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Constelação das Artes:

Musicalidades indígenas no Brasil

ABERTURA DO CURSO
Constelação das Artes:
Musicalidades
indígenas no Brasil

ABERTURA DO CURSO

AULA 1
POVOS INDÍGENAS NO BRASIL:
DIVERSIDADE CULTURAL,
EQUÍVOCOS E (R)EXISTÊNCIA

AULA 2
O ENTRELAÇAMENTO DA
MÚSICA COM OS SABERES
INDÍGENAS

AULA 3
INSTRUMENTOS SONOROS
INDÍGENAS E SUAS RELAÇÕES
COM OUTROS SABERES
Constelação das Artes:
Musicalidades indígenas no Brasil

ABERTURA DO CURSO
Eixo I: Sociodiversidade e
sonoridades indígenas
APRESENTAÇÃO
Olá, bem-vindo e bem-vinda ao curso Musicalidades indígenas no Brasil! Aqui, apresentaremos um
panorama de noções e referências para familiarizar seus estudantes com a presença das musicalidades
dos povos originários na contemporaneidade a partir da perspectiva de diversos intelectuais indígenas e
não indígenas, em uma transversalidade de conceitos indígenas, antropológicos e musicológicos em três
grandes eixos:

• Eixo 1 – Sociodiversidade e sonoridades indígenas.


• Eixo 2 – Cosmopercepções e musicalidades indígenas.
• Eixo 3 – Musicalidades indígenas em trânsito.
No primeiro eixo, com o tema Sociodiversidade e sonoridades indígenas, examinaremos o imaginário
construído acerca dos povos indígenas no Brasil, desmistificando-o e destruindo estereótipos.

Também apresentaremos a diversidade de expressões culturais dos povos originários com o objetivo de
compreender as musicalidades como parte das cosmovisões indígenas. Com isso, vamos compreender que
os fazeres musicais indígenas não podem ser pensados isoladamente de outras práticas.

Apresentaremos, ainda, um panorama da diversidade dos povos indígenas no Brasil do século XXI e
da diversidade de instrumentos musicais, concepções de musicalidade e a riqueza das diferenças e
semelhanças entre os povos.

Lideranças indígenas durante a Assembleia Nacional Constituinte, 1988. (Registro fotográfico Beto Ricardo/ISA)

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ABERTURA DO CURSO
Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
No segundo eixo do curso, com o tema Cosmopercepções e musicalidades indígenas, apresentaremos
parte da grande diversidade sonoro-estética de cada complexo cultural com seus representantes.

Também vamos reconhecer a preponderância do papel dos instrumentos de sopro dentre as musicalidades
presentes no Território Indígena do Xingu. As musicalidades tuyuka se fazem presentes com suas dinâmicas,
trocas musicais, influências e cerimônias.

Desconstruiremos, ainda, a ideia da ausência de povos indígenas no Nordeste, destacando a presença dos
Pankararu e suas musicalidades.

Buscaremos compreender a conexão entre instrumentos sonoros e narrativas míticas, que se articulam com
o mundo invisível. Nesse contexto, conheceremos a relação da espiritualidade Guarani e sua conexão com
os cantos, instrumentos e dança.

Também nos acercaremos sobre o aprendizado dos instrumentos por meio da voz.

Toré Tuxá, 2018. (Registro fotográfico Ayrumã Tuxá/Acervo pessoal Andeson Cleomar dos Santos)

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Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
No terceiro e último eixo do curso, com o tema Musicalidades indígenas em trânsito, apresentaremos
um panorama amplo da música indígena contemporânea, conhecendo as diferentes cenas das músicas
indígenas no Brasil por meio de seus representantes, e aproveitando para apreciar a inserção de novas
tecnologias no processo criativo desses artistas.

Conheceremos diferentes artistas indígenas que se enveredam por caminhos da música eletrônica, hip
hop, rap, rock, forró e outros ritmos, além de propostas de artistas não indígenas que se debruçaram sobre
elementos musicais dos povos originários.

Este eixo nos convida a refletir acerca do emprego de novas tecnologias na música indígena, entender sobre
direitos autorais, direitos coletivos, consentimento prévio e toda a parte legal envolvendo a musicalidade
indígena.

Teremos, também, a oportunidade de examinar o papel das etnomídias e do protagonismo indígena nas
mídias sociais, podendo, a partir disso, entender o interesse de artistas não indígenas e a apropriação, as
releituras e recriações de repertórios indígenas.

Por fim, reconheceremos o papel das musicalidades dos povos indígenas como meio de transformação das
consciências em torno de nossas histórias e culturas e como instrumento de luta.

Edivan Fulni-ô, s.d. (Registro fotográfico autoria desconhecida/Vírgula/Divulgação)

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Brô MC’s, s.d. (Registro fotográfico André Patroni/Divulgação)

Djuena Tikuna, s.d. (Registro fotográfico Diego Janatã/ Divulgação)

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Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
Aqui, ressaltaremos como as expressões musicais dos povos indígenas permaneceram largamente
ignoradas durante a maior parte da história colonial e brasileira.

Esse tipo de produção conheceu um interesse crescente somente ao longo do século XX, a partir da
realização dos primeiros registros sonoros e de sua difusão, passando por recriações na música brasileira
desde o advento do modernismo até meados do século XX.

Com a articulação do movimento indígena a partir das décadas de 1970 e 1980, concomitante ao início de
pesquisas etnomusicológicas tematizando as musicalidades indígenas no Brasil, as décadas seguintes
testemunharam um crescimento inédito da audiência sobre essas formas expressivas, ao mesmo tempo
que sua transformação por meio da apropriação de gêneros musicais não convencionais aos povos
originários.

O curso pretende trazer reflexões sobre a particularidade dessas formas expressivas e sua transformação
na atualidade, dando espaço, som e voz aos povos indígenas e suas manifestações musicais.

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Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
Constelação das Artes:
Musicalidades indígenas no Brasil

AULA 1
POVOS INDÍGENAS NO BRASIL:
DIVERSIDADE CULTURAL,
EQUÍVOCOS E (R)EXISTÊNCIA
Eixo I: Sociodiversidade e
sonoridades indígenas
APRESENTAÇÃO
Ao percorrer esta aula nos preparamos para...

• Analisar como a sociedade brasileira, de modo generalizado, detém uma visão estereotipada e
equivocada sobre a história e a realidade dos povos originários.

• Refletir acerca do imaginário nacional construído a respeito dos povos indígenas historicamente, seus
silenciamentos e exclusões, assim como a ideia do “ser indígena” como algo essencialmente primitivo
e selvagem, que assimilaria as transformações civilizatórias na mesma medida em que perderia seus
vínculos, identidades e memórias ancestrais.

• Abordar alguns dos principais equívocos a respeito do imaginário sobre os povos indígenas que existem e
resistem nessa terra.

• Apresentar um panorama da diversidade dos povos indígenas no Brasil do século XXI.

ENTRE EQUÍVOCOS E AVANÇOS


Desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988, e a Convenção 169, da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), em 1989, em que os direitos dos povos indígenas foram assegurados no Brasil e no âmbito
internacional, houve um avanço em agendas políticas no que diz respeito ao reconhecimento à organização
social, aos costumes, às línguas, às crenças, às tradições e aos direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupamos.

