, o Estado, casa
do apatride, deve buscar conceder sua nacionalidade, mas não imprimir forçosamente seu
modo de viver – a cultura propriamente dita – a este. Não deve, de mesma maneira,
oprimir as manifestações e expressões culturais desse grupo, visto a já falada identificação
entre os estes e as minorias. A imposição de um pensamento sobre o outro só serve para
fazer ebulir dentro dos corações dos oprimidos ódio e resignação.
Ademais, um país que não cuida dos que fazem parte dele perde seu sentido, sua
razão. Muitos doutrinadores consideram a finalidade um dos elementos essenciais para a
criação de um Estado, ou seja, o mesmo se justifica quando promove para seus
concidadãos o bem-estar social de todos. Quando isso não acontece, quando o Contrato
Social é quebrado, aqueles cuja ação do Estado prejudicou tem a prerrogativa de se
insurgir contra o sistema discriminatório, contra a própria estrutural estatal. Hannah
Arendt expos isso sabiamente
(...)o Estado-nação não pode existir quando o princípio da igualdade perante a lei é
quebrado. Sem essa igualdade legal (...) a nação se dissolve numa massa anárquica de
indivíduos super e subprivilegiados. As leis que não são iguais para todos
transformam-se em direitos e privilégios, o que contradiz a própria natureza do
Estado-nação. (ARENDT, p. 395)
possui direitos e deveres associados a essa situação – enquanto que o segundo delimita
quem se encaixa nos moldes de cidadão – aqueles que terão suas vozes ouvidas nos
debates políticos e que participarão com mais afinco no seio das instituições
democráticas. Embora possam ser coincidentes, nem sempre se identificam, como no caso
dos menores de 16 anos especificamente quanto a capacidade de votar.
Como este não é o escopo do trabalho, terminamos aí a elucidação dessa
diferenciação. O importante a se destacar é que além de não ser um nacional de nenhum
país, o apátrida também não é cidadão. E isso é importante porque é através da
participação nos rumos políticos de um Estado, que o indivíduo fortalece seu vínculo com
a sociedade em que faz parte. A capacidade de votar, portanto, é uma mudança sentida
fortemente e celebrada, por aqueles que conquistam sua nacionalidade. No livro
“Statelessness and the Benefits of Citizenship: a comparative study”, são apresentados
depoimentos casos de indivíduos previamente apátridas que adquiriram uma
nacionalidade. Um dos pontos em comum que são reconhecidos é justamente o voto,
reconhecido para grande parte desses indivíduos como sua “mais importante contribuição
cívica” (SING’OEI, p. 43).
Permite tornar indivíduos invisíveis em participantes ativos do desenvolvimento
político de um país. Somente esse reconhecimento – se nada mais – já é um grande passo
na melhoria do bem-estar de vida dessas pessoas. Em um sistema democrático, o voto é
a forma com que os cidadãos – da maneira mais direta possível – escolhe quem os
representará e cuidará de seus interesses, efetivamente dando voz aos indivíduos.
A obtenção de um status legal nacional e internacionalmente reconhecido permite
que eles participem – para além do direito ao voto – com mais afinco no campo político
e social do ativismo por meio da luta pelo fortalecimento da justiça social e dos direitos
humanos em diversas causas, como a dos asilados, apátridas, refugiados e das minorias,
implicando que a concessão da nacionalidade traz efeitos extremamente positivos ao
desenvolvimento e a democratização – destacando-se o aspecto social – da sociedade de
maneira geral.
E essa participação não se justifica tão somente sobre o aspecto da possibilidade
trazida por essa nova condição legal. É dizer que eles se engajaram não somente porque
agora podiam, mas, principalmente, porque protegidos finalmente da arbitrariedade do
sistema estatal manifestado pela possibilidade/ameaça constante de detenção ou
deportação ou de outra forma de violência, podiam externar sua vontade própria de ajudar
e de auxiliar outros que também viviam em condições precárias de vida. O
46
reconhecimento deles como humanos lhes deu a coragem de “botar a cara a tapa”, de estar
nas linhas de frente de campanhas sociais.
