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EDITORIAL
Depois das festas de fim de ano, da Lavagem do Bon- E não poderíamos deixar de falar em exposição fotográ-
fim, da Festa de Yemanjá e do Carnaval, o ano novo se fica! Trazemos um pouco sobre Botanicals, uma mostra
apresenta com mais força para todos e com ele, a pri- em cartaz em Valência, na Espanha, que aborda a re-
meira edição de 2020 do Boletim Informativo da Fun- presentação de plantas ou formas vegetais e que cria
dação Pierre Verger que traz como destaque o retorno uma narração visual de obras de arte da coleção Per
do livro Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns, de Amor a l’Art com a participação de artistas como Karl
Pierre Fatumbi Verger, publicado pela Edusp. O livro é Blossfeldt, Imogen Cunningham Hans-Peter Feldmann,
um marco para as histórias de Verger e das religiões Jonas Mekas, Alessandra Spranzi e Pierre Verger.
africanas e afro-brasileiras, pois se trata de uma das
primeiras publicações sobre o tema em todo o mundo Já sobre o Espaço Cultural Pierre Verger, temos uma
e que, ainda hoje, é fonte de pesquisa para todas as entrevista com Jaqueline Santos, uma ex-moradora do
pessoas interessadas nessa temática. Engenho Velho de Brotas que doou uma coleção de
livros clássicos para a biblioteca da Fundação, na qual
Outra publicação que trazemos em notícia é o livro-ca- ela conta sobre o seu amor pela leitura e como Caeta-
tálogo AFRICAMERICANOS, fruto da exposição homô- no Veloso e Maria Bethânia a influenciaram no caminho
nima realizada na Cidade do México, em 2018. Nessa da literatura; informamos, também, sobre a abertura
publicação, Pierre Verger é homenageado em reconhe- das inscrições para as oficinas do Espaço; contamos
cimento pelo seu pioneirismo no destaque às temáticas como foi a ação de Natal promovida por funcionários
afro-americanas. da Odebrecht com as crianças da comunidade; e as
parcerias com a antropóloga e cineasta Irina Linke e
Noticiamos o embarque do grupo brasileiro que par- com o projeto Brazil Cultural, que comemorou 15 anos.
ticipa do projeto de intercâmbio cultural Identités em
Mouvements, dessa vez para a mobilidade na Guia- É isso aí! Ano novo, vida nova e a Fundação Pierre
na Francesa, tendo como ponto de encontro a comuna Verger continua desenvolvendo as mais diversas ati-
francesa Maripasoula. Também contamos sobre a visita vidades. Desejamos uma boa leitura, lembrando que
à Fundação de um morador de Canudos que falou so- acessando o nosso site você fica por dentro de mais in-
bre a importância do olhar humano de Verger sobre a formações sobre as ações e os serviços oferecidos pela
cidade depois da Guerra. Fundação. Até a próxima edição!
CONTEÚDO
04
PUBLICAÇÃO Notas sobre o Culto aos Orixás e Voduns
06
EXPOSIÇÃO AFRICAMERICANOS
07
INTERCÂMBIO Identités en Mouvements – Mobilidade Guiana Francesa
08
CONEXÃO Um Olhar Humano sobre Canudos
09
EXPOSIÇÃO Botanicals: Per Amor a l’Art
10
ARTE, CULTURA, EDUCAÇÃO Espaço Cultural Pierre Verger
16
INSTITUCIONAL Fundação Pierre Verger
EXPEDIENTE: Boletim Informativo bimestral, elaborado pela Comunicação da Fundação Pierre Verger.
Coordenação e Conteúdo: Alex Baradel, Angela Lühning e Tacun Lecy.
Organização: Tacun Lecy.
Textos: Angela Lühning e Tacun Lecy.
Fotos: Javier Escudero e Tacun Lecy.
Design Gráfico e Diagramação: Tacun Lecy.
Revisão: Alex Baradel, Angela Lühning e Tacun Lecy.
Contato: comunicacao@pierreverger.org
APOIO FINANCEIRO:
A Fundação Pierre Verger é mantida com apoio do Fundo de Cultura do Estado da Bahia.