Tais avanços ainda perduram conceitos no imaginário nacional, reprodutores de equívocos que mobilizam
a sociedade envolvente na negação dos direitos territoriais, da presença na sociedade civil e, de forma
intensa, na cultura, terreno simbólico brasileiro.

Vejamos mais sobre o assunto na videoaula a seguir:

NARRATIVAS SONORAS
Povos indígenas no Brasil: diversidade cultural, equívocos e (r)existência.
Nesta aula conheceremos a diversidade dos povos indígenas no Brasil a
partir do ponto de vista da professora Julie Dorrico, pesquisadora e escritora
indígena da etnia Macuxi. Vamos nos informar sobre alguns aspectos legais
e os principais equívocos em relação às identidades indígenas. Abordaremos
iniciativas de resistência, como a problematização das palavras “índio” e “tribo”.
Julie Dorrico

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AULA 1
POVOS INDÍGENAS NO BRASIL: DIVERSIDADE CULTURAL, EQUÍVOCOS E (R)EXISTÊNCIA
Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
A fim de combater conceitos, forjados ao longo de cinco séculos, numa matriz anti-indígena, tecem-se, a
seguir, considerações acerca da diversidade de povos indígenas no território (pluri)nacional, dos equívocos/
racismos persistentes que recaem sobre os sujeitos e povos indígenas e das estratégias de (r)existência hoje.

DIVERSIDADE CULTURAL

Lideranças indígenas durante a Assembleia Nacional Constituinte, 1988. (Registro fotográfico Beto Ricardo/ISA)

Quem, afinal, somos? Daniel Munduruku (1964), intelectual e expoente da literatura indígena, argumenta
que não é “índio”, mas “Munduruku”, “indígena”. A distinção entre as categorias “índio”, “indígena” e
“Munduruku” reside na reivindicação do pertencimento étnico e no reconhecimento da diversidade de
povos originários que foram historicamente submetidos à categoria racial “índio”. Daniel Munduruku justifica
que a alcunha “índio”, historicamente, compôs um arranjo incapaz de fazer jus à diversidade que ela tentou
reduzir. Em suas palavras:

Quase sempre significava atraso tecnológico, primitivismo, canibalismo, entre outros


termos negativos. Nomear alguém com essa palavra era qualificá-lo aquém dos demais
seres humanos e enquadrá-lo em um passado imemorial, que já não existia mais.

(MUNDURUKU, 2017, p. 15)

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AULA 1
POVOS INDÍGENAS NO BRASIL: DIVERSIDADE CULTURAL, EQUÍVOCOS E (R)EXISTÊNCIA
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Índio” e “indígena” possuem etimologias diferentes. Mesmo sendo empregado para referir-se à “identidade
nativa”, o segundo termo não carregou o signo histórico que o primeiro propunha.

Etimologia

Campo de pesquisa da linguística que investiga a constituição, a origem, o desenvolvimento e o


significado das palavras por meio da análise de seus elementos.

Nesse sentido, quando se fala sobre o emprego do termo indígena, é no sentido de reconhecer que um “indígena
pertence a um povo X” (MUNDURUKU, 2017, p. 18) ou, como endossa o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro
(1951), “indígena” significa “gerado dentro da terra que lhe é própria, originário da terra em que vive”.

SAIBA MAIS
Entenda a diferença entre os nomes e o peso político do termo “índio”
quando pronunciado pelos próprios sujeitos originários, assistindo
ao vídeo de Daniel Munduruku para o projeto MEKRUKADJÁ, no
Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=s39FxY3JziE.
Acesso em 05 de setembro de 2022.

Essa discussão é recuperada para sinalizar que, mesmo que o termo “índio” tenha primado por apagar a
diversidade étnica existente no Brasil, o projeto, que perseguiu a identidade, a humanidade e a cidadania
dos povos e sujeitos originários, não obteve êxito.

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AULA 1
POVOS INDÍGENAS NO BRASIL: DIVERSIDADE CULTURAL, EQUÍVOCOS E (R)EXISTÊNCIA
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Apesar disso, ainda atravessou todas as instâncias da vida com violências coloniais e suas sucessivas
consequências geradoras de silenciamento, apagamento e exclusão indígena da sociedade dominante.

Sônia Guajajara, s.d. (Registro fotográfico autoria desconhecida/RBA)

Saber que existem muitos povos indígenas habitando todo o território nacional é um convite ao
reconhecimento da diversidade cultural e étnica. É importante destacar, como lembra a líder indigenista
brasileira Sônia Guajajara (1974), que a pesquisa sobre as práticas culturais dos povos, diversificadas entre si,
devem vir acompanhadas da situação política que cada povo em si e em seu território enfrenta.

Essa metodologia é importante para mobilizar a sociedade envolvente em defesa da demarcação das terras,
no combate ao racismo enfrentado pelos sujeitos indígenas e na luta por Direitos Humanos e civis, buscados
desde a promulgação da Carta Magna (a Constituição de 1988).

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POVOS INDÍGENAS NO BRASIL: DIVERSIDADE CULTURAL, EQUÍVOCOS E (R)EXISTÊNCIA
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SAIBA MAIS
Segundo o censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem
305 povos indígenas falantes de 274 línguas maternas. No censo, assim como no site da
organização indigenista Instituto Socioambiental, é possível encontrar um registro oficial
estimado da demografia, das línguas existentes, das autodenominações (nomes próprios
com os quais os povos se autonomeiam) e da situação econômica e escolar. Como você
poderá perceber, os dados variam conforme as agências.

Acesse o site da Agência de Notícias do IBGE sobre o censo 2010 neste endereço:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-
de-noticias/releases/14262-asi-censo-2010-populacao-indigena-e-de-8969-mil-
tem-305-etnias-e-fala-274-idiomas. Acesso em: 05 set. 2022.

Acesse também o site do Instituto Socioambiental, uma organização não governamental


brasileira, fundada em 22 de abril de 1994, com o objetivo de defender os direitos
indígenas, neste link: https://pib.socioambiental.org/pt/P%C3%A1gina_principal.
Acesso em: 05 set. 2022.

Culturalmente diferenciados, os povos indígenas possuem línguas, cosmologias, costumes, comidas,


rituais, casas, entre outras características que os diferenciam de outros grupos étnicos. Conheça alguns dos
principais expoentes da cultura do povo macuxi:

• Na religião Makunaimã, Aniké e Insikiran, os avós que configuraram o mundo ao cortar a árvore sagrada,
Wazacá.

• A culinária tem a damorida como prato principal, um caldo de peixe preparado com folha de cariru,
tucupi e pimentas.

• Celebram a parixara, uma dança com músicas na língua materna e portuguesa.


• Falam a língua macuxi, de tronco Karib.
• Habitam a região fronteiriça entre Brasil, Guiana e Venezuela.

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POVOS INDÍGENAS NO BRASIL: DIVERSIDADE CULTURAL, EQUÍVOCOS E (R)EXISTÊNCIA
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Segundo o Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena SIASI/SESAI (2014), a população macuxi:

• No Brasil é de 33.603.
• Na Guiana, 9.500.
• Na Venezuela, 89 pessoas.
Há artistas nas comunidades, na cidade e em trânsito, todos ensejando o debate sobre a arte e a
cultura macuxi. Mathilde Macuxi e Jaider Esbell (1979-2021) são grandes expoentes da arte macuxi
contemporânea.