Sua atuação é a manifestação de um desejo reprimido, que somente floresceu
quando deixaram de ser invisíveis e se tornaram de carne, osso e papel. Quando passa a
ser visto, não quer somente existir, mas quer contribuir, quer ser lembrado, da única
maneira que é eterna, na lembrança e no coração das pessoas que foram tocadas por suas
ações.
coisas, quando perde a aptidão de contribuir de alguma forma com o mundo em que vive.
A partir desse momento, o homem passa a não ter raízes com sua comunidade e fica
suscetível, por exemplo, ao domínio totalitário, à dominação do seu corpo e mente por
ideologias radicais e autofágicas.
Embora efetivamente o isolamento seja fenômeno eminentemente político, a
solidão – enquanto fenômeno social de superfluidade, de não pertencimento – tem um
viés político, no que tange a poder tanto promover um ambiente mais plural que permita
a todos os indivíduos criar raízes e ligações uns com os outros e com a própria sociedade
em que vivem, quanto a pender para lado dos sistemas de terror totalitário e incentivar
desarraigamento, o isolamento e a solidão dos indivíduos a efetiva coisificação, já que o
homem só é humano pelas relações sociais que desenvolve e constrói. O homem consegue
se realizar sozinho, ou seja, sem ninguém imediatamente ao seu redor, todavia, ele só
passa a se identificar e ele só confirma sua existência quando está em contato com seus
iguais.
O reconhecimento da apatridia é um passo para a diminuição dessa sensação de
vazio, através da concessão de alguns direitos e garantias. Todavia, para além do
reconhecimento de indivíduo com direitos inerentes a essa condição, faz-se necessário
prover a possibilidade de o indivíduo adquirir sua nacionalidade originária ou se
naturalizar pelo país que o acolheu, para que ele possa usufruir de todos os direitos e
deveres disponibilizados aos nacionais. E mais ainda, esses direitos, enquanto também
são capacidades, devem ser materializáveis, o Estado deve promover as condições para
que os mesmos sejam desfrutados em sua integridade.
Sabe-se que somente a certificação da existência desse fenômeno anômalo (existir
sem pátria) não é o bastante para a materialização do homem enquanto ser político,
intervindo e se envolvendo nas discussões políticas essenciais para a determinação do
bem-comum compartilhado; nem para tornar concreto o homem enquanto ser social,
membro de uma comunidade, na qual efetivamente contribuí através de suas ações e
aquilo que obtém e proporciona a este corpo social por meio do trabalho.
Esse problema existe para além dos heimatlosen. Todavia, também é verdade que
a nacionalidade, enquanto “direito a ter direitos”, é pressuposto para a existência de
diversas das capacidades – considerando o mínimo de garantias sociais – necessárias para
a concretização de uma vida digna, assim como também é pressuposto para o
funcionamento – a materialização das capacidades que é por si só opcional em respeito à
pluralidade de ideias – das referidas capacidades. É dizer a nacionalidade e a consequente
49
possibilidade de se tornar nacional é de extrema valia para o alcance de uma vida digna e
boa de ser vivida. Uma vida que não seja reprimida pela falta de direitos.
Para além tão somente dos direitos e capacidades, o mero reconhecimento de
alguém como pertencente a uma comunidade fomenta a criação de raízes com esse
mundo, evitando que o indivíduo vire um átomo separado e distinto de todos os outros,
tanto pelo isolamento quanto pela solidão. Um dos principais, se não maior, ganhos da
concessão da nacionalidade é a retomada da esperança por uma vida melhor e de um
mundo melhor para si e para aqueles que valoriza.
8. CONCLUSÃO
sociedade, podem vir a ser seduzidas por ideologias tão nocivas quanto aquelas que nós
observamos nos regimes totalitaristas.