PUBLICAÇÃO
PUBLICAÇÃO
Fotografia publicada no livro Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns. | Legenda: Héviosso, Abomey, Bénin (Anos 50). | © Fundação Pierre Verger.
AFRICAMERICANOS
O ano era 1952 quando os pri- e as combina com produções con- Verger entre essas culturas, diversos
meiros trabalhos de Pierre Fatumbi temporâneas encomendadas para pesquisadores, antropólogos e ar-
Verger sobre as culturas afro-ame- este projeto, no qual se destaca a tistas abordaram em seus trabalhos
ricanas foram publicados pelo Insti- reunião de trabalhos oriundos de essas relações, gerando uma gran-
tut Français D’Afrique Noire - IFAN, uma diversidade geográfica forte, de produção de informações sobre
no periódico Les Afro-Americains. incluindo países cuja raiz afrodes- essas culturas. AFRICAMERICANOS
A instituição, com sede em Dakar cendente é pouca conhecida, como é o primeiro projeto inovador de
(Senegal), havia contratado Verger Argentina e México. pesquisa e produção visual que
especialmente para documentar se- busca revisar e esclarecer a confi-
melhanças entre as culturas do Be- Pierre Verger é homenageado nes- guração de imaginários associados
nim e da Bahia, em um momento se projeto, tendo as suas fotografias a comunidades afrodescendentes
no qual ele já havia realizado um iniciando o catálogo, indicando, ali, em 16 países da América Latina e
trabalho fotográfico abrangente o pioneiro no destaque a essas te- no Caribe. A exposição foi realizada
sobre as culturas afro-americanas, máticas. O catálogo conta, também em 2018, no Centro De La Imagem,
notadamente na Bahia, no Haiti, no com obras de Maya Goded, Sandra na Cidade do México.
Suriname (Guiana Holandesa) e nas Eleta, Nelson Garrido, Cristina de
Antilhas. Registrava-se ali, o pionei- Middel e a coleção do Instituto Mo- O LIVRO-CATÁLOGO
rismo de Fatumbi em afirmar as re- reira Salles, entre outros. • Capa dura: 236 páginas
lações culturais entre os continentes • Editora: RM/Museo Amparo/Cen-
africano e americano através da sua A Fundação Pierre Verger dispõe de tro de la Imagen; Edição: 1 (29 de
obra. um número limitado dessa publica- outubro de 2019)
ção, que pode ser adquirida na nos- • Idioma: Espanhol.
Em 2019 foi lançado o livro-catá- sa loja online pelo valor promocio- • ISBN-13: 978-8417047955
logo AFRICAMERICANOS, fruto da nal de R$ 120,00, dividido em até • Dimensões: 24,1 x 2,5 x 34,3 cm.
exposição homônima, que ofere- três vezes. Clique aqui e receba o • Peso de envio: 1,5 K.
ce uma pesquisa visual poderosa seu exemplar em casa.
que reúne imagens históricas de Compre em nossa Loja Online.
importantes arquivos fotográficos Após a conexão estabelecida por
Foto 01: Dona Maria Avelina (publicada no livro Sertão, Sertões). Foto 02: Dona Maria Arquelina da Conceição. Canudos 1946. | © Fundação Pierre Verger.
Biblioteca Jorge Amada recebeu a coleção de clássicos de Jaqueline Santos. | Foto: Tacun Lecy.