Vigília realizada contra o Marco Temporal na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no contexto do acampamento Luta pela
Vida, 2021. (Registro fotográfico autoria desconhecida/Poder 360)

As Terras Indígenas onde o povo Macuxi está são Raposa Serra do Sol e São Marcos. A crise econômica
que enfrentam é o recrudescimento do garimpo e a ameaça do “marco temporal”, tese em julgamento no
Supremo Tribunal Federal (STF), que ameaça as Terras Indígenas demarcadas.

Marco temporal
Tese jurídica que propõe o reconhecimento do usufruto das terras tradicionalmente ocupadas por
indígenas brasileiros, apenas aquelas ocupadas por eles, à data de promulgação da Constituição Federal.

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POVOS INDÍGENAS NO BRASIL: DIVERSIDADE CULTURAL, EQUÍVOCOS E (R)EXISTÊNCIA
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De modo geral, no que diz respeito às línguas indígenas, a diversidade linguística dos povos abrange dois
troncos principais como Tupi e Macro-Jê e 19 famílias linguísticas que não apresentam graus de semelhanças
suficientes para que possam ser agrupadas em troncos. No tronco Tupi, encontram-se as famílias linguísticas
Tupi-Guarani, Awetí, Juruna, Tupi-Mondé dentre outras; e no tronco Macro-Jê agrupam-se as famílias Bororo,
Krenak, Maxacali, Yathê dentre outras. Existem também línguas que não pertencem a nenhuma das famílias
conhecidas e que são chamadas, pelos especialistas, de línguas isoladas como Tukano, Kadiwéu, Tariana,
Mehinaku, Yawalapiti dentre outras. (Franchetto, 2001)

Alguns povos, que tiveram suas línguas perseguidas durante os regimes do Império e da República, já não
possuem suas línguas maternas. Tal situação, contudo, não retira o pertencimento e o direito de serem um
grupo étnico.

No que tange à música, Daniel Munduruku informa que os povos indígenas celebram, por excelência, diversas
etapas da vida com música e dança, e usam como instrumentos:

• Flautas.
• Maracás.
• Tambores.
• Outros confeccionados com matéria-prima da floresta.

Por meio da música contam as histórias da sua origem, ensinando as crianças as tradições
milenares de cada povo. Essas músicas que atravessam os séculos são formas de eles
fazerem ouvir a própria voz e a voz dos deuses, que permanecem vivos ao som daquela
sempre nova melodia.

MUNDURUKU, 2016, p. 53)

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EQUÍVOCOS
O desconhecimento acerca dos povos e sua diversidade cultural, bem como da história indígena, gera,
ainda, equívocos recorrentes, que induzem a população não indígena a opor-se contra os direitos indígenas
e distanciar-se de lutas e culturas que deveriam ser vistas como coletivas, indígenas e não indígenas.

Casé Angatu, líder dos Tupinambá, ao lado de Binho Porãn Tupinambá e Tamikuã Txihi, durante o Dia da Resistência Indígena
Continental, no vão livre do Museu de Arte de São Paulo, s.d. (Registro fotográfico Didier Lavialle/Humanista)

Na mesma esteira de combater racismos e preconceitos que descaracterizam os sujeitos e povos indígenas, o
professor não indígena José Bessa Freire (1947) lista cinco ideias equivocadas sobre os indígenas. São elas:

• Equívoco do índio genérico.


• Culturas atrasadas.
• Culturas congeladas.
• Índios pertencem ao passado.
• O brasileiro não é índio.
Bessa Freire compartilha a necessidade de desmistificar a entidade supra-étnica
“índio” para referir-se aos povos indígenas. A categoria genérica “índio” apaga,
gradativamente, os povos, seus nomes próprios, suas culturas e histórias para
transformá-los no “índio” sem direitos.

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POVOS INDÍGENAS NO BRASIL: DIVERSIDADE CULTURAL, EQUÍVOCOS E (R)EXISTÊNCIA
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Em 2022, a deputada federal Joenia Wapichana (1974) venceu o veto ao Projeto de Lei nº 5466/2019 e
instituiu o Dia dos Povos Indígenas, no dia 19 de abril, chamado de “Dia do Índio”, desde 1943. A substituição
do nome da data comemorativa vem para contestar o termo estigmatizado do “índio”, a fim de pôr em
evidência as coletividades e os povos presentes no país. Conforme Joenia:

O propósito é reconhecer o direito desses povos de, mantendo e fortalecendo suas


identidades, línguas e religiões, assumir tanto o controle de suas próprias instituições
e formas de vida quanto de seu desenvolvimento econômico.

(Joenia Wapichana, Sessão da Comissão de


Constituição e Justiça, CCJ, de 04/04/2022)

SAIBA MAIS
Para ler na íntegra o Projeto de Lei de autoria da deputada Joenia
Wapichana, que instituiu o Dia dos Povos Indígenas, aprovado na CCJC da
Câmara, acesse: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_
mostrarintegra;jsessionid=node01ln56rmailufg19i2pbuftcixn6129951.
node0?codteor=1818943&filename=PL+5466/2019. Acesso em: 05 set. 2022.

Em relação ao equívoco das culturas congeladas, José Bessa Freire expõe o erro de um líder político
amazonense, que chamou indígenas de “ex-índios”, por usarem calça, camisa, óculos, relógio e falarem a
língua portuguesa. O argumento foi empregado para impedir a demarcação de uma Terra Indígena.

É importante perceber que os povos indígenas têm suas culturas assumidas como inferiores nessas trocas
culturais. Nesse sentido, quando um indígena desfruta da contemporaneidade e usa as ferramentas que o
presente dispõe, ele logo é enquadrado na hierarquia que baliza a identidade indígena conforme a política
indigenista vigente até 1988: isolado, em vias de integração e integrado.

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AULA 1
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Oca Digital nos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, 2015. (Registro fotográfico Marcelo Camargo/Agência Brasil)

As culturas de Estados-nação, por sua vez, se veem como simétricas e compreendem suas trocas como
intercâmbio. Assim, se um brasileiro come comida japonesa, não se tornará japonês; e se registra-se com uma
selfie, em seu iPhone, também não se tornará estadunidense.

Todos esses códigos, vestimentas e tecnologias são considerados civilizados. Porém, se um indígena fizer
o mesmo, terá a sua identidade imediatamente questionada, porque todos os seus modos e códigos são
automaticamente considerados “inferiores” ou “primitivos”.

Tais equívocos minam e impedem a atuação de sujeitos na música, na literatura, no cinema, na política e em
diversas outras áreas, e, também, conflagram racismos e preconceitos que marginalizam os sujeitos originários.

SAIBA MAIS
Veja o vídeo do comunicador social Cristian Wariú (1998), em que são listadas algumas
visões engessadas e ultrapassadas que ainda tentam homogeneizar as diversidades
culturais. No vídeo, Wariú, didaticamente, explica a importância do emprego dos
termos indígenas, povos/nações, povos originários e povos indígenas como uma
linguagem desmistificadora da generalização histórica que apaga a diferença de
corpos e povos presentes em todo território nacional. Acesse o link:
https://www.youtube.com/watch?v=unkNJF_mlNQ.
Acesso em: 05 de setembro de 2022.

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Conheça alguns dos expoentes que lutaram (e lutam) até os dias de hoje pelo protagonismo indígena no seu
próprio país.

EM BUSCA DO PROTAGONISMO DE DIREITO


Vejamos personalidades que, no decorrer da história, lutaram (e continuam lutando) para conseguir avanços
sobre a importância das questões indígenas.