Porém, mesmo se inexistissem sequelas na estrutura do Estado, ainda assim este
teria o dever, associados a sua própria finalidade, de reconhecer, aos indivíduos que vivem
dentro de suas dimensões territoriais, mais que simples direitos, as efetivas capacidades
de tornar factível aquilo que consideram racionalmente necessários para a consecução de
seus fins. Esse reconhecimento é o primeiro passo para conceder a esses indivíduos a
liberdade real de se realizarem como seres humanos sociais.
O panorama atual da situação dos apátridas no mundo é nebuloso. Dados oficiais
referentes ao número de pessoas apátridas é escasso, mesmo porque poucos são os
Estados que deliberativamente escolheriam divulgar dados sobre uma situação cuja
importância gera diversas ações da comunidade internacional para combate-la. De fato, a
transparência estatal é um dever que muitos poucos países cumprem em sua plenitude.
Os heimatlosen ficam, assim, cada vez mais relegados ao esquecimento.
O Brasil, enquanto nação soberana, acertadamente nunca gerou situações de
destituição da nacionalidade ou de não-concessão da nacionalidade aqueles que nascem
no seu território, salvo o caso dos brasileirinhos apátridas, mais gerado por uma
incorreção e descuido legislativo do que por uma vontade deliberada de exclusão. Sua
legislação, contando com a nova lei de migração, é moderna e conforme as diretrizes
internacionais, estabelecidas por diversas convenções, de respeito à dignidade humana.
A principal injustiça sofrida pelos apátridas – conforme sabiamente põe Matthew
Gibney36 –não é que nenhum país quer conceder-lhes a nacionalidade, mas que o Estado
em que residem e onde construíram suas vidas escolhem não o fazer. De fato, o apátrida
não vive fora de qualquer que seja o Estado, ele já nasce dentro de um, que, por diversos
motivos, decide não lhe conceder o status de cidadão. É principalmente sobre esses
países, embora não se olvide o importante papel dos Estados receptores de apátridas
provenientes de outras localidades, que a pressão internacional deve atuar, principalmente
para que a esses indivíduos não só seja reconhecida a nacionalidade efetiva, do país em
que se vinculam mais fortemente, mas também que esses Estados concedam as condições
e os direitos necessários para que possam se autodeterminar e viver uma vida boa,
afastando também a situação dos apátridas de facto.
36
GIBNEY. Matthew J. Statelesseness and the Right to Citizenship
51
E esses direitos, visando promover a justiça social, fim precípuo do Estado, devem
também considerar, como medida avaliativa das ações e iniciativas das políticas públicas,
a teoria dos enfoques das capacidades, pois esta permite analisar o desenvolvimento e o
bem estar social não somente pela renda real e pela cesta de “bens primários” concedidos
a cada cidadão, mas, da mesma forma, levando em consideração as especificidades
particulares da vida de cada um, especificidades estas que geram a necessidade de um
maior acesso a determinado bem para a estabilização das condições dos referidos.
É por meio da análise das capacidades, determinando um nível mínimo necessário
a cada capacidade, mas nunca um máximo – pois determinados indivíduos precisarão de
determinada quantidade de determinada capacidade para que se possa considerar que a
condição dos mesmos é justa e permite que levem uma vida digna – que consideramos a
imprescindibilidade do reconhecimento da apatridia e da possibilidade de naturalização
como meios para o crescimento e o desenvolvimento pessoal de indivíduos que, por causa
de uma condição não relacionada a algo que fizeram, mas a algo que são, tiveram por
tanto tempo sua perspectiva de formulação dos seus fins pessoais denegada.
A nacionalidade, ao passo que é a materialização do direito a ter direitos, é
requisito essencial para que possam começar efetivamente a vida como humanos,
considerando a necessidade de se inserir definitivamente dentro de um agrupamento
social. A partir do momento em que são reconhecidos como membros atuantes da
sociedade - através do seu reconhecimento enquanto cidadãos - são como borboletas
saindo do casulo. Ocorre uma verdadeira transformação, uma metamorfose. A partir desse
momento são capazes finalmente de alçar voos cada vez mais altos.
52
REFERÊNCIAS
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Martin Claret, 2006
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2019