Trata-se da história de uma meni- Confira os principais pontos do de- Sabe, não tive a oportunidade de
na que veio sozinha do interior da poimento dela, dados em conversas estudar desde pequena, eu não tive
Bahia e chegou a Salvador em 2003 por WhatsApp com Angela Lühning. a oportunidade de ter aquele desen-
para trabalhar, desde cedo, como (A transcrição e a edição são da volvimento que as crianças tem hoje
babá e cuidadora de pessoas idosas própria Angela.) de ir para a creche, de aprender
para várias famílias. E foi através de desde o começo, venho de uma in-
uma das suas patroas que ela mer- Minha relação com a música come- fância muito pobre. Meus pais eram
gulhou na obra de Maria Bethânia çou muito cedo porque na casinha alcoólatras e como irmã mais velha
e Caetano Veloso, que ela revelou em que a gente morava, não tinha eu tinha que batalhar pelos meus ir-
os considerar seus professores, que televisão, não tinha água, não tinha mãos, tinha de pedir comida na rua
lhe deram formação e fizeram dela luz; quase faltava o básico para vi- para eles, tinha de fazer comida,
o que é hoje; o motivo: os irmãos vermos, mas me lembro que a gente assim que chegava em casa, se não
santo-amarenses despertaram nela tinha um radinho-relógio à pilha e minha mãe trocava tudo por cacha-
o gosto pela leitura, através das le- eu ficava muito tempo com este ra- ça, foi um sofrimento. Depois que
tras das suas músicas. dinho, me distraindo. À noite eu es- saí de casa para trabalhar, para dar
cutava, de dia eu deixava de brincar um pouquinho para eles, eu sofri
Jaqueline lembra até hoje dos pri- com a criançada da rua para ouvir o abuso sexual, eu passei por coisas
meiros livros que ela leu, como, Vi- rádio. Rádio para mim foi um meio assim que machucam muito o ser
ver vale a pena, de Lucília Junqueira de comunicação muito importante. humano, na essência.
Boletim Informativo | Edição 01/2020 11 Salvador, Bahia | Fevereiro, 2020
O horário que meus patrões chega- não tive a oportunidade de ir para
Eu nasci em Alagoinhas, na Bahia, vam não dava para eu ir mais, pois escola todo dia, regularmente.
em 1988, numa família de cinco chegavam bem tarde, umas 8 horas
irmãos. Quando nascemos, não tí- da noite. Por isso tive que largar no- Quando cheguei aqui no Sul, eu co-
nhamos certidão de nascimento, vamente os estudos, mas estudava nheci um rapaz que é meu marido
porque o pai das minhas irmãs não em casa. hoje, foi em 2015 e ele não sabia
deixava a minha mãe nos registrar, ler, nem escrever e eu ensinei para
porque ela já estava debilitada pelo Assim fui largando a escola e retor- ele. Passei um pouco do que eu sei
alcoolismo. Eles nunca foram atrás nando aos estudos e fiz até o pri- para ele. Hoje meu marido sabe ler
para fazer documento para a gente meiro ano, mas dali para frente eu e escrever e eu o incentivo. Matri-
e quando comecei a ir para a es- deixei mesmo os estudos e foquei só culei-o num curso do EJA (Educa-
cola tinha nove anos, graças a uma no trabalho, porque tinha que tra- ção de Jovens e Adultos), junto com
mulher de quem fui cuidar do filho. balhar, sem pai, nem mãe, foi então meu vizinho. Eles estão procurando
Eu fui trabalhar com nove anos de que eu vim aqui para o Sul. Quando aprender e entender que a gente
babá de um menino de cinco anos. fui morar no Sossego em 2012 eu só cresce quando a gente sai des-
Então, a partir dessa época, fui es- já não estudava mais por causa do sa escuridão que é o analfabetismo.
tudar na escola. Mas eu parei logo, trabalho. Morei dois anos no Sosse- Eu sempre falo que, enquanto não
porque era muito difícil estudar e go, mas ficava só em casa quando sabia ler nem escrever, eu estava
trabalhar, não consegui. Saí daque- chegava do trabalho, ouvia música na escuridão. Quando comecei a
la casa em 2000 e fui trabalhar com e lia e pouco saía. ler, quando aprendi a escrever meu
uma senhora idosa. Depois eu fui nome, eu senti que o mundo come-
para Salvador em 2003, eu voltei A gente ter de escolher entre traba- çou a se abrir para mim. Quando
para os estudos. lhar e estudar é uma realidade mui- comecei a estudar, também fiquei
to triste. Eu trabalhei quase 10 anos com vontade de escrever, mas tinha
Em Salvador cuidei de uma senhora para aquela minha ex-patroa no vergonha das coisas que escrevia.