Cristian Wariú Tseremey’wa, 2020. (Registro fotográfico autoria desconhecida/TRIP)

Cristian Wariú (1998), conhecido como “Guerreiro digital”, é um comunicador social que pertence ao povo
Xavante, com ascendência Guarani. Nascido no território Parabubure, na região do Vale do Araguaia, Mato
Grosso, o jovem usa a internet para desmistificar ideias preconceituosas e estereotipadas sobre os povos
indígenas.

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Joenia Wapichana, deputada federal, em visita à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, 2018. (Registro fotográfico Avener Prado/Folhapress)

Em mais de 190 anos de Parlamento, Joenia Wapichana foi a primeira mulher indígena a conquistar um
assento no Legislativo brasileiro. Com 8.491 votos, ela foi eleita deputada federal pelo estado de Roraima, em
2018, pela Rede Sustentabilidade (REDE).

Mário Juruna, 1982. (Registro fotográfico autoria desconhecida/Site Memórias da Ditadura)

Mário Juruna foi eleito como deputado federal pelo PDT-RJ, em 1982, o primeiro índígena a ocupar uma cadeira
no parlamento. Ficou famoso por portar um gravador “para registrar tudo o que o branco diz” e constatar que
as autoridades, na maioria das vezes, não cumpriam a palavra. Publicou o livro O Gravador do Juruna.

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(R)EXISTÊNCIA
Com o advento da Constituição Federal, em 1988, quando conquistamos o Capítulo VIII, Dos Índios, o
Estado brasileiro reconheceu formalmente outro modo de relação com os povos indígenas.

Ao reconhecê-los como sujeitos de direitos, o Estado emitiu a mensagem de que os indígenas poderiam
exibir e ter o direito jurídico sobre as identidades e culturas originárias, ao mesmo tempo em que, enfim,
poderiam ser cidadãos brasileiros.

Os povos indígenas foram os últimos a ser considerados, portanto, brasileiros.

A Carta Magna abriu caminho para políticas diferenciadas de ensino e saúde. Porém, mesmo acessando
direitos básicos, adentrar o universo cultural foi difícil. Estar no mundo simbólico também era um código
considerado civil, e, devido ao modo como os indígenas foram convencionalmente enxergados, ali, também
dizia-se não ser um lugar possível para as suas expressões artísticas e culturais.

SAIBA MAIS
Conheça alguns links que abordam conteúdos relevantes sobre a cultura e os direitos indígenas, e que
poderão enriquecer o seu repertório sobre o tema.

Currículo da cidade: povos indígenas: orientações pedagógicas, material desenvolvido pela Secretaria
Municipal de Educação - Coordenadoria Pedagógica de São Paulo (SP). Acesse: https://educacao.
sme.prefeitura.sp.gov.br/wp-content/uploads/Portals/1/Files/53254.pdf. Acesso em: 05 set.
2022.

Livraria Maracá, especializada em literatura indígena produzida no Brasil, no site: https://www.


livrariamaraca.com.br/. Acesso em: 05 set. 2022.

O Wikilivros disponibiliza uma lista de obras e autores com publicações indígenas do Brasil.
Para conferir, basta acessar: https://pt.wikibooks.org/wiki/Bibliografia_das_publicações_
indígenas_do_Brasil. Acesso em: 05 set. 2022.

No Instagram, visite o Mídiaindia, canal que compartilha notícias gerais sobre os povos indígenas no
Brasil. Acesse: https://www.instagram.com/midiaindiaoficial/. Acesso em: 05 set. 2022.

Na página do IBGE Indígenas, você encontra informações sobre a distribuição da


população autodeclarada indígena no território brasileiro, com base nos
resultados censitários. Acesse: https://indigenas.ibge.gov.br/.
Acesso em: 05 set. 2022.

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AULA 1
POVOS INDÍGENAS NO BRASIL: DIVERSIDADE CULTURAL, EQUÍVOCOS E (R)EXISTÊNCIA
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No campo da política, articulam-se organizações regionais e nacionais usando redes de comunicação como
estratégia de enfrentamento ao silenciamento e como forma de educar sobre uma história que não aceita a
população indígena, mesmo sempre tendo estado aqui. A saber:

• UNI (União das Nações Indígenas).


• COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira).
• FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro).
• Aty Guasu.
• APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).
Essas ações que fazemos coletivamente atuam como forma de exibir a luta incessante e ininterrupta há
mais de 500 anos.

Quando o Brasil conhece a diversidade cultural que possui, os equívocos que minam os direitos territoriais
e ancestrais e a (r)existência que somos e continuamos pode vislumbrar a riqueza simbólica e lutar para
fortalecê-la no país.

Os indígenas aprendem pelo canto e pela dança, então, desejamos que esse curso seja uma parixara –
como os macuxis celebram – para você tanto quanto é para nós.

Parixara
Ritual tradicional de gratidão e celebração dos povos Macuxi e Wapichana que envolve música e dança.

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Musicalidades indígenas no Brasil

AULA 2
O ENTRELAÇAMENTO DA
MÚSICA COM OS SABERES
INDÍGENAS
Eixo I: Sociodiversidade e
sonoridades indígenas
APRESENTAÇÃO
Ao percorrer esta aula nos preparamos para...

• Compreender que os fazeres musicais indígenas não podem ser pensados isoladamente de outras
práticas.

• Abordar como as musicalidades relacionam-se com os modos de existência de diferentes povos, por meio
de ritos do cotidiano, narrativas e artes verbais, diálogos cerimoniais, práticas espirituais e políticas.

• Refletir sobre a presença da musicalidade como um aspecto entrelaçado às diversas práticas e saberes,
sagrados e profanos, rituais e cotidianos, seja na aldeia ou na cidade.

A DIVERSIDADE DOS POVOS ORIGINÁRIOS


O universo das músicas dos povos originários é vasto, diverso e apresenta muitos desafios fascinantes à
nossa imaginação e aos nossos ouvidos. Quando falamos sobre “música indígena”, temos o duplo desafio de
questionar o que entendemos como “música” e como “indígena”.

NARRATIVAS SONORAS
O entrelaçamento da música com os saberes indígenas. Nesta aula
refletiremos sobre a relação entre musicalidade e a cultura indígena,
compreendendo como a música surge e se manifesta no espírito e está
além do que é terreno. Também pensaremos sobre a relação entre o
silêncio e a musicalidade.

Ailton Krenak

O que hoje entendemos como “povos indígenas” não pode ser pensado como uma unidade, um bloco
único, com as mesmas características culturais. Pelo contrário. Quanto mais estudamos os povos originários,
mais aprendemos que o melhor é identificar cada povo pelos nomes que eles próprios utilizam para
autodenominarem-se e nos dedicarmos ainda mais a conhecer a singularidade de cada um. A começar pela
diversidade e riqueza das suas línguas.

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AULA 2
O ENTRELAÇAMENTO DA MÚSICA COM OS SABERES INDÍGENAS
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Segundo as estimativas do censo de 2010 feito pelo IBGE, hoje, temos cerca de 900
mil pessoas que se reconhecem como indígenas, e 305 etnias. Esses povos falam
em torno de 274 línguas. Alguns linguistas preferem apontar a soma de 180 línguas
faladas entre os povos do Brasil. A estimativa dos estudiosos é de que, no momento
da chegada dos povos europeus que colonizaram o Brasil, tínhamos, aqui, entre
1.200 a 1.500 línguas distintas, e cerca de 10 milhões de pessoas.

Segundo a organização indigenista Instituto Socioambiental, a violência do processo colonial provocou, ao


longo dos séculos, uma enorme redução demográfica, que veio juntamente com a diminuição da riqueza
linguística entre os povos originários.

O que implica uma língua que deixou de ser falada?

A extinção de uma língua leva ao apagamento:

• De sistemas inteiros de pensamentos.


• De repertórios musicais.
• De modelos de classificação e identificação botânica e zoológica.
• Do conhecimento das estrelas.
• Dos ciclos agrários.
• Da climatologia.
• De centenas de poesias e de histórias.
Infelizmente, esse processo de redução e empobrecimento segue nos dias de hoje. Não existe, no Brasil,
uma política de proteção às línguas indígenas.

As pessoas indígenas que necessitam de serviços mínimos nas cidades próximas são obrigadas a falar o
português, mesmo quando, em alguns casos, a população indígena é maior que a das municipalidades.

Deixar de falar suas línguas representa uma pressão cotidiana na vida dos povos originários sem considerar
períodos históricos anteriores, em que eram proibidos formalmente e castigados por falarem seus próprios
idiomas.

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AULA 2
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CURIOSIDADES
Você sabia que o Brasil ainda é um dos países mais ricos em diversidade linguística,
pois além da quantidade de línguas e falantes, possui 41 famílias linguísticas e mais
de uma dezena de línguas isoladas?

Para além da diversidade linguística, é importante saber que os povos originários tiveram processos de
contato com a sociedade colonizadora diferenciados, e, hoje, encontramos um rico e variado conjunto de
culturas:

• Povos que vivem em regiões com matas relativamente preservadas.


• Povos que sofreram a pressão urbana e, hoje, vivem em cidades.
• Povos que estão em regiões totalmente transformadas pelo sistema do agronegócio.
Tudo isso afeta as formas como esses povos se constroem enquanto sociedade. Sobretudo, nos interessa
aqui pensar o quanto essa diversidade de histórias, línguas e culturas implica também a diversidade
de culturas musicais, ainda muito pouco conhecidas pelas pessoas que estudam as músicas dos povos
originários.

Desenho de Donisete Maxakali, de Água Boa (Território Indígena de


Maxakali em Santa Helena de Minas, MG), s.d. Donisete Maxakali.
(Reprodução de imagem autoria desconhecida)

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E O QUE ENTENDEMOS COMO “MÚSICA”?
A palavra “música” nos faz pensar em muitas coisas diferentes. Para algumas pessoas, a música acalma os
corações. Para outras, ela anima festas e divertimentos. Outras pensam na música como forma de expressão,
mas em quase todas as religiões a música cumpre um papel importante.

Usamos a mesma palavra para todas essas coisas, mesmo que elas sejam distintas e assumam funções
diferentes. Ainda assim, para nós, música é algo que está fora dos principais motores que regem a sociedade:
a economia e a política. Mesmo que muitas músicas tenham se tornado mercadorias, gerando renda e
movendo uma cadeia produtiva, ela ainda é tida como um acessório na nossa sociedade.

Entre a maioria dos povos originários, o que chamamos de “música” tem uma grande centralidade nas suas
vidas e na sua organização social. Basta ver a imagem de algumas aldeias para entender onde fica a casa dos
cantos ou a casa das flautas.

Geralmente, são casas situadas no centro das aldeias, em lugares de destaque, com um formato diferente,
indicando que, ali, onde se pratica música, também é o local onde as principais forças daquele grupo social
transitam.

Aldeia circular dos Enawenê-nawê, no Mato Grosso. Na pequena casa, no meio do


pátio, fica a Yãkwa, onde são guardadas as flautas, s.d. (Registro fotográfico autoria
desconhecida/Canoa)

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É comum ouvirmos as pessoas mais velhas nos dizerem que seus cantos são o bem mais precioso de seu
povo. Podemos pensar que, de diferentes maneiras, entre os diferentes povos, as músicas são necessárias
para:

• O crescimento dos cultivos.


• A formação do corpo das crianças.
• O controle do clima.
• A memória das histórias fundamentais.
• A cura de doenças.
• O fortalecimento e a permanência da comunidade.
• A manutenção das boas relações das pessoas vivas com todos os animais da floresta e os seres que não
conseguem ver.

Por esse motivo, aprender a escutar e aprender os cantos é algo muito importante na formação dos jovens
indígenas. E, ao mesmo tempo, quase nenhum desses grupos possui um termo genérico para traduzir como
“música”.

Casa de cantos (Kuxex) maxakali, s.d. (Registro fotográfico Ricardo Jamal)

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Apesar de já haver importantes estudos realizados sobre as práticas sonoras e os repertórios musicais entre
os povos originários, a riqueza e a diversidade fazem com que estejamos ainda em um estágio inicial de
conhecimento sobre esse universo. Mas, é importante ressaltar que cada vez mais acadêmicos de diferentes
povos indígenas chegam às universidades e escrevem dissertações e teses que revelam, com muitos detalhes,
a riqueza e a centralidade dos sistemas musicais na vida das suas comunidades. Conheça alguns nomes:

Izaque João

Historiador dos povos Guarani Kaiowá, descreveu, em sua dissertação, os cuidados com os cantos durante
o ritual do milho saboró. Segundo ele, é a boa execução dos cantos que garante a prosperidade do milho
e demais produtos agrícolas entre esses povos, conhecidos pela sua grande tradição de cultivadores. Seu
trabalho explica minuciosamente como o aprendizado dos cantos é matéria de muito cuidado pelos mais
velhos e de toda uma vida e de transformação do corpo da pessoa.

Creuza Prumkwyj Krahô (1971)

Do povo Krahô (TO), a pesquisadora escreveu a dissertação intitulada Wato ne hômpu ne kãmpa.
Convivo, vejo e ouço a vida Mehi (Mãkrarè). Em sua pesquisa, ela aborda a importância crucial do
aprendizado dos cantos como um cuidado do próprio corpo e da formação da pessoa. São os cantos que
permitem a formação da memória e a diferenciação entre as pessoas e os animais da floresta.

Ibã Huni Kuin (1964), do Coletivo Mahku

Assim como outros pesquisadores indígenas, Ibã foi em busca dos mais velhos para conhecer melhor seus
repertórios e suas histórias, transcrevendo os cantos da Ayawaska do seu povo (KAXINAWÁ 2006, 2007).

Educadores indígenas e pessoas que viveram as lutas em defesa dos direitos de seus povos também estão
atentos à centralidade de seus cantos. É o que nos conta a mestra Mayá, Maria Muniz de Andrade Ribeiro, no
seu livro A escola da reconquista, lançado pela editora Teia dos Povos, em 2021.

Não somente as dissertações e as teses, mas também filmes realizados por cineastas indígenas
demonstram o valor que atribuem aos cantos e ao aprendizado da música.

Divino Tserewahú (1974), do povo A’uwe/Xavante (MT), fez os filmes Aprendiz de curador (2003) e Poder do
sonho (2001). Nesses filmes, descobrimos os esforços que mobilizam toda a sociedade A’uwe para construir
o aprendizado dos sonhos, em que os jovens aprendem a agarrar os cantos como algo muito precioso.
Aprende-se a ser um bom sonhador de cantos, qualidade muito importante para esse povo.