idosa, trabalhei dois anos para ela Itaigara (o casal de médicos) e eles
e através das sobrinhas dessa se- tinham uma assinatura da revista Eu tinha uns cadernos com os po-
nhora, que gostavam muito de Ma- Veja. Eu era apaixonada pela revista emas que escrevia para Maria Be-
ria Bethânia, eu mergulhei na obra Veja, porque ela tinha aquelas pá- thânia, as cartas que escrevia para
dela. Ela recitava muitos poemas e ginas amarelas e eu gostava de ler ela porque eu tinha esperança de
assim fui procurar os autores, textos as entrevistas dessas páginas, mas um dia poder mostrar para ela. Eu
de Caetano, de Jorge Portugal, e também gostava de saber o que achava que ela ia ver minhas poe-
desenvolvi um interesse pela música acontecia no mundo e, através da sias, que eu ia dizer a ela o quanto
nacional e pela literatura. Através de revista, ficava informada. Mas eu lia a música dela me mostrou o mundo
Bethânia também conheci Fernando também muitos livros, eu lia o jor- de letras que eu não conhecia, de
Pessoa, Mia Couto e outros escrito- nal A Tarde, que para mim era uma palavras que eu não conhecia e, na
res. maravilha. Quando lançaram aque- minha cabeça, um dia ia mostrar os
Nessa época nem sabia ler direito, la revista Muito, ficava louca espe- meus cadernos para ela.
mas aquela voz, aquela música me rando o final de semana, só para
instigava muito e assim fui lendo poder ler. Eu virei uma papa-livros e Mas, no dia que tive a oportunida-
cada vez mais e minha leitura foi se uma papa-jornais. Eu tinha também de encontrar com ela num show, eu
aprimorando. Também tive contato a assinatura da revista Bravo porque só pedi para ela avisar ao Caetano
com Maria Bethânia através de um queria pegar uma revista do Vinicius que amo muito ele. Quase morri do
casal de médicos que me dava mui- de Moraes. Por isso fiz a coleção, de coração, chorei tanto e ela pergun-
tos CDs dela e livros para ler. O pai que gostava bastante. Eu amava, lia tou por que eu chorava e eu respon-
deste ex-patrão me incentivava a ler demais e como ela vinha uma vez di que era porque ela é a professora
e me levava aos shows de Bethânia. por mês, eu lia e relia, até chegar a de minha vida. Mas Caetano não
próxima. Era muito bom. consegui ver de perto até hoje, não
Quando eu saí da Pituba, da casa sei se Bethânia deu meu recado.
daquela senhora, fui trabalhar no Nesses quase 10 anos na casa da
Itaigara e lá conheci um rapaz que Dona Soraya, ela lia também mui- Não sei se meus cadernos ainda
chama Beto Santana, ele trabalha- tos romances espíritas porque quan- existem, ficaram com as minhas
va numa loja de discos. Fiz amizade do ela lia um livro, ela dizia “Jaque, coisas, móveis e outras coisas que
com ele e na casa dele conheci a leia esse livro e me diga o que você deixei com minha irmã em Salvador.
Lúcia, minha amiga, e daí fui parar acha.” Eles tinham o costume de Na verdade, me achava muito tosca,
depois no Sossego (na Vila Améri- dar o livro e perguntar “o que você com vergonha das coisas que escre-
ca). Voltei a estudar lá no Itaigara, achou desse livro?” e nisso, doida via, pois me sinto aquela romântica
não me lembro muito das datas, e para dizer o que eu achei do livro, abestalhada. Hoje eu penso que a
primeiro fui cuidar de uma criança, eu lia muito. A literatura nacional foi gente precisa perder a vergonha e
mas de novo tive de deixar os estu- minha escola, na verdade, porque expor o que a gente sente e falar, o
dos, porque os horários não batiam. assim tive acesso à educação, mas que tem vontade de falar.
Funcionários da Odebrecht na Praça Mestre Bimba do Espaço Cultural Pierre Verger. | Foto: Tacun Lecy.