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Conheça outros títulos relevantes:

O manejo da câmera (2006) e Hipermulheres (2011)

O curta metragem, do coletivo de cineastas Kuikuro (MT), e o filme, de Carlos Fausto (1963) e Leonardo
Sette (1978), demonstram, também, os esforços e a atenção de todo o povo para a manutenção da
vitalidade dos seus cantos, como forma de manter o equilíbrio da sociedade.

Os cantos do cipó (2006)

O filme, realizado pelos cineastas Huni Kuin (AC), Josias Maná Kaxinawá e Tadeu Siã Kaxinawá (1976), foi
realizado paralelamente ao processo de registro deste repertório por Carlos Fausto e demonstra questões
muito importantes, como as cenas em que os jovens recebem pimenta em suas línguas para aguçar sua
memória da arte de cantar. Ouvimos, também, os velhos dizerem que seus cantos lhes foram ensinados
pela cobra grande, levando-nos muito longe da nossa noção de autoria e de uma subjetividade criativa
que compõe os cantos.

Gravando Som – Som Tximina Yukunang (2010)

Dirigido por Karané Ikpeng (1982), Kamatxi Ikpeng (1988) e Mari Corrêa, é outro filme que documenta
um processo de registros de cantos pelo coletivo de cineastas Ikpeng (MT). É importante ressaltar
também que, hoje, a juventude indígena de muitas comunidades vem experimentando várias formas de
diálogos com o mundo musical dos não indígenas, demonstrando uma abertura à contemporaneidade e
o desejo de comunicar suas lutas, e aquilo que importa para eles, pelo cinema, pela fotografia, ocupando
as redes sociais e criando canais de rádios, como a Rádio Yandé.

MÚSICA E COSMOPOLÍTICA

Muitos relatos e estudos demonstram que, entre os povos originários, as vidas em sociedade são
profundamente interconectadas com toda a riqueza de indivíduos das matas, dos rios, das montanhas,
animais, ventos, chuvas, astros celestes, todos eles considerados seres dotados de subjetividade e agência.

Alguns estudiosos denominam essa rede de relações como a “cosmopolítica ameríndia”, propondo que
sua forma de viver em sociedade e suas redes de parentesco e afetos, vão além das pessoas que nós, não
indígenas, consideramos humanas.

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É essa cosmopolítica que fez com que a maioria das terras nas quais hoje encontramos florestas
preservadas, águas puras e biodiversidade, tenham sido guardadas pelos povos originários.

Nessa cosmopolítica, os cantos assumem papel fundamental. Eles tornam presentes subjetividades que não
são vistas, são a forma, por excelência, da relação entre diferentes tipos de “humanos”.

Quando os povos originários concebem humanidade em outros seres do mundo, mesmo sendo ela
diferenciada, eles também se interessam por suas potências. Os cantos, na maioria das vezes, são atribuídos
a essas outras humanidades e carregam sua força.

Cosmopolítica

Conceito proposto por Bruno Latour (1947-2022) e Isabelle Stengers (1949) que reconhece o direito
político de outras culturas habitarem cosmos (mundos) que não aquele previsto pelo pensamento
científico moderno ocidental. Esses cosmos podem, inclusive, ser agenciados por seres humanos ou
não humanos.

É comum ouvirmos especialistas de muitos povos nos dizerem que seus


repertórios de cantos foram ensinados por estes outros povos aos seus
ancestrais. Por tal motivo, a tradução desses cantos para o português é muito
mais do que um problema de línguas. É preciso compreender que traduzimos
redes de relações que não possuem correspondência em nossa forma de
conceber o mundo. Eles abrem para nosso imaginário janelas de grande riqueza
e complexidade.

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Veja o exemplo de apenas uma tradução de um dos cantos dos povos Guarani Kaiowá, traduzido pela
linguista e artista paraguaia Graciela Chamorro (1958):

Emonde nde yvoty che ruvicha Veste tua flor, meu primeiro
Opyrû nde yvoty che ruvicha. Tua flor pisa a terra, meu superior
Eguejy nde yvoty che ruvicha Desce tua flor, meu superior
Emonde nde yvoty che ruvicha Veste tua flor, meu primeiro
Opyrû nde yvoty che ruvicha. Tua flor pisa a terra, meu superior
Eguejy nde yvoty che ruvicha Desce tua flor, meu superior

(CHAMORRO, 2015, p. 163)

A respeito desse canto, Chamorro explica que, na cosmologia Kaiowá, a flor possui um papel fundamental:

Junto à busca nos espaços ascendentes, os cantos-rezas também agem sobre o corpo
da pessoa doente, enfeitando-a. Enfeitar, mbojegua, é um dos conceitos-chaves da
antropologia Kaiowá. Ele é sinônimo de moatyrõ, ‘consertar’, e de mongy, ‘fazer chover’, ou
mboysapy, ‘fazer molhar de orvalho’. Na antropologia kaiowa, o corpo humano e qualquer
lugar não enfeitado não está completo.

O enfeite básico é a flor, yvoty. Cada um dos enfeites é enfeitado com a flor. O corpo
“florido”, enfeitado, é um corpo maduro, são. O termo enfeite em português não dá conta da
densidade e da polissemia desse termo indígena, pois jegua é algo sem o qual perde-se a cor,
o brilho, o som, a expressão; sem o qual o que é deixa de ser. Com a água de cedro enfeita-se
a criança por ocasião de sua nominação; a chuva e o orvalho enfeitam a terra. No contexto do
ñevanga, enfeitar é ‘curar’ (...).
(CHAMORRO, 2015, p. 163)

Percebemos, com os comentários oferecidos por Chamorro, que o trabalho do tradutor não se restringe a
uma tradução interlinguística. Aqui, é necessário refundar, ou ampliar, o conceito de “enfeitar” para, de fato,
alcançarmos o significado deste canto, no qual, muito além de uma noção decorativa, a flor e o enfeite são
a possibilidade de cura, assim como a possibilidade plena do ser compor-se com cor, brilho, som, expressão.
Enfeitar, vestir-se da flor é tarefa necessária para a completude do ser.

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AULA 2
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Mais uma vez a filosofia indígena demonstra que o campo da expressão estética é parte da energia vital e da
relação entre os entes vivos: os corpos, os fluidos, as águas da chuva e o orvalho.

Esse canto, assim como centenas de outros cantos ameríndios, ecoa essa densa cosmopolítica, em que os
grãos, os alimentos, as plantas, os animais, enfim, todos os entes presentes no mundo, são considerados
viventes e humanos e não apenas objetos.

AMPLIANDO REPERTÓRIO
Trabalhos muito sofisticados vêm sendo realizados em um esforço de traduzir os cantos dos povos
ameríndios. Confira algumas indicações:

• CESARINO, Pedro de Niemeyer (org., trad., apresentação); MARUBO, Antonio Brasil; MARUBO, Paulino Joaquim;
MARUBO, Lauro Brasil; MARUBO, Robson Dionísio Doles; MARUBO, Armando Mariano (cantores). Quando a Terra
deixou de falar: Cantos da mitologia marubo. São Paulo: Editora 34, 2013.

• FRANCHETTO, Bruna. As artes da palavra. Cadernos de Educação Escolar Indígena, Barra do Bugres (MT), v. 2, n. 1, p. 19-
51, jan. 2003. Disponível em: https://www.academia.edu/38057394/As_Artes_Da_Palavra. Acesso em: 13 set. 2022.

• GRAHAM, Laura. Performance dos sonhos. Discursos de Imortalidade Xavante. São Paulo: EdUsp, 2018.
• GUIMARÃES, Daniel W Bueno. De que se faz um caminho: tradução e leitura de cantos kaxinawá. 2002. 291 f.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002.

• HEURICH, Guilherme Orlandini. Música, morte e esquecimento na arte verbal Araweté. Tese (Doutorado) -
Curso de Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2015.

• MAXAKALI, Toninho & Eduardo Pires ROSSE (orgs.). 2011, kõmãyxop – cantos xamânicos maxakali/tĩkmũ’ũn.
Rio de Janeiro: Funai/Museu do Índio.

• PACKER, Ian. Sobre a lenha, labaredas. Poética da memória e do esquecimento nas artes verbais krahô
(Timbira/Brasil central). Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2020.

• TEIXEIRA, Atanásio; JOÃO, Izaque, KLEIN, Tatiane, KMITTA PIMENTEL, Spensy. Cantos dos animais primordiais:
Guyra guahu ha mymba ka’aguy ayvu. São Paulo: Hedra, 2021.

• TUGNY, Rosângela Pereira de (org.) & narradores, escritores e ilustradores tikmũ’ũn da Terra Indígena de Água
Boa. Cantos e Histórias do Gavião-Espírito / Mõgmõka yõg Kutex xi Ãgtux. Rio de Janeiro: Beco do Azougue
Editorial, 2009.

Os cantos entre os povos originários articulam esta teia intensa de relações entre entes de um cosmos
tido como vivo, pulsante e pleno de interações, onde as pessoas que nós vemos como humanas não são
as únicas e principais inteligências e onde flores e alimentos são seres vivos, dotados de visão sobre seus
caminhos, suas formas e suas substâncias.

Texto de autoria da professora Rosângela Tugny.

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AULA 2
O ENTRELAÇAMENTO DA MÚSICA COM OS SABERES INDÍGENAS
Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
Constelação das Artes:
Musicalidades indígenas no Brasil

AULA 3
INSTRUMENTOS SONOROS
INDÍGENAS E SUAS RELAÇÕES
COM OUTROS SABERES
Eixo I: Sociodiversidade e
sonoridades indígenas
APRESENTAÇÃO
Ao percorrer esta aula nos preparamos para…

• Apresentar os instrumentos indígenas e sua variedade (trompetes, flautas, cordas, percussões etc.).
• Explorar a organologia indígena que agrupa instrumentos por parentesco, afinidades familiares (como
adoção e casamento), hierarquias sociais (como instrumentos-chefes) e outras formas de associação.

• Apresentar as concepções nativas de instrumentos sonoros considerados como pessoas vivas, com
alento, vontade, iniciativa, faixa etária, saudade, fome, sede, temor, fúria, constrangimento, zelo, em
nada semelhantes a um objeto inanimado.

• Opor-se à generalização que anula diferenças e características particulares, toda essa riqueza pouco
conhecida dos instrumentos dos povos originários.

• Evidenciar os diferentes materiais de que os instrumentos são feitos: madeira, bambu, cerâmica, cabaça,
sementes, palha, casca de árvore, além de substâncias (como a água, o barro, o fogo, o sopro, a cera de
abelha e as tinturas) e as benzas transformadoras, oferendas e sentidos cosmo-mitológicos associados
a esses materiais.

UMA CULTURA MULTI-INSTRUMENTISTA


Na videoaula a seguir, veremos alguns exemplos da riqueza dos instrumentos musicais indígenas com o
professor Pedro Paulo Salles.

NARRATIVAS SONORAS
Instrumentos sonoros indígenas e seus entrelaçamentos com outros
saberes. Nesta aula conheceremos alguns trompetes indígenas feitos
de madeira e utilizados para comunicação e em contextos de guerra e
conflito.

Pedro Paulo Sales

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AULA 3
INSTRUMENTOS SONOROS INDÍGENAS E SUAS RELAÇÕES COM OUTROS SABERES
Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
Agora que conhecemos alguns instrumentos sonoros indígenas, que tal conhecer outros?

NARRATIVAS SONORAS
Mais instrumentos sonoros indígenas e seus entrelaçamentos com
outros saberes. Nesta aula conheceremos alguns trompetes indígenas
feitos de cerâmica, seus usos, sons e particularidades.

Pedro Paulo Sales

Jovem, na roça de mandioca, tocando o trompete huriatini, feito de casca de embira, para chamar os espíritos que cuidam das plantas
cultivadas, s.d. (Registro fotográfico Sebastião Salgado/Ecoamazônia)

37
AULA 3
INSTRUMENTOS SONOROS INDÍGENAS E SUAS RELAÇÕES COM OUTROS SABERES
Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
A diversidade dos instrumentos indígenas é imensa, tanto no que diz respeito aos tipos de instrumento,
quanto aos seus formatos, sonoridades, materiais empregados na sua construção, maneiras de construí-los
e de tocá-los nos diferentes contextos.

São exemplos:

• Flautas (frontais, transversais, nasais ou de êmbolo).


• Ocarinas (labiais ou nasais).
• Trompetes (frontais ou transversais).
• Clarinetes ou gaitas (cujo som é produzido por palhetas que vibram ao sopro).
• Tambores (com pele ou de tronco).
• Maracás (chocalhos redondos, compridos ou na forma de guizos pendentes).
• Zunidores (instrumentos que produzem som no contato com o ar ao serem girados).
• Mirlitões ou kazoos (cujo som é produzido por uma membrana que vibra ao som da voz).
• E instrumentos de corda (como a rabeca e o arco-de-boca).

Flauta de pã dependurada no esteio-chefe, sua morada, s.d. (Registro


fotográfico Pedro Paulo Salles)

38
AULA 3
INSTRUMENTOS SONOROS INDÍGENAS E SUAS RELAÇÕES COM OUTROS SABERES
Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
A relação dos instrumentos indígenas não é, nem poderá ser tão cedo,
definitiva. As surpresas surgem a cada passo, devidas ao material empregado,
à conformação dada às peças, à maneira de utilizá-las. Nesse ponto, pode-se
afirmar que os instrumentos repetem as mesmas impressões provocadas pela
música vocal: sempre modificados de grupo para grupo.
(CAMÊU, 1977, p. 191)
Esses instrumentos podem ser feitos de:

• Taquara, de madeira.
• Cabaça.
• Casca de árvore.
• Carapaças (de tatu ou jabuti).
• Chifre.
• Osso.
• Peles animais.
• Cápsulas vegetais (de pequi, por exemplo).
• Trançados.
• Cerâmica.
• Entre outros materiais.

Taquara

Designação genérica para várias espécies de bambu.

Na sua construção ainda são empregadas outras matérias-primas, como:

• Plumagens de pássaros.
• Miçangas.
• E pingentes diversos.
Mais do que meros objetos destinados à música ou à comunicação sonora, instrumentos indígenas podem ser
considerados como dotados de energia vital, isto é, entendidos como entes vivos – “pessoas”, animais ou espíritos.

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AULA 3
INSTRUMENTOS SONOROS INDÍGENAS E SUAS RELAÇÕES COM OUTROS SABERES
Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
Pedro Zunizakae, da aldeia Bakaval, tocando a Txíhali. (Registro fotográfico Pedro Paulo Salles)

Essa subjetividade dos instrumentos vemos no tratamento que alguns povos indígenas lhes dão: recebem
alimentos, bebidas, uma casa para morar e são benzidos de diversas maneiras (SALLES, 2017, p. 227;
MATAREZIO FILHO, 2019, p. 146).

SAIBA MAIS
Acesse os títulos indicados a seguir para aprofundar-se no grandioso universo dos
instrumentos indígenas.

• Assista ao filme Iburi - Trompete dos Ticunas, de Edson Matarezio, e conheça


os processos de construção, benzimento e performance desse instrumento:
https://vimeo.com/108367090. Acesso em: 06 set. 2022.

• Assista, também, ao filme O arco e a lira, de Priscilla Ermel (1957), e veja


Tereza Ambaga, do povo Gavião Ikolen, construindo e tocando
iridinam, o arquinho de namoro: https://vimeo.com/60457692.
Acesso em: 06 set. 2022.

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AULA 3
INSTRUMENTOS SONOROS INDÍGENAS E SUAS RELAÇÕES COM OUTROS SABERES
Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
Sobre a subjetividade dos instrumentos, há exemplos em um livro publicado no século XVI, em 1557, que traz
os relatos do mercenário alemão Hans Staden (1510-1576), depois de ficar prisioneiro dos Tupinambá na
Costa Sudeste brasileira, no qual ele descreve a relação desse povo com os seus maracás, os chocalhos:

Fazem, depois, um buraco em forma de boquinha e põem pedrinhas dentro,


para que chocalhe. (...) Quando então todos estão reunidos, ele [o pajé] toma
cada tamaraka individualmente e o enfumaça com uma erva que chamam
petum. Leva depois o tamaraka à boca, chocalha-o e lhe diz: Nee kora, fala
agora e deixas te ouvir, tu está dentro? (...) Se o pajé adivinho já transformou
todos os chocalhos em deuses, então cada um aceita seu chocalho, chama-o
de filho querido, faz para ele sua própria ocazinha, dentro da qual ele fica,
sempre coloca comida diante dele, pede a ele tudo o que necessitam, do
mesmo modo que rogamos ao verdadeiro Deus, estes são seus deuses.

(STADEN, 1557, p. 156)

Apesar da visão judaico-cristã do autor, a narrativa revela de que maneira os maracás tomam vida, adquirem
a fala, são alimentados e recebem uma pequena maloca para morar na aldeia Tupinambá. Essas práticas
existem até hoje em diversas sociedades indígenas, inclusive habitações similares, como a casa da flauta,
do povo Haliti (SALLES, 2017, p. 215-218), ou a casa dos homens, no Alto Xingu, onde ficam resguardados
conjuntos de instrumentos.

Quando esses cuidados são postos em ação, entende-se que os instrumentos retribuem dando proteção e
força. Caso contrário, desperta neles uma potência predatória, razão pela qual eles são temidos.

Com relação a essa capacidade verbal dos instrumentos, determinadas melodias e ritmos feitos por
eles podem ser decifrados e compreendidos por ouvintes indígenas como palavras ou frases, com seus
respectivos significados linguísticos na língua local ou na linguagem de espíritos, os quais, muitas vezes, são
chamados por meio dessas sonoridades.

O trompete huriatini, dos Suruahá, por exemplo, chama os espíritos que cuidam das plantas cultivadas na
roça ao ser tocado de uma determinada maneira.

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AULA 3
INSTRUMENTOS SONOROS INDÍGENAS E SUAS RELAÇÕES COM OUTROS SABERES
Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
A casa da flauta, na aldeia Rio Formoso. (Registro fotográfico Pedro Paulo Salles)

A subjetividade desses instrumentos é ainda mais acentuada por terem características de gênero, de
parentesco e etárias, o que abala as categorias ocidentais de classificação de instrumentos. Há, por exemplo:

• Trompete-homem e trompete-mulher.
• Flauta-mulher jovem e flauta-mulher velha.
• Clarinete-avô e clarinete-neto.
E há, conforme citado, instrumentos que são considerados pelos indígenas como seus filhos (por isso têm de
receber cuidados e nutrição). E ainda:

• Trompete-peixe.
• Flauta-jaguar.
• Flauta-jararaca.
• E uma série de outras variantes envolvendo animais sobrenaturais, cujas vozes ressoam por meio desses
instrumentos.

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AULA 3
INSTRUMENTOS SONOROS INDÍGENAS E SUAS RELAÇÕES COM OUTROS SABERES
Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
Em diálogo com um narrador Tikuna, Matarezio exemplifica esse aspecto:

Ela [a história] nos revela um outro nome com o qual são batizados os
trompetes, o do veado. ‘Quando a gente coloca o nome do veado no
trompete to’cü, é ele quem fala. E só canta música do veado dentro
dele’, explica Ondino.
(MATAREZIO, 2019, p. 147)

Há uma maneira certa de se tocar esses instrumentos?

Sim. Apesar de que cada instrumentista e cada povo tenham o seu próprio modo de tocar e estilo, a
execução musical nesses instrumentos obedece a técnicas específicas, que são aprendidas durante a
experiência de vida na coletividade, observando-se os mestres de música ou praticando sob sua orientação.

SAIBA MAIS
Visite o website da Biblioteca Digital Curt Nimuendaju para encontrar
textos sobre instrumentos e musicalidades indígenas e outros assuntos
do campo antropológico. Acesse: http://www.etnolinguistica.org/.
Acesso em: 06 set. 2022.

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AULA 3
INSTRUMENTOS SONOROS INDÍGENAS E SUAS RELAÇÕES COM OUTROS SABERES
Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
A maneira de segurar e a postura corporal dos instrumentistas (inclusive para se tocar em movimento)
também são observadas na busca de uma sonoridade almejada e são fruto de técnicas corporais específicas
que pertencem a concepções performáticas e às características físicas e metafísicas de cada instrumento.

AMPLIANDO REPERTÓRIO

Não deixe de conferir as indicações a seguir para expandir os seus conhecimentos sobre o universo da
musicalidade dos povos originários:

• IZIKOWITZ, Karl G. Musical and other sound instruments of the South American Indians:
a comparative ethnographical study. Goteborg: Wettergren & Kerber, 1935. Disponível em:
http://www.etnolinguistica.org/printer--friendly//biblio:izikowitz-1935-instruments.
Acesso em: 06 set. 2022.

• LOLLI, Pedro; PICCHIA, Paulo Menotti del. Os trompetes dos guaribas: do modo de existência
artefatual da pessoa no alto rio negro. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Ciências Humanas, [S.L.], v. 16, n. 2, p. 1-22, jun. 2021. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.
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Tomar consciência da diversidade e das formas de relacionar-se com instrumentos sonoros é fundamental
para termos uma nova dimensão das musicalidades indígenas e dos papéis que sons e músicas – na sua
materialidade e imaterialidade – desempenham nas dinâmicas da vida e nas concepções de mundo dos
povos originários, entrelaçando-se com outros saberes e seres.

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AULA 3
INSTRUMENTOS SONOROS INDÍGENAS E SUAS RELAÇÕES COM OUTROS SABERES
Eixo I: Sociodiversidade e sonoridades indígenas ÍNDICE
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